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espíritos amazônicos

EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

resumo O artigo propõe uma re�exão sobre a de catalisador imediato – de pretexto, se quise-
ontologia dos espíritos na Amazônia indígena. Uma rem – foi a leitura, bem mais recente, de dois
narrativa de Davi Kopenawa (pensador e líder político fragmentos de uma notável narrativa prove-
yanomami) sobre os xapiripë (ancestrais animais ou es- niente de outra cultura amazônica. Trata-se da
píritos xamânicos que interagem com os xamãs de seu exposição que Davi Kopenawa, pensador e líder
povo) é tomada como inspiração central para uma dis- político yanomami, faz ao antropólogo Bruce
cussão mais ampla sobre cosmologia e xamanismo na Albert sobre os xapiripë, “ancestrais animais”
Amazônia. Nesta discussão, os conceitos amazônicos ou “espíritos xamânicos” que interagem com os
sobre os “espíritos” não apontam para uma classe ou xamãs de seu povo (Kopenawa 2000; Kopena-
gênero de seres, mas para uma síntese disjuntiva entre wa & Albert 2003). Estes textos são parte de
o humano e o não-humano. O tema da intensidade um diálogo em curso entre Kopenawa e Albert,
luminosa característica dos espíritos é interpretado em no qual o primeiro apresenta aos Brancos, na
termos de uma ênfase não-representacional na visão pessoa de seu interlocutor-tradutor, uma con-
como modelo da percepção e do conhecimento nas cepção detalhada do mundo e da história, que é
culturas ameríndias. Kopenawa a�rma que os xamãs ao mesmo tempo uma reivindicação indignada
dos Yanomami sabem que sua �oresta pertence ao xa- e orgulhosa do direito dos Yanomami à exis-
piripë e é feita de seus “espelhos”, isto é, cristais bri- tência2. A seguir transcrevo a versão mais curta
lhantes. A �oresta de cristal, portanto, não re�ete ou da narrativa, publicada em português em duas
reproduz imagens, mas ofusca, refulge e resplandece. ocasiões (Kopenawa 2000, 2004)3.
palavras-chave Yanomami. Ontologia.
Espíritos. Cosmologia. Xamanismo. Luz. Xapiripë
Os espíritos xapiripë dançam para os xamãs
Ces citoyens in�nitésimaux de cités mistérieuses… desde o primeiro tempo e assim continuam até
Gabriel Tarde hoje. Eles parecem seres humanos mas são tão
minúsculos quanto partículas de poeira cinti-
Introdução lantes. Para poder vê-los deve-se inalar o pó da
árvore yãkõanahi muitas e muitas vezes. Leva
As re�exões aqui alinhavadas têm sua ori- tanto tempo quanto para os brancos aprender
gem longínqua em meu trabalho junto aos Ya- o desenho de suas palavras. O pó do yãkõanahi
walapíti e Araweté, nas décadas de 1970 e 1980, é a comida dos espíritos. Quem não o “bebe”
onde, como todo etnógrafo, tive de confrontar
diferentes noções indígenas sobre a agência dos 2. O diálogo integral entre Kopenawa e Albert deve ser pu-
não-humanos1. O evento que lhes serviu porém blicado muito brevemente. Ver, além dos dois fragmen-
tos já citados, os diversos outros textos de Kopenawa e
de Albert in Albert e Chandès (2003), bem como os
1. Ver Viveiros de Castro ([1978] 2002a), para os Yawa- importantes artigos de Albert (1988) e Albert (1993).
lapíti, e Viveiros de Castro 1992, para os Araweté. 3. Transcrevo a versão publicada em 2004.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


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dessa maneira �ca com olhos de fantasma e não guardamos as palavras dos nossos antepassados
vê nada. dentro de nós há muito tempo e continuamos
Os espíritos xapiripë dançam juntos sobre grandes passando-as para os nossos �lhos. As crianças,
espelhos que descem do céu. Nunca são cinzentos que não sabem nada dos espíritos, escutam os
como os humanos. São sempre magní�cos: o cor- cantos do xamãs e depois querem que chegue
po pintado de urucum e percorrido de desenhos a sua vez de ver os xapiripë. É assim que, apesar
pretos, suas cabeças cobertas de plumas brancas de muito antigas, as palavras dos xapiripë sem-
de urubu rei, suas braçadeiras de miçangas reple- pre voltam a ser novas. São elas que aumentam
tas de plumas de papagaios, de cujubim e de arara nossos pensamentos. São elas que nos fazem
vermelha, a cintura envolta em rabos de tucanos. ver e conhecer as coisas de longe, as coisas dos
Milhares deles chegam para dançar juntos, agi- antigos. É o nosso estudo, o que nos ensina a
tando folhas de palmeira novas, soltando gritos sonhar. Deste modo, quem não bebe o sopro
de alegria e cantando sem parar. Seus caminhos dos espíritos tem o pensamento curto e enfu-
parecem teias de aranha brilhando como a luz do maçado; quem não é olhado pelos xapiripë não
luar e seus ornamentos de plumas mexem lenta- sonha, só dorme como um machado no chão.
mente ao ritmo de seus passos. Dá alegria de ver
como são bonitos! Os espíritos são assim tão nu- Esta narrativa de Kopenawa — e aqui me
merosos porque eles são as imagens dos animais re�ro tanto ao texto acima como à versão mais
da �oresta. Todos na �oresta têm uma imagem: desenvolvida de “Les ancêtres animaux” (Kope-
quem anda no chão, quem anda nas árvores, nawa & Albert 2003) — parece-me um docu-
quem tem asas, quem mora na água... São estas mento extraordinário. Antes de mais nada, ela
imagens que os xamãs chamam e fazem descer impressiona pela riqueza e eloquência, qualida-
para virar espíritos xapiripë. des que se devem à implementação deliberada,
Estas imagens são o verdadeiro centro, o verda- por parte dos dois autores, de uma estratégia
deiro interior dos seres da �oresta. As pessoas co- discursiva de grande densidade poético-con-
muns não podem vê-los, só os xamãs. Mas não são ceitual. Nesse sentido, estamos diante de um
imagens dos animais que conhecemos agora. São projeto de “invenção da cultura” (sensu Wagner
imagens dos pais destes animais, são imagens dos 1981) que é ao mesmo tempo uma obra-pri-
nossos antepassados. No primeiro tempo, quan- ma de política “interétnica”. Se o xamanismo
do a �oresta ainda era jovem, nossos antepassados é essencialmente uma diplomacia cósmica de-
eram humanos com nomes de animais e acaba- dicada à tradução entre pontos de vista ontolo-
ram virando caça. São eles que �echamos e come- gicamente heterogêneos4, então o discurso de
mos hoje. Mas suas imagens não desapareceram Kopenawa não é apenas uma narrativa sobre
e são elas que agora dançam para nós como espí- certos conteúdos xamânicos – a saber, os espíri-
ritos xapiripë. Estes antepassados são verdadeiros tos que os xamãs fazem falar e agir; ele é uma
antigos. Viraram caça há muito tempo mas seus forma xamânica em si mesma, um exemplo de
fantasmas permanecem aqui. Têm nomes de ani- xamanismo em ação, no qual um xamã tanto
mais mas são seres invisíveis que nunca morrem. fala sobre os espíritos para os Brancos, como
A epidemia dos Brancos pode tentar queimá-los sobre os Brancos a partir dos espíritos, e ambas
e devorá-los, mas eles nunca desaparecerão. Seus estas coisas através de um intermediário, ele
espelhos brotam sempre de novo. mesmo um Branco que fala yanomami.
Os Brancos desenham suas palavras porque
seu pensamento é cheio de esquecimento. Nós
4. Viveiros de Castro (1998); Carneiro da Cunha (1998).

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Mas a narrativa é igualmente excepcional uma essência invisível distinta de suas formas
por sua exemplaridade cosmológica. Ela articula visíveis: os xapiripë são os “verdadeiros ani-
e desenvolve idéias que se encontram em estado mais” – mas são humanóides. Isto é, os verda-
mais ou menos difuso em diversas outras cul- deiros animais não se parecem demasiado com
turas indígenas da região. Estamos aqui diante os animais que os xapiripë, literalmente, ima-
de uma versão forte, no sentido lévi-straussiano, ginam. De outro lado, os xamãs se distinguem
da mitologia (explicita e implícita) dos espíritos dos demais humanos por serem “espíritos”, e
amazônicos. É esta exemplaridade que interes- mais, “pais” dos espíritos (que, por sua vez, são
sa ao presente artigo, cujo propósito é chamar as imagens dos “pais dos animais”). O concei-
a atenção para algumas características relativa- to de xapiripë, menos ou antes que designando
mente comuns do modo de existência e mani- uma classe de seres distintos, fala assim de uma
festação dos espíritos na Amazônia indígena. Em região ou momento de indiscernibilidade en-
particular, tomo o discurso de Kopenawa como tre o humano e o não-humano (principal mas
exprimindo uma concepção pan-amazônica na não exclusivamente os “animais”, noção que
qual as noções que traduzimos por “espírito” se discutiremos mais adiante): ele fala de uma
referem a uma multiplicidade virtual intensiva. humanidade molecular de fundo, oculta por
formas molares não-humanas, e fala dos múlti-
O plano de imanência xamânico plos afetos não-humanos que devem ser capta-
dos pelos humanos por intermédio dos xamãs,
Vários personagens salientes e contextos pois é nisto que consiste o trabalho do sentido;
pregnantes da cosmologia yanomami se acham literalmente, “são as palavras dos xapiripë que
evocados no texto acima: os espíritos, os animais, aumentam nossos pensamentos”.
os xamãs, os mortos, os brancos; o mito e o so- A reverberação entre as posições de xamã
nho, a droga e a festa, a caça e a �oresta. Co- e de espírito se veri�ca em diversas culturas
mecemos pelos xapiripë propriamente ditos. A amazônicas. No Alto Xingu, por exemplo, os
palavra designa o utupë, imagem, princípio vital, grandes xamãs são chamados “espíritos” pe-
interioridade verdadeira ou essência (Kopenawa los leigos, enquanto eles próprios se referem a
& Albert 2003: 72, n. 28) dos animais e outros seus espíritos associados como “meus xamãs”
seres da �oresta, e ao mesmo tempo as imagens (Viveiros de Castro 2002a: 80-1). Para os Ese
imortais de uma primeira humanidade arcaica, Eja da Amazônia boliviana, “todos os eshawa
composta de Yanomami com nomes animais que [espíritos] são eyamikekwa [xamãs], ou melhor,
se transformaram nos animais da atualidade. os eyamikekwa têm os poderes dos eshaw’ (Ale-
Mas o termo xapiripë se refere também aos xiades 1999: 226). Entre os Ikpeng do médio
xamãs humanos, e a expressão “tornar-se xamã” Xingu (Rodgers 2002), o termo pianom desig-
é sinônima de “tornar-se espírito”, xapiri-pru. na os xamãs, seus vários espíritos auxiliares e
Os xamãs se concebem como de mesma natu- os pequenos dardos potencialmente auto-in-
reza que os espíritos auxiliares que eles trazem toxicantes que estes espíritos introduzem no
à terra em seu transe alucinógeno. O conceito abdômen dos xamãs e que são o instrumento
de xapiripë assinala portanto uma interferência do xamanismo. Esta observação de Rodgers é
complexa, uma distribuição cruzada da iden- importante por indicar que, se o conceito de
tidade e da diferença entre as dimensões da espírito designa essencialmente uma população
“animalidade” (yaro pë) e da “humanidade” (ya- de afetos moleculares (ver adiante), uma multi-
nomae thëpë). De um lado, os animais possuem plicidade intensiva, então o mesmo se aplica ao

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conceito de xamã: “o xamã é um ser múltiplo, o sopro dos espíritos tem o pensamento curto e
uma micropopulação de agências xamânicas enfumaçado; quem não é olhado pelos xapiripë
abrigada em um corpo” (op.cit., n.18). Longe não sonha, só dorme como um machado no
de serem super-indivíduos, portanto, os xamãs chão.”. De passagem, observe-se que, se o estu-
– pelo menos os xamãs “horizontais” (Hugh- do e a razão vigilante são a alucinação própria
Jones 1996a) mais comuns na região – são seres dos Brancos, a escrita é o seu xamanismo: “Para
super-divididos: federação de agentes sobrena- poder vê-los [os xapiripë] deve-se inalar o pó da
turais como nos Ikpeng, morto antecipado e árvore yãkõanahi muitas e muitas vezes. Leva
vítima canibal potencial como nos Araweté tanto tempo quanto para os brancos aprender
(Viveiros de Castro 1992), corpo repetida- o desenho de suas palavras.”7.
mente perfurado como nos Ese Eja (Alexiades Como se sabe, boa parte da mitologia ama-
1999: 221). Além disso, se o xamã é, efetiva- zônica trata das causas e conseqüências da es-
mente, “diferente”, como dizem os Ikpeng peciação – a investidura em uma corporalidade
(Rodgers op.cit.), resta que esta diferença entre característica – de diversos personagens ou ac-
os ele e os leigos é uma questão de grau, não tantes, todos eles concebidos como comparti-
de natureza. “Todo mundo que sonha tem um lhando originalmente de uma condição geral
pouquinho de xamã” dizem os Kagwahiv (Kra- instável na qual aspectos humanos e não-huma-
cke 1987), em cuja língua, como em muitas nos se achavam inextricavelmente emaranhados.
outras da Amazônia, as palavras que traduzi- Todos os seres que povoam a mitologia manifes-
mos por “xamã” não designam algo que se “é”, tam esse entrelaçamento ontológico, essa ambi-
mas algo que se “tem” – uma qualidade ou güidade trans-especí�ca que os faz, justamente,
capacidade adjetiva e relacional mais que um semelhantes aos xamãs (e aos espíritos):
atributo substantivo, qualidade que pode estar
intensamente presente em muitas entidades Os animais que povoam a Terra de hoje não
não-humanas, que abunda, escusado dizer, nos chegam nem perto, em termos de poder, dos
“espíritos”, e que pode mesmo constituir-se em animais originais, diferindo destes tanto quanto
potencial genérico do ser (Campbell 1989)5. se diz que os humanos ordinários diferem dos
O “xamã” humano, assim, não é um tipo xamãs […] O Povo Primordial vivia exatamen-
sacerdotal – uma espécie ou função –, mas te como os xamãs vivem hoje, em um estado
alguém mais semelhante ao �lósofo socrático polimorfo… Depois de seu abandono da Terra,
– uma capacidade ou funcionamento. Pois se, cada um dos Seres Primordiais se tornou o “Se-
como sustentava Sócrates, todo indivíduo ca- nhor” ou arache da espécie que engendrou (Guss
paz de raciocinar é �lósofo, amigo potencial do 1989: 52, sobre os Ye’kuana of Venezuela).
conceito, então todo indivíduo capaz de sonhar
é xamã, “amigo da imagem”6. Nas palavras de Veja-se também S. Hugh-Jones (1979: 218)
Kopenawa: “[Este é] o nosso estudo, o que nos sobre os Barasana do Vaupés: “Os xamãs são
ensina a sonhar. Deste modo, quem não bebe o povo He por excelência”; como sabemos, o
conceito de He designa o estado originário do
5. O mesmo se diga de muitas das noções amazônicas cosmos, para onde os humanos retornam pelo
de “alma”, como mostrou Surrallés, entre outros, para veículo do ritual. Sobre os Akuriyó do Suriname,
o caso dos Candoshi (2003: 43-9).
6. Para o contraste entre o xamã e o sacerdote na Ama- 7. Ver Gow (2001: 191-218) para uma análise brilhante
zônia, ver Hugh-Jones (1996a) e Viveiros de Castro da conexão escrita-xamanismo entre os Piro.
(2002b).

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F. Jara (1996: 92-4) observa que os xamãs – hu- espécies e as qualidades do mundo atual (Vi-
manos ou animais, pois as espécies não-humanas veiros de Castro 2001). Donde o regime de
também possuem xamãs – são os únicos seres “metamorfose”, ou multiplicidade qualitativa,
que “mantêm as características primitivas ante- próprio do mito: a questão de saber se o ja-
riores à separação entre humanos e animais”, em guar mítico, por exemplo, é um bloco de afetos
particular o poder de mutação inter-especí�ca (e humanos em �gura de jaguar ou um bloco de
este poder é o verdadeiro poder). afetos felinos em �gura de humano é rigorosa-
Assim, a interferência sincrônica entre hu- mente indecidível, pois a metamorfose mítica é
manos e animais (mais geralmente, não-huma- um acontecimento ou um devir (uma superpo-
nos) que se exprime nos conceitos de xamã e sição intensiva de estados heterogêneos), não
de espírito possui uma dimensão diacrônica um processo de mudança (uma transposição
fundamental, remetendo a um passado abso- extensiva de estados homogêneos). Mito não é
luto – passado que nunca foi presente e que história justamente porque metamorfose não é
portanto nunca passou, como o presente não processo, “ainda” não é processo e “jamais foi”
cessa de passar – em que as diferenças entre as processo; a metamorfose é anterior e exterior
espécies “ainda” não haviam sido atualizadas. ao processo do processo – ela é um devir.
O mito fala deste momento: A linha geral traçada pelo discurso mítico
descreve, assim, a laminação instantânea dos
[– Gostaria de lhe fazer uma pergunta simples: o �uxos pré-cosmológicos de indiscernibilida-
que é um mito?] – Não é uma pergunta simples, de ao ingressarem no processo cosmológico:
muito pelo contrário… Se você interrogar um doravante, as dimensões humana e felina dos
índio americano, seriam muitas as chances de jaguares (e dos humanos) funcionarão alter-
que a resposta fosse esta: uma história do tempo nadamente como fundo e forma potenciais
em que os homens e os animais ainda não eram uma para a outra. A transparência originária
diferentes. Esta de�nição me parece muito pro- ou complicação in�nita onde tudo dá aces-
funda. (Lévi-Strauss & Eribon 1988: 193). so a tudo se bifurca ou se explica, a partir de
então, na invisibilidade (as almas humanas e
A de�nição é de fato profunda; aprofunde- os espíritos animais) e na opacidade (o corpo
mo-nos, então, nela. Não é descabido de�nir humano e as “roupas” somáticas animais)8 re-
o discurso mítico como consistindo principal- lativas que marcam a constituição de todos os
mente em um registro do processo de atuali- seres mundanos – invisibilidade e opacidade
zação do presente estado de coisas a partir de relativas porque reversíveis, já que o fundo de
uma condição pré-cosmológica virtual dotada virtualidade pré-cosmológica é indestrutível
de perfeita transparência – um “caosmos” onde ou inesgotável. Como dizia Kopenawa (2003:
as dimensões corporal e espiritual dos seres ain- 73, 81) ao falar dos cidadãos in�nitesimais da
da não se ocultavam reciprocamente. Esse pré arqui-polis virtual, os xapiripë “nunca desapa-
ou proto-cosmos, muito longe de exibir uma recem […] seus espelhos brotam sempre de
“indiferenciação” ou “identi�cação” originárias novo […] eles são potentes e imortais”.
entre humanos e não-humanos, como se cos- Disse logo acima que as diferenças pré-cos-
tuma caracterizá-lo, é percorrido por uma di- mológicas são in�nitas e internas, em contraste
ferença in�nita, ainda que (ou porque) interna com as diferenças �nitas externas entre as espé-
a cada personagem ou agente, ao contrário das
diferenças �nitas e externas que constituem as 8. Sobre os corpos animais como “roupas”, ver Viveiros
de Castro (1998).

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cies. Estou me referindo aqui ao fato de que o que permutação de caracteres de mesma ordem e
de�ne os agentes e pacientes dos sucessos míticos natureza. O contínuo heterogêneo do mundo
é sua capacidade intrínseca de ser outra coisa; pré-cosmológico dá assim lugar a um discreto
neste sentido, cada ser mítico difere in�nitamen- homogêneo, nos termos do qual cada ser é só o
te de si mesmo, visto que é “posto” inicialmente que é, e só o é por não ser o que não é. Mas os
pelo discurso mítico apenas para ser “substituí- espíritos são o testemunho de que nem todas as
do”, isto é, transformado. É esta auto-diferença virtualidades foram atualizadas e que o turbu-
que de�ne um espírito e que faz com que todos lento �uxo mítico continua a rugir surdamente
os seres míticos sejam espíritos. A suposta indi- por debaixo das descontinuidades aparentes
ferenciação entre os sujeitos míticos é função de entre os tipos e espécies11.
sua irredutibilidade radical a essências ou iden-
tidades �xas, sejam elas genéricas, especí�cas ou Humanos, animais, espíritos
individuais (pense-se nos corpos destotalizados e
“desorganizados” que vagueiam nos mitos). Tanto quanto podemos saber, todas as cultu-
Em suma: o mito propõe um regime onto- ras amazônicas dispõem de conceitos que deter-
lógico comandado por uma diferença intensiva minam seres análogos aos xapiripë. Na verdade,
�uente absoluta, que incide sobre cada ponto as palavras indígenas que traduzimos por “espí-
de um contínuo heterogêneo, onde a transfor- rito” correspondem em geral a uma “categoria”
mação é anterior à forma, a relação é superior fundamentalmente heteróclita e heterogênea,
aos termos e o intervalo é interior ao ser9. Cada que admite uma quantidade de subdivisões e
ser mítico, sendo pura virtualidade, “já era an- contrastes internos, às vezes mais radicais que os
tes” o que “iria ser depois”, e por isso não é, que opõem os “espíritos” aos outros tipos de se-
pois não permanece sendo, nada de atualmente res. Para �carmos apenas com os Yanomami, os
determinado. Em contrapartida, as diferenças xapiripë ou “espíritos xamânicos” seriam somen-
extensivas introduzidas pela especiação (lato te uma espécie do gênero yai thëpë, que Albert
sensu) pós-mítica, ou seja, a célebre passagem traduz como “seres não-humanos invisíveis”, no-
do “contínuo” ao “discreto” que constitui o ção que inclui também os espectros dos mortos,
grande (mi)tema da �loso�a estruturalista10, porepë, e os seres malé�cos, në wãripë (Kopenawa
cristalizam blocos molares de identidade in- & Albert 2003: 68, n.2). E se os xapiripë são epi-
terna in�nita – cada espécie é internamen- tomizados pelas imagens dos humanos-animais
te homogênea, seus membros são idêntica e primordiais, Kopenawa deixa claro que os xamãs
indiferentemente representativos da espécie também mobilizam, entre outras, as imagens xa-
enquanto tal –, blocos estes separados por in- piripë do Trovão, do Raio, da Chuva, da Noite,
tervalos externos, quantizáveis e mensuráveis, dos Ancestrais Canibais, da Panela, do Algodão,
uma vez que as diferenças entre as espécies do Fogo e dos Brancos, bem como uma multi-
são sistemas �nitos de correlação, proporção e dão de në wãripë (op.cit.: 79-81). Os xapiripë não
são sempre belos e magní�cos, pois podem ser
terríveis e monstruosos; e eles compartilham da
9. Compare-se isso com as “descontinuidades internas”
de que fala M. Strathern em Partial connections (Stra- condição fantasmal dos mortos, pois são “formas
thern 1991: xxiii). espectrais”, isto é, imagens (op.cit.: 73). A noção
10. Para o desenvolvimento do tema no contexto da
mitologia, ver Lévi-Strauss (1964: 58-63, 286-87, 11. “E o sistema duro não interrompe o outro: o �uxo
325-26; 1971: 417-21, 605), bem como o excelente continua sob a linha, perpetuamente mutante…”
estudo de Schrempp (1992). (Deleuze & Guattari 1980: 270).

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genérica de “não-humanos invisíveis” pareceria exercício empírico da visão. Eles são o objeto,
uni�car adequadamente essa diversidade interna poder-se-ia dizer, de um exercício superior ou
da “categoria”; mas o problema é que esses não- transcendental desta faculdade: imagens que
humanos possuem determinações humanas fun- seriam então como a condição daquilo de que
damentais, seja no plano de sua forma corporal são imagem; imagens ativas, índices que nos
básica, seja no de suas capacidades intencionais e interpretam antes que os interpretemos; enig-
agentivas. Além disso, se tais não-humanos são máticas imagens que devem nos ver para que
normalmente invisíveis aos homens comuns, aos possamos vê-las – “quem não é olhado pelos
que estão despertos e àqueles de “pensamento xapiripë não sonha, só dorme como um ma-
curto e enfumaçado”, no contexto da alucinação chado no chão” –; imagens através das quais
xamânica eles são, ao contrário, supremamente vemos outras imagens
visíveis, e visíveis em sua forma humana verdadei-
ra (são “o verdadeiro centro” dos seres da �ores- “só os xamãs podem ver [os espíritos], após ter be-
ta). Reciprocamente, há certas situações críticas bido o pó de yãkoana, pois eles se tornam outros
em que uma pessoa encontra um ser que começa e passam a ver os espíritos igualmente com olhos
por se dar a ver como humano – em um sonho, de espírito” (Kopenawa & Albert 2003: 77)13.
em um encontro solitário na �oresta – mas ter-
mina se revelando subitamente como não-hu- Tal não-iconicidade e não-visibilidade em-
mano; nestes casos, os não-humanos são aqueles píricas, em suma, parecem apontar para uma
supremamente capazes de assumir uma forma dimensão importante dos espíritos: eles são
humana falsa perante os humanos verdadeiros. imagens não-representacionais, representantes
Em outras palavras, enquanto (normalmente) que não são representações.
invisíveis, esses não-humanos “são” humanos;
enquanto (anormalmente) visíveis, esses huma- “Todos os seres da �oresta têm sua imagem utu-
nos “são” não-humanos12. pë … Em suas palavras, vocês diriam que eles
Por �m, notemos a natureza algo paradoxal são os ‘representantes’ [em português] dos ani-
de uma imagem que é ao mesmo tempo não- mais” (Kopenawa & Albert 2003: 72-3).
icônica e não-visível. O que de�ne os espíritos,
em certo sentido, é indexarem os afetos carac- Albert assinala (loc.cit., n. 29) que o termo
terísticos daquilo de que são a imagem sem, “representante” faz parte do vocabulário políti-
por isso, parecerem com aquilo de que são a co habitual dos líderes indígenas. Pois bem; em
imagem: são índices, não ícones. Ora, o que Art & Agency, ao introduzir a idéia dos símbolos
de�ne uma “imagem” é sua visibilidade emi- anicônicos como “representantes”, Alfred Gell
nente: uma imagem é algo-para-ser-visto, é o (1998: 98) usava o exemplo do diplomata: “[O]
correlativo objetivo necessário de um olhar, embaixador chinês em Londres… não se pare-
uma exterioridade que se põe como alvo da mi- ce com a China; mas, em Londres, a China se
rada intencional; mas os xapiripë são imagens parece com ele”. O que se poderia parafrasear
interiores, “moldes internos”, inacessíveis ao dizendo que os xapiripë não se parecem com os
animais, mas, no contexto mítico-xamânico, os
12. Os espíritos são não-humanos, note-se, e não ‘não-são animais se parecem com eles.
humanos’. Em outras palavras, a extra-humanidade
dos espíritos é um caso de “marca” ontológica (Vale- 13. Ver loc.cit. n. 39, onde Albert observa que um xamã
ri 2000: 28) em relação ao estatuto não-marcado do só pode ver um espírito através dos olhos de outro
humano como modo referencial do ser. espírito, “com o qual se identi�cou” em seu transe.

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Nem tipos, nem representações. O que estou to por oposição a um corpo imaterial que uma
sugerindo, en�m, é que os conceitos amazônicos corporalidade dinâmica e intensiva, um objeto
de “espírito” não designam tanto uma classe ou paradoxal que, como Alice, não cessa de crescer
gênero de seres quanto uma certa relação de vizi- e diminuir ao mesmo tempo: um espírito é me-
nhança obscura entre o humano e o não-humano, nos que um corpo – os xapiripë são partículas de
uma comunicação secreta que não passa pela re- poeira, miniaturas de humanos dotados de mi-
dundância, mas pela disparidade entre eles: cro-falos e a cujas mãos faltam dedos (Kopena-
wa & Albert 2003: 68)16 – e mais que um corpo
[N]ão há mais um sujeito que se eleva até à ima- – aparência magní�ca, eventualmente terri�-
gem, com ou sem sucesso. Dir-se-ia antes que cante, ornamentação corporal soberba, brilho,
uma zona de indistinção, de indiscernibilidade, perfume, beleza, um caráter, em geral, excessivo
de ambigüidade se estabelece entre dois termos, em relação àquilo de que são a imagem (loc.cit.
como se eles houvessem atingido o ponto que 73 n. 32; cf. também Viveiros de Castro 2002a).
precede imediatamente sua diferenciação respec- Em suma, uma transcorporalidade constitutiva,
tiva: não uma similitude, mas um deslizamento, antes que uma negação da corporalidade: um es-
um avizinhamento extremo, uma contigüidade pírito é algo que só é escasso de corpo na medida
absoluta; não uma �liação natural, mas uma em que possui corpos demais, capaz como é de
aliança contra-natureza… (Deleuze 1993: 100). assumir diferentes formas somáticas. O inter-
valo entre dois corpos quaisquer, mais que um
Dir-se-ia que xapiripë é o nome da síntese não-corpo ou corpo nenhum.
disjuntiva que conecta-separa o atual e o virtual, Mas se os conceitos amazônicos que tradu-
o discreto e o contínuo, o comestível e o canibal, zimos por “espírito” não designam, a rigor, en-
a presa e o predador. Neste sentido, efetivamen- tidades taxonômicas, e sim nomes de relações,
te, os xapiripë “são outros”14. Um espírito, na experiências, movimentos e eventos, então não
Amazônia indígena, é menos assim uma coisa é impossível que noções como as de “animal”
que uma imagem, menos uma espécie que uma e de “humano” tampouco constituam elemen-
experiência, menos um termo que uma relação, tos de uma tipologia estática de gêneros do
menos um objeto que um evento, menos uma �- ser ou macro-formas categoriais de uma clas-
gura representativa transcendente que um signo si�cação “etnobiológica”, sendo, ao contrário,
do fundo universal imanente – o fundo que vem coisa completamente diferente: como os es-
à tona no xamanismo, no sonho e na alucinação, píritos, elas seriam dispositivos de imaginação.
quando o humano e o não-humano, o visível e Sou levado a imaginar, assim (pois imaginar
o invisível trocam de lugar15. Menos um espíri- não é, justamente, classi�car), um único do-
mínio cósmico de transdutividade (Simondon
14. “Vocês os chamam ‘espíritos’, mas eles são outros” 1995), um campo anímico basal dentro do
(Kopenawa & Albert 2003: 68).
15. “O enunciado de que alguma entidade não-huma- espíritos [ghosts] devem ser entendidos como re�exos
na é ‘humana’ é a marca de um discurso especí�co, de um tipo de experiência, não como uma classe de
o xamanismo”, escreve Gow (2001: 67) a respeito ‘seres’” (1961: 153).
dos Piro, enquanto Urban (1996: 222) observa que 16. O imaginário dos espíritos amazônicos se compraz
a arte xokleng de interpretação dos sonhos “consis- em construir espécies invisíveis corporalmente de-
te em identi�car uma �gura onírica como sendo um formadas, com membros invertidos, articulações
espírito disfarçado”. Recorde-se, por �m, a incisiva inexistentes, apêndices minúsculos ou gigantescos,
e decisiva observação de Lienhardt sobre os espíritos interfaces sensoriais atro�adas etc. Um bom exemplo
dos Dinka, perfeitamente aplicável à Amazônia: “os são os abaisi dos Pirahã (Gonçalves 2001: 177-ss).

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qual os vivos, os mortos, os brancos, os ani- dos humanos interessa-lhes muito menos que as
mais e demais “seres da �oresta”, os persona- diferenças entre as formas de existência social”
gens míticos antropomorfos e terionímicos (Taylor 1993: 658; cf. também Surralès 2003:
e/ou vice-versa, as imagens xamânicas xapiripë 111)18. Se assim é, então ao menos um signi�ca-
e assim por diante seriam apenas diferentes vi- do básico da oposição clássica entre Natureza e
brações ou modulações intensivas e contínuas. Cultura deve ser descartado quando considera-
Imagine-se então o “modo humano” como a mos a Amazônia e contextos similares: a nature-
freqüência fundamental deste campo anímico za não é um domínio de�nido pela animalidade
que se poderia designar globalmente de meta- em contraste com a cultura como província da
humano – já que a forma (interna e externa) humanidade. O real problema com o uso da
humana é a referência aperceptiva deste domí- noção de natureza, aqui, reside menos em que
nio, toda entidade situada em posição de sujei- ela se choca com o fato amazônico universal de
to experimentando-se sub specie humanitatis17; que muitos animais também possuem cultura,
imagine-se as espécies vivas e demais natural mas sim na a�rmação implícita de uma natureza
kinds (inclusive nossa própria espécie) como enquanto domínio uni�cado por uma não-hu-
habitando o domínio de visibilidade deste manidade genérica (Gray 1996: 114).
campo; e imagine-se os “espíritos”, ao contrá- São, com efeito, raras, se existentes, as lín-
rio, como um modo ou grau de vibração do guas amazônicas que empregam um conceito
campo anímico que se acha tanto abaixo (mi- coextensivo ao nosso “animal”19, embora não
nuscularidade granular, carência dimensional) seja nada incomum ouvirmos termos mais ou
como acima (anomalidade, excesso) dos limi- menos correspondentes a um dos sentidos corri-
tes de percepção do olho humano nu, o olho queiros de “animal” em inglês (e menos comum
não investido pela droga alucinógena. em português): animais terrestres relativamente
grandes, tipicamente mamíferos, por oposição a
Uma nota sobre a noção de “animal” “peixe”, “ave”, “inseto” e outras formas de vida.
Suspeito que a maioria das palavras indígenas
Mas suponhamos, apenas para nos manter- que foram traduzidas por “animal” nas etno-
mos dentro da venerável tradição taxonomizan- gra�as signi�cam, na verdade, algo desse tipo.
te de interpretação do pensamento selvagem, Três exemplos, entre muitos. (1) A palavra jê
que se possam tratar os conceitos de espírito, de setentrional mbru or mru, usualmente traduzi-
animal ou de humano como se foram classes ou da em inglês por “animal”, e às vezes empregada
categorias. As evidências etnográ�cas disponí- como uma sinédoque para “Natureza” (Seeger
veis sugerem que as cosmologias ameríndias não
utilizam um conceito genérico de “animal (não- 18. Ver também Monod sobre os Piaroa: “Os Piaroa não
humano)” que funcione como complemento ló- se pensam enquanto homens, como fazemos; eles se
gico de um conceito de “humano”. Os humanos pensam como uma espécie entre outras espécies. Há
são uma espécie entre muitas outras, e por vezes toda sorte de espécies de homens, como há toda sorte
de espécies animais e vegetais” (1987: 138).
as diferenças internas à “humanidade” são equi-
19. Estou ciente de que existem o que se chama de “cate-
valentes às diferenças interespecí�cas: “Os Jívaro gorias encobertas”, i.e., formas conceituais não-lexi-
vêem a humanidade como uma coleção de so- calizadas. O que estou a�rmando, entretanto, é que
ciedades naturais; a condição biológica comum na maioria dos casos amazônicos, senão em todos,
não existe noção submersa que signi�que “animal
17. Ver Viveiros de Castro (1998), e mais adiante, sobre não-humano”. Naturalmente, esta a�rmação pode
o ‘perspectivismo’ ameríndio. ser desmentida a qualquer momento.

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1981), refere-se prototipicamente aos animais tapires, os queixadas, eram todos humanos. De-
terrestres, possuindo o sentido pragmático e re- pois, esses antepassados animais se transforma-
lacional de “presa”, “caça” ou “vítima”, é apenas ram em caça. Para eles, porém, somos sempre os
nesta acepção pragmática que o termo pode ser mesmos, somos animais também; somos a caça
aplicado aos peixes, aves etc. (Seeger com.pess.). que mora em casas, ao passo que eles são os ha-
(2) A palavra wari’ (família txapakura) que se bitantes da �oresta. Mas nós, os que �camos, nós
aplica aos “animais”, karawa, possui o signi�ca- os comemos, e eles nos acham aterrorizantes, pois
do básico de “presa”, e como tal pode ser apli- temos fome de sua carne… (ibid: 75-6)20.
cada aos inimigos humanos: o par contrastivo
wari’/karawa, que na maioria dos contextos Se aquilo que se chamou “animal” signi�-
pode ser traduzido como “humano/animal”, ca sobretudo “presa”, “caça”, ou simplesmente
possui o sentido logicamente englobante de “carne”, em alguns outros casos signi�cará o
“predador/presa” e mesmo de “agente/pacien- exato oposto: espírito incomestível. Os Yawa-
te”. Os humanos (os Wari’, i.e. os wari’) podem lapíti (aruaques do Alto Xingu) chamam de
ser os karawa de predadores animais, humanos apapalutapa-mina uma variedade de animais,
ou espirituais, seres que, em sua função ou “mo- a maioria deles criaturas terrestres, tipicamente
mento” predatório são de�nidos como wari’ mamíferos — e todos eles, com uma exceção
(Vilaça 1992). (3) O terceiro caso é, justamen- (os cebídeos), considerados impróprios para
te, o da língua yanomami, onde yaro, termo que �gurarem na dieta xinguana. A parte “animal”
compõe o conceito de yaroripë, que designa os desta dieta se compõe principalmente de peixe,
“seres humanos com nomes de animais” que
foram transformados em animais e as imagens 20. Sobre os “Yanomami queixadas que viraram queixa-
animais xamânicas xapiripë, signi�ca essencial- das” etc., compare-se com o mito de origem dos ani-
mente “caça” (gibier; cf. Albert in Kopenawa & mais dos Xokleng (Urban 1996: 181-2), que vivem
Albert 2003: 73 n. 32), isto é, corpo-carne de�- mais de 3.000 quilômetros ao sul dos Yanomami:
“Entrementes, alguns daqueles que haviam virado hu-
nido por sua destinação alimentar:
manos [lit. ‘que se tornaram aparentados a nós’] foram
embora [como animais]. O queixada virou um queixa-
Os Yanomami [i.e. humanos] queixadas viraram da, e se foi. Então o queixada que havia sido humano
queixadas; os Yanomami veados viraram veados; [lit. ‘nós os viventes’] se foi etc.”. No verso nº 88 deste
os Yanomami cutias viraram cutias; os Yanomami mito, a palavra traduzida em inglês por “animal” é a
araras viraram araras. Eles assumiram a forma dos única palavra reconhecivelmente portuguesa utilizada
pelo narrador: o genérico “bicho”. À parte a fascinante
queixadas, dos veados, das cutias e das araras que
tautologia do “queixada que virou queixada”, idênti-
habitam a �oresta hoje em dia. São esses ante- ca ao mito yanomami, chamo a atenção para as duas
passados transformados que caçamos e comemos. perífrases que Urban traduz por “humano”: “tornar-se
Os animais que comemos são diferentes. Eles parente” e “nós os viventes”. A primeira parece sugerir
eram humanos e se transformaram em caça. Nós que, se virar humano é virar parente, então virar ani-
os vemos como animais, mas são Yanomami. São mal é virar não-parente — virar a�m potencial, talvez
(Viveiros de Castro 2001)? A segunda sugere que virar
simplesmente habitantes da �oresta. Somos seme-
animal é virar o contrário de nós-os-viventes — virar,
lhantes a eles, também somos caça. Nossa carne pois, algo como “eles-os-mortos”. Se “nós-os-viventes”
é idêntica, não fazemos senão trazer o nome de é a expressão para “humano”, como Urban traduz vá-
humanos. No começo do tempo, quando nossos rias vezes a fórmula, então: (1) todos os viventes são
antepassados ainda não tinham se transformados humanos em certa medida; (2) todos os viventes não-
em outros, éramos todos humanos: as araras, os humanos são, na verdade, espécies de mortos (espec-
tros, como diriam os Yanomami).

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e de algumas aves. A palavra apapalutapa-mina, como a carne que comemos) (Kopenawa & Al-
que parece estar no mesmo nível de contraste bert 2003: 81, 84-5)21.
que os termos para “peixe” e “ave”, é provavel-
mente um composto de apapalutapa, “espírito”, Perspectivas
seguido de um modi�cador que conota algo
como “membro não-prototípico da classe X” Minha referência, mais acima, aos espíritos e
ou “exemplar inferior do tipo X”, mas também animais como mergulhados em um campo aní-
“da mesma substância/natureza que X” (Vivei- mico universal de que eles seriam os modos res-
ros de Castro 2002a). Nesse caso, os animais pectivamente invisíveis e visíveis de “vibração”
terrestres e todos os mamíferos seriam “como não é a uma analogia visualista inteiramente
espíritos” ou “quase-espíritos”. Isto é bastante arbitrária. A narrativa de Kopenawa fala, com
similar a uma concepção barasana (Hugh-Jo- efeito, dos “olhos de fantasma” dos não-xamãs.
nes 1996b) segundo a qual os animais de caça A alusão aqui é aos espectros dos mortos (po-
são chamados de “peixes velhos”, onde o ter- repë) e à inversão perspectiva entre as diferen-
mo “velho” (ou “maduro”) funciona como uma tes modulações ontológicas do meta-humano
espécie de superlativo. Se os Barasana pensam – um tema crucial nas ontologias ameríndias
os animais de caça como “super-peixes”, o que (Viveiros de Castro 1998):
implica que eles são um tipo particularmente
perigoso de peixe, os Yawalapíti pensam os ani- Quando o sol sobe no céu, os xapiripë dormem.
mais de caça como “subespíritos”. E, enquan- Quando ele começa a descer, à tarde, para eles
to os povos rionegrinos são capazes de reduzir a aurora começa a surgir. Eles despertam todos,
eufemisticamente (e xamanisticamente) a caça inumeráveis, na �oresta. Nossa noite é para eles
que eles comem à condição de “peixe”, os povos o dia. Enquanto dormimos, eles se divertem,
xinguanos, que não comem carne de caça, pare- dançam. E quando falam de nós, chamam-nos
cem considerar impossível desespiritualizar estes espectros. Aparecemos aos seus olhos como fan-
animais, e assim se vêem empiricamente “redu- tasmas, pois somos semelhantes a estes. Eles [os
zidos” a comer peixe. Podemos assim estender xapiripë] nos falam assim: “vocês são estrangei-
o escopo do continuum amazônico de comesti- ros e assombrações, porque vocês morrem” (Ko-
bilidade (no que concerne às fontes de proteína penawa & Albert 2003: 68).
animal) proposto por Hugh-Jones, fazendo-o ir
dos peixes aos espíritos, e não apenas aos seres Os espíritos vêem os não-xamãs sob a forma
humanos. Os rionegrinos principiam pelo pólo de espectros; do mesmo modo, a invisibilida-
“peixe”, de�nindo a caça como uma sub-classe de usual dos espíritos aos olhos dos humanos
deste; os xinguanos principiam pelo pólo opos- (não-xamãs) é expressa dizendo-se que estes
to, fazendo dos animais “de caça” uma subclasse últimos possuem “olhos de espectro”. (Os
de “espírito”. Isso sugere que os espíritos são os Brancos, portanto, são todos espectros, e sempre
seres supremamente incomestíveis — o que faz espectros, uma vez que são supremamente in-
deles os supremos canibais do universo, e/ou, capazes de ver os espíritos.) Reciprocamente, é
como é o caso os xapiripë da narrativa yanoma- ao “morrer” sob o efeito da droga alucinógena
mi, seres que vivem de anti-alimentos (a droga yãkoana que os xamãs são capazes não apenas
alucinógena yãkoana e o tabaco) e de “anti-ex-
crementos” (alimentos doces, perfumados e 21. Na verdade, os xapiripë se alimentam de seus peidos
impolutos que não apodrecem dentro do corpo perfumados, que inalam de suas mãos postas em con-
cha (loc.cit.).

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de ver os espíritos, mas de ver como os espíritos Tudo o que precede pode ser tomado como
(op.cit.: 68, n.2, 84, n.64): ver, justamente, os signi�cando que, na Amazônia, “a dialéti-
humanos como espectros. Neste sentido, pelo ca primária é aquela entre o ver e o comer”,
menos, os xamãs dos Yanomami são mortos, como formulou elegantemente G. Mentore
isto é, espectros, ou pelo menos são humanos (1993: 29) a propósito dos Waiwai. O cru e o
que deixaram de ser completamente huma- cozido estruturalista não é radicalmente outra
nos22. Por sua vez, os xapiripë compartilham da coisa que o visível e o invisível fenomenoló-
condição espectral com os mortos, do “ponto gico: Merleau-Ponty encontra, mais uma vez,
de vista” dos humanos comuns: eles são “fan- Lévi-Strauss. As culturas ameríndias, de fato,
tasmas”23. Quanto aos animais, já vimos como manifestam um forte viés visual todo próprio,
eles nos vêem — como seus semelhantes, mas que pouco tem a ver com o tão vilipendiado
estranhos: animais ao mesmo tempo domésti- visualismo ou oculocentrismo ocidental (ver
cos (“habitantes de casas”) e canibais24. Smith 1998, Ingold 2000). A visão é freqüen-
Em suma, os espectros dos mortos estão, temente tomada como modelo da percepção e
na ordem da ontogênese, como os animais do conhecimento (Mentore 1993; Alexiades
na ordem da �logênese: ambos são humanos 1999: 239; Alexiades 2000; Surralès 2003); o
passados, e portanto ambos são imagens atuais xamanismo está carregado de conceitos visuais
de humanos. Não é de surpreender assim que, (Chaumeil 1983; Gallois 1984–85; Roe 1990;
enquanto imagens de�nidas por sua disjunção Townsley 1993; Kelly 2003: 236); em grande
relativamente a um corpo humano, os mortos parte da Amazônia – os Yanomami são um ex-
sejam atraídos pelos corpos animais; é por isso celente exemplo – drogas alucinógenas são um
que morrer é transformar-se em animal, como instrumento básico da tecnologia xamânica,
acontece tão freqüentemente na Amazônia. sendo usadas como próteses visuais. De ma-
Com efeito, se as almas dos animais são conce- neira mais geral, a distinção entre o visível e o
bidas como tendo uma forma corporal huma- invisível parece desempenhar um papel maior
na, é bastante lógico que as almas dos humanos na região: “a distinção fundamental na onto-
sejam concebidas como tendo um corpo ani- logia cashinaua [é aquela] entre visibilidade e
mal póstumo, ou como entrando em um cor- invisibilidade” (Lagrou 1998: 52; cf. também
po animal, de modo a poder ser eventualmente Kensinger 1995: 207; Gray 1996: 115, 177).
morta e comida pelos viventes25. Podemos também recordar a forte ênfase na
decoração e na exibição de superfícies corpo-
rais e artefactuais, ações estas concebidas como
22. Os Ikpeng, aliás, concebem-nos como “ex-pessoas”,
tenpano-pin (Rodgers 2002: 112). processos epistêmica e ontologicamente e�-
23. “A expressão në porepë, “em forma espectral” … é cazes (ver Gow 1999, 2001 para análises em
freqüentemente proposta como sinônimo de utupë, profundidade da visão em uma cultura ama-
a imagem-essência xamânica (Albert in Kopenawa & zônica)26.
Albert 2003: 73 n.33).
24. Albert (in Kopenawa & Albert 2003: 68 n.2) sinteti-
za: “Os espíritos vêem os humanos sob a forma de as- Vilaça 1992: 247–55 (Wari’); Turner 1995: 152
sombrações [revenants]; os animais os percebem como (Kayapó); Pollock 1985: 95 (Kulina); Gray 1996:
semelhantes que se tornaram ‘moradores de casas’… 157–78, 178 (Arakmbut); Gow 2001: ch. 5 (Piro);
os seres malé�cos os consideram como caça… e as as- Alexiades 1999: 134, 178 (Ese Eja); Weiss 1972: 169
sombrações os vêem como parentes abandonados”. (Campa); Clastres 1968 (Aché).
25. Para as relações entre mortos e animais, ver alguns 26. Entre muitos exemplos das implicações entre o exer-
exemplos em: Schwartzmann 1988: 268 (Panara); cício da visão e as determinações alimentares, des-

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O brilho dos cristais mente uma em cada duas frases traz os xapiripë
“brilhando como estrelas”, emitindo “uma lu-
Minha caracterização da ontologia dos espí- minosidade deslumbrante”, “uma luz resplan-
ritos amazônicos em registro visual não se deve decente”, “uma claridade cegante”… Quando
apenas à presença, no discurso de Kopenawa, do descem à terra, eles acenam com “folhas novas
tema do perspectivismo enquanto processo de de palmeira des�adas que brilham com um
comutação discreta de pontos de vista entre as di- amarelo intenso”’. Seus dentes “são imaculados
ferentes formas de agência que povoam o cosmos. e brilhantes como o vidro; quando [os dentes]
Outra coisa parece-me muito mais importante são demasiado pequenos, ou se faltam, [os xa-
neste discurso: o funcionamento de uma pode- piripë] os substituem por fragmentos de espe-
rosa imagística intensiva da cintilação e do re�exo lhos”. O solo sobre o qual eles dançam “parece
luminoso, por um lado, e da divisibilidade-multi- vidro, e brilha com uma luz rutilante”...
plicação inde�nida dos espíritos, por outro. A qualidade primordial da percepção dos
Primeiro, a luz. A narrativa de Kopenawa espíritos é, assim, sua intensidade luminosa.
está literalmente constelada de referências à Essa é uma experiência freqüentemente des-
luminosidade, ao brilho, às estrelas e aos es- crita na Amazônia. Os Maï, espíritos celestes
pelhos. Na versão que reproduzi no começo canibais dos Araweté, são caracterizados por
deste artigo, vemos os espíritos como “poeiras meio de um abundante vocabulário da cinti-
luminosas”, vemos seus caminhos, “tão �nos lação ígnea e do relampejar ofuscante, e sua
como teias de aranha… vemo-los brilhar, inu- decoração corporal se destaca pela cor e lumi-
meráveis, de uma claridade lunar”; vemos os nosidade intensas (Viveiros de Castro 1992).
“imensos espelhos” em que eles viajam, veícu- Os espíritos dos Hoti, os “Senhores do Fora,
los resplendentes que estão “sempre a brotar ou da Floresta”, “são detectados no mundo
de novo”. Na versão expandida da narrativa da vigília por meio do trovão e do relâmpago,
(Kopenawa & Albert 2003), a féerie luminosa que são seus gritos e o rebrilho de suas lan-
prolifera: ao longo de doze páginas, pratica- ças; às vezes eles são vistos, ou ouvidos, como
jaguares. São percebidos nos sonhos como
taquem-se os seguintes: (1) O comentário de Peter seres antropomorfos luminosos, pintados de
Gow: “Quando perguntava aos Piro por que eles gos- urucum vermelho-brilhante” (Storrie 2003:
tavam de tomar ayahuasca, eles davam duas respostas 417). Como os xapiripë yanomami, portanto,
características. Primeiro, diziam que era bom vomi- os Maï araweté e os Senhores hoti “nunca são
tar, e que a ayahuasca limpava o corpo dos resíduos da
cinzentos como os humanos; [eles têm o cor-
carne de caça que eles haviam comido. Tais resíduos
se acumulam com o tempo, causando um mal-estar e po] untado de urucum rubro e percorrido de
um cansaço generalizados, que terminavam causando desenhos ondulados, de riscos e manchas de
um desejo do morrer. [Compare-se aqui: ‘A carne da um negro reluzente...”.
caça que comemos se decompõe dentro de nós. Em Sem dúvida, boa parte dessa fenomenologia
troca, o corpo dos xapiripë não contém nenhuma car- da luz intensa pode estar associada aos efeitos
ne corrompida…’ — Kopenawa & Albert 2003: 85]
bioquímicos das drogas. Assim os Piro, por
Em seguida, as pessoas me diziam que era bom tomar
ayahuasca por que ela fazia você ver; como disse um exemplo, descrevem a experiência de ingestão
homem, ‘você pode ver tudo, tudo’” (2001: 139). de toé (Brugmansia spp.): “De repente tudo se
(2) A observação de Miguel Alexiades (1999: 194) acende, como se o sol tivesse nascido...” (Gow
segundo a qual os edosikiana, espíritos dos Ese Eja, 2001: 136). Seu etnógrafo observa que “a me-
são invisíveis a todos os humanos exceto o xamã, pois taforização da experiência alucinatória do toé
quem vê um edosikiana é devorado por ele.

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como ‘luz do dia’ [daylight] é corriqueira... – mas também “fora de casa”, “ao ar livre”, “no
outros informantes enfatizaram a ‘vermelhi- exterior” (cf. os Senhores do Fora dos Hoti)
dão’ da experiência, ‘justo como o mundo ao –, é um estado que os xamãs procuram atin-
alvorecer’, ou ‘durante o pôr do sol’” (loc.cit.). gir mediante a ingestão massiva de tabaco (que
Mas outras drogas menos violentamente alu- pode produzir um período de choque catalép-
cinógenas que o toé dos Piro e o yãkoana dos tico). Estado associado à qualidade de “leveza”
Yanomami, como o tabaco, e outras técnicas de (wewe), a translucidez é produzida por uma se-
manipulação sensorial, como o semicegamen- paração entre a alma e o corpo (por uma exte-
to deliberado por meio de máscaras (Rodgers riorização do ser, então), que retira deste último
2002), a aplicação de gotas oculares, a imer- seu “peso”(ipohi) ou sua opacidade (“a opacida-
são, a privação de sono, etc, podem estar en- de ordinária do corpo humano” – Gow 2001:
volvidas nesses processos de desterritorialização 135), permitindo assim ao xamã ver através do
do olhar. E de qualquer forma, a experiência corpo de seus pacientes, e, mais geralmente,
perceptiva da intensidade luminosa é buscada enxergar o lado invisível do mundo (Viveiros
pelo xamã, não meramente sofrida como se de Castro 1992: 131, 219-20; cf. também a
um efeito colateral de drogas tomadas em vista “luminescência xamanística” do payé tukano
de outras sensações, o que sugere fortemente em Reichel-Dolmato� 1975: 77, 109). Foi este
que essa experiência possui um valor conceitual conceito de ikuyaho que me levou à imagem
em si mesma. Naturalmente, não é preciso ser da transparência pré-cosmológica originária,
xamã para “perceber” a relação entre conheci- desenvolvida algumas páginas mais acima. A
mento e iluminação, tema provavelmente uni- outra fonte desta imagem foi uma maravilhosa
versal. Minha impressão, entretanto, é que não passagem proto-leibniziana de Plotino sobre
se trata, no caso amazônico, de uma concepção o mundo inteligível, que me pareceu possuir
da luz como distribuindo relações de visibili- mais de um ponto de contato com a narrativa
dade-cognoscibilidade em um espaço extensivo de Kopenawa – um ponto extremo que a toca,
(estou pensando aqui em algumas passagens de digamos assim:
Les mots et les choses), mas da luz como intensi-
dade pura, coração intensivo da realidade que pois tudo é transparente, nada é obscuro, nada
estabelece a distância inextensa entre os seres impenetrável; todo ser é lúcido a todo outro ser,
– sua maior ou menor capacidade mútua de em profundidade e largura; e a luz atravessa a
devir. A conexão disto com a idéia da invisibi- luz. E cada ser contém todos os seres dentro de
lidade dos espíritos me parece crucial: aquilo si, e ao mesmo tempo vê todos os seres em cada
que é normalmente invisível é também o que outro ser, de tal forma que em toda parte há
é anormalmente luminoso. A luminosidade in- tudo, e todos são tudo e cada um são todos, e
tensa dos espíritos indica o caráter super-visível in�nita é a glória. Cada ser é grande; o pequeno
destes seres, que são “invisíveis” ao olho desar- é imenso; o sol, lá, é todas as estrelas; e cada
mado pela mesma razão que a luz o é – por ser estrela é todas as estrelas, e o sol. E embora cer-
a condição do visível. tos modos do ser sejam dominantes em cada ser,
Entre os Araweté, como provavelmente todos estão espelhados em cada um. (Enéadas,
para outros povos da Amazônia, a luminosida- V, 8, 4).
de e o brilho estão associados a uma outra qua-
lidade visual, a transparência ou diafaneidade. Seria preciso apenas trocar a metafísica mo-
Ikuyaho, “translucidez” ou “transparência” lar e solar do Um neoplatônico pela metafísica

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da multiplicidade lunar, estelar e molecular in- Os espelhos e os cristais desempenham


dígena27. um papel importante em todo o vocabulário
Os “espelhos” em que abunda a narrativa de amazônico (sobretudo norte-amazônico) do
Kopenawa são precisamente o instrumento de xamanismo: pense-se nos cristais xamânicos
passagem entre as experiências da intensidade dos Tukano e de vários povos Caribe da Guia-
luminosa e da inumerabilidade dos espíritos, isto na, nas “caixas de cristal dos deuses” dos Pia-
é, à sua in�nitude quantitativa. Como se foram roa, nos espelhos warua que recobrem o xamã
imagens da imagem, os espelhos se multiplicam Wayãpi; pense-se, mais geralmente, na simetria
na narrativa, ao mesmo tempo signo da presença dual especular interna característica da arte e da
e meio de deslocamento dos xapiripë: estética alucinatória da região (ver Roe 1982,
1990; Overing 1985; Gallois 1996)28.
Os xapiripë descem também até nós sobre es- Mas os espelhos dos espíritos – que espécie
pelhos, que eles mantêm acima do solo, sem de imagem re�etiriam eles? É interessante notar
jamais tocar na terra. Estes espelhos provêm de que virtualmente todos os exemplos dados nes-
sua morada no peito do céu. Assim, na habitação ta seção – com a possível exceção das observa-
dos espíritos de um xamã, esses espelhos estão ções de P. Roe sobre a simetria “especular” da
postos, encostados, pendurados, empilhados, ar- arte amazônica, as quais exigem uma discussão
rumados lado a lado. Quando a casa é vasta, os impossível de se fazer aqui – não enfatizam a
espelhos são grandes, e, quando o número de es- propriedade icônica que têm os espelhos de
píritos aumenta, seus espelhos se empilham aos reproduzir imagens. O que os exemplos subli-
poucos uns por cima dos outros. Mas os xapiripë nham é, antes, a propriedade que têm os es-
não se misturam entre si. Os espelhos dos mes- pelhos de ofuscar, refulgir e resplandecer. Os
mos espíritos se sucedem uns após os outros, nos espelhos sobrenaturais amazônicos não são
mesmos esteios da casa. Sucedem-se assim os es- dispositivos representacionais extensivos, espe-
pelhos dos espíritos guerreiros, dos espíritos aves lhos re�etores ou “re�exionantes”, mas cristais
de rapina e dos espíritos cigarras; os espelhos dos intensivos, instrumentos multiplicadores de
espíritos trovões, e dos espíritos relâmpagos, dos uma experiência luminosa pura, fragmentos re-
espíritos tempestades. Há tantos espelhos quan- lampejantes. Na verdade, a palavra yanomami
to espíritos; eles são verdadeiramente inumerá- que Bruce Albert traduziu por “espelho” não se
veis, empilhados a se perder de vista. No sopé da aplica aos nossos espelhos iconofóricos. Ao co-
Montanha do Vento, onde está minha casa, há mentar uma versão anterior do presente artigo,
grandes espelhos [dos xapiripë] na �oresta. Nós,
nós não fazemos mais que viver no meio de seus 28. Ver o mito shipibo analisado por Roe (1988; 120; 1990:
espelhos… […] [Os xamãs dos Yanomami] sa- 139-40 n. 12): os espíritos chaiconi (Incas-cunhados)
bem que nossa �oresta pertence aos xapiripë, e “‘viraram o espelho do outro lado’ e assim obscurece-
que ela é feita de seus espelhos [ibid: 78-9]. ram a habilidade humana primordial de ver os animais
de caça e os peixes que procuravam �sgar nas águas
cristalinas do lago da origem dos tempos. Agora que o
27. O leitor terá compreendido que o advérbio “apenas” espelho está virado com sua face cega para os humanos,
é aqui uma litotes. Para avaliarmos o papel decisivo eles não podem ver os animais que caçam… exceto se
da Lua e das estrelas na cosmologia yanomami e, mais estes se acham perto da superfície… Como o xamã, por
geralmente, na mitologia ameríndia, é preciso voltar meio de suas visões alucinatórias, pode voltar ao início
a certas páginas luminosas (se me permitem) de Lévi- dos tempos, ele será capaz de ‘desvirar o espelho’ e ver
Strauss em L’Origine des manières de table, tema que claramente. Dessa forma, os xamãs estão associados aos
conto desenvolver em outra ocasião. espelhos e os usam como ornamento…”.

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onde eu explorava a suposta propriedade dos ritos são assim tão numerosos porque eles são a
espelhos yanomami de re�etir imagens, Albert imagem dos animais da �oresta…” Na versão
generosamente me comunicou a seguinte ex- ampliada, naturalmente, o número de vezes em
plicação adicional, e crucial, que Davi Kopena- que eles são ditos “inumeráveis” é proporcio-
wa lhe deu em resposta às suas questões sobre nalmente maior. O narrador se compraz em
os espelhos xamânico-espirituais. A passagem enumerar esta proliferação inumerável:
abaixo reescreve o que se lê a certa altura de
“Les ancêtres animaux”: Suas imagens são magní�cas. Não pensem que
só haja alguns deles. Os xapiripë são verdadei-
Os xapiripë não se deslocam jamais sobre a terra. ramente muito numerosos. Eles não terminam
Eles a acham demasiado suja e cheia de excremen- nunca de vir até nós, sem número e sem �m.
tos. O solo sobre o qual dançam parece com vi- Eles são as imagens dos animais que habitam a
dro, e brilha de uma luz ofuscante. Ele é formado �oresta, com todos os seus �lhotes, que descem
daquilo que nossos antigos chamam de mire kopë uns atrás dos outros. Não são eles inumeráveis,
ou mire xipë. Estes são os objetos dos xapiripë, todos os japus, as araras vermelhas e amarelas,
magní�cos e rutilantes, transparentes mas muito os tucanos, os mutuns, os jacamins, os jacus, os
sólidos. Vocês diriam “espelhos”. Mas não são es- periquitos, os falcões, os morcegos, os urubus…
pelhos de se olhar, são espelhos que brilham29. E aí os jabutis, os tatus, os tapires, os veados, as
jaguatiricas, os jaguares, as cutias, os queixadas
Luz, não imagens. Os xapiripë são de fato e os macacos-aranha, os guaribas, os macacos-
imagens (utupë), mas seus espelhos não os prego, os cairaras, as preguiças… E ainda todos
constituem como tal – estão do lado da pura os peixes dos rios, os poraquês, as piranhas, os
luz. Cristais. bagres kurito, as arraias e todos os peixinhos?
(Kopenawa & Albert 2003: 72).
Tamanho e intensidade
Minúsculos, esses espíritos nem por isso
Além da luminosidade ofuscante, os xapiri- deixam de manifestar uma intensa vitalidade
pë, enquanto perceptos, mostram duas outras (cf. os animais descendo com todos os seus �-
características, a pequenez e a inumerabilidade. lhotes) e uma superabundância de ser: “quan-
No discurso acima transcrito, já vimos que “eles do eu era mais moço, eu me perguntava se os
parecem seres humanos mas são tão minúsculos xapiripë podiam morrer como os humanos.
quanto partículas de poeira cintilantes […] mi- Mas hoje sei que, mesmo sendo minúsculos,
lhares deles chegam para dançar juntos… seus eles são poderosos e imortais” (ibid: 81)30. Os
caminhos parecem teias de aranha… Os espí- espíritos são, literalmente, intensos: o su�xo –ri
que geralmente acompanha o nome dos xapi-
29. Nota de Bruce Albert (com. pess.): “De fato, os es- ripë “denota a extrema intensidade ou a quali-
pelhos industriais são designados pelos Yanomami dade de não-humano/invisível” (Albert in ibid:
orientais pelo termo mirena (mire para os Yanomami
ocidentais), que se distingue, ainda que formado a
partir da mesma raiz (mire- = ?), do termo que de- 30. Essas idéias yanomami sobre a inumerabilidade e
nota os ‘espelhos’ dos espíritos, mirekopë ou mirexipë. imortalidade dos espíritos animais talvez possam
Aliás, mirexipë designa igualmente os bancos de areia ser relacionadas o tema da regeneração in�nita das
misturada de mica que brilham nas águas claras dos espécies, objeto de uma importante discussão de R.
riachos das terras altas da região yanomami. E, por Brightman em suas etnogra�a dos Cree do Canadá
�m, xi signi�ca ‘luz, radiância, emanação’”. (1993: ch. 9).

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73 n.30). Eis porque por exemplo, os antepas- molecular última das formas animais molares
sados animais mitológicos e suas imagens xa- que vemos na �oresta. Sua pequenez é função
mânicas atuais são chamadas yaroripë, ou seja, de sua in�nitude e não o contrário. Da mesma
yaro (caça) + ri- (excessivo, sobrenatural) + pë forma, o caráter geralmente gigantesco dos se-
(pluralizador). Intensidade, exemplaridade, al- res-kumã dos Yawalapíti não os faz menos invi-
teridade em relação ao meramente existente: síveis aos olhos desarmados – e esse caráter os
determina como qualitativamente múltiplos,
[O] macaco guariba iro que �echamos nas árvo- visto que um ser-kumã é ao mesmo tempo o
res é outro que sua imagem, aquela que o xamã arquétipo e um monstro, um modelo e seu ex-
faz descer como Irori, o espírito-guariba. Essas cesso, a forma pura e uma reverberação híbrida
imagens utupë da caça são verdadeiramente mui- (entre humano e animal, por exemplo), a be-
to belas. […] Comparadas a elas, os animais da leza e a ferocidade em uma só �gura. Assim, a
�oresta são feios. Eles existem, apenas. Eles não minuscularidade e numerosidade dos xapiripë
fazem senão imitar suas próprias imagens. Eles marca sua natureza de bando, enxame, mati-
são apenas o alimento dos humanos. (ibid: 73). lha e multidão, enquanto o gigantismo dos se-
res-kumã aponta para a �gura do “anomal”, o
O intensi�cador-espiritualizador –ri parece representante excepcional da espécie, o mega-
assim funcionar exatamente como o modi�ca- indivíduo que indica a fronteira de uma multi-
dor –kumã nas línguas aruaque do Alto Xingu, plicidade animal (Deleuze & Guattari 1980)31.
que os Yawalapíti me traduziram por “gigan- Em suma, a pequenez dos xapiripë e a nature-
tesco, feroz, outro, sobrenatural, estranho”, za frequentemente agigantada dos espíritos de
e que interpretei (Viveiros de Castro 2002a) outras culturas (os Mestres dos Animais, por
como um dos operadores conceituais básicos exemplo) são como a frente e o verso de uma
de sua cultura, o operador de alteração-espiri- mesma idéia, os dois esquematismos extensivos
tualização ou “exponenciação ontológica”. In- complementares da multiplicidade intensiva e
teressantemente, a imagística dimensional dos da intensidade “excessiva” dos espíritos32.
seres-kumã faz deles versões maiores, por vezes
gigantescas e monstruosas, dos seres munda- 31. A determinação conceitual dos espíritos como multipli-
nos: um macaco-kumã yawalapíti não é mi- cidades possui implicações sociológicas fascinantes, que
núsculo como o Irori yanomami. Mas estamos não posso elaborar aqui. Contento-me em citar o que
diante, penso, do mesmo macaco, ou antes, do diz P. Gow (2001: 148) sobre a natureza essencialmente
coletiva das interações com os espíritos: “Quando um
mesmo outro do macaco, nos Yawalapíti como
xamã canta a canção de um kayigawlu [a visão xamâ-
nos Yanomami. A minuscularidade dos espíri- nica de um “ser poderoso” i.e. um espírito] ele se torna
tos xapiripë não é obstáculo a sua natureza “ex- este kayigawlu. Mas… a condicão dos seres poderosos
cessiva” ou “extremamente intensa”, como diz é essencialmente múltipla… [A] imitação das canções
Albert: pelo contrário, parece-me que ela é um dos seres poderosos é menos uma forma de possessão
signo decisivo da multiplicidade designada pelo que o ingresso em uma outra socialidade. […] O Outro
incorpora o xamã como parte de sua multiplicidade...”.
conceito de qualquer espírito “em particular”:
32. A oscilação complexa entre as idéias de minuscularida-
“[Q]uando se diz o nome de um xapiripë, não de e de monstruosidade como esquematismos alterna-
é um só espírito que se evoca, é uma multidão tivos de uma multiplicidade intensiva foi muito bem
de espíritos semelhantes” (ibid: 73). Os espí- caracterizada por Rodgers a propósito dos Ikpeng: “O
ritos são quantitativamente múltiplos, in�ni- potencial de expandir os pontos mínimos e obscuros
tamente numerosos; eles formam a estrutura do mundo é um traço distintivo do pensamento cos-
mológico ikpeng — seres pequenos (tikap) como os

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À guisa de conclusão, gostaria apenas de ob- er discussion on the cosmology and shamanism in
servar que o problema do in�nito nas cosmo- the Amazon region. In this discussion the amazonic
logias ameríndias parece-me estar em aberto. concept of “spirits” do not de�ne a speci�c class
Acostumamo-nos a contrastar o “mundo fecha- or type of being, but rather a disjunctive synthe-
do” dos assim chamados primitivos ao “univer- sis between the human and the non-human. �e
so in�nito” dos assim chamados modernos, e a theme of the characteristic intense light associated
atribuir aos primeiros, representados aqui pelos with spirits is interpreted as a non-representative
povos nativos das Américas, uma �loso�a fun- emphasis in the view of the perception and knowl-
damentalmente �nitista, combinatória e discre- edge model in indigenous cultures in the Ameri-
tizante; uma �loso�a que aborreceria o contínuo can continent. Kopenawa states that the Yanomami
como se visse nele o terrível labirinto que con- shamans know that their forest belongs to xapiripë
duz ao império do não-senso. Re�ro-me aqui, and it is formed by “mirrors”, that is, bright crystals.
o leitor terá compreendido, ao logos chamado �erefore the crystal forest does not re�ect or pro-
“estruturalista”, ou melhor, à vulgata homônima duces images, but rather glares, shines and radiates.
que nos instruiu a conceber todo movimento keywords Yanomami. Ontology. Spir-
de diferenciação como pura síntese limitativa its. Cosmology. Shamanism. Light.
de especiação e a entender o real como simples
manifestação combinatória do possível. Mas os Referências bibliográ�cas
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produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio
os seus.
& Alvim.

autor Eduardo Viveiros de Castro


Professor de Antropologia / MN-UFRJ

Recebido em 04/07/2006
Aceito para publicação em 08/10/2006

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 319-338, 2006

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