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SINOPSE

Nesta primeira aula, o professor Marcus Boeira estabelece uma distinção


introdutória entre os regimes políticos e os regimes impolíticos para
caracterizar mais pormenorizadamente os primeiros.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desta aula, espera-se que você saiba: qual o critério principal de
um regime político; por que os regimes impuros ou corruptíveis podem ser
chamados de regimes impolíticos; o que diferencia os regimes políticos dos
impolíticos; o que é a ordem; qual a função primordial da linguagem; o que é a
novilíngua; o que é a constitutio;

INTRODUÇÃO
Sejam bem-vindos a estas duas aulas sobre os regimes políticos e os
regimes impolíticos. Nessas duas aulas, eu pretendo analisar com vocês qual é
exatamente o fundamento por meio do qual os regimes políticos, na história da
civilização, entendidos como regimes legítimos, são não apenas aceitos, como
também diferenciados do que eu vou chamar aqui de regimes impolíticos.
Esta diferenciação obviamente parte de uma série de quesitos que nos
permitem estabelecer uma variedade de distinções conceituais e teóricas entre
duas matrizes ou dois grandes modelos por meio dos quais os sistemas e
regimes políticos ao longo da história se edificarem e se constituíram. De um
lado, os regimes políticos, tomados aqui como regimes legítimos e ancorados
numa perspectiva de ordem. De outro lado, os chamados regimes impolíticos,
que procuram exatamente a destruição da ordem tal como considerada.
Por isso, na primeira aula, eu gostaria de vencer com vocês aquilo que eu
entendo ser a parte mais fundamental dos regimes políticos: quais são
exatamente os seus aspectos teóricos subjacentes, qual é precisamente a sua
marca característica.
Para tal, eu vou distinguir essa primeira aula em três partes. Na primeira
parte da aula, gostaria de diferenciar os regimes políticos legítimos dos regimes
ilegítimos e explicar por que usaria a expressão “regimes impolíticos” para
qualificar estes últimos.
Na segunda parte da aula, eu gostaria de descer às peculiaridades
atinentes ao que marca esses regimes aos quais eu chamo de regimes políticos.
E, no fim, na terceira parte desta primeira aula, gostaria de explorar algumas
noções específicas sobre alguns dos modelos que são talhados ou, digamos,
considerados regimes políticos na história clássica e na história moderna.
De modo que, em nossa segunda aula, possa vencer o que são exatamente
os regimes impolíticos e quais são as suas marcas características.

2. OS REGIMES POLÍTICOS
Dado isso, em primeiro lugar, é fundamental que nós tenhamos uma
noção prévia sobre o que caracteriza, afinal de contas, os regimes políticos em
contraste com os regimes impolíticos.

2.1. Os regimes puros e impuros


Na “Política”, Aristóteles traz uma classificação sobre o que são os regimes
políticos e faz uma distinção entre o que chama ali de os regimes que são
tomados como regimes puros e o que ele chama, de outro lado, de regimes
impuros ou corruptíveis.
No primeiro grupo de regimes políticos, Aristóteles situa a monarquia, a
aristocracia e a politeia. Do outro lado, como regimes corruptos - que eu
chamaria de impolíticos - são aqueles regimes que degeneram essas formas
puras do que seja uma ordem política, que são os regimes tirania, oligarquia e
democracia, ao qual o Aristóteles trata como demagogia.

2.2. A democracia no mundo Antigo


Obviamente, no mundo Antigo, a palavra “democracia” invocava uma
forma de organização do poder que era muito distinta daquilo que temos hoje.
Na era atual, nos últimos séculos, a democracia se tornou um dos cânones
principais, um dos postulados decisivos da vida política moderna, porque,
frente ao agigantamento progressivo e geométrico do Estado como nova forma
de organização do poder, a democracia, atualmente, aparece como o regime
político que contrasta precisamente esse aumento progressivo do poder estatal
com a legitimidade popular, com a soberania popular.
No entanto, no passado, a palavra “democracia” não possuía esta
conotação. Ela normalmente era vista como uma forma degenerada de
organização do poder político, porque, diferentemente da politeia, que é aquela
em que as instituições e a vontade social de alguma forma se harmonizam, a
democracia, no mundo Antigo, no mundo clássico grego, era vista como um
regime que permitia a reificação da demagogia ou o protagonismo dos sofistas.

2.3. A ordem
Quando nós olhamos para trás e realizamos o exercício de ler a “Política”
de Aristóteles e de outros autores, como o próprio Platão na “República”, vamos
perceber que existe, atrás dessa classificação entre os bons e os maus regimes,
um critério principal a partir do qual essa distinção sobrevém. Esse critério é o
que eu vou chamar aqui de ordem. Todos regimes políticos têm em vista uma
noção prévia e constitutiva acerca do que é a ordem.
Os clássicos gregos normalmente chamavam esta ordem usando a
expressão grega nomos. A expressão nomos, em grego, pode ser muitas coisas
como, por exemplo, regra, norma, lei, preceito, mas também ordem. O nomos, a
ordem, era tomada como o princípio fundador fundamental por meio do qual
uma comunidade humana se edificava e sobrevivia historicamente. Era tarefa
das autoridades civis, no início de uma civilização, no início de uma cidade, de
uma pólis, construir uma cidade que pudesse expressar e fazer representar, no
tempo e no espaço, esta noção primeva de ordem que repousava no horizonte
cultural e imagético dos seres humanos historicamente situados naquela
civilização específica.

2.4. Os regimes políticos e os regimes impolíticos


Os regimes políticos se distanciam e se diferenciam dos regimes
chamados impolíticos porque reafirmam a política, isto é, a pólis, a cidade que
vive sob o guarda-chuva desta mesma ordem. Uma ordem, o nomos, que,
contrastada com a terra, com o elemento geográfico presente em uma cidade,
ilumina e lança, sobre o conjunto dos seus habitantes, uma perspectiva
integrada de vida, uma forma compartilhada de existência social dentro do que
as diferentes formas de vida, os diferentes tipos sociais e as diferentes tipologias
de existência vão, de alguma forma, convergindo dentro desta ordem, ainda que
esta ordem sempre apareça de um modo espontâneo e aberto no horizonte dos
mesmos habitantes.
Em contraste com esta noção primeva e criteriosa do que eram os regimes
políticos, aparece o que eu vou chamar aqui de regimes impolíticos. Os regimes
impolíticos são regimes que violam a política. Por isso, são chamados
impolíticos, porque procuram, em maior ou menor medida, atacar e destruir
essa noção primária e primeva de ordem espontânea que está na antessala das
civilizações humanas. Os regimes impolíticos, portanto, articulam-se para bem
destruir, rovinar, erodir e eclodir a forma e o modo por meio do qual uma
comunidade estabelece a sua existência política na História.
Por isso, na clássica conexão entre ordem e História, sempre aparece a
imprescindibilidade de que algo possa expressar essa ordem ou, por outro lado,
algo que venha patologicamente para assaltar ou destruir essa mesma ordem.
Nos regimes políticos, portanto, percebemos como critério principal uma
ordem natural substantiva no interior da comunidade humana. O nomos da
terra, para usar uma expressão do Carl Schmitt 1, que de alguma forma ilumina
todo cenário histórico, mas o faz de um modo aberto e espontâneo, permitindo
com que as ações e as abstenções humanas dentro de uma comunidade possam,
de maneira involucrada, serem realizadas ou, no caso das abstenções, não
realizadas, para concretar e determinar essa mesma ordem dentro desta mesma
comunidade. Há, por assim dizer, uma compreensão da ordem que a toma como
uma ordem natural.
Diferentemente desta, os regimes impolíticos, para fazer de alguma
forma eclodir a ordem natural, suplantam-na colocando no lugar uma ordem
que é meramente artificial. Uma ordem, portanto, que por um, alguns ou um
conjunto de critérios, procura destruir esta versão ontológica da política que
toma a ordem por acepção ao bem e ao ser humano. No caso dos regimes
políticos, a ordem é tomada sempre como a forma do bem humano básico que é
compartilhado na comunidade humana. Em outros palavras, a ordem é vista
como a forma comum de vida dentro da qual as diferentes formas de vida
podem, de maneira espontânea e aberta, realizarem-se e interagirem entre si de
maneira a expandir essa ordem de uma maneira natural, espontânea, aberta na
História.
Os regimes impolíticos, por outro lado, procuram colocar, no lugar da
ordem espontânea, uma ordem artificial criada ou por um tirano, ou por uma
oligarquia, ou por demagogos, ou por classes de diferentes naturezas que estão
diretamente interessadas em arregimentar a massa dos seres humanos em
favor de seus respectivos interesses. Palavras como utilidade, interesse,
voluntarismo, formalismo, aparecem para ou mitigar a ordem espontânea
própria dos regimes políticos ou para fazê-la eclodir colocando no lugar sempre
uma perspectiva que cria uma ordem que em pouco ou nada tem que ver com a
conjuntura da comunidade humana como um todo.

1
Fil ósofo (1888 - 1985).
2.5. A ordem e a distinção entre os regimes políticos e impolíticos
Portanto, nós podemos dizer que, nessa primeira parte, a distinção
conceitual entre os regimes políticos e os regimes impolíticos está precisamente
no fato de que os regimes políticos são baseados numa concepção natural do que
é a ordem, uma ordem que, caracterizada como espontânea e aberta, vai se
expandindo no tempo e no espaço de um modo a permitir, de uma maneira
flexível e gradual, o compartilhamento das formas de vida. Há, nessa
perspectiva, sempre um aspecto comum, comunitário, que permite a comum
unidade, isto é, a comunidade e, portanto, a ação comum, ou seja, a
comunicação dos seres humanos ali presentes. Unidade comum, ação comum.
Comunidade, comunicação. Esta conexão entre comunidade e comunicação,
entre aquilo que é estático e dinâmico na história de uma sociedade humana, de
uma comunidade política na História portanto, faz com que esta ordem se
expanda para além do tempo e do espaço.
Diferentemente desta compreensão, os regimes impolíticos procuram
mitigar ou destruir essa ordem espontânea colocando no lugar uma ordem
artificial. A vontade de um soberano, o decisionismo, um formalismo mitigado
ou quaisquer outros critérios que possam de alguma forma impedir ou anular o
avanço da ordem espontânea.
Portanto, quais são os elementos que explicitam a ordem espontânea
típica dos regimes políticos? Aqui, eu me dirijo à segunda parte da nossa aula.

3. A LINGUAGEM
3.1. A linguagem e a novilíngua
Os regimes políticos supõem que subexista, no horizonte ulterior desta
ordem espontânea, que nós vamos chamar aqui de a vida histórica dos regimes
políticos, sejam eles quais forem, um vínculo constitutivo entre a linguagem e
o mundo. De modo que a linguagem, neste sentido, nesta acepção, não é tomada
como algo contingente, mas é vista como algo presente no mundo e necessário
para que os próprios seres humanos, no mundo, interpretem o mundo e a si
próprios. A linguagem, portanto, desempenha uma função primordial, aquela
segundo a qual o mundo é expressável e cognoscível pelos seres humanos que
habitam nesse mesmo mundo.
Veja como são as coisas. A melhor maneira de impedir que os seres
humanos possam compreender o mundo e possam compreender a si próprios
no mundo é justamente o contrário da língua, que é o que nós chamamos de
novilíngua. A novilíngua não é outra coisa senão o instrumento par excellence,
por excelência, dos regimes totalitários, que têm em vista precisamente a
anulação da consciência. A anulação da consciência que advém por meio de uma
nova linguagem, uma nova novilíngua que substitui a língua, digamos assim,
natural, que é uma língua convencional, por uma outra língua que é criada em
laboratório, que, no caso, é um laboratório de natureza política ideológica.
De modo, portanto, que, quando nós falamos nos caracteres principais,
nos postulados adjacentes a todos os regimes políticos, nós falamos num
envolvimento constitutivo entre a linguagem e o mundo público comum. E
naquilo que diz respeito ao político propriamente dito - há uma ontologia do
político, vamos dizer assim - qual é a linguagem e qual é o mundo
correspondente?

3.2. A Constitutio
A linguagem é algo que os romanos já traziam desde a Era Republicana.
Nós encontramos rudimentos disso nos escritos dos juristas romanos como
Caio2, por exemplo. Ali, nós percebemos claramente a importância do que eu
vou chamar aqui em latim com a palavra “constitutio”.
Constitutio, da onde vem a palavra “constituição”, é a linguagem que
expressa essa ordem primária espontânea. A constituição, que no Mundo Antigo
pouco ou nada tinha que ver com o que hoje nós chamamos de constituição,

2
Caio Atei o Ca pitão, jurista (30 a.C. - 22 d.C.).
representa a própria linguagem expressiva do nomos. Ou seja, como esse nomos
é comunicado para os seres humanos. Como a ordem espontânea é expressa
perante o auditório de seres humanos que compartilham desta ordem de um
modo consciente ou mesmo de um modo inconsciente por vezes. Este
compartilhamento se dá por meio de uma constitutio.
Mas veja que a constitutio hoje pode ser, por exemplo, uma constituição
escrita, ou uma constituição não-escrita, ou uma constituição parcialmente
escrita por meio de certos documentos de fontes históricas, como é o caso do
Reino Unido. A constituição inglesa, para o direito constitucional, não é uma
constituição escrita, porque não é um documento formal como no Brasil, onde
temos a Constituição de 88, ou como a Constituição dos Estados Unidos de 1787
e outros textos, mas é uma constituição historicamente construída e, portanto,
construída por meio de atos, eventos históricos e documentos escritos, como é
o caso da Magna Carta, do Bill of Rights e de outros documentos importantes que
vão de alguma forma formatando aquela tradição jurídica.
Tudo isso para dizer que a palavra “constituição”, entendida no sentido
clássico ou entendida no sentido moderno - e por isso eu dizia que há pouco que
ver, quer dizer, algo há de comum, há pouco, mas há alguma coisa - o que há de
comum é precisamente isto: o fato de que, tanto no sentido antigo como no
moderno, a constituição é a linguagem que expressa a ordem. E essa expressão
da ordem é a expressão daquilo que há de comum entre os seres humanos em
uma comunidade humana.
O que os brasileiros possuem de comum? Aquilo que está na constituição.
O que os norte-americanos possuem de comum? Aquilo que está na
constituição. O que os italianos possuem de comum? Aquilo que está na
constituição. Tudo isso para dizer que nós podemos criticar uma constituição
ou outra, mas é causa final, é finalidade de uma constituição, seja ela qual for,
expressar, por meio da linguagem, o que há de comum entre uma comunidade
política.
Só que isto basta? Essa é a pergunta. Ou seja, quando nós vemos as
diferentes formas de aplicabilidade de eficácia das constituições entre si nos
seus respectivos países, nós nos perguntamos: isto basta? Quer dizer, há países
onde as constituições são mais eficazes do que o Brasil, por exemplo. Então,
basta a constituição ou são necessárias outras coisas?

3.3. A relação entre a linguagem e o mundo público comum


E aqui eu entro no segundo aspecto que eu havia dito, que é a relação entre
a linguagem e o mundo público comum. Esta relação da linguagem com o
mundo público comum exige que da constituição nós tomemos aquilo que vai
de alguma maneira determinar a ordem no mundo público comum, aquilo que
vai concretizar a constituição na realidade prática da comunidade política. E o
que é isto que permite uma aplicabilidade, uma eficácia maior, uma
determinabilidade prática da linguagem constitucional na realidade política
propriamente dita?
Esse envolvimento da linguagem com o mundo se dá porque, da
constituição, nós mergulhamos no mundo por meio de três níveis
discriminados entre si. Três níveis que estabelecem uma espécie de
procedimento constitucional. Um démarche sociológico e político que permite a
uma comunidade humana interpretar o mundo e autointerpretar-se nesse
mundo.

3.3.1. O nível das instituições


Vou chamar esses três níveis aqui com os seguintes termos. O primeiro
nível é o que eu vou chamar de o nível das instituições juspolíticas. Da
constituição, o primeiro nível que é exigido é o nível institucional, porque as
instituições, de alguma maneira, estabelecem uma primeira modalidade
concreta de expressão da linguagem constitucional. Mais ou menos assim: eu
preciso ver a ordem. Assim como uma criança precisa ver a ordem dada por seus
pais ou por aqueles que têm autoridade sobre ela, em razão de sua incapacidade
de governar a si própria, os cidadãos adultos precisam ver a ordem para que
possam ter uma orientação na comunidade política. E a primeira coisa que um
cidadão deve ver relativamente à ordem é a conjuntura das instituições
políticas. As instituições juspolíticas, e eu chamo de juspolíticas porque são
instituições do Direito e da política, organizam a vida social e, ao mesmo tempo,
estabelecem os limites das ações e abstenções humanas nesta mesma vida
social. Ou seja, as instituições, ao fazê-lo, expressam bem a ordem.
Se você for à Atenas e fizer o ato imagético de pegar uma máquina do
tempo como Delorean, por exemplo, no “De volta para o futuro”, e voltar alguns
milênios para Atenas ao tempo de Sócrates ou um pouquinho antes até, você
veria ali uma organização social que, embora primitiva, era muito avançada
para o seu tempo por vários motivos. Um deles é o fato de que os atenienses
tinham bem claro que as instituições da cidade revelam essa ordem. Ou seja,
independentemente se um cidadão como Agaton ou Apolo acreditasse ou não
na Deusa Palas Atenas como fundadora da cidade, ou em Zeus como o grande
Deus do Olimpo, ou em qualquer coisa que faça menção à mitologia, aos deuses
do Olimpo, independentemente dos compartilhamentos e das crenças
mitológicas ou mito-poéticas daquele tempo, o fato objetivo é que, acreditando
ou não, todos estavam de algum modo vinculados à ordem manifesta
visivelmente por meio das instituições da pólis, das instituições, no caso, de
Atenas.
A mesma coisa na República romana. Independentemente dos templos
em honra aos deuses que eram compartilhados ao tempo da República romana
e mesmo mais tarde, durante o Império, templo em honra a Vênus, templo em
honra a Saturno e etc., o fato objetivo é que as instituições do direito e da
política, como a questura e o pretorado em Roma, expressavam o modelo de
ordem da res publica, da coisa pública, a ser seguido. As instituições constituem
esse primeiro nível que manifesta a ordem visivelmente para uma comunidade.
3.3.2. O nível das regras
Obviamente, somente as instituições são incapazes, por si sós, de
manifestar toda a conjuntura completa do que nós vamos chamar aqui de os
futuros contingentes das ações humanas compartilhadas nessa mesma
comunidade. É necessário um segundo nível que torne ainda mais concreto este
modelo de ordem que já por meio das instituições é visível e manifesto, mas que,
de alguma forma, reduzidos a esse primeiro nível, não seriam capazes de
atravessar os tempos e, às vezes, as décadas e os séculos, para de alguma forma
lidar com a atualização cultural e dos valores dentro de uma comunidade.
É necessário, portanto, que entre a realidade prática dos seres humanos
na pólis e as instituições que expressam essa ordem exista um segundo ponto,
um segundo nível que lide com maior eficácia e de maneira mais reduzida a um
ou a alguns estados de coisas dentro dessa sociedade. Portanto, que lide com os
aspectos mais particulares, mais contingentes, com as circunstâncias concretas
de uma maneira mais concreta.
Nós temos um segundo nível que é o que eu vou chamar aqui de o nível
das regras, o nível das normas do direito ou, para falar mais
contemporaneamente, o nível do sistema jurídico. O conjunto das leis que
regulam as ações e abstenções humanas em uma pólis, em uma comunidade
política. Ou seja, as instituições regulam, mas precisam de algo, de um
instrumento para regular de uma maneira mais contingente, mais concreta as
coisas, que é o que chamamos de mundo das regras. E por isso, vejam, essas
regras se submetem, em primeiro lugar, às instituições e, em última análise, à
constituição, que é a linguagem que expressa essa ordem.
E o que acontece numa sociedade em que regras e constituição são ambas,
de alguma forma, digamos - desculpem a expressão -, prostituídas em prol do
arbitrário e da indeterminação? Acontece o caos ou o primeiro passo para os
regimes impolíticos, que é justamente o contrário dos regimes políticos.
Estas distinções são decisivas para o que chamamos de Rule of Law,
Estado de Direito. Distinções sem as quais não há nenhuma possibilidade de um
Rule of Law, de um império do Direito. Isto é, de uma ordem espontânea e aberta
às vicissitudes históricas.

3.3.3. O nível das decisões


Só que vejam que mesmo dentro do âmbito das regras, as regras como
tais, as regras, digamos, seletiva e selecionadamente, são linguagem normativa.
Elas precisam de um terceiro nível que as torne ainda mais concretas. Uma
regra, para tal, precisa ter dois aspectos: precisa descrever um fato e uma sanção
correspondente. Isso é uma regra, via de regra. Desculpem a redundância. Há
regras que são mais descritivas e há outras que são mais prescritivas, mas todas
as regras são, em maior ou menor medida, ambas as coisas, imperativa e
prescritiva simultaneamente. Mas o que torna a regra aplicável concretamente
falando? O que faz com que a sua dimensão sancionatória, o seu âmbito
prescritivo, de fato desça às particularidades sociais e aplique o conteúdo dessa
regra?
Aí nós precisamos de um terceiro nível. E esse terceiro nível é o que vou
chamar de decisão. E aqui eu vou me apoiar nas lições do Carl Schmitt a respeito.
Uma instituição produz uma regra que por sua vez embasa uma decisão. De
modo que nesse démarche político-jurídico procedimental, que parte da
linguagem para a concreção no mundo, nós temos três níveis: as instituições, as
regras e as decisões que por sua vez estabelecem estados existenciais
correspondentes. Ou seja, as instituições, apenas visíveis aos olhos humanos,
apresentam algo visível, mas indeterminado. As instituições estabelecem um
campo de indeterminação, por assim dizer, porque, em existindo as instituições,
nós não sabemos bem quais regras e quais decisões virão posteriormente.
Sozinhas as instituições apenas expressam a ordem, mas de um ponto de vista
indeterminado.
Então, nós precisamos de um segundo nível para que essa determinação
ganhe um certo corpo na vida contingente da sociedade, que é o que nós
chamamos de regras. E as regras, portanto, correspondem a um plano de
determinação. Só que as regras, como tais, ainda estão num âmbito abstrato.
Nós somos capazes de ler as regras e de seguir as regras e de viver de acordo com
as regras, mas se nós seguirmos as regras e vivermos de acordo com elas, nós
não seremos capazes de sentir, na carne, as regras, o que só vem por meio das
decisões, porque essas afetam especificamente as nossas vidas.
Por exemplo, se eu violo uma regra, uma decisão me impõe o dever de
restituir o bem ou qualquer outra coisa que tenha sido objeto da injustiça que eu
pratiquei com quem quer que seja - com outrem, com a sociedade ou com o
próprio poder civil. Por isso que, se as regras correspondem a um plano de
determinação, as decisões correspondem a um plano de autodeterminação,
porque não são determinadas apenas em geral, como são as regras, de maneira
abstrata, mas determinam o concreto. É uma determinação de carne e osso,
vamos chamar assim, porque a decisão é uma determinação que não afeta
apenas o Estado de Direito e as regras do jogo, mas afeta a vida concreta dos
agentes que estão involucrados neste mesmo âmbito. Ou seja, as decisões
consumam o nível mais particular e contingente que as regras podem invocar
dentro de uma circunstância ou dentro de uma miríade de circunstâncias
concretas dentro da vida política da sociedade.
Toda ordem e, portanto, todos os regimes políticos, por serem chamados
assim, exigem, para sua adequada compreensão, que o modelo, o edifício da sua
constituição esteja assentado em discernir esses três níveis em que a constitutio
expressa a ordem. Essa expressão da ordem supõe sempre três níveis de
determinação dessa mesma ordem: um nível que perante a comunidade é ainda
indeterminado, que é o nível das instituições; um nível que perante a
comunidade é mais determinado, que é o nível das regras; e um nível que é
absolutamente determinado, porque sob o ponto de vista dos seres humanos
concretos e reais dessa mesma comunidade, é um nível autodeterminado, é um
nível que abarca esses seres humanos do ponto de vista dos seus corpos.

4. AS CARACTERÍSTICAS DOS REGIMES POLÍTICOS


E, portanto, se nós observarmos os regimes políticos ao longo da história
que merecem este nome, são regimes que, de algum modo, estruturam os seus
edifícios procedimentais e substantivos a partir desse arcabouço conceitual e
teórico. Todo regime político, onde esteja e seja ele qual for, sempre terá uma
constitutio, sempre terá um conjunto de instituições estáveis, sempre terá
regras estáveis e sempre terá decisões estáveis.

4.1. As monarquias
As monarquias antigas, de acordo com Aristóteles, tinham isso?
Resposta: tinham. Porque ali o monarca era um servus servorum populum, ou
seja, ele estava ali para servir ao povo e é isso que caracteriza a monarquia, poder
de um, porque poder tem como titular central a massa, a comunidade dos
cidadãos. Essa é a visão clássica antiga de monarquia. Na monarquia, tem uma
constitutio, tem uma instituição e essa instituição tem, antes de mais nada, o
dever de devido respeito à constitutio e, portanto, às regras estabelecidas pela
constitutio, para somente depois conceber as regras e tomar decisões a partir da
constitutio, porque a constitutio é o farol desse regime político. De novo, de
acordo com o modelo clássico antigo.

4.2. As aristocracias
A mesma coisa na aristocracia, Aristos, o governo dos virtuosos. Areté,
virtude. Aristocracia, Aristói Kratos, o governo, o poder dos virtuosos. Qual é o
poder dos virtuosos? É o poder de um grupo reduzido de pessoas chamadas
virtuosas. Por quê? Porque são virtuosas na medida em que os seus atos e as suas
abstenções na vida pública respeita aquilo que determina a constitutio. É
precisamente essa ordem anterior e superior que é dirigida ao futuro tendo em
vista sempre uma organização institucional, um conjunto de regras que
estabilizam essas relações e decisões que reafirmam essas mesmas regras
dentro da contingência prática da vida social.

4.3. A politeia
Na politeia, que é uma espécie de boa democracia na Antiguidade, apesar
do equívoco nominal - do qual nós falávamos no início da aula -, é precisamente
esse regime que é uma constituição que considera a todos como partícipes
diretos ou indiretos do poder civil. Essa é a politeia, esse sim é o modelo antigo
mais topológico do que nós temos hoje como democracia e Estado de Direito,
porque a politeia é a organização institucional que toma por base a participação
de toda coletividade humana, em maior ou menor medida, nas estruturas de
poder, as regras que estabilizam as relações e as decisões que conformam essas
mesmas regras.
Nós temos hoje regimes muito mais evoluídos do ponto de vista
institucional do que tínhamos no passado. Por exemplo, nos atuais regimes
parlamentares, nos regimes parlamentaristas, nós temos uma variedade de
modelos com elementos aritméticos e geométricos cada vez mais complexos
para definir os sistemas eleitorais e partidários. Nós temos sempre em vista o
quê? Sempre a regra da isonomia, a igualdade política. Ou seja, a participação
igual para todos com um peso, um voto. A isocracia é uma regra que deriva da
isonomia, que, por sua vez, deriva do ison, da igualdade ontológica entre os seres
humanos, o fato de que todos compartilham uma mesma igual dignidade.

4.4. Os dois ambientes constitucionais


Mesmo nos Estados atuais de Direito, nós temos pelo menos dois
ambientes. As constituições atuais estabelecem dois ambientes.
Um ambiente que é o núcleo duro de significação, que é o que nós vamos
chamar de identidade comum, que normalmente advém por meio de conceitos
como dignidade da pessoa humana, dignidade humana, uma tábua de direitos
fundamentais. Quer dizer, aquilo ali constitui o núcleo duro de significação de
uma comunidade humana.
Há ainda um segundo âmbito. Axel Honneth3, um autor muito
interessante da Escola de Frankfurt, nos diz que há um espaço para o que ele
chama de a luta por reconhecimento, que é um espaço por meio do qual os seres
humanos e os movimentos sociais e políticos lutam para ter algum espaço
dentro do primeiro âmbito, que é o âmbito da dignidade, o âmbito da identidade
comum.
Quer dizer, todo desenho, todo cenário dos Estados contemporâneos de
Direito se estruturam tomando por base essa distinção entre dois ambientes: o
âmbito da identidade e o âmbito do reconhecimento, que é o âmbito da
alteridade.

4.5. Os movimentos sociais


E onde entra, portanto, neste caso, os três aspectos? Entra de cheio. Por
que o que é a luta por reconhecimento senão a luta por determinação e por
autodeterminação? Do ponto de vista dos movimentos, é uma luta por
determinação, porque é uma luta por regras, e, do ponto de vista dos indivíduos
concretos que estão nesses movimentos, é uma luta por autodeterminação,
porque estão querendo de alguma forma ver a sua identidade social dentro da
identidade comum ou como algo pertencente à identidade comum.
O que fizeram, por exemplo, os regimes totalitários do século XX, que são
regimes impolíticos por definição? Eles procuraram destruir esse vínculo e, a
partir de tanto, criaram um conceito ideológico para esse núcleo duro de
significação, onde a identidade não é tomada como a dignidade comum, mas é

3
Fil ósofo alemão.
tomada pelo feixe ideológico característico. Então, por exemplo, os judeus, para
o nazismo, não podem pertencer ao núcleo duro de significação dessa
identidade comum dada pela constituição de Weimar, que era a constituição
alemã na época. Por quê? Porque eles não pertencem à identidade que é o
fundamento mesmo da constitutio para aquela comunidade política.
De modo que todos os regimes totalitários procuram destruir um, alguns
ou todos esses três níveis dos quais eu falava e, ao fazê-lo, impedem a harmonia
adequada entre o nível da identidade com o nível do reconhecimento e da
alteridade. Em outros palavras, a velha e máxima conexão entre ordem e
liberdade. Ou os regimes impolíticos focalizam numa ordem artificial que
desmorona o edifício da démarche procedimental da qual eu falava antes, os três
níveis que o Carl Schmitt e outros nos ensinam, ou os regimes impolíticos
procuram destruir a ordem colocando no lugar precisamente uma anomia e,
portanto, uma anarquia em nome de uma liberdade que, no fundo, não existe,
porque transforma-se em voluntarismo e indeterminação absoluta.
Entre os regimes políticos e os regimes impolíticos, portanto, já
finalizando essa terceira parte onde entramos em aspectos mais decisivos e
específicos de cada qual, nós temos sempre o conceito de ordem espontânea, que
pressupõe, para sua determinação, uma distinção nivelada em planos de
determinação, que, quando desaparecem um, alguns ou todos, resta, no lugar, a
ordem artificial, ou uma ordem criada por um soberano ou a anarquia absoluta
do estado de natureza, que promove, em um ou em outro caso, uma civilização
artificial e, portanto, a reificação de um regime impolítico que destrói a ordem
e, em última análise, destrói a liberdade humana.
SINOPSE
Nesta segunda aula, o professor Marcus Boeira esmiuça as características
dos regimes impolíticos e suas quatro tipologias existentes atentando para o
risco que o momento atual oferece em relação à perversão da política.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desta aula, espera-se que você saiba: o que são os regimes
impolíticos e por que são assim chamados; as quatro tipologias dos regimes
impolíticos e suas características.

INTRODUÇÃO
Sejam bem-vindos para esta segunda aula do curso de regimes políticos e
impolíticos. Nessa aula, pretendo analisar os regimes impolíticos, as suas
características, alguns dos seus elementos constitutivos, em especial,
contrastar o último tipo de regime impolítico que tem se tornado cada vez mais
presente na vida de algumas das democracias do Ocidente com os regimes
políticos, que nós tratamos, na primeira aula, a partir das suas características
principais.
Quero dividir a aula de hoje para, do ponto de vista metodológico, bem
organizar as ideias, em duas partes. Na primeira parte, eu gostaria de enfrentar
com vocês alguns dos regimes impolíticos existentes historicamente falando e
mostrar a sintonia fina entre esses regimes, esses modelos de regimes
impolíticos, do ponto de vista do seu postulado uniforme e universal.
E, a partir de estabelecer esta característica comum entre os regimes
impolíticos na primeira parte, eu gostaria de me dirigir à segunda e última parte
da aula, que é aquela que procura analisar um regime político em especial, que é
o que eu vou chamar aqui de biopolítica. A biopolítica é o regime impolítico
característico do nosso tempo.
2. OS REGIMES IMPOLÍTICOS
Todos os regimes impolíticos são regimes que partem de um postulado
central; a saber, os regimes impolíticos procuram erodir a ordem espontânea e
natural e colocar, no lugar desta ordem espontânea e natural, uma ordem
artificial que procura dar conta da sociedade humana tomando por base uma
imagem distorcida, precária e, por vezes, mentirosa em relação a essa ordem
espontânea originária.
Os regimes impolíticos são assim chamados porque são contrários à
política, à pólis, à ideia mesma de uma ordem para as ações e abstenções
humanas. Toda ideia de pólis está assentada na ideia segundo a qual as
instituições da cidade se dirigem ao fim comum, que é a felicidade, a vida boa
dos seus cidadãos. O compartilhamento de certos bens humanos básicos que são
realizados e vivenciados a partir do conjunto das condições formais e materiais
que uma pólis traz relativamente à liberdade dos seus cidadãos.
Quando falamos em regimes impolíticos, por outro lado, existe a
pretensão de colocar, no lugar dessa espontaneidade, um espaço inteiramente
artificial, onde há o controle em larga escala, seja por quaisquer razões - seja por
uma razão cientificista, por uma razão moralista, por uma razão teocrática, por
uma razão econômica, enfim, seja qual for a razão. Há sempre a pretensão de
colocar, no lugar desta ordem espontânea, que admite uma espécie de
pulverização harmônica, mas, ao mesmo tempo, indeterminada dos bens
humanos no tempo e no espaço, o contrário, ou seja, um fechamento
metodológico de uma única justificativa ou algumas justificativas que
fundamentam o poder dentro de uma ordem civil, fazendo com que esta ordem
seja, portanto, institucionalizada por critérios artificiais contrários a essa
espontaneidade, a essa natural expansão de uma ordem humana.

3. TIPOLOGIA DOS REGIMES IMPOLÍTICOS


Os regimes impolíticos podem ter quatro tipologias básicas.
3.1. Corrupção ou corrupção sistêmica
A primeira tipologia básica que nós temos num regime impolítico é o que
nós vamos chamar de corrupção ou corrupção sistêmica. Neste sentido, a
corrupção pode se dar por inúmeros fatores. Uma corrupção que ocorre em
razão da má organização das instituições, por exemplo, e promove o caos e a
desordem em razão desta má organização, que é o caso brasileiro. Ou seja, em
razão de uma organização institucional anacrônica, nós produzimos corrupção,
não só a corrupção econômica, mas a corrupção civil. Não há uma ordenação das
expectativas - o que é um traço característico e fundamental para a justiça
política, não há isto -, quando falamos em ações que de alguma forma mantém
relações com o Estado, com a burocracia estatal. Então, a corrupção sistêmica é
o primeiro tipo de regime impolítico.
A corrupção, obviamente, pode ser econômica também. Quando o poder
econômico toma o poder político e vice-versa, criando uma espécie de
planejamento político-econômico em larga escala. Alguns autores do século XX,
como Hayek1, trazem um desenho desta primeira tipologia.

3.2. Autoritarismo
Há algum segundo modelo de regime impolítico que é o que vou chamar
de autoritarismo. O autoritarismo, que normalmente ocorre no caso dos
regimes militares ao longo de quase todo século XX em alguns países - aqui na
América do Sul, por exemplo, nós tivemos experiências dessa natureza -, ocorre
quando se ataca o processo político democrático deliberativo impedindo a
participação de setores da sociedade e de um grupo de cidadãos tendo em vista
a efetividade de alguns valores em detrimento de outros. Então, em nome da
nação, abole-se o direito ou liberdade de circulação e de imigração. Ou, em
nome, por exemplo, da unidade nacional, focaliza-se na segurança e na ordem

1
Fri edri ch Hayek, economista (1899 - 1992).
em detrimento da liberdade e de certas políticas, digamos assim, de identidade.
Em nome de uma força militar e civil, anula-se a capacidade da ampla
participação democrática no processo político.
Regimes dessa natureza são considerados regimes autoritários porque o
foco da patologia está no processo político, na destruição do processo
deliberativo que é incito à política numa ordem espontânea, como é o caso dos
regimes políticos. A corrupção está no processo.

3.3. O autoritarismo
Há um terceiro tipo de regime impolítico, que é o que eu vou chamar de
regime totalitário, que é diferente do regime autoritário. Os regimes totalitários,
diferentemente do segundo e do primeiro, procuram atacar a ordem, o nomos da
terra, a ordem subjacente à constituição de uma sociedade política, porque, no
lugar desta ordem, os regimes totalitários colocam uma cosmovisão, uma visão
de mundo que é baseada numa ideologia subjacente. Uma ideologia que, de
alguma forma, seculariza certas categorias espirituais na própria História e
coloca, na História, uma visão destinatória, como se a História fosse um palco
dirigido e por meio do qual uma classe dirigente conduz a História e o povo,
volksgeist, rumo à perfeição
Normalmente, nos regimes totalitários, existe uma antropologia
distorcida que toma o ser humano como perfectível, o ser humano vai se
aperfeiçoando na História até atingir um grau de perfeição absoluto. No caso do
nazismo, por exemplo, isso fica muito claro. O ideal racial. No caso do
stalinismo, do leninismo, isso também fica claro. O novo trabalhador, o novo
homo faber que agora é a imagem mesma do animal laborans marxista. No
fascismo também, mesma coisa, ou seja, o novo homos eticus do fascismo, aquele
que está condensado na estrutura estatal que detém o monopólio ético.
Ou seja, todos os regimes totalitários têm em vista uma visão de mundo,
uma cosmovisão, que toma a História como um palco dirigido por uma classe
dirigente. Uma classe dirigente que terá a missão de levar a humanidade à sua
perfeição, à nova humanidade. Uma visão de mundo por trás que determina o
processo histórico. Uma colonização do futuro. Uma demarcação do horizonte
contingente futuro que reagrupa as diferentes particularidades a uma visão
universal, abstrata e idealizada de humanidade que substitui a realidade
propriamente dita, colocando na ideia, e não no real, o fundamento do poder
civil. Todo regime totalitário, portanto, aniquila a realidade humana em prol de
uma idealidade social.

3.4. A biopolítica
E há um último modelo de regime impolítico, que ganhou força nos
últimos tempos, que é o que eu vou chamar de biopolítica. A biopolítica possui
uma classificação própria porque não se adapta perfeitamente nem a um
totalitarismo tout court, nem a um autoritarismo tout court, nem a um regime
corruptível tout court, mas engloba elementos dos três regimes anteriores. A
biopolítica pega um pouco de cada qual e faz um novo modelo.
O que traz o regime impolítico ao qual nós vamos chamar aqui de
biopolítica? A biopolítica normalmente trabalha com a ideia de exceção ou de
estado de exceção. O estado de exceção que pode ser provisório ou permanente.
E o estado de exceção que pode assumir muitas facetas e, portanto, muitas
justificativas, que vão desde uma emergência sanitária até uma decisão
cientificista que, em nome da ciência, vale-se de um critério meramente
empirista ou empírico-verificacionalista para determinar um plano de ação
para a sociedade. Em nome da ciência, todos deverão usar máscaras. Ou seja, ao
invés de calarmos o ser humano por atos e decretos que digam expressamente
algo atinente à sua natureza humana digna, nós vamos usar o nome da ciência
para dizer: “usem a máscara e, portanto, respeitem à ciência, porque esta
medida é cientificamente válida e comprovada”.
Com isto, obviamente, eu não quero dizer que o uso da máscara em certas
circunstâncias, em razão do coronavírus e da pandemia que tomou conta do
mundo nos últimos dias, não seja algo justificado. Obviamente é justificado em
certos casos e em certas medidas. Eu sou o primeiro a defender isso e o primeiro
a dizer que sim, o coronavírus é letal para uma faixa etária da população e é
fundamental que nós prestemos atenção a isto. Eu sou o primeiro a dizer e o
primeiro a defender isto. Só que, por trás do coronavírus e por trás da situação
pandêmica, existe um uso político ilegítimo e, portanto, impolítico, que merece
uma atenção de nossa parte.
E é curioso que, atualmente, no mundo, possamos ver que, em alguns
países, a atenção a essas coisas seja algo próprio de um movimento político que,
por assim dizer, é identificado mais com o conservadorismo e com o liberalismo
e, em outros países, como a Itália, foi exatamente a esquerda que preocupou-se
com essas medidas de emergência e em denunciar o uso político irrefreado
dessas medidas. De modo que não podemos fazer classificações, por assim dizer,
ideológicas, de esquerda ou de direita, para analisar essa situação, porque a
própria realidade empírica das democracias no Ocidente nas quais nós estamos
a viver mostram que, em alguns casos, é um grupo ideológico que toma pé
diante de uma crítica a este estado de caso e, em outros, é o outro grupo
ideológico que o faz. Mostrando, de um lado, a irracionalidade à qual a luta
ideológica conduz os cidadãos de algum modo dentro das respectivas
democracias e, de outro lado, que os fatos como tais exigem uma atenção que as
meras ideologias não são capazes de dar e, muitas vezes, até obscurecem essas
mesmas análises.
Não quero aqui pregar imparcialidade e neutralidade, longe de mim.
Talvez isso seja muito difícil, no mínimo. Mas, de fato, uma situação como essa
merece uma atenção que não se reduz a um escopo ideológico padrão. Parece
não subexistir dúvidas quanto a esta medida: a exigência e a necessidade de uma
análise mais afastada do ponto de vista das intenções ideológicas do observador.
Por isso, a biopolítica pode ter uma miríade de justificativas que vão desde
o cientificismo ou a plataforma econômica, como, por exemplo, em nome da
economia, nós vamos suspender a democracia e o Estado de Direito, até medidas
de caráter emergencial, como a emergência sanitária que estamos a viver.

3.4.1. As quatro características da biopolítica


E o que está por trás desse fundamento biopolítico que contrasta com a
política ou os regimes políticos propriamente ditos? Eu diria que existem pelo
menos quatro grandes características na biopolítica que contrastam com os
regimes políticos, com a política. Traçando aqui uma espécie de contraste, de
tensão entre a biopolítica e a política.
Em primeiro lugar, a política, como vimos, traz como seu fundamento
primevo a ideia de ordem, de nomos da terra, de uma ordem que se expande
naturalmente no tempo e no espaço. A biopolítica, por outro lado, baseia-se na
ideia de uma ordem artificial e, portanto, numa exceção permanente a esta
ordem. Quer dizer, se a ordem natural que se expande e se expressa por meio de
instituições é a ordem que fundamenta o Estado de Direito, o Rule of Law, o ideal
de política, de pólis, como nós vimos, na biopolítica, é a exceção, e não a ordem
natural, o elemento central. De modo que não são as instituições que projetam a
ordem, é o voluntarismo e o decisionismo do soberano, daquele que decide
quando o Estado de Direito e o estado de exceção deverão ocorrer para satisfazer
um, alguns ou todos esses critérios dos quais nós falávamos antes: emergência
sanitária, cientificismo, critério econômico e até religioso, etc.. A biopolítica
tem, portanto, como primeiro critério distintivo em relação à política, o fato
dela ser um regime impolítico em que a exceção, e não a ordem, aparece como o
estado de coisas ou o estado de normalidade. O novo normal para usar uma
expressão do Giorgio Agamben.
Só que, vejam, como nós falávamos na aula anterior, toda política, toda
ordem política supõe uma compreensão sobre o que é esse núcleo duro de
significação, esse âmbito duro, irrestrito, que é preenchido por uma certa
antropologia. E aqui eu me dirijo ao segundo critério. Toda filosofia política
requer uma antropologia subjacente, uma compreensão sobre o que é a natureza
humana. Uma definição sobre o que é o ser humano. Para a ordem política, isto
variou na História, mas, de maneira mais mitigada ou mais presente, em maior
ou menor medida, sempre há o compartilhamento da tese de que o ser humano
como tal merece alguma dignidade, seja ele quem for.
Você poderia objetar: “mas, no mundo grego-romano, existia escravidão”.
Por isso eu digo: mitigado. Lá no mundo greco-romano, a antropologia ainda era
muito distante do ideal e, portanto, a fundamentação da filosofia política era
totalmente precária em razão disso. Com certeza. Mas, quando contrastamos
com a ideia de ordem política e civil que temos nos atuais Estados de Direito, na
vida pautada pelo Direito portanto, e, sobretudo, pelo direito constitucional, nós
vemos que o ideal de dignidade da pessoa humana, o ser humano tomado como
uma pessoa, é o núcleo duro de significação da ordem política.
E o que a biopolítica faz? A biopolítica substitui a dignidade da pessoa
humana por um novo humanismo. Uma nova compreensão do que é o ser
humano. Não é um ser digno e pessoal, mas é um indivíduo isolado e jogado na
sociedade de massas, na coletivização absoluta e completa da vida social, onde
nós não somos mais seres dignos e pessoais, com igual consideração e respeito,
para usar a expressão de um filósofo do Direito nada usual, que é Ronald
Dworkin, com quem eu tenho muitas divergências, mas, a despeito dessas
diferenças, neste ponto, eu tenho impressão que o Dworkin acertou e acertou
em cheio. Então, violando a igualdade de condições, a igual consideração e
respeito, que é um traço sociológico distintivo da dignidade da pessoa humana,
o novo humanismo coloca no lugar o indivíduo.
O indivíduo que agora é visto não mais como um ser que por si mesmo é
fonte de direitos fundamentais, mas é visto como uma parte aritmética do todo.
E essa parte aritmética do todo entra numa perspectiva em que, da dignidade
pessoal que oferecia, digamos, algum aspecto estático na dinâmica do tempo,
algo permanente naquilo que é dinâmico, algo que permanece mesmo ante o
perecimento do tempo e do espaço, o novo humanismo coloca no lugar uma
espécie de liquidez na compreensão sobre o que é a natureza humana. São
corpos em movimento dentro de uma sociedade líquida, para usar uma
expressão do Bauman. E esses corpos em movimento, portanto, porque não
possuem entre si qualquer dignidade, nem tampouco a relação entre esses
corpos é tomada como um conjunto de relações igualmente respeitáveis, a não
ser do ponto de vista daqueles que detêm o poder, esses corpos são vistos pela
ótica não das relações em si, não do ideal de justiça correspondente a essas
relações, mas a partir dos movimentos dos corpos. E cabe, portanto, a biopolítica
traçar, por meio das tecnologias de ponta, os movimentos dos corpos. Para onde
esses indivíduos vão, para onde eles voltam, quem são eles, o que eles fazem,
qual é a reputação deles e o controle tecnológico que vai se agigantando sobre
esses movimentos.
Veja que, nesse sentido, nós chegamos a uma terceira característica, que
é o fato de que, na ordem política, os valores que promovem as relações entre os
seres humanos são sempre valores que correspondem à liberdade e à
espontaneidade dos seres humanos. Vou fazer um contrato com alguém e faço
porque sou livre e posso fazê-lo espontaneamente. A liberdade e a
espontaneidade caracterizam as relações humanas, as relações de amizade, as
relações de justiça e as relações de equidade que possam existir dentro do Rule
of Law, do Estado de Direito, ao passo que, na biopolítica, não é mais a liberdade
e a espontaneidade, é o monitoramento dos corpos, o que o Michael Foucault
chama de o estado panótico, fazendo obviamente um resgate das teses do
Jeremy Bentham. Um estado panótico em que o controle biotecnológico é usado
para controlar e traçar os movimentos dos corpos numa espécie de
monitoramento aritmético progressivo em que os indivíduos vão sendo cada
vez mais invadidos nas suas esferas de particularidade e privacidade para dar
vazão a um controle biotecnológico cada vez maior e cada vez mais absoluto. De
um lado, a liberdade e a espontaneidade. De outro, o monitoramento dos corpos.
E aí chegamos ao quarto ponto, que é precisamente o que, no passado, os
juristas e os filósofos chamavam de obrigação de consciência. Ao que estamos
obrigados por consciência e de quem vem esta ordem? Essa é a pergunta.
E aqui o contraste entre um modelo de Estado que não obriga as
consciências, que é o modelo de Estado onde a ordem política preserva a
liberdade e a espontaneidade, a ordem espontânea, por assim dizer. O que nós
temos aqui, portanto, é uma visão da laicidade, o Estado é laico porque o Estado
permite aos seres humanos a opção por crenças e convicções de uma maneira
livre. O Estado não entra nesse terreno. O Estado abstém-se de pautar as suas
condutas de modo a invadir as consciências.
E, no mundo da biopolítica, ao contrário, o Estado e mais a classe política
e dirigente por trás do Estado têm em vista o uso do estado para a invasão da
consciência, para a invasão daqueles padrões estéticos e simbólicos que definem
a forma de vida e o horizonte de expectativas que um ser humano possa ter
relativamente ao seu futuro e ao futuro da sua comunidade humana. O ideal de
florescimento humano, que é muito presente no tipo específico dos regimes
políticos, desaparece para dar vazão a um laicismo cada vez mais intenso em que
o Estado é usado para, ao monitorar os corpos, monitorar também as intenções
por trás dos movimentos desses mesmos corpos. Monitorando, portanto, quais
são as ações e reações voluntárias dos seres humanos, que, no caso, são
indivíduos. O que eles querem, quais são as suas expectativas, quais são as suas
perspectivas, o que eles gostam de consumir, quais são os usos e dispositivos
com os quais esses indivíduos vão permitindo cada vez mais um controle sobre
si mesmos, sobre si próprios. No fundo, de que maneira esse laicismo militante
vai destruindo a conexão entre os indivíduos e os seus respectivos horizontes de
futuro, achatando o passado com o futuro de maneira a reificar o presente no
controle total, no controle absoluto. Primeiro, dos corpos e das consciências
depois.
Em curso, o metacapitalismo, protagonizado por uma elite que tem em
vista precisamente o domínio do poder econômico e do poder político e que usa
a biopolítica como mecanismo de controle em larga escala. De outro, uma força
política e econômica igualmente considerável, como é o caso do protagonismo
hegemônico que a China tem ocupado na nova ordem mundial. Os globalistas
ocidentais de um lado e os globalistas orientais de outro. Duas forças nefastas
que têm em vista a destruição da classe trabalhadora, da classe política cidadã,
da liberdade civil e política e, como não, da dignidade humana como tal. Em
nome de um horizonte de futuro que se reifica no presente, tomando por base
um estado de exceção permanente que vale-se das medidas emergenciais para
arquitetar a biopolítica, um novo humanismo onde o monitoramento dos
corpos e uma sociedade líquida e reificada no prazer e no consumo alienam de
tal modo as consciências humanas que os próprios indivíduos não são mais
capazes de atentar, de dar-se conta, afinal, do modo como estão sendo regidos e
guiados, sem a mínima consciência de quem está por trás dessa direção e de
quais são os usos de dispositivos que marcam esse estado de alienação
permanente ao qual estão subjugados. Entre a política e a biopolítica, estamos a
viver a luta entre a liberdade e uma nova forma de escravidão que congrega
elementos do totalitarismo, congrega elementos do autoritarismo e congrega
elementos da corrupção sistêmica para formar uma modalidade de regime
impolítico muito mais letal e complexa, com capacidade suficiente de um
controle biotecnológico em larga escala.
A civilização da liberdade que se expressa na constituição, nas
instituições, nas regras e nas decisões, como falávamos na primeira aula, tem
sofrido um duro golpe daqueles que querem de alguma forma centralizar todo
o poder ou na linguagem, ou no mundo, sem, todavia, conectar a linguagem
com o mundo de uma forma harmônica e humanamente digna. Portanto, o
olhar da filosofia política e da filosofia prática como um todo, que é aquela se
determina a fazer um diagnóstico da ação humana na História, portanto é uma
filosofia da ação humana, tem de atentar precisamente não apenas para o
retrato do estado de coisas que se vive em um determinado momento histórico,
mas, sobretudo, as consequências possíveis advindas a partir dos usos e
dispositivos que são alocados dentro desses estados de coisas para fazer
perpetuar um regime impolítico que substitui de maneira pouco aparente a
ordem espontânea por uma ordem artificial, onde o estado de exceção se faz
permanente sem que os indivíduos que estão colocados dentro desse mesmo
estado de exceção sejam capazes de perceber.
Nesta aula, portanto, eu procurei traçar um diagnóstico comparativo
entre a política e os regimes impolíticos tomando-se por base o último desses
modelos de regimes impolíticos que é o modelo do nosso tempo, a chamada
biopolítica. Muito obrigada pela atenção de todos e até mais.

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