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A GLOBALIZAÇÃO COMO PERVERSIDADE NA AMÉRICA LATINA

Nicole Trevisol Martins


Yasmin Tura Rodrigues

RESUMO: O seguinte artigo busca evidenciar e analisar, diante uma perspectiva


histórica, como foi realizado, efetivamente, o processo de globalização na região da
América Latina, observando a narrativa de desenvolvimento construída ao longo do
tempo, que por meio do avanço capitalista e eurocêntrico, firmou os países
desenvolvidos como sinônimo de marco e nível a ser que marcou a formação
histórica, a partir do estigma da colonialidade e exploração de países
subdesenvolvidos.

PALAVRAS-CHAVE: América Latina; Colonialidade; Globalização; Perversidade;


Sistema-mundo.

INTRODUÇÃO
Conforme um estudo histórico quanto à formação do sistema-mundo atual,
observa-se o conceito de “colonialidade de poder”, que indica a constituição de um
poder mundial baseado na imposição capitalista moderna-colonial de origem e
vertente eurocêntrica. Tal colonialidade de poder reflete significativamente na
disposição de riquezas globais e, por consequência, na diferenciação econômica e
social entre os países.
Isso posto, a globalização em curso é, a priori, a culminação de um processo
que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno,
eurocentrado como um novo padrão de poder mundial (QUIJANO, 2005). Ademais,
a ação de globalizar sustenta o domínio econômico do chamado neoliberalismo, no
mundo e, à vista disso, na América Latina.
Cria-se uma falsa ideia da globalização como um processo homogeneizador:
graças a ela, todos seremos, antes ou depois, iguais e, em particular, os latino-
americanos serão iguais em desenvolvimento, cultura e bem-estar aos seus vizinhos
do Norte e da Europa (VILAS,1998).
Tendo em vista o sistema-mundo atual, o desenvolvimento histórico de
colonialidade e a perspectiva da globalização em forma real, e não determinante de
falsas ideias, o presente artigo buscará responder o seguinte questionamento: Como
realmente se apresenta a globalização na América Latina e qual a causa disso?

1. DA COLONIALIDADE DE PODER À GLOBALIZAÇÃO


A partir de motivações territoriais e econômicas, ligadas ao surgimento do
mercantilismo, um sistema que centraliza o comércio como atividade mais lucrativa,
alguns países europeus, sobretudo da Península Ibérica, entre o século XV e início
do século XVI, mediante a expansão marítima, em busca de novas rotas de
comércio, chegaram às Américas.
Assim, os processos de colonização e exploração se iniciam e, com eles, uma
matriz de poder que se expressa por meio da colonialidade procurando encobrir o
fato de que a Europa foi produzida a partir de uma exploração político-econômica
dessas colônias.
Os europeus, colonizadores, vão brandir a América como a expressão do
Novo Mundo e, com isso, contraditoriamente, deixam escapar que foi essa América
que lhes serviu não só de contraponto ao Oriente, mas, sobretudo, de suporte para
que se pudessem afirmar como centro geopolítico e cultural do mundo
(HAESBAERT, 2006).
Em sua obra, “A Nova Des-ordem Mundial”, Rogério Haesbaert ainda discorre
que o mundo moderno não é compreensível sem a colonialidade. Afinal, vivemos em
um sistema-mundo moderno-colonial e não simplesmente em um mundo moderno.
Portanto, observa-se que a colonialidade está inserida na ideologia histórica e
na formação espacial desenvolvida nas colônias, de acordo com um padrão de
poder. O antropólogo Aníbal Quijano explica que um dos eixos fundamentais desse
padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a
ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da
dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do
poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo.
Como contraponto, o período moderno encontra-se diante de um mundo
contraditório, de acordo com Haesbert (2005, p.20):
Não fosse a América, com seus povos e suas riquezas,
tão importantes, não teria nenhum sentido a sua dominação
pelos europeus. É a importância do que é dominado, dos que
são dominados, a razão de ser da dominação; há, sempre, o
primado do dominado, que, potencialmente, pode viver sem a
dominação, ao contrário do dominador, cuja potência é a
dominação.

Dessa maneira, o movimento de eurocentrismo se alastrou dominando o


mundo desde as colonizações, mesmo que tal movimento dependesse do
subdesenvolvimento de seus colonizados. Assim, em efeito, dão-se origem às
políticas de imperialismo e neocolonialismo, vinculados ao início da globalização.
Sobreposto, a globalização que vivemos nos dias de hoje, pertinente a
maioria dos países e a maneira que eles se relacionam, não deixa de ter tido como
ponto de partida a América Latina. Foi o modo de dominação colonial, que iniciou a
formação do sistema-mundo moderno atual, que hoje é a estrutura do processo de
globalização (QUIJANO, 2005).

2. O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO E SUA PERVERSIDADE


A globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização
do mundo capitalista (SANTOS, 2001). Isto é, a partir do sistema capitalista, as
trocas econômicas, sociais e culturais entre os Estados Nacionais foram facilitadas e
agrupadas de forma que transmitiriam uma ideologia de globalização. Segundo
Miglioli (1996), projeta-se ideologicamente o mito de que a globalização ocorre,
espontaneamente, entre os países envolvidos, como se todos eles se situassem em
pé de igualdade e participassem voluntariamente da integração.
Efetivamente, como sugere Carlos Vilas (1998), a globalização resulta num
processo de desenvolvimento desigual e não homogêneo. Dessa maneira, ao invés
de ser uma constante integração entre os países do mundo, a maior parte deles,
como exemplo os países da América Latina, são subvertidos pelas grandes
potências.
Subversão essa, que não se demonstra limitante, mas exibe o caráter
complexo e de difícil análise da globalização. A dependência contínua das potências
é o que freia o crescimento da região subdesenvolvida, mas ainda assim, a
concepção do fenômeno é tida como algo poderoso por países subdesenvolvidos.
(VILLAS 1998)
O geógrafo brasileiro, Milton Santos, evidencia que a globalização apresenta
duas faces: uma delas vista como fábula, o mundo tal como nos fazem crer, e a
outra como perversidade, o mundo tal qual é. Essa globalização vista como fábula
dialoga diretamente com a ideologia proposta pelos Estados Nações dominantes,
que eram os antigos colonizadores.
Um de seus exemplos é o fator de o culto ao consumo ser estimulado, à
medida que existe uma busca por uniformidade, em serviço dos atores
hegemônicos, mas o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho
de uma cidadania verdadeiramente universal.
Em evidência, as perversidades encontradas estão relacionadas à
desigualdade social, um desemprego crescente tornando-se crônico e, com ele, a
pobreza, a fome e o desabrigo. Milton (2001) ressalta que a mortalidade infantil
permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação, assim como a
educação de qualidade é cada vez mais inacessível, alastram-se e aprofundam-se
males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção.
Há, portanto, a emergência de uma dupla tirania, a do dinheiro e a da
informação relacionadas, transmitindo uma realidade que é generalizada na maioria
dos países “periféricos”:
Ambas, juntas, fornecem as bases do sistema ideológico e,
ao mesmo tempo, buscam conformar segundo um novo ethos as
relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das
pessoas. A competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo,
é a fonte de novos totalitarismos, mais facilmente aceitos graças à
confusão dos espíritos que se instalam. Tem as mesmas origens a
produção, na mesma base da vida social, de uma violência
estrutural, facilmente visível nas formas de agir dos Estados, das
empresas e dos indivíduos.

3. PERSPECTIVA GERAL DA AMÉRICA LATINA


Comumente refere-se o conceito de América Latina como um mero recorte
geográfico estabelecido a partir de uma suposta unidade cultural e linguística dos
países que conformam esta região. Entretanto, o conceito de América Latina guarda
uma forte dimensão política e estratégica.
Tendo em vista os elementos do espaço geográfico da região, que engloba
uma grande variedade climática e paisagística, com áreas de clima tropical,
subtropical, frio de montanha e desértico, além de grandes formações de relevo,
como a Cordilheira dos Andes, essa foi uma região que, diferentemente da América
anglo-saxônica, interessou os colonizadores, tornando-a uma colônia de exploração.
Com isso, a designação “latina”, como explica Mignolo (2003): “foi introduzida
pela intelectualidade política francesa e usada na época para traçar as fronteiras,
tanto na Europa, como nas Américas, entre anglo-saxônicos e latinos”.
Isto posto, é visível até mesmo ao conceituar a região, uma presença da
influência eurocêntrica. Logo, segundo Carlos Martins (2011): “Globalização,
dependência e neoliberalismo são os três eixos analíticos que nos conduzem à
interpretação da posição da América Latina no mundo em que vivemos e das
alternativas com que se defronta”.
Shannon K.O’Neil (2022), argumenta que o comércio exterior da região não é
particularmente extenso ou sofisticado. A especialista discorre que “Nos últimos 30
anos, as economias latino-americanas tornaram-se, em média, menos diversificadas
em termos do que produzem”, e ainda que “as exportações desses países tendem
cada vez mais a vir de um número pequeno de setores menos produtivos ou menos
tecnológicos: mineração, agricultura e outras matérias-primas (no lugar de bens
processados ou de manufatura avançada)”.
O Brasil e a Argentina, em exemplo, continuam sendo duas das economias
mais fechadas do mundo, com o comércio internacional representando menos de
30% do PIB. A América Latina e Caribe como região está 11 pontos percentuais
abaixo da média global (45% versus 56%) em termos da importância do comércio
internacional para suas economias, e longe das estrelas de mercados emergentes e
concorrentes comerciais cujo fluxo de comércio internacional poderia rivalizar o total
do PIB em tamanho.

4. A QUESTÃO DA DEPÊNCIA
Na teoria da dependência, a globalização é vista como um processo que
intensifica e perpetua as assimetrias econômicas e sociais entre os países. Na
América Latina, esse fenômeno se manifesta de diferentes maneiras.
Primeiramente, a abertura dos mercados e a integração econômica global muitas
vezes resultam em uma especialização produtiva voltada para a exportação de
commodities e produtos primários de baixo valor agregado, enquanto as nações
centrais monopolizam as indústrias de alta tecnologia e valor agregado. Isso cria
uma dinâmica de subordinação econômica, na qual a região latino-americana se
torna dependente da demanda externa e está sujeita a oscilações nos preços das
commodities.
Além disso, a teoria da dependência argumenta que a entrada de capital
estrangeiro na América Latina ocorre de forma desigual, com investimentos
frequentemente concentrados em setores extrativistas, como mineração e
exploração de recursos naturais, em vez de impulsionar o desenvolvimento de
indústrias locais. Isso resulta em um padrão de dependência financeira, em que os
países latino-americanos se tornam suscetíveis a flutuações no mercado financeiro
internacional e a políticas econômicas ditadas por interesses externos.
No âmbito político, a teoria da dependência destaca a influência exercida
pelos países centrais sobre as nações periféricas da América Latina. Isso se
manifesta em intervenções políticas, como o caso da intervenção dos Estados
Unidos no Chile em 1973, apoiando o golpe militar liderado por Augusto Pinochet.
Tal intervenção visava proteger os interesses econômicos e políticos dos Estados
Unidos na região. Além disso, também ocorreu a intervenção dos Estados Unidos na
República Dominicana em 1965, durante a Guerra Civil Dominicana (GALEANO,
1971). Nessa situação, os Estados Unidos enviaram tropas para intervir no conflito
interno e preservar a estabilidade política favorável aos seus interesses.
Sem contar o impacto da construção social e cultural da população latino-
americana, que além de ter tido o europeu como referência para língua, política e
modelo de economia; há também a influência dos meios de comunicação global, em
sua maioria controlados por conglomerados internacionais, contribuindo com a
disseminação de padrões culturais e de consumo estrangeiros, muitas vezes em
detrimento das expressões culturais locais. Isso contribui para a homogeneização
cultural, marginalização das identidades e reforçam os estereótipos impostos de
fora.
Apesar de sofrer críticas de limitante por ser determinista e simplificar as
relações internacionais em termos de centro-periferia, esta teoria traz à tona
aspectos que precisam ser levados em conta quando o assunto é globalização: as
influências da dominação pela história americana nos aspectos econômicos,
políticos, sociais e culturais que compõem uma visão mais próxima do que é e
impactou a América Latina durante seu momento de internacionalização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A globalização pode ser aferida de inúmeras maneiras, contudo, sua
influência nas trocas econômicas, culturais e sociais entre os países identifica uma
realidade de segregação. Ideias falsas são impostas por Estados Nações
dominantes, como a de que “globalização” é um processo homogêneo, que conduz
ao progresso e à democracia, a fim de pressupor ideologias fantasiosas aos Estados
pouco privilegiados.
A América Latina, região historicamente afetada por ter sido colonizada de
forma invasiva e explorada sem precedentes, condiz como um exemplo de realidade
social e econômica influenciada pela perversidade da globalização. Os
países membros são alguns dos muitos territórios subdesenvolvidos mundialmente,
uma característica construída através do conceito de colonialidade de poder,
permitindo espaço ao sistema-mundo capitalista moderno-colonial.
. O fenômeno que se apresenta como um processo de interconexão e
integração global, opera com uma dinâmica aprofundada nas desigualdades, que
centra o poder econômico e político nas mãos de grandes corporações e países
dominantes.
Essa abertura econômica e a liberalização comercial impostas pela
globalização têm prejudicado os setores produtivos locais, levando à
desindustrialização e à dependência excessiva das exportações de commodities.
Processos como esses, percebidos em excesso no cenário latino-americano,
permite compreender que a situação de dependência e limitação de
desenvolvimento da América Latina, primordial para o mundo global, consolidou-se
no cenário internacional por meio de subjugação de países desenvolvidos e hoje
sofre com o seu lado perverso.
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