Você está na página 1de 7

Fichamento – Doutorado Liana de Paula.

Liberdade Assistida: punição e cidadania na cidade de


São Paulo.

Introdução

Liana arrola três esquemas interpretativo-interventivas em casos de comportamentos


desviantes de adolescentes: a matriz psiquiátrica, a sóciopsicológica e a socioassistencial.

A matriz psiquiátrica possui caráter biologizante e atribui as práticas desviantes a patologias. A


solução interventiva que corresponde a essa matriz é a segregação, posto que não cura para as
condições às quais esses sujeitos estão submetidos. A matriz psiquiátrica é frequentemente
aplicada a casos de extrema violência e tem nos juízes e promotores seus principais
mobilizadores.

A matriz sociopsicológica, muito embora não exclua condicionantes psiquiátricos, centra as


atenções na família, como instituição responsável por oferecer condições morais e materiais
que possam evitar a ocorrência de condutas desviantes e violentas. O causador por excelência
das condutas ilegais seria a constituição psicológica do sujeito inserido em famílias
empobrecidas e incapazes de prover material e moralmente o jovem.

Surge dessa matriz a disseminada ideia de família desestruturada, que de acordo com Liana é
um termo que surge no século XX para designar organizações familiares inseridas nas classes
subalternas e nas quais se desenvolvem modelos de relação não hegemônicos. O modelo de
intervenção nesse caso é a piscoterapia individual ou em grupo, a inserção em curso
profissionalizante, atendimento às famílias e inserção em programas assistenciais. A autora
marca também o surgimento recente do termo “família disfuncional”, que desloca o problema
da forma que a família se organiza para o fracasso em desempenhar a suposta função
protetiva e educativa dessa instituição.

A matriz socioassistencial emerge também recentemente, ao que parece, ao se constatar a


insuficiência da matriz sociopsicológica ao incorporar a família ao quadro interpretativo. Desse
modo, a matriz socioassistencial busca como explicação para o desvio, os efeitos da pobreza
nas comunidades, famílias e jovens.

“Assim, a pobreza, principalmente urbana, caracterizada pela precariedade de


condições de vida, pela ausência ou limitação de recursos públicos de infraestrutura e
serviços e pelo enfraquecimento da solidariedade entre vizinhos, torna-se a principal
causa a ser combatida, propondo-se como intervenção a promoção social do
adolescente e sua família.” (p.4)

A tese se desenvolverá em torno da matriz socioassistencial, com o intuito de ponderar em


que medida esse esquema de interpretação e intervenção se diferencia de outras maneiras de
intervir na conduta desviante do jovem.

A autora passa então a localizar teoricamente o problema da família e da infância. A sociologia


clássica em Durkheim, Weber e Tonnies já observara os efeitos da modernização nas relações
familiares. A ascensão do capitalismo deslocou a produção da comunidade para a empresa, a
emergência do Estado deslocou da comunidade e da família a política e a escola passou a
ocupar o papel educativo. A desagregação da comunidade abriu espaço para as trajetórias
individuais e a família passa a assumir outro caráter.
Nesse contexto, a família passa para o campo da intimidade doméstica, cuja marca distintiva
passa a ser o cuidado com a criança. Com a valorização da infância, a família passa a se ocupar
com a saúde e com a educação, sempre em “conexão” com a medicina e a escola. Jacques
Donzelot mostra que, apesar desses cuidados serem comuns a diferentes segmentos sociais,
existem estratégias educativas diferenciadas de acordo com a classe social.

Às famílias burguesas cabe um conjunto de cuidados embasados nos conselhos de médicos e


buscam a produção de sujeitos distintos , criados em um modelo de “liberdade protegida”.
Enquanto às famílias trabalhadoras cabe a prevenção dos excessos, o modelo da “liberdade
vigiada”.

CAPÍTULO 1- A constituição do campo sobre infância e adolescência em São Paulo

A intervenção junto às crianças oriundas das classes trabalhadoras se inicia no século XX. O
problema da infância pobre é engendrado em São Paulo junto ao processo de
modernização/urbanização da cidade. O contingente de crianças filhas de ex-escravos e de
trabalhadores que passavam o dia em jornada nas fábricas se torna preocupação pública, pois
ganham relevância as práticas que desafiavam a legislação e moral da época. Práticas como
prostituição, furtos, mendicância e outras classificadas como delinquentes eram imputadas a
essa juventude marginalizada.

Um marco para a constituição do que Liana chama de campo sobre infância e adolescência em
São Paulo é a criação do Instituto Disciplinar e da Colônia Correcional em 1902, na Chácara do
Belém, instituições voltadas ao recolhimento de crianças e jovens da rua. A autora ressalta que
embora a legislação e regimento interno desses institutos previssem a educação científica e
moral associada com práticas laborais, as jornadas de trabalho agrícola eram a principal
ocupação dos internos. E, apesar da proibição, os castigos físicos eram uma constante e
ficavam a cargo do “feitor”, nome sintomaticamente ligado ao escravismo.

A promulgação do Código de Menores em 1926 marca uma mudança na forma de gestão da


infância pobre. O discurso médico aparece como uma forma de intervenção preventiva da
delinquência. A pedagogia do trabalho agora perdia espaço para a pedagogia terapêutica, cujo
objeto privilegiado de intervenção era a família. Apesar do surgimento das recomendações
profiláticas dos médicos, essa posição precisou se aliar a outras perspectivas sobre a infância
pobre. O Código de 1926 se constitui como o resultado de uma aliança entre as modernas
concepções do mal menor, ou seja, da prevenção e das visões disciplinares mais tradicionais
professadas pelos juristas.

A aliança entre juristas e médicos despertou rusgas com os capitalistas, pois a visão de infância
normatizada no Código de 26 matizava fases da infância e acabava por regulamentar a
inserção desse público no mercado de trabalho. Desse modo, o primeiro código operou uma
mudança no campo da infância e adolescência na Primeira República ao ser um operador da
transmutação da filantropia em assistência prestada pelo Estado.

Era Vargas
O Código de 1927 trazia dessa forma elementos que podem ser vistos como progressistas ao
assumir um caráter pretensamente assistencialista em detrimento de visões mais
conservadoras, que tratariam a questão da infância pobre como um problema de polícia.
Entretanto, o código despolitiza o problema, cujas raízes se encontram nas relações capital-
trabalho, recolocando-o sob um ponto de vista moral. Desse modo, trata-se, de acordo com a
visão plasmada no código, de moralizar os filhos da classe trabalhadora por meio da educação,
e o reformatório para casos de desvio, e não de tratar da contradição fundamental, nem
mesmo de maneiras paliativas, como a extensão de direitos aos trabalhadores.

Com a regulamentação das relações de trabalho ocorrida na Era Vargas, um dos aspectos do
Código de Menores, que era a regulamentação do trabalho infantil, passa a ser regrado pela
CLT. A promulgação e consolidação de leis trabalhistas instauram uma cisão na classe
trabalhadora. De um lado ficam os trabalhadores urbanos protegidos pela CLT e pela
previdência, de outro os demais trabalhadores, como trabalhadores rurais, informais,
desempregados, a quem caberia o assistencialismo. Cria-se, então, a divisão entre
trabalhadores e não-trabalhadores, que também impactará a infância e juventude.

Para a infância trabalhadora, investimentos na educação básica, criação do sistema S,


formação para o trabalho. Para os demais, delinquentes, abandonados é criado em 1941 o
SAM, no Rio de Janeiro. Em São Paulo, na década de 1930 está em curso um processo de
instituicionalização da assistência social. Na iniciativa privada, há a criação do Centros de
Esrudos e Assistência Social por parte da Igreja Católica e a criação do primeira Escola de
Serviço Social do país, em 1936. Por parte do Estado, há a criação do Departamento de
Assistência Social, em 1934, substituído em 1938 pelo Serviço Social dos Menores
Abandonados e Delinquentes.

“Subordinado à Secretaria de Justiça, esse serviço tinha como atribuições o recolhimento de


crianças e adolescentes sob investigação judicial; sua distribuição nos estabelecimentos
subordinados (Abrigos Provisórios, Institutos, Pensionatos de Menores); o apoio e a
cooperação com a Justiça de Menores, tanto na execução direta nesses estabelecimentos,
quanto na proposição do desligamento e execução da liberdade vigiada.”

Com um desenho institucional que criava diversas seções, com carreiras bem definidas e
hierarquizadas, o Serviço buscava se embasar em práticas científica calcadas na pedagogia
terapêutica. Porém na prática, os profissionais responsáveis pela assistência aos menores,
ainda tinham visões muito influenciadas pela pedagogia do trabalho adotada no início do
século. DIFERENÇA ENTRE NORMATIVAS INSTITUCIONAIS E PRÁTICA COTIDIANA.

Ditadura Civil-Militar

O SAM no Rio de Janeiro e o Serviço Social dos Menores em São Paulo passam por um período
de desgaste. Esse processo de corrosão esteve ligado a dois pontos de fissura: a quebra da
aliança entre médicos e juristas e as contradições entre as tentativas de implementação de
práticas baseadas em saberes científicos e a manutenção de uma assistência informada por
visões anacrônicas, repressivas e violentas. Além disso, o SAM e SSM tinham problemas de
superlotação, causado pelo aumento do encarceramento..

Em 1963, após um incidente de grande repercussão envolvendo menores do SAM, são dados
os primeiros passos para a promulgação da PNBEM – Política Nacional do Bem Estar do Menor,
que previa a criação da FUNABEM, que seria o órgão nacional responsável por pensar e
desenhar a política voltada à infância e adolescência pobres, cuja aplicação seria de
responsabilidade das FEBEM – Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor.

Durante a ditadura, a “questão do menor” foi tratada como elemento de possível


desestabilização social e política, por isso a política nacional voltada a esse setor seria uma das
maneiras de não vulnerabilizar as instituições. Nesse período surge a teoria da marginalização,
que postula a existência de fatores sociohistóricos, biológicos e psicológicos para a
delinquência juvenil.

A teoria da marginalização, com a artuculação de fatores sociais, hereditários e psicológicos é


o que embasou a doutrina da situação irregular que foi elaborada no Código de Menores de
1979. Apesar disso, as práticas dessa doutrina precederam o código e já pautavam as reflexões
e políticas voltadas à infância pobre desde a década de 1960.

A Febem-SP só seria instalada 1976, não obstante os quase 10 anos que separam a
promulgação da PNBEM e sua instalação no estado. Apesar de a teoria da marginalização
servir de base para a elaboração de relatórios técnicos, pautando a desestruturação das
famílias como fator preponderante para o processo pobreza-desvio-delinquência sintetizado
por essa teoria, na prática a tortura e a violência seguiam firmes no cotidiano das unidades
educacionais.

O fim da década de 1970 e início dos ano de 1980 trariam uma série de convulsões sociais para
o Brasil, com destaque para as lutas do movimento operário do ABC. Nesse contexto, surgem
também os primeiros movimentos sociais que reivindicavam direitos e denunciavam a situação
dos jovens pobres no país.

Nesse processo social, que desembocaria na redemocratização e na Constituição de 1988, os


movimentos em defesa da infância e juventude fizeram muitos avanços e lograram sedimentar
suas vitórias na nova carta constitucional.

Posteriormente, esses avanços dariam origem ao ECA, que buscava inscrever no campo da
infância e adolescência pobres a garantia de direitos. A autora marca uma divisão no estatuto,
cujo livro primeiro se dedica a desenvolver essa nova perspectiva, denominada doutrina da
proteção integral. O segundo livro, entretanto, busca estabelecer parâmetros para a punição
da delinquência, criando uma unidade contraditória entre proteção/educação e punição.

Efeitos do ECA: 1) Reafirmação da figura do juiz como central para a definição do jovem dentro
do binômio inclusão/exclusão

2) manutenção da infância e adolescência pobres como alvo de intervenções da face punitiva.


p. 61

As práticas pós-estatuto

A autora ressalta que embora tenha havido uma baixa no número de internações, o que
configuraria uma adesão do sistema de justiça juvenil à doutrina da proteção integral, dados
mostravam também que os jovens internados eram os pobres e negros, o que mostra que a
doutrina da situação irregular seguiu pautando as decisões judiciais.

Liana usa duas pesquisas como base para analisar os dados do sistema após implementação do
ECA: a de Passeti e a do NEV

Ainda no momento pós-estatuto ocorrem diversas rebeliões e atos de violência que levaram
ao fim do sistema FEBEM.

A Liberdade Assistida emerge, a partir dos anos 2000, como a principal forma de punição dessa
juventude pobre. Frente à crise do sistema FEBEM, ocorre um movimento de descentralização
do sistema, com larga participação da “sociedade civil”, com organizações sociais passando a
gerir o sistema punitivo.

Capítulo 2 – A Liberdade Assistida e a socialização dos pobres como problema político

A autora distingue três momentos de transformação do campo de discursos e práticas


interventivas sobre a infância e juventude pobres:

1 Com o código de 1927 a questão central, ao menos enquanto discurso público, era a
transformação de não-trabalhadores em trabalhadores, dado o período de industrialização e
urbanização. Portanto, a pedagogia do trabalho se torna o método a ser aplicado.

2 Já no código de 1979, o problema a aparece como a marginalização da infância e


adolescência pobres. O crescimento das periferias urbanas é a questão estrutural nesse
período. A teoria da marginalização que embasa a doutrina da situação irregular.

3. A partir do ECA, a “economia das intervenções punitivas” se volta para o tensionamento


entre inclusão/exclusão da cidadania. Portanto, medidas em meio aberto que possuem um
viés assistencial se tornam a principal sentença para as ofensas cometidas por adolescentes.

A Liberdade Assistida em 3 tempos


Chamada de Liberdade Vigiada no primeiro código , a medida era aplicada em situações nas
quais o juiz entendesse a necessidade de vigilância judicial, seja em caso de cometimento de
infrações leves ou no caso da transição entre internação e liberdade. Havia também o caso de
aplicação da liberdade vigiada como mecanismo de vigilância sobre os pais em casos de
abandono, sendo aplicada a perda do pátrio-poder nos casos em que não houvesse reversão
da situação.

Como na liberdade assistida atual, um representante do judiciário fazia visitas, monitorava o


comportamento do adolescente enviava relatórios da situação do jovem ao juiz.

No segundo código, a Liberdade Assistida, passou a incorporar algumas inovações, a começar


pela substituição da palavra “vigiada” no nome. A medida deixou de ser aplicável a casos de
abandono e trouxe verbos típicos da assistências para descrever seu escopo e propósito, como
auxiliar, orientar, tratar.

Em comum, os dois códigos buscavam a intervenção precoce na vida dos jovens, com o
objetivo de evitar uma trajetória que levasse esses sujeitos a se tornarem futuros adultos
criminosos. No entanto, enquanto o primeiro código se focava na passagem entre instituições,
como escola para o trabalho, com forte enfoque na transformação de delinquentes em
trabalhadores, a liberdade assistida deveria se ocupar da realização da transição entre
internação e liberdade. No segundo código, entretanto, a Liberdade Assistida poderia ser
aplica em lugar da privação de liberdade.

Já no ECA, a Liberdade Assistida passa a ocupar um lugar privilegiado e a ser a principal medida
na economia punitiva. Ela se estende para abarcar intervenções que busquem incidir sobre as
trajetórias dos jovens não somente no trabalho e na família, mas também em sua
comunidade.

Dessa forma, o ECA aponta para uma transformação extensiva do poder de vigilância e
punição. Não mira somente o indivíduo, com sua busca incessante pela produção de mudanças
ou de normalização, como também intervém sobre um escopo ampliado de relações que esse
indivíduo estabelece com a comunidade.

Pastoral do menor e a Liberdade Assistida Comunitária

Ao contrário do que se possa imaginar, a Liberdade Assistida se constitui primeiramente como


prática experimental ainda durante a vigência do segundo código, que foi então incorporada
ao ECA em 1990. Como experimento, a Liberdade Assistida Comunitária foi um projeto
concebido e levado a cabo por atores ligados a setores progressistas da Igreja Católica.

Nesse sentido, D. Ruth Pistori foi pioneira, pois surge a partir dela o projeto piloto da LAC. Ruth
era assistente social, ligada à Teologia da Libertação e técnica da liberdade vigiada. Ela
articulou a LAC como meio de intervenção humanizada com os jovens que cumpriam a
Liberdade Vigiada. Uma das inovações da LAC, foi a incorporação da importância da
comunidade de participação política no âmbito do cumprimento da medida.

A LAC surge num momento de efervescência nos movimentos sociais brasileiros. As CEBs são
importantes instituições para articulação desses movimentos. Em decorrência da inserção dos
movimentos de infância dessa época, que por um lado se enraizavam junto a setores
progressistas da Igreja e por outro, a organizações internacionais, como a ONU.

Dessa maneira, dada a relevância desses movimentos na elaboração do Estatuto, a Doutrina


de Proteção Integral - que foi elaborada nas Declaração dos Direitos da Criança (1924),
aprofundada com a Declaração dos Direitos Humanos (1948) e posteriormente estendida na
Convenção dos Direitos da Criança (1989) e nas Diretrizes de Riad (1988) - se fizesse presente
no código, muitas vezes em aparente transcrição dessa normativas internacionais.

Liana destaca que os aspectos de intervenção sobre a comunidade e no sentido da inserção na


cidadania são de grande relevância e marcam uma ruptura do Estatuto com o Código de
menores.

A cidadania aparece no código sob dois sentidos, um com valor utilitário da integração ao
mudo da ordem, na qual a cidadania é concebida de maneira formalista, e outro no sentido
mais pleno do termo, esse que remete aos primórdios da LAC, com participação polítca efetiva.

Liana faz um grande apanhado dos atores do campo da infância e adolescência na atualidade.
Para tanto, a autora faz uma digressão sobre a reforma do estado, ou seja, a instalação do
neoliberalismo no Brasil.

Dessa forma, a autora mostra como organizações da sociedade civil, que na tese são divididas
em dois tipos (filantrópicas, movimentos sociais institucionalizados), passaram a ocupar um
papel preponderante no atendimento de jovens condenados a cumprir medidas
socioeducativas.

Apesar de mostrar como essas organizações ganham maior relevância a partir das
contrarreformas neoliberais, Liana ressalta que desde os anos 1930 pode-se ver as ligações
entre Estado e organizações filantrópicas.

Além dessas organizações, há uma série de atores e instituilçoes de Estado nos níveis federal,
estadual e municipal que são atuantes nesse campo.

A partir de 2007, com iniciativa de entidades representantes de atores do sistema de justiça, é


iniciada a municipalização do sistema socieducativo

Você também pode gostar