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Professor Doutor Marcos Bernardes de Mello

ESQUEMA DE AULA - XII.2 EFICÁCIA JURÍDICA (III)

TEMA: FATOS JURÍDICOS DESJURIDICIZANTES - PRESCRIÇÃO E


DECADÊNCIA.
1. Introdução.
Embora, os fatos jurídicos sejam, em regra, geradores de relações jurídicas,
portanto, criadores de direitos, pretensões, ações e exceções, há deles que,
diferentemente, têm consequências deseficacizantes1, vale dizer: seus efeitos se limitam
a atuar sobre a vida de direitos, pretensões, ações e exceções, para encobrir-lhes a força
vinculativa, ou mesmo extingui-la. Dessas espécies são a prescrição e a decadência2,
essa também denominada preclusão e caducidade3 , atos-fatos jurídicos da espécie
caducificante, cujos suportes fácticos são assim compostos: (i) inação do titular em
exercer um direito imponível (=pretensão+ação) + (ii) o decurso de certo lapso
temporal fixado em lei4, aos quais as normas jurídicas atribuem eficácia,
exclusivamente, deseficacizante5.

Prescrição e decadência são instituições de direito positivo, de modo que cada


sistema jurídico lhes pode dar a configuração que considerar mais adequada, tanto em
relação à estrutura do suporte fáctico, portanto, na definição das hipóteses de prescrição
e de decadência, quanto à definição de seus efeitos, extintivos, suspensivos, por
exemplo.
Por isso, nada impede que uma situação fáctica que era objeto de prescrição, a
lei passe a qualificá-la como caso de caducidade, e vice-versa6.
Assim, em face da liberdade do legislador, apesar de importantes tentativas
doutrinárias7, parece-nos não ser possível definir critérios para que, a priori, se possa
dizer se certo prazo é prescricional ou é decadencial8.
1
Vide sobre incidência deseficacizante, MELLO, Teoria do fato jurídico:plano da existência, cit., § 19, 4.
2
A decadência pode resultar, também, de ato ilícito caducificante. Vide PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, t. II,
Parte III, Cap. IV, II, e MELLO Teoria do fato jurídico: plano da existência, cit., § 64, 3.2.
3
Pontes de Miranda prefere denominar a decadência de preclusão (Tratado de direito privado,t.VI, § 668.) Entretanto, o vocábulo
preclusão é mais empregado pela doutrina no direito processual.
4
A decadência pode ser estabelecida convencionalmente (C.Civil, art. 211)
5
PONTES DE MIRANDA assim a define: prescrição é a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo,
que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação (Tratado,cit. t.VI, § 662,2.
6
O Código Civil de 1916 não fazia distinção entre prescrição e decadência. Todos os prazos estavam relacionados como
prescricionais nos arts. 177 a 179. Mas, a melhor doutrina sustentava a distinção.
7
Vale referir, como exemplos, LEAL, Antônio Luís da Câmara, Da prescrição e da decadência. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense,
1959, e AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações
imprescritíveis, in Revista dos Tribunais, nº 744, de 1997.
8
Na elaboração do projeto do atual Código Civil, cogitou-se adotar regra segundo a qual seriam prescricionais os prazos
relacionados na Parte Geral no capítulo referente à prescrição, sendo de decadência os que constassem da Parte Especial. Está na
Exposição de Motivos que acompanhou o Projeto: Menção à parte merece o tratamento dado aos problemas da prescrição e
decadência, que, anos a fio, a doutrina e a jurisprudência tentaram em vão distinguir, sendo adotadas, às vezes, num mesmo
Tribunal, teses conflitantes, com grave dano para a Justiça e assombro das partes. Prescrição e decadência não se extremam
segundo rigorosos critérios lógico formais, dependendo sua distinção, não raro, de motivos de conveniência e utilidade social,
reconhecidos pela Política legislativa. Para por cobro a uma situação deveras desconcertante, optou a Comissão por uma fórmula
que espanca quaisquer dúvidas. Prazos de prescrição, no sistema do Projeto, passam a ser, apenas e exclusivamente, os
taxativamente discriminados na Parte Geral, Título IV, Capítulo I, sendo de decadência todos os demais, estabelecidos, em cada
caso, isto é, como complemento de cada artigo que rege a matéria, tanto na Parte Geral como na Especial.
Sem êxito, porém. Basta lembrar os casos da ação de petição de herança (art. 1824) e da ação de sonegados (art. 1994),
que o Código não estabelece prazo algum, mas a doutrina e a jurisprudência entendem serem de prescrição: Vejam-se: sobre a ação
de petição de herança :Súmula nº 149 do STF a declara prescritível, assim como eminentes doutrinadores THEODORO JÚNIOR,
Humberto. Comentários ao novo Código Civil. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 311; DINIZ, Maria Helena. Curso de
Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil. vol. 1. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 404; NERY JUNIOR, Nelson;
NERY, Rosa Andrade. Código Civil Comentado. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 305, e.g.. Sobre a ação de sonegados: ALVES,
Vilson Rodrigues. Da Prescrição e da Decadência no Código Civil de 2002. 4ª. ed. São Paulo: Servanda, 2008, p. 266;

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2. Distinções entre prescrição e decadência.


Apesar das semelhanças de seus suportes fácticos e de sua eficácia, se
distinguem por quatro aspectos: (a) por seus objetos; (b) pela amplitude de suas
eficácias; (c) renunciabilidade de seus efeitos; (d) pela peremptoriedade dos prazos; e,
finalmente, (e) por suas naturezas jurídicas.
2.a.) Quanto aos seus objetos.

(a.1) Na prescrição.
(i) A pretensão e a ação.
O Legislador Civil brasileiro de 2002 resolveu fazer ciência e incluiu no texto do
Código a disposição a seguir transcrita:
Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a
pretensão, a qual se extingue pela prescrição, nos prazos
a que aludem os arts.205 e 206.
Esse enunciado contém dois graves equívocos, a saber: (a) a afirmação de que a
pretensão nasce da violação do direito e (b) de que a prescrição tem o efeito de
extingui-la.
(a) está no texto sobre categorias eficaciais: a pretensão nasce no momento em
que o direito subjetivo, que, em si, existe apenas in potentia, se torna exigível (=nasce o
crédito), surgindo para o devedor a obrigação de prestar (=a dívida). É a fase de
exigibilidade do direito. Por isso, é a pretensão que pode ser violada pelo
descumprimento da obrigação, nascendo daí a ação que a torna impositiva e,
consequentemente, também o direito do qual se origina. Não tem, portanto, qualquer
relação com violação do direito.
Em verdade, o direito não pode ser violado simplesmente porque o dever, que é
seu correlato, também só existe in potentia, como ele. Dever exigível é dívida
(=obrigação) correlata de crédito (=pretensão, que é o direito exigível). O que se viola é
a pretensão, não o direito. O que se descumpre é a obrigação, não o dever9.
A evidência do equívoco do Legislador resulta da seguinte norma do C.C:
Art. 200. Quando a ação se originar de fato que deva ser
apurado em juízo criminal, não correrá a prescrição
antes da respectiva sentença definitiva.
Não há dúvida de que a prescrição não pode atingir a pretensão enquanto não
violada pelo obrigado. Pode haver situações em que, embora já haja pretensão, essa não
pode ser imposta e, por decorrência, não pode ser desatendida; e, se não pode ser
violada, por não ser passível de imposição por meio da ação, como poderá prescrever?
(quando existe pacto de non petendo, [acordo de não exigir]há pretensão sem ação,
portanto, sem impositividade).
E mais, sendo a prescrição é efeito de ato-fato jurídico cujo suporte fáctico prevê
a omissão do titular em exercer seu direito imponível (=pretensão+ação) durante certo
lapso temporal, é claro que, se o titular da pretensão não pode exercê-la (porque não
tem ação), não se concretiza o suporte fáctico e, assim, não se juridiciza o ato-fato da
prescrição10.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil.cit. 3ª. ed. 311; NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa
Andrade. Código Civil Comentado.cit. 4ª ed. 305.

10
Alguns autores (veja-se, por exemplo, MARTINS FILHO, Ives Gandra e SILVA, Chistine Oliveira Peter da,
Prescrição e decadência, in O novo código Civil: homenagem ao Prof. Miguel Reale, Coord. Franciulli Netto, Domingos,

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(ii) A exceção.
O Código de 1916 não continha dispositivo algum sobre a prescrição da
exceção. No entanto, a melhor doutrina e a jurisprudência sempre entenderam que, em
regra, a exceção não prescreve; no entanto, quando só baseada em pretensão prescritível
prescreveria juntamente com ela.
Mas, não de maneira geral, em face de peculiaridades, a saber:
(a) as exceções peremptórias (aquelas que extinguem a ação), por serem
permanentes e definitivas, não prescreveriam; exercida a ação em qualquer tempo,
poderia o acionado opor a exceção exatamente porque seus efeitos são definitivos, além
de que o seu exercício estaria na dependência de que o credor exercesse a ação;
(b) as exceções autônomas, do mesmo modo, não prescreveriam, considerando-
se que não estariam ligadas a direitos de que resultariam as ações contra as quais
poderiam ser opostas, de modo que também dependeriam, essencialmente, de que a
ação fosse exercida; e
(c) pelo fato de que as exceções serem sempre declarativas, não havendo
exceções constitutivas, mandamentais, condenatórias ou executivas, também não
estariam sujeitas à prescrição, à semelhança das ações declarativas que também não
prescrevem11.
Como observa PONTES DE MIRANDA, porém, nenhum desses critérios se
poderia aceitar como absolutamente verdadeiro, uma vez que, pelas peculiaridades que
podem existir, em rigor, não seria possível definir uma regra geral em que, sem
ressalvas, se possam enquadrar todas as exceções de certa espécie.
Por isso, ao lidar com essa matéria, será sempre preciso que se proceda à análise
de cada situação, a partir da qual se possa dizer em que casos não cabe a ressalva de
imprescritibilidade.
Pois bem, o Código de 2002, enuncia, com total generalidade:
Art. 190. A exceção prescreve no mesmo prazo em que a
pretensão.
A norma merece reparos:
(a) primeiro, a referência à pretensão não é adequada porque, como já
demonstrado, não é apenas a pretensão que prescreve, mas, em rigor, a pretensão e a
ação com que passa a ser impositiva.
(b) depois, mesmo que se interprete a expressão pretensão como englobando a
ação, é necessário considerar se o direito do qual nasce a exceção tem ação que poderia
ser exercida para elidir a ação do credor contra a qual se opõe a exceção, ou não.

MENDES, Gilmar Ferreira, e MIRTINS FILHO, Ives Gandra, 2ª Ed., p.165, São Paulo, LTr, 2005) têm sustentado que a disposição
do art. 189 do Código Civil teria criado um novo conceito de prescrição, modificando aquele cristalizado pela ciência. Tal atitude
resulta da concepção do positivismo de que a ciência se deve moldar à lei, e não o contrário, que apenas é relativamente verdadeira.
Neste caso, como se demonstrou, a lei foi formulada tecnicamente equivocada, contrariando a razão e a lógica, de modo
que não pode prevalecer, por ser inconsistente.
Realmente, tudo leva à certeza de que houve, sem dúvida, um equívoco, talvez por falta de avaliação de todas as
implicações sobre a verdade fáctica, convicção essa que se consolida diante do conteúdo do art. 200, antes literalmente citado, que
se refere à ação.
(b) Por outro aspecto, a disposição normativa ao enunciar que a pretensão se extingue pela prescrição também cometeu
outro equívoco: a prescrição não extingue, apenas encobre a exigibilidade (=pretensão) e impositividade (ação) do direito, como ele
próprio. Isto fica evidente do que enuncia o próprio Código
Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente
inexigível.
Leve-se mais em consideração que a prescrição é renunciável, mas, somente depois de consumada (Código Civil, art. 191), sendo
certo que a renúncia restaura toda a eficácia que foi por ela encoberta. Ora, se a prescrição extinguisse a eficácia do fato jurídico,
como seriam restaurados os efeitos prescritos, se não mais existiriam? Essa disposição do art. 189, em face de sua inconsistência em
razão de seu conflito com a realidade, não pode prevalecer, devendo ser considerada não escrita (PONTES DE MIRANDA,
Tratado, t.V, § 628.).
11
PONTES DE MIRANDA, Tratado, t.V, § 628.

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Se o devedor tinha ação que obstaria a ação do credor, por exemplo, e não a
exerceu dentro do prazo prescricional, parece claro que a exceção também prescreve
com ela, donde não poder mais ser oposta caso o credor venha a exercer sua ação depois
de esgotado o prazo prescricional; por exemplo: havendo negócio jurídico de compra e
venda de bem imóvel efetivada pelo marido sem outorga uxória, tem a esposa ação para
anulá-lo, como também, simultaneamente, cabe-lhe a exceção que poderá ser oposta se
o outro figurante, antes de ajuizada a ação anulatória, propuser ação para exigir o
cumprimento das obrigações decorrentes do negócio jurídico anulável.
Se o prazo é decadencial, como nos casos de vícios da vontade, por exemplo,
coação, e se esgota sem que seja proposta a ação anulatória, ipso facto atque iure,
caducará também a denominada exceptio metus, de modo que se o coator, após dar-se a
caducidade da ação anulatória, propuser ação para o cumprimento da obrigação, o
devedor não mais poderá opô-la como defesa12.
Se, no entanto, o devedor é titular de exceção autônoma (=não há ação capaz de
elidir a pretensão do credor), somente poderá opô-la quando e se o credor propuser sua
ação, porque o exercício da exceção depende, necessariamente, da ação do credor.
Nessa hipótese, a exceção é imprescritível, pois, se a prescrição (e a caducidade)
tem como fundamento a inação do titular da ação em exercê-la, não se pode dizer que
haja inação quando a atuação depende de outrem. A generalidade da regra, portanto, há
de ser relativizada, em face das peculiaridades de cada caso concreto.

(a.2) Na decadência.
A decadência atinge todo o conteúdo da relação jurídica. Portanto, alcança o
direito e, por consequência, a pretensão que o faz exigível, a ação que o torna
impositivo, a exceção e seus correlatos dever, obrigação e situação de acionado.

2.b) Quanto à amplitude dos efeitos


Prescrição e decadência se diferenciam em razão da amplitude de seus efeitos
deseficacizantes; enquanto a prescrição, como anotado acima, encobre a pretensão e a
ação, a decadência extingue o direito13 e, por decorrência, toda a eficácia que diz
respeito ao pólo ativo da relação jurídica: direito, pretensão, ação e exceção, se houver.
Por isso, não é possível renunciar à decadência quando prevista em lei. O que é
possível quanto à prescrição. Por esse mesmo motivo, há pagamento indevido se a
dívida caducou, de modo que não se aplica a norma do art. 882 do Código Civil,
gerando, então, o direito à repetição do indébito.

(2.c) renunciabilidade de seus efeitos.


Aquele a quem aproveitam os efeitos da prescrição pode a eles renunciar. A
renúncia somente é admissível após a consumação da prescrição, nunca previamente.
São irrenunciáveis os efeitos da decadência
2.d) Quanto ao decurso dos prazos.
I) Os prazos prescricionais não são peremptórios (=não correm
inexoravelmente), uma vez que: (i) podem ser, por motivos vários (C. Civil, arts. 197 a

12
Em se tratando de decadência não há exceção, mas defesa, de modo que pode ser oposta a caducidade como objeção na
contestação ou, se for caso, em reconvenção.
13
Na espécie resultante de ato ilícito caducificante, a eficácia pode limitar-se a suspender direitos: pena de suspensão de direitos
políticos por certo tempo (ex. inelegibilidade), acessória de pena de perda de mandato eletivo; incapacidade de comerciar aplicada
ao falido, etc. Não é sempre, portanto, extintiva de direito.

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200) impedidos de transcorrer e ter seus cursos suspensos, ou (ii) ainda podem ser
interrompidos (C. Civil, art. 202).
(i) Nas situações fácticas previstas nos dispositivos acima citados (197/200),
a) se o prazo ainda não começou a transcorrer, somente se passa a computar o
seu curso a partir do memento em que cessa o impedimento. Ex. mesmo tendo o
absolutamente incapaz um direito exigível, o prazo da prescrição somente começará a
transcorrer quando ele completar 16 anos. O tempo anterior não se computa.
b) Se o decurso do prazo já se houver iniciado, ocorrido o fato interruptivo,
suspende-se o seu cômputo, somente voltando a correr pelo tempo restante quando ele
cessar. Ex. Uma mulher menor de 16, desde os 10 anos, estava sob a tutela de homem.
Durante a tutela o tutor praticou ato que prejudicou financeiramente a pupila (=pessoa
tutelada). Enquanto durar a tutela, não corre o prazo prescricional da ação de
ressarcimento. Cessada a tutela com a maioridade, inicia-se o prazo para o exercício da
ação de ressarcimento. Se a mulher algum tempo depois vem a casar com o tutor,
suspende-se o prazo da ação durante todo o tempo em que durar a sociedade conjugal.
Se, depois de 10 anos, o casal se divorcia, volta a transcorrer o prazo prescricional da
ação pelo tempo que restar, portanto, computa-se o tempo que transcorrera entre a
cessação da tutela e a data do casamento. da a tutela.

(ii) Quando se trata de interrupção (art. 202), o prazo recomeça a correr por
inteiro a partir da data da interrupção, por apenas uma vez.

II) Diferentemente, os prazos decadenciais são, em regra, peremptórios, de modo


que não sofrem impedimentos, interrupções ou suspensões (art. 207), salvo exceções
legalmente postas (art. 208, que não exclui a incidência dos arts. 195 e 198, I), o que
demonstra não ser uma característica absoluta.
Surge nesse ponto o problema da aplicabilidade do art. 200 do Código Civil,
acima já transcrito, mas que aqui merece ser reproduzido, in litteris:
Art. 200. Quando a ação se originar de fato que deva ser
apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição
antes da respectiva sentença definitiva.
Não é incomum que um mesmo fato, envolvendo as mesmas pessoas, concretize
suportes fácticos de um ilícito civil e de um ilícito criminal, gerando, simultaneamente,
uma ação civil e uma ação criminal. É o caso, por exemplo, de ameaça para que alguém
realize um negócio jurídico que configure, ao mesmo tempo, coação invalidante
(Código Civil, art. 151) e, também, crime de extorsão (Código Penal, art. 158).
Nasceriam, assim, duas ações: uma cível (=ação anulatória), com prazo
decadencial de quatro anos (Código Civil, art. 178, I) e uma ação criminal cujo prazo
prescricional é de 16 anos (CP, art. 109, c/c art. 158).
O Código Civil de 1916 não cuidava de hipóteses que tais. Dispunha, no
entanto, em seu art. 1.525, (norma reproduzida no Código atual, art.935) 14, que
A responsabilidade civil é independente da criminal, não
se poderá questionar mais sobre a existência do fato, ou
14
Existem, porém, no CPC normas dos arts. 313, V, “a” e "b" e 315, que tratam da hipótese de haver ações em tramitação versando
sobre o mesmo fato: (i) a do art. 313, V, dispõe que suspende-se o processo cível quando a sentença de mérito:"a" depender de
julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência de relação jurídica, que constitua o objeto principal de
outro processo pendente ou "b" tiver de ser proferia somente após a verificação de determinado fato ou a produção de certa prova,
requisitada a outro juízo; (ii) a do art. 315 determina que o juiz pode mandar sobrestar o processo, se o conhecimento da lide
depender necessariamente da verificação de fato delituoso; nesse caso, se a ação penal não for intentada dentro de três meses
cessará o efeito do sobrestamento.

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sobre quem seja o seu autor, quando estas questões já se


acharem decididas no juízo criminal.
Essas disposições, evidentemente, davam ensanchas a sérios problemas em
situações como aquela do exemplo que tomamos, quando as decisões eram divergentes.
Sabiamente, o Código Civil de 2002, no entanto, inovou sobre a matéria ao
adotar, no art. 200, acima transcrito, regra geral de suspensão do curso da prescrição
civil enquanto não prescrita, ou não decidida, a concorrente ação criminal.
Essa norma, parece claro, tem o objetivo de proteger aquele que,
concomitantemente, seja titular de ações cível e criminal originadas do mesmo fato,
quando os prazos para exercê-las sejam diferentes, assegurando-lhe possa ajuizar, antes,
a ação criminal, e aguardar, sem prejuízo, seu resultado definitivo para, então, propor a
ação civil.
Evita-se, assim, a possibilidade de decisões conflitantes, com influências
danosas15.
Entretanto, parece que não atende, satisfatoriamente, sua finalidade, criando, por
sua generalidade, problemas que não são de fácil solução.
Veja-se: quando o prazo prescricional da ação civil for inferior ao da ação
criminal:
(i) a suspensão do prazo para a propositura da ação cível estará condicionada ao
efetivo ajuizamento da ação criminal antes de vencido o seu prazo de prescrição? ou
(ii) se a ação criminal não houver sido proposta, mas ainda possa sê-lo, dar-se-á
a prescrição da ação cível se alcançado o seu prazo?
(iii) se a ação civil for proposta depois de seu prazo específico, mas dentro do
prazo da ação criminal, se essa não vier a ser proposta, ou se somente o for já esgotado
seu prazo prescricional, será possível ao réu na ação civil alegar a sua prescrição ao
fundamento de que ocorrera a prescrição da ação penal e que, portanto, não houvera a
suspensão do transcurso do prazo?
(iv) em face do disposto no art. 207 do Código Civil, é aplicável o art. 200 se a
ação civil for sujeita a decadência e não a prescrição?
Responder-se-á, sucintamente. Segundo parece,
(i e ii) enquanto não consumada a prescrição da ação penal, ou transitada em
julgado a sentença penal, a pretensão anulatória permanece viva e, por isso, pode ser
oposta como defesa (=objeção), caso seja proposta ação civil pelo outro figurante da
relação jurídica.
A suspensão do prazo da prescrição da ação civil não depende de que a ação penal
haja sido, efetivamente, proposta; basta a possibilidade de sê-lo: (a) se for, dura a
suspensão até que transite em julgado a sentença criminal; (b) se não houver
ajuizamento da ação penal até a extinção do seu prazo prescricional, somente a partir
daí se contará o prazo para a propositura da ação cível.
Assim, enquanto pendente de ajuizamento a ação penal, a prescrição da pretensão e
ação cíveis não começa a fluir. Se há ação penal em tramitação, somente após o trânsito
em julgado da sentença, seja procedente, ou não.
(iii) A propositura da ação civil depois de transcorrido seu prazo prescricional
específico, mas dentro do prazo de prescrição da ação criminal, não poderá ser
considerada prescrita se essa (a ação penal) não vier a ser proposta, ou se seu
ajuizamento somente se der após o transcurso de seu prazo prescricional.

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Por exemplo: o autor pede na ação civil indenização pelo ato delituoso, que é julgada procedente, enquanto no juízo criminal a
decisão nega ser o réu o autor do delito.

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Da norma do art. 200 não decorre que a suspensão do prazo da ação civil dependa
do ajuizamento da ação criminal.
O suporte fáctico do art. 200 prevê a possibilidade de haver a ação criminal, não a
efetiva existência da ação criminal; ali se fala em que deva ser, não em que seja.
A decisão na ação criminal não entra no suporte fáctico em caráter de necessidade.
É evidente, assim, que se a ação civil houver sido proposta quando já ultrapassado
seu prazo prescricional próprio, mas ainda não vencido o prazo da ação criminal
(=vigente a suspensão), não terá afetada sua tempestividade, se essa não vier a ser
ajuizada em tempo ou se o for extemporaneamente (=quando já prescrita).
(iv) Finalmente, essa suspensão do decurso de prazo aplica-se aos casos de
decadência? Em verdade, das normas sobre a decadência resultam que os prazos
decadenciais são peremptórios e infensos a interrupções e, em geral, a suspensões.
O próprio Código Civil, art. 207, é taxativo ao enunciar que as regras sobre
prescrição não se aplicam aos casos de decadência, exceto aquelas explicitamente
ressalvadas e dentre essas não consta a do art. 200.
No entanto, a partir de uma interpretação do conjunto normativo sistematizado
no Tit. IV, do L II, da Parte Geral do Código 2002, com ênfase no método teleológico,
parece razoável e possível a conclusão de que o art. 200 é aplicável aos casos de
decadência.
Com efeito, conforme já anotado antes, a finalidade precípua desse dispositivo
consiste em evitar que possam ter decisões conflitantes lides entre as mesmas partes e
com iguais fundamentos fácticos, mas sejam submetidas a juízos diversos e
independentes.
O exemplo, já dado acima, de ameaça que configure coação invalidante,
ensejadora de ação anulatória do negócio jurídico, e também caracterize crime de
extorsão, que se apura em juízo criminal, bem ilustra a possibilidade de divergências.
Leve-se em consideração que nada impede se possam definir casos de suspensão
da fluência do prazo decadencial, sem descaracterizar a decadência; o próprio Código
prevê a suspensão quando se trata de absolutamente incapaz (art. 198, I)16.
Por isso, parece não haver impedimento à aplicação do art. 200, quando o prazo
seja decadencial.

II.2.d) Quanto à natureza jurídica.


Por fim, prescrição e decadência têm naturezas jurídicas distintas, a saber:
A prescrição é uma exceção que se opõe à pretensão, à ação e à exceção (se
houver), que ficam encobertas. Reconhece-se o direito, mas se nega a exigibilidade e
impositividade. Não atinge a existência do direito, que fica sem exigibilidade e
impositividade, mas pode ser cumprido (CC. art. 882).
A decadência, diferentemente, extingue o direito e, por consequência, a
pretensão, a ação e a exceção (se houver). Constitui, portanto, uma defesa (=objeção)
que nega a exigência do direito, da pretensão, da ação e da exceção (se houver).
Essa distinção implicaria que a exceção de prescrição teria de ser,
necessariamente, alegada para que o juiz pudesse decretá-la, conforme corretamente
enunciava o Código velho:

16
A que parece, ao somente fazer essa exceção, o legislador não atendeu à realidade dos fatos, não incluindo dentre as exceções de
impedimento de transcurso dos prazos de decadência, as hipóteses previstas nos arts. 197 e 198, criando com isso a possibilidade de
vexames, de sérios conflitos familiares (entre cônjuges, companheiros e de filhos sob o poder familiar com os pais) capazes, até, de
destruir a harmonia no seio da família, e de causar prejuízos irremovíveis a pessoas em situações especiais (um soldado em campo
de batalhas, e.g.)

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O juiz não pode conhecer da prescrição de


direitos patrimoniais, se não for alegada pelas
partes.
A decadência dispensaria a alegação, devendo o juiz decretá-la de ofício sempre
que a encontre provada. Essa distinção, no entanto, deixou de ter importância prática em
face da Lei nº 11.280, de 16 de fevereiro de 2006, revogando o art. 194 do Código Civil
e modificou o § 5º do art. 219 do CPC/1973, que passou a ter o seguinte enunciado: O
juiz pronunciará, de ofício, a prescrição.
Essa disposição, cujo intuito, ao que parece, foi o de, atendendo ao princípio da
economia processual, acelerar a prestação jurisdicional, evitando dispêndio de esforços
judiciários inócuos, acarreta sérias consequências tanto em relação à natureza do
instituto da prescrição, quando à sistemática de sua operacionalidade.
Com efeito, constitui característica própria da exceção substancial o ser,
necessariamente, exercida contra a ação que está por ela encoberta. Conforme
concebida a exceção, desde os clássicos, é de sua essência ser oponível, exatamente por
se tratar de um contradireito, donde não se poder dispensar a alegabilidade sem
desfigurar-lhe a natureza
Portanto, conforme essa visão sem que seja formalmente oposta não seria
possível ao juiz dela conhecer e muito menos decretá-la ex officio. Diferentemente,
quando se trata de decadência, que não é exceção, por extinguir o direito não necessita
de alegação, o juiz não só pode, como deve decretá-la de ofício, sempre que a encontre
provada, em qualquer momento do processo (Código Civil, art.210).
Atualmente, o NCPC, art. 332, §1º, apenas autoriza ao juiz julgar liminarmente
improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de
prescrição.
Com essas regras, o legislador criou um híbrido: prescrição com espírito de
decadência17. Transformou-a, sem dúvida em objeção, defesa que, como a decadência,
não depende de alegação.
Anote-se que, a lei não excluiu o seu efeito apenas encobridor da pretensão e da
ação, de modo que não as extingue, tampouco o direito, donde ser possível a ela
renunciar (com maior propriedade, renunciar a seus efeitos) e adimplir bem a dívida
prescrita, o que não é possível em caso de decadência.
Em relação à natureza da prescrição, o Legislador de 2002 criou mais um
complicador quando restringiu a uma só vez a possibilidade de interromper seu curso.
Interrompida a prescrição, o seu novo curso tem natureza decadencial, porque se
torna peremptório?
A resposta deve ser a mesma dada à questão da decretabilidade ex ofício: não;
apenas houve uma modificação em sua concepção clássica, que previa a possibilidade
de interrupções ad æternum, de modo que permanecem os efeitos da prescrição, tais
como renunciabilidade e irrepetibilidade do pagamento da dívida prescrita, e.g.
Finalmente, quanto à natureza jurídica, a decadência pode ser estabelecida
negocialmente (Código Civil, art. 211), o que não pode ocorrer com a prescrição (arg.
ao art. 192 do Código Civil).

3. As regras sobre suspensão, interrupção, renúncia e prazos de prescrição


estão definidas nos arts. 189/206 do C.Civil. Nos arts. 207/211 do C. Civil estão as

17
Não apenas por isso, mas também em face da regra do art. 202, caput, de que a prescrição somente pode ser interrompida uma
vez. Depois de interrompida, a prescrição perde uma de suas características e ganha outra, típica da decadência: não poder ser
interrompida.

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Professor Doutor Marcos Bernardes de Mello

normas gerais sobre decadência, cujos prazo estão definidos ao longo do Código,
em artigos específicos.

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