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UM ESCANDALOSO

THEATRO DE HORRORES
A capitania do Ceará sob o espectro da violência

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José Eudes Arrais Barroso Gomes

Vencedor do Concurso de Melhor Monografia do Centro de


Humanidades/UFC/2007

Fortaleza
2010
Mapal
CARTA MARÍTIMA E GEOGRÁFICA DA CAPITANIA DO
CEARÁ (1817)

PROGRAMAÇÃO VISUAL E DIAGRAMAÇÃO


Thiago Nogueira

G 612 e Gomes, José Eudes Arrais Barroso


Um Escandaloso Theatro de Horrores:
a capitania do Ceará sob o espectro
da vioência. I José Eudes Arrais Barroso Gomes.
Fortaleza: Imprensa Universitária, 2010.

283 p.
Fonte: PAULET, Antônio José da Silva. CARTA Marítima, e Geographica da capita-
1. Ceará-história 2.Violência-crime-his-
nia do Ceará. Levantada por ordem do Gov. Manuel Ign. de Sampayo, por seu ajud
tória-Ceará 1. Título
ante d'ordens Antônio José da S. ª Paul.et, 1817. Gabinete de Estudos Arqueológicos
CDD: 981.31
e de Engenharia Militar, 4578-lA-lOA-53.
...andei em diligências do serviço de Vossa Majestade, e SUMÁRIO
tendo ouvido sobre esta matéria pessoas de grandes expe-
riências e feito sobre elas as reflexões que podem caber na
minha capacidade, julguei que faltaria a minha obrigação,
se deixasse de representar a Vossa Majestade que ainda APRESENTAÇÃ0 .... ...... ..... ............ ....................................... 13
nestes sertões do Ceará há absurdos, e que não há para a
diferença que tem das mais capitanias outro motivo, que 1 INTRODUÇÃO ............... ···: ... ............. ................. ............ ... 17
a falta de observância das leis e ordens de Sua Majestade.
2 OS CAMINHOS DO GADO:
A EXPANSÃO DA PECUÁRIA E A COLONIZAÇÃO DOS
Antônio José Victoriano Borges da Fonseca, capitão-
SERTÕES CEARENSES ........ ................................. ..... .......... 21
mor do Ceará, 1767. ·

2.1 As lutas ........................................................................... 22


Em toda esta Capitania se supunhão os homens na liber- 2.2 As terras .......... ................................ ............................... 31
dade natural, cometendo todo o gênero de atroádades e 2.3 Os nomes ................ ........................................... ............. 35
despotismos, tendo só por lei a sua vontade, e por melhor 2.4 As lidas ...... ..................................................................... 43
direito a maior força: ninguém se admira que morra um,
ou muitos homens a tiro de espingarda ou de bacamarte, 3 OLHARES ESTRANGEIROS:
e menos que acabe na ponta de uma faca, nos fios de uma IMAGENS DA VIOLÊNCIA, IMAGENS DA
espada ou a pauladas, porque isso é coisa muito ordinária, PERMANÊNCIA .............. .. .............. .... ............. ..... ....... ......... 51
nem é necessário que o morto ofendesse o matador, por
que este por um módico preço não recuza ser verdugo, e 3.1 George Gardner: Ceará, terra sem lei ........... ........... 51
satisfazer paixões particulares de outrem por ser a solidão 3.2 Henry Koster: violência e poder ............................... 63
deste numeroso continente acomodada para todo o gêne-
ro de iniquidades ... 4 UM ESCANDALOSO THEATRO DE HORRORES:
...se não olha para parte alguma desta Capitania, em que A CAPITANIA DO CEARÁ SOB O ESPECTRO DA
VIOLÊNCIA .............................................. .............. ...... ......... .77
se não vejão roubos, adultérios, estupros, e assassínios ...

4.1 Vagabundos e ladrões, assassinos eJacinorosos ... 79


João Baptista Azevedo Coutinho de Montaury, capi-
4.2 Cotidiano em armas: o disseminado uso de armas
tão-mor do Ceará, 1783.
e sua proibição ................................................................... 127
4.3 Atentados à propriedade: o abominável
roubo de gados .................................. :................................... 145
4.4 Vidas por um fio: as querelas do cotidiano e os Abreviaturas
termos de segurança de vida .......................................... 164
4.5 A justiça em ruínas: a trama das cadeias públicas .. 178 1 ABN Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
AHU Arquivo Histórico Ultramarino. Lisboa.
S AS PATERNAIS PROVIDÊNCIAS D'EL REY: ANRJ Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
REFORMAS E CONTROLE SOCIAL NOS SERTÕES ..... 193 APEC Arquivo Público do Estado do Ceará. Fortaleza.
BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
5.1 Vilas para os "vagamundos", diretórios para os BCUC Biblioteca Central da Universidade de Coimbra. Coimbra.
índios ... e dízimos para EI Rey ....................................... 195 DH Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio
5.2 Alistamentos, passaportes e licenças: de Janeiro.
população volante e deserção ......................................... 207 DHBC Documentos para a História do Brasil e especialmente
a do Ceará (Col. Studart).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................... 229 IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro.
ANEXOS ................................................................ .-............... 233 MACC Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval respeitantes
ao Brasil.
FONTES ......................... ..... ........................ ......................... 247 . RIC Revista do Instituto do Ceará.
RIHGB Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
BIBLIOGRAFIA .................................................................. 269 se Sesmarias Cearenses
Quadros Anexos
Anexo 1 Reis de Portugal ................... ...... .................... ......: 233
Quadro 1 Distribuição de sesmarias na capitania do Ceará ... 31 Anexo 2 Governadores-gerais e vice-reis
Quadro 2 Fundação de vilas na capitania do Ceará............... 203 do Estado do Brasil.. ...................... ....................... 235
Quadro 3 Ordens de mostras militares na capitania Anexo 3 Capitães-generais governadores
do Ceará (1766-1789) .......................................... 217 de Pernambuco .............. ............................... ········ 238
Anexo4 Capitães-mores do Ceará ..................................... 241
Anexo 5 Ouvidores do Ceará .............................................. 244
Anexo 6 Moedas, pesos e medidas ..................................... 245
Mapas
Mapa 1 Carta marítima e geográfica da capitania
do Ceará (1817) ....................................................... ... 5
Mapa 2 Entradas de conquista do interior das
capitanias do norte............................................................. 25
Mapa 3 Capitania geral de Pernambuco e suas anexas63
Mapa 4 Planta da vila de Fortaleza em 1726 ....................... 88

Iconografia
Figura 1 Representação do sertanejo ......................... ....... ~ ... 70
Figura 2 Armas de fogo: séculos XVI, XVII e XVIIIl .......... 132
Figura 3 Armas de fogo : século XIX ................................... 132
Figura 4 Espadas: séculos XVII, XVIII e XIX ....................... 135
Figura 5 Lanças: séculos XVII, XVIII e XIX ......................... 135
Figura 6 Marcas de gado usadas no Ceará ................... ...;... 158
Figura 7 Sinais que os sertanejos cortam nas
orelhas das reses .................................................... 159
APRESENTAÇÃO

Este livro consiste em uma versão da monografia de


bacharelado de José Eudes Arrais Barroso Gomes, apresenta-
da ao Departamento de História da Universidade Federal do
Ceará em janeiro de 2007. _
Por mais que possamos interpretar a violência atual no
Ceará como um elemento constitutivo da vida em sociedades
contemporâneas e relacioná-la às desigualdades entre as clas-
ses, os gêneros, às disputas nos espaços urbanos e rurais, aos
grupos organizados em milícias armadas, que nos leva ainda
a refletir o tempo cotidiano conflituoso que dissemina senti-
mentos de insegurança generalizados, bem como ideologias
que apregoam a segurança total, dificilmente conseguimos
tratar o tema da violência como um tema histórico. Afinal, po-
demos afirmar que a história do Ceará foi marcada por uma
prática generalizada da violência?
Talvez todo o esforço da historiografia tradicional so-
bre a conquista e colonização do Ceará, produzida no final do
século XIX e início do século XX, tenha sido empreendido vi-
sando destacar fatos históricos que ocultam, de uma forma
ou de outra, que elas se deram em meio a uma conjuntura de
guerras entre Impérios europeus e que se desdobraram em
guerras nas áreas coloniais. Guerras entre Impérios, guerras
por disputas de áreas coloniais, guerras entre mazombos,
guerras cotidianas, frondas, entre agentes coloniais e indíge-
nas, entre os próprios indígenas e guerras que consolidaram
a expansão.do Império português em direção às fronteiras do
que hoje chamamos Nordeste.
Sim, podemos afirmar que a colonização do Ceará foi fei-
ta a partir de uma guerra: a efetiva conquista e colonização do
Ceará em fins do século XVII e início do século XVIII é tributária
de uma cultura, ou de culturas onde a violência extrema era cul-
14 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 15

tivada. O espectro da violência, dos massacres, das chacinas, do ço monográfico, o que o autor nos trás é um estudo aprofun-
extermínio, dos estupros, dos espancamentos, das traições, das dado e ricamente documentado de historicização das relações
emboscadas, das patrulhas volantes, dos envenenamentos, dos sociais nas fronteiras entre público e privado. Mais que uma
arrazamentos de arraiais, das mutilações e de tantos outros hor- monografia porque o autor trás uma tese: no final do século
rores documentados pelos cronistas foi uma marca sangrenta da XVIII e ainda no início do século XIX a cultura da violência
colonização dos sertões do território que hoje chamamos Ceará e marcou nossa organização social e foi o principal tema das
de áreas vizinhas. Foi a Guerra dos Bárbaros uma guerra de con- tentativas estatais de estabelecer seus domínios sobre a po-
quista particular, que além de utilizar as mais sofisticadas artes da pulação sertaneja. Cabe ressaltar que a submissão das classes
guerra européia (Flandres) e brasílica (indígena), moldou-se aos sociais aos domínios do Estado não se restringirá apenas ao
tantos outros elementos das guerras entre tapuias dos sertões. período tratado pelo autor. Durante o século XIX, por diver-
Nossa sociedade formou-se a partir de uma cultura da violência. sas vezes, a incapacidade regulatória de um poder central no
Mas não só nossa conquista se deu sob esse "teatro de Ceará se evidenciará em conflitos, sedições, revoltas e guerras
horrores". A sociedade resultante, que se firmou no território onde o caráter violento será característico. A submissão das
durante o século XVIII e que se reproduziu a partir daí, também populações pobre e livre pelo poder do Estado durante o sécu-
foi caracterizada por uma hierarquização extrema que contava lo XIX ainda é um tema a ser melhor escrutinado por nós his-
com a violência como forma de regulação interna. A mobilidade toriadores preocupados com as formas organizativas do poder
social e territorial, a ausência do poder regular estatal, ou a in- e das formas de ação das camadas populares que não se reco-
capacidade deste, os múltiplos núcleos de exploração dos recur- nheciam nos projetos políticos do poder central no Ceará.
sos naturais e da força de trabalho propiciaram a formação de Através de um texto estimulante, de leitura cativante, den-
grupos armados e de milícias particulares que defendiam suas sa análise, cuidado empírico e bom recorte metodológico, o leitor
redes clientelares de forma bastante agressiva. encontrará aqui um pouco do que foi a nossa organização social.
As autoridades estatais nem sempre conseguiam enxer-
gar a característica daquele grupo social formado nas trincheiras
da guerra dos sertões, mas adjetivavam como podiam aquela po-
pulação arredia aos mandas e bandos administrativos: infames,
bandidos, devassos, adúlteros, bárbaros, malfeitores, sediciosos,
rebeldes, perturbadores, agressores, desertores, verdugos, fa-
dnorosos, libertinos, criminosos, vadios, sem ocupação, homi-
cidas, ladrões, forasteiros, vagabundos, vagamundos, ociosos,
déspotas, cabras, réus, perniciosos eram como se classificava a
população dos sertões do Ceará. Almir Leal de Oliveira
Essencialmente é sobre essa relação entre agentes ad-
Universidade Federal do Ceará
ministrativos/viajantes e a população local que a monografia
de José Eudes Arrais Barroso Gomes trata. Mais que um esfor- Janeiro de 2010
1
INTRODUÇÃO

Um espectro assombra a capitania do Ceará no


século XVIII: o espectro da violência. Em 1731 o Conselho
Ultramatino, órgão responsável pela administração dos
domínios ultramarinos portugueses sediado em Lisboa,
observou que o auxílio militar às diligências da justiça "se carece
muito no Ceará por ser o p,a ís a que se retirão os delinquentes
e mal feitores de todo o Brasil".1 Na década seguinte, mais
precisamente em 1748, o capitão-general governador de
Pernambuco declarou: "na capitania do Ceará a maior parte
dos habitantes são homens criminosos". 2 Curiosamente, cerca
de trinta anos depois, os comentários do ouvidor José da Costa
Dias e Barros sobre o Ceará não foram muito diversos. Disse
ele em 1779: "Vi em terror os contínuos assassínios, os roub0s
e todos os insultos os mais execrandos perpetrados por uma
multidão incompreencível de homens facinorosos e libertinos,
que infestavam este dilatado estado. Vi com um bem pungente
desprazer a Justiça geralmente desobedecida". 3 Em 1783,
apenas um ano após tomar. posse do governo da capitania
do Ceará, o capitão-mor João Baptista Azevedo Coutinho de
Montaury informava que o Ceará era frequentemente palco
de "todo o gênero de atrocidades" e que as copiosas mortes
causadas por espingardas, bacamartes, espadas, facas e
pauladas eram tão comuns no cotidiano da capitania que já não
causavam admiração a ninguém. 4 Já em primeiro de janeiro de

1 AHU. CT: AHU ACL CU O17, Caixa 2, Documento 119.


2 AHU. CT: AHU ACL CU 01 7, Caixa 5, Documento 333.
3 AHU. CT: AHU ACLCU 017, Caixa 9, Documento 564.
4 BNRJ. Setor de Manuscritos. II-32, 24, 031. Documentos sobre a capitania do Ce-
ará. Fundo: Coleção Ceará. Carta do capitão-mor João Baptista Azevedo Coutinho
de Montaury, 12 de março de 1783, p. 72.
18 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 19

1800, o capitão-mor governador do Ceará Bernardo Manuel de por ambos do Ceará corno uma sociedade violenta e belicista
Vasconcelos escreveu ao príncipe regente D. João VI a respeito ainda depois de mais de um século do início do seu processo de
da ocorrência de elevado número de crimes, vinganças, mortes colonização efetiva.
e assassinatos na capitania cearense. Segundo aquele capitão- O terceiro capítulo, intencionalmente intitulado
mor, os sertões do Ceará eram "repetidas vezes no círculo do de Um escandaloso theatro de horrores: a capitania do Ceará
ano(. ..) theatro d'estes horrores". 5 sob o espectro da violência é, como fica fácil supor, a parte
Foi justamente a partir da leitura de trechos tão fundamental deste trabalho. Escrito a partir de uma longa
contundentes sobre a violência no Ceará do século XVIII que série de relatos e registros que evidenciam a violência como
este trabalho se originou. O seu grande tema é a violência característica marcante do cotidiano na capitania do Ceará
e o cotidiano na capitania do Ceará setecentista, sendo que durante todo o século XVIII, o capítulo procura discutir a
o amplo recorte temporal da pesquisa buscou perseguir a violência, a ocorrência de crimes, o descumprimento da lei e
amplitude do seu objeto, a violência, que só tem interesse aqui a impunidade como aspectos fundamentais das tessituras de
na medida em que é um traço revelador dos embates cotidianos poder na sociedade pecuária cearense.
e das relações de poder travadas na capitania. O último capítulo, As paternais providências d'El Rey:
O capítulo inicial, Os caminhos do gado: a expansão da reformas e controle social nos sertões, pretende sugerir como
pecuária e a colonização dos sertões cearenses, procura discutir a partir das reformas empreendidas pela administração
a violência como aspecto central do processo de efetivação da pombalina o império português buscou apertar os seus
conquista e colonização do Ceará, processo este iniciado no laços colonialistas através de um maior rigor administrativo
final do século XVII a partir da chamada "limpeza da terra", que e fiscalista, implementado na violenta capitania do Ceará
consistiano extermínio, expulsão, escravização ou aldeamento por uma série de medidas controladoras e policialescas, tais
das populações nativas para a instalação de currais e fazendas como a fundação de vilas por decreto, a constante exigência
de gado, e pelo sistema de concessão de terras em sesmarias. de mapas populacionais, alistamentos e mostras militares, e a
Segue-se ainda uma breve apresentação da estruturação obrigatoriedade do uso de passaportes e licenças.
econômica da capitania baseada no criatório, nas charqueadas Por fim, é interessante notar que a idéia de a sociedade
e na exportação de algodão, atividades responsáveis pela ver-se como num teatro, o theatrum mundi, metáfora adotada
fundação de vilas espalhadas pelos sertões cearenses. para o Ceará em 1800 pelo capitão-mor Bernardo Manuel de
O segundo capítulo, Olhares estrangeiros: imagens da Vasconcelos é, na verdade, uma das formas mais antigas de
violência, imagens da permanência, toma como fonte as anotações auto-avaliação da própria comunidade. Todavia, se segundo a
de dois viajantes estrangeiros que visitaram o Ceará nas tradição platônica e medieval só havia o espectador divino do
primeiras décadas do século XIX, os britânicos Henry Koster e teatro humano, na Época Moderna inaugura-se o sentido de
George Gardner, buscando perceber a intrigante imagem feita "teatro" como reflexo, de speculum ou espelho da realidade. 6

5 "Documentos para a história do governo de Bernardo Manoel de Vasconcellos 6 ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na socieda-
(Collecção Studart)". ln: RIC, tomo :XXVIII, 1914, p. 333. de urbana colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, pp. 25-26.
20 José Eudes Arrais Barroso Gomes

Desse modo, muito além de sua mera utilização retórica, a 2


metáfora da capitania do Ceará como um "theatro de horrores" o s CAMINHOS D O GADO
sugere, na verdade, o reconhecimento de uma cruenta realidade
de violências e de enfrentamentos sangrentos e, portanto, A EXPANSÃO DA PECUÁRIA E A COLONIZAÇÃO DOS
uma realidade de conflitos. SERTÕES CEARENSES

Dizem Manoel de Goez, o licenciado Fernando de


Goez, Francisco Pereira Lima, Manoel de Almeida da
Ruda, o licenciado Amaro Fernadez de Abreu, Estevão
de Figueredo e Simão de Goez de Vasconcelos, morado-
res na capitania de Pernambuco e assistentes nesta do
Ceará que por não ter a dita capitania de Pernambuco
terras próprias capazes para a quantiade de suas cria-
ções de gado vacum e cavalar os vieram comboiando
até esta capitania [do Ceará] por distância de duzentas
leguas de matos fechados e terras de tapuios bárbaros
com muito dispêndio de suas fazendas e perigo de suas
vidas e querendo acomodar-se nesta capitania se deli-
beraram a buscar pastagens convenientes e caminhan-
do desta força para a parte do Maranhão toparam nas
ribeiras da qual se podem colher fontes a pastar gados
com grande aumento da Fazenda Real desta capitania
por tanto pede a vossa mercê que atendendo ao referi-
do do bem real e aumento da capitania e moléstia dos
suplicantes em trazerem seus gados com tanto custo a
esta capitania sem terem onde [os] acomodar .se lhes
faça mercê em nome de Sua Alteza a quem Nosso Se-
nhor guarde conceder a cada um dos suplicantes cinco
léguas [de terra] de comprido pelo dito Rio Caracu.
22 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 23

Registro da data de sesmaria de Manoel de Góes e do norte9 do Estado do Brasil citados acima, constituem-se
seus companheiros na ribeira do rio Acaraú, Capita- em dois documentos emblemáticos do violento processo de
nia do Ceará-Grande, em 23 de setembro de 1683. 7 conquista dos sertões da capitania do Ceará pela pecuária. Após
décadas de expedições militares e missões jesuíticas restritas
Fui servido resolver se faça guerra geral a todas as na- ao litoral e às estratégicas serras da Ibiapaba, em fins do século
ções de índios de corço entrando-se por todas as partes, XVII inicia-se a sangrenta conquista das terras do interior da
assim pelo sertão dessa capitania [do Maranhão] como capitania do Ceará através da irradiação da pecuária extensiva,
pela de Pernambuco, Ceará e Rio Grande, para que não expulsa do litoral canavieiro pela expansão das plantações de
possam escapar uns sem caírem nas mãos dos outros, e cana-de-açúcar destinadas a alimentar o comércio açucareiro
dividindo-se as tropas que forem a esta expedição sain- em crise. 10 Com a separação entre a produção de cana-de-
do para o sertão por todas as partes, certissimamente açúcar e a pecuária determinada pela carta régia de 1701, que
hão de encontrar com tal inimigo, e incorporando-se proibia a criação de gado a menos de 10 léguas do litoral, a um
umas com as outras, farão mais formidável o nosso po-
der e mais seguro o estrago desses contrários [os ín-
dios], e para que se animem os que forem a esta empre- 9 O termo coevo "capitanias do norte" referia-se a todas as capitanias do "Estado

sa, hei por declarar que não só hão de matar a todos os do Brasil" situadas ao norte da de Pernambuco: Ceará, Rio Grande e Paraíba. Com
que lhe resistirem, mas que hão de ser captivos os que o correr do tempo, todas as chamadas "capitanias do norte" foram paulatinamente
incorporadas ao governo pernambucano como "capitanias anexas", elevando Per-
se lhe renderem.
nambuco ao estatuto de "capitania-geral". A capitania do Ceará fez parte do Estado
do Maranhão de I 621 a 1656, a partir de quando passou a fazer parte do Estado do
Carta de D. João V, rei de Portugal, a Luiz Cezar de Brasil, sendo que por ordem régia de 1668 adquiriu o .estatuto de capitania subalter-
Menezes, Governador do Estado do Brasil, em 20 de na à de Pernambuco, tomando-se capitania autônoma somente em 1799 . A capita-
abril de 1708. 8 nia do Rio Grande esteve subordinada a Pernambuco desde quando se desligou da
Bahia, em 1701 , ganhando autonomia somente em 1820. A capitania da Paraíba foi
anexada administrativamente a Pernambuco em I 755, tomando-se capitania autô-
2.1As lutas noma em 1799.
IO "O período posterior à expulsão dos holandeses do Nordeste, em 1654, foi ex-
Tanto o pedido de sesmaria de Manoel de Góes e seus tremamente dificil para a economia açucareira no Brasil. Segundo Stuart Schwartz,
companheiros na ribeira do rio Acaraú quanto a declaração de se é verdade que fatores internos penalizaram a atividade produtiva, tais como epi-
guerra contra os índios dos sertões das chamadas capitanias demias, secas e outras calamidades naturais, os problemas mais fortes residiam em
fatores externos: o crescimento da concorrência inter-imperial, com a ascensão da
produção antilhana e, a partir de 1680, a consequente inflação dos preços dos es-
cravos, dado o aumento da procura em África. Neste sentido, a Coroa procurava
7 uma alternativa para repor as perdas no trato colonial. Expedições ao interior, antes
ESTADO DO CEARÁ. Datas de Sesmarias. Vol. l. Fortaleza: Typografia Gade-
até desencorajadas, passaram agora a receber apoio e mesmo a ser agenciadas pelo
lha, 1920, pp. 90-9 l.
governo geral". PUNTONI, Pedro. A guerra dos bárbaros: povos indígenas e colo-
8
BEZERRA, Antônio. Algumas origens do Ceará. Fortaleza: Typografia Minerva, nização do sertão nordeste do Brasil (1 650-1 720). São Paulo: Edusp/Hucitec, 2002,
1918, pp. 205-207. pp. 14-15.
24 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 25

só tempo a açucarocracia garantia uma espécie de monopólio Mapa2


territorial e oficializava-se a política de interiorização da ENTRADAS DE CONQUISTA DO INTERIOR DAS
pecuária, já em pleno curso. CAPITANIAS DO NORTE
A extremada violência do confronto entre conquis-
tadores e populações nativas em terras cearenses deveu-se
ao fato de que no Ceará ocorreu o encontro de duas grandes
rotas ou "entradas" de ocupação do sertão pelo gado, tan-
gido para o interior do continente por levas de migrantes
munidos de ambição, espingardas e bacamartes: a primeira,
vindo de Pernambuco, seguia a costa litorânea atravessando
as capitanias da Paraíba, Rio Grande e Ceará em direção ao
Maranhão, dando origem à instalação de fazendas de criar no
sentido litoral-sertão seguindo a ribeira dos principais rios,
no Ceará notadamente o Jaguaribe, o Acaraú e o Coreaú; a
segunda, saindo da Bahia e Pernambuco, seguia pelo interior
avançando pelo médio São Francisco até o rio Parnaíba nos
limites entre o Piauí e o Maranhão, sendo responsável pela
ocupação do sul da capitania. 11

Fonte: Adaptado de: ANDRADE, Manuel Correia de. O processo de ocupação do


espaço regional do Nordeste. Recifé: Gráfica Editora, 1975, p. 23.

Expulsos do litoral desde a Bahia até a Paraíba


11 "Se a Bahia ocupava os sertões de dentro, escoavam-se para Pernambuco os
pelos plantadores de cana-de-açúcar, os povos indígenas
sertões de fora, começando de Borborema e alcançando o Ceará, onde confluíam de diferentes nações foram sendo empurrados e forçados a
a corrente baiana e a pernambucana". ABREU, João Capistrano de. Capítulos de migrar para o sertão das capitanias do norte, como confirma
história colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. o relato feito pelos Tabajara da Serra de Ibiapaba em 1720,
2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 135. Através do estudo
que indica ter havido, no início do século XVII, migrações de
da distribuição geográfica das sesmarias no Ceará, observa-se que as concessões
de datas deram-se sobretudo nas margens dos seus três maiores rios: Jaguaribe e povos indígenas itoral da Bahia para a capitania do Ceará. 12
seus três maiores afluentes (Salgado, Banabuiu e Quixeramobirn), Acaraú e Core-
aú. POMPEU SOBRINHO, Thomas. Sesmarias cearenses: distribuição geográfica.
Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 1970. 12 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa l, Documento 65.
26 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 27

Também a este respeito, afirma João Brígido que "pelo tempo ocorreram por cerca de 50 anos, sobretudo entre o último
da colonização do país de Jaguaribe, mais tarde Capitania do quartel do século XVII e o final da década de 1720.
Ceará-Grande, vieram índios da tribo dos Potiguares, da Paraíba Como estratégia de expansão de seu imperium em
e do Rio-Grande".13 Assim, através do avanço das frentes do uma conjuntura de crise da economia açucareira, a Coroa
gado as populações nativas se viram encurraladas nos sertões lusitana concedia o título de "capitão-mor de entradas"15 aos
cearenses, uma espécie de última fronteira, o que acabou vassalos que se propunham adentrar os sertões e fazer guerra
por culminar no conjunto intermitente de confrontações aos índios, chancelados pela retórica do conceito de "guerra
entre indígenas e "conquistadores" conhecido por "Guerras justa", concedendo-lhes como prêmio a doação das terras que
dos Bárbaros"14, enfrentamentos estes que no caso do Ceará desapossavam das populações indígenas em datas de sesmaria
e os índios capturados como escravos, como fica claro na
declaração de "guerra geral a todas as nações de índios de
13
BEZERRA, Antônio. O Ceará e os Cearenses. lª edição de 1906. Edição fac- corço" das capitanias do Maranhão, Pernambuco, Ceará e Rio
similar. Coleção Biblioteca Básica Cearense. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcân-
tara, 2001, p. 3.
Grande, datada de 1708, citada anteriormente.
14 A análise dos pedidos e concessões de datas de sesmaria
A dita "Guerra dos Bárbaros" foi corno ficou conhecida a série heterogênea de
confrontos que envolveram as variadas e numerosas populações indígenas e os no Ceará, publicados em 14 volumes, confirma a intensidade
diversos agentes coloniais - moradores, soldados, missionários e bandeirantes - desse violento processo de guerras de conquista, que deu
ocorridos no avanço da fronteira do sertão norte, ampla região de terras semi-áridas origem a célebres fortunas como a de Bento da Silva e Oliveira
que vão do norte da Bahia até o leste do Maranhão, abarcando parte das capitanias e a do coronel João de Barros Braga no vale do Jaguaribe.16
do Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Ceará e Piauí. Pedro Puntoni divide a Guerra
Aproximações e confrontos marcaram o contato travado
dos Bárbaros em dois grandes conjuntos de conflitos: as Guerras do Recôncavo
Baiano (1651-1679) e as Guerras doAçu (1687-1704). Em relação ao Ceará, tem entre os diversos grupos indígenas e as várias expedições de
maior interesse a.consideração das chamadas Guerras do Açu, que segundo Maria
Idalina Pires estenderam-se da década 1680 até a de 1720, iniciadas por volta de
1686, quando os índios Janduins das regiões de Açú, Mossoró e Apodi no Rio
Grande rebelaram-se atacando vilas e fazendas dos colonos que avançavam sobre Idalina da Cruz. Guerra dos bárbaros: resistência indígena e conflitos no nordeste
suas terras. Nos anos seguintes os conflitos propagaram-se pelo vale do Jaguari- colonial. Recife: Fudarpe/Cerpe, 1990 (que na verdade trata especificamente das
be na capitania do Ceará rumo ao interior chegando aos limites das capitanias do ditas "Guerras do À.çu"). Já uma visão mais geral dos confrontos encontra-se em:
Piauí, Pernambuco e Paraíba. A partir de 1688 vários bandeirantes paulistas foram PUNTONI, Pedro. Op. ·cit. Sobre os confrontos no Ceará, mais especificamente,
contratados, dentre os quais Domingo Jorge. Velho, Matias Cardoso, João Amaro veja: STUDART FILHO, Carlos. "A guerra dos bárbaros" e "A rebelião de 1713".
ln: Páginas de história e pré-história. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1966, pp. 15-
Maciel Parente, Fernão Carrilho e Manuel Álvares de Morais Navarro. No Ceará,
vários acordos e alianças foram feitos e desfeitos. Em 1706 o rei chegou inclusive 116 e 119-133, respectivamente.
15 "O governo não recusava o titulo de capitão-mór das entradas aos fazendeiros,
a autorizar o fornecimento de armas a todos os moradores "brancos" da capitania
do Ceará e em 1713 índios Baiacus, Anacés e Jaguaribaras, entre outros, atacaram que se propunham fazer guerra aos selvagens, e concedia-lhes as terras, de que os
a vila de Aquirás. Nestes conflitos, teve atuação decisiva o regimento de cavalaria desapossavam. Entre outros, fez-se celebre por essas correrias o coronel Bento da
do Jaguaribe, chamado de "Cavalaria do Certam", composto por mestiços e "índios Silva e Oliveira ..." BRASIL, Thomaz Pompeu de Sousa. Ensaio estatístico da Pro-
mansos", leia-se "aliados", comandado pelo coronel João de Barros Braga, grande víncia do Ceará. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997, p. 268.
senhor de terras do Jaguaribe, regimento cuja formação marca o início da derro- 16ESTADO DO CEARÁ. Datas de Sesmarias. 14 volumes. Fortaleza: Typografia
ta indígena no Ceará. Os textos fundamentais sobre o assunto são: PIRES, Maria Gadelha, 1920-1928.
28 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 29

colonizadores franceses, portugueses e holandeses na região de comunicação com Pernambuco e muitos moradores
desde as primeiras décadas do século XVII.17 Todavia, diante já haviam deixado suas fazendas com medo de serem
da marcha dos conquistadores e seus gados provenientes assassinados, complementando argutamente que aquela
das áreas de colonização mais antigas, principalmente situação repercutira decisivamente na "diminuição do
Pernambuco, Paraíba e Rio Grande, nas últimas décadas do rendimento que a fazenda de Vossa Majestade teve nos
século XVII, momento em que se intensificaram as migrações dízimos desta capitania". Declaravam ainda que a gravidade
de colonos e a tentativa de efetivação da conquista da região, das circunstâncias chegara até a obrigá-los a construir uma
as populações nativas também redobraram sua luta pela terra fortaleza naquela ribeira às custas dos próprios moradores,
através de ações de resistência e revoltas. o Forte de São Francisco Xavier, construído em 1696, que se
Em 1700, por exemplo, os oficiais da câmara de São situava onde depois surgiu o povoado e vila de Russas. Além
José de Ribamar representaram sobre "os grandes roubos que disso, os camaristas afirmavam peremptoriamente: "por
aos moradores desta vila faz o gentio bárbaro". 18 No ano de todos estes fundamentos para a conservação desta capitania
1704, em decorrência dos ataques a fazendas e até mesmo a será Vossa Majestade servido destruir estes bárbaros (. .. ),
vilas causados pelas ações e levantes indígenas de resistência, que de humanos só tem a forma". 19
os vereadores da câmara de Aquiraz escreveram carta através Todavia, em 1697, portanto apenas alguns poucos anos
da qual representaram queixosamente ao rei D. Pedro II acerca antes da representação dos vereadores de Aquiraz, o próprio
dos roubos de gados, assassinatos, atentados e "outros muitos monarca português havia feito menção no texto de uma
delitos" que diziam virem sofrendo dos índios Paiacu na ribeira ordem régia de 4 de março sobre o que "obraram os moradores
do Jaguaribe, justamente o principal foco de ocupação colonial daquela capitania [do Ceará] com os índios correndo e fazendo-
na capitania pelo criatório. lhes grande destruição, sendo suas desordens o instrumento
Segundo os oficiais da câmara a capitania vivia principal de que os ditos índios se exasperem e levantem,
verdadeiro "cerco", pois os indígenas impediam os caminhos movidos de muita violência". 2 º ·
De qualquer modo, com o acirramento dos confrontos
entre povos indígenas e vassalos na capitania acima descritos
17
Durante o século XVII houve várias expedições militares e jesuíticas lideradas fundamentada em tão convincentes argumentos fornecidos
por portugueses ao Ceará: o açoriano Pero Coelho em 1603, os padres inacianos pelos camaristas de Aquiraz, destacando-se dentre eles a
Francisco Pinto e Luís Figueiras em 1607, Martins Soares Moreno em 1611 e 1621.
Tropas holandesas ocuparam o Ceará por duas vezes: 1637-1644 e 1649-1654.
diminuição na arrecadação dos dízimos reais, em 1706 o rei
Em 1654, por conta da capitulação holandesa, as tropas batavas deixam o Ceará e enviou carta régia diretamente ao capitão-mor do Ceará,
ocorre a restauração portuguesa da capitania com o capitão-mor Álvaro de Azeve-
do Barreto. Entre 1656-1662 uma missão inaciana na Ibiapaba foi liderada pelos
missionários jesuítas Pedro Pedrosa e Antônio Ribeiro, este último posteriormente 19 Carta a Sua Majestade, enviada pelos vereadores da câmara da vila de São José de
substituído por Gonçalo Veras. Após o envio dos jesuítas Manuel Pedroso e Ascenso Ribamar em 13 de fevereiro de 1704. In: BEZERRA, Antônio. Algumas origens do
Gago em 1695, ocorre a fundação do aldeamento de Nossa Senhora da Assunção da Ceará. Fortaleza: Typografia Minerva, 1918, pp. 203-204.
Ibiapaba em 1700.
18
2 º
Ordem Régia de 4 de Março de 1697. ln: BEZERRA, Antônio. Op. cit., pp.
"Documentos: archivos da câmara deAquiraz". ln: RIC, 1943. 198-200.
30 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 31

. Gabriel da Silva Lago, determinando o fornecimento de armas por sua vez, o capitão-general de Pernambuco autorizou o
aos moradores da capitania e, em 1708, D. João V declarou coronel João de Barros Braga a formar uma bandeira com o
"guerra geral" a todas as nações de índios não-aliados ou objetivo de exterminar os índios do Ceará, o que demonstra a
"indômitos".21 continuação do quadro de confrontações e pelejas entre índios
Em 1713, índios de diversos grupos, como Paiacus, "insubmissos" e vassalos pela posse das terras da capitania.24
Anacés e Jaguaribaras, entre outros, atacaram Aquiraz
provocando a morte de mais de 200 colonos e forçando 2.2 As terras
seus moradores a se abalar desesperad~mente da vila à pé,
buscando refúgio na Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. A tabela abaixo, que apresenta o movimento de
Informado da intensidade e continuidade daqueles confrontos ocupação do território da capitania do Ceará através dos
na capitania, em 1715 o rei resolve reafirmar a declaração pedidos de datas de sesmaria informando a motivação das
de guerra aos índios no Ceará autorizando e incentivando o solicitações, mostra que a grande maioria dos vassalos alegava
chamado processo de "limpar a terra": à Coroa portuguesa a instalação de fazendas de criar gado
como motivo para a doação da t erra.
... para que de todo se extingam estes bárbaros vos or-
deno que, considerando o bom estado presente e as Quadro 1
forças com que vos achardes para fazer esta guerra a DISTRIBUIÇÃO DE SESMAR!AS NA.CAPITANIA DO
continueis com todo o fervor para que assim ou se ex- CEARA
tingam estes bárbaros ou se afugentem de nós tanto
que nos fique livre o uso da terra ...22 Período Pecuária Agricultura Agricultura Total
~ Da... n-'wr~ ....
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Mais ~guns anos se passaram até que durante o governo 1
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de Salvador Alvares da Silva, que governou o Ceará como seu - ' !~

capitão-mor entre 1718-1721, abria-se "guerra declarada" aos - '


índios "tapuias" Genipapuassú em Jaguaribe. 23 Já em 1727, 1
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"findo o século XVII, estava o Ceará todo devassado, os índios uns reduzidos a
... f:açaes dar e estes moradores as armas que lhe forem
21 " . necessarias". Carta Régia
aldeias, outros vivendo em paz, ao lado dos colonos. A criação de gados era a prin-
ao Capitão-mór Gabriel da Silva do Lago, de 18 de agosto de 1706. ln: BEZERRA,
cipal ocupação dos habitantes; a agricultura rudimentar reduzia-se à produção dos
Antônio. Op. cit., pp. 209-2 10.
22
gêneros de consumo local, pois outros não pagariam as despesas do transporte".
Ordem de Sua Majestade que mandou ao Governador de Pernambuco em 27 de ABREU, João Capistrano de. Op. cit., p. 321. Diferentemente de Capistrano, Fran-
março de 1715. ln: BEZERRA, Antônio. Op. cit., pp. 207-208. cisco Pinheiro analisando a intensificação das doações de sesmarias e a diminuição
23
AHU. CT: AHU ACL CU OI 7, Caixa 2, Documento 84. Curiosamente, apesar de do absenteísmo defende a hipótese de que a intensificação dos conflitos ocorreu jus-
tod~s as declarações de guerra e os conflitos acirrados entre colonizadores e povos tamente no período de 1700-1 720. PINHEIRO, Francisco José. Op. cit., p. 29-3 3.
nativos durante as primeiras décadas do século XVIII, para Capistrano de Abreu: 24 BRASIL, Thomaz Pompeu de Sousa. Op. cit., p. 268.
32 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 33

17 - 71 Ili - - 1
importante fator que corrobora esta análise é a considerável
--
17' 11• - 1

diminuição dos índices de absenteísrno e do número de


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prescrições a partir de 1740. 26
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companheiros na ribeira doAcaraú em 1683, citado na abertura
deste capítulo, é um caso exemplar de um desses pedidos. Nele
Fonte: PINHEIRO, Francisco José. "Mundos em confronto: povos nativos e euro- verificamos que os colonos declaravam o risco de suas vidas
peus na disputa pelo território". ln: SOUSA, Simone de (org.). Uma nova história
e o investimento de seus recursos particulares no combate
do Ceará. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2000, p. 31.
aos índios e conquista da terra em busca de pastagens para os
seus gados 27 , não deixando ainda de ressaltar a possibilidade
A tabela apresenta da mostra também que a esmagadora
de "grande aumento da fazenda Real" decorrente do avanço da
maioria das sesmarias cearenses, aproximadamente 96,26%,
fronteira de expansão colonial proporóonado pela instalação
foi solicitada de fins do século XVII até meados do século
de seus currais, todas estas alegações recorrentes nos pedidos
XVIII, sendo que somente na década de 1700-1709 ocorreram
de datas de sesmarias cearenses.
583 dôações, o que representa mais de % do total absoluto
de pedidos e coincide exatamente com o acirramento dos
enfrentamentos entre conquistadores e populações nativas
na capitania. A média de concessões por década mantém-se
bastante alta até 1750, a partir de quando se verifica uma
sensível e irreversível queda, indicadora de que o processo 26 "A partir de l 740, constata-se que as prescrições e o absenteísmo praticamente de-
sapareceram ou atingiram patamares insignificantes". PINHEIRO, Francisco José.
de esquadrinhamento da capitania através das datas de
Op. cit., p. 33 .
. sesmarias já estava muito próximo de atingir o seu limite.
21 Francisco José Pinheiro faz observações semelhantes à respeito das alegações
Conforme a isso, em 1753 urna ordem régia determinou a dos sesmeiros de investimento particular no combate aos índios encontradas nos
suspensão da concessão de novas datas no Ceará. 25 Outro pedidos de sesmarias: " ...uma das justificativas para a solicitação de mais uma carta
de sesmaria era a participação do sesmeiro no combate aos índios com seus próprios
recursos e em função das perdas que sofreu para garantir a conquista. Sendo assim
25 "Com tal progresso se estendeu a criação de gado na província, que em breve a violência se tomou um importante predicado para justificar o acesso à terra". PI-
todo o país ficou devassado a dividido em sesmarias, a ponto de se mandar por NHEIRO, Francisco José. Op. cit., p. 36. Assim, percebemos que já os primeiros
ordem régia de 13 de setembro de 1753, que o capitão-mor governador da capita- colonos da capitania usavam como argumento o empenho e o risco de suas vidas e
nia suspendesse a concessão de novas datas, visto não chegarem as terras capazes, cabedais no sentido de clamar benesses junto ao monarca, evidenciando no Ceará o
e ribeiras da mesma capitania para as sesmarias já dadas". ARARIPE. Tristão de surgimento daquilo que Luciano Figueiredo denomina de "patrimônio memorialís-
Alencar. História da província do Ceará: desde os tempos primitivos até 1850. 2ª tico", isto é, a barganha de beneficios pelos colonos através da sua auto-afirmação
ed. anotada. Fortaleza: Tipografia Minerva, l 958, p. 25. O mesmo autor acrescenta como agentes ativos do processo de colonização. FIGUEIREDO, Luciano. Revol-
já mais adiante: "O abuso das concessões de sesmarias no Ceará excitou providên- tas, fiscalidade e identidade colonial na América portuguesa (1640-1761). Tese de
cias do governo; por isso em l 755 foi suspensa aos capitães-mores a faculdade de doutorado, Universidade de São Paulo, I 996. Apud: BICALHO, Maria Fernanda
conseder novas sesmarias pelas multiplicadas concessões já feitas, sucedendo já não Baptista. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro:
bastarem as terras capazes para as datas concedidas", p. 101. Civilização Brasileira, pp. 388-389.
34 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 35

Na capitania do Ceará a criação de gado se dava Tomando-se as terras dos Inhamuns como exemplo,
de maneira extensiva, ou seja, o gado era criado solto nas um estudioso da região informa que "de 1707 a 1744
pastagens e lambedouros, o que era utilizado como justificativa inúmeras sesmarias foram doadas na área dos Inhamuns.
para o requerimento e obtenção de muitas léguas de terra pelos Após aquela data poucas foram doadas, e a maior parte delas
colonos. Segundo Raimundo Girão, no processo de concessão distribuídas a pessoas que já t inham posse na área". 30 Se
de datas de sesmarias na capitania: confirmada para a totalidade da capitania esta análise acerca
da concessão de sesmarias nos Inhamuns, então poderíamos
...generalizou-se, a distribuição de cartas sem qualquer considerar que a carta régia de 1 753 tratou-se de uma
sentido de limitação, quer no tocante aos requerentes, espécie de "fechamento" das terras "capazes" na capitania,
quer no tocante à extensão das terras doadas, o que isto é, aquelas terras próximas a rios, lagoas e veios d'agua,
logo determinou a medida de proibir-se a liberalidade, condição esta que as tornava produtivament e viáveis numa
impondo-se limite máximo a cada sesmaria e evitando- região frequentemente abalada p ela escassez de _chuvas. 31
se a sua concessão em número maior a cada beneficiado.
Esse limite máximo foi estabelecido em quatro léguas de 2.3 Os nomes
comprimento por uma de largura, tendo posteriormente
sofrido restrição para três, duas, uma e até meia légua.28 Deve-se ponderar que, no processo de disputa
colonial pela terra no Ceará, nem indígenas nem sequer
Para se ter uma idéia do processo, ainda segundo Raimundo
Girão, "muitos foram os colonos que, desse modo, reuniram em
seu poder número vultoso de sesmarias, representando enormes 30 CHANDLER, Billy Jaynes. Os Feitosas e o sertão dos l nhamuns: a história de
uma família e uma comunidade no Nordeste do Brasil (1700-1830). Fortaleza: Edu-
latifúndios. No Ceará, Lourenço Alves Feitosa chegou a obter 22, fc; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, pp. 50 e 51.
José Bernardo Uchoa 14, João de Barros Braga 11, João da Mota 31 É importante ressaltar que apesar da capitania do Ceará ser vasta em terras, so-
Pereira 11, João da Fonseca Ferreira 10". 29 mente um número relativamente limitado delas se localizava margeado ou nas pro-
ximidades de rios, riachos e lagoas. Isso acaba explicando as ferrenhas disputas ori-
ginadas até mesmo por pequenos córregos situados entre os limites de propriedades
I
sertanejas. Diz um relato de 1816 sobre a vila do Crato que apesar de esta ser situada
28 nas fraldas da serra do Araripe considerada como dotada de "muitas vertentes, mais
GIRÃO, Raimundo. "Estudo introdutório". Ir/ POMPEU SOBRINHO, Thomas.
ou menos abundantes": "São continuas as questões d' agua, porque cada morador
Op. cit., s/numeração. Girão esclarece ainda qu~ "o padrão légua tem sido razão de
acha necessario para si uma nascente (...). Este abuzo faz com que moradores de
divergências entre os intérpretes do direito aplicado", mas conclui referindo-se ao
3 leguas distante da villa não tenham agua para beber, nem os seos gados, em um
estudo de Luís de Miranda intitulado "Sesmarias" (Revista do Instituto do Ceará,
anno de sêca". Descrição geográfica abreviada da capitania do Ceará pelo coronel
vol. 1, fevereiro de 1928): "nas mediações de terras processadas no Ceará, para a de-
de engenheiros Antônio José da Silva Paulet, 1816. 2ª ed. fac-símile de separatas da
terminação da légua ' prevaleceu sempre e tem prevalecido o padrão usual de 2.400
Revista do Instituto do Ceará. ln: Documentação Primordial sobre a capitania au-
braças' de comprimento, sendo a braça correspondente a 2 varas craveiras (5 palmos
tônoma do Ceará. Coleção Biblioteca Básica Cearense. Fortaleza: Fundação Walde-
ou 2,20m cada vara)".
mar Alcântara, 1997, p. 25. Uma contenda que exemplifica a disputa por água entre
29
GIRÃO, Raimundo. Op. cit. moradores em 1792 será discutida adiante nas páginas 93-94.
Um Escandaloso Theatro de Horrores 37
36 José Eudes Arrais Barroso Gomes

colonos podem ser vistos como grupos homogêneos. 32 terminavam em assassinatos e vinganças que se prolongavam
~xi~tem referên.cias a hostilidades e rivalidades entre grupos
por gerações. 33
md1genas anteriores ao processo de colonização portuguesa, As muitas décadas de confrontos encarniçados e san-
provavelmente acentuados pelo processo de migração de grentos na capitania do Ceará que tiveram como protagonistas
grupos que originalmente viviam mais próximos ao litoral, a Coroa lusitana e seus oficiais, as diferentes levas de fazen-
sendo que outras rivalidades e aproximações foram surgindo deiros e colonos, e os vários grupos indígenas que viviam ou
por conta da presença francesa, das ocupações holandesas, passaram a viver nos seus limites, todos não somente grupos
das migrações internas e da formação de aldeamentos internamente heterogêneos como também reconhecidamente
além dos diversos enfrentamentos, acordos e alianças qu~ portadores de interesses diversificados e na maioria das vezes
se foram sendo constituídos. conflitantes, deixaram marcados nos topônimos cearenses um
Já os interesses colonialistas representados pela Co- longo rastro inscrito pelas boiadas e pela violência.
roa, Igreja e. colonos, se por vezes se alinhavam, por outras se Em meio aos numerosos topônimos indígenas 34, muitos
confrontavam abertamente, o que inclusive não excluía dispu- dos quais se conservam até hoje, cujas origens refletem não só a
tas e contradições de interesses no interior de cada um destes variedade das nações existentes como também a sua influência
grupos. Tome-se como exemplo apenas os conflitos entre jesu- determinante na formação social cearense, e às denominações
ítas e oratorianos e os diferentes interesses em jogo quanto ao de origem portuguesa35 , das quais as mais recorrentes são as
destino que deveria ser dado ao gentio, reduzidos ou não aos dedicadas a santos católicos e topônimos do reino, encontramos
aldeamentos; os frequentes conflitos de autoridade entre capi- diversos nomes de sítios e lugares, rios, riachos, serras e
tães-mores, ouvidores e câmaras; ou ainda as atrozes lutas en- fazendas que fazem referência ao cotidiano colonial cearense,
t.re ~oradores relativas a propriedade, como as motivadas por
h~1tes de terras e partilha de heranças, que via de regra envol-
viam extensas redes de familiares e agregados e quase sempre
33 "Entre os fazendeiros, cada qual querendo mostrar-se mais rico e ostentar
maior luxo, a paz não podia durar muito tempo, e não durou. É célebre a
longa luta que houve entre as duas famílias de Montes e Feitosas; é conheci-
do o duelo entre os Ferros e Aços; e na memória popular conservam-se mui-
tas outras notícias congêneres que devem ser apanhadas antes que o tempo
32
"Administradores, religiosos e moradores defendiam seus interesses de classe ou as haja de todo delido". ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história
particulares a todo custo. Uns por meio do poder político ou bélico, outros por meio colonial: 1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. 2ª
do poder econômico e bélico, alguns por meio de uma retórica de pacificação e sal- ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 323.
vação da gente nativa. Fazendeiros, missionários e o povo defendiam-se, com armas 34
Sobre topônimos indígenas no Ceará ver: ARAGÃO, Renato Batista. Índios do
e alianças com índios, contra setores da mesma classe dominante ·e outros grupos da Ceará e topônimos indígenas. Fortaleza: Barraca do Escritor Cearense, 1994.
população autóctone". BARROS, Paulo Sérgio. Confrontos invisíveis: colonialismo 35SERAINE, Florival. Topônimos de Portugal no Ceará. Separata da Revista de
e resistência indígena no Ceará. São Paulo: AnnaBlume; Fortaleza: Secult, 2002,
p. 62-63. Portugal, Série A, Língua Portuguesa, vol. XXVII, Lisboa, 1962.
38 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 39

entalhado pela pecuária, marcado pela ocorrência de secas 36 e riacho. 39 De todo modo, tendo visitado a freguesia de Nossa
povoado pela violência.37 Senhora da Conceição do Riacho do Sangue em 1805, o padre
Tristão de Alencar Araripe, em seu texto seminal José de Almeida Machado afirmou em sua Notícia geral das
que é tido como a primeira História do Ceará, ao tratar do freguesias do Ceará que a denominação de "Riacho do Sangue"
confronto entre grupos armados comandados por membros devia-se ao fato de que "os primeiros habit antes desta terra
das famílias Monte e Feitosa observou que "nas ribeiras do brigarão na divisão dela, isto é, os mesmos sesmeiros, nas
Salgado e Jaguaribe houve vários encontros, por cuja memória margens deste Riacho, e correu este ensanguentado, e daqui
ainda hoje conservam-se os nomes de diversos sítios, como lhe sobreveio o nome", confirmando assim que na memória
Pendência, Arraial, Batalha, Tropas, Emboscada e Defuntos. coletiva a explicação baseada nos conflitos sangrent os havia
Afirma ainda que "o lugar denominado Juiz, entre Icó e prevalecido. 40
Lavras, comemora o sítio aonde por Geraldo do Monte fora Na ribeira do Jaguaribe, em 29 de julho de 1722,
assassinado o magistrado, que se dirigia ao seu acampamento o capitão Luiz Coelho Vidal solicitava ao capitão-mor do
como apaziguador e conselheiro". 38 Ceará, Manoel Francês, que lhe concedesse "em nome de Sua
Mais adiante, o mesmo autor menciona que "o ribeiro Majestade o rei de Portugal" uma sorte de terra de três léguas
conhecido pelo nome de Riacho do Sangue, no termo da junto à "uma lagoa chamada da conceição a qual est á entre o
atual vila deste nome, tem origem numa dessas contendas Riacho do Sangue e o Riacho dos Defuntos", para que pudesse
por limites de terras''.. Outra possível explicação para o nome povoá-la com seus gados.41 Nas proximidades do rio Salgado,
de Riacho do Sangue apresentada por Tristão de Alencar um dos maiores afluentes do Jaguaribe, de cuja ribeira fazia
é a alegada existência de pedras encarnadas no leito do parte o mencionado Riacho do Sangue, situavam-se os lugares
de "Curral Velho", "Alagoa dos Cavalos" e a "Serra dos Cavalos",
36 São copiosas as memórias e registros sobre secas e suas consequências na história
além da "Varge da Cruz" e da "Lagoa dos Órfãos".
do Ceará. Durante o século XVIII ficaram registradas a ocorrência de secas no Ceará
Ainda naquela disputada ribeira, em 1710 o capitão
nos anos de: 1710-1711, 1721-1725, 1736-1737, 1745-1746, 1754, 1760, 1766, 1772, Antônio Maciel de Andrade e mais companheiros, dentre os
1777-1778, 1791-1793; durante o século XIX: 1804, 1810, 1824-1825, 1844-1845, quais pelo menos um era seu parente, recebiam cada um o
1877-1879, 1888-1889, 1898, 1900. ALVES, Joaquim. História das secas (séculos
XVII-XIX). 2• ed. Mossoró: Escola Superior de Agricultura de Mossoró, 1982.
37 Uma discussão da relação entre os topónimos cearenses e a violência do coti-
39 Idem.
diano na capitania encontra-se em: VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. "Toponímia da
violência". ln: Entre paredes e bacamartes: história da família no sertão (1780- 40 "Notícia das freguesias do Ceará visitadas pelo pe José de Almeida Machado
1850). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha; Hucitec, 2004, pp. 168-172. Minha nos annos de 1805 e 1806, extrahida d'um livro de devassas que serviu na Visita" .
abordagem acerca do assunto busca ampliar o debate a partir da consideração de que MACHADO, José de Almeida. 2ª ed. fac-símile de separatas da:Revista do Instituto
a ocorrência de topónimos relativos à violência no Ceará se deu concomitantemente do Ceará. ln: Documentação Primordial sobre a capitania autônoma do Ceará. Co-
à adoção de topónimos outros referentes à conquista da terra a partir da atividade leção Biblioteca Básica Cearense. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997,
pecuária, além de v~as outras denominações referentes à aridez da região e a ocçr- p. 192.
rência de secas. 41 ESTADO DO CEARÁ. Op. cit., vol. 11. Fortaleza: Typografia Gadelha, 1926,
38 ARARIPE. Tristão de Alencar. Op. cit., pp. 160-161. pp. 73-74.
40 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso 1heatro de Horrores 41

registro de três léguas em quadra que limitavam "em cima da estranha, dado que durante os combates entre conquistadores
casa forte, sítio ou pertenção do Coronel Manoel Carneiro da e índios Paiacús, Jandoins, Icós e Crateús no vale do Jaguaribe
Cunha". 42 A casa-forte do coronel Manuel Carneiro, que servia e Banabuiú em 1693, o capitão-mor Fernão Carrilho ordenou,
de ponto de apoio na conquista das terras daquela região e além do envio de expedições de guerra, a construção de três
que acabou sendo o nome pelo qual a sua propriedade ficou "casas fortes de estacas". 47
conhecida, tratava-se de um tipo de casa de morada fortificada, Em julho de 1765, André Pinheiro Maciel foi nomeado
exemplo de "uma habitação, transformada por obras de para o posto de capitão de cavalos do distrito de "Riacho dos
fortificação, em um pequeno reduto". 4 3 Defuntos" e suas vertentes. 48 Nas margens de outro grande
Um outro registro de sesmaria, também na ribeira do afluente do Jaguaribe, o Banabuiú, no ano de 1789 José
Jaguaribe, em nome do capitão João da Fonseca Ferreira, no Rodrigues da Silva, morador no Riacho do Sangue, dizia
entanto, revela que a casa-forte do coronel Manuel Carneiro não possuir os lugares chamados "Almas" e "Tocaia". 49 Naquela
eraa única construção daquele tipo nas redondezas. 44 Raimundo mesma r'ibeira encontravam-se o "Riacho dos Bois", o "Riacho
Girão, ao tratar do que chamou de "ciclo pernambucano" de Seco" e um sítio batizado com o sugestivo título de "Tróia".
ocupação da capitania, observou "o levantamento de casas Tratando agora da região sertaneja dos Inhamuns,
fort~s, a jeito de pequenos fortins provisórios, verdadeiras temos que ali ficavam localizados o lugar de "Vargem da Vaca",
sentinelas que garantiam e consolidavam a fixação do colono, o "Riacho da Cruz" e a fazenda "Aguilhada"5 º, de propriedade
a retaguarda". 45 Algumas milhas adentro da barra do rio do pod~roso José Alves Feitosa e sua esposa. Na ribeira
Jaguaribe situava-se um pequeno forte, cuja referência mais do rio Acaraú, despontando na porção norte da capitania
tarde daria nome à povoação de Fortim. 46 Definitivamente, estava o lugar de "Poço dos Bezerros" e os riachos "do Gado"
a prática de levantar casas-fortes na região não se fazia e "dos Bois". A não muitas léguas de distância dali, no dia
12 de janeiro de 1707, Manuel Correia de Araújo pedia que
42 Idem, pp. 42-44.
43 SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. História da Escravidão no Ceará: das origens
BARRETTO, Annibal. Fortificações do Brasil: resumo histórico. Rio de Janeiro: 47
Biblioteca do Exército, 1958, p. 25. à extinção. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2002, p. 39.
44 "Diz o capitam Joam da foencequa fereira morador nesta capitania que elle foi um 48 Patente de Andre Pinheiro Maciel para o posto de cap. m de cavallos do destricto
dos primeiros povoadores da ribeira de jagoariba e asistio Sempre nas gerras com do Riacho dos defuntos e suas vertentes com 14 legoas e 40 praças e uá das comp.
sua pesoa e fazenda como he notório e elle suplicante he emteresado na data de jago- as do regim.t0 da cavalaria da v.ª do Ico de q. ê coronel João Bento 'das.a e Olivr.ª,
aribe q se comsedeo ao cappitam bartolameu nabo correja e como elle suplicante foi 23/0711765. APEC, Livro 11, fl. 157v.
o primeiro povoador em cujas povoasomis perdeo muitos gados roubados do gentio 49 "Diz o capitão José Roiz da Silva morador na Ribeira do Riaxo do Canghe do
bárbaro por sustentar como sustentou fazendo caza forte no citio Jagoaribe mirim termo da Villa do Icó que elle he Senhor e possuidor de um Predio rústico chamado
no coal asistio com muintos homens a sua custa q de cistencia della redundou fa- Almas, e Tocaia na mesma ribeira, em que cria Seus Gados''. Estado do Ceará. Datas
zeresem povoasomis pêra sima". ESTADO DO CEARÁ. Op. cit., vol. 5. Fortaleza: de Sesmarias. Volume 8, nº 616. Fortaleza: Typografia Gadelha, 1926, pp. 40-43.
Typografia Gadelha, 1925, pp. 99-100.
so Aguilhão: a ponta de ferro da aguilhada; ferrão ; ponta aguçada. Aguilhada: Vara
45
GIRÃO, Raimundo. Apud: PINHEIRO, Francisco José. Op. cit., p. 36. comprida com ferrão na ponta, para tanger bois. FERREIRA, Aurélio Buarque de
46
"Fortin". ln: RlC, tomo XXIV, 1910, pp. 168-171. Holanda. Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 16.
42 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso 'Iheatro de Horrores 43

lhe fossem concedidas em sesmaria duas léguas de terra que tria pastoril, e naquele clima, onde a estação seca predomina,
confinavam com o "Sítio das Almas", já de sua propriedade.51 pesa de modo acabrunhador o serviço do campo. A demora do
Nas mediações do rio Curú, também na porção setentrional da inverno que muitas vezes só se apresenta em dias do mês de
capitania, ficava o "Sítio das Porteiras'', a "Serra das Flexeiras", março, metade então do tempo das chuvas, é forçado o pobre
o "Riacho do Ferrão"52 e o "Riacho Xique-Xique". 53 Nas ribeiras vaqueiro para amparar a fazenda da sua entrega, como vul-
do Choró e Piranji estavam situados a fazenda 'Juazeiro" e o garmente se diz, a cortar e deitar aos gados a rama de árvores
lugar de "Currais Novos'', e na ribeira do Aracatiaçú estava o forraginosas, que felizmente ainda nessa época se conservam
"Riacho Agreste". em plena folhagem, como o juá (ziúfus juazeiro), a canafístula
Próximo ao rio Quixeramobim encontravam-se o ria- (cássia fistula) e o mandacaru (coleus sp)". 55
cho "Cabeça de Boi" e a fazenda "Canafístula".54 O significado
do termo canafístula, que serviu de nome àquela propriedade 2.4As lidas
cearense, aparece em um dos escritos de Antônio Bezerra re-
lacionado ao contexto da vida sertaneja: "Quase três quartas Tendo as ribeiras dos rios Jaguaribe e Acaraú como
partes da população sertaneja se entregam à labuta da indús- principais focos de conquista e concentração das fazendas
de criar, o gado produzido na capitania do Ceará era aboiado
51
por vaqueiros e tangerinas para ser comercializado nas feiras
Pedido de data de sesmaria de Manuel Correia de Araújo " ...no Acaraú em o Lu-
pernambucanas de Olinda, Iguaraçu e Goiana, assim como
gar chamado o Carire o cual faz piam na Lagoa das Pedras para o Norte com huma
Lagoa por honde confronta com o Poco Danta e pera o Sul com outra Lagoa que nas feiras do recônc;avo baiano, como Capuame, Nazaré,
tambem confronta com terras do citio das Almas que he delle Suplicante". ESTA- Conceição de Feira e Feira de Santana. O escoamento do
DO DO CEARA. Op. cit., vol. 7, nº 589. Fortaleza: Typografia Gadelha, 1926, pp. rebanho para as praças pernambucanas e baianas deu origem
195-1 98.
às estradas sertanejas cearenses, que acompanhavam as
52
Ferrão: ponta de ferro, aguilhão. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. ribeiras e os cursos d'água. A Estrada Geral do Jaguaribe era a
cit., p. 219.
mais importante e cortava a capitania de norte a sul, ligando
53
A respeito do xiquexique, planta da caatinga de caule espinhoso e rico em água, o Jaguaribe e o Salgado ao médio São Francisco, comunicando
o relato de Manuel Antônio Dantas, contemporâneo da rigorosa seca de 1790-1793, Aracati, Russas, lcó e a região do Cariri. Já Estrada das Boiadas
nos informa: "...os que ficaram e não se retiraram, entraram a descobrir raízes e
frutos de plantas agrestes para o seu snstento; bem como o chique-chique, que é uma
ou Estrada dos Inhamuns cortava a Estrada Geral do Jaguaribe
planta bem brava por ser cercada de espinhos, o miolo da vergôntea servindo de ligando a região central do Ceará - Quixeramobim, Icó, Boa
bom sustento, posto que alguns, que o tratavam mal findaram suas vidas ... " Apud: Viagem e Sobral- a oeste com o Piauí e a leste com as capitanias
OLIVEIRA, André Frota de. Os capitães-mores de Granja. Fortaleza, 2000. do Rio Grande, Paraíba e Pernambuco. Estradas menores,
54 "Dis o Capitão Joaquim Felicio Pinto de Almeida e Castro do termo da Villa de
Campo Maior desta Capitania, que há onze para doze annos que elle Suplicante
cetuara uma Fazenda de Gado de toda a Sorte em uma purção de terras annexas as
de Sua Fazenda Santa Ursula ( ...) pegando da parte do Sul nas extremas da fazenda ·
55
BEZERRA, Antônio. O Ceará e os Cearenses. Edição fac-similar da l ª edição de
Canafistula". ESTADO DO CEARÁ. Op. cit., vol. 9, n. 725, 06/05/1817. Fortaleza: 1906. Coleção Biblioteca Básica Cearense. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcân-
Typografia Gadelha, 1926, pp. 53-55. tara, 2001, p. 3.
44 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 45

como a Estrada da Caiçara e os caminhos do Camucim e Acaraú, Diferentemente do criatório no Piauí, onde a existência
convergiam e divergiam para aquelas duas vias principais. 56 de grandes rebanhos possibilitou a utilização de escravos negros
O trabalho nas fazendas de gado exigia mão-de-obra em larga escala, os lucros da pecuári~ cearense'. ativida~e em
bastante reduzida, estimando-se que mesmo em grandes boa medida subsidiária da economia açucareira do litoral,
propriedades utilizavam-se cerca de apenas vinte homens não permitiam o emprego de mão-de-obra escrava de. origem
na lida com o gado. 57 Calcula-se que, mesmo levando-se em africana de forma significativa, o que acabou dando ongem ao
mito de que no Ceará o índio teria se adaptado ao pas~or~io ,
60
conta a quantidade relativamente grande de fazendas, quando
confrontado o tamanho da população com a média de pessoas quando na realidade a _utiliza~ão de mão-de-obra md1gena
ocupadas por unidade de produção é razoável supor que e mestiça tratou-se muito mais de um recurso empreg~d.o
considerável parcela de indivíduos estivesse fora da atividade pelos colonos locais face às suas dificuldades em a~qumr
produtiva.58 Assim, muito mais do que a questionável escravos africanos ou crioulos - daí o fato de a propriedade
possibilidade de ascensão social através do sistema de quarta de escravos negros consistir em verdadeiro símbolo de riqueza
ou quartiação, onde após quatro ou cinco anos o vaqueiro na sociedade pastoreia local. Apesar d~s .levantament~s
passaria a receber como pagamento uma quarta-parte das populacionais da época indicarem que a ~a1ona ~a popu~açao
crias do gado sob sua responsabilidade, o que hipoteticamente da capitania era livre6 1 e da falta de pesquisas mais espeoficas
lhe permitiria tornar-se proprietário do seu próprio rebanho, a respeito do assunto, o considerável número de re~erência~ a
o lugar de prestígio ocupado pelo vaqueiro na sociedade. índios escravos e forros encontrado na documentaçao colonial
pecuária deve-se à sua inserção diferenciada no interior das cearense indica que durante o século XVIII a escravidão
fazendas, onde desempenhava posição de comando. 59 indígena foi uma realidade no Ceará. 62

56STUDART FILHO, Carlos. "Vias de comunicação do Ceará colonial". ln: Pági- 60Pedro Puntoni observa que a historiografia aponta para uma "adaptação mais ou
nas de História e Pré-história. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1966, pp. 135-163. menos tranquila das populações locais [indígenas] à economia pastoril". Segundo
57
"Uma fazenda, com grande número de currais, chegava a dispor de dois ou três ele dois fatores colaboraram para alimentar esta proposição: "Primeiramente, are-
vaqueiros, cada um deles com dois a quatro auxiliares ( ... ). Sendo a mão-de-obra pe;ição de preconceitos severamente enraizados no imaginário local de que os indí-
para os trabalhos diários limitada, nas grandes propriedades utilizavam-se no máxi- genas eram incapazes de trabalho continua~o e se~entári? ( ... ).Em s~gundo lugar, o
mo 20 homens''. JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. O espaço nordestino: o papel da desconhecimento ou menoscabo da exata d1mensao da sene de conflitos resultantes
pecuária e do algodão. ln: SOUZA, Simone (coord.). História do Ceará. 2ª edição. do contato da frente de expansão com os grupos indígenas locais". Idem, p. 28.
Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1994, p. 18. 6 1 PORTO ALEGRE Maria Sylvia. "Aldeias indígenas e povoamento do Nordeste
58
LEMENHE, Maria Auxiliadora. As razões de uma cidade: conflito de hegemo- no final do século xVIII: aspectos demográficos da cultura de contato". In: Ciências
nias. Fortaleza: Stylus, 1991, p. 36. Sociais Hoje. São Paulo: Hucitec/Anpocs, 1992.
59
A respeito da possibilidade do vaqueiro tornar-se fazendeiro através do sistema 62 Diversas referências foram encontradas por Cíntia Vasconcelos nos livros de ca-
de quartiação, Pedro Puntoni considera que: "Posto que a alternativa existisse em samento arquivados na Cúria Diocesana de Sobral abrangendo o período de 1725-
teoria, a própria sobrevivência do vaqueiro e de seus ajudantes (por vezes escravos), 1798: "Catarina, tapuyaAnacé forra", "Leonor Tapuia escrava de Manoel", '_'Cypri~­
assim como o trato da boiada, deveriam consumir toda a paga. Ao que se somava o na, tapuia forra", pp. 7, 10 e 11, respectivamente. VASCONCELOS, Cíntia.Mana
fato de que a esta "liberdade" do trabalho, na situação geral do escravismo, impli- de Almeida. "As vivências indígenas no Acaraú (século XVIII)". ln: Anms do l
cavam responsabilidades extremadas, motivo pelo qual todos os possíveis prejuízos Encontro Nordestino de História Colonial. João Pessoa, Universidade Federal da
eram descontados nas costas do vaqueiro". PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 24. Paraíba, 2006. Ver ainda: SILVA, Pedro Alberto de Oliveira. Op. cit.
46 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 47

Somado ao seu caráter de atividade subsidiária, para o abastecimento do comércio local: ferramentas, pólvora,
contribuíam para a limitação dos lucros gerados pela pecuária materiais de construção, vinho, azeite, tecidos, chapéus, louças,
no Ceará o pagamento de impostos, especialmente o subsidio entre outros artigos, que chegavam às mãos dos consumidores
de sangue cobrado sobre o abate do gado, e a longa marcha de locais por preços elevados. Do porto de Aracati as mercadorias
centenas de léguas até as feiras pernambucanas e baianas onde importadas seguiam para Icó em carros de boi, de onde seriam
o gado seria comercializado, jornada que expunha as reses ao dístribuídas aos comerciantes da bacia do Jaguaribe, sendo
ataque de feras e assaltos, o que resultava em perdas de parte que dos portos de Acaraú e Camocim seguiam para Granja e
dos gados transportados estimadas em mais de um terço do Sobral, de onde eram igualmente distribuídas para os empórios
rebanho 63, além de que o gado cearense atingia o destino com sertanejos. Assim, o comércio de carne seca e couros gerado
peso reduzido, o que diminuía o seu valor de venda. pelas charqueadas permitiu a geração de excedentes, a formação
Uma solução encontrada pelos criadores cearenses foi o de um mercado interno e o surgimento de núcleos urbanos
aperfeiçoamento da técnica indígena de salga e secagem da carne na capitania, dentre os quais se destacavam Aracati no vale
ao sol, o que permitia a sua conservação. Assim, por volta da década do Jaguaribe e Sobral na ribeira do Acaraú, principais centros
de 1720 surgiram nas povoações de Aracati, Granja, Camocim, comerciais e charqueadores cearenses. 65
Acaraú e Sobral as oficinas ou fábricas de beneficiar carne, também Apesar do c_rescente aumento do volume da exportação
chamadas de charqueadas. Desse modo, o gado produzido na de couros para Portugal, segundo as análises de Ribeiro Júnior
capitania do Ceará passou a ser conduzido até a foz dos rios onde os níveis de acumulação proporcionados para os produtores
estavam localizados os seus principais portos litorâneos, para e comerciantes cearenses através da exportação dos produtos
serem ali abatidos e transformados em mantas, postas e tassalhos pecuários da capitania esbarraram no monopólio comercial
nas oficinas de carne, além de couros, solas e atanados, e então português praticado pela Companhia Geral de Pernambuco
transportados em sumacas através de navegação de cabotagem e Paraíba (1759-1780) e na intermediação de Pernambuco,
para os grandes centros de consumo coloniais: Pernambuco, capitania a que o Ceará estava subordinado. 66 Para Maria
Bahia e Rio de Janeiro. Somente pelo porto de Aracati, a principal Auxiliadora Lemenhe os limites da acumulação interna
porta de escoamento da produção da capitania, eram despachados explicariam a fragilidade da economia cearense e a incipiente
anualmente carne e couro de mais de 20 mil bois, o que resultava vida urbana na capitania. 67
em cerca de 25 barcos carregados.64 As rigorosas secas de 1777-1778 e 1791-1793, assim
As sumacas que deixavam os portos cearenses carregadas como a concorrência do charque que passou a ser produzido
de carnes e couros voltavam trazendo produtos manufaturados
65
BRÍGIDO, João. "A capitania do Ceará: seu cornmercio". ln: RIC, torno X.XIV,
63
"Muitas vezes, dadas as dificuldades no deslocamento das boiadas, em direção 1910, pp. 172-185 ..
66
ao litoral, chegava-se a perder mais de um terço de seus animais". JUCÁ, Gisafran RIBEIRO Jr., José. Colonização e monopólio no Nordeste Brasileiro: a Com-
Nazareno Mota. Op. cit. panhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1759-1780). 2" ed. São Paulo: Hucitec,
64
GIRÃO, Valdelice Carneiro. As oficinas ou charqueadas no Ceará. Fortaleza: 2004.
Secult, 1995. 67
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Op. cit., p 49.
José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 49
48

no Rio Grande do Sul, abalaram profundamente a produção Politicamente, a capitania do Ceará fez parte do Estado
pecuária e as charqueadas cearenses. Somado a isso, a crescen- do Maranhão de 1621a1656, a partir de quando passou a fazer
te demanda provocada pela produção têxtil inglesa, ampliada parte do Es~ado do Brasil, sendo que por ordem régia de 1668
ainda mais pela descontinuidade do fornecimento de matéria- adquiriu o estatuto de capitania subalterna à de Pernambuco,
prima ocasionada pela.guerra de independência Norte Ameri- tornando-se capitania autônoma somente em 1799, quadro que
cana (1774-1783), possibilitou o surgimento do algodão como parece refletir o seu caráter de área secundária aos interesses
importante produto na pauta de exportação da capitania no metropolitanos até pelo menos o início do século XIX.
último quartel do século XVIII. No Ceará, o algodão foi culti- A vida cotidiana na capitania do Ceará girava
vado tanto em latifúndios quanto em pequenas propriedades, fundamentalmente em torno da criação de gado, da plantação
sobretudo a partir do sistema de parceria, e teve como princi- de algodão e de alguma agricultura de subsistência69 ,
pais áreas produtoras Aracati, Fortaleza e as serras de Baturi- revestindo-se de certa austeridade quando comparada à
té, Uruburetama, Meruoca, Pereira e Aratanha. sociedade canavieira do litoral. Constata-se isso através das
Inserida nas dinâmicas periféricas do império ultramarino descrições acerca da simplicidade arquitetônica de suas vilas,
português, de modo geral até fins do século XVIII a capitania do prédios públicos e casas de morada; da escassez ou mesmo
Ceará era formada por fazendas de criar, aldeamentos indígenas ausência de mobília e do reduzido número de escravos
e vilas de colonos, também chamadas de "vilas de brancos" ou registrados nos inventários de seus moradores; ou ainda
"vilas de portugueses". Diferentemente da região açucareira, onde através dos comentários de viajantes acerca da alimentação,
o cultivo da cana e a manufatura do açúcar em engenhos estavam vestuário e cotidiano cearenses ainda nas primeiras décadas
conjugados espacialmente e localizados próximo aos portos, a do século XIX. 70
produção de charque no Ceará envolvia uma divisão de trabalho Com a consolidação do processo de colonização no
entre fazendas de criar, oficinas de salga e comercialização em Ceará e a dinamização da economia local através da exportação
espaços diferenciados. Como consequência, o censo geral de 1777- de carne seca, couros e algodão ao longo do século XVIII, é
1782 apontou que a capitania tinha como especificidade o fato de interessante perceber que, de modo geral, a temática da
que, diferentemente de Pernambuco, Parafüa e Rio Grande, onde violência fica ensombrecida na historiografia cearense, sendo
"a maior parte dos habitantes vivia, ainda, ao longo da estreita
faixa do litoral que formava a Zona da Mata, onde o povoamento 69 "A lavoura e a criação .de gados é donde provém a ma(n]tença dos habitantes. A
era praticamente contínuo desde Natal, no Rio Grande do Norte, primeira consiste em mandioca, milho, arroz, feijão e algodão". Descrição geográ-
até Penedo, nas margens do rio São Francisco, atual Estado de fica abreviada da capitania do Ceará pelo coronel de engenheiros Antônio José da
Alagoas", no Ceará havia menor densidade populacional e "a Silva Paulet, 181 6. 2ª ed. fac-símile de separatas da Revista do Instituto do Ceará.
população se distribuía com maior uniformidade pelo sertão em ln: Documentação Primordial sobre a capitania autônoma do Ceará. Coleção Bi-
blioteca Básica Cearense. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997, p. 6. Este
núcleos de médio porte para os padrões da época".6 8 texto é comumente atribuído ao coronel de engenheiros Antônio José da Silva Paulet
mas segundo considerações de Guilherme Studart a sua autoria deve-se ao ouvidor
João Antônio Rodrigues de Carvalho.
68 70 VIEIRAJr., Antônio Otaviano. Op. cit., sobretudo pp. 51-85.
PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Op. cit., p. 204.
50 José Eudes Arrais Barroso Gomes

relegada muito mais ao processo de conquista da região e aos 3


conflitos entre famílias poderosas causados por limites de OLHARES ESTRANGEIROS
terras, situados principalmente até o final da déc~da de 1720. IMAGENS DA VIOLÊNCIA, .IMAGENS DA
Assim, os holofotes da historiografia sobre o período PERMANÊNCIA
passam nitidamente a privilegiar o enfoque político-
administra tivo e econômico. No entanto, distoando desta
tendência geral, encontramos nos relatos de viajantes A exigência de atenção de um relatório etnográfico
estrangeiros que aqui estiveram nas primeiras décadas do não repousa tanto na capacidade do autor em captar
século XIX uma intrigante percepção do cotidiano na capitania: os fatos primitivos em lugares distantes e levá-los para
segundo os seus olhares, a violência haveria permanecido casa como uma máscara ou entalho, mas no grau em
como uma característica marcante do espaço social cearense. que é capaz de esclarecer o que ocorre em tais lugares,
Este será o tema do próximo capítulo. para reduzir a perplexidade - que tipos de homens são
esses? - a que naturalmente dão origem os atos não-
familiares que surgem de ambientes desconhecidos.

Clifford Geertz, A interpretação das culturas. 71

3.1 George Gardner: Ceará, terra sem lei

...apesar de minha interferência, esquentaram-se tan-


to, que ameaçaram esfaquear-se, modo usual de liqui-
dar desavenças nesta terra sem lei.

George Gardner, Viagens ao interior do Brasil, 1838.72

71 GEERTZ, Clifford. "Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultu-
ra". ln: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 26.
72 GARDNER, George. Viagens ao interior do Brasil: p rincipalmente nas provín-
cias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841.
Tradução: Milton Amado, apresentação: Mário Guimarães Ferri. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975, p. 91. Gardner nasceu no ano de 1812 em Glasgow,
Escócia. Tinha portanto 26 anos quando visitou o Ceará. CARVALHO, Alfredo de.
"Um botanico inglez no Ceará, de 1838 a 1839". ln: RIC. Anno XXVI (1912), pp.
143-205.
José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso Theatro de Horrores 53
52

Na tarde do dia 21 de julho de 1838, uma pequena Prefaciando a publicação de suas anotações de viagem,
escuna de nome Maria Luísa, vinda de Pernambuco, fundeava Gardner afirma que foi sua preocupação "traçar um quadro,
na barra do rio Jaguaribe a cerca de doze milhas da vila de Santa quanto possível fiel, do aspecto físico e produções naturais
Cruz do Aracati. Dentre os dezessete passageiros, fora igual da região, com umas rápidas observações sobre o caráter, os
número de criados ou escravos negros, a embarcação trazia a costumes e a condição das diferentes raças indígenas ou não,
bordo como inusitado tripulante um naturalista britânico que que compõem a população das part es visitadas".75 Munido
viajava o interior do Brasil a fim de estudar a sua fauna e flora, de tal pretensão de objetividade, característica do saber
além de coletar material botânico. Tratava-se do início das cientificista europeu da época, e tendo como intenção primeira
andanças do jovem botânico escocês George Gardner em sua a descrição da flora, fauna e geografia das regiões visitadas,
incursão pela Província do Ceará. em suas auto-intituladas "rápidas observações", Gardner tece
Viajando o Brasil de 1836 até 1841, Gardner percorreu valiosos apontamentos sobre a população, os costumes, a
as províncias do Rio de Janeiro, Bahia, Alagoas, Pernambuco, cultura e a sociedade cearenses.
Ceará, Piauí, Goiás e Minas Gerais, até atingir novamente o Rio Dentre a descrição de variados aspectos da vida nos
de Janeiro. No Ceará, partindo da costa para o interior, durante sertões cearenses, tais como o clima, o relevo, a vegetação, a
os meses de julho de 1838 a janeiro do ano seguinte, Gardner hidrografia, os animais, a produção econômica, a ocorrência de
visitou as vilas de Aracati, São Bernardo das Russas, Icó, Lavras da estiagens e suas marcas, as estradas e as viagens sertanejas76, os
Mangabeira, Crato e Jardim, além das localidades de Passagem hábitos alimentares77, as relações familiares e de gênero, além
das Pedras, Cajaz,eiras, Massapé, Novo Mundo, Guaribas, Brejo da constituição de suas vilas e povoados, prende a atenção do
Grande, Olho d'Agua do Inferno, Poço dos Cavalos, Grauatá, leitor a ênfase que vai sendo dada por Gardner a determinado
Marmeleira, Rosário, Lagoa e Vargem da Vaca, penetrando por aspecto do viver nos sertões: a generalização da violência.
Angicos até chegar a São Gonçalo no Piauí.
Como resultado da passagem de George Gardner pela 75 GARDNER, George. Op. cit., p. 17.
província cearense, figuram em Viagens ao interior do Brasil73 , 76Em relação às viagens sertanej as Gardner esclarece que diferentemente do sul
publicação de suas notas de viagem, as suas impressões sobre onde as jornadas se faziam o dia todo sem parada, no norte, devido ao grande calor
as terras e as gentes do Ceará que conheceu; impressões estas da região, sempre se dava descanso aos animais no meio do dia (p. 83). Durante as
viagens o descanso se dava em ranchos à beira da estrada (p. 83), pernoites em redes
que levaram Guilherme Studart a considerá-lo "o mais exato e armadas nas varanda das casas situadas na beira das estradas (p. 83 e 84) e acampa-
minucioso naturalista de quantos percorreram os altos sertões mentos em copa de árvores (p. 85).
cearenses" durante o século XIX. 74 77 Diversas são as referências do autor às refeições que fez enquanto esteve no Cearà

e aos alimentos consumidos localmente: carne-de-sol com arroz, chá e vinho tinto
"ordinaríssimo" (p. 80); certa espécie de farinha feita da parte inferior do tronco da
73 carnaubeira consumida em tempo de seca (p. 82); sal - raro e caro no interior, carne
GARDNER, George. Op. cit., pp. 89-1 08. A primeira edição foi publicada em
Londres em 1846. Em 1848 foi traduzido para o alemão. Uma segunda edição em seca (p. 84); leite, queijo, coalhada com açúcar mascavo, rapadura com farinha,
inglês data de 1849. farinha de mandioca, carne seca, pirão (p. 85); e até um lagarto verde (p. 86), muito
74 STUDART, Guilherme. Estrangeiros e Ceará. 2ª edição. Mossoró: Secult/Escola provavelmente um teiú, espécie de camaleão de até 2 metros até hoje apreciado no
Superior de Agricultura de Mossoró, 1983, p. 19. sertão e que recebe no Ceará o nome de tejo.
54 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 55

Através da leitura de diversos trechos do relato de suas los moradores dos sertões, haja vista a sua raridade no interior
experiências e observações é possível perceber a criação de do continente. Através da comparação entre sal e pólvora Gard-
uma iiltrigante imagem do Ceará como sociedade violenta, ner acaba sugerindo que, enquanto o primeiro seria necessário
"terra sem lei'', de "gente vingativa" e assassinatos, povoada à garantia da vida e sobrevivência nos sertões por alimentar o
pela rapinagem e pela insegurança. De modo geral, tais corpo, o segundo se fazia necessário por alimentar as espingar-
impressões do naturalista são generalistas e fazem referência, das e pistolas, instrumentos igualmente importantes na con-
meio que indistintamente, à totalidade dos sertões brasileiros. secução da vida social sertaneja. Contudo, convém lembrar um
No entanto, foi justamente quando relatou sua passagem pelo detalhe que não deve passar desapercebido: segundo Gardner
primeiramente pedia-se pólvora aos viajantes, para só então
Ceará que Gardner foi levado a escrever o contundente trecho
que se segue: arriscar-se por conseguir algum sal como graça.
Pela leitura da passagem citada observa-se também a
referência à generalização do uso de armas as mais diversas,
Quando viajei mais tarde por algumas regiões mais so- tanto brancas, como espada, adaga e faca, quanto de fogo,
litárias e menos habitadas das províncias do interior, como espingardas e pistolas. Desse modo, as armas seriam
havia dois artigos que sempre me pediam ao chegar a instrumentos de uso cotidiano e vulgarizado nos sertões,
qualquer moradia: primeiro, pólvora; depois, sal (...). especialmente nas regiões de menor densidade populacional,
Para o europeu acostumado a viajar com relativa segu- além das estradas e caminhos sertanejos. O viajante informa que
as armas de fogo estavam presentes em diferentes momentos
rança, sem recurso ao porte de armas, o encontro de via-
da vida nos sertões cearenses, como nas viagens, na caça ou
jantes trigueiros com ar de salteadores, cada qual arma- em festas religiosas, tais como o festival de Nossa Senhora da
do de pistolas, espada, adaga, faca e espingarda, dá idéia Conceição do Crato, no qual "em todo o período da novena, como
muito desfavorável da moral desta gente. Assassinatos e lhe chamam, o pequeno destacamento de soldados da cidade
roubos são frequentes entre eles, raramente se verifican- [da guarda nacional local] manteve o fogo quase contínuo dia e
do um sem o outro, e sempre por traição. Por tudo o que noite", somando-se ainda ao fogo dos mosquetes o disparo de
tenho ouvido e visto, não creio que se registre caso de um pequeno canhão em frente da igreja.79
A composição da imagem dos sertões como território
um brasileiro enfrentar corajosamente o outro e exigir-
da violência realizada por Gardner completa-se com a asserção
llie a bolsa. Talvez uma das razões disso seja que ele sabe
que o outro está armado de faca e por isso evita pôr-se
79
ao alcance dela. 7B GARDNER, George. Op. cit., p. 97. Salvas de tiros e a destacada participação de mili-
tares devidamente uniformizados parecem ter sido elementos bastante comuns nas festas
religiosas em todo o Brasil nas primeiras décadas do século XIX. Diferentes descrições
de festas, desfiles e procissões religiosas revelam a presença marcante de tais elementos,
O impressionado europeu nos aponta aqui o fato de que tais como na Festa do Coxpo de Deus, Festa do Triunfo e Festa do Enterro, e nas procis-
juntamente ao sal, a pólvora é citada como gênero cobiçado pe- sões da Visitação de Nossa Senhora, São Sebastião, Santo Antônio e Nosso Senhor dos
Passos, todos exemplos relativos ao Rio de Janeiro que se encontram descritos em: DE-
78
BRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Tradução e notas: Sérgio
GARDNER, George. Op. cit., p. 84. Milliet. 3ª edição. 2 vols. São Paulo: Martins, 1958, pp. 27-43.
56 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 57

da frequência de roubos e assassinatos que, segundo ele, Icó desapareceu, vindo a ser encontrado três dias depois nas
grassariam nas paragens sertanejas como acontecimentos imediações da Serra do Pereira, a três léguas de distância.
corriqueiros. Como bom cientista oitocentista, para Outra situação, também reveladora da sua sensação de
fundamentar sua percepção dos sertões como terras violentas, insegurança e atitude de previdência em relação a isso, deu-se em
o botânico preocupou-se em pontuar o relato de diversas um dos seus pousos noturnos ao longo das estradas cearenses.
situações e acontecimentos que testemunhou e viveu, de Após a sua acomodação e da sua tropa embaixo de algumas
forma a materializar os indícios que o levaram a tal veredicto. árvores à beira da estrada, diz Gardner: "veio-me permissão de
Nesse sentido, como exemplo da frequência de roubos o uma das casas para armar lá minha rede, convite que recusei,
viajante refere-se ao furto de animais, problema que alegou ter por me não parecer prudente separar-me da bagagem". 83
enfrentado por diversas vezes durante sua viagem. Ao relatar sua A atitude de previdência e desconfiança de Gardner,
passagem pelo Ceará, Gardner chegou a firmar que "o furto de contudo, parece não ter sido provocada simplesmente pelo
animais é crime frequentíssimo no Brasil", revelando que muitas olhar eurocêntrico e presumivelmente assustado de um
vezes um animal é roubado por alguém que deseja fazer uma britânico em viagem pelos sertões do Ceará, pois, poucos dias
viagem, sendo depois abandonado, ou é roubado e escondido depois, quando à caminho da Vila do Crato, Gardner veio a
durante poucos dias para depois ser devolvido em troca de saber que o "guia experiente" que havia contratado em Icó
recompensa. 80 Também a esse respeito, o naturalista declarou: era o responsável pelo roubo de parte da sua bagagem e da
"ainda que certo deste embuste, nunca recusei pagar o preço, bolsa do negro Pedro, criado que o acompanhava na viagem.
para evitar coisa pior".81 Fica claro aqui que, para o viajante, nos Quando foi descoberto que o guia de viagem era quem havia
sertões a violência rondaria quaisquer tipo de desentendimentos surrupiado tais pertences e os havia escondido nos matos
e estaria sempre à espreita em situações de conflito.82 à beira do caminho para que depois pudesse reavê-los,
Apesar de tais considerações referirem-se novamente Gardner confessou: "meu primeiro impulso foi despedi-lo
aos sertões brasileiros em geral, assim como no caso da logo sem pagamento. Refletindo melhor, decidi não tomar
observação a respeito do uso de armas e da insegurança nos conhecimento do caso, porque sabia da índole vingativa de tal
sertões, é interessante notar que a referência ao roubo de gente". 84 Para além de avivar a imagem da violência nos sertões
animais é feita justamente na relação de sua jornada pelo Ceará. cearenses traçada por Gardner, tal episódio nos dá indícios
Um outro detalhe que também merece ser lembrado é que em ainda para pensar a situação de parte dos homens livres e
terras cearenses um dos cavalos comprados por Gardner em pobres nas vilas e sertões cearenses que, pelo menos a tirar-
se do exemplo do guia sertanejo contratado por Gardner em
80
Icó, parece ter vivido no limiar entre legalidade e ilegalidade,
GARDNER, George. Op. cit., p. 88.
81
Idem, p. 88.
82
Nesse sentido, Antônio Otaviano Vieira Jr. observa que a "violência enquanto
instrumento para resolução de conflitos cotidianos" foi um dos principais pontos
83 GARDNER, George. Op. cit., p. 90.
da vida cearense destacados por Gardner. VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. Op. cit.,
p. 162. 84 Idem, p. 92.
58 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 59

prestando certos serviços ao mesmo tempo em que eram bastante detalhadas e de visitar, como já foi dito, as vilas de
tentados a cometer pequenos furtos. Aracati, São Bernardo, Icó, Lavras da Mangabeira, Crato e
Ainda segundo Gardner, a constatação da violência e Jardim, em suas notas existem referências apenas às cadeias
da belicosidade dos sertões seria corroborada pelas marcas da de Icó e do Crato, fato que, por si, já sugere um quadro de
memória coletiva entalhadas na tradição oral do povo: "por abandono da população sertaneja em relação à justiça imperial,
tudo o que tenho ouvido", disse ele. Mesmo antes do episódio no sentido de que, já em finais da década de 1830, a descrição
da tentativa de roubo praticada pelo guia narrada acima, o de Gardner assemelha-se muito às descrições da precária
criado de Gardner e o tal guia já haviam se estranhado. Certa estrutura judiciária cearense fornecidas pelos ouvidores da
vez, quando descarregavam as bagagens dos cavalos durante a capitania na segunda metade do século XVIII.
viagem houve um acirramento de ânimos entre os dois, o que Se a cadeia de Icó, segundo Gardner "uma das principais
levou Gardner a anotar que: cidades do interior da Província do Ceará" com "cerca de seis
mil habitantes" à época, é descrita sumariamente como "um
... apesar de minha interferência, esquentaram-se tan- sólido cárcere" localizado na sua larga rua principal, assim
to, que ameaçaram esfaquear-se, modo usual de liqui- como outros importantes prédios públicos como suas igrejas e
dar desavenças nesta terra sem lei.85 mercado86, já a cadeia do Crato, que segundo o viajante tratava-
se de "uma cidade pequena e suficientemente mísera com um
Na citação acima percebemos que a previdência terço de Icó em tamanho" e cerca de "dois mil habitantes, na
de Gardner se assenta sobre a consideração da falta de maioria todos índios ou mestiços que deles descendem", é
segurança e da presença da violência, que rondaria as relações descrita como arruinada e decadente, sendo a análise do seu
sociais nos sertões, a partir da iminência de que quaisquer funcionamento e guarnição no mínimo pitorescos:
desentendimentos ou conflitos evoluiriam fatalmente
para agressões físicas e confrontos arpiados, dado o uso
indiscriminado de armas por todos e a ausência de controle ou
l
1
...está de tal modo arruinada, que mal lhe cabe o nome de
prisão, embora encerre sempre uns poucos.criminosos. Era
guardada por dois soldados, que cumpriam tão molemen-
ameaça de punição judicial, indicadas pela expressão "terra sem
te, que, ao passar, eu os vi ora jogando cartas, ora dormindo
lei". Essa expressão sugere que além da consideração da
à sombra da casa. De wn sargento que quando ali estive,
vulgarização da violência, uso de armas, roubos e assassinatos, se achava preso por desobediência ao seu superior, sabia-
para Gardner o policiamento e o exercício das leis nos sertões 1
se que saía todas as noites por wna janela só de trancas de
cearenses teriam um caráter bastante limitado. pau, para dormir em casa e voltar de manhã para passar o
Como parte da descrição das vilas pelas quais passava, 1 dia na prisão. 87
Gardner teceu algumas observações acerca das cadeias
cearenses que encontrou. Apesar de suas anotações serem

86 Ibidem, p. 87.
85 Ibidem, p. 91. 87 GARDNER, George. Op. cit., p. 93.
60 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 61

Para além de sua evidente utilidade prática, as cadeias, Portanto, Gardner sugere que no Ceará a violência era
como importantes prédios públicos, eram portadoras de acompanhada pela fragilidade da justiça e por um aparelho
expressivo peso simbólico, funcionando como símbolos locais policial acanhado e restrito. É sabido que já desde os tempos
palpáveis e tangíveis de representação da justiça régia na coloniais as vilas e povoados funcionavam como núcleos de
capitania88 que, também desse modo, mostrava-se precária. controle social sobre a população e espaço privilegiado de
Contrastando com uma restrita guarnição composta tão imposição da ordem pública, sede das forças militares e das
somente por dois soldados dorminhocos e uma tosca cadeia instituições camarárias, judiciais, fiscais e eclesiásticas. Assim,
em ruínas, Gardner acrescentou: a debilidade das cadeias públicas e dos contingentes milicianos
nos núcleos ürbanos apontada por Gardner conspira no
Os habitantes desta parte da província [Crato] (. ..)são sentido de sugerir a generalização da violência e da fragilidade
famigerados no país por sua rebeldia às leis. Aqui foi, da justiça em terras cearenses.
e até certo ponto ainda é, embora em menor extensão Devendo exibir passaporte às autoridades locais
um esconderijo de assassinos e vagabundos de toda expondo as razões da sua viagem de modo a obter a autorização
a espécie vindos de todos os cantos do país. Embora da sua permanência90, Gardner identificou claramente o fato
haja um juiz de paz, um juiz de direito e outros repre- de que no Ceará os principais cargos militares e governativos
sentantes da lei, seu poder é muito limitado e, ainda eram sempre ocupados por poderosos senhores. Além de
assim, quando o exercem, correm o risco de tombar passaporte, a constante referência a "cartas de apresentação"
sob a faca do assassino. no relato de Gardner torna evidente o alto grau de personalismo
Muitos criminosos de morte me foram mostrados an- encontrado nas povoações dos seus sertões.91 Tais cartas
dando livremente. O principal perigo a que se expõem é
da parte dos amigos dos assassinados, que os seguem a
grandes distâncias e não perdem oportunidade de tomar tomava bastante atrativa para a população sertaneja, sobretudo para as camadas mais
humildes, mais facilmente atingidas pela falta de chuvas. MENEZES, Luiz Barba
vingança. (. ..) São frequentes as brigas, que muitas vezes Alardo de. "Memória sobre a capitania independente do Ceará grande escripta em
se resolvem a faca. 89 18 de abril de 1814 pelo governador da mesma, Luiz Barba Alardo de Menezes". 2"
ed. fac-similar de separatas da Revista do Instituto do Ceará. ln: Documentação Pri-
mordial sobre a capitania autônoma do Ceará. Coleção Biblioteca Básica Cearense.
88
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da 'l!ioléncia nas prisões. Petrópo- Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997, p. 48.
lis: Vozes, 1997. 90"Uns dias antes da partida [de Pernambuco], acompanhado do Vice-Consul, Mr.
89
GARDNER, George. Op. cit., pp. 93 e 94. Gardner não foi o único a referir-se ao Goring, H. B. M., procurei o Vice-Presidente da província, senhor Francisco de
Crato como uma vila violenta, pois em 1814 o ex-governador do Ceará Luiz Barba Paulo Cavalcante d'Albuquerque (o presidente achava-se auzente no Rio), a fim de
Alardo de Menezes alertou que em razão daquela vila confinar "com o rio São Fran- obter meu passaporte..." Em Aracati: "Terminado o exame e exibido o meu passa-
cisco na parte que pertence a Pernambuco" merecia "uma vigilante polícia, e toda a porte ..." GARDNER, George. Op. cit., pp. 80 e 81, respectivamente.
energia em que se desenvolva os dois preciosos ramos de agricultura e commercio". 91Segundo o próprio Gardner, tratava-se de "gente da maior influência". Em Per-
Vale citar ainda que Barba Alardo informou que "as suas preciosas nascentes de nambuco: " O senhor Albuquerque [vice-presidente da província de Pernambuco] é
águas a fazem muito procurada dos povos nas occasiões da secca", motivo que a homem de grandes posses e pertence a uma das principais famílias e mais antigas
José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 63
62

eram escritas por pessoas influentes e destinadas a apresentar Vale dizer ainda que, a partir de alguns trechos, Gardner
e credenciar o forasteiro junto à elite e às autoridades das indica a concentração de riqueza, sugerindo que a maioria da
localidades visitadas, garantindo-lhe acomodação e cicerone. população cearense seria constituída por homens e mulheres
Desse modo, o quadro traçado por George Gardner livres e pobres de origem indígena e mestiça, vivendo como
acerca do Ceará a partir da demorada e extensa viagem que fez agregados nas fazendas de gado e plantações ou em pequenas
pelos seus sertões aponta para percepção de uma sociedade propriedades espalhadas pelos sertões e arredores das vilas. 94
violenta e belicosa, lugar de "muitos assassinatos", onde
"assasssinatos e roubos são frequentes (... ) raramente se
verificando um sem o outro", uma "terra sem lei", marcada pela 3.2 Henry Koster: violência e poder
"índole vingativa" de suas gentes, onde a justiça seria frágil e o
poder público estaria concentrado nas mãos das suas "gentes Imaginava a vida estranha que levava e a semelhança
graúdas" 92 , como eram chamados os membros das principais com a época feudal na Europa aparecia-me, e não a dei-
famílias locais 93 . xava de comparar com o estado atual do interior brasi-
leiro. O grande poder do agricultor, não somente nos
seus escravos, mas na sua autoridade sobre as pessoas
livres das classes pobres; o respeito que esses barões
famílias do norte do Brasil. Além do passaporte, enviou-me no dia seguinte cartas
de recomendação ao Presidente do Ceará e Piauí". Em Icó, disse ele: "Poucos dias exigiam dos moradores das suas terras, a assistência
depois de minha chegada aqui, fui visitado pela maioria da gente distinta do lugar, e, que recebem dos rendeiros em caso de insulto por par-
como logo lhes retribuí as visitas, em breve formei numerosas relações". No Crato te de um vizinho igual, a dependência dos campone-
não foi diferente: "Já escurecera quando entrei na Vila, mas logo encontrei a casa de
um respeitável comerciante, o senhor Francisco Dias Azede e Melo, a quem levava
ses e seus desejos de ficar sob a proteção particular de
cartas de apresentação". E preparando-se para ir até a vila de Jardim: "Meu amigo um individuo rico, que seja capaz de livrá-los de toda
Capitão João Gonsalves, deu-me cartas para seu parente Capitão.Antônio da Cruz, a opressão e de falar em sua defesa ao Governador, ou
pessoa principal do lugar..." Já narrando a sua visita ao lugar de "Maçapé'', distante
5 léguas da vila de Jardim: "Na tarde de 23 de dezembro fui convidado pelo Tenente-
ao Juiz, todas essas circunstâncias se combinam para
Coronel João José de Gouveia, cavalheiro a quem levava cartas de apresentação, fazer a similitude ainda mais flagrante.
para acompanhá-lo, e ao Visitador, a um lugar chamado Maçapé ..." GARDNER,
George. Op. cit., pp. 79, 80, 92, 99 e 104, respectivamente.
92 " ... quando faz bom tempo, vêem-se grupos de todas as classes, desde os que se

chamam "gente graúda" até as mais baixas, sentados nos passeios..." GARDNER, 94Nessa direção, além de descrever a cid~de do Crato como "suficientemente míse-
George. Op. cit., p. 94. ra", com população formada predominantemente por "índios ou mestiços que deles
93 "A fragilidade da presença do poder instituído e, em especial, a fraca imposição descendem", ao referir-se à próspera Aracati, a maior e mais próspera cidade cea-
da justiça pública e seu comprometimento com interesses dos grandes fazendei- rense na época, Gardner deixa claro que tal prosperidade pertencia a poucos: "A
ros do sertão, contribuía na vulgarização da violência enquanto instrumento para cidade de Aracati ergue-se na margem leste do rio (Jaguaribe] e consiste quase só
a resolução de conflitos cotidianos. E foi esse um dos principais pontos destacados de uma rua longa e larga. Tem quatro belas igrejas e suas casas são geralmente de
da vida cearense pelos dois estrangeiros [Koster e Gardner]". VIEIRA Jr., Antônio dois andares. A população conta com cerca de cinco mil almas, gente paupérrima
Otaviano. Op. cit., pp. 162 e 295-296, respectivamente. na maioria". Ibidem, p. 81.
José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 65
64

A administração da justiça no sertão [da capitania do Maranhão. Afirmou Koster de próprio punho que a sua utilização
Ceará] é, geralmente falando, muito mal distribuída. do termo "Brasil" referia-se mais especificamente às partes do
Muitos crimes obtêm impunidade mediante o paga- país que efetivamente teve a oportunidade de visitar. 97
mento de uma soma de dinheiro. Um inocente é punido Diferentemente de Gardner, Koster não possuía
se interessar a um rico fazendeiro enquanto o assassino a pretensão de realizar quaisquer espécies de estudos ou
escapará se tiver a proteção de um patrão poderoso. investigações e, prefaciando a publicação de suas notas de
viagem, escreveu que nunca teve a intenção de publicar nada
sobre o assunto. Como resultado disso, o seu olhar, portanto,
Henry Koster, Viagens ao nordeste do Brasil, 1816. 95
não apresenta a preocupação com a precisão e o rigorismo
científico que encontramos em Gardner. Por outro lado,
Durante o ano de 1810, portanto vinte e oito anos
ainda em comparação a Gardner, Koster revela um maior
antes de Gardner, o Ceará fora visitado por um outro viajante
conhecimento e integração com a cultura e o modo de vida
britânico, de nome Henry Koster. Filho de pais ingleses, mas
locais, tendo chegado inclusive a tornar-se senhor de engenho
nascido em Portugal, Koster veio ao Brasil em 1809, à procura
em Pernambuco.98 Apesar de vir ao Ceará vinte e oito anos
de clima .mais ameno para a tuberculose da qual padecia,
antes de Gardner, podemos perceber a semelhança de grande
ficando em terras brasileiras até 1811, quando voltou para a
quantidade de aspectos entre os dois relatos.
Inglaterra. Retornaria ao Brasil em dezembro daquele mesmo
A vinda de Koster à capitania do Ceará foi parte da
ano de 1811, permanecendo até 1815, quando voltaria
longa viagem que fez entre outubro de 1810 e fevereiro de
novamente para a Inglaterra. Por conta dos incentivos do
1811, vencendo mais de cento e cinquenta léguas a cavalo. Ao
brazilianist inglês Robert Southey, em 1816 era publicado em
mencionar pela primeira vez sua intenção de viajar pelos sertões,
Londres Travels in Brazil 96 , livro em que Koster relata as suas
disse que antes que precisasse voltar à Inglaterra: "Desejava
viagens pelo país que visitara já por duas vezes e para onde
realizar uma longa viagem nas regiões menos povoadas e mais
voltaria ainda naquele ano, desta vez permanecendo até a sua
incultas desse País.(...) Era minha intenção ir até o Ceará".99
morte, ocorrida provavelmente em 1820.
Como apontou Câmara Cascudo, "o Brasil de Koster é
Pernambuco e as províncias setentrionais, onde esteve", ou 97 "ln making use of the word Brazil, it must be understood that I mean to denomi-
seja, as capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Ceará e nate that portion of the country which I have had opportunities of seeing". KOSTER,
Henry. Op. cit., vol. 1, p. 14.
98 Ob servaçoes
- neste senti'do encontram-se em: OLIVEIRA, Ana Paula Silva de.
95 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução, prefácio e comen- Livros de viagem: relatos de estrangeiros sobre as províncias do Norte e a zona de
tários de Luís da Câmara Cascudo. 12ª edição. 2 vols. Rio de Janeiro, São Paulo, co~tato. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará, 2006. Segundo
Fortaleza: ABC editora, 2003, p. 177. Gmlhenne Studart, Koster "dedicou-se à agricultura nos engenhos Jaguaribe e Am-
96 KOSTER, Henry. Traveis in Brazil. Londres: Longman, Hurst, Rees, 1816. O paro, aquelle situado quatro léguas ao norte de Recife e o ultimo na ilha de Itama-
racá". STUDART, Guilherme. Estrangeiros e Ceará. 2ª ed. Mossoró: Secult!Escola
livro de Koster deve ter feito algum sucesso, dado que mereceu uma segunda edição
também publicada em Londres e apenas um ano após a primeira (Londres: Long- Superior de Agricultura de Mossoró, 1983, p. 25.
99 KOSTER, Henry. Op. cit., p. 85.
man, 1817).
66 José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso Theatro de Horrores 67

Nessa viagem, o inglês percorreu a capitania de Mapa3


Pernambuco e todas as suas antigas anexas: Paraíba, Rio CAPITANIA GERAL DE PERNAMBUCO E SUAS ANEXAS
Grande e Ceará.100 Entrando no Ceará pelo arraial de Santa
Luzia do Mossoró, passou pelos pequenos povoados de Tibau,
Areias e Cajuais até atingir a vila de Santa Cruz do Aracati, de
onde seguiu para Fortaleza.
O mapa da capitania geral de Pernanbuco e suas anexas, •"'-·
incluído por Koster na primeira edição de Travels in Brazil
publicada em Londres em 1816, mostra a representação da
concentração de vilas e povoados ao longo do litoral atlântico
da Bahia até a Paraíba, a partir de onde se tornam raros e
espaçados, reforçando a imagem dos sertões como áreas
distantes e de população rarefeita traçada pelo autor. Desse
modo, o Ceará incluía-se nas regiões que denominou "menos
povoadas e mais incultas" do Brasil.

J) "

P E R ~ A X B U C O

Fonte: KOSTER, Henry. Viagens aoNordeste do Brasil. Tradução, prefácio e comentários de Luís a
Câmara Cascudo. 12ª edição. Vol 1. Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza: ABC Editora, 2003.
ioo A capitania da Paraíba foi anexada administrativamente a Pernambuco em 1755,
tornando-se capitania autônoma em 1799. A capitania do Rio Grande esteve su- Vindo da vila de Natal, sede da capitania do Rio Grande,
bordinada a Pernambuco desde quando se desligou da Bahia, em 1701, ganhando Koster entrou na capitania cearense através da povoação
autonomia somente em 1820. A capitania do Ceará fez parte do Estado do Maranhão
de Santa Luzia, situada na beira do rio Mossoró, divisa das
entre 1621-1656, foi subordinada ao governo de Pernambuco desde 1656, quando se
desligou do Estado do Maranhão, tomando-se capitania autônoma em 1799.
68 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 69

capitanias do Rio Grande e do Ceará.101 Descrevendo a sua distância sob pena de Júlio disparar contra ele. Julgou
chegada ao pequeno lugarejo, disse ele: mais prudente parar. De minha parte acertei ser mais
lógico ir-me embora desse lugar, e saímos meia hora
Muitos dos moradores da povoação vieram perguntar- depois do meio-dia, com o sol ardente, não mais sendo
me por notícias de Pernambuco. Entre estes, um rapaz, incomodado pelo sargento. (...) Não quis ceder lugar
cujo acento denunciava ter nascido numa das provín- ante um homem que desejava fazer-me sentir a pre-
cias do norte em Portugal, com maneiras que procla- ponderância que julgava ligada ao seu cargo.102
mavam a alta idéia que fazia de sua própria importân-
cia. Disse-me ter ordem do comandante para pedir A narrativa do acirramento de ânimos entre Koster e
meu passaporte. Respondi-lhe que se o comandante o sargento-mor indica um importante fator da estruturação
quisesse ver meu passaporte, certamente enviaria um do poder no sertão: o controle exercido pelos comandantes
dos seus oficiais. O rapaz declarou ser o sargento do das tropas locais sobre a população dos lugares. Percebe-se
distrito. Repliquei não duvidar de que dizia a verdade, também a utilização da violência como meio de resolução de
mas não lhe reconhecia a autoridade, visto ele não en- co:q.flitos . Além dis1>0, um detalhe não passa desapercebido:
vergar seu uniforme, e aparecer-me nas roupas usuais tan:to Koster quanto todos os integrantes de sua pequena tropa
de camisa e ceroulas e, ajuntei que suas maneiras fa- traziam armas consigo, o que corrobora a afirmação feita por
ziam com que lhe recusasse exibir o passaporte, fosse Gardner de que nos sertões todos andavam armados.
qual fosse a consequência. Insistiu para que lhe mos- Sempre que Koster prorura oferecer ao leitor descrições e
imagens da população sertaneja, e ele sem sombra de dúvida esforçou-
trasse.Voltei-me para Júlio [criado de Koster] pergun-
se e,m fazê-lo, a referênáa ao uso cotidiano de armas é uma constante:
tando se ouvira o que o homem dizia. Júho respondeu:
"Deixa estar, meu amo". O sargento saiu e preparamos
O major vestia verdadeira indumentária de um brasilei-
nossas armas para distração e assombro de alguns pa-
r? no interior. Estava de camisa e ceroulas, alpargatas
catos moradores. Viu-o, logo depois, vir acompanhado
nos pés, espingarda ao ombro, espada ao lado suspensa
de duas ou três pessoas. Gritei-lhe que se detivesse à
por um boldrié, e uma faca de caça à cintura.103

º
1 1 Houve uma longa polêmica a respeito da fronteira entre o Ceará e o Rio Grande
Ainda nesse sentido, a descrição e a gravura apresentadas
do Norte, exatamente em relação a Mossoró. Em 1811 , por exemplo, os vereadores por Koster d,o "sertanejo" são exemplares. Segundo o viajante,
da câmara de Aracati mandaram afixar em Mossoró um edital que reproduzia uma
provisão régia de I 7 de dezembro de 1793, ordenando aos seus moradores que re-
entre os itens de uso obrigatório pelos "habitantes do sertão"
conhecessem a sua submissão judicial à vila do Aracati. "Um edital que mandou a as armas ocupam lugar privilegiado:
câmara do Aracati affi.xar no lugar da extrema de Mossoró". ln: RIC, tomo VI, 1892, i '
pp. 219-221.Ainda sobre o assunto ver o extenso estudo: OLIVEIRA, João Baptista
Perdigão de. "Os limites do Ceará: questão com o Rio Grande do Norte - a barra do º KOSTER, Henry. Op. cit., pp. 161-162.
1 2

rio Mossoró". ln: RIC, tomo VII, 1893, pp. 5-121. 103 Idem, p. 130.
70 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 71

Figura 1 pública nos sertões cearenses, identificando a fragilidade da


REPRESENTAÇAO DO SERTANEJO segurança social na região como resultante de uma estrutura
de poder senhorial. 104 No entanto, tal como fica evidenciado
1-·---·-··-···· --~" """~"'' ""''"'"''"" '"'"'" ""''"""''""'"-''l
no trecho que se segue, Koster identifica claramente a estreita
\ relação entre violência e poder na capitania:
.t
A administração da justiça no sertão [da capitania do
ii Ceará] é, geralmente falando, muito mal distribuída.
)
Muitos crimes obtêm impunidade mediante o paga-
i 1
mento de uma soma de dinheiro. Um inocente é punido
'
) l se interessar a um rico fazendeiro enquanto o assassi-
:l · !
.I .1 no escapará se tiver a proteção de um patrão poderoso.
í
}' l
!
Essa situação é mais devida ao estado feudal nessas pa-
'l'
~ ' ragens que à corrupção dos magistrados, muito incli-
nados a cumprir seu dever, mas vêem a inutilidade dos
esforços e a possível gravidade para eles mesmos.105

Ao descrever a pequena vila de Fortaleza em 16 de


dezembro de 1810, onde permaneceria até 8 de janeiro 1811,
Koster observou:
Fonte: Cromolítografia publicada pelo autor na primeira edição de Travels in Brazil.
Londres: Longman, Hurst, Rees, 1816. ln: KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste da A fortaleza, de onde esta Vila recebe a denominação, fica
Brasil., vol. 1. 12ª edição. Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza: ABC Editora, 2003.
sobre uma colina de areia, próxima às moradas, e consis-
te num baluarte de areia ou terra, do lado do mar, e uma
Na mão direita empunhava um longo chicote e, ao
lado, uma espada, metida num boldrié que lhe descia
a espádua. No cinto, uma faca(. .. ). A todo esse equipa- 104 Para Koster, muito antes de ser resultante da ocorrência de secas, a fragilidade da

mento, o sertanejo junta ainda uma pistola, cujo cano segurança social na região devia-se principalmente à "estrutura de poder patriarcal e
patrimonialista do mundo rural, onde os caprichos pessoais, os interesses de um in-
longo desce pela coxa esquerda, e tudo seguro. divíduo ou família, sobrepunham-se facilmente às regras a princípio impessoais do
sistema de organização social". FERREIRA, Angela Lucia; DANTAS, George A. F.
& FARIAS, Helio T. M. "Adentrando os sertões: considerações sobre a delimitação
Assim como faria Gardner quase três décadas depois, do território das secas". ln: Scripta Nova - Revista e/ectrónica de geografia e cien-
cias sociales. Universidad de Barcelona, vol. X, n. 218 (62), agosto de 2006.
Koster comenta sobre a precariedade de imposição da justiça
105 KOSTER, Henry. Op. cit., p. 177.
72 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso 1heatro de Horrores 73

paliçada, enterrada no solo, para o lado da Vila. Contém que o interior da capitania inspirava temeridade e merecia
quatro peças de canhão, de vários calibres, apontados vigilância. 108
para muitas direções. Notei que a peça de maior força Nesse sentido, a projeção e desmandos dos Feitosa nos
estava voltada para a Vila. A que estava montada para sertões da capitania cearense nãq passaram ao largo da pena
o mar, não tinha calibre suficiente para atingir um na- do viajante, confirmado por Câmara Cascudo como "Koster, o
vio no ancoradouro comum. O armazém da pólvora está exato". Anotou nosso curioso visitante em 1810:
noutro ponto da colina e é visto do porto. 106
A família dos Feitozas ainda existe no interior desta
Capitania [do Ceará] e na do Piauí, possuindo vastas
Funcionando como sede do poder régio na capitania, a propriedades, cobertas de imensos rebanhos de gado.
"Vila da Fortaleza" cumpria o papel de centro administrativo No tempo de João Carlos [Augusto de Oeyhausen Gra-
no Ceará e teria a sua posição de destaque na governação venburg, capitão-mor governador do Ceará de 1803 a
cearense reafirmada quando se tornaria capital da capitania 1807], o chefe dessa família chegara a tal poder que
erp 1799, ano em que fir,ialmerite o Ceará ganha autonomia supunha estar inteiramente fora do alcance de qual-
administrativa em relação a Pernambuco, tornando-se quer castigo, recus~ndo obediência às leis, tanto civis
dpitania autônoma. q comentário de Koster sobre a Fortaleza , como criminais, fossem quais fossem. Vingavam pes-
de Nossa Senhora da Assunção mostra-se a um só tempo sutil
1 • ' soalniente as ofensas. Os individuos condenados eram
e mordaz: protegida p~lo lado do mar por baluarte de areia e assassinados publicamente nas aldeias do interior. O
separada da vila por p~içada107 en~errada no solo, a fortaleza pobre homem que recusasse obediência às suas ordens
tinha o seu canhão de mais grosso calibre apontado na direção
estava destinado ao sacrifício e os ricos, que não per-
da vila a qual tinha cotno função defender.
tencessem ao seu partido, eram obrigados a tolerar em
I>ara além da provável permanência da memória dos
silêncio os fatos que desaprovavam. Os Feitozas são
temidos ataques indígenas ou da explicação tática de uma
possível investida pela retaguarda, o fato de o canhão mais descendentes de europeus, mas, muitos dos ramos têm
poderoso do forte - que sediava não somente o governo da sangue mestiço e possivelmente raros são os que não
capitania e o cofre do Erário Régio, como também a única teriam a coloração dos primitivos habitantes do Brasil.
companhia de tropas de linha em serviço na capitania -
estar direcionado para ' o sertão sugere simbolicamente
108 "Com o canhão mais potente voltado para o interior do aglomerado urbano, as

autorid11des locais revelavam um temor contínuo diante de agressões por parte dos
indígetias. Talvez não seja exagero imaginar que a posição do artefato bélico expres-
106 Idem, p. 172. sava um modo repressivo de manter a ordem social, intimidando o surgimento 'de
107
Paliçada: tapume feito com estacas fincadas na terra; obstáculo para defesa mili- rebeliões e ondas de descontentamento popular. Por butro lado, pode-se pensar em
tar. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: mais um descuido administrativo". SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Forta-
Nova Fronteira, 1985, p. 348. leza: imagens da cidade. Fortaleza: Museu do Ceará,,2001, p. 31.
'
74 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 75

O chefe da família era Coronel de Milícias, e podia, ao públicos, dentre eles as patentes do oficialato das milícias e
primeiro chamado, pôr em armas cem homens, o que ordenanças locais.
equivale a dez ou vinte vezes esse número numa região A citação de Geertz que inicia este capítulo refere-se
perfeitamente despovoada.109 à atenção exigida pela leitura de um relatório etnográfico,
evocando a atitude de perplexidade perante o desconhecido
Desse modo, assim como os Feitosa, poderosas e, desse modo, a noção de estranhamento: a percepção do
famílias sertanejas cearenses descumpririam as leis régias olhar estrangeiro como registro dotado de particularidades,
e desrespeitariam as autoridades locais, impondo os seus como espreitador do incomum, do não familiar aos olhos do
desígnios através da posse de vastas propriedades, rebanhos observador. Geertz utiliza-se dos termos máscara e entalho
e do comando de bandos armados, sendo que, no caso dos como metáfora para uma leitura literal ou superficial das
Feitosa, o próprio chefe da família era coronel de milícias. impressões recolhidas a partir da observação da realidade
Como espero ter apontado, através da leitura das social. Nesse sentido, através dos relatos de Koster e Gardner
notas de viagem dos viajantes estrangeiros que passaram nas primeiras décadas do século XIX, talvez a máscara a ser
pelo Ceará no início do século XIX, não obstante o cuidado quebrada ou decifrada deva ser a máscara da violência. Seus
que devemos ter com as especificidades que a análise relatos . nos convidam a buscar perceber através de lentes
interpretativa desse tipo de fonte exige, percebemos a menos foscas e opacas esse que foi um aspecto tão longevo
configuração da violência como tema recorrente, assim quanto profundo da realidade setecentista cearense.
como também é recorrente a descrição de uma sociedade
belicista, onde o uso de armas não só é bastante difundido
como chega a ser indiscriminado e a manutenção da justiça
régia se vê constantemente ameaçada pela debilidade da
- JU
açao . d.ioa º
. 1.11 sornado a isso,
. amb os viajantes acabam por
ressaltar o entrelaçamento entre o exercício da violência e
a estruturação do poder nos sertões, intimamente ligado
ao sistema de propriedade fundiária e à ocupação de cargos

109
KOSTER, Henry. Op. cit., p. I 84.
110
"Koster e Gardner representaram um Ceará onde a violência era vulgarizada,
matizada sob o pincel da inoperância e manipulação do poder instituído e em se-
veros valores que puniam qualquer ofensa moral e patrimonial com sangue. Apesar
de separados por décadas, os britânicos observadores construíram discursos que se
aproximavam e evidenciam poucas alterações nó que tange ao uso e presença de
assassinatos e agressões, interagindo seus discursos com as falas e memórias dos
nativos moradores cearenses". VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. Op. cit., p. 168.
4
UM ESCANDALOSO THEATRO DE
HORRORES
A CAPITANIA DO CEARÁ SOB O
ESPECTRO DA VIOLÊNCIA

Essa região, o sertão, caracterizou-se de duas formas


ao longo desse tempo: como uma área fora da coloniza-
ção, e logo depois como uma nova sociedade colonial.
(... ) Sua conquista foi executada visando a exploração
econômica de novas áreas, mas também como uma
válvula de escape para os muitos tipos sociais conside-
rados indesejáveis pela sociedade colonial açucareira.
Assim, vadios e pobres de todas as cores foram empur-
rados para essa região tanto para atuarem como mão-
de-obra para a conquista em si, mas também como uma
alternativa à crescente população livre e pobre das vilas
açucareiras. Tal situação caracteriza o sertão como uma
região de fronteira, construída corno resposta aos pro-
blemas da sociedade colonial mais antiga, a açucareira.

Kalina Vanderley111

Como procurei mostrar, em suas anotações de viagem


os britânicos Henry Koster e George Gardner apontaram

111 SILVA, Kalina Vanderlei et alli. "Tipos sociais na conquista do sertão das ca-
pitanias do Norte do Estado do Brasil, séculos XVII e XVlll". ln: Revista Mneme,
volume 5, número 12, out./nov. 2004.
78 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso 1heatro de Horrores 79

a violência como uma característica geral dos sertões 4.1 Vagabundos e ladrões, assassinos e facinorosos ...
brasileiros que se fazia presente nas terras cearenses durante
as primeiras décadas do século XIX. Contudo, bem antes das As queíxas dos administradores locais contra levas de
solas daqueles atentos viajantes britânicos palmilharem as homens "vadios", "facinorosos", comuns em toda a
estradas sertanejas cearenses, considerável documentação colônia, teriam assumido nas regiões de pecuária pro-
mostra que ao longo de todo o século XVIII o governo da porções maiores. Havia, apesar de muitos potentados
capitania andava às voltas com a grande ocorrência de necessitarem de homens para compor exércitos parti-
crimes, a vulgarização do uso de armas e a larga impunidade culares e muita terra potencialmente cultivável, pouca
que grassava no Ceará, especialmente nos seus sertões. Essa ou nenhuma sobra para aqueles qualificados de "vadios":
situação obrigou a constante publicação de leis, ordens, alvarás
mestiços, índios aculturados; homens sem terra e sem
e cartas régias dirigidas à capitania-geral de Pernambuco
trabalho. Nas queixas oficiais e particulares contra esta
e ao governo do Ceará-Grande determinando medidas de
camada de individuas enfatizava-se sua inconveniência
vigilância sobre a população, regulamentação e controle
do porte de armas, combate ao crime e à impunidade. Tais enquanto subvertedores da ordem que, no caso, consis-
medidas buscavam garantir o "bom governo" da "república", tia nas agressões contra os bens - gado e meios de sub-
viabilizando assim a manutenção da "polícia" na capitania, sistência - e a vida dos potentados e seus agregados. As
entendida como o bom funcionamento da sociedade112 , e a preocupações da administração local com a necessidade
desejada produção colonial, com a consequente arrecadação de construir presídios ou de reforçar os poucos existen-
dos reais dízimos para os cofres de "Sua Magnânima Justeza", tes deveriam estar associadas às ameaças constantes das
o rei de Portugal. levas de desocupados que vagavam pelos sertões.

Maria Auxiliadora Lemenhell3

Pelo menos desde fins do século.XVII e primeiras décadas


do século XVIII o rei português e o seu Conselho Ultramarino
recebiam representações de diversos administradores coloniais
câmaras locais e particulares queixando-se do grande númer~
112 Segundo Hespanha, na acepção do período o termo "polícia" correspondia a "ati-
de cr~mes e da desafiadora situação de impunidade que se lhes
vidade do poder tendente a organizar as actividades económicas e sociais". Ainda
segundo este autor, "Nos finais do Antigo Regime surge, por parte do poder, urna seguia nos sertões das capitanias do norte.
intenção nova de organização activa ( ... ).Esta nova intenção é designada por "polí- . A_ carta régia de 20 de janeiro de 1699, que se
cia" e é tida como visando impor à desordem dos interesses particulares uma disci- const1tm em uma das primeiras tentativas de organizar
plina visando o interesse público, que surge, deste modo, como algo de contraditório
ou oposto ao interesse dos particulares". HESPANHA, António Manuel. Poder e
instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian,
11 3
1984, p. 15. LEMENHE, Maria Auxiliadora. Op. cit., p . 36.
80 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 81

administrativamente os sertões conquistados, pode ser ·Passados alguns anos, por razão de novas reclamações
tomada como exemplo. 114 No seu texto, o rei de Portugal, D. que lhe haviam representado, em 1729 o rei português D. João
Pedro II, esclareceu que se dirigia ao governador da capitania V ordenava a Dom Manuel Roulim de Moura, governador e
de Pernambuco e anexas por conta de reclamações que lhe capitão-general de Pernambuco: "procureis com a maior
haviam sido feitas acerca da falta "de quem administre e mais eficaz diligência evitar todos os malefícios, que se
justiça aos que vivem nos dilatados sertões ( ... ), fazendo cornetão nessa Capitania, mandando prender aos culpados
tão exorbitantes excessos, que obrigam aos que amam a neles, castigando-os segundo a gravidade de seus crimes, para
quietação a retirarem-se, ficando as terras só povoadas . que por este meio se atalhem as desordens, mortes, insultos e
dos malfeitores". Para mitigar aquela sorte de problemas extorções que fazem os ditos criminosos, e cessem as repetidas
o monarca resolveu ordenar a criação de freguesias e a queixas que há neste particular" .116
concessão de patentes e poder militar aos mais poderosos A documentação acima, portanto, aponta para
senhores sertanejos: um quadro geral de violência nos sertões da capitania de
Pernambuco, dentre os quais o Ceará. No entanto, em meio à
... em cada freguesia das que tenho mandado formar correspondência da capitania-geral de Pernambuco, a capitania
pelos dito~ sertões, haja um juiz à semelhança dos ju- do Ceará aparece como dotada de intrigantes especificidades a
ízes da vintena, que há n'este Reyno, o qual será dos este respeito. Senão vejamos.
mais poderosos da terra; e para que este viva seguro Em 1718, "resoluto de que os ciganos e ciganas fossem
fazendo seu ofício. Hey por bem que se crie em cada extraminados do Reino, pelos furtos e mais delitos, que
uma das taes freguesias um capitão-mór e mais cabos frequentemente cometião'', o rei D. João V determinou que ·
de milícia, e que n'estes postos se nomeem aquelas os ditos ciganos "fossem embarcados para as conquistas da
pessoas, que forem mais poderosas, os quais serão Índia, Angola, Santo Thomé, Ilha do Príncipe, Cabo Verde,
obrigados a socorrer e ajudar aos juízes, dando-lhe Ceará e Maranhão", ordenando ao governo pernambucano que
todos os ciganos que fossem destinados àquela capitania de
toda a ajuda e favor para as diligências da justiça, co-
Pernambuco "sejão mandados para o Ceará".117 Por meio dessa
minando-!h e penas se faltarem a' sua ob ngaçao
. - ...115
determinação real percebemos que a capitania do Ceará, que
estava em pleno processo de conquista portuguesa através da
11 4 "As primeiras medidas voltadas a organizar o sistema administrativo, nos sertõ~s
guerra aos índios e da doação de sesmarias para a instalação de
ocupados, foram determinadas pela Carta Régia de 20 de janeiro de 1699, que auton-
zava a criação de freguesias, de juízes escolhidos entre os mais ,ricos, além da função
do capitão-mor e seus auxiliares, os cabos de milícias" . JUCA, Gisafran Nazareno 116 Idem, pp. 345-346.
Mota. "O espaço nordestino: o papel da pecuária e do algodão". ln: SOUSA, Simone 117
Idem, p. 345. Acerca do assunto, veja-se também: CARTA do governador da
de (org.). História do Ceará. 2ª edição. Fortaleza: Demócrito Rocha, 1994, p. 19.
capitania de Pernambuco, D. Manoel Rolim de Moura, ao rei D. João V, sobre a
115Informação Geral da Capitania de Pernambuco em 1749. In: Annaes da Biblio- expulsão dos ciganos para o Reino de Angola, devido os roubos e maleficios cometi-
teca Nacional do Rio de Janeiro, vol. :X:XVIII, 1906, Rio de Janeiro, 1908, pp. 343- dos na dita capitania, 17 de julho de 1725. Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos,
344. Pernambuco, caixa 31, documento 2.847.
82 José EudesArrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 83

fazendas de gado, aparece como um imenso sertão para onde Uma outra carta real, desta feita destinada ao
deveriam ser enviados elementos incômodos classificados governador de Pernambuco Duarte Sodré Pereira, em 1729,
como "vadios" e "criminosos", como foram rotulados os tais trazia o mesmo tipo de preocupação sobre a dinâmica de
"ciganos e ciganas" de que nos fala D. João. tão peculiar fluxo migratório intra-imperial, motivado pelas
Essa consideração fica ainda mais clara quando em queixas dos vassalos moradores nas suas conquistas. No seu
1724 o mesmo monarca novamente procurava responder aos texto o rei ordenava que o dito governador deveria "mandar
apelos dos moradores de Pernambuco: transportar para o Reino de Angola alguma gente, que há nessa
Capitania [de Pernambuco] da muita, que nela há vadia e da
Faço saber a vós Dom Manoel Roulim de Moura, governa- do Ceará, em que se contam muitos facinorosos de muito mau
dor e capít.ão general da capitania de Pernambuco que os procedimento, e ações muito escandalosas" .120 Preocupado
oficiais da câmara da cidade de Olinda me fizeram presen- "sobre se degradarem para Angola os vadios e prejudiciais",
te em carta de dezesseis de dezembro do ano passado em D. João V acaba fazendo uma instigante comparação entre
como para as capitanias d'este governo forão extrarninados as capitanias de Pernambuco e Ceará: enquanto a primeira
os ciganos por malefícios, que fizeram n'este Reyno, e como encontrar-se-ia povoada de muita "gente vadia'', a segunda
nam teve emenda o seu vício, e a terra é tam dilatada, tem teria como especificidade o elevado número de "facinorosos"
feito tantas exhorbitandas de furtos, que se narn podem entre as suas gentes.
tolerar, e que assim devia eu mandá-los para a capitania do Décadas depois, no ano de 1761, vinha a público no
Cyará, aonde me poderarn fazer algwn servíço na conquis- Ceará uma determinação real que visava:
ta do Gentio Bárbaro, e ficará esse povo com algum socego,
...determinar que os ciganos que se achasem neste Es-
e do contrário se seguirá um grande dano, pois já se experi-
tado do Brasil vivessem conforme os mais vasalos e sem
menta nas mortes, que tem feito.11 8
os tráficos de [ilegível] de escravos cavalos e mais coisas
de que costumão fazer com justos e enganos de suas
Observamos aqui que após o envio de "ciganos" 1
para Pernambuco em 1723, no ano seguinte em virtude das !
reclamações dos vereadores de Olinda sobre a conduta daqueles 1 ça ( ... ). Indivíduos estranhos, de procedência desconhecida, pele morena, cabelos
novos moradores do termo da sua vila, novamente aqueles longos e barbas hirsutas, o que mais inquietava neles era o fato de andarem sempre
1
degredados, que gozavam do infame estatuto de "criminosos" juntos, em grupos, "aos magotes". Eram tidos por inveterados ladrões das estradas,
e "perturbadores", deveriam ser remetidos ao Ceará. Desse sempre às voltas com o roubo de cavalos. Apresentavam acentuada solidariedade de
grupo, pois tinham a uni-los, mais do que tudo, a identidade cultural e a "nacionali-
modo, mais uma vez a vinda ao Ceará funciona como forma de
dade" comum". SOUZA, Laura de Melo e. Desclassificados do ouro: a pobreza mi-
punição a elementos indesejados. 119 1
neira no século XVIII. 2ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1986, p. 197. Vejam-se também:
ALFARO, Antônio Gómez. Ciganos e degredas: os casos de Espanha, Portugal e
118
Inglaterra (séculos XVI-XIX). Tradução: Fernanda Barão e Isabel Fernandes. Prefá-
lbidem, pp. 345. cio de Maria Augusta Lima Cruz. Lisboa: Centre de Recherches Tsigaines, 1999.
u 9 "Como ocorre ainda hoje, o simples fato de ser cigano era motivo de desconfian- 1
120
Ibidem, pp. 344.

1.

l
Um Escandaloso Theatro de Horrores 85
84 José Eudes Arrais Barroso Gomes

artes e que aos mesmos se não consentissem armas de acampamento de ciganos, com cerca de doze homens,
qualidade alguma nem ainda as defensivas, e não se mulheres e crianças. Não são gente rara no interior do
sujeitando a tão justa determinação fosem presos e se Brasil, porque os encontrei ou deles ouvi falar em quase
lhes sentasse praça de soldados para hirem para os pre- todas as cidades que visitei. São em geral detestados
sídios e que se lhes tirassem os filhos e judicialmente se pelo povo comum, mas estimulados pelos mais ricos,
repartissem pelos moradores para melhor os educarem como se dava nesta ocasião, porque se acamparam em-
a maneira de órfãons e como alguns se refugiarão das baixo de grandes árvores perto da casa de um major da
praças em que servião procurando o centro dos serto- Guarda Nacional, proprietário de grande plantação de
ens, onde além de continuarem na mesma vida pode- cana-de-açúcar ao pé da Serra. (...) Raramente se apro-
rião intentar coisas mais perniciozas não só ao bem co- ximam das grandes cidades da costa, preferindo os dis-
mum do povo, mas também a tranquilidade dele se me tritos mais escassamente povoados e, por isso mesmo,
recomenda da parte do sobredito senhor [o rei] grande mais sem garantias legais. Andam errantes de aldeia em
vigilância sobre o referido (...) com toda cautella...121 aldeia, de fazenda em fazenda, comprando, vendendo e
barganhando cavalos e jóias diversas. Como os da Eu-
Segundo Antônio Bezerra, em 16 de setembro de ropa são frequentemente acusados de roubar cavalos,
1816 o capitão-mor governador do Ceará, Manuel Ignácio de aves ou o que quer em que as mãos possam por.123
Sampaio, enviou uma portaria-circular aos juízes ordinários
de todas as vilas cearenses "estabelecendo o modo por que se Somados aos documentos acima relacionados a
haviam de haver com os ciganos, a que ele qualificava de raça ciganos, que talvez possam ser considerados inusitados
de vadios e perturbadores do sossego público". 122 ou pouco representativos, uma extensa série de relatos e
Um trecho das anotações do estudioso escocês George correspondências coloniais que atravessa décadas aponta a
Gardner sobre a sua passagem pelo Ceará em fins da década de violência como parte do cotidiano na capitania do Ceará.
1830 nos sugere o tipo de sorte que aqueles grupos, ou pelo Por conta das "queixas" dos oficiais da câmara de São
menos parte deles, tiveram nos sertões cearenses: José de Ribamar sobre as "repetidas mortes" ocorridas na
capitania, uma ordem régia 9 de janeiro de 1711 determinou
Certo dia, perto da serra de Araripe [situada na região que a correição do Ceará fosse feita pela ouvidoria da Paraíba,
do Cariri, sul da capitania do Ceará], passei por um ao invés da de Pernambuco. Segundo a representação realizada
em nome dos moradores da vila, as correições na capitania
viam-se dificultadas por conta das suas grandes distancias e
121 APEC. Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias do péssimo estado dos seus caminhos.124
da câmara da vila de Icó ( 1761- 1796), Carta de 25 de novembro de 1761, fls. 20-
20v.
122 BEZERRA, Antônio. O Ceará e os Cearenses. l ª edição de 1906. Edição fac- 123
GARDNER, George. Op. cit., pp. 96-97.
similar. Coleção Biblioteca Básica Cearense. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcân- 124 BCUC, fls. 91-9l v e seguintes.
tara, 2001, p. 18-19.
1
l

1
86 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 87

Outro exemplo é uma carta-resposta enviada em 27 de de Nossa Senhora da Assunção, desenho da primeira planta da
novembro de 1731 ao ouvidor do Ceará acerca do envio de tropas vila realizado por ocasião da sua fundação em 1726, atribuído
para a capitania cearense, na qual o Conselho Ultramarino ao capitão-mor Manuel Francês, esforçou-se em ressaltar
fez questão de observar que o auxílio militar às diligências da as edificações que representavam a presença do poder
justiça "se carece muito no Ceará por ser o país a que se retirão metropolitano na capitania: fortificação militar, pelourinho;
os delinquentes e mal feitores de todo o Brasil".125 casa de câmara, forca e igreja matriz. 129 A profusão de
Note-se que aquele tipo de queixa não era novidade na enormes cruzes espalh adas entre as casas da vila sugere, para
capitania: Em 1 708, o próprio governador interino do Ceará, além da intenção de evidenciar a propagação da fé cristã e a
Carlos Ferreira, foi alvo de uma tentativa de assassinato. 126 anterioridade do estabelecimento dos primeiros moradores,
Além disso, segundo Tristão de Alencar Araripe, naquele uma forte presença da morte no cotidiano do povoado.
mesmo ano a câmara de Aquiraz pediu ao rei a criação de seis
alcaides para a prisão d.o s criminosos na capitania "por não
serem para isso bastantes os 50 ou 70 soldados do presídio;
pois desde 1700 até então havia impunes 214 delinquentes,
que não eram perseguidos por falta de cadeia e de agentes
policiais".127 Tristão de Alencar, que ocupou o cargo de chefe
de polícia no Ceará na década de 1840, citou ainda como
exemplo da "impotência da justiça e da extensão do mal da
impunidade" o fato de que somente na vila de Icó "do espaço
de 60 anos, a contar de 1735a1795, havia para cima de 1.000
criminosos, sendo a maior parte por fato de homicídio", e que
a câmara de Aquiraz em 1737 representou ao rei que muitos
dos habitantes do Ceará viviam "de furtos com graves crimes
os quais não eram punidos pela largueza dos sertões, e por
valerem-se de homens poderosos". 128
Diante de um quadro geral de violência e impunidade
na capitania cearense, o autor da Planta da Vila de Fortaleza

129
125 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 2, Documento 119. "Cabe observar a convergência entre câmara e pelourinho, dispostos um em fren-
te ao outro, reforçando mutuamente a administração colonial e a autonomia política
126 "Tentativa de assassinato do governador interino Carlos Ferreira: auto de vistoria
subordinada aos ditames metropolitanos. Também parece sintomática a proximida-
na pessoa do offendido", 13 de agosto de 1708. ln: RIC, pp. 215-216.
de entre a forca e o forte, insinuando a presença do Estado português sob a forma
121 ARARIPE. Tristão de Alencar. História da província do Ceará: desde os tempos
da pena capital - infligida aos detratores da lei - e das tropas militares - aparato
primitivos até 1850. 2ª ed. anotada. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1958, p. 170. fundamental no exercício da violência institucional". SILVA FILHO, Antônio Luiz
128 Idem, p. 170. Macedo e. Op. cit., p. 24.
1
i
\[

José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 89


88

Mapa4 era atribuído através das patentes militares de comando muito


PLANTA DA VILA NOVA DA FORTALEZA DE N . S. DA mais para satisfazer seus interesses de dominação pessoal e
ASSUNÇÃO (c.1730) para a inflação da sua honra 131 ou prestígio particular do que
l para a punição imparcial de criminosos. 132
1 Nesse sentido, o caso do coronel Jorge da Costa Gadelha
1
i parece ser emblemático. Segundo denúncia datada de 1734,
feita pelo ouvidor geral da capitania do Ceará, Pedro Cardoso
1
l
de Novais, por trás da projeção e fortuna do coronel Jorge
da Costa Gadelha escondia-se uma vida de crimes, roubos,
assassinatos, subornos e impunidade:
1

1 Pois vindo este homem das partes de Pernambuco


í muito pobre e só com um criolo seu ou alheio, por
l
mortes e outros ~rimes, e estando a ser vaqueiro de
um seu cunhado Antônio da Costa Barros, lhe roubou
1

1 a fazenda falsificando a marca com que ferrava osga-



dos e com isto se foi alando, e casou com uma neta de
Fonte: PLANTA da Villa Nova da Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção da
capitania do Ciará Grande q. S. Mag.de q. Deos g.de foi servido mandar criar, c.1730. uma índia caboucla.
Arquivo Histórico Ultramarino, Cartografia/Iconografia, Brasil, Ceará, M848. Conseguiu ser coronel da cavallaria desta ribeira por
dois cavalos que deu ao capitão-mor desta capitania
Assim como nas demais capitanias da América pela patente, sem ter mais serviços, e com este posto se
portuguesa, durante o século XVIII a prisão de criminosos era
~
legada às tropas militares da capitania. Dado o limitado número 1
131
de praças e o crônico estado de precariedade das tropas de primeira ! Sobre a significativa alteridade do conceito de "honra" no Antigo Regime ibérico
e a sua definição como "principio discriminador de estratos y comportamientos" e
linha na capitania, o controle da ordem pública no Ceará era "principio distribuidor dei reconocimiento de privilégios" ver: MARAVALL, José
exercido basicamente pelos comandantes de distritos, milícias 1 Antônio. "Funcion dei honor y regimen de estratificación en la sociedad tradicional".
e corpos de ordenanças locais. 130 Dado que o oficialato dirigente In: Poder, honor y é/ites en e/ siglo XVII. Madrid: Siglo XXI, 1989, pp. 13-145.
1
das tropas auxiliares e ordenanças era formado exclusivamente i 132
Idem. Analisando a área do açúcar Kalina Vanderley indica o forte caráter de hie-
pelos mais poderosos senhores de cada localidade, verificava-
se que frequentemente estes utilizavam-se do poder que lhes
ii rarquização social das tropas militares das linhas auxiliares, ressaltando que os oficiais
das tropas auxiliares, todos grandes senhores, "são os responsáveis pelos abusos sobre
1 os colonos a seu comando, e, mais importante, exercem completo domínio sobre os
1 colonos livres e pobres de sua jurisdição, tanto quanto seus próprios criados e agrega-
i
dos". SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colo-
130GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d'El Rey: tropas militares, milita- 1 nial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e
1
rização do cotidiano e poder na capitania do Ceará, século XVIII. (texto inédito). XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001, p. 92.
!
11
1
1
í
90 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 91

fez muy soberbo, discompondo e se vadyjando os ho- Fonseca Machado de que esteve em perigo de vida, e
mens do seu regimento e matando-se aqui hum Xavier está livre na forma acima. Prendendo lhe um juiz a
de Faria primo de sua mulher, e deixando uma filha um seu cunhado criminoso, veio à vila a tempo que
natural casada com um fulano da Sylva, que por nome se estava vereação, e montado em um cavalo che-
não perca, o qual dizem mandara matar o sogro para gou à porta das casas da camara, por serem térreas,
se ficar com quatro ou 5 mil cruzados que lhe guardava e descompôs o juiz e a camara de bêbados e outros
em dinheiro querendo-se averiguar este delito, o veio injuriosos nomes, e por tudo passava sem castigo.
buscar a mulher do imputado matador com bastante Indo por cabo de uma diligência e entrando despro-
dinheiro, pelo qual sufocou tudo, ficou o caso sem cas- positadamente o discompor um dos homens que
tigo, e ele mais opulento, e a imitação deste caso sopi- consigo levava se avançou a ele e lhe deu uma grande
tava muitos procedimentos, fazendo com isto negócio dentada no rosto. A um filho de João da Silva Salga-
e conveniências.133 do tratou muito mal de pancadas sem motivo para
tanto. Sendo juiz tirou uma devassa de um tiro que
Mas isto não éra tudo. Ainda segundo a circunstanciada se deu de noite em um homem, e nela ficou culpado
denúncia do ouvidor: e se livrou como quis. Sendo juiz de órfãos largou
ou vendeo o ofício a um Manuel Pereira do caso, tal
Costuma, vendo cavalo ou besta boa, mandá-la es- como ele, por cento e cinquenta mil réis que lhe deu.
conder e comprá-la perdida por muito menos do seu Tornando a ser juiz de órfãos, por subornos notó-
valor, e depois logo aparecem em sua mão, tem fi- rios e manifestos, entrou a proceder de sorte q ue o
cado culpado em [ilegível] por matar gados alheios culpei, e o tenho preso, tendo-se isto por uma coisa
para comer, mas tudo vencia e sufocava por ser aqui grande, em razão de ser pessoa que sempre fez o que
temido, e reputado poderoso. Estando de camarada quis, como ele mesmo está dizendo, em zombaria
ccim hum homem que por nome não perca, em um minha. De próximo sem coisa nem motivo bastante
curral e este tirando leite de uma vaca, aleivosa e tendo nas casas que servem da câmara, pelas não ha-
atraiçoadamente lhe deu hum tiro, de que esteve em ver próprias, umas razões com um Antônio Teixeira,
evidente risco de vida; e se livrou como, e da sorte sem atenção ao lugar e boa gente que nele estava, lhe
que quis, e se costumava sempre aqui fazer por ca- abriu a cabeça com uma bengala; e logo me veio pas-
valo, ou dinheiro. No meio desta vila [do Aquiraz]
soberba· e desaforadamente sem motivo algum deu
l sar pela porta a cavalo mofando e falando alto sem
me ter respeito. É de muito má consciência, avarento
uma facada em um juiz de órfãos por nome João da t em extender as balizas das suàs terras, destemente
1 às justiças, soberbo, rixoso e revoltoso; rico com o
1 alheio, e metido a poderoso; de que tem sido ocasião
133 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 3, Documento 159.

l
José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 93
92

os interesses particulares com que Vossa Majesta- Apenas poucos meses após a morte do capitão-mor do
de tem sido servido nesta capitania; e como esteja Ceará, Francisco de Miranda Costa, que morreu rapidamente
tão mal criada, carece muito do seu real serviço, que por doença que desconhecemos, em novembro de 1748 o
se vão castigando alguns, para exemplo de outros; governador e capitão-mor de Pernambuco, D. Marcos de
mandando proceder a devassa por estes casos, e pelo Noronha, imprimia sobre cera quente o sinete de suas armas
que não forem dela; por de alguns estar livre incivil- para lacrar uma carta que ordenou que seguisse para Lisboa
mente, e dos mais de terem sumidos os processos a na primeira embarcação com destino àquele porto. Através de
seu respeito ... 134 tal correspondência informava ao rei D. João V, através do seu
Conselho Ultramarino, o mencionado falecimento falando da
necessidade de nomear o quanto antes um novo capitão-mor
Contudo, o mais surpreendente neste caso é o fato de para o governo do Ceará.Ao comentar sobre os possíveis nomes
que Jorge da Costa Gadelha recebeu a doação de pelo menos para ocupar o cargo, D. Marcos asseverou que "sem embargo de
quatro sesmarias, foi vereador, juiz ordinário e juiz de órfãos haver naquele distrito um mestre-de-campo de auxiliares e um
na câmara de Aquiraz e ocupou nada menos do que os mais sargento-mor do mesmo terço e ambos pretenderem o lugar
elevados postos da hierarquia das tropas milicianas: coronel e de capitão-mor, não pudera acomodar o nomear a nenhum
mestre-de-campo. 135 deles, porque eram ambos de gênios tão inquietos, que seria
Em 1746, o capitão-mor governador da capitania-geral l meter naquela capitania uma grande desordem se algum
de Pernambuco, D. Marcos de Noronha, relatava as grandes l: destes dois homens fosse encarregado do governo dela".1 37
dificuldades encntradas pela junta de justiça da capitania de I' Assim o governador de Pernambuco desqualificava os oficiais
f que já serviam no Ceará, prováveis substitutos para o cargo,
Pernambuco "para julgar os crimes atrozes nas comarcas de 1
Ceará, Paraíba, Alagoas e Goiana, e os problemas ocorridos I, para que pudesse sugerir ao rei um de seus oficiais, o sargento-
devido às distâncias" .136 mor Pedro de Morais Magalhães que, com efeito, tomou posse
do posto de capitão-mor do Ceará naquele mesmo ano.
Todavia, o que mais chama atenção na carta enviada por
D. Marcos de.Noronha ao Consellio Ultramarino, correspondência
134 Idem. elaborada a partir de informações contidas em várias cartas que
lJS PINHEIRO, Francisco José. Formação social do Ceará: o papel do Estado no
llie haviam chegado da capitania do Ceará, é a impressionante
processo de subordinação da população livre e pobre (1618-1820). Tese de douto- descrição que faz daquela capitania subalterna:
rado, Universidade Federal de Pernambuco, 2006, pp. 77-79.
136 CARTA do governador da capitania de Pernambuco, conde dos Arcos, D. Mar- ...na capitania do Ceará a maior parte dos habitantes são
cos José de Noronha e Brito, ao rei D. João V, sobre a Junta de Justiça da capitania homens criminosos, que buscão aqueles sertões para ne-
de Pernambuco, com jurisdição para julgar crimes atrozes nas comarcas de Ceará,
Paraíba, Alagoas e Goiana, e os problemas ocorridos devido às distâncias, 30 de
julho de 1746. Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Pernambuco, caixa 64, do-
137 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 5, Documento 333 .
cumento 5.445.
José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso Theatro de Horrores 95
94

lesse refugiarem, e nesta circunstância nem todos os ho- reais por conta de suas grandes distâncias, matas fechadas
mens tem a capacidade, que baste para aquele governo, e, sobretudo, do evidente temor por parte das autoridades
coloniais da vingança "quase infalível" dos criminosos no
0 qual necessariamente se deve encarregar a pessoa que
Ceará. Atente-se que ao falar das dificuldades em realizar
se faça guardar respeito e a quem temão os mesmos mo-
diligências e prisões nos sertões, tentando assim justificar a
radores, porque senão serão mais contínuos os roubos e
sua ingerência concernente à relatada situação de desordem,
as mortes, que em grande distância de mais de duzentas o capitão-mor de Pernambuco menciona que continuamente
e cinquenta léguas não podem embaraçar os governado- passava ordens a seus subordinados "para que se prendão os
res ainda que continuamente se estejão passando ordens delinquentes e que ·se remetão para serem castigados como
para que se prendão os delinquentes e que se remetão merecerem'', o que denota a anterioridade daquele quadro e da
para serem castigados como merecerem, que a execu- expedição de determinações que visavam coibir a ocorrência
ção destas obras encontram mil embaraços, uns pelas de crimes e a impunidade nos sertões cearenses.
grandes distâncias, e outros pela espessura dos mat~s, Em 1763, portanto quinze anos depois da escritura
donde ordinariamente existem os criminosos e a ma10r daquela carta, o doutor Victoriano Soares Barbosa, que
de todas as dificuldades é haver quem o faça alguma pri- acumulava os cargos e os salários de ouvidor-geral do crime
são, porque não só temem os homens, a quem estas se e civil em toda a capitania do Ceará-Grande e de provedor da
encarregão o perigo a que se expõem quando vão fazer Fazenda Real139 da capitania, montava cavalgadura emAquiraz,
estas diligências, mas o seu maior temor é a vingança, º
onde ficava sediada a Ouvidoria Real14 do Ceará, para visitar os
que despois lhe sobrevem, e como esta é quase infalível,
0 temor acovarda os homens de tal sorte naquele sertão 139 A criação da Real Provedoria do Ceará data de 1725. Até então a arrecadação de
que a maior parte dos delinquentes ficão sem castigo por impostos na capitania do Ceará era realizada pela provedoria do Rio Grande. No Ceará
não haver quem se reso1va a prende- ' 1os.138 o ouvidor acumulava a função de provedor, o que só mudaria em 1799 com a extinção
da provedoria e criação da Junta da Real Fazenda __do Ceará, um conselho fiscal pre-
sidido pelo capitão-mor governador da capitania e diretamente subordinado ao erário
Percebemos aqui que, apesar de em meados do século
português. Em geral os impostos praticados na capitania eram: subsídio de sangue
XVIII 0 Ceará já apresentar um estágio avançado d~ seu (dízimo real sobre o abate do gado em açougues públicos), subsídio militar, subsídio
processo de colonização através do sistema de conce~sao. d: literário, fintas (impostos especiais) e derramas (cobrança de impostos atrasados).
sesmarias, segundo o capitão-general D. Marcos a capit~n:a. e 140
Inicialmente o Ceará fazia parte da comarca de Pernambuco e, devido às grandes
definida como um imenso "sertão" de muitas léguas, terntono distâncias, em I 711 passou a fazer parte da comarca da Paraíba. Mesmo assim os
de crimes eivado de delinquentes e criminosos refugiados, ouvidores dessas comarcas raramente visitavam o Ceará. Só em 1723 foi criada a
Ouvidoria Real da capitania do Ceará, sediada na vila de Aquiraz. O ouvidor era o
palco de roubos e mortes onde a impunidad~ gr~ssaria. de~ido responsável máximo pela aplicação da justiça na capitania e era nomeado pelo rei
às dificuldades de efetuação de prisões e aphcaçao das JUSt1ças por período de 3 anos. Anualmente o ouvid or deveria percorrer a sua jurisdição em
correição. A segunda comarca do Ceará seria criada apenas em 1816 com sede na
vila do Crato, sul da capitania, compreendendo as vilas de São João do Príncipe,
Campo Maior de Quixeramobim, Icó, Santo Antônio do Jardim e São Vicente das
138 Idem.
96 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores
97

sertões da capitania em correição, que consistia na fiscalização outras e por ser conveniente a meu Real Serviço e ao sossego
do cumprimento das jus~iças reais em cada comarca. Atingindo e paz de meus vassalos evitar a assistência de semelhantes
a povoação de Caiçara141, Victoriano Barbosa enviou mandado delinquentes me pareceu ordenar vos recomendeis aos
ao juiz ordinário da vila de Nossa Senhora da Expectação do capitães-mores das terras do sertão desse governo tenhão
Icó, a mais antiga vila do sertão cearense e principal centro muito especial cuidado em prender aos que se refugiam por
comercial do interior, determinando que em virtude das eles, inquirindo donde vieram e observando [o que] dispõe
"distâncias dos lugares dos delitos (. .. ) e largo termo dessa vila" a ordenação do Reyno.143
notificasse e tivesse prontas para a sua chegada as testemunhas
nas devassas dos "crimes de morte" ali ocortidos.142 " A~es:r de o al~ar~ em questão fazer referência gen érica
Dali a três anos, em 1766, registrou-se nos livros daquela aos se:toe~ da capitania-geral de Pernambuco, que incluía
mesma vila do Icó um alvará de "Sua Majestade Fidelíssima" o Ceara, fo1 exat~mente como um vasto sertão da capitania
remetido ao governo de Pernambuco, encarregado da sua per:iambuc~na, ~m~a fechada por matas que há pouco tempo
distribuição e publicação, ordenando aos "capitães-mores atr~s _ºCeara havia sido definido por um de seus governadores, 0
destes sertões prender as pessoas facinorosas e refugiados". O cap1tão-m_or D. Marcos de Noronha, somando-se a isso o próprio
próprio soberano esclareceu que a necessidade da sua ordem f~to per sz da ordenação da sua publicação em Icó, destacada
se explicava: vila do sertão cearense. Vale salientar ainda que o mencionado
alvará fora originalmente lançado em 1728 e, portanto, tratava-
...por ter a experiência dos grandes e atrozes delitos que se de uma reedição que visava reforçar a ordem de perseguição
tem cometido nas capitanias desse estado muitas pessoas aos ditos "criminosos" e "facín oras" que buscavam refúgio em
facinorosas dando ocasião a se frequentarem e refugiarern- paragens e brenhas sertanejas, dentre as quais o Ceará.
se para os matos mudando-se de urnas capitanias para as Frequentemente, o discurso dos administradores
coloniais, especialmente capitães-mores e ouvidores, aponta
que os _refe~idos "crii:iinosos" e "facinorosos" que se refugiavam
Lavras da Mangabeira. Desmembrada da Relação da Bahia, em 1811 foi criada a na cap1tama do Ceara recebiam acobertamento por fazendeiros
Relação do Maranhão que englobava as comarcas do Rio Negro {Amazonas), Pará, poder~sos. Segundo Pedro Puntoni, a economia pastoril "que
Piauí e Ceará. Em 1821 é criada uma outra Relação sediada em Recife com alçada
igual à do Maranhão, que incluía o Ceará. Em 1833 a Província do Ceará passa a
~cab~na por gerar uma forma societária específica, em face da
ser dividida em 6 comarcas: Fortaleza, Crato, Sobq1l, Aracati, Icó e Campo Maior htoranea propriamente dita (... ) baseava-se em um sistema de
de Quixeramobim. trabalho em que a remuneração e a organização social estavam
141Localizada na região norte da capitania, a povoação de Caiçara seria elevada ao submetidos a regras estritas de dependência e lealdade
estatuto de vila em 1773 com o nome de Vila Distincta Real de Sobral, importante substanciadas num universo de violência".144 Desse modo'
núcleo populacional que se estabeleceria como principal centro comercial e produtor '
de gado e charque de toda a ribeira do rio Acaraú.
1
142 APEC. Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias 1 14 3
1. Idem, Alvará de 13 de março de 1766, fls. 33v-34.
da câmara da vila de Icó ( 1761-1796). Mandado de justiça de 27 de abril de 1763, 144
fl. 29-29v. 1 PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 23.
98 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 99

o acobertamento de criminosos, diretamente relacionado à situação de mandantes. O caso de João Borges de Pinho parece
atributos como violência e lealdade, não estava em desacordo ser bastante sugestivo a esse respeito.
com o universo mais amplo de relações sociais sertanejas, Segundo André Frota de Oliveira, por volta de meados
confluindo para a formação de redes de clientelas e valias que do século XVIII os irmãos Joaquim, Antônio e João Borges
caracterizariam as relações de poder nos sertões. 145 Pinho, todos portugueses naturais do Porto, aportaram
Existem indícios de que muitas vezes era justamente no Recife decididos a tentar a vida na América. Joaquim e
em nome de poderosos senhores que alguns dos assassinos Antônio tomaram um barco com destino à ribeira do Coreaú
e criminosos sertanejos agiam: tratava-se da chamada na capitania do Ceará e lá se dedicaram à criação de gado e
cabroeira.146 Em 1799, por exemplo, "Antônio de Tal" e José ao comércio, ao passo que João, o irmão caçula, rumou
Coelho, ambos classificados pelo escrivão do processo como para a capitania da Paraíba. No entanto, diz-se que o jovem
"cabras", foram considerados culpados pelas punhaladas João, por conta de desavenças na região em que estabelecera
recebidas por Francisco José, também identificado no auto sua moradia, acabou por ser vítima de uma "espera'', isto é,
como "cabra". Todavia, o juiz responsável pela devassa do caso uma tocaia, recebendo no corpo uma carga quase mortal de
condenou ainda Antônio José de Medeiros, "branco cazado", chumbo. Conseguintemente, "depois de tomar vingança
como "mandatário" do dito crime. 147 Contudo, em algumas daqueles que quiseram assassiná-lo, deixou a capitania da
ocasiões possivelmente os próprios senhores de terras e gado Paraíba em companhia de sua família, vindo estabelecer-se no
podem ter atuado muito mais diretamente do que na mera vale do Timonha, na capitania do Ceará, tornando-se criador
de gado nesse úbere trato. Joaquim José e Antônio José Borges
de Pinho, com o correr dos anos, prosperaram, vindo ambos a
14 5
"De modo semelhante aos senhores de engenho, os barões do gado e acumular grande fortuna" .148
os magnatas do interior (os "poderosos do sertão", como eram chamados) Apesar dos enfrentamentos e crimes relatados
tendiam a se constituir na própria lei". BOXER, Charles Ralph. O império acima terem ocorrido ambos na capitania da Paraíba, foi
marítimo português {1415-1825). Tradução: Anna Olga de Barros Barreto. precisamente no Ceará, junto ao apoio e proteção de seus
São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 322. irmãos, onde João veio buscar refúgio. Restabelecido agora
146 "Na composição de uma sociedade marcada pelas relações pessoais, principal- na ribeira do Coreaú, João Borges de Pinho não parece ter
mente familiares, o poder dos grupos extensos e abastados se solidificava na compo- sido alvo de qualquer devassa ou responsabilização judicial
sição de uma fiel cabroeira. Esta simbolizava a força de extensas famílias, lutando e
votando ao lado de seus chefes. Em troca, estes cabras garantiam proteção da justiça,
relativa ao assunto. Ressalto o fato de que precisamente
respeitabilidade por pertencerem a determinados grupos e a própria sobrevivência: Joaquim José Borges de Pinho, irmão de João, atuava como
haja vista que muitos deles também cultivavam a terra e criavam gado." VIEIRA Jr.,
Antônio Otaviano. Op. cit., p. 247.
1 7
4 APEC. Livro 01 : Rool dos culpados (1793-181 7). "Antônio de tal, Cabra [ilegí- 148
OLIVEIRA, André Frota de. "Joaquim José Borges Pinho". ln: Os capitães-mores
vel] Cabra José Coelho [ilegível] culpado na devassa que tirou o Juiz ordinar.0 José de Granja. (texto inédito). Deixo registrado aqui os meus sinceros agradecimentos ao
Joaquim Borges de Pinho pelas punhaladas dadas em o cabra Francisco José, das professor André Frota de Oliveira que me cedeu gentilmente o texto supracitado de sua
quaes [ilegível] o ferim.10 , pronunciado em 7 de dezb.ro de 1799. Antônio José de autoria, ainda lamentavehnente inédito e que se constitui no estudo mais sistemático so-
Medeiros, branco cazado, pronunciado na d.ª devassa como mandataria", fl. l v. bre os capitães-mores de ordenanças de uma mesma localidade da capitania cearense.
José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 101
100

juiz ordinário da vila de Granja em_17~9 e, no ano seguinte, cadeia" da vila de Fortaleza.153 Contudo, a cadeia de Fortaleza
seria nomeado capitão-mor da mesma vila, sendo dessa forma não detinha a exclusividade de ser a única a ser arrombada
nada menos do que o encarregado da prisão dos criminosos e com frequência na capitania. Em sua Memória sobre a capitania
refugiad os no termo d a vi·1a. 149 . . . A •
independente do Ceará escrita em 1814, Luiz Barba Alardo
Muito provavelmente, não f01 mera comcidenoa o de Menezes, que havia governado o Ceará entre 1808-1812,
fato de que em 1767 as autoridades coloniais sentiram.ª mencionou que o distrito da vila de São João do Príncipe, no
necessidade de publicar no Ceará a determinação de que sena sertão dos Inhamuns, merecia "o maior cuidado da polícia,
considerado crime de "lesa-majestade" qualquer "pessoa que por ter sido sempre o coito de facinorosos da capitania do
resistir a justiça ou impedir qualquer execução de diligência", Piauí, que a viva força, de dia, sem temor das justiças, nem
0 que depõe no sentido de que no Ceará a resistência a ~risões dos moradores da villa tem tirado, algumas vezes, os presos da
e o impedimento de execuções judiciárias não se tratanam de cadeia". 154 Em um requerimento à rainha D. Maria I datado de
. . 150 1788, José Correa acusava o coronel Manuel Martins Chaves
acontecimentos incomuns.
Isso fica evidenciado quando em 11 de abril daquele de ter sido o mandante dos cinco homens responsáveis pelo
mesmo ano a cadeia de Fortaleza foi arrombada, o que teve resgate de Antônio de Melo Paes que se achava preso na cadeia
corno consequência a fuga de 25 presos. 151 A mesma cadeia de Sobral em 1780.155 Além disso, nas Memórias escritas por
da vila de Fortaleza, a principal prisão da capitania, para Alexandre Mourão o arrombamento de cadeias públicas figura
onde deveriam ser enviados os criminosos da capitania, foi ao lado das numerosas agressões e assassinatos ocorridos no
novamente arrombada em 1787.152E essa nao- f ora a últ"ima vez, Ceará nas primeiras décadas do século XIX. 1 56
visto que em 20 de março de 1810 o "preto forro" morado~ em
Acaraú de nome Anastácio Ferreira de Melo era pronunciado
culpado pelo "arrombamento e fugida dele mesmo e outros da

153 APEC. Livro 01: Rool dos culpados (1793-18 17), "Anastacio Ferreira de Mello

preto forro morador em Acaracú culpado na Devassa de Arrombam.'º e fugida de


149 APEC. Livro Ol: Rool dos culpados (1793-1817). " ...na devassa que tirou o Juiz elle mesmo e outros da cadeia desta Villa pronunciado pello Juiz ordinario Manuel
ordinar.º José Joaquim Borges de Pinho", fL lv. APEC. Livro 18: Termos de jura- Ferr.ª Guim!5 em 20 de março de 1810. Prezo na Cad.ª desta V ª", fl. 5v.
mento e posse da capitania do Ceará (1767-1840). Termo de Jurame?to q' da o Cap.m 154
MENEZES, Luiz Barba Alardo de. Op. cit., p. 49.
Mor das Ordenanças da Villa da Granja Joaquim José Borges de Pinho do Posto de 155AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 12, Documento 662. Apud: VIEIRA Jr.,
Capitão Mor das Ordenanças da Vª da Granja, 12 de março de 1800, fl. 45.
Antônio Otaviano. "Os régulos do sertão e o império lusitano: território e poder na
150 APEC. Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias
capitania do Ceará na segunda metade do século XVIIl". ln: Anais do I Encontro
da câmara da vila de lcó (1761-1796), Alvará de Lei de 3 de [ilegível] de 1767, fls. Nordestino de História Colonial. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba,
40v-43v. \
2006, p. 11.
15 1 STUDART, Guilherme. Datas e factos para a história do Ceará. Edição fac- 156
1 "Memórias de Alexandre Mourão". ln: RIC. Tomo XLI, 1927, pp. 3-158. Apud:
similar. Tomo I: Ceará colônia. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. "Apresentando a Família a partir da violência: tra-
315. mas, tensões e cotidianos no Ceará (1780-1850)". ln: Documentos - Revista do Ar-
1
152 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 11, Documento 645. quivo Público do Ceará. Fortaleza: Arquivo Público do Ceará, 2006, p. 16.
t
rr.
102 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 103

Em julho de 1775, o capitão-mor do Ceará Antônio José Apenas um ano depois, registrou-se na vila de Icó:
Victoriano Borges da Fonseca verificou irregularidades nos
livros de contabilidade da câmera de Fortaleza e do cartório ...a insólita e execranda [ilegível] se opunham, e resistiam,
e cofre dos órfãos, o que o levou a suspender o secretário do não só às execussões das justiças ordinárias, mais ainda
governo José Gomes de Oliveira Gato do exercício do cargo aquelas que imediatamente ordenava por este governo
e ordenar ao tabelião da vila de Fortaleza, Luis Marreiros de em diligências do real serviço, em auxílios das justiças de
Sá, que intimasse o dito escrivão a "mostrar legalmente por Sua Majestade [ilegível] a proibida resolução e refúgio de
documento autêntico, que tem justas as referidas contas do~ desertores, facinorosos, vagabundos, e homicídios ...
referidos cofres da câmera, e órfãos, sem dizer coisa alguma"'.
Porém, o que torna curiosa a intimação feita a Oliveira Gato No mês de julho daquele mesmo ano de 1776, o capitão-
obrigando-o a provar sua honestidade no exercício do cargo mor Antônio José Victoriano Borges da Fonseca remetia
de secretário do governo é a notificação feita pelo capitão-mor para as diversas vilas da capitania a cópia de um bando 158
Victoriano ao escrivão suspenso: circular que recebera do seu superior, o governador e capitão-
general de Pernambuco José César de Menezes. Como José
...não apareça em minha presença, nem me fale senão por Victoriano já era bastante conhecedor da realidade cearense,
petisão, quando lhe seja preciso, nem venha ao quartel da o conteúdo do assunto tratado por tal documento não lhe era
minha residência, e nem finalmente tenha comunicação estranho. No texto do bando, após a invocação da "obediência
alguma com meus familiares.157 e fidelidade dos vassalos para com os soberanos debaixo de
cuja real proteção vivem felizmente dominados" e até mesmo
Nesse caso, a atitude do capitão-mor de precaver do "Santíssimo Padre Benedito XIV", José Cezar de Menezes
qualquer tipo de assédio ou hostilidade proveniente do afirmava em demorado discurso:
escrivão investigado procura resguardar não somente a si: sua
preocupação estende-se à sua residência e família. Conforme
a isso, o capitão Victoriano, que à altura já vivia no Ceará e
o governava fazia dez anos, pondera que naquela situação o
seu lar e familiares poderiam se tornar alvos de ameaças e
158 "BANDO: Ordem ou decreto, em geral dos Governadores e Capitãoes Generais,
retaliações por parte de Oliveira Gato, o que parece indicar
que é proclamado em pregão público ou afixado em lugar ou veículo de circulação
que na capitania do Ceará a violência despertava temores pública (editais, cartazes, jornais). O mesmo que édito ou mandato proibitório. Em
até mesmo na sua autoridade militar e governativa máxima, geral, corresponde a questões cotidianas, relacionadas ao cumprimento de ordens
o capitão-mor, e ameaçava inclusive ir bater a sua porta à . pontuais. Muitas vezes, funciona como documento de correspondência, no sentido
procura de sua família. de fazer cumprir, em jurisdição mais limitada, uma ordem mais ampla e de origem
superior". BELLOTO, Heloísa Liberalli. "Glossário de espécies documentais". ln:
ARRUDA, José Robson de Andrade (coord.). Documentos manuscritos avulsos da
157 APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1 762-1804). Portaria Capitania de São Paulo (1618-1823): Catálogo 2 Mendes Gouveia. Bauru: Edusc;
de 7 de julho de 1775, fi. 45. São Paulo: Fapesp/lmprensa Oficial do Estado, pp. 794-795.
104 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 105

Me foi verdadeiramente representado a inesperada, in- como for de justiça, e juntamente lhes ordeno que do
sólita e execranda temeridade com que muitos e alguns mesmo modo o observem sempre que algumas pessoas
dos principais habitadores dos sertões destas capita- de qualquer condição ou estado se oponhão as execus-
nias atrevidamente se opunhão e resistiam não só às sões das deligências que por mim ou pelas justiças lhes
execussões das justiças ordinárias, mas ainda aquelas forem emcarregadas ainda que seja ecleziástico secular
que imediatamente se ordenava por este governo em ou regular, suplicando para este efeito da minha parte
diligências do real serviço em auxílio das justiças de todo o auxílio necessário à mais vizinha jurisdição mi-
Sua Majestade, praticando por uma parte a proibida re- litar ou civil...159
cepção e .refúgio de desertores, facinorosos, vagabun-
.
dos e homicidas, e por outra ousadamente procurando Como está textualmente dito, fazendo coro com a série
aos mesmos cabos das diligências e juízes executores de indícios que venho inventariando, o bando versa sobre a
das leis para desviá-los de sua obrigação com ameaças ocorrência de crimes, a resistência e impedimento da execução
e abomináveis máximas, persuadindo-lhes outrossim das ações e diligências judiciais, as distâncias dos sertões e o
a que se interessem mais na condescendência do que refúgio de criminosos, além da determinação de que todas as
injustamente lhes pedem como vizinhos que com eles autoridades judiciais e militares deveriam se encarregar em
coibir toda essa sorte de práticas criminosas tão "abomináveis"
sempre viveram do que nas recomendações e ordens
e "proibidas".
deste governo trienalmente sucedido e muito remoto
Apontando a consecução de tão "escandaloso" esta-
das suas povoações: atendendo a gravidade destes in-
do de desordem em sua jurisdição, o governador José Ce-
sultos e as perniciosas consequências que resultão, e zar de Menezes afirma que o impedimento da execução das
podem nascer se se não administrar a justiça, castigar justiças, os assédios e amea,ç as a autoridades e o acoberta-
os culpados e terem efeito as execuções das leis e ordens mento de criminosos eram praticados por não menos que
do real serviço por ocorrer como devo todo este preju- "muitos e alguns dos principais habitadores dos sertões", o
dicial inconveniente, e cortar logo desde o seu princípio que o leva a ordenar que se deveriam prender aqueles que
esta odiosa e detestável máxima como de sediciosos, se opusessem .às diligências das justiças reais independen-
rebeldes perturbadores do sossego público contagiosos temente de sua "condição" ou "estado", não excluindo-se
a sociedade civil e infames réus. do abominável crime nem mesmo eclesiásticos.
de lesa-majestade. Determino a todos os governadores, A este respeito, vejamos o comentário feito por Henry
capitães-mores, comandantes e justiças ordinárias de Koster no início do século XIX sobre os Feitosa, poderosa família
cada uma destas capitanias que em suas respectivas ju- do sertão dos Inhamuns, então liderada por José Alves Feitosa:
risdições façam caçar os agressores e réus de tão péssi-
mos delitos já mencionados e aos neles compreendidos
159APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). Bando
prender, e remeter a minha presença para se proceder
de 11 de julho de 1766, fls. 54-55.
106 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 107

Os desertores eram bem recebidos por ele [José Alves Feitosa] e Vimos anteriormente os comentários de Koster sobre
os assassinos que haviam cometido o crime vingando injúrias. O os desmandos dos Feitosa no interior da capitania do Ceará.
ladrão era repelido e mais aqueles que, para entregar-se ao saque, Dentre as variadas transgressões das leis régias por poderosos
tinham tirado a vida de outrem.16 º membros da família Feitosa, sem sombra de dúvida o caso de
maiores repercussões foi o já bastante conhecido assassinato
A observação de Koster indica não apenas a de Antônio Barbosa Ribeiro, juiz ordinário de Vila Nova d'El
confirmação da recepção e proteção de criminosos prestada Rey, morto em sua própria residência no ano de 1795. A
por uma das "principais" famílias cearenses do período, descrição do homicídio, que contou com a participação de
como também a perpetuação desse tipo de prática através de mais de trinta homens armados, assim como a perseguição
décadas. Subjacentemente ao acobertamento de criminosos aos acusados, tornam-se aqui redundantes posto que já
estabelecia-se uma situação de dívida para com os poderosos detidamente discutidas por outros autores.162 Vale observar
fazendeiros sertanejos que deveria ser paga com fidelidade e que os primeiros acusados pelo crime foram justamente o
implicava na incorporação de tais fugitivos e criminosos às "cabra" Felipe Néri e alguns de seus parentes, prepostos dos
tropas de "cabras" daqueles senhores, que .passavam a lhes Feitosa, sendo que só posteriormente o ouvidor encarregado
servir sob o estatuto de "agregados". Entrevemos aqui também do processo chegaria até os membros da família Feitosa.
a lógica de funcionamento de determinado código de honra no Depois de concluída a devassa do crime e decretada a prisão
sertão: era acolhido pelos fazendeiros o indivíduo fora-da-lei, dos acusados, o temor das autoridades coloniais em efetuar as
seja desertor ou assassino, ao passo que se rejeitava o ladrão prisões, bem como a aberta resistência dos condenados em se
e o saqueador latrocida, estes últimos autores de crime contra submeter a qualquer punição judicial ficaram tão conhecidos
a propriedade, que no Ceará concentrava-se exatamente nas como a própria ocorrência do assassinato.
mãos de poderosos grupos familiares que dominavam os Dez anos após o crime, quando finalmente os
sertões e que em diversas situações descumpriam e ignoravam acusados são presos, o capitão-mor João Carlos Augusto de
as ordenações régias. 161 Oeynhausen163 relatou a dificuldade em efetuar a prisão de
Manuel Martins Chaves e seu sobrinho Francisco Xavier de

°
16
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução, prefácio e comen-
nas decisões metropolitanas relativas à localização das vilas, sobre a cobrança de
tários .de Luís da Câmara Cascudo. l ª edição em 1816. 12ª edição. 2 vols. Río de
Janeiro, São Paulo, Fortaleza: ABC editora, 2003, p. 184. impostos, sobre as ordenanças, poder para organizar exércitos particulares, que lhes
161
davam os instrumentos de domínio não só contra concorrentes, mas também contra a
A respeito de tal código de honra sertanejo em que o valor da propriedade sobre-
própria administração portuguesa~'. LEMENHE; Maria Auxiliadora. Op. cit., p. 75.
puja a vida disse Capistrano de Abreu: "Reinava respeito natural pela propriedade;
162 Uma excelente discussão do caso encontra-se em: VIEIRA Jr., Antônio Otaviano.
ladrão era e ainda é hoje o mais afrontoso dos epítetos; a vida humana não inspirava
o mesmo acatamento". ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: Op. cit., pp. 190-202.
1500-1800 & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. 2ª ed. Brasília: Editora 163 João Carlos Augusto d'Oeynhausen e Gravenburg, futuro Marquês de Aracati, foi
Universidade de Brasília, 1998, p. 224. Segundo Auxiliadóra Lemenhe, "particular- capitão-mor governador da capitania do Ceará (1803-1 807), capitão-mor governador
mente a história cearense é pródiga em fatos que ilustram a ampla margem de poder de Mato-Grosso, governou a capitanià de São Paulo como seu último capitão-general
dos fazendeiros. Controle sobre a composição das câmaras municipais, interferência (1819-1822), e foi senador pelo Ceará na reaberta Assembléia Geral do Império.
108 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso 1heatro de Horrores 109

164
Araújo , mandantes do crime e membros da família Feitosa os serviços e a conduta de Manoel Martins Chaves, Oey-
ressaltando acerca da "cabroeira": ' nhausen foi ainda mais contundente:

... prendi com a maior prudência e cautela a Manoel ...as continuadas resistências às justiças de Vossa Alteza
Martins Chaves e seu decurião e sobrinho Francisco Real, e à autoridade dos seus governadores, e finalmente
Xavier de Araújo Chaves, únicos autores de todas as à morte, à desgraçada morte do juiz ordinário da Vila
desordens daquele distrito, e além destes, mais vinte Nova d'El Rey, daquele zeloso magistrado, [ilegível] que
ou trinta dos seus protegidos, cujos crimes depois se ali não amparava a Manoel Martins e seu conluio, tam-
tem provado ... 165 bem não sei que no tempo do meu governo não tinha
feito serviços alguns a Vossa Alteza Real, senão os de am-
parar e de alistar na sua numerosa quadrilha os inimigos
das suas leis e da humanidade, fazendo da sua pousada
Na sua informação ao Conselho Ultramarino sobre um receptáculo de criminosos e um baluarte contra a au-
1
1
[. toridade de Vossa Alteza Real, dos seus governadores e
164
Note-se que os três mandantes do assassinato do juiz ordinário de vila Nova d'El 1
das suas justiças - tais são os seviços de Manoel Martins
Rey: "Bernardino Gomes Franco, Manoel Martins Chaves e seu sobrinho Francisco J Chaves de que tenho conhecimento...166
!
de Araújo Chaves possuíam também, todos eles, patentes do oficialato das tropas
de segunda linha locais: capitão-mor de ordenanças, coronel e capitão de cavalaria E acrescentou em tom de alarme:
miliciana, respectivamente". GOMES, José Eudes Arrais Barroso. As milícias d 'El
Rey: tropas militares, militarização do cotidiano e poder na capitania do Ceará,
século XVI~!. (texto inédito). Me foi possível localizar o termo de juramento e posse ... em cada correição se tiravão de vinte até trinta de-
de Bernardino Gomes Franco em: APEC. Livro 18: Termos de juramento e posse da vassas de morte só no distrito de Vila Nova d'El Rey:
capitania do Ceará (1767-1840). Tenno de Juram.10 q' por seu Procurador 0 Cap.m
que os Criminosos autores de muitas mortes eram
Mor Antônio de Castro Vianna dá Bernardino Gomes Franco pelo Posto de Capitão
Mor da Ordenança de V.ª nova de El Rey em 18 de outubro de 1792, fl. 35. O mesmo [ilegível] à justiça por terem asilo seguro na morada
livro informa que Antônio Martins Chaves, provavelmente filho de Manoel Martins de Manoel Matins Chaves, indo-se augmentando con-
Chaves, assumia o posto de capitão-mor da vila de São João do Príncipe em 1828 sideravelmente desta moda a guarda de corpo de Ma-
? que ~ndica q~e a condenação de Manoel Martins Chaves não fora suficiente pare: noel Martins Chaves, e um colôio que não sendo logo
impedir a tradição dos Martins Chaves na obtenção de patentes de comando das
tropas auxiliares na região dos Inhamuns. APEC. Livro 18: Termos de juramento e desbaratado, dentro em pouco tempo seria mais forte
posse da capitania do Ceará (1767-1840). Termo de Juram. 1º do Cap.mór da Villa de de que as m.ª5 forças militares deste país (. ..)já não se
S. João do Príncipe An.10 Mis. Chaves por seo Bastante Procurador Angelo José da
Expectação Mendonça em 21 de novemnro de 1828, fls . 122-123.
atrevia abrir correição o ouvidor geral, porque ali era
165
APEC. Livro 270: Officios e cartas do governo da Capitania do Ceará a Sua Al-
absoluto o poder dos réus, e irrisória qualquer outra
teza Real e Conselho Ultramarino (1804-1807). Officio dirigido ao Cons. 0 Ultrama-
rino, em que informa sobre o requerimento de Manoel Miz Chaves, 22 de novembro
de I 806, fls. 13v-18. 1116 Idem.
110 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 111

autoridade, não procurando estes a justiça senão para bárbaro assassinato na pessoa de Afonso Paes, homem
tirarem cartas de seguro, que eram cartas patentes de notável do lugar; e porque o dito comandante do presí-
impunidade, que o dito ministro não podia negar sem dio tomasse veemente interesse pela prisão dos assas-
risco de vida... 167 sinos, mandando soldados para os capturar, os assas-
sinos vieram ao presídio e de uma emboscada junto a
Contudo, o assassinato do juiz ordinário de Vila Nova d'El casa da residência do mesmo capitão [na vila de Forta-
Rey,AntônioBarbosaRibeiro,eml795,nãofoioúnicocrimecontra leza], na noite de 11 de agosto de 1708, dispararam-lhe
um magistrado em terras cearenses, pois antes disso o fazendeiro um tiro de clavina, cuja bala fraturou-lhe um braço. 170
Geraldo Monte, líder da família Monte, e seus homens haviam
assassinado um juiz ordinário entre as vilas de Icó e Lavras, lugar Mais precisamente em dezembro de 1778, nos
que após o crime ficou conhecido pela denominação de "Juiz".168 deparamos novamente com o capitão-mor Antônio José
Segundo Tristão de Alencar Araripe, quando as sangrentas lutas Victoriano Borges da Fonseca que, como vimos, apenas
entre as famílias Monte e Feitosa se arrefeceram, "Geraldo Monte dois anos antes havia distribuído a cópia do bando que
retirou-se para a sua fazenda Boqueirão, onde faleceu", sendo que procurava repreender a ocorrência de crimes e abusos na
posteriormente veio a livrar-se das incriminações judiciais que lhe capitania. Naquele mês Victoriano nomeou o tenente-
foram feitas. 169 Assim como no caso do português João Borges general de ordenanças Ignácio Aranha de Vasconcelos como
de Pinho, não existem evidências de que Geraldo Monte recebeu comandante da vila de Granja.171 Ordenou Victoriano que o
qualquer tipo de condenação judicial por seus crimes. Outro novo comandante se apressasse em tomar logo a posse do dito
atentado contra importante autoridade régia no Ceará, que faz posto e declarou que Ignácio Aranha assumia aquela patente
menção à ocorrência de assassinatos na capitania, é mencionado com a responsabilidade de imediatamente:
por Tristão de Alencar. Diz ele:
...fazer prender aos criminosos, perturbadores da paz
Este governador [Gabriel da Silva Lago, capitão-mor do e inquietos, aqueles entregando-os à justiça, e a es-
Ceará entre 1705-1709] fora a Pernambuco, deixando tes castigando-os em tronco economicamente, como
no governo interino o capitão do presídio Carlos Fer- tão bem aos que se tomão de bebidas que por elas são
reira. Havia sido perpetrado na ribeira do Choró um costumados a fazerem distúrbios, remetendo à minha

167
Ibidem.
16
8 ARARIPE. Tristão de Alencar. Op. cit., p. 160. O "auto de vestoria" dos feri-
mentos do capitão Carlos Ferreira foi publicado em: "Tentativa de assassinato do 170
Idem, p. 142.
governador interino Carlos Ferreira: auto de vestoria na pessoa do offendido". ln: APEC. Livro 18: Termos de juramento e posse da capitania do Ceará (1767-
17 1
RIC, tomo VI, 1892, pp. 215-216. 1840). Termo de juram.to que dâ Inácio Aranha de Vasconcelos de Ten.• Gen.ª 1 da
169
Idem. Vila da Granja, 14 de dezembro de 1778, fl. 17.
112 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 113

ordem para a cadeia desta Fortaleza à aqueles que bem disso, Victoriano apresenta sumariamente o padrão básico de
lhe parecer para nela serem castigados com aquela funcionamento do sistema de manutenção da ordem pública
na capitania: os oficiais das tropas de milícias e ordenanças de
severidade que merecerem, tomando para o referido cada localidade seriam ali os responsáveis pelo cumprimento
soldados da ordenança de que é tenente- general. 172 da lei e manutenção da ordem colonial, devendo prender
os seus infratores e remetê-los à cadeia do Forte de Nossa
Estamos aqui diante de mais uma menção ao turbulento Senhora da Assunção, na vila de Fortaleza, conhecida· como
cotidiano da capitania do Ceará, desta feita através da recém- "cadeia do crime" .175 Vale ressaltar que como parte da punição
fundada vila de Granja173 situada na foz do rio Camocim, na o criminoso devia ser "castigado" em "tronco", o que remete ao
ribeira do Coreaú. Para além da menção ao gosto popular por sistema de punições característico do Antigo Regime e ainda
bebidas alcoól~cas 174, e das alegadas desordens decorrentes tão em voga na Europa durante o século XVIII, baseado em
punições corporais e execração pública que, no caso em questão,
172 APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). Portaria
se realizaria através de acoite público em tronco, instrumento
de punição utilizado com escravos e, portanto, dotado de carga
de 14 de dezembro de I 778, fi. 58v.
simbólica degradante numa sociedade escravista. 176
173
Antiga povoação de Macaboqueira, sede da freguesia de São José da
Macaboqueira, erigida vila em 1773.
174
Em carta à rainha datada de 1787, o ouvidor Manuel Magalhães Pinto e Avelar 175 "No Brasil colonial, as fortalezas funcionavam regularmente como prisões para
também fez menção ao hábito bastante popular entre os moradores da capitania de corsários, amontinados e mesmo criminosos comuns". VAINFAS, Ronaldo (dír.).
beber "águas ardentes chamadas cachaças", chegando a sugerir à Rainha D. Maria Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 98.
I que a sua apreciação e consumo eram tamanhos que uma das soluções para a ge- 176 FOUCAULT, Michel. Op. cit. Note-se que tal sistema de punições respeitava,
ração de renda para as câmaras locais seria a arrematação dos impostos sobre tais contudo, critérios de classificação e posição social. Um exemplo de proporções es-
bebidas, assim como afirma que já havia feito com sucesso a câmara de Sobral. Para petaculares a respeito do sistema de punições adotado na época foi a execução em
fundamentar a sua sugestão, Avelar argumenta que "atendendo a natural inclinação janeiro de I 759 dos culpados pela tentativa de assassinato de Dom José I, ocorrida
das gentes d'América para a dita bebida, poucos gêneros do pais estarião em igual em 1758, em um grande palco em praça pública: "O duque de Aveiro foi condenado
rezão, como este, de poderem assegurar hum rendimento sólido, e certo as câmaras". a ser despedaçado vivo: teria os braços e as pernas esmagados, seria exposto em
Além disso, o ouvidor Avelar também fez questão de declarar que: "por que sendo uma roda para todos o verem e queimado vivo, e suas cinzas seriam jogadas no
incrível, como he, a decedida paxão, que tem todos os habitadores da América por mar. O marquês de Távora Velho teria a mesma sorte. A marquesa de Távora seria
esta bebida, ella he a fonte da maior parte dos execrandos delictos, e frequentes decapitada. As pernas e braços dos outros membros da família seriam quebrados na
atentados, e assassinos, que se cometem nestes Certoens; assim como tão bem o he roda, mas antes seriam estrangulados, diferentemente do marquês e do duque, cujos
da inata estupides, inação, e amada ociozidade das gentes deste Continente; donde membros seriam quebrados com eles vivos. (... ) O tratamento dos conspiradores
parece que nada haveria mais justo e apressiavel, que o projecto de fazer dirivar para não estava em desarmonia com os costumes europeus do século XVIII. Em I 775, o
a sociedade cômodos, e utilidades daquela mesma fonte, que a igualm.1• de prejuizos malsucedido assassino de Luís XV da França, Robert-François Damiens, foi subme-
e desordens". O ouvidor menciona ainda que o preço médio de venda da cachaça na tido a todas as formas de castigo fisico em uso na época, até que finalmente, horas
capitania era de 200 à 240 réis o quartilho (cerca de 350ml), sendo que esse valor depois, o coup de grâce foi administrado. O incomum no caso dos Távoras e do
incluía um lucro de cerca de 100 por cento obtido por carregadores e vendedores duque de Aveiro foi a posição social das vítimas". MAXWELL, Kenneth. Marquês
que intermediavam a importação do produto proveniente das capitanias da Bahia e de Pombal: paradoxo do iluminismo. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. Rio de
Pernambuco. AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa II, Documento 644. Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 88. Somente em meados do século XVIII surgiriam
114 José Eudes Arrais Barroso Gonies Um Escandaloso Theatro de Horrores 115

Em 1777 a população do Ceará enfrentou uma terrível dem consistia por uma parte em que compreendendo
seca que ficou conhecida como a "Seca dos Três Setes", o que esta comarca doze vilas, quase todas (e ainda mesmo
certamenteinfluencioua deflagração de "distúrbios"não somente esta Capital) não tem uma cadeia pública, nem casas
no termo da vila de Granja, mas na capitania de maneira geral. de câmara, servindo de uns casebres informes, cons-
No entanto, apesar das devastadoras marcas deixadas pelas secas truídos de paus e barro, que só servem de irrisão e de
na sociedade colonial cearense, a ocorrência de atos de violência escândalo, mas de nenhuma segurança aos presos; e
na capitania do Ceará, como venho procurando mostrar, esteve por outra parte vi que os oficiais de justiça eram pela
muito longe de se resumir à períodos de estiagem que, sem maior parte uns homens pusilânimes e destituídos dos
embargo, certamente contribuíam para o seu acirramento. Essa importantes requisitos para bem e fielmente fazerem
consideração aponta na direção de que a ocorrência de secas não
os seus deveres.177
explica a presença da violência na vida do sertão cearense, cujas
causas profundas devem ser vasculhadas no constante fazer e
Fica claro que grande parte da ênfase dada pelo ouvidor
refazer de suas relações sociais e de poder.
à sua descrição do "deplorável estado" da justiça na capitania
Em 1779, ano seguinte à nomeação do comandante
servia-lhe como atenuante das suas próprias responsabilidades
de Granja, foi a vez do ouvidor José da Costa Dias e Barros
àquele respeito. Contudo, mais do que repetir o comprometido
representar à Rainha D. Maria I acerca da situação de
quadro de fragilidade da justiça no Ceará que José da Costa
desordem na qual, em sua opinião, encontrava-se a capitania.
Dias dizia descortinar-se perante seus olhos, o ouvidor
Acompanhemos o que ele nos diz:
conjectura que a razão desse estado de precariedade era o fato
de que o Ceará inteiro possuía apenas uma comarca abarcando
Logo que entrei na administração da justiça deste lu- suas então 12 vilas distribuídas ao longo de vasto território,
gar, e no giro da correição desta comarca do Ceará, ad- o que se somaria à pusilanimidade dos oficiais de justiça e ao
mirei com dor e impaciência o seu deplorável estado. Vi estado de ruína das cadeias públicas. Cabe acrescentar que
em terror os continuas assassínios, os roubos e todos através das notas de viagem do botânico George Gardner
os insultos os mais execrandos perpetrados por uma percebemos a permanência do reduzido número e do estado
multidão incompreensível de homens facinorosos e li- de precariedade das cadeias cearenses ainda em fins da década
bertinos, que infestavam este dilatado estado. Vi com de 1830178 . Como havia anotado anteriormente, uma segunda
um bem pungente desprazer a justiça geralmente deso- comarca na capitania, sediada na vila do Crato, seria criada
bedecida e sem forças nem meios para fazer seus ofí- apenas em 1816, porém, a valer-se novamente do relato de
cios e inspirar o respeito. Gardner, essa iniciativa não parece ter surtido efeitos lá muito
Eu divizei logo que a causa próxima desta geral desor- animadores.

177 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 9, Documento 564.


importantes transformações no sistema de justiça criminal. TAYLOR, David. Crime,
policing and punishment in England (1 750-1914). New York: St. Martin, 1998. 178 GARDNER, George. Op. cit., pp. 89-108.
José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 117
116

Além da observação de que o grande número de crimes Na Ribeira de Crateús, confins desta com a capitania
consistia em coisa corriqueira no cotidiano da capitania, em do Piauí, se haviam congregado muitos facinorosos,
carta datada de março de 1783 o capitão-mor João Baptista que andando carregados de armas de fogo e brancas se
Azevedo Coutinho de Montaury considerava que o Ceará se ocupavão nos exercícios de uma vida ociosa, roubando,
distinguia das capitanias vizinhas exatamente pela "falta de ferindo, matando e insultando por todos os modos os
observância das leis e ordens de Sua Majestade": moradores pacíficos, com tão pouco respeito às justiças
que publicamente executavão as suas temeridades, e até
Em toda esta Capitania se supunhão os homens na liber- nos templos entravão armados, como fica dito, e me re-
dade natural, cometendo todo o gênero de atrocidades e feriu o visitador-geral deste bispado...
despotismos, tendo só por lei a sua vontade, e por me- O mesmo que na sobredita ribeira de Crateús acontecia,
lhor direito a maior força: ninguém se admira que morra me constou se estava praticando na Ribeira de Mossoró,
um, ou muitos homens a tiro de espingarda ou de baca- limites desta capitania com a do Rio Grande do Norte,
marte, e menos que acabe na ponta de uma faca, nos fios e para obviar os progressos que já iam fazendo muitos
de uma espada ou a pauladas, porque isso é coisa muito fadnorosos que naquele distrito, me constou residiam, e
ordinária, nem é necessário que o morto ofendesse o · de alguns que tendo já feito assassínios e roubos sabidos,
matador, por que este por um módico preço não recuza se tinhão passado à referida capitania do Rio Grande do
ser verdugo, e satisfazer paixões particulares de outrem Norte, insultando de lá os moradores desta...
por ser a solidão deste numeroso continente acomodada Porão sempre estes sertões o refúgio daqueles homens
para todo o gênero de iniquidades ... que em outras capitanias cometiam algum crime, e lhes
... se não olha para parte alguma desta Capitania, não era difícil conseguir, porque sem passaporte entra-
em que se não vejão roubos, adultérios, estupros, e vam e saião sem embargo algum, como e quando queriam,
assassínios...179 e assim vinham'continuando nos seus aburdos. Para ob-
viar estes ingressos determinei por ordens que expedi a
Ainda segundo o capitão-mor Montaury, os crimes todos os lugares marítimos e aos comandantes dos mais
e atos de violência aconteciam com frequência ainda mais lugares para que não permitissem que neles entrassem,
elevada nas áreas fronteiriças da capitania, o que justificaria a
nem deles saíssem sujeitos alguns sem passaportes que
imposição do uso de passaportes pela população:
?S le~itimassem para seguir suas viagens ...180

No entanto, o próprio capitão-mor teve que reconhecer que


aquelamedi4aforaineficaznãosomentepelalocalizaçãodoslugares
179
BNRJ. Setor de Manuscritos. 11-32, 24, 031. Documentos sobre a capitania do
Ceará. Fundo: Coleção Ceará. Carta do capitão-mor João Baptista Azevedo Couti-
180
nho de Montaury, 12 de março de 1783, p. 72. Idem, pp. 73-74.

1
118 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 119

de fronteira da capitania, mas sobretudo pelo acobertamento de E disse ainda o ouvidor mais adiant e:
criminosos pelos "senhores de gado" cearenses: Metade dos habitadores desta comarca são vadios sem
ofício ou vagabundos por natureza; com o os Árabes:
Vendo que estas ditas ordens não podiam bem executar- uns e outros n ão vivem mais que de furtos de gados,
se pela situação dos mesmos lugares, e por que muitos de que abunda o país, andando sempre forast eiros em
senhores de gados conservavão nas fazendas muitos toda a parte: se a policia os apan ha ou são castigados
indivíduos criminosos e desertores com o diabólico in- pela justiça desculpão-se que não trabalham porque
teresse de serem executores das suas paixões, com pre- não tem em quê, nem meios para o poder fazer, nem
juízo notável de outras fazendas, de que roubavão gados quem os ajude em o trabalho, sendo cert o que uma pes-
para se sustentarem, da República e da Real Fazenda, soa só a nada se pode aplicar com proveito; muito mais
como por várias representações me foi patente... 181 em uma terra destas. Esta resposta que me tem sido
dada por alguns, que tenho intentado castigar e redu-
Em outra carta, esta dirigida à rainha D. Maria I acerca zir a algum serviço, não deixa de mostrar algumas apa-
da situação econômica da capitania em 1787, o ouvidor da rênsias de razão: e esta cauza, por que eu quisera que as
capitania, Manuel Magalhães Pinto e Avelar, comentou: câmaras com seus respectivos destrictos se aplicassem
com t oda a actividade a juntar estas gentes de concer-
É sabido em Portugal, conhecido de todos o quanto abundão to com os ouvidores, e forne cer-lhe com os seus novos
os sertões do Brasil de homens facinorosos, vadios e ma- rendimentos os meios necessários para poderem ser
tadores, chegando em muitas partes até ao excesso de não úteis à sociedade, de que são cargas infructuozas. 183
reconhecerem subordinação às justiças e autoridade régia: o
qual vício penso eu nascer em grande parte da impossibili- Vê-se aqui que Manuel Magalhães Pinto e Avelar
dade que há de os castigar e ter seguros até sua condenação repete a nada original constatação sobre o elevado número
pela falta que há em toda esta capitania de cadeias públicas; de "homens facinorosos, vadios e matadores", roubos e
não havendo em todas as vilas dela mais que duas que as te- assassinatos na capitania cearense. 184 No entanto, ao relatar
nhão, que são a do Aracati e Sobral; e ainda mesmo estas mal a existência de homens que classificou de "vadios sem oficio
constnúdas e pouco seguras, de sorte que anualmente estão
sendo arrombadas pelos presos, que escapando ao merecido
183
castigo como que se animão a irem perpetrar novos atenta- Idem.
184 Sobre a existência de indivíduos " desclassificados" na América portuguesa, Lau-
dos, sempre impuníveis e sempre crirnínosos.182
ra de Mello e Souza afirma que: " Longe de ser pacífica, essa existência teve grandes
percalços, um dos maiores tendo sido a inimizade constante das autoridades colo-
niais, do Poder Constituído que, através de medidas altamente repressivas, nunca
181 Idem, p. 75. deixou de envolver os vadios em suas redes tentaculares". SOUZA, Laura de Mello
182 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 11, Documento 644. e. Op. cit., p. 90.
·· ···-··-···--··-··---··--··- - - · - - - - - · - - · - - - - - · - - - - - - - - - - : - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

120 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 121

ou vagabundos", o ouvidor revelou que muitos deles quando dos vagabundos, criminosos, desertores e que usam de armas
capturados afirmavam entregar-se ao crime em virtude da proibidas". Declarava o edital:
falta de quem os oferecesse trabalho, assim corno de meios
para que pudessem trabalhar por sua própria conta. Faço saber aos que este edital virem que tendo me sido
Ainda mais surpreendente que essa afirmação é presente que apesar das providencíssimas ordens de
o fato de o próprio ouvidor Avelar não só ponderar que Sua Majestade e dos multiplicados bandos dos meus
tal argumento era na realidade procedente, mas ainda de predecessores para se não consentirem vadios e ociosos
sugerir que as câmaras das vilas da capitania deveriam no distrito desta capitania, se tem assaz augmentado o
desenvolver projetos de apoio que possibilitassem a seu número, e consequentemente o dos roubos, assassínios
integração desses grupos ao mundo produtivo, para que e insultos que a cada passo cometem valendo-se do
dessa forma pudessem se tornar "úteis à sociedade, de que excessivo uso de armas proibidas em desprezo das leis da
são cargas infructuozas". Em outras palavras, o ouvidor soberana e dos sítios desertos por onde vagão e discorrem
acaba reconhecendo que no Ceará levas de indivíduos fugindo de viverem em sociedade civil, ~mbrenhados
estariam compulsoriamente excluídos do mundo como feras nos matos do que resultão gravíssimos
produtivo e que esse processo de exclusão guardaria· urna danos à Real Fazenda e ao socego público e particular dos
evidente conexão com o quadro geral de crimes e roubos moradores pacíficos que vivendo nas suas fazendas
na capitania. 185 se não podem considerar seguros de serem assaltados
Em 1789, o capitão-mor Luís da Mota Feo e Torres daqueles perversos indivíduos vagabundos: me pareceo
mandou que se publicasse nos Inharnuns um edital "a respeito portanto ordenar (como pela presente ordeno) a todos
os comandantes de distritos e oficiais de milícias que da
publicação deste em diante não consintão nos mesmos
185
Uma observação bastante importante é o fato de que logo em seguida o ouvidor distritos sujeitos alguns que não verifiquem o ofício,
Avelar ressaltou como uma das causas daquela situação a "grande carestia" dos trabalho ou negócio de que vivem, e os obriguem a ir
"itens, e ferramentas percizas para a agricultura". Idem. Assim, esse fato pode ser
viver nas povoações ou vilas mais vizinhas: que os donos
um dos fatores que justificaria a raridade de ferramentas agrícolas na capitania e a
sua consequente ausência nos inventários coloniais cearenses analisados por Otavia- de fazendas não conservem nelas agregados alguns fora
no Vieira: "Não era comum nos inventários a avaliação de lotes de terras destinados daqueles homens que ocupão nas suas fábricas, contanto
às plantações, ou referências a instrumentos agricolas como enxada, arado ou foice. que não sejão criminosos ou desertores, e que sabendo
Tais inventários eram extremamente detalhados, onde muitas vezes citavam-se bens são tais, prendam e remetam à cadea mais vizinha como
que não tinham valor. Essa debilidade de referência à agricultura talvez ocorresse
pelo pouco valor de produtos agrícolas, e por ser secundária a atividade de plantio.
parte da su a conduta a entregar aos juízes ordinários,
Outra explicação possível para a raridade de referências à agricultura nos inventá- que o achando alguns com armas proibidas, sejão brancas
rios era uma ausência de plantações nas fazendas. Ou, caso os plantios existissem, ou de fogo, especialmente nas vilas ou povoações,
poderiam se encontrar sob a posse de agregados - que dificilmente deixavam inven-
tários. Poderia-se também especular o próprio papel da grande fazenda na produção
de gêneros agricolas, e atribuir esse papel à pequena propriedade". VIEIRA Jr., An-
tônio Otaviano. Op. cit., pp. 79-80.
122 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 123

lhes façam apreensão nelas e as remetão ao armazém da tado grandemente aquele número e excitado o meu
Fortaleza.186 cuidado a providenciar a obviar todas as desordens,
que de semelhantes princípios demandão; e para de
Desse modo, Feo e Torres referiu-se ao aumento do algum modo o conseguir, tenho sido obrigado a usar
núme~o de "vadios ~ ociosos" na capitania que, segundo ele, de alguns castigos arbitrários, também pelos contínu-
andariam a causar gravíssimos danos à Real Fazenda e ao os rogos dos prejudicados, visto que não há cadeias
socego público e particular" através de "roubos, assassínios e seguras para tantos ladrões e malfeitores, e nem se
insultos". As suas considerações ganham maior importância
poderião, ainda que as houvesse, conservar com vida
pelo fato de terem sido feitas um ano antes do início da
tantos indivíduos em prisão sem terem sustento.187
devastadora seca de 1791-1793, que ficou conhecida pela
denominação de "Seca Grande" na memória popular e foi
O capitão-mor faz alusão às constantes reclamações
a~~ntad_a pelos contemporâneos como responsável pela
que alegava vir recebendo e menciona a falta de segurança das
diz~rr:açao ~e grande parte do rebanho da capitania, o que
cadeias na capitania, referindo-se ainda ao elevado número de
tena mc~us1ve provocado o declínio da indústria do charque na
criminosos no Ceará, que seria tão grande que seria impossível
economia cearense. Mais uma vez, verifica-se que a ocorrência
sustentá-los presos. Feo e Torres chega até mesmo a confessar
de secas não se sustenta enquanto fator explicativo exclusivo
que se utilizava de "castigos arbitrários" para tentar conter a
para a violência do cotidiano na capitania.
situação, o que acaba indicando que alei não era cumprida nem
A respeito dessa mesma violência, um relatório do
por ele mesmo, principal responsável pelo seu zelo. 188 Chaino
capitão-mor Luis da Mota Feo e Torres de 1792, escrito
a atenção aqui para o fato de que, justamente naquele ano de
portanto durante a Seca Grande, informa que:
seca, o capitão-mor Feo e Torres referiu-se em seu relatório
ao rei a uma alegada "ingênita preguiça" que segundo ele
O mal hábito da plebe deste continente, a sua situ-
dominaria os povos da capitania e que, assim como a "fome"
ação de acomodação para insultos e furtos de gados generalizada e o "excessivo uso de armas", teria relação direta
sempre dispersos nestes vastos sertões, fazem que com o grande número de criminosos e a ocorrência de crimes
esta capitania seja de longos tempos um viveiro e re- na capitania, dentre os quais ressalta o furto de gados.
ceptáculo de ladrões e facinorosos: o excessivo uso O discurso sobre a alegada "preguiça" dos moradores
das armas e a fome que geralmente se experimenta no da capitania era frequentemente acionado pelas autoridades
presente ano e teve princípio no passado, unido à in- régias locais: o próprio capitão-mor Feo e Torres associou
gênita preguiça que domina estes povos, tem augmen-

187 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 12, Documento 687.
186 APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). "Edital 188Laura de Mello e Souza observa que na manutenção do sistema colonial o pró-
para os Inhamuns a respeito dos vagabundos, criminozos, dezertores; e que uzão de prio poder constituído associava intimamente o cumprimento da lei e o exercício da
armas prohibídas", 25 de novembro de l 791, fts. 67v-68. violência. SOUZA, Laura de Mello e. Op. cit., pp. 116-129.
124 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 125

criminalidade a ociosidade e vadiagem em 1789; já o ouvidor são entre eles usuais. A história de crim~s, semelhantes
Manuel Magalhães Pinto e Avelar, por sua vez, referiu-se em das gentes do novo mundo, depois de verdadeira, que
1787 à "amada ociosidade das gentes" dos sertões cearenses1ª9; mais pode faltar senão que a pena daqueles que a escre-
e o autor da Memória geográfica abreviada da capitania do veram fosse guiada pela experiência de ouvir e ver jun-
Ceará considerou em 1816 que além da "ocorrência de secas", to a si feitos tão bárbaros, acompanhados de acidentes
do "furto de gados" e da "frequência dos crimes de morte",
de tal natureza que deixam em suspensão o espírito
entre as causas do entrave do desenvolvimento da capitania
se o delito é mais feio, se o modo de apertrar. Tauá,
deveriam "entrar em linha de conta a preguiça, o prejuízo
Inhamuns e Serra dos Cocos, distantes desta vila [de
de não servir homem forro, ainda que seja preto". Tratava-
se, assim, da utilização daquilo que Laura de Mello e Souza Fortaleza] mais de 100 léguas, junto às extremas das
chamou de "ideologia da vadiagem" adaptada às condições capitanias do Maranhão e Piauí e outras terras do ser-
locais cearenses ou, em outras palavras, a versão que aquele tão repetidas vezes no círculo do ano é theatro d'estes
discurso assumiria nos sertões da pecuária. 1 90 ' horrores, e quando os persegue a justiça passam-se
Engrossando a reincidente descrição feita pelos para aquelas capitanias. 191
funcionários régios do cenário de crimes e violência na capitania,
o governador Bernardo Manuel de Vasconcelos escrevia ao então E passados dois anos, em 30 de set~mbro de 1802
príncipe regente D. João VI em primeiro de janeiro de 1800: escreveu novamente o governador Bernardo Manuel de
Vasconcelos ao real soberano sobre:
Passo agora a dizer do caráter e qualidades moraia dos
povos desta capitania: um gentio turbulento e receoso, ... a indizível dificuldade que por falta de justiça havia
a vingança por meios fracos e sinistros, e os assassínios sempre de se capturarem os réus de crimes, logo que
os commetessem, ficando deste modo impunidos
os seus autores e as leis iludidas pelos facinorosos,
189 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa li , Documento 644.
os quais achando em menos de um dia nas extremas
190 "À perplexidade do homem livre pobre e constantemente desclassificado, a ca-
da capitania da Bahia com que confina o Tauá a sua
mada dominante opôs um corpo bastante organizado de formulações, cujas raízes segurança por se ignorarem os seus delitos, ficavam
lançam seus frutos ainda hoje, pois foram incorporados e reelaboradas pela nossa assim desembaraçados para perpetrarem outros iguais
tradição autoritária. Em síntese, a camada dos homens pobres era tida como uma ou maiores naquela colônia, tendo ao mesmo passo
outra humanidade, inviável pela sua indolência, pela sua ignorância, pelos seus ví- escapado ao castigo que nesta mereciam.192
cios, pela mestiçagem ou pela cor negra de sua pele; habitantes de uma terra rica
e farta, esses homens nada faziam para dela conseguir frutos: preferiam viver de
expedientes e de esmolas, descurando do futuro, repudiando as formas permanentes
da atividade econômica e abraçando um modo de vida itinerante e imprevidente.
( ... )A indolência e a preguiça - transcendentes por todo o Brasil- grassavam entre 191"Documentos para à história do governo de Bernardo Manoel de Vasconcellos
a gente livre pobre, "gente degenerada de costumes". SOUZA, Laura de Mello e. (Collecção Studart)". ln: RIC, tomo XXVIH, 1914, p. 333 .
Op. cit., pp. 219-220. 192 Bernardo Manuel de Vasconcelos em 30 de setembro de 1802. Idem, p. 365.
126 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 127

Um d.etalhe que merece ser destacado aqm e o da constrangedora confissão dos próprios agentes do poder
desconhecimento de Bernardo Manuel acerca dos limites instituído, sobretudo capitães-mores e ouvidores. 196
da capitania que governava já há três anos, posto que
a capitania da Bahia não limitava com o Tauá cearense,
como afirma. De qualquer modo, essa constatação 4.2 Cotidiano em armas: o disseminado uso de armas
acaba por evidenciar a extensão da capitania como um e sua proibição
dos motivos mais reincidentemente apontados pelos
capitães-mores para justificar o cenário de crimes e Para o europeu acostumado a viajar com relativa segu-
impunidade no Ceará. rança, sem recurso ao porte de armas, o encontro de
O autor da Descrição abreviada da capitania do Ceará, viajantes trigueiros com ar de salteadores, cada qual
escrita em 1816, relatou a "facilidade de se manter de furto armado de pistolas, espada, adaga, faca e espingarda,
de gados, a frequência dos crimes de morte, que perde logo dá idéia muito desfavorável da moral desta gente. As-
dois homens o morto e o agressor, que ordinariamente escapa sassinatos e roubos são frequentes entre eles, raramen-
não só pela fugida e dificuldade de se apanhar nos longos
te se verificando um sem o outro ...
matos, mas pela indiferença com que os habitantes olham
para o crime de morte e a prontidão com que acoitam a dão
George Gardner, 1838197
passagem aos criminosos".193 O mesmo autor considerou que
muitas fazendas de gado na capitania serviam "de valhacouto
a vadios, que a título de criação de gados vivem sendo Constando-me tão bem que na Ribeira dos Caratiüs
daninhos e ladrões nas fazendas vizinhas". 194 Ainda segundo nos confins desta Capitania com a de Piauí, se havia
ele, entre as causas das dificuldades do desenvolvimento da congregado um gran de número de facinorosos, que
capitania estariam o "pouco amor ao luxo bem entendido e sem temor algum de Deus nem das Justiças se ocupa-
nenhum horror ao crime, com 'que tanto se tem familiarizado vão somente em roubar e mat ar, andando carregados
o povo da capitania, que é ponto de honra e caprixo defender de armas de fogo e facas , com tal atrevimento que até
e acoitar o homicida". 1 95 aos sagrados templos e seus ministros perdião o res-
Como foi visto, o longo inventário acima aponta a peito assistindo ao tremendo sacrifício da missa os ho-
reincidente referência à violência, ocorrência de crimes e
fragilidade de imposição da justiça régia :ha capitania do Ceará
ao longo de todo o século XVIII, na maioria das vezes através 196 Em termos gerais, parecem ter sido bastante comuns os lamentos dos adminis-
tradores coloniais, de forma que nesse ponto o Ceará não se constituía em exceção.
SOUSA, Laura de Melo e. Op. cit., pp. 91 -92. Minha leitura sobre o caso cearense
é que os agentes coloniais, diante de uma inegável realidade de relativo descontrole,
193 "Descrição geográfica abreviada da capitania do Ceará ...;•. Op. cit., p. 13. buscavam utilizar o quadro de desordem e dificuldades no sentido de dirimir sua
194 Idem, p. 9. ingerência e enaitecer os seus alegados esforços.
195 Idem, p. 30. 197 GARDNER, George. Op. cit., p. 84.
128 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 129

mens com espingardas na mão, pistolas e bacamartes Havia mencionado páginas atrás a determinação régia
na cinta, e as mulheres com facas ... de 1761 que trazia, entre outras medidas controladoras,
a ordem de que "se não consentissem armas de qualidade
João Baptista de Azevedo Coutinho de Montaury, capi- alguma" em posse dos ciganos que habitavam os sertões. Referi-
tão-mor da capitania do Ceará, 1782.198 me também ao édital de 1789, que buscava punir aqueles que
fossem considerados "vagabundos, criminosos, desertores e
Como fica claro na citação de Gardner acima e na que usão de armas proibidas"; assim como ao relatório de 1792
descrição fornecida por Koster sobre a indumentária do do capitão-mor Luis da Mota Feo e Torres, no qual o mesmo
sertanejo em viagem, que incluía chicote, espada e pistola afirmava que o "excessivo uso de armas" consistia em uma
pederneira, os viajantes estrangeiros que vieram ao Ceará nas das razões para o grande aumento do número de "insultos" e
primeiras décadas do século XIX não deixaram de destacar um "furtos de gados" verificados naquele ano de seca.
importante aspecto da vida cotidiana nos sertões cearenses Ainda nesse sentido, a carta do capitão-mor do
que estava diretamente relacionado ao cenário de violência Ceará João Baltasar de Quevedo Homem de Magalhães
que disseram encontrar no Ceará: a ampla difusão do uso de ao rei D. José 1, datada de 1760, é certamente um dos
armas pelas populações sertanejas. mais interessantes documentos sobre o uso de armas no
.? rigo~o~o livro quinto das Ordenações Filipinas, que
Ceará do período. Esta carta trata-se, na verdade, de uma
coletânea de representações sobre a proibição do uso de
cons1st1a no cod1go de leis pelo qual se baseava a governança da
América portuguesa, já trazia a preocupação com o controle e a armas de fogo que haviam sido decretadas pelo ouvidor da
normalização do uso de armas. 199 Não obstante a isso, no Ceará capitania, o já citado Victorino Soares Barbosa. Segundo as
por repetidas vezes as autoridades coloniais tentaram coibir próprias palavras do ouvidor, a motivação daquela proibição
o uso indiscriminado de armas através de leis e regulamentos se dava "a fim de se obviarem os execrandos delictos que
que ~mpunham a aplicação de penalidades pecuniárias, prisão com qualquer qualidade de armas de fogo de pederneiras
e ate mesmo degradantes açoites públicos aos portadores de [pistolas] se custumavam cometer assim curtas, como com
armas proibidas. espingardas, de que geralmente o abuso tem facillitado
a todos o entenderem podem licitamente usar destas
espingardas, ou davinas [carabinas] de quatro palmos para
cima nesta mesma comarca" do Ceará. 2 ºº
19
~ ~xposição de João Baptista Coutinho de Montaury, 31 de dezembro de 1782.
Como reação imediata à citada proibição do uso de
B1bhoteca do Palácio Nacional da Ajuda. Ms. Av. 54-XIII-16, n. 141ª, ft. 4v. armas de fogo na capitania, o capitão-mor João Baltasar
199
Segundo a opinião de Fernando Almeida, "no que tange ao Direito Penal, 0 Li- escreveu carta ao rei na qual, utilizando-se da habitual
vro 5º das Ordenações Filipinas era de um rigor que tocava as raias do ridículo". retórica empregada pelas autoridades setecentistas, se diz
ALMEIDA, Fernando Mendes de. "O direito português no Brasil". ln: HOLANDA
Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. Tomo I: época colonial'
2º volume: administração, economia, sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil'
1997, p.47. ' 200
AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 07, Documento 480.
130 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 131

estar investido do papel de "Procurador" do povo do Ceará e defesa dos vassalos sertanejos, "expecialmentenos remontados
informa à "Sua Majestade Real" sobre: sertões deste Brasil onde girão tanta qualidade de vadios, mal
feitores e facinorosos, além dos mais perigos em que andão os
viangeros, e por causa das muitas feras de que se compõem
...a grande consternação em que se acha todo o povo desta estes sertões". Acrescentou ainda que em consequência
capitania por causa do edital que mandou fixar em todas as de "semelhante excesso" do ouvidor inviabilizavam-se as
partes públicas da comarca o ouvidor-geral atual Victorino diligências destinadas à captura de criminosos pelas tropas
Soares Barboza para efeito de proibir totalmente aos de ordenanças devido ao fato de que tanto os seus soldados
habitadores desta capitania toda a qualidade de armas de quanto oficiais ameaçavam negar-se a cumprir o real serviço,
fuzil ou pederneira, assim curtas como compridas ... 2 1 º temendo o pagamento de "justificações" à justiça em razão do
porte de armas, que se via agora, segundo a sua ótica, radical
Escrevendodeformaapôremevidênciaasuaindignação, e autoritariamente tornado ilegal. Apresentando os motivos
talvez originada muito mais por um conflito de autoridade acima, o capitão-mor concluiu gravemente: "Faz-se impossível
com Victorino do que pela a proibição ou não do uso de armas Senhor, a observância de semelhantes leis, ainda tendo
na capitania202, João Baltasar acusou o ouvidor, dizendo que lugar pelos dilatados e perigosos desertos destes sertões".
ao publicar as novas leis sobre a proibição de armas de fogo de Apesar da famosa rixa entre o capitão-mor João Baltasar
cano curto determinadas por El Rey D. José I, havia incluído e o ouvidor Victorino, o que torna a carta de João Baltasar
a reedição de duas "antiquíssimas" leis proibitivas do uso de bastante significativa, no entanto, é a representação contrária
armas criadas pelo rei Felipe II de Espanha e que remontavam, à proibição do uso de armas que trazia em anexo, assinada por
portanto, ao período da União Ibérica (1580-1640). O capitão- todos os oficiais da câmara de Icó.
mor alegou a arbitrariedade daquela medida argumentando As figuras 3 e 4 abaixo, retiradas da História Militar
que as armas eram instrumentos que se faziam necessários à do Brasil escrita pelo cearense Gustavo Barroso, apresentam
armas de fogo utilizadas na América portuguesa ao longo dos
séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. Apesar de Gustavo Barroso
201
Idem. apresentá-las em seu livro como armamentos utilizados pelas
202
É bastante conhecido o conflito entre o capitão-mor João Baltasar de Quevedo tropas militares coloniais e pelo exército brasileiro, que só
Homem de Magalhães e o ouvidor Victorino Soares Barbosa, de cuja polêmica não surgiria na segunda metade do século XIX, aparecem com
tratarei aqui por considerar uma disputa ainda bastante obscura e merecedora de in- frequência na documentação colonial cearense como artefatos
vestigações. Segundo Tristão de Alencar Araripe: "Este governador [João Baltasar]
e o ouvidor Vitorino Soares tiveram indecente contenda. O ouvidor queixou-se do
de utilização cotidiana pelos moradores do Ceará setecentista,
governador imputando-lhe prevaricações, ao passo que este acusava o ouvidor de especialmente aspopulares pistolas de pederneira, espingardas,
querer assassiná-lo, chegando a convidar pessoas para semelhante atentado. Este carabinas e clavinas.
ouvidor passou como arbitrário, foi arguido de vender a justiça e dilapidar os dinhei-
ros públicos; o que é certo é que comprou fazendas de gado no Riacho-do-Sangue e
arrematou dízimos reais por interposta pessoa, a qual faliu sem pagar o débito à Real
Fazenda''. ARARIPE. Tristão de Alencar. Op. cit., p. 146.
132 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 133

Figura 2 No ano seguinte à publicação da proibição do uso de


ARMAS DE FOGO: SÉCULOS XVI, XVII E XVIII armas de fogo na capitania cearense, era chegada a vez das
armas ditas brancas. Assim, em 25 de julho de 1762 registrava-
se na câmara da vila de Icó, uma das mais antigas vilas cearenses
.t . . que funcionava como importante entreposto comercial na
porção central da capitania, exatamente no cruzamento dos
z· ·. .. dois maiores caminhos do Ceará, a Estrada Geral do Jaguaribe e
a Estrada das Boiadas, uma outra lei régia que determinava que:

····~ ... nenhuma pessoa de qualidade, estado ou condição que


seja possa trazer consigo faca das proibidas (...) mas de
qualquer forma que seja fabricada( ...) a ponta dela se puder
fazer ferida penetrante nem outrossim possa trazer adaga,
punhal (...) ou estoque [tipo de espada comprida], ainda
Fonte: BARROSO, Gustavo. História militar do Brasil. São Paulo: Companhia Edito- que seja de (... ) tesouras grandes (...) outra qualquer arma
ra Nacional, 1935, p. 102. ou instrumento quer seja composto de ferro, aço, bronze
ou de outro metal e ainda de faca que com a ponta se podem
Figura 3 fazer ferida penetrante e só poderão trazer de espada de
ARMAS DE FOGO: SÉCULO XIX marca ou espadins que não tenham menos de três palmos
de comprimento fora o punho e trazendo-o à sinta para
que se possa ver todas as mais armas e instrumentos, além
dos sobreditos que unicamente permito se possam trazer
na forma declarada fi.cão prohibidas e condenados ... 203

J, 14.J:itii.p.icl. cm 'rn11M~ 4o ~•ln. Toww 011 P•~ p&l'll lalaftl&fta.


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5. OIHW d. Pfderna.lra ~ ~..!.Q4...
C.:Pi.l.oladii~r-.
º
2 3 APEC. Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias
da câmara da vila de Icó (1761-1796), Registro de huma ley q. mandou registar o
Doutor ouvidor Geral e corregedor desta commarca Victoriano Soares Barboza es-
tando em correyção na qual prohibe Sua Magestade Fidelíssima q. nem huma p.ª de
Fonte: BARROSO, Gustavo Dodt. História militar do Brasil. São Paulo: Companhia qualq.r qualid.• ou condição q. seja traga faca adaga punhal(... ) nem outra qualquer
Editora Nacional, 1935, p. 103. arma com q. se possa fazer ferida penetrante, 13 de março de 1766, fls. 24-25v.
134 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 135

A sua publicação em Icó havia sido determinada pelo Figura 4


mesmo ouvidor e corregedor-geral Victorino Soares Barbosa ESPADAS: SÉCULOS XVII, XVIII B XIX
e seu extenso e detalhado texto ordenava, na verdade, o
cumprimento de todas as leis e decretos já anteriormente
editados sobre a proibição do uso de facas de pontas, canivetes,
navalhas ou "qualquer outro instrumento que possa fazer
ferida penetrante". A proibição era extensiva a todos, não
importando "qualidade, estado ou condição" e, destarte, não f.
trazia as usuais exceções, diferenciações e privilégios típicos da
'·;:: ·
t ·.
legislação do Antigo Regime adotada nos domínios do império '~ .;
ultramarino português.
Parece ficar claro que as edições de coletâneas das
leis proibitivas do uso de armas no Ceará estão diretamente ' · a.:.. ill • n..,.._
'·.,.. "'-..i.iõk. 1u.. ur..
U~ allU.

relacionadas às reedições de leis e alvarás respeitantes ~ ..


ao combate à criminalidade nos sertões vindos à tona t·· . . . m- .... ~- .- .... , .._ -"""'

especialmente a partir de meados do século XVIII. Conforme


vimos, em 1763 o próprio ouvidor Victoriano Soares Barbosa Figura 5
fizera menção aos "crimes de morte" ocorridos no termo da LANÇAS: SÉCULOS XVII, XVIII E XIX
vila de Icó, mesma vila onde publicou a proibição do uso de
armas brancas.

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:11- t.·&ol-
• - a..Mt..

Fonte: BARROSO, Gustavo Dodt. História militar do Brasil. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1935, pp. 109 e 106.
136 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 137

Já em 1804, o governador e comandante geral das armas mor declara que a "polícia e boa ordem" deveriam "reinar" na
da capitania do Ceará, João Carlos Augusto de Oeynhausen, capitania, podemos concluir, por negação, que nem mesmo
tomou um conjunto de medidas que, segundo suas próprias a capital ·da capitania, onde residia o capitão-mor e ficavam
palavras, visavam "obstar a excessiva devassidão que tenho sediadas e estacionadas as tropas de primeira linha, parecia
observado nesta capitania e pôr termo à ilimitada liberdade escapar do lastro da criminalidade e da violência, estas sim
com que certa classe de gentes, professando um escandaloso aparentemente reinantes. E não escapava mesmo.
desprezo para as sagradas e respeitaveis Leis de Sua Alteza Justamente a esse respeito, temos notícia que por volta
Real, o Príncipe Nosso Soberano, adotão uma vida errante e das nove ou dez horas da noit e de 13 de junho do ano de 1788,
vagabunda, tornando-se pelo ócio a que se entregão não só o pardo Roque Pereira estaria "manso e pacífico" dedilhando
inúteis, mas até ruinosos à sociedade pela desorganização e mal sua viola na fazenda Maracanaú, localizada no termo da vila
exemplo que nella introduzem". 204 Esse conjunto de ordens de Fortaleza, onde era morador. No ent anto, um preto forro
destinava-se inicialmente à vila de Fortaleza que, como sede "vagamundo" chamado Francisco, "arrogantemente" pedira-
do governo da capitania, deveria funcionar como exemplo, lhe a viola que tinha em suas mãos, "e por não lha querer dar
"modelo das outras vilas, tanto pelo seu regime particular, logo imediatamente arrancara de uma faca flamenga de ponta
como pela polícia e boa ordem que nella devem reinar, e como e com ela lhe dera três facadas penetrantes, uma na coxa
demais a exactidão e vigilância". Instruía Oeynhausen: da perna esquerda, outra na cabeça acima da testa da parte
direita e outra nas cadeiras da mesma parte direita que todas
Recomendo muito positivamente ao capitão, que co- deramaram copioso sangue".2 6 º
manda a guarnição desta vila, assim como ao juiz or- As linhas do parágrafo acima consistem na versão
dinário dela, que cada um pela parte que lhe toca fação apresentada por Roque Pereira na denúncia que prestou do seu
observar a mais bem entendida polícia... 2os agressor, o preto forro Francisco. As cenas deste caso comezinho
ajudam a nos mostrar o quão vulgarizado continuava a ser o
Tratavam-se, pois, de medidas de controle sobre a uso de armas, até mesmo nos arredores da vila de Fortaleza,
população baseadas na expedição e obrigatoriedade do uso sede do governo da capitania, a despeito das edições de leis·
passaportes e no combate ao porte de armas proibidas. No proibitivas. O episódio deixa claro que Francisco andava
tocante ao porte ilegal de armas, Oeynhausen asseverou que habit ualmente armado, não obstante as expressas proibições
aquele que fosse "suspeito por trazer armas proibidas será régias a este respeito. A frequente invocação das leis relativas
preso e empregado nas obras das fortificações de Mucuripe". à proibição do uso de armas nos processos criminais da
Destaco ainda o fato de que se em seu discurso o capitão- época, os autos de querela e denúncia, acionada por indivíduos

204 206 APEC. Livro 146l: Autos de querella (1780-1793), "Auto de querella e denúncia
APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). Bando que dá o Pardo Roque Pereira morador da fazenda de Maracanaú termo desta Villa
de 28 de janeiro de 1804, fi. 75-76v.
do preto forro chamado Francisco, vagamundo e de prezente prezo na Cadêa da
205
Idem. Fortaleza desta Villa" em 1788, fi. 13v-15v.
138 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 139

de diferentes camadas e categorias sociais, no entanto, visto Luiz Marreiros "morto a cutiladas e estocadas de catana
demonstram inclusive que tais determinações proibitivas não parnaíba, a qual cutilada fora dada em cima do peito direito, e
se faziam desconhecidas da população da capitania. 2 7 º uma cutilada no pescosso, e mais outra na cabeça, e outra mais
Um caso muito mais brutal envolvendo o uso de armas nas cadeiras, e mais outra no calcanhar, e mais outra cutilada
proibidas ocorreu na vila de Campo Maior, atual cidade de sobre a mão direita que lhe cortaram dois dedos que ficaram
Quixeramobim, no ano de 1807. Aos quatro dias de abril do · pendurados, e tudo fora feito com catana e parnaíba". 2 8 º
mencionado ano o capitão Luiz Marreiros de Mello havia ido Segundo o pedido da viúva Izabel Francisca do Espírito
até à ribeira de Mombaça por conta de ajuntar uns "gados Santo, mãe dos dez filhos menores que lhe deixara o agora defunto
grossos" que lhe deviam naquelas bandas. Tão logo tiveram capitão-mor Marreiros, se fazia preciso "passar as ordens necessárias
notícia de que o dito Luiz Marreiros, com quem nutriam rixa com todo o segredo de justiça para serem presos os criminozos,
antiga, estava de passagem na casa do sargento-mor Pedro pedindo-se auxilio da milícia, sem a qual se não conseguiria a
de Abreu Pereira, imediatamente Pedro Muniz e seu cunhado prisão de nenhwn deles, porque tem muitos que os apatrocine,
de nome Thomas trataram de marchar com toda a pressa e passando-se, se for necessário, precatórias para as justiças das
naquela direção, ambos munidos de grandes facas parnaíbas comarcas do Piauí, Cidade de Oeiras, de São Luiz do Maranhão
e espadas catanas e com a idéia fixa de que havia chegado a e de Pernambuco". Através dos.eu pedido, Izabel demonstra ser
hora de resolver suas diferenças com o tal capitão Marreiros. sabedora de que a proteção de senhores poderosos ou a simples fuga
Seguia-lhes armada de vara de ferro Maria Manoela, mulher para fora dos limites da capitania poderia representar a liberdade
de Pedro Muniz e irmã de Thomas. Entrando portas adentro, para os autores das facadas que mataram seu marido.
o grupo de parentes armados surpreendeu Luiz Marreiros No registro de queixa contra os assassinos do pai de
desprevenidamente rezando o ofício de Nossa Senhora seus filhos, Izabel afirmou que Pedro Muniz e seu .cunhado já
da Conceição. Apercebendo-se da invasão homicida, o há algum tempo haviam jurado seu marido de morte, e que
desafortunado Luiz ainda largara o livro de rezas que tinha em andavam a atocaiar-lhe, o que necessariamente implicaria em
suas mãos em busca de sua espingarda que se encontrava a um andarem armados no seu encalço. Mesmo que isso se tratasse
canto, intento que lhe fora impossível realizar dado o número de apenas de um recurso jurídico para agravar a acusação, o que
perfurações mortais que lhe foram desferidas. No auto de corpo é certo é que Luiz Marreiros, por seu turno, não se furtava
de delito que se sucedeu ao sinistro, José Ferreira de Andrade da companhia de sua espingarda nas andanças que fazia para
jurou com sua mão direita sobre os "Santos Evangelhos" ter tratar de seus negócios com gados nos sertões cearenses.

207 208
"A leitura de processos criminais entre os anos de 1780-1850 revelam que a "Auto de Querela e denuncia que dá Izabel Francisca do Espírito Santo viúva de
maioria dos atentados contra a vida era impetrada através do uso de armas de fogo, Luiz Marreiros de Mello, morador no Termo da Vila de Campo maior; de Pedro Mu-
de facas e paus. ( ... ) Tal aspecto apontava para a disseminação comum do uso e nis, a mulher deste Maria Manoela e oIrmão desta Thomas de tal, todos mamalucos
porte de armas e, ao mesmo tempo evidenciava um conhecimento mínimo dos im- Cazados moradores em João Barros". APEC. Livro 33: Autos de querella (1807-
pedimentos legais. Os artigos [das leis proibitivas do uso de armas] eram citados por 1813). ln: XIMENES, Expedito Eloísio. Autos de querella e denúncia... : edição de
advogados, por vítimas e aceitos enquanto agravante pelos juízes de paz ou ordiná- documentos judiciais do século XIX no Ceará para estudos filológicos. Fortaleza:
rios". VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. Op. cit., p. 174. LCR, 2006, pp. 84-89.
140 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso 1heatro de Horrores 141

Melhor sorte que a do finado capitão Luiz Marreiros costelas debaixo do braço da parte direita( ...) saciando assim
teve Antônio de Souza Leal. Em 1808, após uma discussão a o seu ódio e paixão". 213 Provavelmente, a punhalada, realizada
respeito de uma vaca na localidade de Ipueira do Costa, termo com a arma do próprio defunto, tinha a função de confirmar a
da vila de Sobral, Antônio Leal foi atacado por cutiladas209, sua morte. Mais uma vez, tanto agressores quanto agredidos
mas teve, porém, a fortuna de ter a vida poupada graças à trazem, ambos, suas armas à tiracolo.
intromissão da gente que ali estava. Mesmo assim, a violência Uma outra denúncia judicial que ajuda a avaliar o
penetrante dos golpes recebidos por Antônio fora suficiente índice de vulgaridade do uso de armas pelos moradores da
para deixar-lhe como sequela o braço esquerdo aleijado. 21 º capitania é a acusação do "velho" José Carneiro Pereira contra
Os dois últimos casos discutidos envolviam o Francisco Correia, Manoel Bezerra, Reinaldo Gomes de Matos,
cotidiano dos moradores no trato de negócios relativos a José da Cunha, Claudino "de tal" e ainda um outro sujeito
gados pelos sertões cearenses. Em sua visita à capitania em chamado Vicente, este último classificado no auto como "cabra
1810, Henry Koster asseveraria em tom de alerta: "É um . e cnmmoso
(...) so1teiro . . ", to d os moradores na VI·1a d e I co.
, 214
serviço perigoso ir ao interior cobrar dívidas". 211 Também Segundo José Carneiro, na noite de 7 de agosto de 1810, todos
Capistrano de Abreu referiu-se à "dificuldade em cobrar aqueles homens, fortemente armados, invadiram a sua casa e
dívidas" nos sertões da pecuária.212 o atacaram tentando obrigá-lo a "lhes entregar o dinheiro que
Em 7 de dezembro de 1810, na localidade de Jaguaribe- tinha, e não o entregando (. ..) pelo não ter, e gritando para que
Mirim, termo da vila de Nossa Senhora da Expectação do Icó, acudissem três vizinhos, o feriram do modo que se vê declarado
o fazendeiro e sargento-mor João Martins de Melo tombou do no auto de vistoria".215 Apesar de no exame de vistoria anexo
alto de seu cavalo atingido por um brutal disparo de bacamarte à à acusação as testemunhas atestarem que José Carneiro
queima-roupa. Definitiva e fatal, a poderosa rajada de chumbo apresentava várias feridas e cortes de diferentes proporções
esfolara o pescoço da vítima. O sangue-frio dos executores decorrentes de sucessivas facadas, José Carneiro alegou que
do atentado ficou evidenciado quando após o disparo, um na verdade o bando trazia consigo um verdadeiro arsenal:
dos matadores aproximou-se da vítima, "tirou-lhe o traçado "facas parnaíbas, [espadas] catanas, espingardas, bacamartes, e
que ele trazia a sinta e com ele mesmo deu uma estocada nas
213 "Auto de querela, e Denuncia que dão Francisca Maria de Oliveira Viuva do
Sargento Mor João Martins de Melo e os mais Erdeiros filhos destes, e o curador dos
209
Cutilada: golpe de cutelo, sabre, espada, etc. Cutelo: 1. Instrumento cortante, menores o advogado José da Silva Guimarains, contra Narcizo Pereira Grangeiro, de
semicircular, de ferro. 2. Utensílio semelhante a esse, especial para cortadores e João Martins de Melo, e do Pai destes o Coronel Manoel Martinis de Melo, pardos
correeiros. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Rio de moradores em Jaguaribe Mirim". APEC. Livro 33: Autos de querella ( 1807- 1813).
Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 137 ln: XIMENES, Expedito Ekiísio. Op. cit., pp. 117-122.
21
º
"Auto de querela, e Denuncia que [dá] Antônio de Souza Lial morador nas Lan- 214 Auto de querela e denuncia que dá José Pereira Carneiro da Vila do Icó contra

xinhas contra José Carneiro morador no Olho d'agua". APEC. Livro 33: Autos de Francisco Correa bi;anco solteiro morador no termo da dita Vila do Icó Manoel Be-
querella (1 807-1 813). ln: XIMENES, Expedito Eloísio. Op. cit., pp. 92-96. zerra , e outros". APEC. Livro 33 : Autos de querella (1 807-1813). ln: XIMENES,
211 Expedito Eloísio. Op. cit., pp. 113-116.
KOSTER, Henry. Op. cit., pp. 187- 188.
2
12 ABREU, João Capistrano de. Op. cit., p. 135. 2 15 Idem, p . 114.
142 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 143

pistolas". Ressalto aqui a grande semelhança com o comentário Álvares, identificada no auto como "parda", estava presa na
geral de Gardner: "cada qual armado de pistolas, espada, adaga, cadeia da vila de Fortaleza pela culpa "do ferimento com faca de
faca, e espingarda". 216 Mesmo considerando a possibilidade de ponta no mulato Antônio, escravo de José Alexandre".221
exagero por parte de José Carneiro, é muito improvável que ele Na década de 1810, o fazendeiro Raimundo Rodrigues
fizesse referência a tipos e quantidades de armamentos que não Aires, declarando-se branco e morador do termo da vila de
fossem possivelmente usados naquele tipo de situação, o que Campo Maior de Quixeramobim, prestou queixa do "mameluco"
implicaria na perca de credibilidade da sua acusação. Estevão "de tal" e do "mulato" Agostinho de "tal". Segundo o
Além disso, sabemos que em 1802 o "pardo" Bonifácio denunciante, os acusados teriam indo até a sua casa com a
Marques teve prisão pronunciada por conta das "cutiladas" intenção de atentarem contra a sua vida: Agostinho estava
dadas em Ignácio Lopes. 217 Naquele mesmo ano, o "pardo" armado com uma faca parnaíba e uma espingarda, ao passo
morador na Serra de Uruburetama, de nome Antônio Albino, que Estevão, por sua vez, trazia consigo uma faca de ponta,
era condenado pela "morte feita a facadas a Antônio Ferreira da uma parnaíba e um bacamarte. Todavia, o que acaba tornando
Cunha". 218 Curiosamente, em outubro de 1807 outro "pardo" aquela denúncia especialmente interessante é a acusação do
também chamado Antônio e morador em Uruburetama era fazendeiro de que "o dito Estevão anda sempre armado de
declarado culpado "na devassa de morte que fez com uma facada uma faca de ponta grande na cintura, o que ele (.. .)tem visto
a José Correia". 219 Em 1809, o "preto forro" Braz de Souza, muitas vezes, e que Agostinho costuma usar de um bacamarte
oficial de pedreiro morador na Prainha, era tido como culpado com o qual o tem visto muitas vezes". 222
pela "morte feita a facadas à índia Márcia de tal, sua amásia". 22 º Não obstante a legislação e as ordens régias, as cenas
Já no ano de 1814, uma tal Antônia, mulher de Castro Antônio cotidianas de agressões com armas que ficàram registradas
na documentação criminal cearense somam-se à recorrente
necessidade de reedição das leis proibitivas e ao reconhecimento
216 GARDNER, George. Op. cit., p. 84. das próprias autoridades coloniais, como capitães-mores, juízes
217 APEC. Livro 01: Rool dos culpados (1793-1817). "Bonifacio Marques pardo e ouvidores, nos indicando não somente a vulgarização do uso e
cazado morador no Jardim pronunciado a prizão e livram. 10 pello Juiz ordinario o porte cotidiano de armas, como tambémaineficáciada publicação
·alferes Ignacio Ferr.ª de Mello pellas cotilladas dadas em Ignacio Lopez em 23 de de leis e medidas proibitivas no Ceará. Paradoxalmente, apesar
8br.0 de 1802'', fl. 7.
218Idem, "Antônio Albino pardo soltr.0 m.º' na Serra da Uruburetama culpado na
morte feita a facadas a Antônio Ferreira da Cunha e pronunciado na devassa que ti-
rou o Juiz Ordinr. 0 Alferes Ignacio Pereira de Mello em 20 de 7br.0 de 1802, fl. 3v. 221 Ibidem, "Antonia Parda M.er do Castro Antônio Alz Fran.co culpada na devaça do
219 Ibidem, "Antônio [ilegível] pardo cazado m.or na Serra da Uruburetarna culpado na devassa ferim. 10 feito com faca de ponta no mulato Ant.0 Escravo de José Alex. Pronunciada
da morte q.• fes com hua fucada [ilegível] José Corr.ª prornmciado pello Juiz ordinar.º o Cap.m pello D.º' J.• da Crus Ferr." em 1l de Fev.'º de 18 14. Preza na cad.ª desta V." solta
José Ign.cio de Olivr.ª e Mello em 7 de 8br.0 de 1807. Prezo na cadea desta V.ª Morto'', fl 5v. por [ilegível] de livram/º", fl. 6v.
220 222APEC. Livro 99: Sumário de querella (1816-1823), fl. 9. Apud: PINHEIRO,
Ibidem, "Braz de Souza [ilegível] preto forro solteiro official de pedreiro m.º'
na Prainha desta V." culpado na devassa da morte feita a facadas a India Mareia de Francisco José. Formação social do Ceará: o papel do Estado no processo de subor-
tal sua amazia, pronunciado pello Juiz ordinr.° Cap.m João Ferr." Gomes em 22 de dinação da população livre e pobre (1618-1820). Tese de doutorado, Universidade
Março de 1809. Prezo na cadeia do Aracati", fl. 7v. Federal de Pernambuco, 2006, p. 134.
144 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 145

das repetidas proibições relativas ao porte de armas, durante o de dentro" ou "sertões das capitanias do norte" através da
período que vai de 1793 até 1815, somente o morador da vila de pecuária.225 Contudo, durante o século XVIII, a criminalidade
Fortaleza Antônio Joaquim de Oliveira foi condenado pelo porte urbana não consistia em problema exclusivo das principais vilas
de armas proibidas na capitania: foi surpreendido trazendo pernambucanas, consistindo em problema comum também a
consigo armas curtas, que eram especialmente proibidas outros grandes centros urbanos, como as cidades de Salvador
por serem mais facilmente ocultadas. Contudo, Antônio não e do Rio de Janeiro. A partir dessas considerações acerca dos
chegou nem mesmo a ser condenado: apelou da condenação e, grandes centros urbanos da América portuguesa, onde se
em segm.da, obteve o seu "livrament o " .223 concentravam a maioria das tropas militares e supõe-se que a
No que diz respeito à relação entre a vulgarização vigilância pública se dava de maneira mais efetiva, pode-se ter
do uso de armas e a criminalidade em geral, não devemos uma idéia do grau de dificuldade ou mesmo da inviabilidade
esquecer a própria política armamentista adotada pela Coroa prática do controle do uso de armas nos sertões da capit ania
. ~ 224 No caso d o Ceara,
portuguesa no processo d e co1on1zaçao. , anexa do Ceará, o que aparece confirmado nos relatos de Koster
especificamente, temos que considerar ainda a ferrenha política e Gardner ainda nas primeiras décadas do século XIX.
de guerra aos índios implementada pelos conquistadores e De acordo com Gardner, nos sertões todos andavam
apoiada pelo governo metropolitano, que fora reafirmada em armados. Para o botânico escocês, esse fato acabava por
diferentes momentos entre fins do século XVII e primeiras criar um círculo vicioso que impunha a exigência do uso
décadas do seguinte, que incluiu o fornecimento de armas aos de armas no sertão, dado a não remota possibilidade de
colonos em 1706, conforme vimos. encontro com eventuais assaltantes, inimigos ou desafetos,
A grande difusão do uso de armas na sociedade, que comumente andavam armados. Assim, as armas se
verificada em todas as camadas sociais, foi apontada por faziam objetos de uso cotidiano e andar armado fazia parte
Evaldo Cabral de Mello corno um dos fatores do crescimento do viver nos sertões.
da violência urbana em Olinda e Recife a partir da crise do
açúcar iniciada em meados do século XVII, justamente quando 4.3 Atentados à propriedade: o abonünável roubo de gados
se inicia o processo migratório de colonização das ditas "terras
O mau hábito da plebe deste continente, a sua situação de
acomodação para insultos e furtos de gados sempre disper-
223 APEC. Livro 01 : Roo! dos culpados (1793-181 7). "Antônio Joaq.m de Oliveira
( ... )solteiro moradornesta V.ª culpado na devaça [ilt:igível] do prez.<anno por Armas
sos nestes vastos sertões fazem
Curtas pronunciado em 26 de fever. 0 de 1812. Apresentou carta de seguro em 30 de com que esta capitania seja de longos tempos um
7br. 0 de 1812. Livre com apelo", fl. 6v. viveiro e receptáculo de ladrões e facinorosos ...
224 "Devemos nos lembrar que a posse de armas é um pré-requisito básico para aque- Luis da Mota Feo e Torres, capitão-mor do Ceará, 1792226
les colonos livres que habitam a zona do açúcar. Pré-requisito imposto pela Coroa
já desde os primeiros passos da ocupação e povoamento do Brasil". SILVA, Kalina
Vanderlei. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: militarização
225 SILVA, Kalina Vanderlei. Op. cit., pp. 148-151.
e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife:
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001 , pp. 149-150. 226 ABU. CT: AHU ACL CU O17, Caixa 12, Documento 687.
146 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 147

Páginas atrás, vimos que em 1704 os vereadores da desta representação os proprietários de gados da ribeira
câmara de Aquiraz representaram queixosamente ao rei D. buscavam pressionar o governo da capitania na tornada
Pedro II sobre os roubos de gados, assassinatos, atentados de alguma atitude no sentido de cessar a continuidade dos
e ataques a fazendas que diziam virem sofrendo dos índios roubos de seus gados, utilizando-se inclusive do argumento
Paiacú na ribeira do Jaguaribe. Vimos ainda que, mais de um de que aquele tipo de delito, além de trazer prejuízos aos
século depois, o autor da Descrição abreviada da capitania do proprietários de gados, causavam a diminuição na arrecadação
Ceará referiu-se à "facilidade de se manter de furto de gados" dos dízimos reais, demonstrando nitidamente a identificação
na capitania em 1816.227 feita pelos moradores entre os interesses régios e a arrecadação
Em 1742, registrava-se outra reclamação acerca do de impostos na capitania. 230 Essa constatação se reveste de
frequente roubo de gados por índios na capitania, dessa vez maior importância na medida em que sabemos que no Ceará a
mencionando-se a: · principal fonte de arrecadação do fisco real era a arrematação
dos contratos sobre o gado e que a ribeira do Jaguaribe, a qual
... queixa dos povos contra os gentios da missão da telha do pertencia o Aracatiassu, respondia com cerca de 26% do total
Quixelou, que nas saídas que faziam para as pescarias, e da arrecadação na capitania por volta de 1774. 231
por ordem do ouvidor, se prevaleciam destas ocasiões para Apesar de ser incisivo, em sua resposta o capitão-mor
roubarem e matarem gados, e pilhavam o quanto achavam, Victoriano Borges da Fonseca relegou a responsabilidade de
o que se atribue à pouca ou nenhuma energia do seu combate ao roubo de gados na ribeira aos próprios comandan-
missionário, que tolerava esse abuso.228 tes das tropas locais, o que deixou evidenciado o seu limitado
poder de ação em relação àquele tipo de crime:
Em 31 de maio de 1769, por sua vez, os "senhores de
fazendas" da ribeira do rio Aracatiassú enviaram requerimento
ao capitão-mor Antônio Victoriano Borges da Fonseca no qual 230 Nesse sentido, convém lembrar o conceito de "autoridades negociadas" desen-
afirmavam que "experimentam grande prejuízo nos seus gados
volvido por Jack Greene que "sustenta, em grande medida, o debate no qual os
com diminuição nos dízimos reais pelas muitas vacas, bois, historiadores dos impérios vêm reinterpretando aquilo que até então era considerado
garrotes e cavalos que se matam e dispõem contra a vontade como um dualismo rígido e inflexível entre metrópole e colônia, favorecendo a per-
de seus donos, pegando-se absolutamente no campo sem cepção de que havia um elevado potencial para a negociação entre os representantes
serem pedidos, como se fossem senhores deles". 229 Através da coroa no ultramar e os colonos". RUSSEL-WOOD, A. J. R. "Prefácio". ln: FRA-
GOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima
Silva (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (sécu-
los XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização.Brasileira, 2001, p . 12.
227 "Descrição geográfica abreviada da capitania do Ceará..." Op. cit. p. 13. 231 MENEZES, José Cezar de. "Idéa da população da Capitania de Pernambuco, e
228"Extractos dos assentos do antigo senado do Icó, desde 1738 até 1835". ln: RIC, das suas annexas, extenção de suas costas, rios, e povoações notaveis, agricultura,
tomo IX, 1895, p. 225. numero dos engenhos, contractos, e rendimentos reaes, augmento que estes tem tido
229 APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). Bando &ª &" desde o anno de 1774 em tomou posse do governo das mesmas Capitanias
que mandou Iansar o Senhor Tenente Coronel Governador a respeito dos ladrões de o governador e capitam general José Cezar de Menezes". ln: Annaes da Biblioteca
gados, 31 de maio de 1769, fts. 59v-60. Nacional do R io de Janeiro, vol. XL, 1918, Rio de Janeiro, 1923.
148 José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso Theatro de Horrores 149

E porque é da minha obrigação como governador desta


ainda enfrentavam a rigorosa seca de 1791-1793, diante das
capitania dar providência a este prejuízo inconsiderável
repetidas queixas que lhe eram remetidas de diversas partes da
para o sossego da República, ordeno ao comandante da-
capitania, Feo e Torres mandou publicar em toda a capitania
quela ribeira que tendo notícia de quaisquer gados va- um bando que tratava dos furtos de gados e de roças:
cuns e cavalares que se pegarem sem ordem expressa de
seus donos, faça prender e remeter presos para a cadeia Porquanto tem chegado em repetidas queixas a mi-
desta Fortaleza a todos que se acharem culpados nestes nha presença que tendo-se refugiado de outras a
absurdos e furtos, para dela serem entregues à justiça esta capitania inumeráveis vadios, vagabundos, ban-
e punidos conforme o que dispõem as leis do Reino, e didos e facinorosos de um e outro sexo, e de todas as
não o fazendo, por sua omissão ficar responsável como qualidades, augmentarão excessivamente o numero
consentidor dos referidos furtos. E os comandantes das assaz crescido, que nela havia de ( ... ) indivíduos que
companhias de auxiliares e cavalaria dêem todo auxílio [ilegível] tando-se huns, e discorrendo outros por vá-
de mão militar que lhe for requerido pelo mesmo coman- rios lugares das ribeiras de Jaguaribe e lcó, as tem
dante da n"beira
. para mte1ra
. . execussao - des t e e d"tal
i .
232
devastado, assolado e destruído, ainda mais do que a
mesma [ilegível], com que a mão o mui potente quis
Poucos dias depois do requerimento dos fazendeiros
flagelar a maior parte deste continente, propondo se
do Aracatiassú, uma portaria de 3 de junho de 1769 acerca
extinguir com violência e escandalo jamais visto os
do pagamento dos dízimos reais pelos rendeiros de gados traz
gados e lavouras das mesmas ribeiras em dano irre-
menção às "muitas perdas a que estão sujeitos de onças, ladrões
e catingas em que se tresmontão", perigos aos quais, segundo parável de seus moradores e Real Fazenda em parti-
os rendeiros, estariam expostas as criações na capitania. Desse cular, e em geral dos habitantes deste mesmo conti-
modo, os arrematantes do contrato do gado utilizavam-se da nente, e do seu comércio, chegando a sua dissolução
ocorrência de furtos para barganhar o perdão do pagamento ao extremo de matarem as reses sem mais interesse
de suas dívidas. que o de lhe tirarem os couros, comerem a imitação
Vimos que no seu relatório de 1792, dirigido ao das feras aquelas partes que mais lhes agrada, dei-
Conselho Ultramarino, o capitão-mor Feo e Torres relacionou xando o resto nos matos. E porque sendo do meu
a ocorrência de roubos à situação de .fome na capitania. 233 dever fazer cessar quanto é possível uma desordem
Já em fevereiro de 1793, quando os moradores da capitania de tanta ponderação e de tão terríveis consequências
tem sido infructuozas todas as providências, que até
agora tenho a este respeito dado, e se fazem por isso
23 2
APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). Bando
necessárias outras mais fortes, violentas e necessá-
que mandou lansar o Senhor Tenente Coronel Governador a respeito dos ladrões de
gados, 31 de maio de 1769, fls. 59v-60. rias, digo, violentas insólitas proporcionadas à ma-
233 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 12, Documento 687. lícia e relaxação dos delinquentes. Ordeno, portan-
150 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 151

to, que da publicação deste bando em diante todas desordens à seca que se sucedia, o capitão-mor não deixou de
aquelas pessoas que forem compreendidas em furtos reconhecer o que seria difícil negar ou omitir: o número de
de gados ou roças sejam logo presos e sem piedade indivíduos classificados sob o rótulo de "vadios, vagabundos,
punidos com açoites os que foram escravos, cabras bandidos e facinorosos" já se fazia enfaticamente elevado
ou mestiços; com rodas de pau os que forem ou pa- mesmo antes daquela intempérie climática. Sub-repticiamente
recerem brancos e com palmatoadas as mulheres à e sem a intenção de fazê-lo, o capitão-mor acabou por revelar
proporção da culpa, [ilegível] de cada um, cujo casti- que a terrível seca que a capitania enfrentava atingia grupos
go se administrará na parte mais pública da vila ou sociais distintos de maneira igualmente diferenciada: ao passo
povoação mais vizinha ao lugar do delicto, (...) serão que os grandes fazendeiros ou até mesmo os donos de pequenos
rebanhos além de verem seus gados diminuídos pela situação
remetidos e se lhe continuará em dias interpolados e
de escassez e definhamento também os tinham mortos ou
assim mesmo se praticará com os vadios e vagabun-
roubados, face aos limitados recursos de que dispunham mesmo
dos forasteiros, que no prazo de três dias não evacu-
em tempos de regularidade de chuvas, naquela situação as
arem esta capitania, a cujos capitães-mores coman- populações pobres sertanejas se viam tentadas ao crime como
dantes de distritos, e geralmente a todos os oficiais estratégia de sobrevivência, sabendo-se muito bem, contudo,
de milícia recomendo muito e ordeno que o execu- que esse tipo de prática já era habitual para um número difícil de
tem e fação assim executar exactamente, prestando ser estimado de moradores pobres dos sertões, o que justificava
mutuamente uns aos outros os auxílios necessários a constância de reclamações respeitantes ao roubo de gados
sem distinção de ordenanças ou auxiliares que uns junto às autoridades da capitania.235
e outros deverão pronta e simultaneamente prestá- Assim como nos relatos apresentados acima, um
los, como para apagar um ódio comum, rechassar os número bastante considerável de denúncias de roubo de
comuns inimigos da paz e da humanidade, e aplacar
tão perigoso contágio: e ficará ao arbítrio dos capi-
tães-mores ou comandantes o tempo da prisão. 234 235
Dessa forma, os furtos de gados praticados pelas populações pobres do Ceará no
século XVIII podem ser analisados a partir do conceito de "práticas de resistência
Segundo o capitão-mor Feo e Torres, a seca e a migração cotidiana camponesa" identificadas por James Scott em: SCOTT, James C. Weapons
of the weak: everyday forms of peasant resistance. New Haven: Yale University
de "vadios, vagabundos, bandidos e facinorosos" de outras
Press, 1985. Segundo aquele autor: "estas formas brechtianas de luta de classes
capitanias eram apresentados como motivos dos "distúrbios" têm certos traços em comum: mesmo querendo pouca ou nenhuma coordenação
que se sucediam na sua jurisdição. Apesar de creditar o contexto ou p lanejamento, são mecanismos de auto-ajuda individual que geralmente evitam
de alteração da ocorrência de "vadios", "vagabundos", crimes e qualquer confrontação simbólica direta com as autoridades ou com as normas da
elite. Assim como os caminhos da resistência cotidiana não estão somente nas lutas
abertas e institucionais contra os dominantes, é preciso ver o que os camponeses fa-
234 APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). "Registo zem entre revoltas para defender seus interesses da melhor forma possível (p. 29)".
do Bando que mandou publicar nas Russas e outras partes da Ribeira do Jaguaribe", NEVES, Frederico de Castro. & MENEZES, Maria Aparecida de. Trajetos: Revista
23 de fevereiro de 1793, fis. 71 v-72. de história - UFC. Fortaleza, vol. 1, nº 1, 2001, pp. 160-161.
152 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 153

gados foi registrado nos autos de querella e denúncia 236 , que "branco" pelo escrivão, acusou o "mameluco" José Pereira de
se tratavam dos livros onde se lançavam as queixas criminais Souza e José de Versoza, "com casta da terra", ambos casados
prestadas pelos moradores da capitania. Em um deles, datado e moradores na mesma ribeira, de terem matado e comido um
de 1793, o capitão comandante Luís Barboza de Amorim, bezerro de sua propriedade. Segundo o fazendeiro Francisco
morador no Siupé e identificado como "homem branco Correa, o tal José Pereira de Souza seria "acostumado a pegar
casado", denunciou o furto de uma sela e de um cavalo. gados alheios" e já "por muitas vezes" havia desaparecido com
O capitão Luís atribuiu o crime a Antônio de Sá, "homem gados da sua fazenda. O fazendeiro acrescentou ainda que a
mameluco sem domicílio certo"' declarando que "não só ao punição dos acusados serviria "para emenda destes e exemplo
suplicante [capitão Luís] tem furtado o suplicado [Antônio], de outros e satisfação dos ofendidos". 238
senão à várias pessoas, tanto animais cavalares como vacuns". Também em 1 798, o padre José Rodrigues Pereira,
Luis Barbosa acrescentou ainda que "também veio à sua pároco da Vila Real de Soure, denunciou o "cabra" Anacleto
notíicia" que por conta da sua denúncia o dito Antônio "se Ferreira Chaves, o "pardo" José Egino Lopes de Amorim e
andava esperando e fazendo tocaias (. ..) e pretendia matá-lo, o "branco" Joaquim dos Santos, todos moradores na vila
como já tem feito algumas mortes".237 de Fortaleza, pelo furto de "várias cabeças de gado vacum e
Em março de 1798, Francisco Correa Leal, proprietário cavalares". Em sua denúncia o padre José Rodrigues afirmava
da Fazenda dos Patos, na ribeira do Curú, casado e tido como que os três acusados receberam o auxílio do crioulo João,
escravo encarregado do trato de seus gados, pois este havia
fugido quando se deu o desaparecimento das reses. O vigário
236
As acusações mais reincidentemente encontradas nos autos de querela cearenses declarou ainda que os acusados contra-ferraram os gados
são: estupros e defloramentos, assassinatos e agressões, furtos de gados. É possível roubados de maneira a impossibilitar a sua identificação e foram
perceber através das acusações ali encontradas a hierarquização de determinadas vistos negociando-os nas vilas de Aquiraz e Arronches. 239
categorias. Denunciantes e testemunhas buscavam se "qualificar" enquanto tais res- Em 1802, o capitão José da Silva Alves apresentou
saltando características como: ter residência fixa ou ser proprietário, ser branco, ser
casado, ter uma ocupação ou profissão reconhecida ("homem de negócio" ou "vi-
queixa ao juiz ordinário da vila de Fortaleza contra Domingos
ver de seus negócios", vaqueiro, morador, agregado, ferreiro ou algum outro oficio ·
mecânico, "viver de plantar"), ser idoso, ser conhecido pelo escrivão e/ou juiz, ter
patente militar ou ocupar algum outro cargo público. Por outro ·lado, buscava-se 238"Auto de querella e denuncia que dá Francisco Correa Líal branco cazado e mo-
"desqualificar" os acusados ressaltando características como: não ter residência fixa rador no Curú de José Pereira de Souza mamaluco, e de José de Versoza com casta
(não ter "morada certa"), ser considerado "vagabundo'', ser solteiro, ser considerado da terra, todos cazados e moradores no Buritizal ribeira do mesmo Curú''. APEC.
"preto'', "crioulo", "índio'', "mestiço'', "pardo", "com casta da terra" ou "branco da Livro 1458: Autos de querella ( 1793-1799). ln: TRIBUNAL DE mSTIÇA DO ES-
terra", não ter ocupação reconhecida ou ter má fama (ladrão, assassino, criminoso, TADO DO CEARÁ. Op. cit., pp. 160-162.
violento, etc.), o que se baseava na credibilidade que a comunidade podia dar. 239"Auto de querella e denuncia que dá o reverendo Padre José Rodrigues Pereira,
237
"Auto de querella e denuncia que dá o capitão Luís Barboza de Amorim ornem vigário da vila de Soure de Anacleto Ferreira Chaves, cabra ( ...) solteiro, morador
branco cazado morador no Siupe termo desta Villa da Fortaleza de Antônio de Sá nesta vila, de Eginio Lopes de Amorim pardo, cazado, morador no Oíti, e de Joa-
mamaluco solteiro sem domecilio serto". APEC. Livro 1458: Autos de querella quim dos Santos, branco, casado morador no Genipabu, todos do Termo desta vila''.
(1793-1799). ln: TRIBUNAL DE mSTIÇADO ESTADO DO CEARÁ. ln: Memó- APEC. Livro 1458: Autos de querella (1793-1799). ln: TRIBUNAL DE mSTIÇA
rias e reminiscências da vida brasileira. Fortaleza, 2000, pp. 130-132. DO ESTADO DO CEARÁ. Op. cit., pp. 162cl65.
154 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 155

Tavares da Luz pelo roubo e abate de um "boi de carro'', isto é, casado" morador na Praibinha, no termo da vila de Fortaleza,
um boi manso, que justamente por isso teria um preço mais denunciava judicialmente a Cláudio José Fialho, também
elevado que um boi bravo. Reforçando a sua acusação o capitão morador no lugar da Praibinha e curiosamente classificado
disse que Domingos Tavares Luz era "uzeiro e vizeiro a furtar como "branco da terra". Segundo a denúncia do capitão
gados alheios e cometer outros mais delitos". 240 Domingos, em novembro de 1802, portanto um ano antes do
No ano seguinte, João Ferreira da Silva, identificado registro da querela, o dito Cláudio Fialho "sem licença alguma"
como "homem pardo", recorreu ao mesmo tipo de e "de seu moto próprio (. .. ) matou uma vaca do ferro e sinal
agravante quanto denunciou o "cabra" Francisco Thomas do suplicante [capitão Domingos] convertendo-a em seu uso".
de ter roubado um cavalo na vila de Fortaleza. Segundo o Também neste caso, mais uma vez o denunciante declarava
denunciante, o acusado, não sabemos sob que condições, que o acusado era "acostumado a este e semelhantes delitos"
"confessou de público ter sido ladrão do dito cavalo", e argumentava que a sua punição serviria de "exemplo deste e
além de que seria "o dito ladrão costumado a este e outros dos mais semelhantes agressores". 243
· latrocínios". 241 Também em 1803, o "índio" André da Silva, Em 1804, Raimundo Vieira da Costa Delgado Perdigão,
morador de Arronches, era acusado de ter matado duas declarando-se morador da vila de Arronches e "senhor e
reses de Manuel Gaspar de Oliveira, morador da vila de possuidor" da fazenda Lagoinhos na ribeira do rio Ceará, onde
Fortaleza. De acordo com o texto da denúncia prestada por disse que criava gados "de toda sorte os quais se espalham por
Manuel Gaspar, o índio André já se achava preso justamente toda aquela ribeira", prestou denúncia contra Lucas Pinto
por conta de uma "ordem dos senhores do governo por e seus dois filhos, José e Bento, todos moradores na Serra
[suas] culpas de ladrão de gados". 242 de Maranguape e descritos como "pardos". O fazendeiro
Em novembro de 1803, o capitão Domingos Rodrigues Raimundo alegou que Lucas, José e Bento, auxiliados por alguns
da Cunha, que segundo o auto tratava-se de homem "branco "agregados" destes, estariam furtando os seus gados tanto
"para comerem como tão bem para venderem". Declarando que
os seus rebanhos naquela ribeira vinham "tendo uma grande
240
"Auto de querella e denuncia que dá o Capitão José da Silva Alves, õmem branco diminuição pelos furtos que neles fazem os ladrões de campo",
solteiro morador nesta villa, de Domingos Tavares da Lux, morador no Coco, termo
Raimundo Vieira ressaltou que Lucas Pinto, seus filhos e
desta mesma Vílla". APEC. Livro 39: Autos de querella e denúncia (1802-1806).
In: XIMENES, Expedito Eloísio. Autos de querella e denúncia... : edição de docu- agregados eram apenas alguns daqueles ladrões e que por esta
mentos judiciais do século XIX no Ceará para estudos filológicos. Fortaleza: LCR, razão a sua denúncia recaía "não só contra os nomiados mais
2006, pp. 52-53. '
241
"Auto de querella e denuncia que dá João Ferreira da Silva, õmem pardo cazado, ! também bem nos que recaírem e forem [seus] companheiros
nos latrocínios". Por conta disso, o fazendeiro solicitava a ação
morador nesta Villa do cabra Francisco Thomas cazado e morador na Agoanambi,
termo desta mesma villa''. APEC. Livro 39: Autos de querella e denúncia (1802-
1
1806). Idem, pp. 63-65.
242
243"Auto de querella e d~nuncia que dá o capitão Domingos Rodrigues da Cunha
· "Auto de querella, e denuncia que dá Manuel Gaspar de Oliveira Õmem branco branco cazado morador na Praibinha, de Cláudio José Fialho branco da terra cazado
cazado morador nesta Villa do Índio Andre da Silva cazado e morador na Villa de Arron- e morador no dito lugar da Praibínha todos do termo desta Villa da Fortaleza". Idem,
chos". APEC. Livro 39: Autos de querella e denúncia (1802-1806). Ibidem, pp. 61 -63. pp. 69-71.
l

\
José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso Theatro de Horrores 157
156

da justiça régia para que incidissem sobre estes "as penas da feita em 1734 pelo ouvidor Pedro Cardoso de Novais Avelar, o
coronel Jorge da Costa Gadelha teria começado a sua fortuna
l~i ( ...)para que com a virtude do seu castigo fiquem os campos
limpos de tantos ladrões que o assolam". 244 como "vaqueiro, de um seu cunhado Antônio da Costa Barros'',
sendo que "lhe roubou a fazenda falsifican do a marca com que
O sargento-mor Francisco Antônio Linhares,
ferrava os gados e com isto se foi alando".247
apresentado como "branco casado" e "senhor e possuidor"
da fazenda Passagem, com criação de "gados de toda sorte", No Ceará as reses eram ferradas com duas marcas: na
coxa direita recebia a marca do proprietário, na coxa esquerda era
acusou em 1808 a João Ferreira, morador na Serra da Meruoca
marcada com o sinal da freguesia da qual fazia parte a fazenda.
identificado como "mameluco", pelo furto de um novilho e uma
Segundo explica Sílvio Júlio, no Ceará a marca individual nascia
cabra, o primeiro animal avaliado pelo fazendeiro em 6 mil réis
e o segundo em 640 réis. Como era de praxe, o denunciante do enriquecimento de um proprietário, recebendo com o tempo
insignificantes modificações para cada descendente. 248 Além das
acrescenta que a imposição da pena correspondente ao delito
marcas aplicadas por ferro quente, diferent es cortes nas orelhas
serviria tanto para a sua satisfação quanto para a "emenda
do querelado e exemplo de outros". 245 Também neste caso o das reses t ambém visavam identificar o seu proprietário.
acusado já encontrava-se preso, prisão essa cujo motivo não
foi discriminado no auto.
No ano de 1810, João Pereira de Lucena registrou o
furto de um cavalo no lugar chamado "Ilha do Meio", termo
da vila de Mossoró. Avaliando o cavalo surrupiado em 16 mil
réis, João afirmou que tinha provas de que após o furto o
animal havia sido contra-ferrado, segundo ele um "artifício"
utilizado "a fim de não ser descoberto o furto", que a leitura
das denúncias de roubos de gados indicam ter sido bastante
comum no Ceará.246 Vale lembrar que, segundo a acusação

244 "Auto de querella, e denuncia que dá Raymundo Vieira da Costa Delgado Perdi-
gão branco cazado morador na Villa de Arronches, de Lucas Pinto de Moura e seus
dous filhos hum José e outro Bento todos pardos e mo~adores na Serra de Marangua-
pê do termo desta Villa da Fortaleza". Idem, pp. 71-73.
245 "Auto de querela, e denuncia que dá o Sargento mor Francisco Antônio Linhares
247 AHU.
morador nesta Vila; de João Ferreira mamaluco cazado morador na Serra da Be~
CT: AHU ACL CU 01 7, Caixa 03, Documento 159. Apud: PINHEIRO,
Francisco José. Formação social do Ceará: o papel do Estado no processo de subor-
ruoca, e prezo na cadeia desta vila". APEC. Livro 33: Autos de querella e denúncia
dinação da população livre e pobre (1618-1820). Tese de doutorado, Universidade
(1807-1813). ln: XIMENES, Expedito Eloísio. Op. cit., pp. 89-91.
Federal de Pernambuco, 2006, pp. 77-79.
246"Auto de querela e denuncia que dá João Pereira de Lucena contra Felis Roiz 248 JULIO, Silvio.'Terra e povo do Ceará. 2ª edição. Rio de Janeiro: Revista Conti-
Ban;os branco morador na Praia da Caissara". APEC. Livro 33: Autos de querella e
nental Editorial, 1978, pp. 165-187.
denuncia (1807-1813). ln: XIMENES, Expedito Eloísio. Op. cit., pp. 109-113.
158 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 159

Figura 6 Figura 7
MARCAS DE GADO USADAS NO CEARÁ SINAIS QUE OS SERTANEJOS CORTAM NAS ORELHAS
DAS RESES

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tronche troncha figueira

Fonte: BARROSO, Gustavo. "Os ferros (desenho)". ln: Terra do sol. 8ª ed. Rio de Ja-
neiro/São Paulo/Fortaleza: ABC Editora, 2006, pp. 139-147. JULIO, Sílvio. "Marcas
JULIO, Sílvio. "Marcas de gado usadas no Ceará". ln: Terra e povo do Ceará. 2ª ed. Rio de gado usadas no Ceará". ln: Terra e povo do Ceará. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revista
de Janeiro: Revista Continente Editorial, 1978, pp.165-187. Continente Editorial, 1978, pp. 186-187.
160 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 161

Em 1811, outro furto de cavalo foi denunciado, desta que o tal Lourenço era responsável pelo desaparecimento de
vez por Ignácio Gomes de Souza na Serra de Maranguape. nada menos do que seis bois e uma vaca do seu rebanho: três
Segundo Ignácio, um cavalo seu havia sido roubado por bois teriam sido mortos, dois vendidos e um contra-ferrado,
Manoel Pereira e José Antônio Xavier, também moradores sendo que a vaca teria sido morta e comida pelo acusado.
em Maranguape, que após o furto teriam ferrado "o dito Novamente o denunciante argumentava que o querelado era
cavalo com outro ferro diferente". Ainda segundo Ignácio, "uzeiro e vizeiro e tem por costume cometer semeJhantes
os acusados seriam "costumados a tratarem de semilhantes roubos como deporam as testemunhas". 252 Outra denúncia
fatos, como é público".249 Também em 1811, Custódio Correa acusa o furto e abate de um boi na vila de Sobral no ano de
de Lima, homem dito "branco, casado" e morador na vila de 1814, animal este com valor estimado pelo próprio dono em
Fortaleza, acusava o furto de uma besta de sua propriedade oito mil réis. 253
que pastava nas imediações da vila de Arronches. Custódio Consultando o livro de Rol dos culpados254, que
declarou em sua denúncia que o acusado pelo roubo de sua discrimina a listagem dos indivíduos condenados pela justiça
besta seria "uzeiro, e vizeiro a cometer semelhantes furtos e na capitania, encontramos um registro de 1793 que acusa a
outros mais como é público e notório". 250 Ainda no mesmo condenação dos moradores da Serra de Uruburetama Antônio
ano, na ribeira do Cauípe, termo da vila de Fortaleza, Pascoal Roiz e seu genro Antônio José por furto de gados. 255 Também ali
Ferreira de Mello denunciou que Antônio Moreira de Souza o "índio" André da Silva morador da vila de Arronches aparece
seria o culpado pelo furto de três bois, observando que este condenado como "ladrão de gados" em 1803. 256 Em uma
era "uzeiro e vizeiro a pegar gados alheios". 251 outra página está a condenação datada de 1811 para Antônio
Em 1812, José Francisco de Oliveira acusou Lourenço Moreira de Souza, "branco morador na ribeira do Cauípe",
da Silva do roubo de seus gados no lugar chamado Mata Fresca, pelo furto de três bois. 257 No ano de 1812, o vaqueiro tido
termo da vila de Aracati. Em sua denúncia José Francisco dizia como "pardo" Antônio da Costa Gomes era declarado culpado

252"Auto de querella e denuncia que neste juizo dá José Francisco de Oliveira contra
249"Auto de querella e denuncia que neste juizo dá Ignácio Gomes de Souza de [corroído] marnaluco Lourenço da Silva". APEC. Livro 33: Autos de querella e de-
Manoel Pereira e de José Antônio Chavier". APEC. Livro 33: Autos de querella e núncia (1807-1813). ln: XIMENES, Expedito Eloísio. Op. cit., pp. 144-145.
denúncia (1807-1813). ln: XIMENES, Expedito Eloísio. Op. cit., pp. 134-136. 253 "Auto de querella e denuncia que neste juízo dá Ignácio Fernandes Cavalcanti
25 º "Auto de querella e denuncia que dá Custódio Correa de Lima homem bran- como tutor e curador das pessoas e bens do menor João filho do falecido João de
co ca[za]do morador nesta villa, de Paullo José Teiiceira da Cunha, homem branco Souza da Concepção e Maria da Circuncizão de Manoel Gonsalves Rosa branco
cazado morador em Jagoaribinho deste termo por este lhe ter furtado hua besta". cazado morador na fazenda do Arapuá do termo desta Vila de Sobral". APEC. Livro
APEC. Livro 64: Autos de querella e denúncia (1811-1813). ln: XIMENES, Expe- 33: Autos de querella e denúncia (1807-1813). ln: XIMENES, Expedito Eloísio. Op.
dito Eloísio. Op. cit., pp. 159-160. cit., pp. 146-147.
2 5 1 "Auto de querella e denuncia que dá Pascoal Ferreira de Mello, homem branco 254 APEC. Livro OI : Rool dos culpados (1793-1817).
cazado morador na Ribeira do Cauipe, de Antônio Moreira de Souza branco cazado 255
Idem, fl. 1.
morador na mesma Ribeira por este lhe aver furtado tres bois". APEC. Livro 64:
256
Autos de querella e denúncia (1811-1813). ln: XIMENES, Expedito Eloísio. Op. Ibidem, fl. 4.
cit., pp.169-170. 257 Ibidem, fl. 6.
1
1
t1
1
1
1
1

José EudesArrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 163


162

pelo furto de gados, do mesmo modo que o "mameluco" Bento tência, porque se somem naquele sítio imensos gados
Pinto morador na Serra de Maranguape em 1804, e o "pardo" de todos os demais vizinhos ...261
morador da ribeira de Canindé de nome João Gonçalves de
Mello em 1818.258 Já o soldado "pardo" José da Cunha Lira era Sendo assim, segundo a acusação do fazendeiro João,
condenado em 1818 pelo furto de uma vaca. 259 o tal Antônio Ferreira e seus parentes cometeriam furtos de
Na década seguinte, em um ofício de 15 de abril gados tão frequentemente que já estariam se estabelecendo
de 1822 enviado à Secretaria do Governo do Ceará o na vila de Granja como homens de negócio no ramo de venda
sargento-mor comandante das ordenanças montadas de de carnes, pois já teriam inclusive casas alugadas onde
Viçosa, Antônio do Espírito Santo Magalhães, perguntava comercializariam o produto dos seus roubos.
quais procedimentos deveria tomar em relação aos índios No ano seguinte, os oficiais da câmara de Aquiraz
"que cometem furtos de gados e mais creações" no termo representaram à "Sua Magestade Imperial" acerca dos índios
daquela vila. 260 , do lugar de Monte-mor-o-velho, atual Pacatuba, afirmando
Na vila de Granja, em 1824 o fazendeiro João Alvares que aqueles índios estavam "causando grande dano aos
Passos denunciava Antônio Ferreira Alvarenga, José Ferreira criadores e lavradores, vivendo ociosamente sem se quererem
Alvarenga e José de Souza Araújo, estes últimos filho e genro sujeitar ao trabalho, apesar de haver anos férteis não
do primeiro, pelo roubo de um boi e de uma vaca, estimados cessam nos seus desmesurados furtos sem reserva · de bois
pelo proprietário "segundo o valor da terra" em dez e o!to mil de carros, de engenhos, de gados vacuns, cavalar, ovelheiro,
réis, respectivamente. Segundo a acusação de João Alvares cabrum e roças".262 Datada de 15 de outubro de 1825, a dita
aqueles três familiares eram: representação vinha acompanhada de um abaixo-assinado que
continha nada menos do que 49 firmas, isto é, assinaturas, de
... homens sem ocupação, vivem de ser ladrões, não diversos moradores e autoridades locais .
Somados a todos estes casos, lembremo-nos ainda dos
possuindo sem que consta os comprem a alguém fazem
continuadamente negócio com carnes, e com estas pa-
!
~ . comentários de George Gardner sobre a frequência do roubo
gão alugados para o dito fim com os
que furtam fazem continuadamente a sua subsis-
1
l 261"Auto de querella e denuncia que da neste juizo João Alvares Passos morador
na sua fazenda Genipapo tenno da Villa de Granja de Antônio Ferreira Alvarenga
branco cazado, e de seo filho José Ferreira Alvarenga branco solteiro, e de seo genro
José de Souza Araujo todos moradores no sitio Timbauba do mesmo tenno da Villa
258 Ibidem, fts. 6v, 7 e 8v, respectivamente. de Granja". APEC. Livro 1097: Autos de querella e denúncia (1824- 1829). ln: XI-
259Ibidem, ft. 8v. MENES, Expedito Eloísio. Op. cit., pp. 212-21 6.
1 262 BNRJ. Setor de Manuscritos. II-32, 23, 083, nº 001. "Representação da câmara
260 APEC. Livro 126: Correspondência do Secretário do Governo (1822). Oficio ao l
Sarg.mor Comm.te das Orden5as montadas de V." Viçosa, acusando recebimento do r da Villa de São José de Ribamar de Aquiraz, com abaixo-assinado, pedindo pro-
Off. 0 de l S de Abril "sobre a distribuição do trabalho dos índios" e o "furto de gados l vidências contra uns índios da tribo "língua travada", que roubam gado, cavalos e


e mais creações", 8 de maio de 1822, fl. 43v. f produtos agrícolas". Fundo: Coleção Ceará.

1
[,
164 José EudesArrais Barroso Gomes Um Escandaloso 1heatro de Horrores 165

de animais nos sertões já em fins da década de 1830. 263 Desse capitania, e por eles foi dito em minha presença e do
modo, assim como o disseminado uso de armas, o roubo de mesmo Sr. Tenente Coronel e Governador, e das tes-
gados parece ter sido uma prática bastante vulgarizada no temunhas ao diante nomeadas e assinadas, que eles
cotidiano da capitania, crime talvez comparável ao roubo de em virtude e observância do despacho do dito II.mo e
escravos nas zonas açucareiras. 264 Ex.mo Sr. General de Pernambuco posto na súplica do
dito José Francisco Victoriano Bastos se obrigavam a
4.4 Vidas por wn fio: as querelas do cotidiano e os termos assegurarem a vida do dito com a cominação de assim
de segurança de vida o não fazendo pagarem quatro mil cruzados e irem
degredados para Angola por dez anos, e todas as mais
Aos vinte e seis dias do mês de janeiro de mil setecen-
penas que o direito permitir, e de como assim o disse-
tos e setenta e quatro nesta vila da Fortaleza de Nos-
ram, prometeram e se obrigaram, me mandou o dito Sr.
sa Senhora da Assunção, Capitania do Ceará Grande,
Ten. Coronel e Gov. Antônio José Victoriano Borges da
em casas de residência do Sr. Tenente Coronel e Go-
Fonseca fazer este termo, em que eles assinaram e as
vernador Antônio José Victoriano Borges da Fornseca,
testemunhas (...) que presente se acharam...
onde me achava eu, seu secretário, em sua presença, e
sendo aí (em virtude de um despacho do Ilustríssimo
Termo de Segurança de Vida de José Francisco Victoria-
e Excelentíssimo Sr. Governador e Capitão General de
no Bastos assinado por José Ribeiro Fialho e seu filho
Pernambuco posto em uma petição de José Francisco
Antônio Ribeiro Fialho em 26 de janeiro de 1774. 265
Victoriano Basto, compareceram José Ribeiro Fialho
e seu filho Antônio Ribeiro Fialho, moradores na fre- Além dos relatos de viajantes, da correspondência
guesia de São Gonçalo da Serra dos Côcos desta mesma dos capitães-mores, ouvidores e câmaras da capitania e dos
autos de querela e denúncia, onde encontramos copiosas
263
Segundo Gardner, "o furto de animais é crime frequentíssimo no Brasil". GARD- referências à ocorrência de crimes, ao uso indiscriminado de
NER, George. Op. cit., p. 88. armas e ao roubo de gados, um outro tipo de document o é
264Para um exemplo vindo de Pernambuco, veja-se: OFÍCIO do Bispo de Pernam- bastante indiciário da violência do cotidiano na capitania do
buco, D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho ao secretário de estado da Ceará: os termos de segurança de vida. Testemunho das relações
Marinha e Ultramar, Rodrigo de Sousa Coutinho, sobre a falta de azeite de baleia na sociais que compunham as tramas do cotidiano no Ceará
cidade e os altos preços taxados pelo contradador; os problemas de abastecimento do
peixe salgado e as insubordinações do responsável pelo dito abastecimento; as me-
setecentista, os termos de segurança de vida quase nunca ou só
didas tomadas contra os roubos de cavalos; os problemas tidos com os diretores dos
indios e a indicação de párocos para servir o cargo; a visita feita as fortalezas mais
265
próximas daquela vila; o estado em que se encontra a casa da pólvora; as amostras TERMO de segurança de vida de José Fran.co Victoriano Bazto q' asina José
de salitres enviadas pelo governo da capitania do Ceará; e os problemas resultantes Ribr. ° Fialho, e seo f. 0 Ant.º Ribr.° Fialho, 26 de janeiro de 1774. Arquivo Público do
do monópolio das carnes e da farinha de mandioca, 23 de março de 1799. Arquivo Estado do Ceará. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804),
Histórico Ultramarino, Avulsos, Pernambuco, caixa 207, documento 14.108. fls. 40v-4 l.
166 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 167

muitíssimo raramente foram mencionados pela historiografia a projeção da sua visão de bacharel em direito e liberal de
especializada sobre o período. A única referência a esse tipo de meados do oitocentos sobre a sua leitura do Ceará no final do
documentação que encontrei na historiografia foi deixada por século XVIII. 268
Tristão de Alencar Araripe. Em seu texto seminal, que é tido De todo modo, tanto através da citação do termo de
como a primeira "História do Ceará", disse ele referindo-se ao segurança da vida de José Francisco Victoriano Bastos em
Ceará no final do século XVIII: 1774, citado na abertura deste texto, quanto do exemplo
apresentado por Tristão de Alencar, relativo a Teodózio Luiz da
A falta de segurança individual era um dos grandes ma- Costa, percebemos que os termos de segurança assinados no
les desses tempos: alguns governadores, no intuito de Ceará tratavam-se de documentos por meio dos quais visava-
diminuir o dano, usavam do arbítrio de obrigar a assi- se garantir a vida de indivíduos envolvidos em contendas e
nar termo de segurança quando pessoas importantes das que poderiam ser objeto de agressões e violências por parte
localidades inimizavam-se, e receiava-se da parte de de seus desafetos ou a seu mando. Buscava-se assim inibir
alguma delas atentados contra a outra. a ocorrência de atentados através da incriminação judicial
imediata, pagamento de pena pecuniária e até degredo, caso
Assim vemos vários dêsses termos de segurança nos
o assegurado fosse agredido269• Uma observação de não
registros dos governadores: e notarei aqui o que achei
somenos importância feita por Tristão de Alencar Araripe é o
no tempo do governo de Luís da Mota [Feo e Torres]
fato de que os termos de segurança eram assinados, ou feitos
em 1797, e pelo qual o capitão José Camelo ficou "res- assinar, por nada menos do que as "pessoas mais importantes
ponsável por sua pessoa e 5.000 cruzados de sua fazep- das localidades" da capitania.
d,a por qualquer incômodo, perigo, ou risco de vida, qhe
experimentasse o sargento-mor do Aracati Teodósio
Luís da Costa". 266 1

268 Segundo considerações de João Alfredo de Sousa Montenegro: "É por aí que
Parece ficar evidente que, ao utilizar termos con:io o discurso historiográfico de Tristão de A. Araripe se encaminha, respondendo ao
"segurança individual" e "arbítrio", Tristão de Alencar Araripe, contexto cultural edificado em torno da presença do Ceará no periodo colonial. Um
que ocupou os cargos de juiz municipal de Fortaleza e chefe ·ae discurso liberal, salientando o propósito de construção do Estado num meio social-
polícia do Ceará na década de 1840267 e dirigiu o jornal libe;al mente precário. O que se faria com acentuados ingredientes de senhorio, deixando
em situação de deficiência a cidadania, os direitos individuais, e tornando superla-
O Cearense, revela através do próprio léxico que emprega
tiva a força do Estado". MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. A historiografia
liberal de Tristão de Alencar Araripe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.
269
Tanto quanto as medidas relativas à proibição do uso de armas e ao combate ao
266ARARIPE. Tristão de Alencar. História da província do Ceará: desde os tempos furto de gados, os termos de segurança de vida podem ser tomados como indício da
primitivos até 1850. 2ª ed. anotada. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1958, p. 170. De "preocupação normalizadora" apontada por Laura de Mello e Souza como forma do
longe a sua obra mais importante, esse texto foi escrito provavelmente em 185~ e exercício do po~er na sociedade colonial. SOUZA, Laura de Melo e. Desclassifica-
publicado no Recife em 1867. · dos do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986,
267 VICTOR, Hugo. Chefes de polícia do Ceará. Fortaleza: Typographia Minerva, 1943. pp. 100-116.
168 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 169

Apesar de Alencar afirmar que alguns capitães-mores ,_,. Araripe 272, não parece ser excessivo supor que a sua vida
do Ceará "usavam do arbítrio de obrigar a assinar termo de deveria realmente estar sob ameaça, tendo em vista que em
segurança", o supracitado termo de segurança da vida de 22 de setembro daquele ano, ou seja, apenas seis dias depois,
José Francisco Victoriano Bastos traz expressa a declaração o capitão Francisco da Silva Costa e Antônio de Souza Coito
de que a sua assinatura havia se dado "em virtude de um foram obrigados pelo capitão-mor Victoriano Borges da
despacho do Ilustríssimo e Excelentíssimo Sr. Governador Fonseca a assinar outro termo de segurança como forma
e Capitão General de Pernambuco posto em uma petição de tentar garantir a sua vida. A assinatura deste segundo
de José Francisco Victoriano Bastos". Desse modo, cabe termo se devia ao fato de que Francisco de Barros Rego e dois
assinalar que aquele tipo de termo parece ter envolvido parentes seus, nomeadamente o capitão Francisco da Silva e
âmbitos jurisdicionais e autoridades que chegavam mesmo a Antônio de Souza, teriam ameaçado o sargento-mor Teodózio
extrapolar a capitania do Ceará e a jurisdição do seu capitão- de morte por conta de uma acusação de roubo que denunciava
mor, dado que a petição de José Francisco Victoriano havia Francisco de Barros Rego como mandante. Segundo o texto do
sido feita diretamente ao capitão-general de Pernambuco, documento, Francisco de Barros estava:
a quem o governo do Ceará era subordinado. 270 Ressalte-
se ainda que a Serra dos Cocos, situada no limite entre as Ameaçando-o publicamente que o há de matar, fiado
capitanias do Ceará e Piauí, aparece frequentemente apontada nos mesmos parentes, o que se não pode duvidar por-
na documentação coeva como valhacouto de criminosos que várias vezes disse o capitão José Camelo de Vas-
que passando de uma capitania para a outra se livrariam da concelos, também parente do dito Rego as palavras se-
perseguição movida por conta de seus crimes. 271 guintes: "o sargento-mor Teodózio Luis da Costa não
Quanto ao caso do sargento-mor do Aracati Teodózio ande balindo com Francisco de Barros Rego, porque
Luiz da Costa, que teve termo assegurando sua vida assinado
· pelo capitão-mor José Camelo de Vasconcelos em 16 de
272 O referido termo de segurança da vida do sargento-mor deAracati Teodósio Luís
setembro de 1777, e não em 1797 como afirmou Tristão
da Costa citado por Tristão de Alencar é na verdade datado de 16 de setembro de
1777. TERMO q' asina o Cap.m José Camelo de Vasconseloz de sigurança de vida
do Sarg.to mor Teodozio Luís da Costa morador noAracati, 16 de setembro de 1777.
Arquivo Público do Estado do Ceará. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens
270A capitania do Ceará fez parte do Estado do Maranhão e Grão Pará de 1621 a régias (1762-1804), fl. 56v. Como está explicitado no próprio texto do documento, o
1656. A partir de 1656 passou a fazer parte do Estado do Brasil como capitania su- capitão-mor do Ceará que obrigou a assinatura daquele termo foi Victoriano Borges
balterna à de Pernambuco, tomando-se capitania autônoma somente em 1799. da Fonseca, que comandou o Ceará entre 1765-1781 , e não Luís da Mota Feo e Tor-
271 "Taua, Inhamuns, e Serra dos Cocos distantes desta Villa [de Fortaleza] mais de res, que esteve com o governo da capitania no período de 1789-1799. Em 1778, Teo-
100 leguas, junto as extremas das Capitanias do Maranhão e Piauí e outras terras do dózio Luis da Costa prestou juramento do prestigioso posto de mestre-de-campo das
sertão repetidas vezes no circulo do anno he theatro d' estes horrores, e quando os milícias de Aracati, o que atesta a sua situação entre os homens de maior destaque
persegue a Justiça passão-se para aquellas Capitanias". VASCONCELOS, Bernardo e cabedais daquela vila. TERMO de juramento que faz Teodozio Luís da Costa M .•
Manuel de. "DOCUMENTOS para a história do governo de Bernardo Manoel de de Campo de lnfantariaAux."' da Marinha do Ceará, 21 de janeiro de 1778. Arquivo
Vasconcellos (Collecção Studart)". ln: Revista do Instituto do Ceará, tomo XXVIII, Público do Estado do Ceará. Livro 18: Termos de juramento e posse da capitania do
1914, p. 333. Ceará(l767-1840),fl. 14v.
1

1
;

170 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 171

l
tem muito parente e lhe há de suceder mal", de cujas Além disso, verificamos que aquele termo de segurança
1
palavras se conhece a sociedade que os ditos parentes trazia explícita referência à parentela274 de Francisco de Barros.
tem com o mesmo Rego, para o perigo de vida do dito J Constatamos aqui que, assim como encontramos nas páginas
sargento-mor e para que se conserve este na sua paz, dos livros de autos de querela e denúncia275 da capitania,
tranquilidade e obviar os pirigos que ordinariamente muitos dos seus moradores eram acusados de cometer furtos,
costumam haver nestes sertões, mandou o mesmo Sr. assassinatos, agressões e outras ações violentas auxiliados por
Tenente Coronel Governador que por aqueles fatos fi- parentes, quer se tratassem de grupos familiares abastados ou
cassem os ditos capitão Francisco da Silva Costa e An- não. 276 Outro aspecto interessante é o fato de que, se em 1774
tônio de Souza Coito, responsáveis com as suas pesso- a Nida de José Francisco Victoriano Bastos foi segurada em
"quatro mil cruzados", nos dois termos de segurança da vida
as, e com cinco mil cruzados cada um de suas fazendas
do sargento-mor do Aracati Teodósio Luís da Costa registrados
a qualquer incômodo, perigo ou risco de vida que daqui
em 1777, a pena imposta a qualquer atentado contra a sua
por diante experimente o dito sargento-mor Teodózio
vida era avaliada em "cinco mil cruzados".
Luís da Costa. 273

Apesar de fazer menção a uma querela particular, no


corpo do texto do termo o capitão-mor Victoriano fez questão
de referir-se à violência como aspecto vulgarizado da vida 274
O termo "parentela" mostra-se recorrente na documentação colonial cearense
cotidiana da capitania, declarando que aquela medida visava
e refere-se fundamentalmente às famílias abastadas. Assim como aponta Otaviano
justamente "obviar os perigos que ordinariamente costumão Vieira Jr., a definição de parentela encontrada nas fontes cearenses aproxima-se ao
haver nestes sertões". Ganha interesse o emprego do termo sentido de família extensa e de rede familiar. VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. Entre
"sertão" pelo capitão-mor, tendo em vista que a contenda se paredes e bacamartes: história da família no sertão (1780-1850). Fortaleza: Edi-
passava em Santa Cruz do Aracati, a mais opulenta vila da ções Demócrito Rocha; Hucitec, 2004, p. 190.
275
capitania, que atuava como seu principal porto e por onde era Os-"autos de querela e denúncia" consistiam nos processos de acusação criminal
do período. Vejam-se: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. "Li-
exportada a maior parte do charque, solas, couros e atanados vro 1458: Autos de querella (1793-1799)". ln: Memórias e reminiscências da vida
ali produzidos. Assim, evidencia-se que, para o capitão-mor brasileira. Fortaleza, 2000, pp. 118-175. XIMENES, Expedito Eloísio. Autos de
Victoriano, a totalidade da capitania do Ceará era vista como querella e denúncia: edição de documentos judiciais do século XIX no Ceará para
um imenso sertão. estudos filológicos . Fortaleza: LCR, 2006.
276
" ... a menção de famílias extensas e abastadas, de grupos inicialmente comprome-
tidos com o processo de colonização cearense e que posteriormente efetivaram-se
no controle de cargos administrativos e no domínio fundiário, não significava que
273TERMO que asinão o Cap.m Fran.cº da S.ª Costa e An.10 de Souza Coito, como a utilização do bacamarte e da faca-de-ponta fosse exclusividade dessas organiza-
parentes de Fran.Cº de Barros Rego para a sigurança de vida do Sarg.10 mor Teodozio ções de elite. Os pequenos grupos familiares, muitas vezes tributários dos grandes
Luís da Costa, morador na V." de Santa Cruz do Aracati, 22 de setembro de 1774. proprietários de fazendas espalhadas pelo sertão, também fizeram da violência um
Arquivo Público do Estado do Ceará. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens eomponente de sua luta diária pela sobrevivência". VIEIRA Jr., Antônio Otaviano.
régias (1762-1804), fl. 57. Op. cit., pp. 189-190.
172 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 173

Já no ano de 1781, o cadete Francisco Barboza Bezerra O texto do termo não discrimina o objeto do
de Menezes 277 , que servia na guarnição da Fortaleza de Nossa desentendimento entre Francisco Barbosa, cadete das tropas
Senhora da Assunção, foi obrigado a comparecer à casa onde 1. regulares de Fortaleza, e o sargento-mor das tropas auxiliares
t:
atendia o capitão-mor da capitania, o coronel Antônio José ! de Aracati, Bernardo Pinto Martins. Todavia, sabemos que,
Victoriano Borges da Fonseca, para assinar um termo em l semelhantemente ao termo de segurança da vida de José
que "se obrigou a não tornar [voltar] a vila de Santa Cruz do Francisco Victoriano Bastos de 1774, a assinatura daquele
Aracati, nem contender de modo algum com o dito sargento- \ termo por Francisco Barbosa, expedido em 20 de dezembro
mor Bernardo Pinto Martins", homem de negócio da mesma
vila, sob pena de "ser mais severamente castigado". Além da l de 1780, era resultado de um requerimento que o sargento-
m0r Bernardo Pinto Martins havia feito ao governador de
assinatura do termo, o cadete Francisco viu-se coagido ainda ! Pernambuco, requerimento este que como foi visto fora pronta
a prometer verbalmente perante o tenente José Pereira da e diligentemente atendido. Sabe-se muito bem ainda que este
Costa, o alferes Diogo Roiz Correa e o secretário Francisco último tratava-se não menos do que uma das mais ilustres
Roiz, testemunhas, que cumpriria aquelas imposições a que figuras da capitania do Ceará, rico comerciante; dono de lojas
fora obrigado a submeter-se. A imposição de assinatura do e oficinas de carne seca, nas quais empregava o bastante
dito termo por Francisco foi determinada pelo capitão-mor contingente de escravos que possuía.279 Português natural do
Victoriano, a autoridade militar máxima na capitania, em Porto, o ilustre sargento-mor compartilhava com seu irmão, o
cumprimento de ordens determinadas por um despacho do capitão-mor João Pinto Martins280, muitos dos seus predicados:
capitão-general e governador da capitania de Pernambuco, a \l ambos ricos senhores residentes em Aracati, homens de negócio,
qual o Ceará era subordinado. 278 \ comerciantes de charque, donos de oficina de salga e escravaria,
e portadores de patente de oficial das tropas locais.
\
277 O cadete Francisco Barboza Bezerra de Menezes faria carreira servindo na com-
panhia de infantaria paga que guarnecia a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção:
em 1789 prestava juramento e posse da patente de alferes e, em 1804, ocuparia o
posto de tenente. Respectivamente: TERMO de Juramento que da Francisco Barbo- 279 ALMEIDA, Manoel Esteves de. "Registro de memória dos principaes estabele-
za Bezerra de Menezes pelo Posto de Alferes da Comp.ª de Infantr.• paga da Guar- 1 cimentos, factos e casos raros accontecidos nesta Vila do Aracaty, feita segundo a
nição da Fort.ª de N. Snr.ª daAss.•m desta Capitania em 28 de março de 1789, fl. 31. Ordem de S. M ., de 27 de Julho de 1782 pelo vereador Manoel d'Almeida, desde a
& TERMO de Juramento, que dá Francisco Barboza Bezerra de Menezes do Posto fundação da dita villa, até o anno presente de 1795". ln: Revista do Instituto do Ce-
de Tenente da Companhia de Infantaria paga da Guarnição desta Fortaleza em 23 de
1
ará, anno 1, tomo 1. Fortaleza: Typografia do Cearense, 1887, p. 84. Também: STU-
dezembro de 1804, fl. 49. Arquivo Público do Estado do Ceará. Livro 18: Termos de DART, Guilherme. "Figuras do Ceará colonial". ln: Geografia do Ceará. Fortaleza:
juramento e posse da capitania do Ceará (1767-1840).
218 TERMO que faz Fran.co Barboza Bezerra de Menezes Cadete da guarnição deste
1
ir
Tipografia Minerva, 1924. Apesar de suas posses o fim de Bernardo Pinto Martins
foi trágico: em 1787 morreu vitimado por uma facada que lhe deu um escravo de seu
Prezidio, para não tomar a Villa de S.'ª Cruz do Aracati, nem contender de modo u próprio plantel chamado Francisco.
l'..
algum, com o Sargento Mor Bernardo Pinto Martins, homem de negócio da mesma
Villa, 8 de fevereiro de 1781. Arquivo Público do Estado do Ceará. Livro 16: Porta-
l~· 280TERMO de Juramento de João Pinto Martins, Capitão-mor da Barra do Rio da
Vila do Aracati, 11 de outubro de 1776. Arquivo Público do Estado do Ceará. Livro
rias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804), fl. 62v. 18: Termos de juramento e posse da capitania do Ceará (1767-1840), fl. 9.
174 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 175

Neste caso, a obrigatoriedade de assinatura do termo entre os locais de morada dos dois contendores: o sertão do
pelo cadete Francisco, além de consistir em castigo, como é Acaraú, na porção norte da capitania, e a vila de Arronches,
explicitado textualmente no próprio termo, parece indicar próxima a Fortaleza. Além disso, outra peculiaridade deste
a existência no Ceará de "territórios de mando" agenciados caso consiste no fato de que aquele termo de segurança
por senhores poderosos como Bernardo Pinto Martins que, buscava assegurar a vida de ambos os contendores, tentando
devidamente referendados pelo estatuto de suas patentes, evitar qualquer tipo de agressões recíprocas.
não deveriam ser invadidos ou ameaçados, mesmo em se Já no ano de 1792, o capitão José Tavares do Amaral
tratando de um oficial das tropas de primeira linha que faziam e seu cunhado, Antônio Miguel de Souza, assinaram termo
a guarnição da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, onde semelhante que determinava "que de uma vez para sempre se
atendia o capitão-mor e, por isso, representantes mais diretas abstivessem de contender um com o outro, nem por si e nem
do braço armado da monarquia . 1us1tana
. na cap1.t ama.
. 281
por outrem, especialmente por escravos e flâmulos seus", por
Ainda no ano de 1781, João Ignácio, morador "para as outros meios que não os "meios competentes e judiciais".283
partes do aertão do Acaraú" que se achava preso na cadeia de Destaca-se aqui a utilização de escravos armados como braço
Fortaleza, e João Carlos Manoel de Sabóia, morador na Real armado de seus senhores nos sertões cearenses.284
Vila de Arronches, antigo aldeamento da Parangaba, assinaram Ainda segundo o texto do termo assinado por
termo de segurança diante do capitão-mor Luís da Mota Feo e ambos, a razão dos desentendimentos entre aqueles
Torres através do qual ficavam obrigados "que cada um vivesse senhores aracatienses estava relacionada à "corrente das
manso e pacífico conforme as leis de Sua Majestade e sociedade 1· águas de um riacho". Curiosamente, o capitão-mor Luís
pública sem contender um com o outro, e que por este termo da Mota Feo e Torres fez questão de acrescentar ao dito
assim se obrigaram (. ..) assim cumprirem, e se assim o não 1 termo que "se abstivesse o mesmo Amaral a fazer sátiras ou
excusassem serem mais severamente castigados cada um do í pasquins a pessoa alguma, e assim mesmo de todo o trato
1
transgressor". 282 Vemos aqui que, apesar de João Ignácio e comunicação direta ou indireta com Ana Brita dos Reis
encontrar-se preso, ele também é obrigado a assinar o termo
de não agressão. Chama bastante atenção a grande distância
l
1
tudo debaixo da pena de prisão e da multa de trinta miÍ
réis, aplicados metade à benefício dos presos e metade a

28 1Sobre a consideração da violência enquanto padrão de comportamento social re- 1 283


TERMO que. fazem o Capitão José Tavares do Amaral e seu cunhado An.tº Mi-
lacionado à delimitação de "territórios de mando" nos sertões da América portuguesa guel de Souza pelo qual se obrigão a não contenderem hú com o outro por outros
durante o século XVIII, ver: SILVA, Célia Nonata da. "Homens valentes: delimitação
dos ' territórios de mando' nas Minas setecentistas". In: Vária História, Belo Horizon-
f meios que não sejão os judiciaes sobre a corrente das agoas de hum riacho e sobre

te, n. 24,jan./2001, pp. 75-89. SILVA, Célia Nonata da. Territórios de mando: bandi-
, o mais q. no mesmo termo se contem, 26 de dezembro de 1792. Arquivo Público do
Estado do Ceará. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762- 1804),
tismo em Minas Gerais (século XVIII). Belo Horizonte: Crisálida, 2007. 1}.
IÔ.
fi. 69.
282TERMO que fazem João lgnacio e João Carlos Manoel de Saboya para não 284
Para urna análise das negociações estabelecidas entre senhores e escravos arma-
contenderem de forma alguma hum com o outro, 17 de novembro de 1789. Arquivo dos, veja-se: COSTA, Ana Paula Pereira da. "Negociações e reciprocidades: intera-
Público do Estado do Ceará. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias ções entre potentados locais e seus escravos armados nas Minas Gerais na primeira
(1762- 1804), fi. 66. metade do século XVIII". In: Almanack Brazilianse, n. 8, nov./2008, pp. 57-70.
176 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores
177

benefício das obras da matriz desta vila". Ou seja, tratavam- que não sejão os judiciais" com José Soares Lima, sargento-
se de pequenas disputas, mexericos e murmurações 285 entre mor de orden~nças da vila de Fortaleza. Segundo o texto do
vizinhos que, contudo, mereceram a obrigatoriedade da termo que ass1?-ou, Francisco deveria viver "manso e pacífico
assinatura de um documento, dada a premência de que tais conforme as leis de Sua Alteza Real o Príncipe Regente Nosso
desentendimentos, aparentemente banais, estariam a ponto Senhor e sociedade pública".287
de evoluir para violências e atentados recíprocos. Neste .Em novembro daquele mesmo ano, o tenente-coronel
caso, o fato de José e Antônio serem cunhados não parece do regimento da cavalaria de Sobral, Manoel Ferreira da
ter sido suficiente para apaziguar as animosidades entre os Costa, .ª~sinou "termo de fiança" pela segurança da vida
dois. Salta aos olhos o valor da multa, estipulada em trinta do capitao Jerônimo José Figueira Mello, que se achava
mil réis, o que pode ser indicativo tanto do rigorismo do preso no quartel das tropas regulares na Fortaleza de Nossa
capitão-mor Feo e Torres quanto da grossura dos cabedais Senhora da Assunção. 288 Ou seja, apesar de estar sob a
dos envolvidos. custódia d~ justiça, temia-se que o capitão Jerônimo pudesse
Um outro termo de segurança foi assinado no dia ser assassmado dentro da própria cadeia de Fortaleza por
12 de junho de 1805 por Manuel Francisco Martins, que Manoel Ferreira, ou a seu mando. No entanto, 0 cuidado
foi obrigado a jurar perante o capitão-mor governador com a assinatura daquele termo, visando assegurar a vida
João Carlos Augusto de Oeynhausen com a sua mão do capitão José Figueira de Mello, apesar deste encontrar-
direita sobre os "Santos Evangelhos ( ... ) não atentar ~e ~reso ~a cadeia de ~ortaleza, portanto sob a guarda da
pessoal ou indiretamente à vida, sossego e honra de José Justiça, nao parece ter sido excessivo se considerarmos 0 caso
[ de João Martins de Melo.
Luiz Pereira Brandão". 2 86
Em 1807, sabemos que Francisco Xavier de Freitas t No dia 25 de outubro de 1810, o sargento-mor João
Correa, morador na vila de Arronches, assinou termo através l Martins de Melo, morador no lugar chamado Viados situado
do qual se obrigava a não "contender ( ...) por outros meios no termo da vila de Nossa Senhora da Expectaçã~ do Icó,
r tombou morto do alto de seu cavalo após ser alvejado por tiro
f
1
2s5 "Murmuração: Expressão - à semelhança de outras como voz popular, voz geral,

saber por ouvir dizer, pública fama, público e notório - de wn comportamento 1 287
TERMO, que fa~ Francisco Xavier de Freitas Corrêa asistente na Villa de Arron-
típico do Antigo Regime, para o qual o vocabulário português ainda continua pró- t c~es, em que se obng~ a não contender mais com o Sargento das Ordenanças desta
digo em sinônimos: bisbilhotice, fofoca, tagarelice, conversa fiada, falar da vida Vd!a da Fortaleza Jose Soares Lima por outros meios, que não sejão os judiciaes 17
alheia". NEVES, Guilherme Pereira das. "Murmuração". ln: VAINFAS, Ronaldo de Junho de 1807. Arquivo Público do Estado do Ceará. Livro 16: Portarias edi;ís
(dir.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, bandos e ordens régias (1762-1804), fl. 77. ' '
288
pp. 416-41 7. TERMO de Fiança, que dá o Tenente Coronel do Regimento da Cavallaria do
286 TERMO de juramento p. 10 qual se obriga M.el Fran.co Miz a não contender mais Sobral. M~oel Ferreira da Costa pella segurança da pessoa do Capitão Jeronimo
pessoalmente com J.º Luiz Pr.ª Brandão, constituindo o responsável p.r q.ª 1 q.•r risco José F1gueua de Mello que se acha preso em hum dos Quarteis do Aquartelamento
q. por culpa delle, [ilegível] vida ou socego, 12 de junho de 1805. Arquivo Públi- da tropa pa.ga q~e ~arnece o Presídio desta V.3 da Fortaleza, 9 de novembro de
co do Estado do Ceará. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762- 1807. ~q~1vo Pubh~o do Estado do Ceará. Livro 18: Termos de juramento e posse
1804), fl. 71. . da capitania do Ceara (1767-1840), fls. 53v-54.
José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso Theatro de Horrores 179
178

de bacamarte no pescoço 289 • Até aí o caso não se distingue em década do século XVIII não havia cadeias seguras na
nada dos muitos assassinatos registrados nos autos de querela e capitania do Ceará. Além disso, Feo e Torres considerou que
denúncia da época. Um detalhe todo especial, porém, é que João o número de "criminosos" no Ceará era de tal monta que,
Martins tinha a vida "assegurada" por um termo de segurança uma vez fossem presos, seria bastante problemática a sua
de vida que havia sido assinado exatamente pelos seus manutenção nas prisões da capitania.
assassinos, o que, no entanto, não parece de nenhum modo ter Em 1721, portanto mais de 20 anos depois da criação
intimidado a execução do disparo mortal que recebeu, pondo da primeira vila na capitania, escrevia o ouvidor da Paraíba:
assim em questão a utilidade prática da assinatura daquele
tipo de termo diante da violência do cotidiano na capitania. ... os oficiais da câmara do Ceará por seu procurador me
fizeram presente que eles, com o zelo do bem comum da
justiça, eram precisados representar-me que na Vila do
4.5 A justiça em ruínas: a trama das cadeias públicas
Aquiraz da mesma Capitania não havia cadeia em que se
... não há cadeias seguras para tantos ladrões e mal- possam recolher os criminosos que cometem horríveis
delitos. Sendo isto um instrumento de se irem multiplicando
feitores, e nem se poderiam, ainda que as houvesse,
os malefícios por não poderem ser punidos os que os
conservar com vida tantos indivíduos em prisão sem
executara, e porque os bens da câmara não eram bastante
terem sustento. para a fatura da dita cadeia(...), pedindo-me lançar uma finta
pelos moradores daquela capitania para este efeito... 291
Luís da Mota Feo e Torres, capitão-mor da capitania do
Ceará, 1792290 Vimos através de diversos relatos, principalmente
de ouvidores e outros capitães-mores, que a referência
Na opinião do capitão-mor Luís da Mota Feo e a uma grande quantidade de "criminosos" na capitania
Torres, responsável pela assinatura de alguns dos termos esteve muito longe de ser uma opinião exclusiva de Feo e
de segurança de vida apresentados acima, ainda na última Torres. Também no que se refere à sua consideração acerca
da inexistência de cadeias seguras na capitania, o capitão-
mor Feo e Torres não estava só.
289 AUTO de querella e denuncia que dão Francisca Maria de Oliveira viuva do
Sargento Mor João Martz de Melo e os mais erdeiros filhos de~tes, e o ~urador ~os
menores 0 Advogado José da Silva Guimarains; contra Narc1zo Pereira Granjei-
ro, de João Martins de Melo, e do Pai destes o Coronel João digo Coronel Martz
de Melo pardos moradores em Jaguaribe Mirim, 7 de dezembro. de. 1810. Arqmvo
Público do Estado do Ceará. Livro 33: Autos de querella e denuncia (1802-1806). 291CART'A regia
. . ao ouvi'dor geral da para1ba,
, 19 de agosto de 1721. ln: Arquivo
In: XIMENES, Expedito Eloísio. Autos de querella e denúncia... : edição de docu- Público do Estado do Ceará, Coleção Prof. Limério Moreira da Rocha, 2004, p. 226.
mentos judiciais do século XIX no Ceará para estudos filológicos . Fortaleza: LCR, lnclu~ também: PARECER do ouvidor da Paraíba sobre a cadeia do Aquiraz, 23
de mato de 1723. ln: Arquivo Público do Estado do Ceará, Coleção Prof. Limério
2006,pp. 117-122.
Moreira da Rocha, 2004, pp. 230-236.
z90 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 12, Documento 687.
180 José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso Theatro de Horrores 181

Já havia mencionado as declarações do ouvidor José da


Costa Dias Barros feitas em 1779 de que, em sua avaliação, a comer a outros, por me constar que a maior opressão
razão da "desordem geral" que se apresentava no Ceará era o fato com que se viam vexados era a fome".29 3
de que "compreendendo esta comarca doze vilas, quase todas
(e ainda mesmo esta capital) não tem uma cadeia pública, nem Já em carta datada de 29 de dezembro de 1785,
casa de câmara, servindo de uns casebres informes, construidos por exemplo, os oficiais da câmara da vila de Fortaleza
de paos e barro" que só serviam de "irrisão e de escândalo, mas representaram à rainha D. Maria I um pedido de taxação
de nenhuma segurança aos presos". Para o ouvidor, na capitania sobre a exportação de algodão, couro e solas, cuja renda seria
verificava-se uma "carência de cadeias e casas de câmara, destinada à construção de uma nova casa de câmara e cadeia
indispensáveis para o exercício da justiça". Somando-se a isso, para a vila. Segundo os camaristas:
José da Costa alegava que a falência da justiça no Ceará se devia
ao fato de "se não pagarem os ordenados e outros emolumentos ...sendo criada a dita vila no ano de mil setecentos e
aos ofociais justiça", sendo que "fogem por isso os homens de vinte e cinco, a instâncias do capitão-mor que então
consideração e de merecimento" daqueles empregos. 292 era da mesma capitania Manoel Francez [1721-1727],
Ainda mais contundente foi o parecer do capitão-mor fizera esta à sua conta uma caaa térrea para as sessões
João de Montaury em 1783: do concelho, e igualmente cadeia para o castigo e guar-
da dos delinquentes: decorrerão os tempos, e como o
Sendo tão dilatada esta capitania, que compreende dito edifício não fosse construído de matérias próprias
mais de duzentas léguas de costa de mar, e mais de a lhes _resistir, e só unicamente levantado enquanto
trezentas e cinquenta de interior do sertão que em si o patrimônio do concelho não fosse capaz de sofrer a
contém numeroso povo, o não havendo em toda ela avultada despesa de outro mais próprio e conducente
cadeia alguma capaz de ter presos de ponderação mais ao seu ministério, veio a demolir-se inteiramente, sem
que a da Fortaleza, forçosamente se hão de achar nela que a câmara dos seus bens ou rendas, tirada a indis-
muitos, como de fato se achão com crimes de morte, pensável e anual despesa, houvesse resíduo capaz de se
roubos e outros graves delitos, e isto há vários anos, aplicar a outro novo e projetado edifício. 294
... ,
padecendo sem remédio, fomes, desnudez e doenças,
que causam compaixão por não haver quem os socorra
aos mesmos com a caridade do sustento, cuja falta a Assim, se por um lado os vereadores de Fortaleza
alguns tem causado a morte, o que me moveu a mandar afirmaram em 1785 que a casa de câmara e cadeia de sua
curar e assistir com remédios a uns, e a mandar dar de

293 BNRJ. Setor de Manuscritos. II-32, 24, 031. D ocumentos sobre a capitania do
Ceará. Fundo: Coleção Ceará. Carta do capitão-mor João Baptista Azevedo Couti-
292 AIDJ. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 9, Documento 564. nho de MontaITT)', 12 de março de 1783, pp. 75-76 .
294 AHU. CT: AIDJ ACL CU 017, Caixa 10, Documento 624.
182 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso 1heatro de Horrores 183

vila que havia sido construída em caráter provisório, com pelos presos, que escapando ao merecido castigo como
materiais inadequados e por conta dos gastos pessoais de que se animam a irem perpetrar novos atentados, sempre
um de seus antigos capitães-mores há nada menos do que impuníveis e sempre criminosos.296
sessenta anos atrás, encontrava-se agora em ruínas, por
outro alegavam a ausência de recursos disponíveis para Segundo as palavras do ouvidor Manuel Avelar, além
construção de um novo prédio, o que justificaria a criação do da falta de cadeias na capitania, as duas únicas existentes
novo imposto que almejavam. nas suas doze vilas seriam "mal construídas e pouco seguras"
Especificamente a respeito de uma nova cadeia, e estariam sendo arrombadas "anualmente" pelos presos.
argumentaram os vereadores que a sua construção era Ao que tudo indica, a observação do ouvidor parece ter sido
necessária, pois a vila não poderia permanecer "assim, pois, bastante pertinente, dado os arrombamentos sucessivos
sem cadeia em que sejão punidos os delinquentes e com que se da cadeia de Fortaleza nos anos de 1767, 1787 e 1810,
fação respeitar e observar as leis, temer as justiças e manter- mencionado muitas páginas atrás, sem falar na memória de
se a paz entre os felizes vassalos de Vossa Majestade". 295 Devo Luiz Barba Alardo de Menezes em 1814, que informava ao
ressaltar que os camaristas da vila de Fortaleza nos apresentam príncipe regente que a cadeia da vila de São João do Príncipe no
aqui aquele que foi um motivo reincidentemente alegado sertão dos Inhamuns também vinha sendo frequentemente
pelos administradores locais para justificar a precariedade dos arrombada "a viva força, de dia, sem temor das justiças, nem
prédios e serviços públicos na capitania: a falta de "resíduos'', dos moradores da vila". 297
isto é, "sobras" nos rendimentos das câmaras após a dedução Ainda em relação às cadeias públicas na capitania, o
de suas despesas, que consistiam fundamentalmente no ouvidor Avelar, que atendia emAquiraz, cabeça da comarca do
pagamento de funcionários. Ceará, afirmou que a sua opinião era que:
Conforme vimos, em 1787 o ouvidor Manuel Magalhães
Pinto e Avelar comentou sobre a abundância de "homens Um dos primeiros objetos, pois, a que se deverão apli-
facinorosos, vadios e matadores" nos sertões cearenses, e que, car os novos renditos das câmaras é a construção de
segundo ele, a insubordinação às justiças régias se daria: cadeias públicas em todas as vilas da comarca, que fos-
sem de uma arquitetura mais segura do que aparateza
...em grande parte da impossibilidade que há de os castigar (...) Uma das principais razões por que se fazem indis-
e ter seguros até sua condenação pela falta que há em toda pensáveis as cadeias em todas as vilas, é pela grande
esta capitania de cadeias públicas, não havendo em todas as distância que de ordinário vai de umas às outras, me-
vilas dela mais que duas, que as tenham, que são a do Aracati
diando muitas vezes entre si o espaço de 60 e 70 léguas
e Sobral, e ainda mesmo estas mal construídas e pouco
de longitude, o que faz com que seja impraticável a con-
seguras, de sorte que anualmente estão sendo arrombadas

296 AHU. CT: AHU ACL CU 017, Caixa 11, Documento 644.
295
Idem. 29 7 MENEZES, Luiz Barba Alardo de. Op. cit., p. 49.
T:
i

184 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 185

dução dos presos de umas vilas para outras, sem grave feita pelo ouvidor Avelar sobre as péssimas condições a
vexame dos povos, muito mais atendendo aos insigni- que estavam submetidos os presos na cadeia de Fortaleza
ficantes fundos das câmaras. Esta providência priná- parece se confirmar nas páginas do Rol dos culpados 299 , livro
palmente se faz indispensável na vila do Aquiraz, cabe- que registrava a listagem dos condenados pela justiça real
ça da comarca, que sendo a residênáa dos ouvidores, na capitania. Ali encontramos referências de que muitos
para ela de contínuo se estão remetendo os criminosos, presos adoeciam e morriam na prisão de Fortaleza, como
que devem ser sentenciados ou que devem ser envia- no caso do "índio" Antônio Manuel Francisco que, tendo a
dos para a Junta das Justiças de Pernambuco, ou para sua prisão pronunciada em 1813, estava "preso na cadeia
a Relação da Bahia: e devendo estes miseráveis residir desta vila [de Fortaleza] e nela morreu de bexigas no dia
em o mesmo lugar em que correm o seu livramento, 13 de janeiro de 1816". 300 O mesmo destino teve o "cabra"
José Nogueira Gabriel que, após ser declarado culpado pela
para o poderem solicitar, são constrangidos a irem ja-
justiça em maio de 1818, "preso, morreu de bexigas em 28
zer para a cadeia da vila da Fortaleza, onde de ordinário
morrem sem recurso; por não poderem permanecer em a
º
de outubro de 1818". 3 1 Um outro registro assinala que a
cadeia de Fortaleza também serviu de última morada para
dita vila do Aquiraz, onde não há mais de um informe o "pardo" Antônio, morador na Serra da Uruburetama preso
tronco fabricado de quatro paus em que já não pode por conta de um crime de morte, apesar de não esclarecer
estar criminoso algum com segurança nem pode estar qual teria sido sua causa mortis. 302 Já o caso de Antônio da
em algum tempo. Pelo contrário, na vila da Fortaleza se Costa Gomes, preso por furtos de gados, é mais misterioso.
faria desnecessária nova cadeia, por nela haver já uma Ao lado do registro de s~a condenação, anunciada em 1812,
do crime destinada para os presos da justiça, a única encontra-se a anotação: "morto na cadea em noite de 20 de
que haja feita com segurança na capitania. 298 julho para o amanhecer no dia 21de1817''. 303 Vários outros
registros simplesmente indicam que os culpados pela justiça
Além da evidente disputa entre o ouvidor ManuelAvelar estavam mortos, sem especificar se o óbito ocorrera nas
e os vereadores de Fortaleza para barganhar a construção dependências das cadeias cearenses ou fora delas. Esse foi o
de uma nova cadeia em suas vilas, segundo as palavras do caso do "pardo" Antônio Pereira, do "índio" Antônio "de tal'',
magistrado os presos de todas as partes da capitania eram do "pardo" Antônio Carneiro, do "branco com casta da terra"
remetidos para a cadeia de Fortaleza, onde permaneciam até a
morte por conta de não poderem acompanhar o desenrolar de
seus processos, que eram apreciados em Aquiraz.
Antes de ter sido mais um artifício de retórica usado 299 APEC. Livro 01: Rool dos culpados (1793-1817).
por um dos administradores reais na capitania,.a declaração 300 Idem, fl. 6v.
301 Ibidem, fl. 8v.
302 Ibidem, fl. 5v.
298
Ibidem. 303 Ibidem, fl. 6v.
186 José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso Theatro de Horrores 187

Antônio da Silva e do "pardo" Antônio José da Assunçã 0 .304 Muito provavelmente, o mais sistemático registro sobre
Doenças e mortes à parte, o ouvidor Manuel Avelar o número e o estado das cadeias públicas na capitania do Ceará
além de não ser o único, também não foi o último a referir- encontra-se na Descrição geográfica abreviada da capitania do
se à precariedade das cadeias cearenses. Em ofício datado de Ceará, escrita em 1816. Segundo aquele detalhado e extenso
1806, por exemplo, o capitão-mor João Carlos Augusto de relatório a capitania contava naquele ano com dezessete vilas,
Oeynhausen referiu-se à prisão de Manuel Martins Chaves das quais somente quatro apresentavam cadeias: Aracati,
e seu sobrinho, responsáveis pelo assassinato do juiz ordiná- Messejana, Arronches e Soure.307 A informação sobre Aquiraz,
rio de Vila Nova d'El Rey, declarando que sua "consciência, cabeça da comarca do Ceará, chega a ser surpreendente: "não
honra e fidelidade se escandalizariam se com a mesma mão tem casa de câmara nem cadeia, começou-se uma, que existe nas
que castigo um indigente plebeu não castigasse a um opu- primeiras paredes, há muitos anos, e por falta de rendimentos
º
lento igualmente criminoso"3 5 . Em seguida, Oeynhausen da câmara não tem continuado por não ter patrimônio".308
justificou o envio daqueles dois presos para fora da capitania Em situação semelhante estariam as importantes vilas de
argumentando que:
Sobral e Crato, a primeira com "uma casa de câmara e uma
cadeia por acabar" e a segunda sem casa de câmara e com
... a .respeito dos dois réus que remeti para essa corte, "uma cadeia principiada".309 Na vila de Fortaleza, capital da
para os quais não haveria suficiente segurança nas fra- capitania, haveria "uma casa de câmara e cadeia arruinada,
cas cadeias desta capitania, e que facilmente achariam não tem cadeia e servem-se as autoridades civis de uma cadeia
testemunhas subornadas pelo dinheiro ou pelo temor, militar, o que dá motivo a uma infinidade de contradições e
a favor de cujos ditos se salvariam sempre muito airo- etiquetas, que se não podem emendar, em muito detrimento
zamente de qualquer ação da justiça desta capitania se da expedição das dependências criminais".310 Já as vilas
a ela os entregasse. 306 de Granja, Viçoza, Vila Nova d'El Rei, Quixeramobim, São
João do Príncipe, Jardim, Russas e Monte-mor-o-novo
- apresentariam
nao . nem casa de camara nem cadeia. h. 311
Assim, além de denunciar que a justiça no Ceará
não teria efetividade diante de senhores poderosos,
Oeynhausen alega a falta de segurança apresentada pelas
3 7
"fracas cadeias" da capitania. 0 "Descrição geográfica abreviada da capitania do Ceará..." Op. cit., pp. 14, 16, 18
e 18 respectivamente.
3os 1dem, p. 15.
304 309 Ibidem, pp. 18 e 25, respectivamente.
Ibidem, fis. 1, Jv, 3v, 4, 4v, respectivamente.
310 Ibidem, p. 16.
305
APEC. Livro 270: Officios e cartas do governo da Capitania do Ceará a Sua Al-
311 Ibidem, pp. 20, 20, 21, 23, 23, 26, 29 e 29, respectivamente. O autor da "Descri-
teza Real e Conselho Ultramarino ( 1804-1807). Officio dirigido ao Cons.0 Ultrama-
rino, em que informa sobre o requerimento de Manoel Miz Chaves, 22 de novembro ção geográfica abreviada... " justifica a ausência de casas de câmara e de cadeias nas
de 1806, fis. 13v-18. vilas referidas pela falta de patrimônio das câmaras, como se pode ver nos exemplos
306 de Quixeramobim (''Não tem caza de câmara, nem cadeia, e nem patrimônio para
Idem.
se fazer") e de São João do Príncipe ("Não tem caza de câmara, nem cadeia, falta
f
1
1
Um Escandaloso Theatro de Horrores 189
188 José Eudes Arrais Barroso Gomes

Outro exemplo .bastante semelhante é o caso da


Nenhuma menção é feita em relação à existência ou não de construção da cadeia da vila de Granja. André Frota de Oliveira
cadeia em Icó. mostra que, apesar da fundação da vila de Granja datar de
Desse modo, parece ser razoável que, em grande parte, 1776, ainda em 1815 a câmara da vila propunha a criação de
o estado de precariedade creditado às cadeias da capitania um imposto sobre o sal como forma de subsidiar a construção
cearense possa ser atribuído à lentidão das suas construções de uma pequena cadeia para a vila.315 Ainda segundo este
que, em alguns casos, nunca chegaram a ser concluídas. A autor durante muitos anos a documentação da câmara
' .
cadeia de Sobral, mencionada pelo ouvidor Manuel Magalhães da vila de Granja continuaria a referir-se à sua construção
Pinto e Avelar em 1787 como "mal construída e pouco segura", como o "embrião de cadeia", "a obra da cadeia principiada
pode ser tomada como exemplo. há muitos anos", ou "o acabamento da cadeia que está nesta
Segundo D. José Tupinambá da Frota, a construção vila principiada há muito tempo". 316 A dita obra não somente
da cadeia de Sobral, vila cuja fundação data de 1773, foi teria sido paralisada por conta da falta de recursos como,
determinada em 1775 por ordem do ouvidor João da Costa na verdade, nunca chegaria a ser efetivamente concluída. O
Carneiro ao juiz ordinário e demais oficiais da câmara daquela referido autor afirma ainda que a cidade de Granja só passaria
vila. 312 Ainda segundo o mesmo autor, em 1816, portanto a ter uma cadeia de construção sólida em fins da década de
mais de 35 anos depois, a obra ainda continuaria inacabada 1870, a partir dos trabalhos da Comissão de Socorros Públicos
por conta da falta de recursos, o que levou o autor da Descrição durante a grande seca de 1877-1879.
geográfica abreviada da capitania do Ceará a anotar que a vila Foi assim que, ao requerer a sua reintegração ao posto
tinha "uma casa de câmara e uma cadeia por acabar". 313 de capitão-mor das ordenanças da vila de Granja em 1812,
Apesar de Aracati ter sido elevada à categoria de vila
em 1748, Guilherme Studart informa que em novembro de \ Antônio José Borges de Pinho, cujo pai de mesmo nome e tios
já nos são conhecidos, destacou que havia despendido de seus
1780 "os vereadores de Aracati mandam demarcar terreno próprios recursos os gastos:
para um edifício, que sirva de camara e cadeia" para a vila,
muito provavelmente em virtude da impropriedade do prédio ...com os vinte e cinco recrutas que fiz nesta vila [de
que até então era usado para este fim. 314 Granja], vinte que vieram da vila de Sobral e seis de
Itapagé, que todas foram recolhidas nas cadeias desta
vila por ordem do dito atual senhor governador, que
patrimonio ao conselho, e não ha meios de o fazer".). por serem de fraca construção, e nenhuma segurança foi
312 FROTA, José Tupinambá da. História de Sobral. 2" edição. Fortaleza: Henrique-
necessário pôr-lhe um destacamento de cabos, e solda-
ta Galena, 1974. Apud: OLIVEIRA, André Frota de. Quadros da história de Granja
no século XIX. Fortaleza: Expressão Gráfica, 1996, p. 19.
313 Idem.
3 14 3 15OLIVEIRA, André Frota de. "Um embrião de cadeia". ln: Quadros da história
STUDART, Guilherme. Op. cit., p. 359. Afirmo isso apoiado na infonnação de
de Granja no século XIX. Fortaleza: Expressão Gráfica, 1996, p. 19.
que em " 10 de Novembro [de 1787] - João Francisco Carneiro Monteiro arremata
316 Idem, pp. 20-21.
por 40$000 as casas velhas da Câmara do Aracaty sitas à Ruo do Piolho''. STU-
DART, Guilhenne. Idem, p. 385. 1

\
190 José Eudes Arrais Barroso Gomes
r
Um Escandaloso Theatro de Horrores 191

dos mais de trinta pessoas para a guarda d'elas, em que Os comentários de George Gardner a respeito da cadeia
despendi em três meses e meio que existiram nelas, até do Crato em 1837, "de tal modo arruinada, que mal lhe cabe
que foram soltos por mandado do mesmo senhor go- o nome de prisão" e com "uma janela só de trancas de pau",
vernador, tanto com as referidas recrutas, como com reforça essa série de indícios. 320 Do mesmo modo, as repetidas
o dito destacamento perto de seiscentos mil . réis ' em referências à insegurança das cadeias encontradas nos termos
razão da câmara desta villa ter tão módicos rendimentos de segurança de vida e no rol dos culpados, incapazes de garantir
que não podia suprir esta despesa ... 317 a saúde e a integridade física dos presos que hospedavam,
também depõem sobre a precariedade e vulnerabilidade das
Vê-se aqui que Antônio José Borges de Pinho utiliza-se cadeias cearenses.
da precariedade do estado das casas, ou seja, das dependências Considerando a edificação da Casa de Correção,
~a ~dificação q~e ~azia as vezes de cadeia em Granja para espécie de cadeia onde os presos prestariam certos serviços
Justificar a relevanc1a de seus serviços no posto de capitão-mor à comunidade, criada em 1835 na cidade de Fortaleza321 ,
da vila. Percebe-se ainda que Antônio Pinho toma o cuidado Antônio Otaviano Vieira demonstra através de diversos
de isentar a responsabilidade dos membros do concelho local relatórios de presidente de província o quadro de debilidade e
em relação ao estado de impropriedade da cadeia ao declarar insalubridade recorrentemente atribuído a essa instituição
exiguidade dos rendimentos da câmara, cujos membros seis correcional pelos próprios presidentes da província até pelo
anos antes haviam indicado o seu nome para o distinto posto menos 1850. Verificando que a naturalidade dos condenados
de c~mandante das ordenanças da vila, deixado vago por na Casa de Correção era diversa, havendo entre os presos
ocas1ao da morte de seu pai em 1805.318 gente proveniente de diferentes lugares, como Rio Grande do
Ainda neste sentido, um relatório de 1822 que trazia Norte, lcó, Sobral, Aracati e Crato, o mesmo autor sugere que
uma relação de obras para melhorar e desenvolver o Ceará e presos de outras localidades eram remetidos àquela que era
sua capital destacava entre "os melhoramentos mais úteis e agora a única prisão da capital, o que, sabemos, havia sido o
necessários para esta vila [de Fortaleza]" a construção de ur~a procedimento praticado ao longo de todo o século XVIII na
"nova cadeia, de que há urgentíssima necessidade".319 capitania. Ainda segundo Otaviano Vieira, era por esta razão

317 1
APEC. Livro 59: Provisões do Conselho Supremo Millitar e officios à sua se- no do Ceará, 1822. Fundo: Coleção Ceará.
cretaria (1808-1~20). "Reg.0 de hua Provisão do Conselho Supremo Militar a este 1
Governo p.ª informar sobre o requerim.10 de Antônio José de Pinho Cap.am Mor
32 ºGARDNER, George. Op. cít., p. 93.
das Orden.ç•s da V.ª da Granja, em que pede a S. A. R. a reintegração do Comando 1
f
321 Tudo indica que ·a criação da Casa de Correção em 1835 inaugura no Ceará a
d'aquella Villa &ª", 16 de outubro de 1812, fts. 25-25v. 1 concepção de prisão como sistema correcional e não apenas punitivo, transformação
3 18 esboçada na Europa somente a partir da segunda metade do século XVIII. FOU-
OLIVEIRA, André Frota de. "Joaquim José Borges Pinho". ln: Os capitães-
rnores de Granja. (texto inédito). CAULT, Michel. Op. cit. Também: TAYLOR, David. Op. cit. Sobre o Ceará mais
319 BNRJ S . . . especificamente ver: MARIZ, Silviana Fernandez. A oficina de satanás: a cadeia
. etor de Manuscntos. 11-32, 23, 016. Relação de obras para melhorar e pública de Fortaleza. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Ceará, For-
desenvolver a província, enumeradas pelos membros da comissão da junta do gover- taleza, 2004.
192 José Eudes Arrais Barroso Gomes

que os presidentes da província reivindicavam investimentos 5


nas cadeias de outros municípios. 322
AS PATERNAIS PROVIDÊNCIAS D'EL REY
Isso parece ficar claro em um ofício datado de 5 de REFORMAS E CONTROLE SOCIAL
dezembro de 1846, através do qual o governo provincial NOS SERTÕES
recriminava os vereadores da câmara de Vila Viçosa,
criticando o fato de que "tendo aquela câmara as posturas
do seu município e as rendas das terras daquela serra,
Será pois assim, se não me engano, que com a multipli-
hão tenha ao menos cuidado de reparar a pequena e fraca
cadeia naquela vila". 3 23 cação das vilas se estabelecerá a pronta e boa adminis-
tração da justiça, se apertarão legitimamente os réus
Assim, o número e as condições das cadeias locais
não pareciam estar em desacordo com o quadro geral de da sociedade civil e dos recíprocos deveres dos que a
fragilidade de imposição da justiça pública no Ceará. 324 cumprem; s~ adoçarão os costumes ainda bárbaros de
Contudo, como veremos no próximo capítulo, já desde as povos vagabundos e sem lei, até que pouco a pouco por
últimas décadas do século XVIII essa situação vinha sendo meio de trabalhos repetidos e diferentes dos que vies-
objeto de uma série de medidas implementadas pelas diversas sem sucessivamente governar esta colônia chegue ela
autoridades coloniais. àquele ponto de felicidade e de riqueza a que as incan-
sáveis providências de Sua Alteza Real e vigilância sá-
bia dos seus ministros desejão eficazmente promover.
VIEIRA Jr., Antônio Otaviano. "Ca~a de Correção". ln: Entre o faturo e o passa-
322

do: aspectos urbanos de Fortaleza (1799-1850). Fortaleza: Museu do Ceará, 2005, Bernardo Manuel de Vasconcelos,
pp. 68-76 e 72.
323 governador da capitania do Ceará, 1802.325
APEC. Livro 81: Registros dos oficios dirigidos às câmaras municipais (1846-
1850). Oficio de número 4, registrado em 5 de dezembro de 1846, fls. l 6v-l 7.
324
As precárias condições das cadeias públicas, no entanto, também não consistiam
Justificando a colonização como processo civilizatório
em exclusividade da capitania do Ceará. Um parecer enviado em 1725 pelo o rei D. atravésdaoposiçãoentreleiebarbárie, trabalhoevagabundagem,
João V ao ex-governador-geral do Estado do Brasil e capitão-mor da capitania das o capitão-mor Bernardo Manuel de Vasconcelos, governador
Minas Gerais, D. Lourenço de Almeida, por exemplo, nos informa sobre a "demora da capitania do Ceará, representou ao Príncipe Regente D. João
que os presos tem naquela cadeia [de Vila Real] aonde se acham muitos há anos, VI em 1802 que somente por meio de "trabalhos repetidos" e
uns pela sua pobreza e não haver na dita terra misericórdia a que lhes possa valer
e outros que tendo sentença de livramento do Juiz Ordinário e Ouvidoria se lhe faz da "vigilância sábia" dos administradores régios a capitania do
preciso sentença da Relação para serem soltos, a qual se demora um ano e mais Ceará atingiria a "riqueza" desejada pela Coroa portuguesa.
muitas vezes de que se tem visto que muitos com a desesperação da prisão em que se
acham intentaram arrombamento da cadeia e outros absurdos e que assim devia eu
mandar dar providência necessária para se evitar este prejuízo". REGISTRO sobre
os presos, 27 de junho de 1725. Registro de alvarás, cartas e ordens régias e cartas 325 Carta de 30 de setembro de 1802. "Documentos para a história do governo de
do Governador ao Rei. ln: Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte:
Bernardo Manoel de Vasconcellos (Collecção Studart)". ln: RIC, tomo X.XVIII,
Arquivo Público Mineiro, anno XXX, 1979, p. 203.
1914, p. 366.
194 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 195

De acordo com a historiografia recente, o reinado donatários (1760); a criação do Erário Régio em Lisboa (1761)
de D. José I, iniciado em meados do século XVIII, marcou e a transferência da sede do governo-geral da Bahia para o Rio
o surgimento de uma "administração mais activa e de Janeiro (1763), mais próximo das Minas Gerais. 329
intenveniente" por parte da monarquia e seus concelhos, o que Também na distante capitania do Ceará que, como
trouxe como consequência transformações que implicaram em vimos, era frequentemente palco de crimes e descumprimentos
uma verdadeira reorganização do império português.326 Essa das leis régias, uma série de medidas controladoras foram
postura governativa mais ativa, que ganhou força sobretudo tomadas, dentre as quais destacarei a seguir: a ordem para a
a partir de diversas medidas adotadas durante o ministério fundação de vilas no sertão, a criação de diretórios de índios,
pombalino (1755-1777), repercutiu na governação colonial a progressiva exigência de alistamentos militares e mapas
através de um processo de racionalização e reformas visando populacionais às autoridades locais, e a obrigatoriedade do
a crescente centralização administrativa, o que incluía o seu uso de passaportes pela população.
viés fiscalista. 327 Inserem-se aí importantes medidas como: a
expulsão dos jesuítas com o confisco de seus bens e a criação 5.1 Vilas para os "vagamundos", diretórios para os
dos diretórios de índios em 1759; as tentativas de reforma índios e'dízimos para El Rey
militar e do sistema educacional, a primeira com vistas à
defesa das fronteiras coloniais e a segunda, segundo Kenneth Faço saber a todos os moradores desta capitania [do
Maxwell, destinada a "produzir um novo corpo de funcionários Ceará] que o Ili. mo e Ex. mo Snr. Conde nosso general
ilustrados para fornecer pessoal à burocracia estatal e à em carta de 14 de janeiro deste ano me ordenou fizesse
hierarquia da Igreja reformadas" 328; o monopólio comercial publicar a carta régia de 21 de julho do ano passado
através da criação de companhias privilegiadas de comércio pela qual foi Sua Majestade servido acodir com as suas
como a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755) e a Paternais Providências aos insultos que a falta de polícia
Companhia Comercial de Pernambuco e Paraíba (1759); a compra
tem ocasionado nestes sertões.
das capitanias hereditárias que ainda estavam em poder de
Sendo-me presente as repetidas queixas, os cruéis e
atrozes insultos que nos sertões dessa capitania tem
326SUBTIL, José. "Instituições e quadro legal". ln: História econômica de Portugal cometido os vadios e facinorosos que neles vivem como
(1700-2000): o século XVIII, vol. 1. Lisboa: Universidade de Lisboa/Imprensa de feras separadas da sociedade civil e comércio humano:
Ciências Sociais, 2005, pp. 369-388. MAURO, Frédéric. "Portugal e o Brasil: a
reorganização do Império (1750-1808)". ln: BETHELL, Leslie (ed.). História da sou servido ordenar que todos os homens que pelos
América Latina: América Latina colonial, vol. 1. Tradução: Maria Clara Cescato. 2ª ditos sertões se acharem vagamundos, ou em vicios vo-
ed. São Paulo: Edusp; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1998. lantes, sejam logo obrigados a escolherem lugares aco-
327Ainda segundo Maxwell: "A criação do Erário Régio em Lisboa em 1761, con- modados para viverem juntos em povoações civis, que
tudo, foi o elemento-chave no esforço global de Pombal com vistas à racionalização
e à centralização. Ali toda a renda da coroa deveria ser concentrada e registrada".
Idem, p. 98. 329SALGADO, Graça (coord.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil co-
328 MAXWELL, Kenneth. Op. cit., p. 110. lonial. 2• ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1985.
196 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 197

pelo menos tenhão de cinquenta fogos para cima, com Bahia, Pernambuco e "Goiases", e objetivava principalmente
juiz ordinário, vereadores e procurador de conselho, o recrutamento militar de "todos os moradores em estado de
repartindo-se entre eles com justa proporsão as terras servir" para serem empregados nos conflitos na fronteira sul
adjacentes. Isto debacho da pena de que aqueles que no da colônia, especialmente porque os moradores das capitanias
termo competente que se lhes asignar nos editais que do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais estavam se
se fixarem para este efeito não aparecerem e reduzirem refugiando nos sertões daquelas capitanias para fugir do
a sociedade civil nas povoações acima declaradas, serão abominado recrutamento colonial.332
tratados como salteadores de caminhos, inimigos co- Diante das especificidades da capitania cearense,
muns, e como tais punidos com a severidade das leis ... marcada por um quadro de dispersão populacional, violência,
crimes e impunidade, a ordem para a criação de vilas seria
retoricamente apresentada como parte das "Paternais
Bando de 29 de maio de 1767 através do qual foi publi-
Providências" de "Sua Magestade" em "acodir ( ... ) aos insultos
cada na capitania do Ceará a carta régia de 22 de julho de
que a falta de polícia tem ocasionado nestes sertões", insultos
1766, determinando a criação de vilas agregando-se a elas
estes praticados pelos chamados "vagamundos dos sertões"333,
os "vagabundos dos sertões". 330 sobre os quais já conhecemos muitos comentários feitos pelos
administradores régios cearenses.
Através do bando acima, em 1767 era publicada no Dessa forma, o texto da sua publicação nos permite
Ceará a carta régia de 22 de julho de 1766331 , que determinava verificar de forma exemplar a apropriação de medidas régias
a criação de vilas na América portuguesa a partir de uma gerais pelas autoridades coloniais locais, adaptando-as às
preocupação explicitamente controladora. Originalmente, realidades específicas de suas jurisdições, neste caso o capitão-
a carta real em questão era destinada aos capitães-generais general governador de Pernambuco e o capitão-mor do Ceará.
das capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Note-se que, além de "agregar" os ditos "vadios e facinorosos"
em vilas, ordenava-se que os capitães-mores e comandantes
cearenses deveriam enviar ao capitão-general governador de .
330
APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias ( 1762-1804). Bando
de 29 de maio de 1767, fls. 19v-20v. Me foi possível constatar que a mesma carta
régia foi publicada na vila de lcó em bando de 14 de junho do mesmo ano: APEC. 332 PEREGALLI, Enrique. Recrutamento militar no Brasil colonial. Campinas: Ed.
Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias da câmara Unicamp, 1986. Também: MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. "A guerra e
da vila de Icó (1761-1796), fl s. 36-3 8 e 38-40. Devo observar que esta mesma deter- o pacto: a política de intensa mobilização militar nas Minas Gerais". In: IZECKSO-
minação régia deve ter sido publicada nas diversas partes da capitania em diferentes HN, Vitor; KRAAY, Hendrik; CASTRO, Celso (orgs.). Nova história militar brasi-
momentos ou ainda reeditada diversas vezes, o que explicaria o fato de Francisco leira. Rio de Janeiro: FGV, 2004, pp. 67-86.
José Pinheiro atribuir a sua publicação ao ano de 1783. PINHEIRO, Francisco José. 333APEC. Livi:o 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens ré-
Op. cit., p. 47.
gias da câmara da vila de Icó ( 1761-1796). "Edital que mandou lavrar nesta Villa o
331
"Carta régia de 22 de lulho de 1766". ln: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O Doutor Ouv.º' G.•1 e Cor.º' desta Coma.e• Victorino Soares Barboza, na qual manda
marquês de Pombal e o Brasil. Coleção Brasiliana, volume 299. São Paulo: Compa- S. Mag.• Fid.m• erigir Villas para os Vagamundos como abaixo se expende", 14 de
Iihia Editora Nacional, pp. 140-141. junho do 1767, fls. 36-38.
198 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 199

Pernambuco "relações muito exatas de todos os que nas suas e as cidades da América portuguesa, enquanto as primeiras
freguesias tiverem aparecido para se congregarem e reduzirem teriam sido concebidas como núcleos urbanos planejados,
à sociedade civil nas povoações de Sua Majestade".334 Outra expressando o interesse em ordenar e dominar o mundo
observação fundamental é o fato de que, a partir da fixação conquistado, as últimas ressentiram-se de rigor ou de método,
dos editais da dita carta régia, todos aqueles que não fossem o que seria demonstrado através de certo desleixo e improviso,
reduzidos à "sociedade civil nas povoaçpes" passariam a ser processo que mais recentemente Emanuel Araújo chamou de
"tratados como salteadores de caminhos e inimigos comuns, e "urbanismo à lusitana". 338 No entanto, no que diz respeito à
como tais punidos com a severidade das leis". Em outras palavras, planejamento e intencionalidade, esta análise geral parece não
seriam considerados desertores e, portanto, criminosos. dar conta de pelo menos boa parte das vilas fundadas no Ceará,
Segundo Guilherme Studart, "em virtude das especialmente na segunda metade do século XVIII. É sabido
disposições contidas nessa ordem foram criadas no Ceará as que as vilas de Icó (1738), Aracati (1748) e Baturité (1764)
vilas de Sobral, Quixeramobim, São Bernardo das Russas e São receberam determinações expressas para as suas fundações,
João do Príncipe".335 Ainda neste sentido, Studart menciona instituindo no plano de seu traçado urbano a preocupação
a ordem régia de 3 de novembro de 1780, "sobre a conta que com a ordenação espacial através do alinhamento de ruas,
o governador do Ceará [Antônio José Victoriano Borges da determinação do terreno que serviria de praça principal,
Fonseca] deu a respeito das desordens havidas na capitania onde seria levantado o pelourinho, e fixação e padronização
para evitar, as quais parecia-lhe justo criarem-se vilas as 11 de residências e prédios públicos, tais como casa de câmara,
freguesias de brancos, então existentes". 336 Assim, mais igreja, açougue público e, claro, uma cadeia para a punição dos
uma vez parece ficar claro que a criação de vilas na capitania transgressores das ordenações d'El Rey. 339
cearense ao longo da segunda metade do século XVIII está De acordo com Maria Auxiliadora Lemenhe,
diretamente relacionada com a preocupação da administração considerando que no Ceará, por conta das características da
colonial acerca do controle social sobre a população sertaneja. pecuária extensiva, um bastante número de indivíduos estava
De acordo com a clássica comparação feita por Sérgio fora da atividade produtiva, o processo de "criação de vilas
Buarque de Holanda337 entre as cidades hispano-americanas por decreto" na capitania foi um meio encontrado de levar

334 APEC. 338 Emanuel Araújo afirma que segundo o urbanismo à lusitana: "O sentido do pro-
Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias
visório e do fugaz que dominava os colonos revela-se no desleixo da urbanização;
da câmara da vila de lcó (1761-1796) "Edital que mandou lansar a Som de Caixas o
até na falta de urbanização ..." E mais adiante acrescenta: "Em muitas vilas e so-
Senhor Tenente Coronel e Gov. or desta Capitania Antônio Joseph Victr.º Borges da
bretudo nas cidades maiores os vereadores insistiam eternamente em legislar sobre
Fonseca corno abaixo se declara", junho de 1767, fls. 38-40.
o alinhamento, a limpeza e o nivelamento das ruas. Pela repetição insistente, tudo
335 STUDART, Guilherme. Datas e factos para a história do Ceará. Edição fac-simi- indica que com pouco sucesso". ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: trans-
lar. Tomo I: Ceará colônia. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2001, p. 313. gressão e transigência na sociedade urbana colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro: José
336 STUDART, Guilherme. Op. cit., p. 359. Olympio, 1997, pp. 37 e 46, respectivamente.
337 339
HOLANDA, Sérgio Buarque de. "O semeador e o ladrilhador". ln: Raízes do SANTOS, Paulo. Formação de cidades no Brasil colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Brasil. 26ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 93-138. Editora UFRJ/lphan, 2008.
200 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 201

os ditos "vadios" à produção através da nudeação de mão-de- partiriam o tráfico e misteres da sociedade; que se ci-
obra desocupada e da regulação das relações sociais34o. Isso vilizariam os povos d'arredor; promover-se-ia a ordem
fica explícito no edital de convocação para a criação da vila de e felicidade pública; aplicar-se-hia o prompto castigo dos
Campo Maior de Quixeramobim, publicado em 1787:
facinorosos para excarmento de outros, adiantar-se-ia a
desprezada e necessaríssima agricultura e aumentaria a
Faço saber a todas as pessoas nobres e povo do distri-
comunicação e comércio interior destes países... 341
to desta povoação de Santo Antônio de Quixeramobim
(. ..) que havendo consideração ao quanto útil e conve- Ainda segundo a mesma autora, os objetivos da
niente seria ao bem comum da sociedade civil, ao soce- transformação dos aldeamentos indígenas em vilas-diretório
go público, à administração da justiça e ao real serviço após a expulsão e confisco dos bens dos jesuítas em 1759 não
que se erigisse em vila a povoação de Santo Antônio de teriam sido diferentes, o que aparece confirmado no estudo de
Quixeramobim, para nela se recolherem e congregarem Isabelle Braz da Silva sobre a instauração de vilas de índios sob
todos os homens vadios que afastando-se da sociedade o diretório pombalino no Ceará. 342 O edital e alvará de criação
civil à maneira das f éras vivem embrenhados pelo centro da vila de Baturité é exemplar neste sentido:
dos matos virgens destes sertões (...) pois vagando impu-
nemente a licenciosa prepotência e independente liber- ... se determina criar· nesta serra de Baturité, e que se
dade da anarchia natural, vêem-se todos os dias acome- manda unir a antiga missão da Telha sita no Quichelô,
tidos e perpetrados por estes semi-bárbaros desertores com todos os índios habitantes e de ambas dispersos
da sociedade, os mais execrandos insultos e negras mal- para complemento dos casais, que o diretório requer na
dades que as justiças pelas remotas longitudes de seus criação de semelhantes vilas, e os moradores que a es-
distritos nunca podem rechaxar, coibir. e castigar, ou tas se quiserem apegar, não estando já nas que se acham
por não lhes chegar a noticia, ou a tempo tal que todas eretas, e ainda outros quaisquer que não forem índios
as averiguações tornavam-se infructíveras ... ou descendentes deles que para mesma quiserem vir,
Portanto, tendo em vista, que desterrada esta abomi- podendo ser atendidos pelos seus oficiais misteres, e
nável desordem com a nova criação da vila, se atrairia procedimento com que se hajam de empregar neles e no
e obrigariam nela a viver, edifi.car e trabalhar os homens de agricultura para maior aumento dela- determino le-
errantes e inofi.ciosos de seu distrito; que por eles se re- vantar e aclamar esta nova vila na forma das sobreditas
ordens(...) no dia 14 de abril próximo futuro com assis-
340 "N t • .
um~ e.x ensa area, pont1 1hada de fazendas dispersas e incapazes de absorver
~os s~u~ hm1tes a mão-de-obra desocupada, onde o sistema de produção e comercia- 341OLIVEIRA, J. Baptista Perdigão de. "A Villa de Quixeramobim". ln: RIC. Anno
hzaça~ ~mpunham limites à geração de excedentes necessários ao desenvolvimento IV (1890), pp. 278-279.
das atividades ur~anas, ~.aglomeração em vilas só poderia surgir por decreto real". 342SILVA, Isabelle Braz Peixoto da. Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas
LEMENHE, Mana Auxiliadora. Op. cit., pp. 36-37.
locais sob o Diretório Pombalino. São Paulo: Pontes, 2006.
1
f
202 José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso Theatro de Horrores 203

tência de todos os moradores desta povoação no lugar sobretudo pela produção agrícola algodoeira. 345 Daí a crescente
que para ela for destinado e demarcado, e na sua praça preocupação com o controle social na capitania expressa pela
hei de fazer levantar o pelourinho, assignando-lhe área criação de vilas, que por meio do controle sobre a população
suficiente e tambem para todos os edifícios públicos, itinerante do sertão cearense objetiva a expansão da produção
como seja igreja, que sirva de matriz, em que se louve a e do comércio, o que traria o enriquecimento dos potentados
Deus, casa de câmara, cadeia e açougue, e mais oficinas sertanejos e a consequente captação de tributos régios.346
públicas e para habitação de cada um dos seus morado-
res em particular, alinhando as ruas que há de ter, e os Quadro 2
quadrados das suas casas com igualdade; e tambem hei FUNDAÇÃO DE VILAS NA CAPITANIA DO CEARÁ
de fazer divisão do seu termo e dar terras proprias que
hão de ficar pertencentes ao patrimônio e baldios do lo- FUNDAÇÃO VILA
gradouro de mesma câmara e a cada um dos ditos mo- 1699 São José de Ribamar (Aquiraz)
radores para as suas plantas e lavouras (. ..) hei de fazer
1726 Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção
eleição das pessoas [de] quem tiver melhor informação,
e que sirvão os cargos de governança e mais ofícios pú- 1738 Nossa Senhora da Expectação do Icó
blicos (...) determinando e insinuando tudo o mais que 1748 Santa Cruz do Aracati
for preciso para o seu futuro aumento ...343 Viçosa, Soure (Caucaia), Arronches
1759
(Paran_gaba)
Se, por um lado, o crescimento populacional344 1760 Messejana (Paupina)
verificado nas últimas décadas do século XVIII e as secas de
1777-1778 e 1791-1793 agravaram a ocorrência de "crimes" 1764 Monte-mor-o-novo (Baturité), Crato
e "desordens" na capitania, por outro, esboçava-se a intenção
metropolitana em submeter a população pobre e livre cearense
a relações de trabalho regulares e disciplinadas, representadas 345 "No final do século XVIII, acentuaram-se as preocupações com o controle social
na capitania do Ceará. Foi nesse contexto que começou a se desenvolver a produção
algodoeira no âmbito capitalista da capitania, respondendo às exigências da revolu-
ção industrial inglesa. A pecuária foi uma atividade que possibilitou o crescimento
343 da população; mas não demandava muita força de trabalho. Uma parcela significa-
"Registro dos autos da erecção da real villa de Monte-mór o Novo da América
tiva da população gestada pelo complexo pecuário não era absorvida: ficava como
na capitania do Ceará Grande". In: RIC. Tomo V, 1891, pp. 84-85. '
344 que sem função na perspectiva mercantil. No entanto, no final do século XVIII, com
Levando em conta as estatísticas populacionais da capitania do Ceará existen- a necessidade de produzir algodão para as fábricas inglesas, esta população pobre,
tes, malgrado as suas limitações e precariedades, observamos uma perspectiva de livre, tomou-se essencial; mas para isto era fundamental submete-la a relações de
amplo crescimento populacional: de uma estimativa de 34.000 habitantes em 1775 trabalho regulares e disciplinadas. Nesse contexto foram criadas as vilas de controle
passamos a um total de 61.408 em 1782, para 130.396 "pessoas adultas" em 1808 ~ social..." PINHEIRO, Francisco José. Op. cit., pp. 46-48.
149.285 habitantes em 1813. ARARIPE, Tristão de Alencar. Op. cit., pp. 92-94. ' 346 LEMENHE, Maria Auxiliadora. Op. cit., p. 39.
Um Escandaloso Theatro de Horrores 205
204 José Eudes Arrais Barroso Gomes

De qualquer modo, o projeto de criação de vilas parece


1773 Sobral ter sido bem acolhido pelas elites locais, na medida em que
1776 Granja l o levantamento de pelourinhos nos povoados da capitania
1789 Campo Maior de Quixeramobim significava o seu acesso a cargos concelhios, patentes de
comando das tropas militares que seriam formadas localmente,
1791 Vila Nova d'El Rey (Campo Grande) 1 privilégios e isenções, além de possibilitar aos homens bons de
São Bernardo das Russas, São João do cada localidade, fazendeiros e grandes comerciantes, o poder
1801
Príncine institucional de controle e domínio sobre a comunidade local
1814 Santo Antônio do Jardim através de artifícios como o recrutamento militar, a elaboração
1816 São Vicente das Lavras da Mangabeira de posturas e normas obrigatórias para todos os vizinhos, a
criação de novos tributos e a taxação do preço de gêneros e
Diante de um quadro geral de violência na capitania, serviços no limite das vilas. Isso, contudo, esteve longe de
composto por um elevado índice de criminalidade, frequente significar um alinhamento completo entre os intere~ses ~as
roubo de gados - durante a maior parte do século XVIII elites locais e os poderes do centro, como parece eVIdenc1ar
principal fonte de riqueza e arrecadação locais, dificuldades o trecho seguinte da Memória sobre a Capitania Independente
de imposição da justiça e elevado índice de .impunidade, a do Ceará, escrita em 1814 pelo ex-capitão-mor governador da
crescente preocupação com a fundação de vilas no Ceará estava capitania Barba Alardo de Menezes, que trata da necessidade
diretamente relacionada com o controle social na sociedade da criação de novos juízes de fora no Ceará:
local. Ao tentar agregar os ditos "vadios e vagamundos"
dos sertões ao "convívio da sociedade civilizada" através ...é muito importante a criação dos novos juízes de
da fundação de vilas e exigir das autoridades locais um fora, assim como no centro a residência do ouvidor;
maior controle sobre a população através de alistamentos, porque dando as justiças mutuamente as mãos, e da
mapas populacionais e passaportes, a Coroa procurava mesma sorte a tropa seriam inviolavelmente observa-
impor determinada "normalização" social que permitiria a das as leis, as autoridades conservariam todas o seu devi-
um só tempo assegurar a produção colonial, facilitar o seu do decoro e respeito, os delinquentes não ficariam im-
escoamento e comercialização, incentivar o comércio local, punes, os facinorosos que infestam desaparecerião,
ampliar os seus tentáculos administrativos e arrecadar desvaneciam-se as intrigas, e até os povos, com mais
impostos para os cofres régios. O caráter aduaneiro da sossego e tranquilidade animariam a sua abandonada
criação de vilas no Ceará fica claro com a fundação da vila de agricultura e o seu amortecido comércio. Finalmente,
Aracati em 1748, a partir de quando houve um decréscimo multiplicar-se-ião as vilas à imitação das paroquias,
temporário no número de embarcações comerciais no seu
como é indispensável em tão vasta capitania para a
porto por conta dos impostos lançados.347

347 H istória do Ceará. 2ª edição. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1994, p. 67.
GIRÃO, Valdelice Carneiro. "As charqueadas". Iu: SOUZA, Simone (coord.).
1

\
206 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 207

civilização dos seus habitantes, aonde não convém autoridades locais. A obrigatoriedade de fixar residênàa junto aos
estejão dispersos sem educação, nem religião, e do povoados e de apresentar wna ocupação produtiva, assim como a
mesmo modo devem ser, digo não devem estar api- correspondente "criminalização" dos sujeitos que falhassem a estes
nhoados .em um tão pequeno número de villas, aonde preceitos andavam, desse modo, de mãos dadas com a submissão
se forjão, de ordinário, as maiores cabalas, e escandalo- dos trabalhadores rurais aos grandes proprietários cearenses.
sos monopólios de refinado egoísmo dos ambiciosos, que
só desejão para si os empregos e as riquezas, e pisar os 5.2 Alistamentos, mapas, passaportes e licenças:
indigentes.348 população volante e deserção

É interessante perceber que segundo Barba Alardo Muitos dos moradores da povoação vieram perguntar-
de Menezes, além das leis régias virem sendo violadas na me por notícias de Pernambuco. Entre estes, um rapaz,
capitania, as próprias autoridades locais não "conservariam cujo acento denunciava ter nascido numa das provindas
todas o seu devido decoro e respeito" e no seu reduzido do norte em Portugal, com maneiras que proclamavam a
número de vilas forjar-se-iam "monopólios" dos ofícios e alta idéia que fazia de sua própria importância. Disse-me
riquezas locais. A Memória de Barba Alardo tratava-se da ter ordem do comandante para pedir meu passaporte.
resposta a uma provisão da Mesa do Desembargo do Passo Henry Koster, 1810350
que pedia informações sobre a "urgente necessidade que
t~nha a capitania de mais juízes de fora", funcionários régios É conclusão, que esta capitania está sempre nascente,
diretamente nomeados pelo rei para presidir as câmaras, que a população não pode fazer progressos vantajosos,
com vistas a reduzir o poder dos grandes proprietários locais pelas emigrações contínuas, ocorrência de secas, padeci-
e garantir o cumprimento das ordenações régias.349
mento de moléstias daí provindas; o que tudo definha a
· Pa:a a grande maioria da população, composta por
espécie, que devia aumentar-se rapidamente ...
homens livres e pobres como índios, vaqueiros, agregados,
camponeses, pequenos proprietários e artesãos, sem falar daqueles
cons~derados "sem orupação" ou "sem residência certa'', aquelas Descrição geográfica abreviada da capitania do Ceará,
medidas. representavam wn maior controle sobre seus corpos 1816.
e suas ~das, sobretudo através da imposição do trabalho como
norma. E exatamente nesse sentido que ganha força o discurso Tem sido estes sertões ategora a cidade de refúgio de to-
sobre a alegada "preguiça" e "vagabundagem" da população dos aqueles homens que em outras capitanias cometiam
da capitania, cada vez mais frequentemente acionado pelas algum crime, o que lhes não era difícil conseguir, por que
sem passaportes entravam, e saiam neles, como e quando
1
348
MENEZES, Luiz Barba Alardo de. Op. cít., p. 38.
34
!'.> SALGADO, Graça. Op. cit., pp. 59 e 72. 350 KOSTER, Henry. Op. cit., pp. 161-162.
1

\.
208 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 209

querião, sem embaraço algum, e assim viviam continuan- O papel central que a população t eria na administração
do seus absurdos... pombalina ficaria evidente através das palavras do próprio
João Baptista de Azavedo Coutinho de Montaury, capi- Sebastião José Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal,
tão-mor da capitania do Ceará, 1782.351 em correspondência a Gomes Freire de An drada já em 1750,
quando havia declarado que "a força e a riqueza de t odos os
Além da "multiplicação das vilas" agregando a população países consiste principalmente no número e m ultiplicação da
volante do sertão em povoados, em 1802 o capitão-mor 1 gente que o habita", donde se percebe a clara associação entre
Bernardo Manuel de Vasconcelos referiu-se a outra iniciativa crescimento populacional e a geração de riquezas.354
que faria parte das "incansáveis providências de Sua Alteza Real" A política de controle sobre a população baseada n a
para promover a "felicidade e riqueza" dos vassalos: a "vigilância exigência de mapas populacionais, implementada nas mais
sábia" que deveriam "eficazmente promover" os ministros da 1 diversas paragens do império português, especialmente a
administração colonial. 352 Nesse sentido, além da fundação de partir das últimas décadas do século XVIII, parecia est ar
vilas por decreto, outras importantes medidas administrativas relativamente atualizada para os padrões do período, tendo
tomadas especialmente a partir da década de 1760 tentavam em vista que "os recenseamentos, no sentido moderno do
regulamentar o controle social sobre a população na capitania: termo, não remontam a muito antes do fim do século XVIII".355
os alistamentos militares, a confecção de mapas populacionais e O geógrafo Claude Raffestin observa que o recenseament o é
a imposição do uso de passaportes pelos seus moradores. um saber e, portanto, um poder, pois "por essa informação, o
Sobretudo a partir das últimas décadas do século XVIII, recenseamento, o Estado pode assentar melhor o seu sistema de
coincidindo com o desenvolvimento da produção algodoeira taxação e determinar aqueles que estão submetidos ao serviço
na capitania, encontramos na correspondência destinada militar". Ainda segundo ele, "o imposto e o recrutamento já
ao Ceará a cobrança recorrente dos secretários do Conselho são duas razões, mas há muitas outras que det erminam a
Ultramarino e do capitão-general de Pernambuco por necessidade de uma imagem da população". 356
alistamentos militares e mapas353 da população da capitania. Nesse sentido, esse saber-poder guarda íntima relação
Alistamentos militares e mapas populacionais com o surgimento do Estado moderno e com a arrecadação de
tributos, na medida em que, antes dos recenseamentos modernos,

351 Exposição de João Baptista Coutinho de Montaury, 3 1 de dezembro de 1782. 354M ENDONÇA, Marcos Carneiro de. O marquês de Pombal e o Brasil. Coleção
Biblioteca do Palácio Nacional da Aj uda. Ms. Av. 54-XIII-16, n. 14 1ª, fl. 4v. Brasiliana, volume 299. São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. 188.
352
Carta de 30 de setembro de 1802. "Documentos para a história do governo de 355 Na Europa, um dos primeiros recenseamentos nominativos foi o da Suécia ocor-
Bernardo Manoel de Vasconcellos (Collecção Studart)". ln: RIC, tomo XXVIII, rido em 1749-1750, o primeiro recenseamento dos Estados Unidos ocorreu em 1790,
1914, p. 366. j á a França e a Inglaterra fizeram seu primeiro recenseamento em 1801. RAFFES-
353
Na documentação colonial, mapa é o mesmo que tabela, ou em outras palavras, TIN, Claude. "Recenseamento e poder". ln: Por uma geografia do poder. Tradução
um "quadro que relaciona a espécie e as quantidades de cada uma delas". BELLO- de Maria Cecília França. São Paulo: Ática, 1993, pp. 68 e 88.
TO, Heloísa Liberalli. Op. cit., p. 794. 356 Idem, p. 68.
210 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 211

aplicou-se urna variedade de métodos indiretos para fazer o realizado entre 1777-1782, que é considerado o mais completo
cálculo da população, dentre os quais a contagem dos domicílios registro demográfico do Brasil no século XVIII. 362
foi particularmente utilizada. 357 Uma última observação consiste Outro exemplo do envio de mapa populacional da
no fato de que, "para manter essa informação atualizada, é capitania do Ceará é o Mapa das vilas e principais povoações
necessário renovar periodicamente a operação, de modo que se de brancos e índios da capitania do Ceará Grande, datado de
obtenha urna imagem não muito distante da realidade. (...) Em 1783.363 A maior preocupação da administração colonial
outras palavras, trata-se de uma informação que se degrada e, por com a capitania do Ceará guarda relação direta com o
conseguinte, é necessário reinvestir para atualizá-la".358 desenvolvimento da produção de algodão e o desenvolvimento
Guilherme Studart refere-se à ordem régia de 17 de do comércio na capitania, o que trazia a possibilidade de
julho de 1774, que requisitava do capitão-general governador aumento na arrecadação de impostos. É nesse sentido que
de Pernambuco José Cezar de Menezes uma relação dos ocorre a independência da capitania do Ceará de Pernambuco ·
habitantes da capitania de Pernambuco e demais capitanias em 1799, o que implicou no direito de comercialização direta
anexas. 359 Ainda segundo Studart, em setembro de 1777, com Portugal; criação da Junta da Fazenda do Ceará, conselho
José Cezar de Menezes remeteu a Portugal uma estatística fiscal presidido pelo governador da capitania e diretamente
da comarca do Ceará. 360 Dois anos depois, a ordem régia de subordinado ao erário português; construção das sedes da
18 de setembro de 1776, extensiva a todas as capitanias do alfândega em Fortaleza e Aracati; e a criação das casas de
Brasil, determinou a realização do primeiro recenseamento inspeção, responsáveis pela cobrança de impostos sobre a
geral dos habitantes da América portuguesa. Essa foi a origem produção de algodão, também estabelecidas em Aracati e
da pormenorizada e extensa Idéia da população da capitania de Fortaleza, principais portos de exportação do produto n a
Pernambuco e das suas anexas361, censo das capitanias do norte capitania. Foi assim também que se deu a vinda do naturalista
João da Silva Feijó ao Ceará em 1799, engenheiro que
provavelmente permaneceu na capitania até 1819 e realizou
357 " . .. a
cada domicílio aplicava-se um coeficiente estimado, de maneira a ter um nú- uma série de estudos sobre as potencialidades de exploração
mero. Foi assim que Vauban procedeu em seu Dízimo Real". Ibidem. A contagem do
número de domicílios ou f ogos foi bastante comum em toda a América portuguesa.
econômica da capitania, especialmente a prospecção de minas
SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e de salitre e metais.364 Tanto a sua Memória sobre as antigas
vida privada na América portuguesa. São Paulo: Cia. das letras, 1999.
358 RAFFESTIN, Claude. Op. cit., p. 69.
359 STUDART, Guilherme. Op. cit. , p. 337. 362 PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Op. cit., pp. 198-199.
360 Idem, p. 344. 363 "Mapa das vilas e principaes Povoaçoens de Brancos e Índios da capitania do
361 MENEZES, José Cezar de. "Idéa da população da Capitania de Pernambuco, e Ceará Grande com as denominações das ditas Vilas, e invocaçoens dos Oragos das
das suas annexas, extenção de suas costas, rios, e povoações notaveis, agricultura, suas respectivas Matrizes e Capelas. Feito em primeiro de abril de 1783". AHU. CT:
numero dos engenhos, contractos, e rendimentos reaes, augmento que estes tem tido AHU ACL CU O17, Caixa 09, Documento 592.
&ª &ª desde o anno de 1774 em tomou posse do governo das mesmas Capitanias 364 Feijó
nasceu na povoação de Guaratiba, no Rio de Janeiro. Graduado engenheiro
o governador e capitam general José Cezar de Menezes". ln: Annaes da Biblioteca pela Universidade de Coimbra, foi professor de botânica em Lisboa, sócio-corres-
Nacional do Rio de Janeiro, vol. XL ( 1918), Rio de Janeiro, 1923. pondente da Academia Real de Ciências de Lisboa e secretário do governo da Ilha

J
212 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 213

lavras do oiro da Mangabeira da capitania do Ceará, quanto a Para efeito de dar um pleno cumprimento às ordens de
Memória econômica sobre o gado lanigero do Ceará resultaram Sua Alteza Real o Príncipe Nosso Senhor nesta capita-
destes estudos.365 Escreveu ainda sobre a capitania cearense nia de cujo governo logo que aqui cheguei tomei posse,
a sua Coleção descritiva de plantas da capitania do Ceará e a deverá Vossa Mercê em consequência da carta de ofício,
Memória sobre a capitania do Ceará. que no augusto nome do mesmo soberano senhor me
A constância da exigência e envio de arrolamentos da dirigiu o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios
população da capitania e o crescente índice de racionalização Estrangeiros e da Guerra em data de 16 de Março deste
e controle da sua administração são evidenciados ainda pelo corrente ano, enviar-me um mapa muito exato e bem or-
Mapa da população da Capitania do Ceará Grande apresentado a denado dos habitantes dessa vila e seu termo, organizado
Sua Alteza Real, no mês de junho de 1804, pelo seu governador da segundo o modelo, que já tem.367
mesma capitania-João Carlos Augusto de Oeynhausen. 366
Em 1808, com a abertura dos portos brasileiros às Além do recenseamento oficial da capitania em 1808,
"nações amigas", inicia-se o comércio direto entre Ceará e no governo de Barba Alardo de Menezes foram elaborados
Inglaterra, principalmente de algodão. Em 28 de junho de 1808, vários trabalhos cartográficos, tais como: a Carta demonstrativa
apenas sete dias após tomar posse, o governador Luís Barba da capitania do Ceará (1810), o Mapa demonstrativo da freguesia
Alardo de Menezes dirigiu oficio circular aos capitães-mores de Icó (1811), o Prospecto da vila de Fortaleza de Nossa Senhora
das ordenanças das vilas da capitania requerendo o envio de um d'Assunção ou porto do Ceará (1811) e a Carta topográfica da
mapa padronizado dos habitantes das respectivas vilas e termos capitania do Ceará (1812). O próprio Barba Alardo escreveu
e também um mapa das suas companhias de ordenanças: em 1814 a Memória sobre a capitania independente do Ceará,
acompanhada por nada menos que 11 mapas, nos quais
destaca-se a preocupação central com a exportação de produtos
cearenses para a Europa através do registro das entradas e
de Cabo Verde encarregado de estudar as potencialidades daquela colônia e seus saídas de navios nos portos da capitania.368
produtos. Veio ao Ceará em 1799 com os cargos de engenheiro da capitania e sar-
gento-mor naturalista acompanhando Bernardo Manuel de Vasconcelos, o primeiro
capitão-mor após a separação da capitania do Ceará da de Pernambuco. lncubido de
estudar a geografia, os recursos e as produções da capitania, estudou minas de salitre
em Tatajuba, distrito de Santa Quitéria, onde estabeleceu um laboratório ainda em 367 APEC. Livro n.º 58: Registro Geral da Correspondência (1808-1812), oficio cir-
1799. Em 1804 o laboratório foi transferido para Pindoba, na serra da lbiapaba. cular de 28 de junho de 1808, fls. 2-3 .
Feijó faleceu na corte do Rio de Janeiro com a patente de coronel. NOGUEIRA, 368 ANRJ. "Memória sobre a capitania independente do Ceará grande escripta em 18
Paulino. "O naturalista João da Silva Feijó". ln: RIC, tomo II, 1888, pp. 247-276. de abril de 1814 pelo governador da mesma, Luiz Barba Alardo de Menezes". Co~
365
FEIJÓ, João da Silva. Memória sobre a capitania do Ceará e outros trabalhos. leção de memórias e outros documentos sobre vários 'objetos. Notação: códice 807,
Edição fac-similar. Coleção Biblioteca Básica Cearense. Fortaleza: Fundação Wal- vol. 07. Fundo: Diversos códices-SDH. Código do Fundo: NP. Em sua Memória
demar Alcântara, 1997. Barba Alardo afirma que enviou um "mappa topographico" da capitania, cuja cópia
366STUDART, Guilherme. "Administração João Carlos Augusto Oeynhausen". ln: foi enviada ao Real Archivo Militar, atualmente sob a guarda do Arquivo Nacional
RIC, 1925, p. 279. do Rio de Janeiro.
214 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 215

No ano de 1812, o engenheirornilitarportuguêsAntônioJosé O Tenente Coronel do Regimento de Infantaria paga


da Silva Paulet foi remetido ao Ceará. Silva Paulet foi o responsável da Guarnição da Praça do Recife de Pernambuco a
pela reforma da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção e a ele é cujo cargo se acha o governo desta Capitania do Ceará
atribtúda a autoria da Descrição geográfica abreviada da capitania do Grande por Sua Magestade, que Deus Guarde &ª. Por
Ceará de 1816.369 Em1813, o capitão-morgovernadorManoellgnáào quanto sendo informado da irregularidade e falta de
de Sampaio, por sua vez, exigiu dos capitães-mores de ordenanças e disciplina a que se achão reduzidas as tropas auxilia-
vigários da capitania mapas estatísticos da sua população.370 res deste Reino: e atendendo a que nelas sendo regu-
A exigência de mapas populacionais e a sondagem ladas e disciplinadas, como devem ser consiste uma
das possibilidades de exploração econômica do Ceará a partir das principais forças que tem o mesmo Estado para se
das últimas décadas do século XVIII foram tão sistemáticas
defender, foi servido em Carta de 22 de março do ano
que permitiram Thomaz Pompeu de Souza Brasil criticar o
próximo passado assinada pela sua Real mão, ordenar
governo imperial pela ausência de práticas semelhantes quase
ao Ili.mo e Ex.mo Snr. Conde copeiro-mor nosso Gene-
um século depois.371
A elaboração de mapas populacionais baseava-se ral que logo que a recebesse, mandasse alistar todos os
nos rols de desobriga paroquiais e nos alistamentos militares moradores das terras da sua jurisdição que se acharem
realizados pelos comandantes de distrito. Nesse sentido, cabe em estado de poderem servir nas tropas auxiliares sem
citar que a partir da década de 1760 é possível perceber uma exceção de nobres, plebeos, brancos, mestisos, pretos,
preocupação maior com o alistamento militar em âmbito local, ingênuos e libertos, e a proporsão dos que tivesse cada
como fica evidenciado pela publicação de um bando em 1767 uma das referidas classes forme terços de auxiliares e
que determinava o alistamento de "todos os moradores desta ordenanças ...372
Capitania do Ceará de 12 até 70 anos" e a reorganização das
tropas militares na capitania: Uma carta régia mandada publicar no Ceará em
1 776 determinava que o capitão-mor governador e os
capitães-mores de ordenanças da capitania deveriam dar
369 "Descrição geográfica abreviada da capitania do Ceará...". Op. cit. "inteiro cumprimento e execução ao disposto no capítulo
370BRASIL, Thomaz Pompeu de Sousa. "População do Ceará". In: RIC, tomo III, 15 do regulamento" militar, que tratava a respeito do
1889, pp. 78-104.
371 É um facto bem estranho que o antigo governo colonial mostrasse mais solicitude
recrutamento e dos desertores. Segundo aquela carta, os
capitães-mores deveriam ter "listas exatíssimas da idade,
e interresse pela investigação do solo, riqueza, e população, enfim, da estatística das
capitanias, do que o governo da independência para cá, apesar do preceito consti- da estatura e dos nomes, das naturalidades e das ocupações
tucional! Por carta régia de 21 de outubro de 1797 se mandaram levantar mapas dos alistados para os ;recrutas, como também de todos os
estatísticos em todas as capitanias, tanto da população e de seu movimento, como
de sua indústria, comércio, navegação anual; pediram-se informações sobre o estado
tisico e político, geografia, produção da capitania &ª. BRASIL, Thomaz Pompeu 372 APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). "Regis-
de Sousa. Ensaio estatístico da Província do Ceará. Tomo 1. Fortaleza: Fundação tro do Bando para se alistarem todos os moradores desta Cap.nia [do Ceará] de 12 até
Waldemar Alcântara, 1997, p. VIL 70 anos'', 31 de março de 1767, fl. 18.
216 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 217

soldados das suas companhias". Além disso, era avisado Quadro 3


que os capitães-mores locais: ORDENS DE MOSTRAS MILITARES NA CAPITANIA DO
CEARÁ (1766-1789)
...não consentírião nos seus distritos desertor algum MOSTRAS-
RIBEIRA TIPO DB TROPAS TOTAL
de outro Regimento nem ainda aqueles que antes de EXTRA
serem regimentados se ouverem ausentado dos seus 18/ 08/ 1766
Companhia de Infantaria paga 13/ 01/ 1767
distritos para se refugiarem em outro com o fim de do presídio de Fortaleza 17/08/ 1767
4
não serem alistados: e isto sob pena de não serem cas- 03/ 01/1769
tigados os ditos chefes; com perdimentos dos postos, Ordenanças da vila de N. S. da
empregos que tiverem e das mais penas que tiverem 10/ 06/ 1773 1
Assunção
e das mais penas que Sua Majestade reservar ao seu Ordenanças da vila de S. José
03/ 06/1773 1
Real Arbítrio, se alistarem estes desertores de diversos de Ribamar de Aquiraz
distritos ou diferentes regimentos. 373 Ordenanças da vila re~ de 30/06/1774
2
Arronches 23/ 07/1775
Ribeira do 28/12/ 1768
A ampliação do controle sobre população através Ordenanças da vila real de
Ceará 24/ 06/ 1774 3
da organização militar 374 expressou-se também através Soure
16/ 07/1775
da multiplicação das ordens para a passagem de mostras 26/ 03/1766
militares, que consistiam na reunião e inspeção das tropas Ordenanças da vila real de
04/ 07/ 1774 3
de cada localidade. Além da obrigatoriedade de realização de Messejana
?R/07/177~
mostras anuais, os capitães-mores cearenses enviaram vários Terço de Infantaria Auxiliar das 30/05/ 1773
2
.bandos ordenando a passagem de mostras nas diversas tropas Marinhas do Ceará 04/ 06/ 1775
militares da capitania, como se vê na tabela 3 mais adiante. Regimento de ordenanças da 26/ 07/1766
2
vila real de Monte-Mor-o-Novo 07/ 09/ 1768
Ordenanças do lugar de Monte-
06/06/ 1767 1
373 Mor-o-Velho
APEC. Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias
04/06/ 1761*
da câmara da vila de Ic6 (1761-1796), "Rezito de Copia de duas cartas, e do CapitUlo
15 do Regulamento que mandou o m.mo e Ex.mo G.º' de Pem.Cº ao S. Ten. 1e e Cor.e! 26/07/ 1766
G.or desta Cap.nia p.ª sem.ar aos Cap. 8 mores darem inteiro comprimento e execusão Regimento de CavalariaAuxiliar 24/ 06/ 1769
ao disposto no d.° Cap. 15 do d.0 Regulam. 10 " , 3 de janeiro de 1776, fis. 102v-!04. das Vargens de Jaguaribe e 13/ 06/ 1773 7
374 Ribeira do Quixeramobim 08/ 09/ 1775
Como observa Christiane de Mello, a partir da segunda metade do século XVIII
foram realizadas frequentes intervenções legislativas que objetivavam a ampliação Jaguaribe 24/ 06/ 1778
do espaço militar no interior da sociedade colonial. MELLO. Christiane Figueiredo 24/ 06/ 1781
Pagano de. "A guerra e o pacto: a política de intensa mobilização militar nas Minas 04/ 06/ 1761*
Ordenanças da vila de Santa
Gerais". ln: IZECKSOHN, Vítor; KRAAY, Hendrik; CASTRO, Celso ( orgs.). Nova 14/ 11/ 1767 3
Cruz do Aracati
história militar brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 70. 30/ 05/ 1773
218 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 219

01/12/1775 Terço de Infantaria Auxiliar das 01/ 05/1770


2
Terço de Infantaria Auxiliar 01/11/1776 Marinhas do Acaraú 08/ 09/ 1789
dos Homens Pardos da Ribeira 13/09/1778
6 06/ 08/ 1769
do Icó 29/09/1779 Regimento de Cavalaria 3
03/ 05/ 1770
29/09/1780 Auxiliar da Ribeira do Acaraú
29/ 09/ 1779
29/ 09/1782 Ribeira do
08/ 09/ 1768
21/ 11/1768 Acaraú Regimento de Cavalaria da 26/ 07/1769
Regimento de CavalariaAuxiliar 4
30/ 11/1775 Freguesia de São Gonçalo da
da vila de N. S. da Expectação 4 10/ 06/ 1770
08/09/1779 Serra dos Cocos 28/ 10/ 1770
do Iço
08/09/ 1780

29/09/1768 Ordenanças da vila Viçosa Real 29/ 06/ 1770 1


Regimento de Cavalaria de
08/ 09/ 1769 Fonte: Tabela constrwda a partir dos registros de bandos encontrados em: Arquivo
N. S. do Monte do Carmo dos 4
22/ 10/1775 Público do Ceará. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804).
Inhamuns
08/09/1778 Livro 11: Registros de patentes (1759-1765)*.

18/09/ 1760*
Regimento de Cavalaria
26/ 07/1769
A exigência de mapas populacionais passou a ser feita
Ribeira do Auxiliar da Freguesia de São 4 a partir do momento mesmo em que se dava a nomeação ou a
08/ 12/ 1775
lcó José dos Cariris Novos
08/ 09/ 1777 confirmação das patentes do oficialato das orde~anças das vilas.
Assim, em 1804, quando Leandro Custódio de Oliveira e Castro
26/ 07/ 1778 foi provido ao posto de sargento-mor das ordenanças da recém-
Regimento dos Cariris novos 08/09/1779 3 criada vila de São João do Príncipe, foi informado de que deveria
08/ 09/ 1780 remeter ao capitão-mor governador João Carlos Augusto de
21/09/ 1779 Oeynhausen um "mapa da povoação desta vila e seu termo".375
Inhamuns 2 Já no caso da confirmação da patente de José Antônio de Souza
21/09/ 1780
Galvão, a íntima relação entre a exigência de mapas populacionais
Ordenanças da vila de N. S. da e a cobrança de impostos fica bastante clara. Junto ao seu pedido
18/12/1775 1
Expectação do Iço de confirmação da patente de capitão-mor de ordenanças da vila
de São Bernardo de Russas, José Antônio foi levado a enviar ao
Ordenanças dos Cariris Novos 09/ 12/1775 1

26/ 07/1767 375APEC. Livro 37: Provisões do Conselho Ultramarino (1800-1804). "Provisão
Ordenanças de índios do lugar do Conselho Ultramarino em que S. A. R. ordena ao Governador desta Capitania
01/ 11/ 1769 3
de N. S. da Paz deArneiroz informe juntando cópia das Ordens, que o authorizão a crear o Posto de Sarg.tº Mor
24/ 06/1774
das Ordenanças da nova Villa de S. João do Príncipe em q. foi provido Leandro Cus-
todio, e Castro, e remettendo Mappa da Povoação della, e seu Termo'', fls. 18-18v.
220 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 221

Conselho Ultramarino uma "cópia das ordens em virtude das Passaportes e licenfaS
quais foi ereta esta vila, um mapa da sua população e destrito, e
do atual rendimento da câmara e suas aplicações"~ 376 Em 1762 foi publicado na capitania do Ceará um
Além disso, é importante &isar que os alistamentos alvará régio "a respeito dos desertores e na pena em que
e o recrutamento militar também atuavam diretamente no incorre quem os apatrocina":
sentido de reforçar os laços de submissão e dependência
dos homens pobres aos fazendeiros e grandes comerciantes Eu El Rey faço saber aos que este Alvará de declaração,
locais na medida em que regimentalmente os postos de ampliação e lei virem, que sendo a deserção um dos mais
comando das tropas militares locais deveriam ser ocupados graves e mais perniciosos crimes militares, porque nem a
pelos mais poderosos senhores de cada povoação. Diante da despesa dos Reinos e Estados, e a paz publica e tranquili-
obrigatoriedade da prestação de serviço militar, para fugir do dade interior e externa deles se podem conservar sem os
abominado recrutamento para as tropas de primeira linha - que exércitos, nem estes que são constituídos se achão comple-
via de regra funcionava como punição a "criminosos", implicava tos e promptos debaixo da disciplina dos seus respectivos
no recebimento de um soldo miserável e o serviço em distantes
comandantes, sendo a mesma deserção por esta indispen-
fortificações, longe da familia por número indeterminado de
sável necessidade pública(.;.) havendo mostrado a experi-
anos377 - sobrava-lhes ou a deserção, que implicava na imersão
ência, que todas as providências que forão dadas nas so-
no mundo da ilegalidade, ou a barganha da sua incorporação
nas fileiras das tropas locais (milícias e ordenanças) comandadas breditas leis não bastaram até agora para fazer cessar um
pelos potentados dos sertões, situação que provocava a tão prejudicial delito e a indispensável necessidade, que
negociação de favores, com o ônus da consequente situação de há de coibir os que nele encorrem e [ilegível] concorrem,
dívida perante os poderosos senhores sertanejos.378 ou induzindo para a desersâ.o, ou ocultação dos deserto-
res para serem presos, ou faltando em os denunciarem e
·prenderem quando chegam a ter conhecimento deles (...)
376 APEC. Livro 37: Provisões do Conselho Ultramarino (1800-1804). "Provisão sou servido ordenar que todo aquele, que se achar fora do
do Conselho Ultramarino em que S. A. R. ordena ao Governador desta Capitania seu regimento apresentar passaporte expedido nos preci-
informe se José Antônio de Souza Galvão ainda exercita o Posto de Capitão Mor das
Ordenanças da nova Villa de S. Bernardo, juntando copia das Ordens q. permitirão
sos termos da fórmula (...). Mando, que todos os magis-
a erecção della; e hum Mappa da sua população; destricto; rendim.to da Câmera, e trados de vara branca, juízes ordinários, a cujos distritos
sua applicação", fts. 18v-l 9. chegarem quaisquer sobreditos lhes fação exibir os passa-
377
SILVA, Kalina Vanderlei. "Dos criminosos, vadios e de outros elementos incô- portes acima ordenados, que achando-os sem eles ou ten-
modos": uma reflexão sobre o recrutamento e as origens sociais dos militares colo-
do excedido as licensas neles terminadas, os prendão logo
niais". Juiz de Fora: Lócus, Edufjf, v. 8, n. 1, 2002.
378Kalina Vanderlei denomina este tipo de prática de "fuga para dentro das tropas".
imediatamente em cadeia segura, e os remetam com toda
SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: seguransa às cadeias das cabeças das comarcas, e avisem
militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e aos coronéis ou comandantes dos regimentos a que toca-
XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2001.
1

l
1
222 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 223
r
j
rem para mandarem reconduzir os sobreditos presos (...)
pois que pela lei da polícia são obrigados a conhecer todas
: No Ceará, a imposição do uso de passaportes como estratégia
de controle sobre a circulação da população ganha especial
as pessoas que de novo entram nos seos distritos ...379 !
;

interesse exatamente por conta da movimentação populacional


característica dos sertões cearenses, especialmente em
Desse modo, sob pena de prisão, instituía-se que a períodos de secas.
circulação populacional na capitania deveria estar submetida Contudo, cabe lembrar que a preocupação central
ao uso de passaportes380 e à obtenção de licenças concedidas 1 recaía sobre a produção e a circulação de riquezas. Em 1784,
pelas autoridades judiciais e militares locais. Por ordem 1
por exemplo, o português Manoel Moreira dos Prazeres foi
·1
real, provavelmente por conta· do seu não cumprimento, preso em Pernambuco por conta "da furtiva retirada que fez"
este mesmo alvará seria reeditado na capitania em 1775.381 do porto do Acaraú "sem passaporte". 382 A imposição do uso
Relacionadas às disputas em torno da definição das fronteiras de passaporte também estava entre as medidas de caráter
entre os impérios ibéricos na América, as determinações de 1 nitidamente controlador tomadas através do bando de 28
obrigatoriedade do uso de passaportes exemplificam mais uma de janeiro de 1804, no qual o capitão-mor governador João
vez a utilização e adaptação de medidas destinadas ao contexto Carlos Augusto de Oeynhausen determinou que:
específico dos conflitos fronteiriços nas regiões platina e
amazônica para a tentativa de resolução de problemas locais. Toda aquela pessoa, que quinze dias contados da
data desta em diante · cheg~ndo a esta vila, quer
venha [de Fortaleza], quer venha doutra vila desta
379
APEC. Livro 14: Registros de portarias, editais, patentes, bandos e ordens régias capitania, quer venha doutra capitania não apresentar
da câmara da vila de Icó (l 761-1796), "Registo de ilm bando que mandou o S.' T.° o competente passaporte, ou guia assignada pello seu
Coronel G.º' Antônio José Victoriano Borges da Fon.c• que se publicase e registase juiz ordinário, e se for de povoação onde não haja
a respeito dos Dezertores, e na pena em que incorrem quem os apatrocina", 30 de
abril de 1776, fls. ll9v-122v. juiz pelo comandante dela, será preso na cadeia desta
380
Segundo a definição de "passaporte" encontrada no Glossário de espécies do-
vila, onde será conservado como vadio, até se lhe dar
cumentais elaborado por Heloísa Liberalli Belloto: "PASSAPORTE (Documento destino, e empregado entre tanto na limpeza desta vila,
1
diplomático informativo, horizontal) - Documento expedido por órgão competente ]·' ou em outra qualquer faxina; mas fazendo-se suspeito
que autoriza pessoa, viatura ou embarcação a se deslocarem de um país a outro em por trazer Armas proibidas, será preso e empregado
situações normais ou de uma região a outra, em situação de beligerância". Verifica-
1 nas obras das fortificações de Mucuripe, até que haja
mos a partir da definição acima que o passaporte era um docnmento que autorizaria
ocasião de o mandar sair da capitania para que isto
e registraria a entrada de pessoas e embarcações nos portos de países estrangeiros
ou, em situações de guerra, autorizaria deslocamentos regionais dentro do território
.1 assim se observe, faço público que toda e qualquer
l
de uma mesma nação. Partindo desta definição, percebe-se que a obrigatoriedade pessoa que na data desta em diante entrar nesta vila
do uso de passaportes para quaisquer tipos de deslocamentos adotada pela admi- deverá ir apresentar-se na casa do capitão comandante
nistração colonial nas últimas décadas do século XVIII instaurava no cotidiano da
América portuguesa a imposição de uma medida de guerra.
BELLOTO, Heloísa Liberalli. Op. cit., p. 801. 382
APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1 762-1804), fis.
381
Idem. 64v-65.
224 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 225

della José Henriques Pereira declarar o seu nome, a maior atividade sem admitirem licença alguma que
manifestar o seu passaporte; dizer, que ofício tem e seja anterior a data deste debaixo das penas impos-
a que negócio vem; quanto tempo se há de demorar tas nas ordens de Sua Magestade, e repetidas vezes
na vila, e aonde se vai arranchar. Como estas mesmas publicadas em vários bandos, as quaes lhes ão de ser
ordens existem nas outras vilas desta capitania, e irreversivelmente impostas. 384
as pessoas, que saindo desta não se proverem de
passaporte serão infalivelmente presos ... 383 No entanto, as determinações de 1773 não parecem
ter sido cumpridas propriamente na capitania, de modo que
Percebe-se aqui que, através da determinação expressa um bando semelhante foi publicado em 1789. Em seu texto o
da cobrança e :fiscalização de passaportes em Fortaleza, o capitão-mor Luís da Mota Feo e Torres enfatizava que:
capitão-mor Oeynhausen objetivava obrigar a expedição e
conferência de passaportes nas outras vilas da capitania, ... tendo mostrado a experiência que não bastaram
o que acaba indicando que a obrigatoriedade legal do uso os bandos pelos quais repetidas vezes se fez notória
de passaportes e licenças não estaria sendo efetivamente a proibição de se conservarem índios em serviços
cumprida pelas autoridades locais cearenses.
particulares sem as licensas necessárias, e deven-
Há indícios de que o esforço de controle através da
do eu acodir desta desordem pelo grande prejuízo
imposição do uso de passaportes e licenças tinha como um
que dela se segue ao Real Serviço. (. .. ) E lhes ordeno
dos seus principais objetivos monitorar a numerosa população
indígena da capitania, especialmente no que diz respeito à sua que não apliquem índio algum ao serviço particular
utilização como mão-de-obra pelos moradores. Isso fica expresso dos moradores para fora das vilas sem que estes lhe
em um bando lançado em 1773 que ordenava o recolhimento de apresentem licença minha por escrito, nem consin-
todos os índios que estivessem fora de suas vilas: tam que os ditos moradores retenham em casa os
referidos índios além do tempo por que lhe forem
Faço saber a todos os índios e moradores desta capi- concedidos, que se declarará nas mesmas licenças, e
tania que se faz preciso ao Real Serviço que se reco- também nos recibos que os principais quando lhes
lhão logo logo e sem a menor perda de tempo a todas entregarem os índios, e como a escandalosa negli-
as suas respectivas vilas os índios que andarem fora gência que tem servido na observância da lei (. .. )
delas. Pelo que ordeno a todos os comandantes das tem sido a origem do se acharem quase desertas, e
freguesias que cuidadosamente o fação executar com confundidas as villas, serão obrigados os diretores
e principais a remeter à secretaria deste governo
383
APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). "Registo
do Bando que o m.mo e Ex.mo Sr. João Carlos Augusto de Oeyhausen governador 384 APEC. Livro 16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1762-1804). "Registo
desta capitania mandou deitar sobre os objectos declarados neile", 28 de janeiro de do Bando q' se Iansou p.ª se recolherem as suas Vilas todos os Indios q' andão fora
1804, fls. 75-76v. delas'', 9 de maio de 1773, fl. 39v.
226 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 227

cada três meses uma lista dos transgressores para e muito pobres".388 Segundo ele, na vila de índios de Viçosa o
eu proceder contra eles com as penas que determi- quadro de deserções não seria diferente: "A sua população é
na a lei... 385 quase toda de índios (...). Tem cinco companhias de ordenanças
a cavalo e a sua população seria extraordinária, se não fosse
Ainda em 1813, o capitão-mor governador Manuel as contínuas deserções, não só dos seus diretores, como pelos
Ignácio de Sampaio enviou carta circular aos diretores de Viçosa, brancos, com continuas violências".389
Ibiapina, Ahnofala, Monte-Mor-Novo e Monte-Mor-Velho Parece ter sido assim que em 1802, portant o 35 anos
autorizando-os a "passar passaportes aos seus índios".386 depois da publicação no Ceará da carta régia de 1766 que
Assim, um considerável número de evidências aponta determinava a criação de vilas na América portuguesa, o
para certa distância entre o planejamento metropolitano capitão-mor Bernardo Manuel de Vasconcelos ainda insistia
e a efetivação das determinações régias na capitania do que a fundação de vilas era fundamental para a "civilização" da
Ceará, tanto no que se refere ao ajuntamento da população capitania, a imposição da justiça régia e a g~ração de "riquezas".
Os comentários de Bernardo Manuel de Vasconcelos seriam
em vilas quanto à estrita observação do uso de passaportes
na capitania, para não falar do desrespeito às leis e justiças
i completados pelas considerações do capitão-mor Barba Alardo de
I'
régias. Na Descrição geográfica abreviada da capitania do Menezes 12 anos depois: segundo ele as leis régias cont inuavam
Ceará, relatório enviado ao próprio rei, fica claro o caráter sendo violadas na capitania e as próprias autoridades locais não
de incipiência e precariedade da grande maioria das 17 vilas Ii" "conservariam todas o seu devido decoro e respeito", sendo que
cearenses em 1816.387 Barba Alardo de Menezes, que esteve nas câmaras do reduzido número de vilas da capitania forjar-se-
com o governo do Ceará de 1808-1812, comentou em 1814 iam "monopólios" dos cargos públicos e riquezas locais. Mesmo
sobre a violência dos diretores e a deserção na vila de Soure nas décadas seguintes, as observações de Koster em 1810-1811
dizendo que: "apesar de terem desertado muitos dos seus e de Gardner em 1838-1839 acerca da vulgarização da violência,
moradores, pelas grandes violências dos diretores, ainda tem das dificuldades de imposição da justiça pública e da concent ração
três companhias de ordenanças de índios pouco industriosos do poder local nas mãos dos potentados sertanejos cearenses não
se distanciariam muito das considerações de Bernardo Manuel
de Vasconcelos e de Barba Alardo. Ainda nesse sentido, um outro
385 APEC. Livro
caso parece ser bastante indiciário.
16: Portarias, editais, bandos e ordens régias (1 762-1804). "Registo
do Bando q' o 111.mo Snr' Gov.º' desta Cap.nia Luís da Motta Feo e Torres mandou
lansar sobre o não se poder ter Indios sem licensa desse Gov.0 " , 17 de novembro de
1789, fis. 66v-67.
386 APEC. Livro 83: Registro de ofícios e ordens dirigidos aos capitães-mores e mais

oficiais de ordenanças da capitania, comandantes de distritos, e diretores das vilas


de indios (1813). "Registro de huma circular aos Diretores de V.ª Visoza, Baiapina,
Almofala, Monte-Mor-o-Novo, Monte-Mor-o-Velho p.ª poderem passar passaportes
388 MENEZES; Luiz Barba Alardo de. Op. cit.
aos seus Índios", 17 de julho de 1813, fls. 108v e 109.
387 389 Idem, p. 51.
"Descrição geográfica abreviada da capitania do Ceará ...". Op. cit.
6
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Só mais recentemente os estudos sobre a violência na


América portuguesa deixaram de. se interessar exclusivamente
pelos chamados "grandes toumants" da temática, tais como
as entradas e guerras de conquista, as ocupações francesas
e holandesas, as campanhas de combate a quilombos ou as
rebeliões e revoltas coloniais de maior projeção. Na última
década, notadamente, novas pesquisas passaram a abordar a
violência como aspecto integrante das tessituras de suas relações
sociais cotidianas, elemento constitutivo da própria produção e
reprodução da vida social e, por isso, componente da trama das
suas tensões, conflitos, sociabilidades e sentidos.390
Nesse sentido, não posso encerrar este trabalho sem
antes ressaltar que a pesquisa que lhe serviu de base, afora
os códices de autos de querela e o rol dos culpados, foi feita
majoritariamente a partir da consulta daquela que pode
ser considerada como a "documentação geral" da capitania
do Ceará: correspondências entre as autoridade~ locais e a
administração metropolitana, livros de registro das câmaras,
representações, cartas, memórias e relatórios de ouvidores e
capitães-mores, além de relatos de viajantes escritos já nas
primeiras décadas do século XIX. Assim, a violência surgiu
a partir de uma massa documental não especializada, o que
acaba por corroborar a sua forte presença na vida cotidiana na
capitania, seu caráter vulgarizado, comezinho.

390 Além dos estudos pioneiros sobre o assunto, como os Maria Sylvia de Carvalho
Franco, Patrícia Ann Aufderheide, Laura de Mello e Souza e Silvia Hunold Lara,
refiro-me aqui aos trabalhos Carla Anastasia, Marco Antônio Silveira, Liana Maria
Reis, Célia Nonata da Silva, Tatiana da Cunha Peixoto e Rodrigo Leonardo de Oli-
veira (vide bibliografia).

1
230 José EudesArrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 231

Diante da incrível frequência de testemunhos e mesma cadeia de relações. Assim, por trás das histórias
comentários relativos a atos de violência no Ceará setecentista, cotidianas de assassinatos, roubos, querelas, intrigas,
descrições estas que certamente seriam demasiado enfadonhas ameaças, desafios, atentados e agressões fartamente
caso não fossem espantosas, tanto autoridades coloniais registradas na documentação da capitania, subjaz a lógica
quanto viajantes não deixaram de registrar o seu assombro, hierárquica e violenta daquele mundo, que tingia de sangue
ao passo que para a população local em geral tais situações já a sua vida cotidiana.
não causavam tamanha admiração, o que acaba revelando a Desse modo, a documentação analisada traz o
violência como traço constitutivo do seu próprio universo de conflito para o centro do debate sobre a sociedade pecuária
relações sociais, ou seja, da própria formação social da qual cearense: os tensionamentos e linhas de força, hierarquias
faziam parte, dos seus próprios conflitos. e confrontos que se foram sendo forjados no interior da
Como espero ter ficado suficientemente claro nas violenta e conflituosa sociedade do gado, um dos muitos
páginas que se seguiram, tanto a deflagração de atos de "Brasis" de finais do século XVIII.
violência quanto a sua premência evidenciados a partir do
longo inventário arrolado por esta pesquisa acabam por 1
revelar um cotidiano marcado pela ocorrência de crimes e por r
um quadro crônico de fragilidade de imposição da justiça régia
na capitania. Se, por um lado, o descumprimento das leis e a \
ocorrência de desordens são reputados tanto aos poderosos
senhores sertanejos e suas cabroeiras, que se utilizavam de
suas posições de poder, prestígio, postos militares e cargos
de governança para cometer variados tipos de crimes e
· desmandos, por outro, a ocorrência de numerosos outros
crimes, tais como o furto de gados, praticados em grande
número por elementos considerados "vadios", "vagabundos"
ou "sem morada certa", aponta para a existência de levas de
indivíduos "desclassificados'', envolvidos ou não nas teias de
dominação encimadas pelos grandes potentados sertanejos,
os poderosos do sertão, como eram cham·a dos.
A violência apresentava-se assim como um aspecto
complexo e contraditório da vida social no Ceará setecentista,
dado que, ao mesmo tempo em que realimentava as relações
de dominação social sertanejas, mostrava-se ainda como um
instrumento de negociação e barganha política ou poderia
irromper como uma tentativa de afronta ou ruptura dessa
ANEXOS

1. Reis de Portugal

Dinastia de Borgonha (1140-1385)

1140-1185 D. Afonso Henriques


1185-1211 D. Sancho
1211-1233 D. Afonso II
1233-1248 D. Sancho II
1248-1279 D. Afonso III
1279-1325 D. Dinis
1325-1357 D. Afonso IV
1357-1367 D. Pedro I
1367-1383 D. Fernando I
1383-1385 D. Juan de Castela

Dinastia de Avis (1385-1580)

1385-1423 D. João I
1423-1438 D. Duarte
1438-1481 D. Afonso V
1481-1495 D. João II
1495-1521 D. Manuel
1521-1556 D. João III
1556-1578 D. Sebastião
1578-1580 D. Henrique

Dinastia dos Habsburgo - União Ibérica (1580-1640)

1581-1598 Felipe I (Felipe II de Espanha)


1598-1621 Felipe II (Felipe III de Espanha)
1621-1640 Felipe III (Felipe IV de Espanha)
234 José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso 1heatro de Horrores 235

Dinastia de Bragança (1640-1910)


2. Governadores-gerais e vice-reis do Estado do Brasil
1640-1656 D. João IV
1656-1662 D. Luísa de Gusmão (regência) 1548-1553 Tomé de Sousa
1662-1667 D. Afonso VI391 1553-1558 Duarte da Costa
1667-1706 D. Pedro II (regência) 1558-1572 Mem de Sá
1706-1750 D. João V 1573-1578 Luís Brito de Almeida
1750-1777 D. José I 1578-1581 Lourenço da Veiga
1777-1816 D. Maria 1392 1581-1583 Governo interino
1816-1826 D. João VI 1583-1587 Manuel Telles Barreto
1587-1591 Governo interino
1591-1602 Francisco de Sousa
1602-1608 Diogo Botelho
1608-1612 Diogo de Menezes Siqueira
1613-1617 Gaspar de Souza
1617-1621 Luiz de Souza
1621-1624 Diogo de Mendonça Furtado
1624-1625 Mathias de Albuquerque
1625-1627 Francisco de Moura Rolim
1627-1635 Diogo Luiz de Oliveira
1635-1639 Pedro da Silva
1639 Fernando de Mascarenhas, Conde da Torre
1639-1640 Vasco de Mascarenhas, Conde de Óbidos
1640-1641 Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão
(vice-rei)
1641-1642 Junta provisória
1642-1647 Antônio Telles da Silva
1647-1650 Antônio Telles de Menezes, Conde de Villa Pouca
de Aguiar
1650-1654 João Rodrigues de Vasconcellos e Sousa, Conde de
Castelo Melhor
Por c~n:a de um golpe, em 1667 o innão de D. Afonso VI, D. Pedro II, assumiu
391
1654-1657 D. Jerônimo de Athayde, Conde de Atouguia
como pnnc1pe regente.
1657-1663 Francisco Barreto de Meneses
392 o . · D J -
. prmc1pe. . oao atuou como regente de facto desde 1792, quando D. Maria I 1663-1667 D. Vasco de Mascarenhas, Conde de Óbidos (vice-rei)
foi declarada mcapaz, tomando-se fonnalmente príncipe r egente apenas em 1799.
1667-1671 Alexandre de Sousa Freire
.
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236 José Eudes Arrais Barroso Gomes ~ Um Escandaloso Theatro de Horrores 237

1671-1675 Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça,


1
Vice-reis
Visconde de Barbacena
1675-1678 Junta provisória 1f
1763-1767 Antônio Álvares da Cunha, Conde da Cunha .
1678-1682 Roque da Costa Barreto 1767-1769 Antônio Rolim de Moura Tavares, Co;ide de Azam?u1a
1682-1684 Antônio de Sousa de Menezes, o "Braço de Prata" 1769-1779 Luiz de Almeida Portugal, Marques do Lavrad10
1684-1687 Antô:iílio Luiz de Sousa Telles de Menezes, Marquês
das Minas
\ 1779-1790 Luiz de Vasconcelos e Souza
1790-1801 José Luiz de Castro, Conde de Rezende
1687-1688 Mathias da Cunha (faleceu) 1
1801-1806 Fernando de Portugal e Castro
1688-1690 Junta provisória 1806-1808 Marcos de Noronha, Conde dos Arcos
1690-1694 Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho
1694-1702 D. João de Lencastro 1
1702-1705 D. Rodrigo da Costa t
1705-1710 Luiz César de Meneses
1710-1711 D. Lourenço de Almeida \
1711-1714 Pedro de Vasconcellos e Sousa, Conde de Castelo
1714-1718 Melhor
D. Pedro Antônio de Noronha Albuquerque Sousa, 1
1
1718-1719 Marquês de Angeja (vice-rei)
D. Sancho de Faro e Souza, Conde de Vimieiro
1719-1720 Junta provisória
\
1720-1735 Vasco Fernandes César de Menezes, Conde de
Sabugosa (vice-rei) \
1735-1749 André de Mello e Castro, Conde das Gal.vêas (vice-rei)
17 49-1755 D. Luiz Pedro de Carvalho Menezes de Athayde,
Conde de Atouguia (vice-rei)
1755 Junta provisória
1755-1760 D. Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos
(vice-rei) 1
1760 Antônio de Almeida Soares e Portugal, Marquês 1
do· Lavradio l·
1760-1763 Junta provisória l
l
1

\,
238 José Eudes Arrais Barroso Gomes
Um Escandaloso Theatro de Horrores 239

3. Capitães-generais govenadores de Pernambuco


Restauração portuguesa (1654-1822)
Capitães-mores donatários (1534-1716)
1654-1657 Francisco Barreto de Meneses
1534-1554 Duarte Coelho 1 1657-1661 André Vidal de Negreiros
1554-1561 Brites de Albuquerque 1661-1664 Francisco de Brito Freire
1561-1578 Duarte Coelho de Albuquerque 1664-1666 Jerônimo de Mendonça Furtado (deposto)
1578-1597 Jorge de Albuquerque Coelho 1 1666-1667 Junta provisória
1597-1603 Brites de Albuquerque (regente) ! 1667 André Vidal de Negreiros
1667-1670 Bernardo de Miranda Henriques
1603-1658 Duarte de Albuquerque Coelho 1
1658-1689 Maria Margarida · de Castro e Albuquerque, 1670-1674 Fernão de Sousa Coutinho (faleceu)
j,
Condessa de Vimioso 1674 Junta provisória
f;
1689-1716 Francisco de Paula de Portugal e Castro, 2º 1674-1678 D. Pedro de Almeida
Marquês de Valença 1678-1782 Aires de Sousa e Castro
1682-1685 D. João de Sousa
1685-1688 João da Cunha Souto Maior
Domínio holandês (1630-1654) 1688 Fernão Cabral (faleceu)
1688-1689 D. Matias de Figueiredo e Melo, bispo
1689-1690 Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho
1630 Hendrick Corneliszoon Lonck 1 1690-1693 Antônio Félix Machado da Silva e Castro, Marquês
1630 Diederik van Waerdernburch 1
de Montebelo
1631-1634 Conselho: Mathias van Ceulen, Johan Gysselingh. t 1693-1699 Caetano de Melo e Castro
1634-1638 Conselho:ServatiusCarpentier,JacobStachouwer, 1 1699-1703 D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastro
Baltazar Wyntgens, Ippo Eysens. ' 1703-1707 Francisco de Castro Morais
1637-1644 João Maurício de Nassau-Siegen. 1707-1710 Sebastião de Castro e Caldas Barbosa (deposto)
Conselho: Mathias van Ceulen, Johan Gysselingh, 1710-1711 D. Manuel Álvares da Costa, bispo
Adiaen van der Dussen. 1711 Junta provisória: Luís de Valensuela Ortiz,
1644-1648 Conselho: Henrique Hamel, Adriano van Cristóvão de Mendonça Arrais, Domingos Bezerra
Bullestraten, Pedro S. Bas~ Monteiro, Antônio Bezerra Cavalcanti, Estevão
1648-1654 Junta: Walter van Schonenborch, Van Goch, Soares Aragão.
Simon van Beaumont 1711-1715 Félix José Machado de Mendonça Eça Castro e
Vasconcelos
1715-1718 Lourenço de Almeida
1718-1721 Manuel de Sousa Tavares e Távora (faleceu)
1721-1722 Francisco de Sousa
240 José Eudes Arrais Barroso Gomes ,.~· Um Escandaloso Theatro de Horrores 241

1722-1727 D. Manuel Rolim de Moura . 4. Capitães-mores do Ceará


1727-1737 Duarte Sodré Pereira Tibão
1737-1746 Henrique Luís Pereira Freire de Andrada 1603-1605 Pero Coelho de Souza
1746-1749 Marcos José de Noronha e Brito, 6º Conde dos Arcos 1612-1613 Martins Soares Moreno
1749-1756 Luís José Correia de Sá 1613-1614 Estevão de Campos Moreno
1756-1763 Luís Diogo Lobo da Silva 1616 Estevão de Campos Moreno
1763-1768 Antônio de Sousa Manuel de Meneses, Conde de 1614-1617 Manuel Brito de Freire
Vila Flor 1617-1619 Domingos Lopes Lobo
1768-1769 José da Cunha Grã Ataíde e Melo, Conde de 1619-1631 Martim Soares Moreno
Povolide 1631 Domingos da Veiga Cabral
1769-1774 Manuel da Cunha Meneses 1637 Bartolomeu de Brito Freire
1774-1787 José César Menezes
1787-1798 D. Tomaz José de Melo (deposto) Primeira ocupação holandesa (1637-1644)
1798-1804 Junta provisória: José Joaquim da Cunha Azeredo
1637-1640 Henrich Van Ham
Coutinho, Manuel Xavier Carneiro da Cunha , 1640-1644 Gedeon Morritz Jonge
Pedro Severim, Jorge Eugênio de Lobo e Seilbs,
Antônio Luís Pereira da Cunha (substituído Primeira restauração portuguesa (1644-1649)
por José Joaquim Nabuco de Araújo, que foi
1
posteriormente substituído por João de Freitas 1644 Estevão de Campos Moreno
1
Albuquerque).
1804-1817 Caetano Pinto de Miranda Montenegro, Marquês 1 Segunda ocupação holandesa (1649-1654)
de Vila Real da Praia Grande
1649-1654 Mathias Beck
1817 Junta provisória: João Ribeiro Pessoa de Melo 1 1654 Joris Gartsmman
Montenegro, Domingos Teotônio Jorge Martins 1
Pessoa, José Luís de Mendonça, Manuel Correia Segunda restauração portuguesa (1654-1822)
de Araújo, Domingos José Martins.
1817 Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa 1 1654-1655 Álvaro de Azevedo Botelho
(governo revolucionário) r 1655-1659 Domingos de Sá Barbosa
1817-1821 Luís do Rego Barreto 1659-1660 Antônio Fernandes Mouxica
1821-1822 Gervásio Pires Ferreira 1 1660-1663 Diogo Coelho de Albuquerque
1663-1666 João de Mello de Gusmão
1666-1673 Jorge Correia da Silva
1673-1677 João Tavares de Almeida
1677-1678 Manuel Pereira da Silva
242 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 243

1678-1682 Sebastião de Sá Capitães-mores governadores (1799-1822)


1678 Luiz da Fonseca
1681-1684 Bento de Macedo de Farias 1799-1802 Bernardo Manuel de Vasconcelos
1688-1693 Tomás Cabral de Olival 1803-1807 João Carlos Augusto d'Oeynhausen e Gravenburg
1693-1694 Fernão Carrilho 1808-1812 Luís Barba Alardo de Meneses
1694-1695 Pedro Lelou (deposto) 1812-1820 Manuel Inácio de Sampaio
1695-1696 Fernão Carrilho 1820-1821 Francisco Alberto Rubim
1696-1699 João de Freitas da Cunha
1699 Fernão Carrilho
1699-1702 Francisco Gil Ribeiro
1702-1704 Jorge de Barros Leite
1704-1705 João da Mota
1705-1708 Gabriel da Silva Lago
1708-1710 Governo interino do Senado da Câmara
1710-1713 Francisco Duarte de Vasconcelos (deposto)
1713-1715 Plácido de Azevedo Falcão
1715-1718 Manuel da Fonseca Jaime
1718-1721 Salvador Álvares da Silva
1721-1727 Manuel Francês
1727-1731 João Baptista Furtado
1731-1735 Leonel de Abreu Lima
1735-1739 Domingos Simões Jordão
1739-1743 Francisco Ximenes de Aragão
1743-1746 João de Teyve Barreto e Meneses
1746-1748 Francisco de Miranda Costa (faleceu)
1748-1751 Pedro de Morais Magalhães
1751-1755 Luís Quaresma Dourado
1755-1759 Francisco Xavier de Miranda Henriques
1759-1765 João Baltasar de Quevedo Homem de Magalhães
1765-1781 Antônio José Victoriano Borges da Fonseca
1782-1789 João Baptista de Azevedo de Montaury
1789-1799 Luís da Mota Feo e Torres
244 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso 1heatro de Horrores 245

5. Ouvidores do Ceará 6. Moedas, pesos e medidas


Moedas
Comarca do Ceará-Grande
Réis = plural de real
1723-1729 José Mendes Machado ("Tubarão") Vintém = 20 réis
1729-1731 Antônio de Loureiro Medeiros Tostão = 100 réis
1731-1736 Pedro Cardoso de Novais Pereira Pataca = 320 réis
1736-1739 Vitorino Pinto da Costa Mendonça Cruzado = 400 réis
1739-1743 Tomaz da Silva Pereira Conto = 1 milhão de réis
1743-1749 Manoel José de Faria
1749-1756 Alexandre de Proença Lemos Pesos
1756-1770 Victorino Soares Barbosa
1770-1777 João da Costa Carneiro e Sá Onça = aprox. 28, 7g
1777-1780 José da Costa Dias e Barros Arrátel = 16 onças =459g
1780-1 783 Felix Alexandre da Costa Tavares Arroba = 32 arráteis = 14,688kg
.1783-1786 André Ferreira de Almeida Guimarães Tonelada = aprox. 793kg
1786-1793 Manoel de Magalhães Pinto e Avelar de Barbedo
1793-1801 José Victorino da Silveira Medidas
1801-1802 Manuel Leocádio Rademaker
1802-1803 Gregório José da Silva Coutinho Capacidade
1803-1807 Luís Manuel de Moura Cabral
1807-1810 Francisco Affonso Ferreira Quartilho = aprox. 350ml
1810-1815 Manuel Antônio Galvão Alqueire = 13 litros (cereais)
1815-1817 João Antônio Rodrigues de Carvalho Barril = 159 litros
1821 Adriano José Leal Pipa =meio tonel
Tonel = 150cm x lOOcm
Comarca do Crato Tonelada de frete = cerca de l,44m3
1817 José Raimundo do Paço de Porbem Barbosa
Comprimento

Dedo = 16,5mm
Polegada = 2,54cm
Mão =aprox. lOcm
Palmo =22cm
246 José Eudes Arrais Barroso Gomes

Pé = 12 polegadas = 30,5cm F O N T E S
Vara =l,lm
Braça = 2 varas = 2,2m
Braça quadrada = 100 palmos quadrados = 4,8384m2 1. Fontes manuscritas
Distância Arquivo Histórico Ultramarino. Lisboa
Milha marítima = 1.852m Documentos manuscritos avulsos da Capitania de
Légua = 3.000 braças = 6.600m Pernambuco.
Légua de sesmaria = 2.400 braças = 5.280m393
Légua marítima = 5.900km CARTA do governador da capitania de Pernambuco, D.
Manoel Rolim de Moura, ao rei D. João V, sobre a expulsão
dos ciganos para o Reino de Angola, devido os roubos e
malefícios cometidos na dita capitania, 17 de julho de 1725.
Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Pernambuco, caixa
31, documento 2.847.

CARTA do governador da capitania de Pernambuco, conde


dos Arcos, D. Marcos José de Noronha e Brito, ao rei D. João
V, sobre a Junta de Justiça da capitania de Pernambuco, com
jurisdição para julgar crimes atrozes nas comarcas de Ceará,
Paraíba, Alagoas e Goiana, e os problemas ocorridos devido às
distâncias, 30 de julho de 1746. Arquivo Histórico Ultramarino,
Avulsos, Pernambuco, caixa 64,, documento 5.445.

OFÍCIO do Bispo de Pernambuco, D. José Joaquim da Cunha de


Azeredo Coutinho ao secretário de estado da Marinha e Ultramar,
Rodrigo de Sousa Coutinho, sobre a falta de azeite de baleia na
1 cidade e os altos preços taxados pelo contradador; os problemas
de abastecimento do peixe salgado e as insubordinações do
responsável pelo dito abastecimento; as medidas tomadas
contra os roubos de cavalos; os problemas tidos com os diretores
dos indios e a indicação de párocos para servir o cargo; a visita
393
Valor estimado da légua de sesmaria adotada no Ceará. feita as fortalezas mais próximas daquela vila; o estado em que
248 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso 1heatro de Horrores 249

se encontra a casa da pólvora; as amostras de salitres enviadas CARTA do ouvidor do Ceará, Pedro Cardoso de Novais Pereira
pelo governo da capitania do Ceará; e os problemas resultantes ao rei [D. João V] sobre o mau procedimento do coronel Jorge
do monópolio das carnes e da farinha de mandioca, 23 de março da Costa Gadelha, da Ribeira de Aquiraz, 4 de agosto de 1 734.
de 1799. Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Pernambuco, Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Ceará, caixa 3,
caixa 207, documento 14.108. documento 159.

Documentos manuscritos avulsos da Capitania do Ceará CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V] sobre
(1618-1832). o falecimento do capitão-mor do Ceará, Francisco de Miranda
Costa, no último dia do mês de agosto, de uma apressada
REQUERIMENTO dos índios da Serra da Ibiapaba ao rei doença, sendo nomeado Pedro de Morais Magalhães para o
D. João V a pedir o alargamento das suas terras, da ladeira referido posto, 15 de dezembro de 1749. Arquivo Histórico
da Uruoca até ao lugar chamado Itapiúna; ordem para os Ultramarino, Avulsos, Ceará, caixa 5, documento 333.
missionários não ocuparem nos serviços mais que a metade
dos índios capazes para que possam tratar de suas lavouras e CARTA do capitão-mor do Ceará, João Baltasar de Quevedo
evitar a fome geral; e que nenhum passageiro tome agasalho · Homem de Magalhães, ao rei [D. José I], sobre a proibição feita
em casa particular dos índios, ant. 12 de outubro de 1720. pelo ouvidor Vitorino Soares Barbosa do uso de armas de fogo na
Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Ceará, caixa 1, capitania do Ceará, 15 de novembro de 1760. Arquivo Histórico
documento 65. Ultramarino, Avulsos, Ceará, caixa 7, Documento 480.
CARTA do ouvidor do Ceará, José da Costa Dias e Barros,
CARTA do governador de Pernambuco, Manuel Rolim de à rainha [D. Maria I] apontando as causas da desordem na
Moura, ao rei [D. João V] em resposta à provisão sobre a capitania e pedindo aprovação para as fintas que estabeleceu,
guerra declarada aos índios Tapuias Genipapuassú na vila de 25 de junho de 1779. Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos,
Jaguaribepor Salvador Álvares da Silva quando foi capitão-mor Ceará, caixa 9, documento 564.
do Ceará, 6 de julho de 1725. Arquivo Histórico Ultramarino,
Avulsos, Ceará, caixa 2, documento 84. OFÍCIO do capitão-mor do Ceará, João Baptista de Azevedo
Coutinho de Montauri, ao [secretário de estado dos Negócios
CARTA do ouvidor do Ceará, Pedro Cardoso de Novais da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro],
Pereira ao Rei [D. João V] sobre os prejuízos que se seguem encaminhando um relatório geral sobre a capitania, posterior
à Fazenda Real e aos moradores da capitania do Ceará de ir a 1782. Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Ceará, caixa
todos os anos uma companhia da capitania de Pernambuco, 9, documento 591.
por destacamento, para a guarnição da fortaleza, 2 de abril de
1731. Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Ceará, caixa 2, MAPA das vilas e principaes povoaçoens de brancos e índios
documento 119. da capitania do Ceará Grande com as denominações das ditas
Vilas, e invocaçoens dos oragos das suas respectivas matrizes
250 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 251

e capelas, 1° de abril de 1783. Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Nacional. Rio de Janeiro
Avulsos, Ceará, caixa 9, documento 592.
Setor de Manuscritos
CARTA da câmara da vila de Fortaleza à rainha [D. Maria
I] sobre a necessidade de construção de uma nova Casa da MENEZES, Luiz Barba Alardo de. "Memória sobre a capitania
Câmara e Cadeia na referida vila, 29 de dezembro de 1785. independente do Ceará grande escripta em 18 de abril de 1814
Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Ceará, caixa 10, pelo governador da mesma, Luiz Barba Alardo de Menezes".
documento 624. ANRJ. Coleção de memórias e outros documentos sobre vários
objetos. Notação: códice 807, vol. 07. Fundo: Diversos códices-
CARTA do ouvidor do Ceará, Manuel Magalhães Pinto e SDH. Código do Fundo: NP.
Avelar, à rainha [D. Maria IJ sobre a situação econômica da
referida capitania, 3 de fevereiro de 1787. Arquivo Histórico Setor de Cartografia
Ultramarino, Avulsos, Ceará, caixa 11, documento 644.
CARTA da capitania do Ceará, levantada por ordem do
REPRESENTAÇÃO da câmara da vila de Fortaleza à rainha governador Manuel Ignácio de Sampaio, por seu ajudante
[D. Maria I], sobre as desordens da capitania e desmandos do de ordens Antônio José da Silva Paulet, 1818. Notação: 4Y/
capitão-mor João Baptista de Azevedo Coutinho de Montauri, MAP54. Fundo: Ministério da Viação e Obras Públicas. Código
5 de fevereiro de 1787. Arquivo Histórico Ultramarino, do fundo: 4Y.
Avulsos, Ceará, caixa 11, documento 645.
Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro
OFÍCIO do capitão-mor do Ceará, Luís da Mota Feo e
Torres, ao [secretário de estado dos Negócios Marinha e Setor de Manuscritos
Ultramar] Martinho de Melo e Castro, prestando contas
dos três anos de seu governo no Ceará, 10 de outubro de CARTA do capitão-mor João Baptista Azevedo Coutinho de
1792. Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos, Ceará, caixa Montaury, 1783. II-32, 24, 031. Documentos sobre a capitania
12, documento 687. do Ceará. Fundo: Coleção Ceará, pp. 64-76.

Biblioteca Central da Universidade de Coimbra. OFÍCIO. II-32, 23, 016. Relação de obras para melhorar
Coimbra e desenvolver a província, enumeradas pelos membros
{

í da comissão da junta do governo do Ceará, 1822. Fundo:


Setor de Manuscritos \
Coleção Ceará.

BCUC, Manuscritos, fls. 91-91v.

I
\\:
252 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 253

Arquivo Público do Estado do Ceará. Fortaleza REGISTRO ''Antônio Albino pardo soltr.0 m.ºr na Serra da
Uruburetama culpado na morte feita a facadas a Antônio Ferreira
Livro 01: Rol dos culpados (1793-1817). da Cunha e pronunciado na devassa que tirou o Juiz Ordinr.º
Alferes Ignacio Pereira de Mello em 20 de 7br.0 de1802, fl. 3v.
REGISTRO "Antônio Roiz, filho de Manoel Roiz, soltr.º m.ºr
na Villa de Uruburetama e Antônio José genro do mesmo REGISTRO "Andre da Silva morador na Villa de Mecejana, digo
culpados na Devasa [ilegível] do ano de 1793", fi. 1. Indio da Villa de Arronches culpado na Querella que delle deo
M.el Gaspar de Vieira por Ladrão de Gados e pronunciado a
REGISTRO "Antônio Roiz, f. 0 [filho] de An.to Roiz, mamaluco prizão e livram.to pelo Juiz ordinario o Capitão Ignacio Barozo
solt. ºmorador no Arraial [ilegível] por furtos de gados (ilegível] de Souza em 10 de junho de 1803", fl. 4.
no anno de 1794", fl.. 1.
REGISTRO "Antônio [ilegível] de Souza digo da S.ª branco com
REGISTRO "Antônio Pereira com casta de pardo, solt.rº m.ºr casta da terra culpado na devassa dos ferimentos feitos ao cabra
na Uruburetama, culpado na mesma Devasa. Hé morto", fl.. 1. Silvestre que por sobre nome não [ilegível] e pronunciado a
prizão e livram.to pello Juiz ordinário o Capitão Ignacio Barrozo
REGISTRO ''Antônio de tal Indio soltr.0 morador na de Souza em 15 de 8br.0 de1803. Morto", fl.. 4.
Uruburetama, culpado na Devassa que tirou o juiz ordinr.º
Antônio Roiz da Cunha pelo ferim.tº feito ao Criôlo .Alfaiate REGISTRO "Antônio José da Asunção pardo solteiro morador
Joaquim Gomes a 14 de 9br.0 de 1797. Morto", fl.. 1 v. na Ribeira do Caninde culpado na devassa que tirou o Juiz
ordenaria o Capetão José Tavares do Amaral pella morte feita
REGISTRO "Antônio de tal, Cabra [ilegível] Cabra José Coelho ao cabra Fran.cº Lopes e pronunciado a prizão em 7 de 7br.º de
[ilegível] culpado na devassa que tirou o Juiz ordinar. 0 José 1804. Morto", fl. 4v.
Joaquim Borges de Pinho pelas punhaladas dadas em o cabra
Francisco José, das quaes [ilegível] o ferim.tº, pronunciado em REGISTRO "Antônio [ilegível] pardo cazado m.ºr na Serra da
7 de dezb.ro de 1799", fl.. lv. Uruburetama culpado na devassa da morte q.e fes com hua
facada [ilegível] José Corr.ª pronunciado pello Juiz ordinar.º
REGISTRO "Antônio José de Medeiros, branco cazado, 0 Cap.m José Ign.ciº de Olivr.ª e Mello em 7 de 8br.º de 1807.
pronunciado na d.ª devassa como mandataria", fl. lv. Prezo na cadea desta V.ª Morto", fl. Sv.

REGISTRO "Antônio Carneiro pardo, morador em REGISTRO "Anastacio Ferreira de Mello preto forro morador
Jagoaribinho, pornunciado a prizão [ilegível] deste prezente em Acaracú culpado na D.e vassa de Arrombam. to e fugida de
como de 1802 por cucubinato com a parda Maria Solteira. elle mesmo e outros da cadeia desta Villa pronunciado pello
Morto'', fl. 3v. Juiz ordinario Manuel Ferr.ª Guim.es em 20 de março de 1810.
_{~

}.
Prezo na Cad.ª desta V.ª", fl. Sv.
1#

., .

i:.
254 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 255

REGISTRO "Antônio Mor.ª de Souza branco cazado, morador livram. to pello juiz ordinário. Estevão da Rocha Motta em 28
na Ribeira do Cauipe culpado na querella que delle deo Pascual de M5°de1804", fl. 7.
Ferr. ª de Mello por lhe furtar tres bois pronunciado pello D. or
Juiz de fora em 6 de 9br. 0 de 1811", fl. 6. REGISTRO "Bonifacio Marques pardo cazado morador no
Jardim pronunciado a prizão e livram.to pello Juiz ordinario
REGISTRO "Antônio da Costa Gomes pardo cazado vaq.rº do o alferes Ignacio Ferr.ª de Mello pellas cotilladas dadas em
Tabapuá culpado na devaça de furtos de gados pronunciado Ignacio Lopez em 23 de 8br.º de 1802", fl. 7.
em 20 de março de 1812. Prezo. Morto na cadea em a noite de
20 de julho p.ª amanhecer no dia 2i de 1817", fl. 6v. REGISTRO "Braz de Souza [ilegível] preto forro solteiro official
de pedreiro m.ºr na Prainha desta V.ª culpado na devassa
REGISTRO "Antônio Joaq.m de Oliveira (...) solteiro morador da morte feita a facadas a India Mareia de i:al sua amazia,
nesta V.ª culpado na devaça [ilegível) do prez.e anno por Armas pronunciado pello Juiz ordinr.° Cap.m João Ferr.ª Gomes em
Curtas pronunciado em 26 de fever. 0 de1812. Apresentou carta 22 de Março de 1809. Prezo na cadeia do Aracati", fl. 7v.
<;le seguro em 30 de 7br. 0 de1812. Livre com apelo", fl. 6v.
REGISTRO "João da Cunha Lira pardo caz.dº m.ºr na [ilegível]
REGISTRO "An.tº M.el Fran.cº Indio soltr. 0 natural da V.ª de culpado [ilegível] furto de gado ...", ft. 8v.
Sôre, culpado no sumario da pulicia pello furto q. fez da menina
Joanna f.ª do Sart.0 Mor João Gomes Nobre, pronunciado em REGISTRO "José da Cunha Lira pardo cazado Soldado Infante
9 de fevr.º de 1813. Prezo na cad.ª desta V.ª e nella morreo de desta Guarnição culpado na querella qu~ delle deo Dona Anna
bixigas no dia 13 de janr. 0 de 1816, o escr.ªm Castro", fl. 6v. da Costa [ilegível] pelo furto de huma sua vaca pela pron.ca
do Juis pela Ley o Capitão Joaquim Lopes de Abreu em 11 de
REGISTRO "An.tº Ferr.ª cabra cazd. 0 m.ºr na Serra da Abril de 1818"., fl. 8v.
Uruburetama, culpado na devassa [ilegível] por furtos de cav.
os pronunciado em 8 de abril de 1813. Prezo", fl. 6v. REGISTRO "João Gonsalves de Mello pardo cazado m.ºr na
[ilegível] Ribeira de Caninde deste termo culpado na devassa de
REGISTRO ''.Antonia Parda M.er do Castro Antônio Alz Fran. janr.º de 1818 por furtos de gados pela pron.ª do Juiz pela Ley
co culpada na devaça do ferim.tº feito com faca de ponta no João Agostinho Pinhr. 0 em 14 de março do m. mo anno", ft. 8v.
mulato Ant.º Escravo de José Alex. Pronunciada pello D.ºr J.e
da Crus Ferr.ª em 11 de Fev.rº de 1814. Preza na cad.ª desta V.ª REGISTRO ''José Nogueira Gabriel cabra solteiro m.º r nesta
solta por [ilegível] de livram.tº", ft. 6v. villa [ilegível] de D. Francisca de Castro Silva culpado na
querella que delle deo a dita ama [ilegível] fugida ·de seus
REGISTRO "Bento Pinto mamaluco cazado e morador na Serra escravos pela pron.ª do Juiz pela Ley o Cap.ªm Joaquim Lopes
de Maranguape culpado na querella que delle deo Raymundo de Abreo em 8 de maio de 1818. Prezo. Morreo na cadea de
Vieira da Costa por furtos de gados e pronunciado a prizão e bixigas em 28 de 8br. 0 de 1818", ft. 8v.
Um Escandaloso 1heatro de Horrores 257
256 José Eudes Arrais Barroso Gomes

Livro 14: Registros deportarias, editais, patentes, bandos de Pern.'º para os Capitains Mores destes Certoes prenderem
e ordens régias da câmara da Vila de lcó (1761-1796). as pessoas facinorozas e refugiados corno nele se contem, 13
de março de 1766, fls. 33v-34.
CARTA do doutor ouvidor Geral corregedor [ilegível] da comarca 1
do Ciarâ Grande remetida ao Juiz ordinario desta vila do Icó do EDITAL que mandou lavrar nesta Villa o Doutor Ouv.ºr G.ª e
theor seguinte, 25 de novembro de 1761, fls. 20-20v. Cor.ºr desta Coma.'ª Victorino Soares Barboza, na qual manda
S. Mag.e Fid.mª erigir Villas para os Vagamundos como abaixo
LEI q. mandou registar o Doutor ouvidor Geral e corregedor se expende, 14 de junho do 1767, fls . 36-38.
desta comrnarca Victoriano Soares Barboza estando em
correyção na qual prohibe Sua Magestade Fidelíssima q. nem EDITAL que mandou lansar a Som de Caixas o Senhor Tenente
0
huma p.ª [pessoa] de qualq.r qualid.e ou condição q. seja traga Coronel e Gov.ºr desta Capitania Antônio Joseph Victr. Borges
faca adaga punhal(. ..) nem outra qualquer arma com q. se possa da Fonseca corno abaixo se declara, junho de 1767, fis. 38-40.
fazer ferida penetrante, 25 de julho de 1762, fls. 24-25v.
ALVARÁ de Lei que Sua Magestade em comü benificio da paz
REGISTRO de hurna ley q. mandou registar o Doutor ouvidor publica de seus Reinos e vassalos (ilegível] q. he crime de leza
Geral e corregedor desta commarca Victoriano Soares Barboza Magestade de Segunda [ilegível] toda a resistência feita [ilegível]
estando em correyção na qual prohibe Sua Magestade Fidelíssima de justiça e oficiais de justiça, [ilegível] de 1767, fls. 40v-43v.
q. nem huma p.ª de qualq.r qualid.e ou condição q. seja traga
faca adaga punhal(. ..) nem outra qualquer arma com q. se possa RESISTRO de Copia de duas cartas, e do Capitulo 15 do
0

fazer ferida penetrante, 13 de março de 1766, fls. 24-25v. Regulamento que mandou o Ili.mo e Ex.mo G.ºr de Pern.' ao
5
S. Ten.te e Cor.el G.ºr desta Cap.nia p.ª sem.ar aos Cap. mores
LEI que mandou registar estando em correyção o Doutor darem inteiro comprimento e execusão ao disposto no d.º Cap.
ouvidor geral e Corregedor desta Comarca Victorino Soarey 15 do d.º Regulam.to, 3 de janeiro de 1776, fls. 102v-104.
Barboza pella qual Sua Magestade Fidellissima há por bem que
todas as Leis e Decretos proferidoz sobre a prohibição do uso BANDO que mandou o s .r T.e Coronel G.ºr Antônio José
das facas de ponta exactarnente se observem principalmente a Victoriano Borges da Fon.cª que se publicase e registase a
Ley de vinte e nove de março de mil setecentos e dezanove 25 respeito dos Dezertores, e na pena em que incorrem quem os
de julho de 1762, fls 25v-27v. ' apatrocina, 30 de abril de 1776, fls. 119v-122v.

MANDATO de justiça "passado ex-offi.cio o que abaixo se CARTA q' escreveo o s .r Ten.e Coron.e1 e Gov.ºr desta Cap.
declara vindo da Ouvidoria Geral do D.or ouvidor e Corregidor nia Antônio José Victoriano Borges da Foncequa a camera
desta comarca", 27 de abril de 1763, fl. 29-29v. desta V.ª a resp.tº da funestíssima noticia da falta do Noso
Augustíssimo Rey o S.ºr D. José o prirnr. 0 " de 21 de julho de
ALVARÁ de Sua Magestade Fidellisima rematido ao Governo 1777, fls. 132v-133.
258 José Budes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 259

Livro 16: Registros de portarias, editais, bandos e morador na V.ª de Santa Cruz do Aracati", 22 de setembro de
ordens régias da Capitania do Ceará (1762-1804). 1774, fl. 57.

REGISTRO do Bando para se alistarem todos os moradores REGISTRO da Portaria de Comand.e da Vila da Granja passada
desta Cap.nia [do Ceará] de 12 até 70 anos", 31 de março de ao Ten.e Gen.al Ign.cº Aranha de Vasconcelos a 14 de Dezbr. 0 de
1767, fl. 18. 1778, 14 de dezembro de 1778, fl. 58v.

REGISTRO do Bando e Ordem Regia p.ª se fazerem vilas BANDO que mandou lansar o Senhor Tenente Coronel
agregando se a elas os vadios, e vagabundos.de 29 de maio de Governador a respeito dos ladrões de gados, 31 de maio de
1767, fls. 19v-20v. 1769, fls. 59v-60.

REGISTRO do Bando q' se lansou p.ª se recolherem as suas Vilas TERMO que faz Fran.co Barboza Bezerra de Menezes Cadete da
todos os Indios q' andão fora delas, 9 de maio de 1773, fl. 39v. guarnição deste Prezidio, para não tornar a Villa de s.tª Cruz
do Aracati, nem contender de modo algum, com o Sargento
TERMO de segurança de vida de José Fran. co Victoriano Bazto Mor Bernardo Pinto Martins, homem de negócio da mesma
q' asina José Ribr.° Fialho, e seo f. 0 Ant. 0 Ribr.° Fialho", 26 de ·v illa, 8 de fevereiro de 1781, fl. 62v.
janeiro de 1774, fls. 40v-41.
TERMO que fazem João Ignacio e João Carlos Manoel de
PORTARIA do Snr. Ten.e Cor.e! Governador, 7 de julho de Saboya para não contenderem de forma alguma hum com o
1775, fl. 45. outro, 17 de novembro de 1789, fl. 66.

BANDO q' mandou o Ill.mo e Ex.mo Snr. Gen.aI, 11 de julho de BANDO q' o Ill.mo Snr' Gov.ºr desta Cap.nia Luís da Motta Feo
1766, fls . 54-55. e Torres mandou lansar sobre o não se poder ter Indios sem
licensa desse Gov.º", 17 de novembro de 1789, fls. 66v-67.
REGISTRO de uma carta feita as câmeras para o luto, e mais
sentimento q' se deve fazer pela falta no novo Rey, 1°. de julho TERMO que fazem o Capitão José Tavares do Amaral e seu
de 1777, fl. 56. cunhado An.to Miguel de Souza pelo qual se obrigão a não
contenderem hú com o outro por out ros meios que não sejão
TERMO q' asina o Cap.m José Camelo de Vasconseloz de os judiciaes sobre a corrente das agoas de hum riacho e sobre
sigurança de vida do Sarg.tº mor Teodozio Luis da Costa o mais q. no mesmo termo se contem", 26 de dezembro de
morador no Aracati", 16 de setembro de 1777, fl. 56v. 1792, fl. 69.
TERMO que asinão o Cap.m Fran.co da S.ª Costa e An.t0 de
Souza Coito, como parentes de Fran. co de Barros Rego para TERMO de juramento p. 10 qual se obriga M.el Fran.cº Miz a
a sigurança de vida do Sarg.tº mor Teodozio Luis da Costa, não contender mais pessoalmente com J. e Luiz Pr. ª Brandão,
260 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 261

constituindo o responsável p.r q.al q.er risco q. por culpa delle, TERMO de Juramento q' da o Cap.m Mor das Ordenanças da
[ilegível] vida ou socego'', 12 de junho de 1805, fl. 71. Villa da Granja Joaquim José Borges de Pinho do Posto de
Capitão Mor das Ordenanças da V.ª da Granja, 12 de março de
REGISTRO do Bando que o Ill.mo e Ex.mo Sr. João Carlos 1800, fl. 45.
Augusto de Oeyhausen governador desta capitania mandou
deitar sobre os objectos declarados nelle", 28 de janeiro de TERMO de Fiança, que dá o Tenente Coronel do Regimento da
1804, fl.s. 75-76v. Cavallaria do Sobral Manoel Ferreira da Costa pella segurança
da pessoa do Capitão Joronimo José Figueira de Mello que
TERMO que faz Francisco Xavier de Freitas Corrêa asistente se acha preso em hum dos Quarteis do Aquartelamento da
na Villa de Arronches, em que se obriga a não contender mais tropa paga que guarnece o Presídio desta V.ª da Fortaleza, 9 de
com o Sargento das Ordenanças desta Villa da Fortaleza José novembro de 1807, fls. 53v-54 .
Soares Lima por outros meios, que não sejão os judiciaes, 17
de junho de 1807, fl.. 77. Livro 37: Provisões do Conselho Ultramarino (1800-
1805).
BANDO que o Ill.mo e Ex.mo s .r João Carlos Augusto de
Oeynhausen Governador desta Capitania mandou deitar sobre PROVISÃO do Conselho Ultramarino em que S. A. R. ordena
os Objectos declarados nelle, 28 de janeiro de 1804, fls. 75-76v. ao Governador desta Capitania informe juntando cópia das
Ordens, que o authorizão a crear o Posto de Sarg.tº Mor das
Livro 18: Termos de juramento e posse da Capitania do Ordenanças da nova Vila de S. João do Príncipe em q. foi
Ceará (1767-1840). provido Leandro Custodio de Oliveira, e Castro, e remettendo
Mappa da Povoação della, e seu Termo, 21 de abril de 1804,
TERMO de Juramento de João Pinto Martins, Capitão-mor da fls . 18-18v.
Barra do Rio da Vila do Aracati em 11 de outubro de 1776, fl. 9.
PROVISÃO do Conselho Ultramarino em que S. A. R. ordena
TERMO de juramento que faz Teodozio Luís da CostaM.ede Campo ao Governador desta Capit ania informe se José Antônio
de InfantariaAux.ar da Marinha do Cearâ, 21/ 01/1778, fl.. 14v. de Souza Galvão ainda exercita o Posto de Capitão Mor das
Ordenanças da nova Villa de S. Bernardo, juntando copia
TERMO de juram.to que dâ Inácio Aranha de Vasconcelos de das Ordens q. permitirão a erecção della; e hum Mappa
Ten.e Gen.al da Vila da Granja, 14 de dezembro de 1778, fl. 17. da sua população; destricto; rendim.tº da Camera, e sua
applicação, 27 de abril de 18 04, fls. 1 8v~ 19.
TERMO de Juramento que da Francisco Barboza Bezerra de
Menezes pelo Posto de Alferes da Comp.ª de Infantr.ª paga da PROVISÃO do Conselho Ultramarino em q. S. A. R. ordena ao
Guarnição da Fort.ª de N. Snr.ª da Ass.ªm desta Capitania em Governador desta Capitania t irem a informar remettendo hum
28 de março de 1789, fl.. 31. Mappa da População da nova Villa de S. Bernardo declarando o
262 José Eudes Arrais Ba"oso Gomes Um Escandaloso 1heatro de Ho" ores 263

rendimento da Câmera, e suas actuais applicações, 27 de abril Livro 126: Correspondência do secretário do governo
de 1804, fl. 19v. (1822).

Livro 58: Registro geral da correspondência da Capitania OFÍCIO ao Sarg.mor Comm.te das Orden5ª 5 montadas de V.ª
do Ceará (1808-1812). Viçosa, acusando recebimento do Off.0 de 15 de Abril "sobre a
distribuição do trabalho dos índios" e o "furto de gados e mais
OFÍCIO circular de 28 de junho de 1808, fls. 2-3. creações", 8 de maio de 1822, fl. 43v.

BANDO de 26 de outubro de 1808, fls. 35-36. Livro 270: Offi.dos e cartas do governo da Capitania do Ceará
a Sua Alteza Real e Conselho Ultramarino (1804-1807).
Livro 59: Provisões do Conselho Supremo Millitar e
offi.cios à sua secretaria (1808-1820). OFÍCIO dirigido ao Cons. 0 Ultramarino, em que informa sobre
o requerimento de Manoel Miz. Chaves em 22 de novembro
REGISTRO de hua Provisão do Conselho Supremo Militar a de 1806, fls. 13v-18.
este Governo p.ªinformar sobre o requerim.tº de Antônio José
de Pinho Cap.am Mor das Orden5ª5 da V.ª da Granja, em que Livro 1461: Autos de querella e denúncia (1780-1793).
pede a S. A. R. a reintegração do Comando d'aquella Villa &ª'',
16 de outubro de 1812, fls. 25-25v. AUTO de querella e denúncia que dá o Pardo Roque Pereira
morador da fazenda de Maracanaú termo desta Villa do preto
Livro 81: Registro dos ofícios dirigidos às câmaras forro chamado Francisco, vagamundo e de prezente prezo na
municipais (1846-1850). Cadêa da Fortaleza desta Villa em 1788, fls. 13v-15v.

REGISTRO do ofício de número 4, registrado em 5 de dezembro AUTO de querella e denuncia que dá o Tenente (. ..) sobre o
de 1846, fls. 16v-17. furto de gados, fls . 19-20.

Livro 83: Registro de ofícios e ordens dirigidos aos


capitães-mores e mais oficiais de ordenanças da
capitania, comandantes de distritos, e diretores das
vilas de índios (1813).

CARTA circular aos Diretores de V.ª [vila] Visoza, Baiapina, Almofala, ·.~·

Monte-Mor-o-Novo, , Monte Mor-o-Velho p.ª poderem passar


passaportes aos seus Indios, 17 de julho de 1813, fls. 108v e 109. .
264 José Eudes Arrais Barroso Gomes Um Escandaloso Theatro de Horrores 265

2.Fontesi:nipressas DESCRIÇÃO geográfica abreviada da capitania do Ceará pelo


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