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1ª Semana

da Crítica
Cinematográfica
A diferença entre analisar e criticar um filme

Arthur Tuoto
COMO JULGAR UM FILME?
Grandes dúvidas pairam sobre a cabeça de quem quer se tornar
um crítico ou ter uma relação mais profunda com o cinema: como
criticar um filme? Que critérios devo usar?
Um filme bom é um filme que eu simplesmente gostei ou é aquele
que segue convenções? 
Quando critico um filme, preciso entender o que o diretor quis
dizer ou posso dar a minha visão da obra?
Nessa nossa Semana da Crítica Cinematográfica iremos refletir
sobre essas e outras questões.
NÃO SEJA UM MERO ANALISTA DE FILMES
Muito do que se vê pela internet não são críticas. São meras
descrições de filmes. O indivíduo conta o que acontece na história,
descreve alguns componentes mais técnicos (fotografia,
montagem, etc) e dá a sua opinião.
Esses textos são análises. Não articulam uma ideia sobre o filme,
não propõem um pensamento sobre a forma específica que o
diretor se relaciona com a linguagem.
Nesses casos, o autor tem uma relação passiva com a obra
assistida. Faz comentários isolados sobre elementos do filme
segundo uma cartilha.
Ele crê que para a fotografia de um filme ser de qualidade, têm que
ser de um jeito. Que as atuações devem ser de tal maneira. Que um
roteiro bom não pode ter furos. A pessoa assiste a um filme, faz
meramente um relatório a partir de um modelo e dá uma nota.
Esse relatório pode até estar, em algum sentido, correto, pode até
conter uma análise técnica eficiente da obra. Mas o caso é que o
cinema é muito mais profundo do que isso.
A COSMOLOGIA DA OBRA
Quando um filme nos causa um impacto, muitas vezes nem mesmo
sabemos explicar o que gerou isso. A arte propõe experiências, não
obras que seguem uma cartilha.
Você não gosta de um filme somente porque ele possui uma
fotografia bonita. Os filmes do Dogma 95 foram gravados com
câmeras amadoras e ainda assim nos impressionam.
Você não gosta de um filme somente porque ele possui atuações
realistas ou naturais. Pedro Almodóvar apresenta atuações
caricatas e ultra melodramáticas em seus filmes. Atuações que se
integram muito bem ao universo que ele propõe.
Você não gosta de um filme somente porque ele não possui furos
de roteiro. Em vários movimentos modernos do cinema, como a
Nouvelle Vague Francesa, muitas filmes foram filmados sem
roteiros, de forma improvisada, deixando, de certa forma, vários
furos, mas são filmes que nos prendem pela narrativa. 
No final, o que gera o impacto de um filme é a cosmologia da obra: a
forma específica como essa obra lida com a linguagem do cinema. A
cosmologia é o que define os princípios do filme. Um bom filme
segue regras próprias e propõe uma visão particular sobre a
linguagem do cinema, propõe uma sensibilidade própria em relação
a essa linguagem.
O QUE DEFINE UM GRANDE DIRETOR?
Se para fazer um bom filme os diretores tivessem apenas que
seguir uma cartilha, eles podiam simplesmente decorar essas
“regras” do cinema.
O que define um grande diretor não é aquele que melhor segue
essas “regras” do cinema, mas sim a abordagem específica do
cineasta com a linguagem.
Como cada filme é um universo de regras próprias, não podemos
utilizar, por exemplo, uma mesma definição de boa atuação para
criticar todos os filmes do mundo. O que se deve entender é a
cosmologia do filme em questão, a proposta do diretor. 
O cineasta Glauber Rocha utiliza de atuações exageradas, cria
personagens não-realistas em seus filmes. Glauber parte um
contexto social e realista, mas aborda isso através de uma carga
simbólica e alegórica. Ele define esse princípio para o seu próprio
cinema.
2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) não tem um final fechado. O
filme não apresenta respostas para as perguntas que faz. Isso não
necessariamente denota um roteiro ruim. Stanley Kubrick e Arthur
C. Clarke seguem um princípio próprio, estão interessados em
propor uma experiência audiovisual e intelectual mais livre
DEVEMOS REJEITAR UMA CARTILHA UNIVERSAL GENÉRICA
Se o crítico analisa um filme através de uma cartilha, fica só na
superfície da experiência. Ele não compreende, exatamente, a
relação específica daquele filme com a linguagem do cinema. Não
existe uma regra que diga que determinado elemento deve ser
utilizado de certa forma.
Brown Bunny (2003), de Vincent Gallo, é um filme mal fotografado,
com cenas mal iluminadas, entretanto tudo isso se adequa muito
bem à sensação de mal estar, de dissociação do personagem
dentro da história.
David Lynch filmou Império dos Sonhos (2007) com uma câmera
digital de baixa resolução. A fotografia é granulada, tem
enquadramentos estranhos, cenas escuras. O diretor ignorou
qualquer cartilha técnica.
O roteiro do filme de Lynch foi escrito enquanto o mesmo era
gravado, mas isso é perfeitamente apropriado à proposta da obra.
A narrativa lida com vários regimes de realidade - sonho, realidade,
mundo do cinema, um filme dentro do filme. O espectador se perde
com a personagem nos regimes que Lynch apresenta no filme.
Mesmo que o roteiro não tenha uma evolução dramática, ele tem
uma evolução sensorial de princípios próprios.
O DOMÍNIO DA TÉCNICA
Diretores como David Lynch não ignoram a técnica. Eles a dominam,
mas não a usam de forma convencional.
O conhecimento sobre a linguagem apresenta ferramentas ao
cineasta, que vai usá-las da maneira que quiser. É importante
aprender a possibilidade de cada ferramenta, mas o diretor constrói
o que quiser com elas. Isso disponibiliza um arsenal que pode ser
traduzido em obras mais convencionais ou menos convencionais.
Obras menos convencionais não são obrigatoriamente melhores
que as mais convencionais. É costumeiro ouvir que só filmes
europeus de arte são bons e que todo filme de Hollywood é ruim.
Isso não é verdade. Um bom filme é aquele que define um princípio
próprio com a linguagem, seja ele convencional ou não.
Parasita (2019) é um filme convencional em termos técnicos,
contudo Bong Joon Ho articula um princípio próprio ao lidar com as
convenções. Ela mistura as convenções do cinema de forma muito
específica.
Os filmes do Glauber Rocha, do Dogma 95, 2001: Uma Odisseia no
Espaço, Brown Bunny, Império dos Sonhos, têm princípios próprios
e por isso geram um impacto muito grande no espectador.
Deve-se esquecer a ideia de um padrão de qualidade comum e
pensar na obra como um mundo de princípios próprios, articulado
pela unidade do diretor com a linguagem do filme. Um bom crítico
articula a sua ideia sobre o filme a partir desse pensamento.
A CRÍTICA É SUBJETIVA
O bom crítico tenta perceber como o filme o impactou, e a partir do
seu conhecimento sobre a linguagem do cinema, entende de que
forma específica o diretor usou a linguagem para causar esse
impacto.
A crítica é sim subjetiva. Não existe uma grande e única verdade
sobre um filme. O crítico assimila sua experiência e, a partir do seu
conhecimento, articula uma idéia sobre a obra. Dá a sua
perspectiva da obra. Sustenta essa ideia com bons argumentos.

O QUE É UMA CRÍTICA RUIM?


A crítica ruim não é aquela que “não entendeu o filme”. Um filme não
tem uma grande e única verdade. A crítica ruim é aquela que não
propõe uma ideia sobre a obra, apenas a analisa, ou não sustenta
bem sua ideia sobre a obra.

CONCLUSÃO
A análise se define como uma relação passiva com a obra. O crítico,
pelo contrário, vive a experiência que a obra propõe, tem um olhar
ativo, constrói uma ideia sobre essa experiência.
O papel do crítico é defender uma ideia, e não explicar um filme. Ele
propõe sua interpretação da obra, mas isso não quer dizer que essa
seja a verdade final sobre o filme. A grande diferença entre analisar
e criticar é que uma boa crítica apresenta uma ideia sobre um filme.

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