Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE - Expropriação Territorial Na Periferia Do Capitalismo
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE - Expropriação Territorial Na Periferia Do Capitalismo
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE:
expropriação territorial na periferia do capitalismo
Los europeos piensan que solo lo que inventa Europa es lerstein, 1992). Quijano (2005) argumenta que
bueno para el universo mundo y todo lo que sea distinto
es execrable. esse processo começou com uma colonização
Frase atribuída a Simon Bolívar por Gabriel Garcia Már-
quez em El General en su Laberinto, 1989. interna de povos com identidades diferentes,
mas que habitavam os mesmos territórios e
foram convertidos em espaços de dominação
INTRODUÇÃO interna. Esse fenômeno se desdobrou com a
colonização imperial ou externa de povos que
Os estudos denominados pós-coloniais, não só tinham identidades diferentes, como
subalternos ou pós-ocidentais, realizados na habitavam em territórios para além do espaço
África, Ásia e América Latina, entendidos não de dominação interna dos colonizadores.
613
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE ...
atrela o processo de colonização das Américas social da população mundial ancorada na noção de raça,
que tem origem no caráter colonial, mas já provou ser mais
à constituição da economia-mundo capitalis- duradoura e estável que o colonialismo histórico, em cuja
matriz foi estabelecida (Quijano, 2000). Para Castro-Gomez
ta, concebendo ambos como partes integrantes (2007), esse conceito amplia a ideia foucaultiana do poder
disciplinário, ao mostrar que os dispositivos panópticos
de um mesmo processo histórico iniciado no construídos pelo Estado moderno se expandem a uma es-
século XVI (Castro-Gomez; Gosfroguel, 2007). trutura mais ampla e de caráter mundial, configurada pela
relação colonial entre Estados cêntricos e periféricos.
A construção das hierarquias raciais, de 2
Nessa direção, Guha (1997) sustenta que subalternida-
gênero e de modos de apropriação dos recur- de não é somente uma questão de subordinação de clas-
se dentro de um país industrial, mas de subordinação de
sos naturais, pode ser vista como simultânea organizações sociais e históricas no interior de estruturas
e contemporânea à constituição de uma divi- interestatais, como as que se estabeleceram entre Índia e
Inglaterra. Para o autor, o colonialismo britânico se carac-
são internacional do trabalho e dos territórios, terizou pelo exercício de uma dominação sem hegemonia,
uma composição seriamente determinada pela dissolução
marcada por relações assimétricas entre eco- dos elementos de persuasão e cooperação, que se ancora-
vam na força despótica da superioridade ocidental para
nomias cêntricas e periféricas. Na perspectiva erigir uma dominação política que aniquila o surgimen-
da colonialidade, as antigas hierarquias colo- to do dissenso ou conflito. Por outro lado, se poderia ar-
gumentar que as estratégias de colonização portuguesa e
niais, que foram agrupadas na relação europeu espanhola nas Américas parecem sugerir outro itinerário,
que contemplaria uma fase do uso da força, com aniquila-
versus não europeu, continuaram arraigadas e mento dos diferentes, alinhavada, em seguida, por proces-
sos de persuasão e cooperação que possibilitaram a cons-
enredadas na divisão internacional do trabalho trução de uma dominação hegemônica.
614
Wendell Ficher Teixeira Assis
615
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE ...
3
Sobre esse aspecto, é elucidador o pronunciamento do vestidos no setor se endereçaram para produ-
Presidente Lula realizado durante a cerimônia de encer- ção de etanol.5
ramento do Seminário Empresarial Brasil – Zâmbia, ocor-
rido em julho de 2010, em Lusaka: “Olhando o mapa do
mundo, onde a gente percebe que tem terra? É no conti- 4
A perspectiva adotada neste trabalho não se vê repre-
nente africano e no continente latino-americano onde tem sentada na noção de biocombustíveis, uma vez que essa
terra, onde tem sol e onde tem água e, portanto, nós temos denominação traz consigo uma aceitabilidade social que
que fazer disso uma vantagem comparativa na nova for- vincula a produção de combustíveis agrícolas a uma ma-
ma de investimento e de produção no século XXI. Queria triz energética limpa e sustentável. Ao contrário disso,
dizer aos companheiros da Zâmbia que eu estou conven- optou-se por utilizar a designação agrocombustíveis no
cido, e vou repetir aqui uma coisa que eu tenho dito no intuito de enfocar a natureza agrícola, rural e territorial da
Brasil: que a savana africana tem as mesmas característi- produção desse insumo energético.
cas do cerrado brasileiro [...]. E a tecnologia e o manejo do
5
solo transformaram o cerrado brasileiro no maior produtor Em 2007 e 2008, merece destaque o aumento expressivo
de grãos do mundo por hectare, em um grande produtor dos investimentos estrangeiros diretos aplicados no setor,
de cana-de-açúcar, em um grande produtor de milho, em que saíram de US$ 499,2 milhões em 2006, para US$ 2
um grande produtor de soja, em um grande produtor de bilhões e 315 milhões em 2007 e US$ 2 bilhões e 285 mi-
qualquer coisa que a gente queira produzir no cerrado lhões em 2008. Quando se avaliam os países de procedên-
brasileiro. E isso, inexoravelmente, acontecerá com a sa- cia dos recursos nota-se que, no período, marcado pela cri-
vana africana, inexoravelmente. [...] Eu acho que, por isso, se financeira mundial, grande parte dos investimentos ad-
nós depositamos tanta fé e tanta esperança no continente veio de paraísos fiscais localizados no mar do Caribe. Ao
africano e, sobretudo, levando em conta o potencial ener- se somarem os recursos originários das Bermudas, Ilhas
gético deste continente, não apenas pela quantidade de Cayman, Ilhas Virgens e Ilhas do Canal Jersey, obtém-se a
hidrelétricas que podem ser construídas aqui, financiadas cifra de US$ 2 bilhões e 273 milhões, valor que represen-
por bancos brasileiros, construídas por empresas brasilei- ta 66,2% dos investimentos estrangeiros no setor, do ano
ras. Não apenas por isso, mas pelo potencial da produção de 2007, e 44,6% dos aplicados em 2008. Pode-se sugerir
de etanol” (Silva, 2010). um entrecruzamento entre as crises financeira e climática
616
Wendell Ficher Teixeira Assis
617
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE ...
Gosfroguel, 2007, p. 13)6. Nessa linha, a reto- uma perspectiva ultrapassada, desgastada
mada das contribuições da teoria da dependên- pela globalização e inútil em um contexto de
cia e da noção de centro-periferia pode clarifi- apagamento do Estado-nação. Ocorria, nessa
car o modo operativo da máquina de produção época, uma reação contra a teoria, parado-
de desigualdades, que reproduz subalternida- xalmente no momento em que a subserviên-
des sob a forma da colonialidade global vigen- cia política e econômica era reforçada pelo
te, hoje, nas sociedades interligadas. impacto da dívida externa e pela adesão aos
Embora boa parte dos intelectuais que preceitos do Consenso de Washington. Não
se orientaram pela teoria da dependência es- obstante, Munck (1999), atento a esse contexto
tivesse preocupada em compreender o que político-econômico dos anos 1990, afirmava
desviava os países periféricos dos trilhos do que a dependência dos países latino-america-
desenvolvimento, Cardoso e Faletto (1970) nos ainda não havia desaparecido do mundo
compreenderam a própria ambiguidade polí- concreto e seguia bem viva, sendo alinhavada
tica do desenvolvimento e enxergaram como, pelo receituário neoliberal, que mantinha a fé
em uma relação de dependência, os interesses na convergência entre sociedades industriais
internos se articulam com o restante do sis- avançadas e países atrasados, fornecedores de
tema capitalista. Desse modo, enfatizaram as matérias-primas.
tramas sociopolíticas que extrapolam uma ex- Do mesmo modo, Holloway (2003) su-
plicação econômico-desenvolvimentista, que gere que, hoje mais do que nunca, cerca de 20
vê, nas relações externas, apenas oposições a anos depois que saiu de moda entre as abor-
supostos interesses nacionais globais, para re- dagens das ciências sociais, a teoria da depen-
conhecer que, antes de uma oposição global, a dência continua a fornecer um enquadramen-
dependência articula interesses de determina- to útil para a compreensão da América Latina,
das classes e grupos sociais da América Latina uma vez que sua abordagem interpretativa e
com os interesses de determinadas classes e heurística permanece tendo o poder de nome-
grupos sociais de fora da América Latina (Oli- ar e explicar processos de subordinação eco-
veira, 2003). Para os objetivos deste artigo, in- nômica, política, cultural e ideológica. Assim,
teressa, portanto, reabilitar o conteúdo político na atual fase da globalização econômica, tor-
da teoria da dependência no que tange à elu- na-se ainda mais importante reafirmar e dar
cidação dos processos de subalternização dos continuidade ao desenvolvimento das teorias
CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 72, p. 613-627, Set./Dez. 2014
países periféricos à economia globalizada, bem sociais elaboradas no âmbito das nações pe-
como fazer transparecer a pertinência desse riféricas. Nos dizeres de Kay (2009), isso não
instrumental para a análise das dinâmicas es- deveria ser interpretado de maneira estreita e
paciais contemporâneas expressas em comple- chauvinista, mas, pelo contrário, como uma
xos fluxos de mercadorias e finanças. contribuição dos cientistas sociais latino-ame-
ricanos a uma teoria crítica internacional de
caráter mais holístico.7
POR UMA NOVA TEORIA DA DE- Para além do contexto latino-americano,
PENDÊNCIA: contemporaneidade Amin (2005), retomando preceitos da teoria
das relações centro-periferia e reco- da dependência, argumenta que, em conjun-
lonização econômica to com a tríade-cêntrica composta por EUA,
União Europeia e Japão, configuram-se hoje
Para Beigel (2006), em meados da dé- 7
Para Ribeiro (2000), depois do fim da era da dependência,
cada de 1990, a maioria dos cientistas sociais em algum momento da década de oitenta, a teoria social
latino-americana não foi capaz de recuperar sua proe-
considerava a análise da dependência como minência no cenário acadêmico internacional, com uma
abordagem que fosse identificável com a região, apesar das
6
Tradução de minha autoria do original em espanhol. brilhantes contribuições de inúmeros intelectuais.
618
Wendell Ficher Teixeira Assis
três estratos periféricos, a saber: o primeiro ção do capital sobre a sociedade, sobre a natu-
composto por China, os antigos países socia- reza e sobre os níveis de regulação e interferên-
listas, Coréia do Sul, Taiwan, Índia, Brasil e cia dos Estados Nacionais (Leiva, 2009). A esse
México, que conseguiram construir sistemas respeito, Arrighi (1996) enfatiza que o aumento
produtivos nacionais (potencial ou realmente no número de empresas multinacionais e de
competitivos). Um segundo estrato, no qual se transações, dentro delas e entre elas, tornou-se
encontram os países árabes, África do Sul, Irã, fator crucial e emblemático do definhamento
Turquia e os outros países da America Latina, do moderno sistema de nações territoriais, que
que ingressaram na industrialização, mas não era o lócus primário do poder. A isso se pode
conseguiram criar sistemas produtivos nacio- acrescentar o poderio resultante dos fluxos de
nais. Por fim, um terceiro estrato que engloba capitais, que transitam cada vez mais rápidos e
os países que ainda não entraram na revolução menos regulados pelos aparatos estatais.
industrial e apenas alcançam competitividade Na perspectiva de Schwartzman (2006),
nos domínios regulados pelas vantagens natu- a compreensão das relações de dependência
rais, minas, petróleo e produtos agrícolas tro- tem sido reformulada à luz da teoria do siste-
picais. Embora essa abordagem procure tornar ma-mundo colonial-moderno. O termo depen-
complexo o quadro das relações centro–peri- dência, que sempre implicou mais que pobreza
feria, ainda mantém ênfase na lógica dos Es- ou efeitos prejudiciais da adoção de formas de
tados-nação, bem como pressupõe estágios de organização exógenas, passou também a signi-
desenvolvimento mediados pelo processo de ficar a pressão de agentes estrangeiros, por in-
industrialização, não realçando a complemen- termédio do mercado de capitais, com efeitos
taridade sistêmica entre nações industriais e negativos tanto sobre as direções do desenvol-
fornecedoras de insumos básicos. Ademais, ig- vimento econômico nacional quanto sobre a
nora o fluxo de capitais financeiros e de inves- soberania política e o bem-estar social da popu-
timento direto que, oriundo do centro, busca lação. Sendo assim, a abordagem teórica deste
valorização nos países periféricos, dando no- trabalho procura contribuir para a retomada das
vos contornos às relações centro–periferia. discussões da teoria da dependência, bem como
A permanência de análises como as de tenta iluminar a continuidade das relações cen-
Amin (2005), que enfatizam tão somente o pa- tro-periferia, agora instituídas por intermédio
pel do Estado-nação na compreensão das rela- da reconfiguração territorial e dos fluxos de
619
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE ...
financeiros. O Estado e o mercado representa- lítica e economia, uma vez que ele se tornou o
riam, nesse esquema, dimensões complementa- terreno onde se dá a verdadeira disputa.
res de um processo unitário que impulsiona a Nesse contexto de esquecimento da po-
expansão do capitalismo por meio da perpetu- lítica e de opulência da esfera econômica,10
ação das relações centro-periferia.9 Se, antes, a marcado pela ampliação do poderio das cor-
posição de centro era exercida por uma domina- porações empresariais e conglomerados finan-
ção e uma influência política derivada do poder ceiros, argumenta-se, aqui, que as relações
dos Estados, agora seria mais adequado conjetu- centro–periferia sofreram alterações, sendo
rar que as relações de dependência são resulta- hoje mais adequado vislumbrar a existência de
do do poder econômico de grandes corporações um regime de dominação exercido por essas
transnacionais e conglomerados financeiros, corporações de forma policêntrica e gerando
que se ancoram na lógica de mercado e na influ- multiperiferias. Assim, as novas relações cen-
ência política dos Estados de origem para fazer tro–periferia não estariam mais vinculadas a
valer sua força de constrangimento. posições geográficas estanques, expressas na
No capitalismo atual, o econômico tem figura dos Estados territoriais; ao contrário dis-
se emancipado da submissão ao político e se so, derivariam da ação econômica de corpora-
transformado na instância diretamente domi- ções transnacionais e conglomerados financei-
nante que comanda a reprodução e evolução ros organizados em redes, estruturados terri-
da sociedade (Amin, 2001). O processo de con- torialmente, apoiados por um Estado-nacional
centração e centralização dos capitais extrapo- de origem, sendo policêntricos e engendrando
la, assim, a esfera de controle dos Estados-na- multiperiferias. A posição de centro deixaria
cionais e, por meio da ação das corporações de ser exercida por um ou mais estados nacio-
transnacionais, expande a ocupação territorial nais. Romper-se-ia, assim, com a perspectiva
do capital. Como destaca Oliveira (2007, p. de uma relação centro–periferia geográfica,
287) em sua análise das relações contemporâ- transitando para um centro–periferia ubíquo,
neas entre capitalismo e política: levado a cabo por corporações transnacionais,
compostas por capitais trasnfronteiriços que
A assimetria voltou numa escala que anula a política,
isto é, a possibilidade de escapando a lógica de acu-
atuam em todas as partes do mundo.11
mulação de capital, redistribuir o poder na sociedade Para Hoogvelt (1997), à medida que o
de nosso tempo. Trata-se, agora, da anulação da polí- capital internacional se faz mais móvel e se
CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 72, p. 613-627, Set./Dez. 2014
tica, da colonização da política pela economia. separa de suas anteriores limitações institu-
cionais, as relações centro-periferia vão se
Boaventura de Souza Santos (2010) no-
meia esse processo como o exercício de gover- 10
Nos dizeres de Paoli (2007), sobre a base de predominân-
cia da economia, se absorve o campo político para torná-lo
nos indiretos, donde poderosos agentes não um vasto oikos, no qual os governos se preocupam apenas
estatais adquirem o controle dos cuidados com com um crescimento econômico mal definido, enquan-
to os cidadãos se ocupam inteiramente de seu bem-estar
saúde e segurança, detêm a posse das terras, da material. Dito em outras palavras, a política se torna des-
necessária na medida em que se nega a possibilidade de
água potável e das sementes, para, com base em alternativas ao atual modelo de desenvolvimento.
obrigações contratuais privadas, promoverem a 11
As forças do mercado internacional dominam com um
potencial ainda maior que no passado, e os estados na-
despolitização da sociedade. Como sugere Bei- cionais têm de levá-las em maior consideração nos dias
gel (2006), tudo indica que, no cenário atual, é atuais, sob pena de terem de enfrentar grandes retiradas
de capital externo, como ocorreu nos casos do México e
ainda mais oportuna a proposição dependen- da Argentina, respectivamente em 1994-1995 e 2001-2002
(Kay, 2009, p. 572). Para Boltanski e Chiapello (2009), o
tista de produzir um encontro teórico entre po- estabelecimento dessas novas formas de organização em
rede torna as firmas muito mais flexíveis e muito menos
frágeis do que as grandes empresas nacionais do passado.
9
Para Amin (2003) a construção concomitante de centros Assiste-se, assim, ao desenvolvimento de um capitalismo
dominantes e periferias dominadas e sua reprodução em marcado pela preponderância de megacorporações empre-
cada etapa do sistema capitalista são próprias do processo sariais, cada vez mais poderosas e autônomas em relação
de acumulação operante em escala global. aos Estados, que se tornam cada vez mais fracos.
620
Wendell Ficher Teixeira Assis
621
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE ...
que não formavam parte da propriedade priva- do força e os básicos crescendo em relevância.
da. Como boa parte dos investimentos diretos Ao se relacionar os dados do gráfico com
de capital externo, associados ou não ao capital os valores de investimento estrangeiro direto
nacional, destina-se à exploração e apropria- apresentados anteriormente, constata-se que o
ção de recursos naturais, isso tem impactado ingresso de capitais na apropriação privada e
negativamente os modos de vida e as formas exploração de recursos naturais tem resultado
de reprodução social de inúmeros grupos que em um crescimento das exportações de produ-
são subalternizados pela lógica excludente da tos primários; dito de outro modo, é plausível
acumulação de capitais. sugerir uma vinculação entre a extração de ri-
Ainda que, no contexto atual, o comércio quezas naturais, a exportação de produtos pri-
intersetorial de manufaturas e produtos básicos mários e a valorização dos capitais que apor-
já não defina as relações centro-periferia, haja tam no Brasil. Para Coronil (2000), a globali-
vista a instalação de indústrias transnacionais zação neoliberal tem homogeneizado e feito
nos países tidos como atrasados, como se pôde abstratas diversas formas de riqueza, incluin-
notar no exemplo brasileiro da produção de do a natureza, que vem se convertendo, para
agrocombustíveis, um grande percentual dos muitos países, em sua vantagem comparativa
investimentos estrangeiros tem se destinado mais segura e sua fonte principal de ingresso12.
à apropriação privada de recursos naturais e Esse exemplo da relação entre exporta-
territórios. Para Di Filippo (1998), a tendência ção de produtos básicos e ingresso de inves-
de mudança, impulsionada pela migração de timento estrangeiro direto clarifica o fato de
empresas multinacionais para a periferia, está que a acumulação capitalista está fundamen-
clausurando as formas intersetoriais de comér- talmente enraizada na tríade; apropriação de
cio que caracterizavam o paradigma centro-pe- sistemas ecológicos, exploração do trabalho e
riferia, onde o centro fornecia produtos manu- valorização financeira. Nota-se, portanto, que
faturados e a periferia produtos básicos. Essa a inserção brasileira na economia global tem
forma de intercâmbio estaria sendo substituí- se processado através da dilapidação do patri-
da pelo comércio intraindustrial e intrafirmas, mônio natural, da degradação e contaminação
Gráfico 1: Exportações brasileiras por tipo de produto – 1970-2010 do meio ambiente, da ex-
ploração de mão de obra
barata ou em regime de es-
CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 72, p. 613-627, Set./Dez. 2014
80,0
70,0 cravidão, da expropriação
60,0
de populações camponesas
50,0 Básico
e da subserviência aos me-
%
40,0 Manufaturado
30,0 Semi-faturado canismos de valorização fi-
20,0
10,0 nanceira. Agregue-se a isso
0,0 o fato de que os princípios
1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010
de conservação e preserva-
Fonte: MDIC/DEPLA, c2011. ção ambiental que já foram
impostos às corporações
com as corporações transnacionais produzindo
bens manufaturados na periferia e exportando 12 Em artigo publicado no Le Monde Diplomatique, o Sub-
comandante Marcos argumenta que a globalização moder-
para as economias cêntricas. Entretanto, os da- na e o neoliberalismo como sistema mundial devem ser
reconhecidos como uma nova guerra de conquista de ter-
dos brasileiros de comércio exterior, ilustrados ritórios. Nessa nova guerra, a política, como organizadora
no gráfico disposto a seguir, sugerem uma in- do Estado-nacional, não existe mais, foi tragada pela esfera
econômica, e os políticos se transformaram em modernos
versão na pauta de exportações a partir do ano administradores de empresas interessados em gerir os ne-
gócios estatais como se estivessem à frente de lojas de de-
2000, com os produtos manufaturados perden- partamentos (Marcos, 1997).
622
Wendell Ficher Teixeira Assis
industriais pelos governos dos países centrais, ração de produtos primários e de força de tra-
a fim de racionalizar a utilização dos recursos balho barata (Coronil, 2000, p. 99).
naturais, nunca são aplicados na mesma me- No momento atual, em que talvez a ca-
dida em países periféricos, onde o imperialis- racterística mais importante da nova fase do
mo ecológico abertamente vem impondo suas imperialismo seja a abertura comercial e o
marcas (Clark; Foster, 2009).13 aperto territorial que se impõe à economia ru-
A regressão primário-exportadora atu- ral dos países tidos como atrasados (Patnaik,
almente verificada no Brasil, em associação 2005), a junção entre imperialismo, teoria da
com a entrada de investimento estrangeiro dependência, relações centro-periferia e pa-
direto no controle e apropriação de recursos radigma modernidade-colonialidade pode ser
naturais, são amostras da continuidade de um útil na compreensão das dinâmicas de recon-
processo dotado de raízes estruturais, assim figuração territorial impostas ao meio rural
como da pertinência de uma análise calcada brasileiro, bem como ajuda a clarificar as for-
nos pressupostos da teoria da dependência. mas de inserção da produção de commodities
Schwartzman (2006) vai mais longe e afirma na economia mundial. Ao remontar às raízes
que as relações de dependência consolidadas históricas, epistêmicas, político-econômicas,
através dos fluxos de capitais têm ameaçado culturais e ideológicas que interligam os terri-
afetar até mesmo a legitimidade da democracia tórios latino-americanos, sobretudo o brasilei-
brasileira. Para a autora, a adoção, na última ro, às lógicas operativas do capitalismo trans-
década, do paradigma do liberalismo por parte nacional, o presente artigo intentou construir
dos governos brasileiros, embora componha as uma perspectiva teórico-metodológica, que
diretrizes da nova globalização, não alteraram permita iluminar o cenário atual de inserção de
os fundamentos do processo, ou seja, no inte- novos territórios nos circuitos de acumulação
rior das relações entre nações “desenvolvidas” do capital. A linha de raciocínio aqui trilhada
e “em desenvolvimento”, ainda persiste o com- ambicionou realçar que o estudo de uma fren-
ponente da dependência. A esse respeito, a re- te atual de expansão do capitalismo permite a
primarização da economia, que tem vigorado análise concreta de um processo que reproduz,
nos países latino-americanos, pode ser consi- em algumas de suas linhas mais gerais, uma
derada como um indicativo da continuidade etapa da própria formação histórica do Brasil,
das relações de dependência e um retorno às na medida em que as atuais frentes podem ser
623
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE ...
das grandes corporações transnacionais e con- ______. Capitalismo, imperialismo, mundialización. In:
SEOANE, José; TADDEI, Emilio. (Comp.) Resistencias
glomerados financeiros, que impõem novas mundiales. Buenos Aires: CLACSO; 2001.
formas organizativas de exploração do traba- ______. O imperialismo, passado e presente. Tempo.
Niterói, v. 9, n. 18, p. 77-123, jun. 2005. Disponível
lho e dos recursos naturais territorializados. em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
Enquanto a teoria da dependência, formulada arttext&pid=S1413-77042005000100005. Acesso em:
11 abr. 2011.
nas décadas de 1960 e 1970, enfatizava o papel
APPADURAI, Arjun. La modernidad desbordada.
dos Estados-nacionais no exercício, tanto da Tradução: Gustavo Remedi. México: Ediciones Trilce,
Fondo de Cultura Econômica, 2001.
função cêntrica como periférica, no atual mo-
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e
mento histórico, seria mais prudente afirmar a as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto,
1996.
existência de formas de dependência levadas
BANCO CENTRAL. DIRETORIA DE FISCALIZAÇÃO.
a cabo pelo modo operativo das grandes cor- Investimentos Estrangeiros Diretos: Tabelas - Censos
porações empresariais e conglomerados finan- 1995/2000 e ingressos 2001 a 2006. Brasília, DF: DIFIS,
2009. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/rex/ied/port/
ceiros. O Estado e o mercado representariam, ingressos/htms/index2.asp?idpai=INVEDIR. Acesso em
12 out. 2010.
nesse esquema, dimensões complementares
______. Departamento de Monitoramento do Sistema
de um processo unitário que impulsiona a ex- Financeiro e Gestão da Informação. Estoque de
investimento estrangeiro direto. Brasília, DF: BC/DESIG,
pansão do capitalismo por meio da perpetua-
624
Wendell Ficher Teixeira Assis
625
DO COLONIALISMO À COLONIALIDADE ...
CASTRO-GOMEZ, Santiago; GOSFROGUEL, Ramón multiculturalismo. In: Mato, Daniel (Coord.). Estudios
(Comp). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad latinoamericanos sobre cultura y transformaciones sociales
epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: en tiempos de globalización. Buenos Aires: Clacso-Asdi,
Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad 2000.
Central-IESCO, Siglo del Hombre, 2007. P. 127-167.
ROBINSON, William I. What empire? Whose hegemony?
MARCOS, Subcomandante Insurgente. Siete piezas The transnationalization of capital and the gramscian
sueltas del rompecabezas mundial: El neoliberalismo critique of “statolatry”. In: ANNUAL CONFERENCE
como rompecabezas: la inútil unidad mundial que OF INTERNATIONAL STUDIES ASSOCIATION,
fragmenta y destruye naciones. Revista Chiapas, México, Montreal, mar. 2004.
DF, n. 5,1997. Disponível em: http://www.revistachiapas.
org/No5/ch5.html. Acesso em: 12 out. 2010. SANTOS, Boaventura de Sousa. O Oriente entre Diferenças
e Desencontros. Notícias do Milênio. Diário de Notícias,
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO, INDÚSTRIA 8-7- pp. 44-51, 1999.
E COMÉRCIO EXTERIOR - MDIC. Sistema de Análise
das Informações de Comércio Exterior via Internet ______. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia
(ALICEWeb). Brasilia, DF: Departamento de Planejamento das emergências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa
e Desenvolvimento do Comércio Exterior. Secretaria de (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente:
Comércio Exterior, MDIC, c2010. Disponível em: http:// um discurso sobre ciências revisitado. São Paulo: Cortez,
aliceweb.desenvolvimento.gov.br. Acesso em: 22 abr. 2010. 2003. pp. 777-821.
______. Departamento de Planejamento e Desenvolvimento ______. Para além do pensamento abissal. In: SANTOS,
do Comércio Exterior. Estatísticas de Comércio Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula.
Exterior. Brasília, DF: Departamento de Planejamento e Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
Desenvolvimento do Comércio Exterior. Secretaria de SCHWARTZMAN, Kathleen. Globalization from a world-
Comércio Exterior, MDIC, c2011. Disponível em: http://www. system perspective: a new phase in the core–a new destiny
mdic.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=1906. for Brazil and the semiperiphery?. Journal of World Systems
Acesso em: 14 out. 2011. Research, Washington, DC, v. 12, n. 2, p. 265-3-7,december
MIGNOLO, Walter. Histórias locais / projetos globais: 2006.
colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. SILVA, Luiz Inácio Lula da. Discurso durante encerramento
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003a. do Seminário Empresarial Brasil-Zâmbia. In: SEMINÁRIO
MUNCK, Ronaldo. Dependency and imperialism in the EMPRESARIAL BRASIL-ZÂMBIA, 8 jul. 2010, Lusaca,
new times: A Latin American perspective.The European Zâmbia. Discurso de encerramento. Lusaca, Zâmbia;
Journal of Development Research, London,v. 11, n. 1, p. Brasília, DF: Ministério das Relações Exteriores, Assessoria
56-74, 1999. de Imprensa do gabinete, 2010. Disponível em:
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del Poder, Cultura VELTZ, Pierre. Mundialización, ciudades y territórios.
y Conocimiento en América Latina. In: Anuário Barcelona: Editorial Ariel, 1996.
Mariateguiano. Lima: Amatua, v. 9, n. 9, 1997 VISVANATHAN, Shiv. Convite para uma guerra da ciência.
______. Don Quijote y los molinos de viento en América In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento
Latina. Revista Electrónica de Estudios Latinoamericanos, prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004.
Buenos Aires, v. 4, n. 14, enero/marzo 2005. p. 757-776.
RANCIÈRE, Jacques. Hatred of democracy. London: Verso, WALSH, Catherine. Las geopolíticas del conocimiento y
2006. colonialidad del poder: entrevista a Walter Mignolo. Polis:
Revista de la Universidad Bolivariana [On-line], Chile,
RIBEIRO, Gustavo Lins. Post-Imperialismo: para v. 1, n. 4, 2003b. Disponível em:http://www.redalyc.org/
una discusión después del post-colonialismo y del articulo.oa?id=30500409. Acesso em: 22 abr. 2010
626
Wendell Ficher Teixeira Assis
This article is based on the formulations of Latin- L’article se base sur les formules des auteurs
American authors who study the paradigm latino-américains regroupés autour du paradigme
modernity-coloniality. They suggest that the modernité-colonialité pour suggérer que les processus
processes of territorial expansion were, and still are, d’expansion territoriale ont été et sont toujours nodaux
fundamental for the capitalist logic. If in historic dans la logique capitaliste. Si, dans le colonialisme
colonialism the plunder of natural resources historique, le pillage des ressources naturelles était
was done through strength and political-military justifié par la force et la suprématie politique et
supremacy of the colonizer State, currently other militaire de l’État colonisateur, actuellement d’autres
mechanisms of power guarantee the continuity of mécanismes de pouvoir sont en place pour garantir
the exploration. In order to elucidate this process, la continuité de l’expropriation. Pour élucider ce
the notion of coloniality in the appropriation of processus, une nouvelle formule est apparue, celle
nature is formulated, understood as a result of de la colonialité dans l’appropriation de la nature,
the constructions in the interior of modernity étimée comme résultat de la construction au sein de la
which think of economic-instrumental ways of modernité de moyens économiques et instrumentaux
exploring the environment. Lastly, we go back to de penser et d’exploiter l’environnement. Pour finir,
discussions regarding the pertinence of the theory on reprend les discussions sur la pertinence de la
of dependence and based on empirical data, suggest théorie de la dépendance et, en se basant sur des
the emergence of new downtown-outskirts relations données empiriques, on signale le surgissement de
which would be structured by the constant nouvelles relations centre-périphérie qui seraient
displacement of capitals and by the way big en train de s’établir sur des mouvements fréquents
international corporations impose new organized de capitaux et sur la manière qu’ont les grandes
ways of exploring work and nature. corporations transnationales d’imposer de nouvelles
formes d’organisation de l’exploitation du travail et de
la nature.
Wendell Ficher Teixeira Assis – Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Professor Adjunto da
Universidade Federal de Alagoas. Pesquisador do ETTERN/IPPUR da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia e Meio Ambiente. Atuando
principalmente nos seguintes temas:Agrocombustíveis, Monocultura de Cana-de-Açúcar, Conflitos
Ambientais. Publicações recentes: O moderno arcaísmo nacional: Investimento estrangeiro direto e
expropriação territorial no agronegócio canavieiro. Revista de Economia e Sociologia Rural (Impresso), v.
52, p. 285-302, 2014; As novas Terras do Sem-fim: Expansão capitalista e acumulação primitiva no Brasil
rural. Campo - Território, v. 14, p. 212-242, 2014; Desregulación, conflictos territoriales y movimientos
de resistencia: la minería en la Amazonía brasileña. Letras Verdes, v. 14, p. 117-138, 2013.
627