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O que o coronavírus nos ensina sobre o consumismo?

O sociólogo Rezmig Keucheyan autor do livro Necessidades


artificiais, como sair do consumismo (LA DÉCOUVERTE, 2019)
descreve a questão exata do que acontece em tempos de coronavírus.
Condenados a nos afastar do comércio do centro das cidades, dos
shoppings, das lojas de produtos de consumo, enfim o coronavírus
colocou a questão “Do que realmente precisamos?”, tema do livro de
Keucheyan. Dentro de nossas casas começamos a observar em
detalhe a noite estrelada de nossas sacadas e vemos muitas notícias de
que o isolamento promove a redução da poluição, melhorias do meio
ambiente e cenas de animais ocupando as ruas das metrópoles vazias a
exaustão nas redes sociais. Keucheyan afirma não víamos isso porque
produzimos e consumimos demais: o capitalismo é produtivista e
consumista, cria necessidades artificiais que são aquelas que colocam
primeiros produtos no mercado para exigir que os consumamos. Saiu
o novo Iphone? Eu tenho de ter, e por aí a fora. O coronavírus
antecipou a questão política chave que é combater o capitalismo
fazendo em seu próprio terreno, reduzindo o consumo pela limitação
física do cidadão de procurar o consumo. Você está preso em casa e
não tem como consumir indefinidamente.
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O coronavírus mostra que a maioria de nossas necessidades são


artificiais, que podemos viver com bem menos. Keucheyan afirma que
“necessidades artificiais” são as que, por um lado, não são
ecologicamente sustentáveis, o que gera uma superexploração de
recursos naturais, fluxos de energia e estoques de matérias-primas; por
outro lado, são necessidades que o indivíduo ou a comunidade sente
que, de uma maneira ou de outra, prejudicam a subjetividade, não dão
origem a formas de satisfação duradoura. O coronavírus aliena nossas
necessidades, reduz as obsessões com as novidades mais recentes: o
comércio entrou em crise, é verdade, e são inúmeros os apelos das
entidades de representantes do universo empresarial para o retorno ao
consumo. A internet ainda tenta ajudar, mas nem todos estão
preparados para a transformação do e-commerce. A pausa é uma
oportunidade de descobrirmos a dimensão artificial de nossas
necessidades.

Um dos setores que mais sente os efeitos da pandemia é o setor


turístico. Ele é artificial? Depende. Para Keucheyan, viajar não é uma
necessidade vital, mas muitos a consideram uma necessidade
essencial. É uma construção cultural, não viajamos para todas as
sociedades, não é prejudicial, exceto quando ao viajar em aviões de
baixo custo, como hoje, aumentamos a produção de gases do efeito
estufa que se tornam insustentáveis para o meio ambiente. Diz
Keucheyan:

“a tese que eu defendo é a de André Gorz (filósofo que definiu o


ecossocialismo na França) é que, além das próprias necessidades
vitais - respirar, comer, dormir, proteger-se de bebida gelada - uma
parte significativa de nossas necessidades é histórica e
culturalmente construída. E se elas são construídas, elas evoluem e
também são objeto de deliberação política. Qual necessidade é
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negociável e qual outra não é? O que é político e cultural ou da


ordem da biologia? O interessante é que tudo está confuso e que as
coisas não estão tão claras para a pessoa que sente as necessidades”
(KEUCHEYAN, 2020).

O coronavírus nos obriga a fazer escolhas. Ficar em casa e não se


arriscar ou ir ao shopping fazer compras. É aí que, frente ao limite,
descobrimos que podemos negociar com nossos desejos, e que, ao
contrário do que afirma Keucheyan, fica claro o que são necessidades
reais e necessidades artificiais para cada pessoa. Seu argumento é de
que necessidades históricas continuam valendo:

“se a necessidade é histórica, é política: significa que podemos


regular, desregular, re-regular se necessário, tudo em nome da
sustentabilidade ecológica e do fato de que certas opções são
preferíveis a outras” (KEUCHEYAN, 2020).

Se a exposição em uma loja comercial implica em riscos, posso


evitar visitá-la. A questão é saber que há lugares de risco que posso
evitar e a dimensão política é a de decidir sobre minhas necessidades:
como uso os recursos limitados por uma pandemia para que minhas
necessidades sejam atendidas. Keucheyan tem razão em apontar o
consumo compulsivo como uma patologia de nossa época.

“Uma das soluções recomendadas pelos psiquiatras para tentar, se


não curar, pelo menos contrabalançar comportamentos
consumistas compulsivos, é socializar o consumo. Para garantir que
indivíduos sujeitos ao uso compulsivo possam, por exemplo, fazer
compras com alguém ou várias outras pessoas, ou que essas
pessoas possam "objetivar" os sentimentos que os animam quando
consomem compulsivamente, mantendo um diário de consumo.
Para curá-lo, portanto, o consumo deve ser objetivado e
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socializado. Em resumo, é somente através do coletivo, através da


interação com os outros, que conseguimos nos recompor e garantir
que o indivíduo não esteja mais sozinho com os bens”.
KEUCHEYAN, 2020).

De uma certa forma, não é o que descobrimos com o coronavírus?


Socializamos o consumo quando moradores de um prédio
encomendam ao mesmo vendedor de produtos orgânicos os produtos
de que necessitam; fazemos isso na pandemia pois torna os produtos
mais baratos e acessíveis para todos, mas estamos no fundo, agindo
como sugere Keucheyan, socializando nosso consumo. Íamos ao
supermercado de maneira consumista, enchendo nossos carrinhos de
coisas que não precisamos - quem precisa de Coca-Cola, afinal?
Fazendo compras com os moradores do prédio, objetivamos nossos
sentimentos - ok, não chegamos a manter um diário de nosso
consumo como o autor propõe, mas fazemos das compras objeto de
uma notável interação, o que significa que, na pandemia, através do
coletivo curamos nossas obsessões consumistas.

É claro que não são todos que optam pelas compras em grupos,
pelas ações não prejudiciais ao meio ambiente, e muitos ainda usam
aplicativos de grandes redes de supermercado que vendem os mesmos
produtos prejudiciais. Mas um passo é dado em relação a isso, é
oferecida uma opção no modo de fazer e organizar as compras - ok
não vai exagerar, ninguém se tornará vegano com a pandemia - o que
significa que novos hábitos menos alienantes estão em construção. Em
uma escala reduzida, redescobrir a tele-entrega do armazém da
esquina talvez seja o prenúncio de uma revolução do consumo, que
pode introduzir a compra coletiva “o consumismo deve ser socializado
para combatê-lo. A crise ambiental é tão grave que você precisa ser
criativo”, diz Keucheyan (2020). A liberdade nunca depende do
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consumo, ainda que a propaganda e o mundo ao nosso redor é


organizado nesse sentido. Diz Keucheyan:

“essa ideia, segundo a qual existo pelos bens que possuo, na escala
da história, é muito recente. Portanto, também podemos imaginar
que no futuro as coisas possam evoluir de maneira diferente.
Nossas sociedades estão cheias de regulamentos, não há razão para
que o consumo também não deva ser regulamentado”.
(KEUCHEYAN: 2020)

Existem protocolos interessantes nesse sentido no descarte do lixo,


e movimentos sociais ecológicos já pedem que a duração dos produtos
seja aumentada para evitar jogar fora itens e comprar novos. Os
produtos são descartáveis demais, mais uma razão que nos impele a ir
comprar um novo. Com a pandemia, para quê me descartar do
celular velho, dos produtos que ainda funcionam? Aprendemos que
podemos diminuir nossa circulação, nossa ida ao consumo, aproveitar
mais as mercadorias, reutilizar nossas roupas, o que é eficaz do ponto
de vista de uma nova posição com relação ao consumo. Enfrentamos
o mecanismo produtivista do capitalismo que tenta impor a renovação
permanente e rápida das coisas, descobrimos sua duração ou somos
obrigados a usar por mais tempo nossos produtos:

“historicamente, sempre houve movimentos sociais, sindicais e de


consumidores que procuraram diminuir esse índice de renovação
de mercadorias. Portanto, existem lutas sociais em torno da vida
útil dos bens”. (KEUCHEYAN: 2020).

Não é exatamente essa a alavanca que vai se impondo com a


pandemia, especialmente no contexto em que ir as compras é uma
dificuldade? O autor define a importância deste gesto: “Ao
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desacelerar a taxa de renovação de mercadorias, diminuímos a


pressão do capitalismo sobre os ecossistemas”(KEYCHUEN: 2020).

A pandemia pressiona o capitalismo: com menos bens


consumidos, menos recursos naturais são retirados do meio ambiente.
Fim da renovação frenética de mercadorias que a publicidade
incentiva, saímos da escravidão de dívidas enunciadas por Zygmunt
Bauman, e quem sabe não surjam associações de novos
consumidores, como no século XIX foram as criadas para defender o
direito de consumo, mas agora, reivindicando o direito de não
consumo, permitindo uma politização pelo não consumo, como no
passado foi o contrário. Há, entretanto, um último desafio a
enfrentar: como evitar o consumo quando a centralidade logística da
Amazon (poderia ser qualquer grande site de vendas ok?) é capaz de
atender a todos com tudo, sem necessidade de sair de casa? Isso exige
outro movimento, não apenas de conscientização com relação ao
hiperconsumo, mas também da solidariedade a uma fração de
assalariados que experimentam uma exploração sem precedentes.
Não comprar das grandes redes, ou só comprar quando elas derem
condições dignas de trabalho a seus trabalhadores e garantirem a
redução de danos de seus produtos. Num projeto de redução de
consumo geral, o programa político envolve questões de produção de
bens em geral e de direitos em especial. A transformação da produção
está incluída, pois o capitalismo reage desta forma a nossa exclusão
voluntária, facilitando e tornando sedutor o consumo. Como não
adquirir, por um preço módico, melhor que o do shopping, um bem
de consumo?

O autor coloca o ponto essencial de que, seja qual for nossa ação,
se trata de ”recuperar o controle político sobre a economia. E esse
controle político sobre os mecanismos de mercado não ficará isento
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de conflitos” (KEUCHEYAN: 2020). O mundo dos negócios e o


campo social são um espaço de lutas, a lógica do lucro é uma lógica
baseada no par produtivismo/consumismo. Keucheyan afirma que
perdemos o gosto pela luta social pois sofremos muitas derrotas e o
curioso é que é necessário ficar isolado, paralisado, para poder
encontrar um novo objetivo de luta. Diz Keucheyan

“a repolitização do mundo econômico é uma condição necessária


para encontrar soluções para a crise ambiental. Isso supõe uma
reconexão entre os movimentos ecológicos e as organizações
resultantes do movimento operário: é combatendo o capitalismo
no campo da economia, em seu próprio terreno, que as soluções
serão encontradas”. (KEUCHEYAN: 2020)

Estamos há cerca de oitenta dias em casa e por isso terminamos


por pensar a longo prazo, refletimos sobre a lógica cega do lucro à
curto prazo quando vemos a energia com que capitalistas querem
voltar ao trabalho e ao...lucro! ”o curto prazo decorre do capitalismo,
em particular em sua atual forma financeirizada“. (KEUCHEYAN:
2020) Com a pandemia, somos obrigados a pensar em termos de
médio e longo prazo, parece que entramos em colapso de consumo,
temos ansiedade, mas isso...passa!.

A pandemia produz um espaço importante para novas criações e


com elas, novas experiências de consumo. Como o movimento
trabalhista no século XIX que resulta na sociedade moderna, o
contexto da pandemia está formando uma nova sociedade. Talvez
porque reconhecemos os limites do consumismo de cada dia,
desafiamos o capital em busca de soluções alternativas, buscamos a
valorização da dignidade do trabalho e isso é novo. Mesmo que o
hábito de consumir em conjunto não retorne, haverá modificação de
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nossos comportamentos. Haverá dias que simplesmente você dirá


que não irá ao shopping fazer compras porque não precisa. “Há um
ligeiro tremor de otimismo!”, finaliza Keucheyan.

As Marchas da Morte na história

O ator de marchar, de reunir um contingente de pessoas e colocar-


se a caminhar, tem longa história. Durante a Segunda Guerra
Mundial, cujo final este ano completou 75 anos, ao menos duas são
registradas. A primeira, a Marcha da Morte de Bataan, é o nome
como é conhecida um dos maiores crimes de guerra da Segunda
Guerra Mundial, ocorrido no início da Guerra do Pacífico contra
prisioneiros norte-americanos e filipinos derrotados pelas forças
japonesas após a Batalha de Bataan, parte da Batalha das Filipinas,
ocorrida entre dezembro de 1941 e abril de 1942. Esperando
transportar 25 mil prisioneiros, mas tendo de transportar 75 mil, três
vezes sua estimativa, a marcha dos japoneses é um completo desastre,
com milhares de mortos. A segunda Marcha da Morte é o fato
histórico ocorrido na Alemanha ao fim da Segunda Guerra Mundial
com o deslocamento de milhões de judeus entre vários campos de
concentração nazis, transferidos da concentração em que estão no
caminho das tropas inimigas para outro dentro da Alemanha ou locais
com maior resistência nazista. Colocados a marchar de um campo
para outro, são a encarnação de um governo cujo ideal era matar.

As marchas da morte sempre agregam um valor simbólico a sua


imagem ao longo da história. Tornam-se expressão cruel de vítimas
inocentes, não raro suas imagens são usadas nos tribunais e entram na
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história como testemunho. Não é o fato de que são menores, ou de


fato que não sejam pessoas reais que morram no contexto da marcha,
que diminuem seu significado. Marchas da Morte podem ocorrer fora
do contexto de guerra e por essa razão, não podemos diminuir sua
força. Quando os empresários saem em carreata de norte a sul do
país, outra forma de marchar, pedindo no contexto da pandemia a
volta ao trabalho, também são chamadas de “marchas” ou “carreatas
da morte”: tratam-se da defesa de interesses empresariais que colocam
os trabalhadores em risco de exposição a um vírus mortal. No último
dia sete de maio, quando o Presidente Jair Bolsonaro saiu em marcha
com uma centena de empresários para pedir ao STF apoio para o
retorno ao trabalho, da mesma forma é uma marcha da morte porque
tem como consequência a exposição mortal. Marchas, reais ou
simbólicas, representam uma página importante na história das vítimas
de guerra. Não há guerra sem tomadas de posição, enfrentamentos e
vítimas inocentes. E estamos em guerra contra o vírus.

Imagem de Silviu Costin Iancu por Pixabay


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Ao colocar em marcha seus atores, empresários, capitalistas,


grandes lideranças, as marchas que pedem a volta ao trabalho
atualizam as marchas da morte presentes na história para o contexto
da pandemia na época do neoliberalismo. Como explicar o papel das
marchas em um contexto de guerra sem guerra? Maurízio Lazzarato
em sua obra Fascismo ou Revolução (2019) afirma que a guerra é o
tema ausente na teoria atual de esquerda para explicar a política.
Entretanto, a noção está impressa nas ações da direita a todo o
instante. Basta ver a atitude do presidente Jair Bolsonaro, quando no
dia sete de maio vai até o STF com um grupo de empresários solicitar
apoio para o retorno da população ao trabalho em meio à pandemia.
O movimento do Presidente, acompanhado de representantes das
empresas, é simbólico e o equivalente atual da legião romana prestes a
tomar posse de um território. Bolsonaro, como militar, sabe que a
guerra é o princípio que anima a política e sua imagem simboliza a
formação de ataque, exatamente o ingrediente equivalente da
definição de Lazzarato para quem a última razão do capitalismo
neoliberal é o poder fundado na violência e na força. Se trata, não
como informou um militar, de um momento para passar informações,
mas de uma invasão simbólica ao STF.

Lazzarato aponta que a esquerda não é capaz de perceber a força


de gestos de guerra desde que a filosofia francesa dos anos 70, com
Michel Foucault, Gilles Deleuze e Felix Guattari, ou da chamada
Autonomia italiana, com Mario Tronti e Toni Negri, produzem um
pensamento mais dedicado ao movimento operário e menos a outros
movimentos sociais, impossibilitando o entendimento do
funcionamento de outros atores e contextos. Daí que após, sem o
socialismo real, o capitalismo implode e corrói o estado de proteção
social, passo necessário para o neoliberalismo desencadear sua
agressividade no planeta.
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Por essa razão Lazzarato critica os novos foucaultianos, como os


sociólogos Luc Boltanski, Christian Laval e Pierre Dardot, que
defendem a ideia de que o poder cria certa subjetividade por meio de
automatismos incorporados à vida das pessoas. Para ele, estes autores
não consideram a violência expropriadora do capital, a positividade do
poder do neoliberalismo em ir além das relações entre finanças e
tecnologia, o que neutraliza a ideia de que os automatismos
respondem a estratégias de guerra entre classes sociais. Não é o
significado da ação do Presidente que, ao levar empresários ao STF,
encarna o automatismo que diz que “é preciso preservar a saúde da
economia”, a caminhada significa exatamente uma ação de guerra,
guerra de empresários e elites financeiras contra os pobres, chamados
a cumprir seu papel na dinâmica econômica a custa de sua própria
vida. Esses mecanismos neoliberais são violentos, fazem-nos crer que
entre vida e economia há equivalentes, e por essa razão, reivindica que
é preciso fazer a genealogia dos dispositivos biopolíticos que permitem
que aceitemos que essa equivalência é possível, o que mostrará as
estratégias do capital para aumentar o lucro a qualquer custo, inclusive
pela violência e que esta proposta de voltar ao trabalho em meio à
pandemia esquece que ameaça a própria vida.

Não se trata de defender o governo do Presidente Jair Bolsonaro


como fascista, o que já é feito a exaustão, se trata de dizer que o
neoliberalismo tem origens fascistas e se comporta de modo fascista
ao negar o direito à vida dos trabalhadores. Por isso não há
implantação de dispositivos de dominação, de automatismos e
subjetividade na linha de Foucault que possa ser dissociado de sujeitos
específicos. Lazzarato quer, no caso, descrever o processo na América
do Sul, o atual fascismo neoliberal de Jair Bolsonaro em suas relações
viscerais com os interesses empresariais: a esquerda falha em
descrever a estratégia de guerra que lhe dá vida a sua racionalidade,
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como faz uso da informação e das redes sociais como instrumento de


agremiação de adeptos, como a criação de inimigos e arregimentação
de apoiadores naquilo que é “a guerra é o prolongamento da política
por outros meios”, expressão de Carl Von Clausewitz lembrada por
Lazzarato. Para o autor de Fascismo ou Revolução, é preciso que a
esquerda veja três questões relacionadas à guerra nas atuais políticas
de Jair Bolsonaro: a natureza ética e cognitiva de suas estratégias de
guerra, que transparecem na sua indiferença em relação aos mortos
pela Covid 19; as consequências subjetivas do terrorismo de Estado,
que podem ser vistas na aceitação do desrespeito pelos direitos
humanos, direitos indígenas e na transformação do outro em objeto
na imposição de necessidades do mercado à sociedade; o papel da
contra violência como resposta de baixo para cima, que pode ser vista
pela reação da esquerda na reocupação das redes sociais em contexto
de oposição ao governo.

Entretanto, ainda que Lazzarato advogue a necessidade de superar


o pensamento de Michel Foucault, ainda assim defende que o
neoliberalismo atua com forças que transformam as pessoas em armas
no sentido da população como definida pelo autor de Vigiar a e Punir.
As manifestações de defensores do ideal do Presidente contrárias às
instituições democráticas pelo fechamento do congresso e pelo
retorno do AI-5 não são o equivalente aos aviões que atingem as Twin
Towers em 2001 e que precipitam a tragédia do contraterrorismo
sobre a economia americana? Essas pessoas não são transformadas
em armas pelo governo, e há entre elas aquelas dispostas a comporem
milícias armadas? Isso ocorre para Lazzarato pela força do
individualismo burguês - e diríamos no caso brasileiro, pelas forças do
empresariado burguês - que esforçam-se por introjetar categorias no
social que operam pela despotencialização da violência de classe e por
isso, reduzem as tentativas de organização das classes subalternas.
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Enquanto a esquerda não tem sucesso em desvelar as dimensões


míticas do governo, não consegue atingir o desejo das massas,
“poderoso meio coletivo de recuperar o poder”.

A ida do Presidente e empresários ao STF é a imagem mais clara


da proposta de guerra como forma da política de um governo em que
não existe paz enquanto seu o empresariado não impor o terror de
estado aos trabalhadores. Enquanto a esquerda não vislumbra as ações
de seu Presidente como ações de guerra, ela está reduzida ao luto,
ignora a conexão das forças inimigas: não é notável que sejam os
empresários e suas lideranças que acompanham o presidente ao STF?
Esse movimento assume sua verdade, não adianta achar que é tudo
falso, é o jeito dele, o empresários foram sequestrados, etc. Pelo
contrário, a guerra está na política, é seu principal ingrediente, forma
de manter a violência secreta da ilegalidade na legalidade, e se somos
capazes de ver isso, vemos sua forma real e então as forças coletivas,
conscientes desse processo, podem estabelecer um limite ao poder.

Para Lazzarato, a esquerda vive da miséria da estratégia, despreza a


guerra como modelo para entendimento a política. Por isso, ainda que
critique a filosofia do sixties, ainda assim preserva a ideia de Gilles
Deleuze e Félix Guattari de máquina social como equivalente a
máquina de guerra, a ideia de que os modos de vida neoliberais se
expressam através de táticas: é esse discurso do “use máscara” que
vem para substituir o discurso “fique em casa” se não uma estratégia
do capital para que voltemos a nosso lugar na produção? Quem disse
que não há riscos em usar máscaras? Ora, há quem use errado, há
mascaras ruins, há pessoas que não sabem usar máscaras e tudo isso
faz aumentar a pandemia. Que é esse discurso assumido diante do
STF, de que CNPJs também morrem se não uma imitação do
discurso médico, a mais nova substituição de narrativas promovidas
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pelos empresários que, de agora em diante, se apossam do discurso


médico para legitimar seu discurso econômico de volta ao trabalho?
Lazzarato afirma que devemos apontar os mecanismos que criam os
modos de vida neoliberais, que são entendidos como táticas de uma
estratégica bélica do capital: retorno ao consumo, valorização das
finanças, uso de discursos e sua apropriação, tudo são peças que
reforçam os efeitos de uma vitória neoliberal bélica.

O objetivo de guerra do neoliberalismo é transformar o povo com


direitos em população escrava do trabalho. É preciso declarar guerra
contra a população que está em casa, fazê-la apresentar-se à fábrica, o
capital odeia a defesa da vida porque defende a defesa do lucro em
primeiro lugar. O ódio à vida contra a sua preservação nasce da
tentativa de sustentar o lucro, único objetivo do capital e a medida que
a pandemia avança, suas saídas são cada vez mais expropriadoras. O
capital precisa de estruturas subjetivas para seu discurso se sustentar, é
preciso que as pessoas fiquem confusas entre o que é mais importante,
a vida ou o mercado. Para enfrentar esse discurso, é preciso que a
esquerda construa uma máquina revolucionária própria, pois o capital
conta com um poderoso exército a seu favor, que é comporto por
atores no governo e fora dele, que inclui pesquisadores e jornalistas, e
por isso, as frentes de luta são amplas.

Lazzarato retoma a noção de luta de classe, a necessidade de


ampliar os sujeitos em luta para ter um arranjo teórico que permita
entender como dispositivos são manipulados pela máquina
capitalistas. Não é a guerra contra o vírus que é global, é a luta contra a
exploração capitalista que o é. Se a revolução é possível, ela passa pela
capacidade de conscientizar as classes baixas para se tornarem uma
força social, força de resistência, exatamente como está acontecendo
hoje nas favelas que se mobilizam para além do estado para organizar
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suas estratégias de sobrevivência. Não é o atestado de que elas


tomaram consciência que o estado não se importa mais com elas, com
negros e com trabalhadores e torna-se assim uma força social de
resistência? Como multiplicar essa perspectiva para o restante da
sociedade? Segundo Lazzarato, isso só será possível e se conseguir a
combinar a intensidade do trabalhador, a extensão da luta a novas
subjetividades, o entendimento da dimensão classista do
neoliberalismo e, portanto, a necessidade de luta pela igualdade.
Estamos no meio das lutas, com as vicissitudes de um governo
neoliberal, que tem apoio militar, mas uma revolução de tamanho
continental ainda é possível.

O mitläufer à brasileira

No Brasil que elege Jair Bolsonaro nasce uma categoria nova de


ativismo social: o bolsonarismo. A adesão às formas de populismo em
ascensão já ocorreu em outros momentos da história. Na Alemanha
da Segunda Guerra Mundial é comum que habitantes da cidade de
Manheim aderissem ao Terceiro Reich, não por ideologia, mas por
oportunismo. Na França isso também ocorre na República de Vichy,
regime colaboracionista do nazismo, onde muitos também aderiram
ao regime nazista mais por conformismo e menos por convicção. São
chamados de “Mitläufer”, que significa, “aqueles que seguem a
corrente”. A descrição é da pesquisadora franco-alemã Géraldine
Schwartz na obra Os Amnésicos (TUSQUETS: 2019) em que retrata
o papel exercido pelas populações locais nos regime totalitários e o
trabalho de memória realizado nas sociedades europeias do pós-
guerra e que serve para definir com exatidão o que se passa com os
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bolsonaristas. A autora mesmo inclui, entre as suas formas


contemporâneas, o adesismo ao extremismo que observa no Brasil e
defende o papel da memória como um dos instrumentos mais eficazes
de proteção da democracia. Para Schwartz, o Mitläufer não
desaparece com o fim da Segunda Guerra Mundial, está mais vivo do
que nunca nos regimes reacionários da atualidade e o perigo é que
mais uma vez a amnésia está contaminando os países que vivem sob o
populismo no planeta.

A reflexão de Schwartz é importante para descrever imaginário


político reacionário brasileiro. Para ela, temos a tendência em dividir a
sociedade em heróis, vítimas e carrascos. Isso equivale, no caso
brasileiro dos bolsonaristas, a eleição do Presidente da República
como seu herói, a esquerda como vítima e a si mesmos como os
carrascos. Entretanto, se definem como carrascos apenas parte dos
bolsonaristas, aqueles com papel ativo nas redes sociais, totalmente
imbuídos da defesa das ideias do presidente. Para todos os demais
que votaram em Jair Bolsonaro, é possível que até alguns carreguem o
sentimento de vergonha, mas ainda assim, é mais fácil “seguir a
corrente”, ser “Mitläufer”. A autora dá como exemplo o filme de
Bernardo Bertolucci baseado no romance de Alberto Moravia
intitulado O conformista onde mostra aqueles que terminam por
aceitar o inaceitável. Não é exatamente assim que se comporta parcela
dos bolsonaristas que votaram no presidente como opção antipetista?
Na história sabemos o papel da população em consolidar ditaduras,
mas é preciso mostrar ao povo, inclusive aqueles que votaram no atual
presidente e hoje tem dúvidas, que ele tem meios de impedir um
regime criminoso. Diz Schwartz:” Eleger Bolsonaro, por exemplo,
para mim, é brincar com o fogo, pois parece alguém capaz de tudo”.
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Schwartz construiu Os Amnésicos a partir da história de sua


família. Seus avós são o exemplo de Mitläufer para tomar “consciência
de nossa falibilidade em reconhecer que podemos nos transformar
também em um bárbaro”. Na França, a autora afirma que a tendência
é jogar a responsabilidade sobre um grupo, os carrascos, a República
de Vichy, os grandes colaboradores econômicos enquanto que a
atitude da população passa sob silêncio. Não é exatamente assim que
a esquerda procede, jogando a responsabilidade do bolsonarismo ou
no próprio presidente, ou nos seus adeptos mais radicais, enquanto
parte da população que aderiu a Jair Bolsonaro passa em silêncio?

O trabalho de desconstrução da memória feito pelo atual governo


é extraordinário: inicia com a valorização do Regime Militar, de seus
algozes e da renovação da ideia de patriotismo como pano de fundo
que diminui toda a carga de violência desse período. Recentemente, a
própria Secretaria de Cultura, a atriz Regina Duarte, veio a público em
uma entrevista em que defende o período autoritário e reduz o valor
das mortes durante o período. O governo Jair Bolsonaro não precisa
fazer censura, basta o trabalho de memória que faz a partir da negação
da história, de redução de fundos públicos para os cursos de ciências
humanas, da relativização dos crimes ligados a esse passado cujo efeito
é adormecer a vigilância do povo ao fascismo, tornando as formas de
sua violência aceitáveis, como é a defesa da volta ao trabalho em meio
a pandemia.

Schwartz chama de inversão da moral a técnica que serve para


aceitação dos crimes do regime nazista aos olhos da sociedade alemã
dos anos 30 à passagem do ódio e de desvios autoritários através da
defesa das liberdades e da democracia como nos regimes populistas
atuais. Afirma isso acontece porque se atualiza o modo como a
manipulação se apropria hoje da psicologia humana. A difusão do
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medo exagerado em relação à realidade “pior que a morte de pessoas


é a morte da economia”, apresentar o „projeto de esquerda como um
projeto fracassado, comunista, que não respeita as liberdades do
cidadão” são formas de atualizar o que a autora define como confusão
das fronteiras entre o verdadeiro e o falso cujo efeito é desorientar as
pessoas: frente a crise econômica e política, perde-se as referências
“como dizia (a filósofa alemã) Hannah Arendt, quem não acredita em
mais nada é manipulável à vontade” (SCHWARTZ: 2020). Quer
dizer, tanto no passado como no presente, os valores passam a serem
invertidos e o que era bom ontem não é mais hoje. Não é o que
ocorreu com o governo Lula e Dilma, que apesar de suas inúmeras
inovações no campo social, o bolsonarismo produz uma inversão de
sentido? Para Schwartz, isso não se observa apenas no Brasil, mas em
várias partes do mundo “As pessoas que, hoje, apoiam Jair Bolsonaro,
há dez anos provavelmente defendiam os direitos humanos”
(SCHWARTZ: 2020). Por esta razão, assim com o ensino do
Terceiro Reich é capital na história alemã, exemplos de uma
sociedade tão civilizada, moderna, intelectual, que deriva rapidamente
para a barbárie, no Brasil, o ensino sobre o Regime Militar é capital
para compreender o que vivemos hoje. Por isso é inaceitável uma
Secretária de Cultura como Regina Duarte dizer que as mortes da
ditadura militar são coisa do passado, isso deve servir de alarme a todo
mundo.

Schwartz cita a palavra alemã “Vergangenheitsbewältigung” que


significa “trabalho de gestão do passado” como método fundamental,
cujo equivalente mais próximo em inglês é “coming to terms with the
past”, mas não é a mesma coisa. Ela afirma que depois da Segunda
Guerra Mundial os europeus resolvem esquecer o passado para
incentivar a ideia de resistência, uma memória que é aos poucos
imposta que reduz o antifascismo atual. A reconciliação evita a guerra
J O R G E B A R C E L L O S | 183

civil mas não enterra o passado, diz Schwartz, algo similar ao que
acontece aqui por sua vez com a direita que elege Jair Bolsonaro para
acabar com o PT, esquece ao mesmo tempo sua contribuição para a
sociedade e aos poucos vê-se envolvida com um presidente que
despreza a vida em primeiro lugar. Quer dizer, tanto no passado
como hoje, há sempre aqueles que se aproveitam do momento
político para negar os efeitos de seus atos, de suas consequências,
exatamente como aqueles que testemunharam crimes nazistas de
forma apática, ou participaram deles. Não é muito similar esta
situação com equivalentes bolsonaristas que hoje defendem o retorno
ao trabalho, não é este o crime em andamento? Ambos, de certa
forma, legalizam o crime que praticam, tornam-no aceitável,
produzem uma amnésia sobre as consequências de seus atos para as
vítimas. Diz Schwartz:

“O mais difícil quando a democracia é jovem não é instaurar


instituições ou elaborar uma bela Constituição, mas ter cidadãos
que compreendam seu papel e sua responsabilidade, senão não
funciona. E penso que é o caso do Brasil.” (SCHWARTZ: 2020).

Quando os bolsonaristas não radicais tomarão consciência de suas


atrocidades? Quando o circulo amplo de industriais, comerciantes e
todos que de alguma maneira apoiam Jair Bolsonaro tomarão
consciência, como fizeram os alemães nos anos 60, de suas
responsabilidades? “A indiferença da população, como é frequente na
História do século XX, mata mais do que os carrascos” diz Schwartz.
Não é algo que se imponha pelas leis, é somente pelos valores que
uma sociedade é capaz de coletivamente construir e por essa razão,
um trabalho de memória é fundamental na consolidação da
democracia. Por isso é importante o trabalho de memória da esquerda
que rebate o discurso que pede a volta do AI 5. São importantes
184 | T E M P O S D E P A N D E M I A

gestos como os da mãe de Cazuza que proíbe o uso de canções do


filho morto pelo governo Bolsonaro. É preciso reagir aos propósitos
extremistas do governo atual, mostrar as falsas informações e as teorias
conspiratórias de que se alimenta para compreender a divisão que
produz no seio da sociedade brasileira, afirma Schwartz.

Schwartz conclui que a emergência da direita no Brasil é


semelhante à alemã. Ambas surgem no contexto de divisão, na
Alemanha, pós queda do muro de Berlin e no Brasil, pós-queda da
esquerda no poder. Ambos dizem que vivem sob uma ditadura “que
não têm liberdade de opinião”. Não exatamente esse o discurso de
bolsonaristas que, por exemplo, reclamam que sua liberdade está
sendo violada quando as medidas de combate ao coronavírus pedem,
simplesmente, que usem uma...máscara? Essa manipulação grosseira
de traumas do passado que caracteriza os bolsonaristas merece critica.
Diz Schwartz

“O Brasil é um exemplo por excelência de que o trabalho de


memória não foi feito. Bolsonaro reatou com a ditadura. Quando
ele não estiver mais no poder, será preciso recuperar o tempo
perdido e falar do papel do Mitläufer no Brasil da ditadura. Penso
que as elites e classes dirigentes falharam completamente no Brasil
em sua responsabilidade social. Para Espanha e Portugal, que
resistem bastante à extrema direita, uma das explicações é a de que
a ditadura é recente e que isso ainda está presente na sociedade”

A autora se espanta com a série de extremos de partidos


antidemocráticos, que elegeram Donaldo Trump à Jair Bolsonaro,
passando por Victor Orban na Hungria, entre outros “quando estão
no poder, a primeira coisa que fazem é atacar a democracia”
(SCHWARTZ: 2020).
J O R G E B A R C E L L O S | 185

Imagem de viniciusemc2 por Pixabay

Idosos importam!

Na abertura de Danos colaterais, desigualdades sociais numa era


global (Zahar, 2013), o sociólogo Zygmunt Bauman diz que a primeira
peça que queima quando o sistema de um circuito elétrico fica
sobrecarregado é o fusível. Ele explica que isso acontece porque é um
elemento incapaz de aguentar mais voltagem que o resto da instalação,
“na verdade, a parte menos resistente do circuito”(BAUMAN:2013,
p.7) inserido de forma deliberada para derreter no momento exato
em que a corrente elétrica ultrapassa o ponto de segurança, antes,
portanto, de derrubar todo o circuito “impedindo que se queimem,
186 | T E M P O S D E P A N D E M I A

fiquem inúteis e sem conserto”(BAUMAN:2013, p.7). Bauman


extrapola esta lógica de proteção estrutural para outros sistemas, indo
do limite de cada pilar na hora de quebra de pontes para os limites
das represas e até as situações em que, sem uma peça para tomar,
contamos as vítimas depois de acontecer o desastre. O ponto central
para o autor é considerar a sociedade como uma dessas estruturas que
necessitam de um… fusível! Bauman presume que é possível se avaliar
a condição da sociedade pela qualidade média de suas partes

“se qualquer dessas partes estiver abaixo da média, isso poderá


afetar de forma negativa essa parte em particular, mas dificilmente
[afetará] a qualidade, a durabilidade e a capacidade operacional do
todo”. (BAUMAN:2013, p.8)

Bauman refere-se às avaliações que são feitas para o estado da


sociedade que calculam seus rendimentos, padrões de vida e que
possuem variações internas entre seus segmentos, dando como
exemplo o aumento da desigualdade que não é considerado mais do
que um problema financeiro, mas ainda assim há outros riscos
envolvidos, como o bem- estar da sociedade, sua saúde física e mental,
etc. Bauman é critico da utilização do critério da renda média - e
podemos incluir nessa linha, a produtividade de seus membros que
leva a distinção entre classes e subclasses de atores participantes na
sociedade

“o único significado que o termo “subclasse” é portador é estar


fora de qualquer classificação significativa, orientada para a posição
e para a função. A “subclasse“ pode estar “dentro” mas claramente
não é “da” sociedade; não contribui para nada de que a sociedade
necessite a fim de obter sua sobrevivência e seu bem estar; de fato,
a sociedade estaria melhor sem ela”(BAUMAN: 2013,p.10).
J O R G E B A R C E L L O S | 187

Não é assim que o Presidente e parcela dos empresários agem


quando dizem “alguns vão morrer” significando os idosos? Essa
eleição dos idosos como vítimas preferenciais do vírus - já se sabe que
não exclusivamente - e de certa forma, essa aceitação antecipada de
suas mortes sem nenhuma dor de consciência não equivale a sua
definição como “subclasse” como defende Bauman? Os idosos
tornaram-se esse tipo de imigrante ilegal, estranhos no nosso interior
“destituídos dos direitos de que gozam os membros reconhecidos e
aprovados da sociedade”? (BAUMAN: 2013, p.10) Em suma, no
discurso do Presidente e parcela dos empresários os idosos são
aqueles que eles não contam mais entre as partes “naturais”, isto é,
”produtivas”? São aposentados e dependentes do sistema
previdenciário que, como diz Bauman, por que não estão mais no
processo produtivo, mesmo que eles deram sua contribuição,
trabalharam anos a fios, mas agora, são tratados como tumor
cancerígeno “cujo tratamento mais sensato é a extirpação”(BAUMAN:
2013, p.11) e nesse sentido, felizmente, pensam nossos algozes de
direita, o vírus veio para fazer o papel sujo que secretamente gostariam
de fazer e fará isso sem deixar nenhuma parcela de culpa.

O que vemos? Não estamos mais reclassificando a pobreza,


relegando os pobres a sua própria sorte, vítimas de um sistema de
trabalho excludente. O que é fatal é que avançamos um passo adiante
na exclusão, incluímos agora os idosos, aposentados, a „terceira idade‟,
o que significa que ampliamos a desigualdade, transformamos os
velhos no novo “problema” que a sociedade precisa urgentemente
resolver. É verdade que o coronavírus atinge os idosos, há correlação
estatística para isso, mas não somente e da mesma forma que existe
uma correlação estatística que coloca nas margens da sociedade os
mais pobres, a correlação estatística agora coloca os velhos como
vítimas fatais. O argumento que serve de pretexto para seu abandono
188 | T E M P O S D E P A N D E M I A

não se justifica por si mesmo porque reclassificar a velhice, aceitar sua


morte como fatalidade não significa abandonar os idosos a sua própria
sorte, ao contrário, significa que tratamos a velhice da mesma forma
que qualquer faixa etária. Nas condições morais dadas à velhice,
esquecemos que ele fazem parte ainda da sociedade, eles não
morreram, e exatamente pelo trabalho de sua vida que eles são dignos
de um atendimento no meio da pandemia.

Por isso é preciso tratar do atendimento das vítimas idosas como


problema sanitário e oferecer ao sistema de saúde condições para
atender a todos, incluindo os idosos, para não impor a classe médica a
escolha de Sofia, a escolha entre quem pode morrer e quem pode
viver. Essa escolha é imposta por parcela da sociedade como algo
natural, não é ética e nem socialmente desejável por que a sociedade é
um corpo baseado em ideais de solidariedade “Os velhos não
produzem, deixe-nos entregue a sua própria sorte”, diz-se, imperativo
instilado pela pressão de uma economia orientada para o consumo,
que é restrita para os pobres e atinge agora os idosos que são a bola a
vez a ser entregue a sua própria sorte. Isso significa que assumimos
que a situação dos idosos passa a ser vista - daí o titulo do livro de
Bauman - como “baixa colateral da globalização voltada para o lucro
descoordenada e descontrolada”(BAUMAN: 2013, p.11). Qual é o
pressuposto desse discurso? O pressuposto é a aceitação da morte de
idosos porque são vistos como improdutivos, argumento que esconde
em seu interior a ideia de “baixa”, dano ou vítima colateral, como
definido por Bauman. Segundo o autor, o termo

“foi recentemente cunhada no vocabulário das forças


expedicionárias militares e popularizada pelas reportagens
jornalísticas sobre suas ações, para denotar efeitos não pretendidos,
não planejados, “imprevistos”, diriam alguns, de forma errônea —
J O R G E B A R C E L L O S | 189

que, não obstante, são perniciosos, dolorosos e prejudiciais


(BAUMAN: 2013, p.11)”.

A facilidade com que o presidente fala em vítimas, “vai morrer


gente?, “vai”, como diz, é porque é um termo militar e o dano
colateral é uma característica dos momentos de guerra. Subentender
que a morte de idosos pelo coronavírus são “danos colaterais” justifica
as políticas públicas abandonarem a preservação de suas vidas

“sugere que esses efeitos (as mortes) não foram levados em conta
no momento em que se planejou a operação e as tropas postas em
ação; ou que a possibilidade de tais efeitos foi observada e
considerada, mas ainda assim vista como risco válido, levando-se
em conta a importância do objetivo militar — essa visão é muito
mais fácil (e bem mais provável) porque as pessoas que decidiram
pela validade de assumir o risco não são as mesmas que sofrem
suas consequências” (BAUMAN: 2013, p.11).

Não é notável que a descrição possa ser estendida para as formas


como vemos a morte de idosos na pandemia? Trata-se de uma
situação de guerra propriamente dita, a situação de guerra sanitário-
militar onde organizamos o exército sanitário-militar, o conjunto das
estruturas, políticas e princípios de atendimento considerando a morte
de “idosos” como um dano colateral aceitável e onde a decisão está
entre atender os mais economicamente “produtivos” em detrimento
dos demais.

“Pensar em termos de danos colaterais é presumir tacitamente uma


desigualdade de direitos e oportunidades pré-existentes, ao mesmo
tempo em que se aceita a priori a distribuição desigual dos custos
da ação empreendida (ou nesse caso, de se desistir dela)”
(BAUMAM; 2013, p.12)
190 | T E M P O S D E P A N D E M I A

Bauman enfatiza a desigualdade como fator de aumento da


seletividade, da probabilidade de se tornar vítima de uma catástrofe; o
coronavírus ampliou os fatores, agora basta estar numa faixa de idade
para ampliar essa probabilidade “os dados do jogo dos riscos são
viciados” (BAUMAN: 2013, p. 12), o que significa que os casos de
danos são declarados não intencionais e não planejados, mas a
verdade é que há uma desigualdade etária em andamento vista na
ampliação da possibilidade de ser uma vitima colateral da pandemia
por uma opção de tratamento em função dos recursos. Tragédias
reconhecidamente naturais como o coronavírus podem não parecer
tão naturais para suas vítimas quando o assunto é condições de
tratamento oferecidas. A tragédia não é aleatória, ela é seletiva e o pior
é que políticas públicas podem colaborar nessa seleção pela ausência
de equipamentos, serviços e recursos na hora de tomada de decisões
difíceis.

Como tratamos os velhos nesses momentos? Bauman desenvolve


a tese sobre a ideia de refugo humano na obra Vidas desperdiçadas
(Zahar, 2005), onde aponta que existem seres humanos refugados, isto
é, que não podem ou não obtém permissão para viver, pessoas
destituídas de meios de sobrevivência, párias, inadaptados, expulsos,
marginalizados

“a produção do “refugo humano”, ou mais propriamente, de seres


refugados (os “excessivos” e “redundantes”, ou seja, os que não
puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter permissão
para ficar) é um produto inevitável da modernidade”(BAUMAN:
2005, p. 12).

Se deixado livre o discurso dos capitalistas de plantão, o destino do


coronavírus é tornar os velhos os novos dejetos da globalização, do
J O R G E B A R C E L L O S | 191

progresso econômico, colocados no final da lista de prioridades de


salvamento da pandemia, das autoridades responsáveis, exilados para
as margens das atenções das autoridades para quem a vida deve ser
um direito universal.

Bauman cita como exemplo a ideia de que o furacão Katrina, nos


Estados Unidos, contribui para a doentia indústria de remoção do lixo
humano, da população redundante, razão pela qual são poucas as
tropas enviadas para a área atingida. Não estamos fazendo a mesma
coisa com nossos idosos, usando o coronavírus para justificar
antecipadamente que, se escolhas tiverem de serem feitas, o grupo dos
idosos será outro grupo considerado “lixo humano”? Essa indiferença
dos poderosos com relação à morte de idosos é abominável, que tipo
de sociedade é essa que pode sobreviver sem seus idosos, sem a
experiência deles, e principalmente, sem a responsabilidade de cuidar
os que vieram em primeiro lugar? Outra forma do aprofundamento
da desigualdade social, o vínculo entre a idade da vítima e a
probabilidade de ter o destino de uma baixa colateral, nos termos de
Bauman, é produto da invisibilidade do valor dado ao idoso, daquele
que tem ainda vida a gozar, por uma avaliação externa das chances de
sua salvação imposta pela escolha da classe médica sem saída devido
aos poucos recursos disponíveis. Médicos temem a tarefa impossível
de seleção de candidatos, agora os velhos no uso de aparelhos,
marcados pelo estigma da “inutilidade” social, desimportância. Eles
tem importância, eis a questão!

Por isso a adoção urgente de uma economia de guerra, a


organização de todos os recursos disponíveis para produção dos
insumos necessários a pandemia tem como efeito a redução desse
dano colateral - que de colateral não tem nada. Não podemos relegar
os idosos à condição de marginalidade, a possível removibilidade
192 | T E M P O S D E P A N D E M I A

porque essa omissão se tornará o arrependimento de uma geração


que nunca se perdoará por ter abandonado seus idosos a sua própria
sorte.

Não é necropolítica, é necroeconomia, estúpido!

O afrouxamento do isolamento em várias cidades mostra que o


verdadeiro soberano é o capital, que revela sua capacidade de ditar
quem pode viver e quem deve morrer. Achille Mbembe em sua obra
Necropolítica (N-1 Edições, 2018) define a soberania em termos de
poder mas as condições práticas hoje de exercer o poder de matar não
estão na política, mas na economia, no capital financeiro, no poder
exercido por empresários e todos aqueles que em sua capacidade de
afetar as políticas governamentais em seu desejo da volta ao trabalho.
No contexto de uma pandemia mortal, exercem o poder de matar
empresários e lideranças que correm à imprensa com seus artigos
exigindo a volta ao trabalho e que obtém sucesso na pressão das
autoridades para editar medidas de liberalidade que adiante
produzem a morte de trabalhadores pela exposição ao vírus. Não é
apenas guerra contra o vírus que estamos vivendo, é a guerra contra os
interesses de mercado que se quer soberano, como foi à guerra contra
o poder dos reis do século XVIII “a guerra, afinal, é tanto um meio de
alcançar a soberania como uma forma de exercer o direito de matar”,
diz (MBEMBE: 2018, p.6) Agora, não é a política que é uma forma
de guerra, é a economia que assume o lugar de decidir a vida e a
morte de trabalhadores.
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Sabe-se que na epidemia brasileira as vítimas do coronavírus não


são apenas os idosos, mas trabalhadores em sua melhor faixa
produtiva, jovens e adultos. As filas junto aos bancos, as aglomerações
nos parques e tudo aquilo que desrespeita as medidas de isolamento
são nossos campos de morte, campos de extermínio ao ar livre,
equivalente às avessas dos campos de concentração. O que os
empresários querem é a suspensão do estado de direito à vida, a
proposta de volta ao trabalho é a disputa entre as formas de soberania
sanitária e econômica, por isso trata-se de um jogo onde as peças estão
viciadas: os empresários sabem que, na comodidade de seus lares, são
os operários que estão em exposição permanente e mortal.

No paradigma hegeliano, diz o autor de Necropolítica, a morte é


resultado de ações voluntárias, de “riscos conscientemente assumidos
pelo sujeito” (MBEMBE: 2018, p. 12). Somos sujeitos porque
enfrentamos a morte, o contrário daqueles que nos expõem ao vírus e
nos tornam objetos, retirando nossa humanidade. Por isso a decisão
de ficar em casa frente à pandemia é um ato humano, não se trata
mais da política como o poder de morte de quem vive a vida humana,
a economia quer assumir esse lugar ao reivindicar o poder de definir
de forma soberana quem deve arriscar a vida, e por isso, se torna
assim, desumana! É preciso a morte provocada pelo vírus para
encararmos a verdade do capital: para ele, a vida é só utilidade, o
limite da morte é abandonado pelo empresariado, pelo capital
financeiro. Enquanto que o trabalhador respeita a morte, não há
limites para a economia.

O afrouxamento das regras de isolamento é o ponto de início do


sacrifício de milhares de trabalhadores, e por isso é um excesso, uma
“anti economia” que os empresários ignoram porque traz prejuízos
maiores na segunda onda do vírus que já se anuncia. A economia
194 | T E M P O S D E P A N D E M I A

opera na base de uma divisão entre os que podem viver e morrer, o


efeito do capital está no fato de que as elites não vivenciam as
consequências de suas decisões: a morte de seus trabalhadores é visto
como o seu dano colateral, no sentido dado pelo sociólogo Zygmunt
Bauman. Não é mais o estado que detém funções assassinas: com a
pandemia, é a economia “a condição para aceitabilidade do fazer
morrer”(MBEMBE: 2018, p. 18).

O empresariado é este estado nazista dentro do estado


democrático de direito exercendo seu direito de matar, expondo seus
trabalhadores à morte, combinando as características de um estado
assassino, racista e suicidário como sugere o filósofo Wladimir Safatle.
Não é a fusão da guerra com a política, é a fusão da guerra com a
economia, pois a exposição do Outro no trabalho é essencial para o
lucro, reduzido o trabalhador a lógica impessoal da racionalidade
instrumental. A racionalidade econômica passa pela imposição do
risco à morte, capacidade de expor ao risco a fim de obter lucro.
Porquê câmaras de gás e fornos se basta expor os trabalhadores ao ar,
ao trabalho, para fazer a completa desumanização e produção de
morte baseada na falsa premissa racional de que alguns podem
trabalhar?

Na Revolução Francesa, a passagem da execução pela força para a


execução pela guilhotina é repleta de significados. O vírus é a nova
guilhotina que mantém as características do enforcamento. O vírus é
democrático como a guilhotina que estendeu a prerrogativa da
execução dos pobres para todos os cidadãos, mas impõe uma morte
humilhante como a do enforcamento, a morte solitária sem a presença
de seus entes queridos, o enterramento de massa e por isso cruel.
Chamar ao trabalho é uma forma civilizada de matar um grande
número de pessoas num curto espaço de tempo, prova da
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insensibilidade das classes abastadas e, portanto, atualização da fusão


da razão com o terror da Revolução Francesa.

A falsa verdade de que “só os velhos morrem”, e por isso,


libertemos os jovens para o trabalho, esconde a verdade do conflito de
interesses entre o capital e o Estado, entre quem deve viver e quem
pode morrer. Qualquer narrativa construída com base no
rompimento do isolamento radical propõe uma experimentação bio-
econômica e não biopolítica, nos termos de Michel Foucault. Perda
de direitos sobre o corpo, perda da casa como lugar de proteção ao
risco, morte social pela expulsão da sua humanidade, obrigar a
trabalhar na pandemia não é o retorno do plantation de que fala
Aquiles Mbembe por outros meios, onde o escravo pertence ao
senhor? Nesse apelo ao trabalho, somos todos escravos, propriedades,
temos valor, respondemos a necessidade de lucro dos empresários.
Todos os que foram as ruas em passeata chamar ao trabalho são o
equivalente do capataz e seu comportamento descontrolado no espaço
público, o seu discurso do desemprego, são o equivalente das
chibatadas do senhor no escravo para impor o terror. É a disputa
entre a liberdade de propriedade e liberdade da pessoa, imposição
comercial de quem se acredita proprietário do trabalho e da vida do
trabalhador.

Quando o direito de fazer a guerra, de tomar a vida, se expande do


estado para a economia, o que acontece? O direito de matar ou
negociar a vida, privilégio do estado apontado por Michel Foucault,
cede espaço à ideia de que a fronteira do estado é inferior à fronteira
econômica. A economia não reconhece nenhuma autoridade superior
a sua dentro das fronteiras de estado e por isso o relaxamento do
isolamento proposto pelo Ministro da Saúde Luiz Eduardo Mandetta
em sua negociação para permanecer no cargo ou as iniciativas de
196 | T E M P O S D E P A N D E M I A

relaxamento de prefeitos de norte a sul do país são apenas o modo


civilizado de matar para que a economia atinja seus objetivos, prova de
que a necropolítica perde seu lugar para a necroeconomia, que a
biopolítica se transforma em bio-economia: o capital sabe que, frente
aos mortos, tem a disponibilidade de um exército industrial de reserva
para substitui-los, mão de obra renovável, como se o empresariado
tivesse o direito divino de existir e os trabalhadores não.

“A Faixa de Gaza é aqui!” prognóstico fatal das múltiplas


separações e limites que é preciso impor aos cidadãos pelo isolamento
radical, limites que precisam ser impostos pelo estado sob vigilância e
controle, “não ir às praias”, “não aglomerar nas ruas”, tudo é o novo
estímulo à reclusão, somos as novas gated communities, como diz
Mbembe, praticando a rápida circulação. Agora, os campos de batalha
estão nas filas sem distanciamento dos mercados e bancos, nas lojas
abertas e exposição de seus trabalhadores a um vírus que não respeita
divisões de classe social. O estado de sitio deixa de ser uma instituição
militar para se tornar econômica, a obrigação de trabalhar é essa
máquina da necroeconomia “As guerras da época da globalização,
assim, visam forçar o inimigo a submissão, independentemente de
consequências imediatas, efeitos secundários e danos colaterais das
ações militares”, diz o autor de Necropolítica (MBEMBE: 2018, p.
51) Não é exatamente assim que é tratado o trabalhador que se recusa
a trabalhar, não é visto como inimigo que é preciso ser combatido,
submetido nessa guerra, sua morte não é vista como “dano colateral”?
Na era da mobilidade global, impõe-se a imobilidade planetária, já
que “a própria coerção tornou-se produto do mercado”.

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