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FORMAS ESPECIAIS DE SURGIMENTO DO CRIME

Destacam-se assim três núcleos problemáticos:

1.Tentativa;

2.Concurso de crimes;

3.Comparticipação.

A primeira questão a tratar é a do significado subjacente à expressão “formas especiais


de crime”. Qualquer dos núcleos suscita questões próprias, particularidades
complexas, que requerem especial atenção, justificando assim um tratamento à parte.
Não se trata de uma diferença qualitativa mas sim quantitativa, isto é, da particular
minúcia destas situações. Todavia, não foi esta a principal razão do surgimento da
expressão. O verdadeiro motivo prende-se com o tipo de ilícito objectivo, que presidia
aos sistemas clássico e neo-clássico. No ilícito objectivo o desvalor do crime reside na
produção de um resultado, em que não eram considerados elementos atinentes à
subjectividade do agente.

Este sistema já está ultrapassado (como vimos no 1º semestre) e não dava resposta a
estes três núcleos, sendo esta uma das várias críticas que lhe foram dirigidas. É que o
desvalor objectivo do acto só é determinável a partir do momento em que se tem em
conta o plano do agente, isto é, o dolo (ao contrário do que entendia o sistema
normativista). Foi essencialmente pelo facto de estes três núcleos escaparem à teoria
geral da dogmática do crime que se adoptou a expressão “formas especiais de crime”.
Estas formas de delito requeriam uma teoria dogmática diversa ou especial.

O sistema teleológico-racional adopta a concepção do ilícito subjectivo, segundo a qual


logo ao nível do ilícito é possível distinguir a conduta dolosa da negligente. Na
categoria do tipo de ilicitude analisa-se o conteúdo de desvalor objectivo da conduta
anti-normativa, como sendo uma conduta em abstracto e não a conduta do concreto
agente.

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Assim sendo, mesmo quando há comparticipação, tentativa ou concurso de crimes, é


necessário percorrer as categorias já referidas e estudadas: acção, tipo de ilicitude e
culpa. O que é necessário é atender às particularidades que cada um dos núcleos
comporta, dentro do esquema traçado.

Se a especificação do desvalor objectivo do acto é em geral, apenas apreensível


através da consideração do plano do agente, do seu projecto e do seu dolo, mais válida
ainda será tal consideração nos casos de tentativa.

Exemplo: A dá um encontrão em B. Pode tratar-se de um crime de ofensas corporais;


de uma tentativa de crime de ofensas corporais qualificado; de uma tentativa de
homicídio; de uma tentativa de violação; como poderá tão-somente pretender desviar
B de um automóvel que ia em sua direcção, estando assim A a actuar licitamente.

Também ao nível da comparticipação, para saber se estamos perante co-autoria ou


cumplicidade, instigação ou autoria mediata, é necessário atender ao plano do agente.
Também este domínio escapava à tese do ilícito objectivo. O mesmo se diga
relativamente ao concurso. Os próprios neokantianos admitiam que era necessário
considerar o plano do concreto agente, nomeadamente quanto ao número de
resoluções criminosas por ele tomadas, para avaliar correctamente a situação. A
aceitação e inclusão nas suas teorias das formas especiais de crime, a partir do início
do séc. XX, pelos clássicos e neo-clássicos, era no fundo uma rendição à ideia de que a
tese do ilícito objectivo por eles sufragada não podia abarcar toda a realidade. Note-se
que a maior parte dos crimes envolve pelo menos uma destas formas especiais de
crime.

O problema deixa de se colocar com a concepção do ilícito pessoal, que não só reflecte
melhor o sentido e a teleologia das valorações jurídico-criminais (plano
teórico/emblemático) como já concede resposta cabal aos problemas concretos que se
levantam no direito penal (plano técnico/dogmático). Sendo o ilícito pessoal, em que
os actuais sistemas se baseiam, uma unidade objectivo-subjectiva, logo no plano da
ilicitude será considerado o concreto plano do agente.
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A questão que se coloca é a de saber se ainda hoje se justifica, perante a tese do ilícito
pessoal, o tratamento autónomo das formas especiais de crime. A resposta deve ser
afirmativa, por razão de ordem meramente pedagógica isto é, para a apreensão dos
quadros fundamentais da nossa cadeira é conveniente tomar o crime na sua forma
mais simples – unidade do agente, unidade de crime e perfeição. Além disso apesar de,
fundamentalmente estas formas de delito constituírem problemas atinentes à
ilicitude, elas levantam problemas dogmáticos muito complexos, que tocam desde
logo em zonas limite.

1. TENTATIVA

Estamos perante um caso de tentativa quando falta a perfeição do crime, isto é,


quando o agente planeia e inicia a prática de um crime mas, por motivos estranhos à
sua vontade, esse crime não se concretiza.

O Direito Penal visa tutelar bens jurídicos essenciais. Na tentativa antecipasse a


punição, isto é, não chegou a haver violação do bem jurídico mas ainda assim o agente
é punido. O Direito Penal só deve intervir quando estejam em causa condutas
exteriores, socialmente danosas – direito penal do facto.

O “iter criminis” (processo conducente à prática de um crime), comporta várias fases:

 Começa pelo planeamento mental do crime, que se desenrola no plano


meramente interno do agente. Neste momento a intenção criminosa ainda não
se revela em factos exteriores.

 Segue-se a fase da preparação do crime, que já comporta actos exteriores.


Assim: o agente estuda o local do crime, analisa-o, adquire os instrumentos
necessários à prática do crime…

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 Finalmente, o agente inicia a execução. Nesta fase pratica actos que
comportam já a execução do próprio crime, ou seja, actos cujo significado
imediato é já a realização do crime em si mesmo.

 Só numa quarta fase surge a consumação. Os actos de execução propriamente


dita não se identificam com a consumação, que se traduz no perigo de lesão ou
na lesão efectiva do bem jurídico enunciado no tipo, como elemento necessário
para a completude do crime.

O grande problema que se coloca é o da demarcação de fronteiras entre os actos


preparatórios e os actos de execução, dado que estes últimos marcam o início da
relevância jurídico-criminal do processo criminoso, ou seja, o momento em que se
inicia a tentativa e que distingue as situações de impunidade das de punição. Esta será
pois a grande questão da dogmática da tentativa.

Quanto à separação entre o primeiro e o segundo momentos (fase intelectual e actos


de preparação) não se colocam grandes problemas, não só porque há um claro critério
de distinção, na medida em que poderá sempre analisar-se se há ou não já uma
exteriorização do plano, mas principalmente porque o Direito Penal Moderno é um
Direito Penal do Facto. Assim sendo, o momento subjectivo só assume relevância para
o Direito Penal quando se manifesta em actos exteriores relevantes e ilícitos.

A fase intelectual, só por si, não é punida.

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Já quanto à fase dos actos preparatórios e quanto ao que os distingue da fase seguinte,
suscitaram-se no passado muitas dúvidas.

Primeiramente, com as concepções do Direito Romano e do Direito Comum, depois


com as perspectivas extremas da prevenção especial, nomeadamente a concepção
sintomatológica. Em todos estes contextos se distinguiu o chamado “delictum
atentatum” (correspondente aos actos preparatórios) da verdadeira tentativa.

No Direito Romano e no Direito Comum, fazia ainda sentido uma particular


subjectivação do Direito Penal: atendia-se à vontade do agente e não ao seu êxito, isto
é, ao resultado exterior. O acto só relevava em função de uma maldade da vontade,
censurável e deformada, contrária ao dever-ser jurídico-penal.

A causa “formalis” do crime de acção reflectia a especificidade da acção humana – a


própria verdade. Tal como a moral, com a qual o direito tinha fronteiras muito ténues,
o Direito Penal devia buscar na raiz da vontade o sentido da acção. Aí, desde logo se
encontraria a distinção entre dolo e negligência.

Daí que o Direito Romano alargasse a punição aos actos preparatórios e, mais do que
isso, equiparasse a punição da tentativa à da consumação, dado que o insucesso do
resultado era fundamentalmente fruto do acaso: a maldade da vontade era
exactamente a mesma. Uma diferente solução beneficiaria aquilo que, movido por
uma má intenção, falhou na efectivação.

Sobre o estrito ponto de vista do desvalor da acção (que aliás subjaz aos fundamentos
últimos do Direito Penal e da sua peculiar teleologia) o crime consumado e o crime
tentado são equivalentes. Isto é válido especialmente para os casos de tentativa
acabada, em que o agente pratica todos os actos de execução, sendo que, todavia, por
alguma razão, o resultado desvalioso não se chega a produzir.

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Neste sentido era efectivamente congruente a perspectiva do Direito Romano, que
atribuía relevância jurídico-criminal a todo o comportamento exterior, isto é, a tudo o
que ultrapassasse a primeira fase (meramente intelectual), desde que houvesse a
concretização inequívoca de uma vontade séria e definitiva de praticar um crime – a tal
vontade criminal.

No Direito Comum esta máxima foi em parte abandonada. A punição da tentativa não
era igual à da consumação, mas continuava a incluir-se na tentativa e portanto, a
punir-se, os actos preparatórios. Até porque a subjectividade do Direito Penal, que era
o centro do núcleo dos valores criminais, tinha uma raiz eminentemente moralista. A
uma perspectiva semelhante, conduziram as noções extremas da prevenção especial
positiva – mormente a concepção sintomatológica da prevenção do crime – muito
posteriores e já desligadas de conotações morais. O que releva para estas concepções
não é a gravidade objectiva do acto, mas sim a prevenção para o futuro, conseguida
através de um atalhar da perigosidade.

O critério de intervenção do Direito Penal, e da maior ou menor gravidade das


sanções, seria então a perigosidade do agente. Também à luz destes diferentes
pressupostos se defendia o mesmo desencadeamento de reacções criminais em tese
geral quando o agente ainda não tinha praticado qualquer crime. Esta compreensão
vai ter obviamente reflexos no âmbito da tentativa e mormente na punição dos actos
preparatórios que, à luz das concepções de então, concretizavam já uma
personalidade perigosa.

Todas estas ideias forma abandonadas pelo Direito Penal do Facto. Assim, entende-se
hoje que o Direito Penal só deverá intervir quando a lesão dos bens jurídicos seja
eminente, dado que evitar e punir essa lesão é que consubstancia a teleologia do
Direito Penal. Dai também que se afaste, por referência ao objecto central da tutela
penal, a punição dos actos preparatórios. Basta pensar na própria possibilidade de o
agente desistir da prática. Nos actos preparatórios a lesão é ainda muito longínqua,
pelo que não está preenchido o pressuposto necessário à punição no quadro do
Direito Penal do Facto.

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A esta questão de princípio ligam-se considerações de ordem prática:

 Muitos actos preparatórios são semelhantes a condutas lícitas, apenas delas se


distinguindo pelo facto de visarem a prática de um crime, e não pelas suas
características intrínsecas – é o elemento exterior do objectivo visado que
separa uns e outros. Assim, ao nível da prova, seria sempre muito difícil afirmar
que havia um projecto criminoso. No plano objectivo de facto, tais actos, na
maior parte das vezes não deixam transparecer a prática de um crime. Ao nível
objectivo confundem-se pois com os actos praticados de forma lícita. Repare-se
que esta circunstância é agravada pelo facto de em Direito Penal vigorar o
princípio “in dúbio pró reu”.

Assim, tanto razões de princípio, relacionadas com a própria teleologia do Direito


Penal, como considerações de ordem prática, mormente prova, relacionadas com a
própria configuração dos actos preparatórios, levam a que não seja eficaz a sua
incriminação. Daí que hoje seja regra a impunibilidade dos actos preparatórios. Isto
não invalida a existência de excepções: há certos actos preparatórios que, pelo
particular perigo que envolvem para o bem jurídico, ou pelo conteúdo de anti-
juridicidade que apresentam em termos sociais, são punidos pelo ordenamento.
Assim, por exemplo: a contrafacção de moeda, ou o fabrico de armas de fogo, que
materialmente não passam de meros actos preparatórios.

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Todavia, entende-se que a contrafacção de moeda já comporta um sentido social anti-
jurídico, envolvendo além disso, já um particular perigo para o bem em causa. Daí que
se incrimine um acto que, em si mesmo, a nível substancial, não lesa ainda o bem
jurídico. Mas nem sempre os actos preparatórios são punidos com esta técnica
legislativa. De facto, a punição de actos preparatórios, que é sempre uma excepção,
pode ser feita recorrendo a duas técnicas diferentes:

 Ou o legislador constrói com o acto preparatório um tipo legal de crime


autónomo, como é o caso da contrafacção da moeda (art. 262.º) ou da
depreciação do valor da moeda metálica (art. 263.º);

 Ou o legislador pune o acto enquanto acto preparatório (exemplo: art. 271.º).

A regra geral da impunidade dos actos preparatórios está contida no art. 21.º.

Passamos agora ao problema essencial da fronteira entre actos preparatórios e actos


de execução, que constitui o problema do início da tentativa. Note-se que a fronteira
entre ambos corresponde à fronteira entre impunidade e punição.

São actos preparatórios por exemplo a obtenção do meio para praticar o crime, o
estudo do comportamento da vítima, os actos praticados com a intenção de cometer o
crime. Estes actos são, por via de regra, impunes, em respeito pelo carácter subsidiário
do Direito Penal. Estes actos não apresentam ainda um perigo imediato e certo, pelo
que só excepcionalmente são punidos.

Os actos de execução, por sua vez, constituem a fase em que se inicia a tentativa.

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No quadro da doutrina portuguesa podemos distinguir então quatro fases no “iter
criminis”:

1.Pensamento (planeamento mental do crime pelo agente);

2.Fase dos actos preparatórios: em que já há comportamentos exteriores mas que não
comportam um perigo próximo. Estes actos exteriorizam a intenção criminosa mas não
constituem um perigo eminente, pelo que não são punidos pelo Direito Penal;

3.Fase da execução: em que se insere a tentativa;

4.Fase da consumação.

A tentativa traduz-se assim na realização de actos de execução a que não se segue


um resultado, por circunstância alheias à vontade do agente. Mas a tentativa em si
mesma é um crime, pois também envolve a violação de uma norma de determinação,
que tutela bens jurídicos essenciais à convivência comunitária. Na tentativa não se
pune o dano, pois este não chega a ocorrer. O seu fundamento não se relaciona com o
concreto bem jurídico mas sim com a reafirmação da norma penal, cuja vigência foi
colocada em questão. É este atentado à vigência da norma que fundamenta a punição
da tentativa, e não o perigo, por o bem já não se encontra em perigo de ser lesado. A
propósito da tentativa vale tudo o que foi dito no âmbito do crime consumado. Só se
pune a tentativa na forma dolosa pois:

 Argumento de natureza prática: Muitas vezes para caracterizar a tentativa é


necessário conhecer o plano do agente. Na negligência esse projecto não é
criminoso. Todavia, este não é o argumento decisivo, porque o legislador podia
estabelecer uma pena em geral, para a colocação em perigo dos bens jurídicos
por negligência. Seria um crime geral de negligência por tentativa. Mas esta
solução acabaria por ser insustentável.

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 Nos quadros da prevenção geral positiva o fundamento da punição da tentativa
só pode ser a reafirmação da vigência da norma. Não se verificando a lesão do
bem jurídico por negligência, há como que um perdão social, pois não é posta
em causa a vigência da norma. Não há uma contrariedade frontal à norma. É
isto que justifica a não punição da tentativa negligente.

O art. 22.º do CP restringe a tentativa aos casos dolosos: “1. Há tentativa quando o
agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este
chegue a consumar-se. 2. São actos de execução: a) os que preencherem um elemento
constitutivo de um tipo de crime; b) Os que forem idóneos a produzir um resultado
típico; ou c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis,
forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas
alíneas anteriores.”

Para haver punição a título de tentativa é necessário que se preencham os seguintes


pressupostos:

1.Requisito subjectivo: Existência de dolo. Este requisito não contende com a


separação entre actos preparatórios e actos de execução pois em ambos pode existir
intenção dolosa. Relembre-se que a tentativa tem, nos termos do art. 13.º, e de
acordo com uma ideia de subsidiariedade do Direito Penal, carácter excepcional.
Repare-se ainda que, no âmbito da tentativa, só considerando o plano do agente,
podemos afirmar um conteúdo de ilícito.

O dolo é pois um elemento estrutural da tentativa e é determinante para a afirmação


do ilícito da conduta. No nº 1 do art. 22.º há uma referência ao elemento volitivo, que
justamente permite distinguir o dolo da negligência e que é específico do primeiro.
Todavia, este dolo a que se refere a norma não é o dolo da tentativa (que é um dolo de
perigo), mas sim o dolo da consumação. O que o agente decidiu foi consumar aquele
determinado crime, na sua forma perfeita.

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O dolo pode ser directo, necessário ou eventual. Em relação à legitimidade do dolo
eventual neste contexto, há alguma discussão doutrinária. Há uma corrente
minoritária na Alemanha bem como em Portugal (Dr. Faria Costa), mas com fortes
adeptos em Itália, que defende que o dolo eventual não preenche este primeiro
requisito da tentativa: ainda não existe o grau de vontade e de anti-normatividade que
existe nas outras duas modalidades.

Porém esta posição não é de aceitar pois a lei equipara todas as formas de dolo.
Quando muito, poderia pensar-se, “de iuri condendo”, em criar uma nova categoria,
entre o dolo e a negligência, onde possivelmente caberiam quer o dolo eventual, quer
a negligência consciente, que partilham o mesmo elemento intelectual.

Mas o que é certo é que “de iuri constituto” isto não pode ser sustentado. A este
respeito cabe ainda referir a posição de Eduardo Correia, que enquanto autor
normativista, entendia que o dolo era meramente uma condição subjectiva de
punibilidade, nada impedindo, teoricamente, que a tentativa negligente fosse punida.

2.Requisito objectivo: Ter havido prática de actos de execução.

Distinção entre actos preparatórios e actos de execução:

1.Teoria Subjectiva: Os actos de execução revelavam uma decisão inequívoca e firme


de praticar o crime. Esta teoria não é aceitável. Actualmente a doutrina procura
adoptar critérios objectivos.

2.Teoria formal objectiva: O acto de execução é aquele que está descrito na lei. Esta
teoria é insuficiente pois raramente o legislador descreve o que são actos de execução.
Tal só acontece nos crimes de execução vinculada, sendo que nos restantes casos o
legislador se limita a indicar o resultado. É certo que os adeptos desta teoria, incluindo
Belling, pretenderam corrigir esta insuficiência, remetendo para o senso comum, que
nem mesmo era definido com base no consenso dos especialistas da matéria, mas sim
na opinião do vulgo. Nega-se assim a segurança e a previsibilidade que eram
justamente a maior vantagem da teoria em questão. Assim, para a esmagadora

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maioria dos crimes, que são de execução não vinculada, o que se verifica é a própria
ausência de critérios.

3.Teoria material objectiva: Acto de execução é todo o acto idóneo à produção do


resultado (de acordo com os critérios da teoria da adequação, isto é, tendo em conta
os conhecimentos gerais e os do concreto agente). Este critério, sendo em si mesmo
correcto, tinha de ter balizas: é que naquele sentido adequado são também os actos
preparatórios, pelo que o problema continuaria sem solução.

É a este respeito que importa convocar a ideia, há muito sedimentada na doutrina, de


acção principal enquanto acto de consumação do crime, e que constitui o cerne deste
por comportar o atentado directo ao bem jurídico. Conjugando o critério material
objectivo com esta noção de acção principal os autores, pela mão de Welzel, chegaram
a uma fórmula que é hoje comummente aceite: não é acto de execução apenas a
acção principal, mas também o acto imediatamente anterior, que constitui o avanço
para a prática de tal acção principal.

O acto de execução seria pois esse acto que comporta o avançar imediato para a
consumação do crime, entendendo-se este avançar imediato em termos de conexão
lógica imediata entre o acto que o agente pratica e o acto de consumação, e não em
termos meramente cronológicos, temporais. Poderá mediar entre os dois actos um
longo período de tempo, embora normalmente isso não suceda.

Exemplo: A envenena os copos da casa de campo de B, onde este costuma passar


apenas um dos meses do ano, de forma mais ou menos aleatória. B só vai lá seis meses
depois, e só utiliza um dos copos envenenados nessa altura. Apesar deste intervalo
temporal, o acto de envenenar os copos era um acto de execução, dada a sua
precedência lógica em relação ao acto de consumação. Em suma precedência que se
pretende aqui, do acto de execução em relação à acção principal, é uma precedência
lógica, que não necessariamente temporal, muito embora, claro está, na grande
maioria dos casos, exista também uma estreita ligação cronológica. É pois nestes
termos restritivos que deveremos entender actualmente a teoria material objectiva.
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Em ambas as teorias tem-se em vista o acto imediato, isto é, aquele em que se esgota
a realização do próprio núcleo do delito (exemplo: no enforcamento, o acto imediato
de puxar a corda).

O problema que se levanta é o de saber se é necessário esperar por este acto imediato
para que o acto de execução assuma relevância jurídico-penal. A doutrina serve-se de
um critério para alargar o momento em que ocorre a tentativa: art. 22.º/n.º2/al. c).

Art. 22.º/n.º2 – concretiza o que se entende por actos de execução:

a) Adianta o puro critério formal objectivo, que só serve para os crimes de execução
vinculada;

b) Consagra o critério material objectivo, por referência ao critério da idoneidade para


produção do resultado típico – idoneidade essa que deverá, até de acordo com o art.
10.º, aferir-se pela teoria da adequação;

c) Estabelece a necessária correcção ao critério material objectivo, descrita supra. O


Prof. Eduardo Correia importa esta fórmula de Frank. O exemplo clássico dos casos
enquadráveis nesta alínea é o das bombas de rastilho: a colocação da bomba no local
previsto e a montagem de rastilho não são ainda, na sua materialidade, actos de
execução. Só o será o acender do rastilho, que é já o próprio acto de consumação. Mas
há, todavia, condutas anteriores que, de acordo com a experiência comum e salvo
circunstâncias imprevisíveis, guiam ao acto de consumação. Expressa-se aqui portanto
a mesmíssima ideia de Welzel, que afirmava que o acto de execução não se esgota no
acto de consumação, havendo uma execução logo que houver um avançar imediato
para a execução.

Exemplo: A quer matar B, na outra ponta da cidade. De manhã A veste-se, desce as


escadas, entra no carro e dirige-se ao local. Chegado ao local, aguarda pela vítima.
Começa a avistá-la e carrega a arma. B aproxima-se mais – até aqui A só realiza actos
preparatórios. A só inicia um acto de execução quando pega na arma e começa a fazer

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a pontaria para matar B. É este o sentido da alínea c) do art. A lei consagra hoje a
posição maioritária na doutrina.

O terceiro requisito da tentativa é que à prática de actos de execução não se siga a


consumação, por actos exteriores à vontade do agente. Este requisito não costuma
juntar-se aos outros dois – subjectivo e objectivo, por ser demasiado lógico.

Tentativa completa versus tentativa incompleta:

Quanto à prática de actos executivos a tentativa pode ser acabada ou inacabada. A


tentativa diz-se completa quando o agente realiza todos os actos de execução
necessários à consumação do crime, mas esta acaba por não ocorrer, por motivos
estranhos à sua vontade – exemplo: A dispara contra B para o matar, mas falha a
pontaria. A tentativa inacabada por sua vez, é aquela em que o agente praticou apenas
alguns dos actos necessários à consumação do crime, sendo entretanto interrompido –
exemplo: A invade a casa de B para assaltar a mesma, julgando que não estava lá
ninguém e estava já a preparar-se para furtar certos objectos quando B aparece.

Note-se que esta distinção não corresponde com a distinção consagrada no Código
Penal de 1886, entre tentativa propriamente dita e frustração. A frustração ocorria
quando o agente praticava todos os actos necessários à consumação do crime, mas o
resultado não se verificava, por razões alheias à sua vontade. Já a tentativa
propriamente dita era entendida como uma execução parcial – o agente só praticava
alguns actos com vista à concretização do crime, mas não todos os necessários. Em
função desta distinção, o CP anterior consagrava uma graduação da pena, ou seja, esta
distinção reflectia-se na moldura abstracta da pena: o crime consumado era punido
com pena mais grave; a frustração com pena mais leve e a tentativa propriamente dita
com pena ainda mais leve.

Esta distinção e consequente graduação era justificada com argumentos atinentes à


gravidade objectiva do acto e à proximidade da consumação, bem como por

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considerações de prevenção especial, que dominavam na época: quanto mais longe o
agente levasse a sua conduta criminosa mais perigoso ele se revelava.

Actualmente esta distinção foi abandonada e bem, pois muitas vezes a diferença entre
ambas as situações é determinada por motivos meramente aleatórios, que nada
adiantam sobre o desvalor objectivo do acto ou sobre a personalidade e perigosidade
do agente. Como tal, de nada servem ao Direito Penal do facto nem à própria
prevenção especial.

O Código actual estabelece apenas a distinção entre consumação e tentativa, podendo


esta assumir a modalidade de acabada ou de não acabada. A moldura penal abstracta
é a mesma para ambas as modalidades. O juiz no caso concreto pode é ter isso em
conta, para decidir da necessidade de uma pena mais ou menos grave, em virtude de a
tentativa ter sido ou não acabada.

Mas esta é uma mera faculdade conferida ao juiz, o que significa que quando a
tentativa é completa, não tem necessariamente que ser aplicada ao agente uma pena
mais gravosa. O facto da tentativa ser ou não acabada é apenas uma das várias
circunstâncias às quais o juiz pode atender para decidir.

O art. 23.º regula a punição da tentativa:

 Só há punição nas tentativas mais graves (quando a pena do crime consumado


seja superior a três anos de prisão);

 A punição a título de tentativa é mais atenuada que a punição a título de


consumação.

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Tentativa impossível ou inidónea:

Está prevista no nº 3 do art. 23.º e reporta-se aquelas situações excepcionais em que o


resultado em abstracto parece ser susceptível de ocorrer mas que, em concreto é
impossível. Esta impossibilidade pode dever-se à ineptidão do meio utilizado ou à
inexistência do objecto.

Exemplos: A pretende envenenar B e para o efeito utiliza açúcar. O meio utilizado para
praticar o crime de homicídio por envenenamento não é idóneo. A tem grande
inimizade com o seu vizinho e pretende assassiná-lo. Ao avistar que B se encontrava a
apanhar sol junto à piscina, dispara e atinge-o num órgão vital. Contudo B tinha
morrido umas horas antes, em virtude de um ataque cardíaco. Neste caso o objecto
sobre o qual o crime incidiria não existia.

Parece que, de acordo com as regras gerais, estas situações não constituem uma
tentativa, por não haver perigo de lesão do bem jurídico. Todavia a tentativa inidónea
é passível de punição na generalidade das legislações contemporâneas, pois o que
realmente releva na tentativa é o desvalor da acção e não a colocação do bem jurídico
em perigo de lesão.

Apesar de não haver desvalor do resultado, há atentado à vigência da norma e


consequentemente há punição, excepto nos casos em for visível aos olhos de todos
que a tentativa é impossível (Ex. A quer matar B e para tal faz uma reza diária, pedindo
a Deus que B morra).

Sempre que a comunidade esteja convicta de que o meio é apto ou o objecto existente
a conduta terá o mesmo sentido de desvalor e por isso mesmo será punida, apesar de
impossível. Não está em causa a lesão do concreto bem jurídico mas sim a vigência da
norma de determinação. Se no plano dos factos/da causalidade o agente nunca poderá

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chegar a atingir o bem jurídico, em termos de concepção da comunidade o sentido da
conduta é o de contrariedade frontal à norma.

A acção afecta a vigência da norma exactamente da mesma forma que uma tentativa
possível, pelo que há o mesmíssimo conteúdo de ilícito pessoal nos quadros da
prevenção geral positiva ou de integração. O cerne do Direito Penal encontra-se no
desvalor da acção.

Ultrapassada está pois a ideia de que o fundamento da punição da tentativa é a


colocação do bem jurídico em perigo de lesão (como entende o Prof. Eduardo Correia).
Note-se que o perigo foi interrompido, isto é, como não houve lesão, o bem jurídico já
não se encontra em perigo e mesmo assim há punição.

Tentativa por omissão:

O crime tentado é um crime como outro qualquer, pelo que também pode ocorrer por
via de omissão. Contudo, só em casos pontuais é que o direito penal considera
relevantes certas tentativas por omissão.

Há tentativa por omissão quando o agente tinha o dever de intervir e não intervém,
mas ainda assim o resultado não se verifica.

O problema que se levanta aqui é o de saber a partir de que momento é que há


tentativa por omissão.

A teoria que vigorava no passado era a de que havia tentativa por omissão logo que o
garante era confrontado com a situação de perigo do bem jurídico e não intervém.
Esta teoria é actualmente inaceitável pois por vezes, o facto de o agente não intervir
de imediato resulta do seu estado de estupefacção face à situação com a qual é
confrontado, ou então porque o agente decide que o melhor é analisar as várias
possibilidades de actuação para escolher a mais eficaz.

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A teoria actual entende que a tentativa por omissão tem inicio quando o agente está
perante um perigo eminente/agudo o que, segundo alguma doutrina, ocorre quando o
agente deixa escapar a última oportunidade de actuação. Mas isto é muito difícil de
determinar.

É necessário introduzir a seguinte correcção à teoria actual:

Podem haver situações em que o perigo ainda não esteja eminente e no entanto o
agente seja punido a título de tentativa por omissão. Isto ocorre quando o perigo ainda
não é eminente mas o agente abandona o local expressando a sua decisão inequívoca
de não intervir. Exemplo: Dois amigos caminham por uma linha-férrea e um deles,
embriagado, decide deitar-se nos carris. Trata-se de uma linha pouco movimentada e
faltam três horas para o próximo comboio passar. O amigo sóbrio abandona o local,
auto-colocando-se numa posição em que não pode intervir, o que é ilícito.

Quando há tentativa por omissão é aceitável que haja um alargamento desta figura
aos casos em que o perigo ainda não é eminente, mas o garante se auto-coloca em
posição de não poder intervir no momento em que o perigo se tornar eminente.
Segundo o Prof. Almeida Costa é esta a posição a adoptar, quanto à grande
problemática da tentativa por omissão – saber quando é que se inicia o acto de
execução.

Desistência da tentativa:

Todas as ordens jurídicas em geral atribuem relevância à desistência da tentativa.

Muitas vezes o agente inicia a prática dos actos de execução com dolo, preenchendo o
ilícito da tentativa, mas entretanto desiste da realização do projecto criminoso. No
caso da tentativa inacabada a desistência traduz-se na omissão dos actos de execução
que falta praticar. Na tentativa acabada a desistência traduz-se num arrependimento

18
activo, isto é, num actuar para evitar que o resultado se verifique – exemplo: A já
montou a bomba e desiste, tendo que a desmontar.

Requisitos para a desistência da tentativa relevar:

1. Requisito subjectivo: Voluntariedade da desistência. A voluntariedade não tem a ver


com razões morais mas apenas com o abandono do projecto criminoso,
independentemente das razões subjacentes a esse abandono. Os motivos da
desistência não interessam, contando que se situem no interior do agente, e não em
circunstâncias exteriores. Tais motivos podem ser nobres mas também meramente
pragmáticos (exemplo: o ladrão já praticou actos de execução para assaltar um
estabelecimento comercial e entretanto desiste porque é segunda-feira, precisamente
o dia da semana em que o dono da loja esvazia a caixa. Esta desistência tem como
fundamento o retardamento do crime para este ser mais lucrativo, mas ainda assim a
desistência releva.) Voluntariedade significa aqui que o abandono tem que ser
espontâneo, não podendo derivar de um factor imediato exterior (ex. aparecer a
polícia). A desistência também deve relevar quando é motivada por um pedido da
vítima.

2. Requisito objectivo: É necessário que o crime não se tenha consumado. Se esta já


ocorreu, em princípio já não há nada a fazer. No entanto, há alguns desvios a apontar a
esta regra.

Os fundamentos da desistência são de natureza politico-criminal:

Durante muito tempo esse fundamento era encontrado na teoria premial – o agente
que desistia dos seus intentos criminosos mereceria um prémio pela sua conversão.
Todavia, para todos os efeitos, o agente praticou uma conduta ilícita e culposa.

19
De acordo com a chamada “teoria da ponte dourada” o objectivo do direito penal é
evitar a prática de crimes. A atribuição de relevância à desistência é um meio de
incentivar o retrocesso da conduta criminosa, é um incentivo para que o agente
atravesse a ponte novamente para o lado da licitude. A desistência constitui uma causa
pessoal de exclusão da pena, e não da ilicitude ou da culpa, cujo fundamento politico-
criminal é a prevenção do próprio crime.

Nos quadros da prevenção geral positiva podemos ir ainda mais longe, em termos de
fundamento material: o regresso do criminoso à licitude acaba por ter um reflexo de
reforço da vigência da norma, que apaga o anterior conteúdo de ilicitude dos actos do
agente. Pelo abandono do projecto criminoso há um reconhecimento no plano
objectivo, da vigência da norma pela própria norma. O que pode considerar-se o
método mais eficaz de conseguir a reintegração da norma: é o próprio agente que
restaura a sua força e não qualquer espécie de mecanismo repressivo.

2.1) O art. 24.º/n.º1/“in fine” consagra a extensão do regime da desistência da


tentativa aos crimes de perigo, quando o agente procure evitar a produção do dano,
não compreendido no tipo legal de crime. Isto é, os crimes de perigo consumam-se
com a mera colocação do bem jurídico em perigo de lesão. Contudo, se o agente que
pratica um crime de perigo actuar com vista a evitar que a efectiva lesão do bem
ocorra, deve aplicar-se o regime da desistência da tentativa – exclusão da pena. Isto
porque o fundamento da incriminação é, mesmo nos crimes de perigo, evitar a lesão
de bens jurídicos essenciais.

2.2) O art. 24.º/n.º2 prescreve que nos casos em que a consumação é evitada por um
factor exterior ao agente mas, simultaneamente este se esforçou para evitar o
resultado (isto é, houve desistência), a não consumação aproveita também ao agente.

2.3) O art. 25.º aborda as desistências no contexto da comparticipação


(entrecruzamento entre duas formas especiais de crime): desde que o agente que
desiste se esforce seriamente para impedir a consumação ou a verificação do
resultado, tal desistência será relevante, ainda que os demais participantes prossigam
20
na execução do crime ou o consumem. A mensagem da lei é a de que vale sempre a
pena desistir.

2. CONCURSO DE CRIMES

A questão que se levanta é a de saber como se responde às situações em que o


mesmo agente pratica várias infracções.

Antes de mais cabe distinguir a figura do concurso de crimes da reincidência. Em


ambos os casos o agente comete vários crimes, mas na reincidência o segundo crime é
cometido depois de o agente ter sido condenado com sentença transitado em julgado
pela prática do primeiro crime. O CP atribui relevância à reincidência, estabelecendo
um regime especial nos arts. 75.º e 76.º – o segundo crime pode ter uma agravação da
pena. Quanto ao fundamento dessa agravação há várias teorias: maior
censurabilidade, maior perigosidade…

O concurso de crimes por sua vez, caracteriza-se por consistir numa acumulação de
infracções realizadas perlo mesmo agente, mas antes de qualquer uma delas ser
julgada com sentença transitada em julgado – art. 77.º.

O problema que se levanta no concurso é saber como contar os crimes.

Exemplo: A dá sete facadas a B. Quantos crimes cometeu? Um crime de ofensas


corporais ou sete do mesmíssimo género?

Para responder a esta questão foram formuladas várias teorias, sendo que iremos
analisar duas:

21
1. Teoria de base naturalística: É de inspiração positivista e está ligada ao sistema
clássico. Segundo esta teoria o critério para determinar se há unidade ou pluralidade
de crimes reside no número de acções praticadas. O conceito de acção é aqui tomado
no quadro naturalista – acção causal. Esta solução era aplicada mesmo quando da
mesma acção resultassem violações a diferentes bens jurídicos.

Ex. A atira uma pedra e esta parte uma montra e atinge uma pessoa na cabeça. Só há
aqui um crime em virtude de A só ter praticado uma acção.

Esta posição não é viável porque deixa de fora o verdadeiro fundamento da punição
penal – protecção de bens jurídicos. A acção causal não é pois adequada para
expressar os conteúdos jurídico-criminais. Por esta razão os normativistas, entre eles
Eduardo Correia, colocaram o problema na sua verdadeira sede – a acção é a
afirmação ou negação de valores, sendo através deste critério que se deve distinguir a
unidade da pluralidade de acções criminosas.

Adoptando a perspectiva positivista causal não é possível saber quando é que há uma
acção. Pense-se por exemplo em todos os gestos necessários para disparar uma arma.
No exemplo da pedra referido supra os positivistas entendiam que havia um só crime,
mas que crime é esse? Um crime de dano ou de ofensas corporais?

Por esta razão os próprios autores desta teoria tiveram que lhe introduzir uma
correcção:

Sempre que uma só acção lesasse mais do que um bem jurídico o agente devia ser
punido como se houvesse concurso, embora este concurso não fosse real. Estas
situações designavam-se de situações de concurso ideal, e podiam assumir duas
formas:

a) Homogénea: O agente com uma única acção lesa mais de uma vez o mesmo bem
jurídico. Ex. Um só tiro mata duas pessoas (bem jurídico vida); Uma só pancada parte
duas coisas de outrém (bem jurídico património).

22
b) Heterogénea: O agente com uma só acção lesa dois ou mais bens diferentes. Ex. O
agente atira uma pedra que parte uma montra e atinge a cabeça de outrém (2 bens
jurídicos).

O concurso real existe só quando há mais do que uma acção.

Em ambas as modalidades há um desvio ao critério inicialmente fixado, que centrava a


diferença entre a unidade e a pluralidade de crimes meramente no número de acções
praticadas. Este desvio demonstra a inviabilidade do critério. No Direito Penal não
importa determinar os nexos causais do plano ôntico, pois no universo social e
humano a conduta é aferida por sentidos e valorações.

Por estas razões a nossa lei, na senda da doutrina maioritária, aderiu a um critério
normativo.

2. Tese normativista:

Atende ao número de valorações de ilicitude que no caso concreto se realizaram.


Como ponto de partida pode dizer-se que há tantos crimes quantas violações típicas
foram realizadas, independentemente do número de processos causais envolvidos. O
que interessa já não é o número de acções mas sim o número de ilícitos típicos. A
contagem dos ilícitos típicos é simples nalgumas situações (ex. A pedra parte a montra
e atinge a cabeça de uma pessoa – há dois juízos de ilicitude). Todavia, há casos em
que o agente realiza o mesmo crime mais do que uma vez. Nestes casos o agente
realiza várias vezes o mesmo tipo, ou seja, há concurso de crimes mas só está em
causa um tipo legal de crime (ex. dois crimes de violação, dois crimes de homicídio…).
Para resolver estes casos os autores atendem ao espaço temporal existente entre a
prática de ilícitos – dilação espacial e temporal.

Segundo este critério, sempre que houver tal dilação espacial e temporal entre a
prática do mesmo tipo de ilícito há vários crimes. Este critério é muito operativo mas
não pode ser decisivo porque pode haver crimes cuja execução seja dilatada no tempo
e ainda assim haja só um crime. Por esta razão parece ser preferível o critério que se
prende com a concepção do ilícito pessoal, em que cada ilícito praticado corresponde a

23
uma unidade de sentido, que tem uma base objectiva e outra subjectiva (que é a
decisão/o projecto criminoso).

Exemplo: Seis facadas – o projecto criminoso é agredir a pessoa, havendo portanto


uma única posição, embora passível de decomposição em vários actos. Mas há uma
unidade de sentido.

Exemplo: A bate a B num bar. O dono expulsa A do bar e este regressa lá par bater
mais em B. Aqui já há dois projectos criminosos, duas unidades de sentido.

Seguimos pois o critério normativo, que necessariamente se liga à concepção do ilícito


pessoal. A diferença entre a unidade e a pluralidade de infracções deve fazer-se
mediante o número de ilícitos realizados pelo agente. Tem-se em conta o número de
tipos violados, quando estão em causa tipos legais de crime distintos, ou o número de
vezes que o mesmo tipo é violado, se estiver em causa um único tipo. Isto é assim
porque o ilícito se verte em expedientes formais, técnicos, a que chamamos tipos.

No quadro do ilícito pessoal o número de crimes praticados é igual ao número de


projectos criminosos do agente. Este problema põe-se essencialmente quando só foi
praticado um tipo legal de crime. A questão simplifica-se bastante quando o agente
viola diferentes tipos legais. Note-se que pode haver uma mistura de ambas as
situações isto é, nada impede que o agente viole diferentes tipos legais e que todos
esses tipos sejam violados mais do que uma vez.

Entre nós há completa equiparação entre o concurso real e o concurso ideal – ambos
são realidades do verdadeiro concurso, que se determina pelo número de unidades de
sentido (projectos criminosos).

Recorde-se que por falhas intrínsecas ao próprio sistema, nomeadamente devido à


adopção da concepção do ilícito objectivo, os normativistas, tal como os clássicos, se
viam obrigados a remeter a tentativa e o concurso para o âmbito das formas especiais
de crime, enquadradas fora do sistema. Eduardo Correia, por essas mesmas razões,

24
acaba por ter de solucionar o problema da distinção entre unidade e pluralidade de
crimes – que é na sua essência um problema de ilicitude – ao nível da culpa. Por aqui
se vê que o ilícito objectivo era de facto desadequado para a compreensão:

 Da tentativa, porque esta integra o dolo como requisito (como elemento


estrutural) e os normativistas não reconheciam o dolo da ilicitude, somente o
da culpa;

 Do concurso, porque este obriga a atender ao número de projectos criminosos


do agente e todos os elementos atinentes à subjectividade do agente só
podiam ser considerados no momento da culpa, segundo os normativistas.
Principalmente quando o tipo legal de crime preenchido é só um não há
qualquer outra forma válida de determinar se existe unidade ou pluralidade de
infracções.

O Dr. Eduardo Correia entendia que quando o agente violava várias vezes o mesmo
tipo a dimensão objectiva era idêntica, pelo que era necessário convocar a culpa. Mas
isto era uma “entorse” ao enquadramento sistemático pois sempre que havia um juízo
de censura recorria-se à culpa (que é uma categoria mais à frente, na pirâmide) para
determinar o ilícito típico. O número de ilícitos ficava assim na dependência do
número de culpas. Havia aqui uma fractura no sistema.

A matéria da unidade ou pluralidade de infracções está regulada no art. 30.º que,


apesar de não expressar claramente a adesão a qualquer das concepções de ilícito, se
refere a um critério normativo, que só é compreensível no quadro do ilícito pessoal.
No nº1 o legislador vincula a solução ao número de tipos preenchidos e portanto, a um
critério não causal. No quadro do ilícito pessoal para calcular o número de vezes que o
tipo é preenchido não interessa tanto o critério espacio-temporal mas sim o critério da
unidade de sentido, dada pela renovação ou não do projecto criminoso. Os crimes que
concorrem podem ser dolosos, negligentes ou dolosos e negligentes.

25
Regime aplicável ao concurso de crimes:

Está consagrado nos arts. 77.º e 78.º. É sempre aplicada uma pena unitária, isto é, a
pena é só uma – sistema do cúmulo jurídico. Afasta-se assim a solução seguida pelos
EUA e Espanha por exemplo – sistema de acumulação material, em que se somam as
penas dos vários crimes praticados (Ex. A mata duas pessoas = pena perpétua + pena
perpétua!).

No nosso sistema não vigora uma pena individualizada para cada crime em concurso
mas sim uma pena global, que pretende dar resposta a todos os crimes praticados. Os
cúmulos jurídicos aqui não podem ultrapassar os 25 anos.

Quanto ao mínimo de pena a aplicar tem que corresponder à pena mais alta de todos
os crimes que o agente praticou. A pena atribuída tem que traduzir o desvalor da
situação mas também todas as outras exigências que se colocam em sede de pena –
prevenção especial, reintegração social.

A punição do concurso vai traduzir-se na construção de uma nova moldura abstracta


pelo juiz, dentro da qual, posteriormente, ele irá determinar a pena concreta a aplicar
ao agente. Trata-se pois de um processo com duas fases, nos termos do nº 2 do art.
77.º:

 Num primeiro momento o juiz determina a moldura abstracta em que se irá


mover. Para tal determina as penas concretas correspondentes a cada crime e
soma-as, obtendo assim o limite máximo daquela moldura abstracta. Quanto
ao limite mínimo ele coincidirá com a pena individual mais grave. O limite
máximo não pode ultrapassar os 25 anos nem os 900 dias de multa.

 Num segundo momento o julgador vai determinar, dentro daquela moldura


penal abstracta, a pena concreta, tendo em conta os factos e a personalidade
do concreto delinquente.

26
O nº 3 do art. 77.º é uma norma complementar. Pode haver concurso de crimes aos
quais corresponda pena de prisão com crimes cuja pena é de multa. Este nº 3 vem
auxiliar a compreensão do nº2, afirmando que pode perfeitamente haver aplicação de
penas cumulativas, de prisão e de multa. O limite máximo é 25 anos de prisão e 900
dias de pena de multa.

O nº4 por sua vez estatui que as penas acessórias e as medidas de segurança são
sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis. Poderá
ainda suceder que se somem às penas medidas de segurança nos termos do sistema
monista com vicariato de execução, não havendo aqui qualquer contradição, pois o
agente pode ser imputável para uns crimes e inimputável para outros. As medidas de
segurança e as penas acessórias têm que ser sempre aplicadas.

O concurso de crimes é punido mais gravemente do que a unidade criminosa.

Dentro do concurso de crimes há duas matérias especiais: crime continuado e


concurso aparente legal ou de normas.

Crime continuado:

Na sua essência traduz um concurso de crimes verdadeiro e efectivo. Porém a


jurisprudência, a doutrina e a própria lei começaram a tratar esta figura de forma
unitária. No crime continuado o agente pratica vários crimes mas que preenchem o
mesmo tipo legal ou então que preenchem vários tipos mas que protegem
fundamentalmente o mesmo bem jurídico.

Por outro lado, é preciso também que a execução destes tipos de crimes ocorra de
forma homogénea. Ex. A encontra uma chave de um armazém. Num dia vai lá tirar
umas coisas. Passados dois dias volta para furtar outras coisas, etc.

Há crimes que se sucedem mas cuja sucessão é de certa forma favorecida pelo
circunstancialismo exterior: ao praticar o primeiro crime o agente fica com a posse de
um meio, um instrumento ou uma ocasião para repetir o crime. A doutrina veio então
a entender que apesar de se tratar de um concurso de crimes há um a certa unidade

27
de constelação objectiva exterior que confere ao agente o instrumento, o meio ou a
ocasião de voltar a delinquir.

A este argumento objectivo junta-se um elemento subjectivo: a circunstancia de


existir um factor exterior que facilita a prática do crime como que torna os crimes
posteriores menos censuráveis, à luz da não exigibilidade, o que dá azo a uma
considerável atenuação da pena.

Trata-se de um quadro exterior que favorece a execução plúrima dos vários crimes e
que por isso torna a atitude do agente menos censurável – art. 30.º/n.º2. “A ocasião
faz o ladrão”.

Requisitos do crime continuado:

1.Haver vários crimes que se reportam ao mesmo tipo legal ou a tipos legais diferentes
mas que violem o mesmo bem jurídico;

2.A execução dos crimes ser realizada de forma homogénea;

3.Haver um quadro exterior que favoreça a execução plúrima dos vários crimes.

Esta figura surgiu na Alemanha para resolver problemas de processo e para responder
ao princípio “ne bis in idem”. Ex: A vai roubando da caixa mas B, patrão, só descobre
alguns dos furtos e A é condenado por essas vezes em que foi descoberto. Mais tarde
descobre-se que A roubou mais quatro vezes e houve novamente condenação, por
essas quatro vezes. Houve um caso real em que o agente confessou ter roubado mais
de trezentas vezes.

Esta figura do crime continuado é das que mais dúvidas pode suscitar no campo
dogmático podendo levar à afirmação de que “o crime compensa”, desde o momento
em que o agente conhece este regime e se conforma com os seus pressupostos.

Punição – art. 79.º:

28
O agente é punido só pelo crime mais grave de todos os que integrem o crime
continuado, ou seja, independentemente do número de vezes que pratica o crime, o
agente só é punido uma vez. Esta regra comporta uma substancial atenuação em
relação às regras gerais do concurso de crimes, que de outra forma seriam aqui
aplicadas.

Apesar desta figura estar prevista na lei, a doutrina tentou estabelecer alguns limites,
devido à atenuação brutal da pena que ela comporta. Assim sendo, Eduardo Correia só
aplicava a continuação às situações concursais que implicassem violações de bens de
natureza não pessoal. Exemplo: Não é justo tomar como um só crime a violação
continuada de uma criança ou a violência doméstica.

Em relação aos bens pessoais cada crime é considerado a partir da estaca zero. Não se
deve admitir que haja um factor externo que atenue a culpa. Ex: Tomar conta de uma
criança facilita a violação. Deve este factor atenuar a culpa?

No entanto, há quem considere que não se deve excluir todos os bens pessoais da
figura do crime continuado. Nesse sentido só devem ser excluídos a vida, a liberdade, a
integridade física – casos de homicídio, ofensas corporais graves e sequestro.

A importância do bem jurídico é um dos elementos que se deve ter em conta para
aferir a gravidade da lesão, mas não o único.

Por vezes confunde-se o crime continuado com o crime de execução fraccionada, mas
tratam-se de situações diferentes. Exemplo: A trabalha na caixa de um banco e certo
dia por necessidade retira vinte e cinco €. Noutro dia volta a precisar e tira mais vinte e
cinco. Alguns dias depois volta a fazer o mesmo. Exemplo: B é caixa de um banco e
precisa de quinhentos €. Para não dar nas vistas decide retirar vinte cinco € por dia até
atingir os quinhentos €. No segundo exemplo só há um projecto criminoso, pelo que
não há concurso de crimes.

Concurso aparente legal:

29
Trata-se de uma situação inversa à do verdadeiro concurso: existe um só crime, existe
unidade criminosa, uma só unidade de sentido jurídico-criminal, mas esta é subsumível
a vários tipos legais de crime.

Basta pensar no homicídio qualificado: este é subsumível ao homicídio qualificado mas


também ao homicídio simples. Mas pense-se em casos menos óbvios como o de fogo
posto em propriedade alheia: trata-se de um crime subsumível ao tipo autónomo de
fogo posto por um lado e ao crime de dano por outro. O concurso aqui é meramente
aparente, pois o que concorre não são os factos, mas sim as normas. Há várias normas
que se mostram competentes para regular a concreta situação.

Torna-se assim necessário estabelecer ligações entre as várias normas para saber qual
é que se aplica, afastando as demais. A doutrina alemã fala de muitas relações, sendo
algumas delas adoptadas por autores portugueses: basta pensar nas relações de
subsidiariedade que nos quadros de Eduardo Correia, que seguiremos, não têm
autonomia reduzindo-se à consunção.

A nossa doutrina maioritária, pela mão de Eduardo Correia, tende a reduzir as relações
entre as normas a dois grandes tipos:

a) - Relações de especialidade;

b) - Relações de consunção.

A diferença entre ambas está na natureza da própria relação. A especialidade é uma


relação formal e abstracta, independente da configuração do caso concreto. A norma
especial contém todos os elementos da norma geral e pelo menos mais um, que é
precisamente aquilo que a torna especial – “Lex especialis derrogat lex generales”.
Exemplo: Relação entre a norma que prevê o homicídio qualificado e a que prevê o
homicídio simples, quando é praticado um homicídio qualificado. Este crime contende
com ambas as normas.

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A consunção por sua vez só pode ser aferida em concreto. Tratam-se de normas que
na sua pura descrição formal não coincidem (o âmbito de aplicação não é o mesmo),
mas ambas abrangem o caso concreto em apreço. A aplicação de uma ou outra
depende da configuração material do caso concreto e, mais do que isso, passa por
saber, atentas as teleologias e os conteúdos das normas concorrentes, qual delas
melhor se adapta ao conteúdo de desvalor do acto concreto.

A consunção pode ser pura ou impura. Só se deve recorrer a esta última a título
excepcional, pois trata-se de um mecanismo de correcção da lei e ocorre quando o
funcionamento da regra da consunção pura levaria a uma solução manifestamente
desadequada.

Um dos casos mais frequentes dá-se quando se verifica que a norma mais adequada ao
caso, do ponto de vista teleológico, conduz a uma pena muito menor. Nestes casos o
crime continua a ser resolvido à luz da norma consumida, que em princípio seria
afastada pela que consome.

Mas a consunção impura contende apenas com a sanção e não já com a natureza do
conteúdo do ilícito, nem com a sua classificação ou qualificação. Isto significa que o
crime descrito continua a ser o da norma que consome e que em princípio seria
aplicada. O que acontece é que se aplica a sanção da norma consumida e não a da que
consome, por ser mais adequada.

Quanto ao âmbito de aplicação mais específico da consunção impura, a doutrina


desenvolveu em tempos um entendimento meramente quantitativo: sempre que a
sanção da norma afastada se traduzisse numa pena mais grave, deveria ser essa a
sanção a aplicar. Entendia-se que quanto mais grave fosse a sanção, maior seria a
protecção conferida ao caso. Mas isto levaria a que não fizesse sentido a própria
distinção entre consunção pura e impura: bastaria em qualquer relação de consunção
aplicar sempre a sanção mais grave de entre as previstas pelas normas concorrentes.
Além disso, nada nos permite dizer que a sanção mais grave é forçosamente mais
adequada.

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O pressuposto para inverter a regra da consunção, invocando o corrector da
consunção impura, deve ser encontrado não só em função da pena aplicável, mas
também à luz das considerações político-criminais do ordenamento jurídico e de
justiça material que, no caso concreto revelem que a aplicação da pena da norma que
consome é manifestamente inadequada. Mas lembre-se que esta construção deve ser
sempre excepcional, por imposição do próprio princípio da legalidade e entre outras
exigências do Direito Penal.

Esta solução encontra-se mais próxima dos princípios que enformam o Direito Penal
português – mínimo de intervenção, “in dúbio pro reu”, “in dúbio pro libertatis”.
Portanto, ainda que a sanção a que a consunção pura guie seja mais leve, contando
que seja adequada ao caso concreto, não deverá convocar-se o corrector da
consunção impura – ao contrário do que já pretendeu a doutrina e mesmo a
jurisprudência determinante.

Por outro lado, devemos ter em mente que este corrector, a funcionar, contenderá
apenas com a sanção a aplicar ao ilícito e não já com a sua qualificação.

3. COMPARTICIPAÇÃO

Esta figura quebra a ideia de unidade do agente, isto é, traduz-se naquelas situações
em que o crime resulta de uma associação de esforços e condutas entre vários
sujeitos. Trata-se da constatação de uma possibilidade paralela à que existe no mundo
lícito.

O grande problema que se levanta aqui é o de saber em que termos se pune os vários
agentes. A doutrina dominante, embora com critérios diversos, distingue desde há
muito, várias espécies de comparticipantes de forma a aplicar penas distintas, em
função do tipo de participação de cada um. Distinguem-se assim duas categorias
fundamentais na comparticipação:

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3.1 Autoria: autor é todo o interveniente principal isto é, que desempenha um papel
determinante, pelo que a sua conduta comporta um desvalor mais grave. A autoria
pode assumir três modalidades – imediata, mediata ou co-autoria.

3.2 Participação: Os participantes podem ser instigadores ou cúmplices. O instigador é


aquele que procede a uma exortação, à persuasão de outrém para praticar o crime.
Entende-se que o seu contributo ainda cabe na participação, por ainda ter um carácter
secundário pois a execução do crime cabe ao autor. A cumplicidade corresponde ao
auxílio prestado ao autor na realização do crime. Ambos os casos constituem
intervenções de carácter acessório.

O participante exerce um papel de coadjuvante, logo subordinado em relação à


intervenção principal. Os critérios de distinção entre ambas as figuras foram variando,
de acordo com visões objectivistas e subjectivistas. Nos termos de uma visão
objectivista deverá haver uma graduação através do próprio conteúdo de ilícito do
desvalor objectivo do facto. Para os subjectivistas por sua vez a diferença entre ambas
as figuras reside no plano das intenções e na maior ou menor perigosidade do agente.
Todavia, ao longo da história, houve também teorias que pretenderam abolir pura e
simplesmente a diferença entre autores e participantes.

Foram as doutrinas unitárias da comparticipação, a que por vezes se chama sistema


unitário de autoria. Trata-se de uma doutrina minoritária, consagrada pela primeira
vez no Code Penal Napoleónico de 1810, sendo mais tarde estendido ao Código
Prussiano de 1850. Todavia repare-se que mesmo os autores franceses, na vigência do
referido código conseguiram, através de determinados artificialismos de interpretação,
retomar o sistema dualista. Actualmente o sistema unitário é consagrado apenas pelo
Código Penal Austríaco.

Esta teoria submete todos os comparticipantes à mesma pena isto é, todos ficam
sujeitos à mesma moldura penal abstracta, competindo ao juiz a graduação das
responsabilidades de cada um, no caso concreto, através de uma consideração
globalizante de todos os aspectos subjectivos e objectivos da conduta dos
participantes.

33
Esta era a ideia geral das teorias unitárias, havendo depois várias orientações.

A orientação subjacente ao Code Penal era a moderada, sendo esta a que vigora na
Áustria. Esta orientação gera a necessidade de estabelecer molduras muito largas, afim
de conferir ao juiz uma certa margem de manobra, atribuindo-se-lhe assim amplos
poderes de graduação das responsabilidades e consequentemente, das penas. Daqui
decorre uma grande dose de insegurança jurídica. Ainda assim, continua a dar-se
primado ao conteúdo do ilícito do acto e portanto, a vincular a valoração penal a um
Direito Penal do facto.

Mas houve também uma orientação mais radical, defendida por Liszt, entre outros,
apesar de nunca ter sido consagrada em letra de lei. Estes autores defendiam um
conceito unitário de autoria inspirado na prevenção especial e no Direito Penal do
agente: o que interessava, para a determinação da sanção não era o desvalor objectivo
do acto, mas sim a perigosidade do agente. Podia assim suceder que a um acto menos
grave – por exemplo uma colaboração sem grande importância na realização do crime
– estivesse subjacente uma personalidade mais perigosa.

Na comparticipação a graduação da pena devia atender à perigosidade de cada um


dos agentes e não ao peso objectivo do contributo de cada um. Esta visão foi
desenvolvida na Escola Moderna Alemã e na Escola Positiva Italiana.

Há pois que distinguir este conceito unitário de autoria que remete para o direito
penal do agente, daquele outro que, apesar das suas falhas, ainda se vincula ao direito
penal do facto, que foi o maioritário e o único que teve consagração legal e que ainda
hoje permanece, ainda que só no ordenamento jurídico-penal austríaco.

Em Portugal nunca houve defensores do conceito unitário em nenhuma das vertentes.


Mas isto não significa que esse conceito não tenha algumas vantagens, caso contrário
não se compreenderia porque razão teve tantos adeptos, tendo sido mesmo referido
como o sistema mais adequado pela U.I.D.P – Union Internationale de Droit Pénal, no
Congresso de S. Petersburgo, realizado nos anos de 1902 e 1903.

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De facto este sistema unitário permite uma melhor adequação da justiça ao caso
concreto, uma vez que o juiz realizava uma ponderação compreensiva dos aspectos
subjectivos e objectivos da intervenção de cada indivíduo, o que conduzia a uma
correcta graduação da responsabilidade e dos vários contributos. Assim se
ultrapassariam as inúmeras dificuldades a que chegara a doutrina tradicional,
maximizadas naqueles casos-limite em que a fronteira autor-participante é
particularmente difícil de estabelecer. Porém, só aparentemente estes argumentos são
válidos.

A verdade é que o conceito unitário de autoria não elimina estas dificuldades, só as


transfere da mão do legislador para a do juiz, o que acaba por agravar a situação,
porque coloca a solução do problema sob a pressão do caso concreto e dos prazos que
a urgência do trabalho forçosamente comporta. Isto para não falar dos inconvenientes
gerais que derivam da concessão de grande arbítrio ao juiz, em lugar do
estabelecimento de balizas logo ao nível da função legislativa, democraticamente
legitimada e por isso mesmo, menos perigosa.

Além disso, como já foi referido “supra”, a previsão de molduras legais de grande
amplitude radica numa diminuição considerável da certeza e segurança jurídicas. Note-
se que estas exigências em Direito Penal são mais acentuadas, dada a natureza
essencial dos bens jurídicos envolvidos e a gravidade das sanções aplicáveis.

A doutrina dominante na generalidade dos Estados é a do sistema dualista, que separa


as categorias da autoria e participação. Isto não invalida que sobre os critérios
concretos de tal distinção continue a existir controvérsia. Assim sendo, logo ao nível da
lei há uma hierarquização entre as modalidades de comparticipação criminosa, através
de uma estrutura bipolar: autores (aqueles que têm uma intervenção preponderante
no surgimento do crime e cuja conduta assume maior gravidade) vs participantes
(auxiliares, que ocupam uma posição secundária, sendo sujeitos a um sancionamento
menos grave).

35
Esta hierarquização está dependente do sentido que se atribui ao ilícito e às valorações
jurídico criminais que vigoram num dado ordenamento jurídico. No nosso século
surgiram, a este propósito várias doutrinas. Com todos os riscos que as grandes
generalizações comportam, podemos apontar quatro grandes teorias da
comparticipação, cada uma delas partindo de um diferente critério para presidir à
distinção entre autoria e participação.

1. Doutrina subjectiva:

Pretende estabelecer a distinção entre ambas as figuras com base em critérios


meramente subjectivos. Abarca duas subespécies: teoria do dolo e teoria do interesse.

1.1 Teoria do dolo:

Centra a distinção na natureza do dolo ou mais correctamente, entendia que seria


autor aquele que actuasse com “animus auctoris” isto é, aquele que assumisse o
projecto criminosos como a sua vontade própria e autónoma e não como uma vontade
subordinada ou subordinável a outrém. Os participantes, por sua vez, eram aqueles
que actuavam com “animus socii”, ou seja aqueles que só querem o crime na medida
em que o autor o quer. No mero participante há uma clara subordinação da vontade.

Esta teoria tem muito em comum com a teoria unitária dado que o tipo é
compreendido numa perspectiva meramente causalista/naturalística. Relembre-se
aqui a teoria das condições equivalentes em que não existe qualquer distinção
qualitativa entre as várias condições do crime, reduzindo-se o problema ao nexo
causal. Se no plano objectivo as condições são equivalentes, independentemente da
proximidade em relação ao resultado, tão-pouco haverá distinções de autores e
participantes no puro plano objectivo. Essa diferenciação só pode ser estabelecida

36
num plano subjectivo. A distinção passa assim a depender do “animus”. Esta doutrina
era ainda a dominante na Alemanha nos anos 60.

Tomemos em conta um caso real do final do século passado: uma senhora teve um
filho e como era solteira, pediu à sua irmã para matar a criança, tendo esta acedido. A
irmã, apesar de ter morto a criança, isto é, de ter desempenhado a conduta que lesou
directamente o bem jurídico vida, seria apenas uma mera participante, de acordo com
esta teoria, pois só cometeu o ilícito a pedido da irmã. A sua vontade estava assim
subordinada à de outrém – “animus socii”. Do ponto de vista estritamente causal o
pedido da irmã e a realização por parte da outra são condições equivalentes para o
resultado que ocorreu.

Contudo, no plano subjectivo só a mãe agiu com “animus domini”, pelo que ela é que
será autora. Este exemplo ilustra claramente o carácter insatisfatório desta doutrina,
que não é admissível no quadro do Direito Penal do facto, a que todos os
ordenamentos jurídicos modernos estão vinculados.

As valorações do Direito Penal só podem passar pela subjectividade quando esta


encontre correspondência no plano do facto, das condutas exteriores. A teoria do dolo
é assim manifestamente desadequada uma vez que prescinde da maior ou menor
gravidade do conteúdo de ilícito da conduta do agente, podendo mesmo levar à não
consideração da conduta que directa e imediatamente lesou o bem jurídico,
atendendo-se apenas a desvalores meramente internos. O que se pune directamente é
a personalidade, ainda que esta não encontre correspondência no maior ou menor
desvalor objectivo do facto. O critério que subjaz à distinção entre os dois “animus” –
“auctoris” e “socii” – e portanto à distinção entre autoria e mera participação, é o da
mera energia criminal.

Não admira que esta fosse a posição defendida pelo sistema positivista. A manifesta
inadequação da teoria do dolo ao Direito Penal do facto é assim a principal crítica que
lhe pode ser dirigida. Mas soma-se-lhe outra, relacionada com questões mais práticas,
nomeadamente com a prova do “animus”: sempre que não fosse possível provar o
37
“animus auctoris” o que haveriam eram vários cúmplices e nenhum autor. Isto
aconteceria frequentemente dada a grande dificuldade em provar elementos internos,
subjectivos do agente.

Além disso este critério permitia o livre arbítrio do juiz, que podia manipular a seu bel-
prazer a matéria da prova, para aplicar as penas consoante as suas próprias convicções
pessoais. O controlo, nomeadamente em sede de recurso, seria extremamente difícil,
daí que esta teoria subjectiva do dolo nunca tenha tido defensores nacionais.

1.2 Teoria do interesse:

Faz a distinção entre autoria e participação consoante a intervenção do agente no


crime tenha surgido para satisfazer um interesse próprio ou um interesse alheio. Em
suma, esta teoria converte o motivo do crime no critério de distinção entre as
situações da comparticipação. Esta visão também é inadmissível nos quadros do
direito penal do facto onde deve atribuir-se relevância ao maior ou menor conteúdo
do ilícito. Além disso esta teoria não se harmoniza com o direito positivo, pois há casos
em que a lei expressamente determina que o crime pode ser cometido em interesse
próprio ou alheio (ex. crimes patrimoniais, nomeadamente a burla).

Na maior parte dos casos a lei não atribui relevância à titularidade do interesse que
subjaz à prática do crime. Também esta teoria se depararia com inúmeras dificuldades
práticas relacionadas com a prova da titularidade do interesse em causa. Além disso é
legítimo o entendimento de que a partir do momento em que se assume um interesse
alheio e se toma tal interesse como motivo para praticar o crime, esse interesse passa
a ser próprio. Von Buri foi um dos adeptos desta teoria que, em 1907 não mais contava
com nenhum defensor.

2. Teorias objectivas:

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2.1 Teoria formal objectiva:

Esta teoria já foi referida aquando do estudo da tentativa, e foi defendida por Belling,
entre outros. O autor é aquele que realiza, por mão própria os actos de execução,
sendo os outros meros participantes. Assim sendo, para determinar o autor de
determinado crime apenas é necessário atender à letra da lei – todo aquele que realiza
a conduta contida no tipo é autor.

Todos os outros, que contribuíram para a realização do crime mas que não o
preencheram, por si só, são participantes. Esta posição é mais satisfatória que as
anteriores, mas ainda assim é susceptível de um critica equivalente à que lhe dirigimos
em sede de tentativa: não é suficiente pois só vale para os crimes de execução
vinculada, que são uma minoria, em cujo tipo o legislador descreve o “modus
operandi”.

Para ultrapassar esta insuficiência os próprios adeptos da teoria introduziram uma


correcção: nos casos em que o legislador não especificou a conduta (crimes de
execução não vinculada) remete-se para a opinião do vulgo, isto é, para o senso
comum (matar é aquilo que a comunidade entende por matar). Daqui decorre uma
grande dose de insegurança, sendo que esta teoria se intitulava como a mais fiel ao
princípio da legalidade e no fundo, acabava por ser a que mais dele se afastava. Além
disso, mesmo após esta correcção, esta teoria só abarcava os autores imediatos.

Não incluía a autoria mediata, em que não é autor imediato que pratica os actos de
execução do crime mas sim outrém. Os adeptos desta teoria formal ainda procuraram
vislumbrar aqui uma autoria ficcionada, dado que não cabia na realização dos actos
típicos, definidos pelo legislador (crimes de execução vinculada) ou definidos pela

39
linguagem corrente. Neste sentido considerava-se que os autores mediatos
configuravam uma situação análoga à do executor, isto é, à do autor imediato. Mas a
falha era de difícil contorno.

Também não dava resposta à co-autoria pois nesta há um acordo entre várias pessoas
que participam no plano e na execução. De acordo com esta teoria só é autor quem
efectivamente pratica actos de execução, ou seja, aquele que produz as condutas que
directamente conduzem à prática do crime. Mas pense-se no caso de um assalto a um
banco – só pratica o crime de furto aquele que lança mão ao cofre e ao dinheiro lá
guardado.

Mas será legitimo afirmar que os demais – os que imobilizaram o agente, os que
esperam no automóvel, os que apontam a arma aos clientes – são meros participantes,
nomeadamente cúmplices? Não porque isso não corresponde à realidade da vida: a
repartição de tarefas é, tal como na concretização de projectos lícitos, muitas vezes
aleatória nestas situações de co-autoria. O desvalor da intervenção dos agentes não
está forçosamente ligado ao facto de cada um deles ter praticado ou não a tal conduta
de execução “stricto sensu”.

2.2 Teoria material objectiva:

Foi a teoria típica do sistema normativista que, ao nível da imputação objectiva


consagrava já a teoria da adequação. Entre nós foi defendida por Eduardo Correia. Esta
doutrina superava as dificuldades da teoria anterior considerando autor todo aquele
que, de acordo com a teoria da adequação, tivesse contribuído com uma causa
susceptível de influir na configuração do concreto facto, isto é, que tivesse praticado
actos de execução adequados à produção normal e previsível do crime. Esta teoria
desenvolve assim um conceito extensivo de autor, ou melhor dizendo, do tipo, onde
cabem agora todas as condutas que contribuam para a realização do resultado danoso
para o bem jurídico, nos termos da teoria da adequação.

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No fundo o que os normativistas fazem é conceder a designação de autoria (em
sentido lato) a todas as formas de comparticipação e só depois disso é que efectuam a
distinção entre autoria em sentido estrito e participação. Para realizar esta distinção os
autores recorrem à velha distinção do Direito Comum entre “causam dans” e “causam
nom dans” – critério enunciado por Farináceo, que tem por base uma graduação da
eficácia causal. Assim sendo, a “causam dans” é a causa imprescindível ou essencial à
verificação do crime. Entre o contributo do agente e a verificação do resultado tem
que haver uma relação de causalidade necessária – autoria.

A “causa nom dans” é, por sua vez, aquela que não é essencial à prática do crime e que
apenas influi no modo, tempo ou no lugar do crime, não sendo determinante para a
verificação do mesmo. A relevância desta causa reside pois em aspectos laterais,
acessórios ou incidentais. Entre o contributo do agente e a verificação do resultado há
uma relação de causalidade não necessária – participação. É nestes termos que a
teoria material objectiva traça a fronteira entre autor e participante.

Há autores que falam, a este respeito, de uma teoria da necessidade, dado que se
acaba por proceder a uma graduação da perigosidade da conduta.

Há autores que exprimem esta mesma ideia através de uma outra teoria – Teoria dos
bens escassos (ex. Dr. Faria Costa): é autor aquele que detém uma condição, bem ou
meio necessário para a realização do crime, sendo que o mesmo era escasso. Quando
o meio utilizado constitui uma causa sem a qual o crime não se teria produzido, sendo
esse meio escasso, quem o possuía é considerado autor mediato. A distinção entre
autoria e participação derivava da averiguação da posse da condição indispensável ou
de primeira importância para a verificação do crime. No fundo, a distinção partia de
uma condição “sine qua non” para a prática do crime.

Críticas à teoria material objectiva:

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São aquelas que se ligam à tese do ilícito objectivo: o critério de distinção corresponde
a uma mera graduação da eficácia causal de cada comportamento para a lesão do bem
jurídico. Logo nesta restrição se revela a inadequação desta teoria para expressar o
sentido da valoração jurídico-penal. O núcleo do crime é o desvalor da acção, que se
traduz na violação de uma norma de determinação e não de uma norma de valoração.

A concepção do ilícito objectivo não permite dar resposta adequada a alguns crimes,
que exigem uma certa subjectivação, isto é, certas qualidades do agente (crimes
específicos) ou determinado “animus”/intenção. Em relação a estes tipos de crime só é
autor quem participa de tal qualidade ou intenção. Além disso, o critério de distinção
adoptado por esta teoria liga-se unicamente a factores exteriores (monopólio do meio)
e aleatórios, que em nada contendem com o desvalor intrínseco da conduta.

A distinção depende de processos causais hipotéticos, alheios ao conteúdo de culpa do


próprio agente, pelo que esta é uma perspectiva incompatível com o direito penal do
facto e com o princípio constitucional da culpa. Esta teoria material objectiva conduz
facilmente à arbitrariedade pois subordina-se a solução da questão à análise do juiz,
acerca da imprescindibilidade ou não da conduta para a produção do resultado.

Exemplo:. A, farmacêutico, é o único detentor de uma substância abortiva e vende-a a


B, uma mulher grávida. Nos termos da teoria material objectiva e principalmente da
formulação dos bens escassos, A é autor do crime de aborto. Mas é necessário que o
resultado – aborto – seja previsível de ocorrer com a venda do produto, de acordo com
a teoria da adequação. Ora, verdadeiramente o resultado da prática do aborto é tão
previsível quando o agente detém o monopólio do meio como quando tal não sucede.
Se existirem mais de 50 farmácias que vendam o mesmo produto, a possibilidade de
antecipação do resultado da venda por parte de A é exactamente a mesma.

Mesmo ao nível prático esta distinção entre causa essencial e causa não essencial é
inadequada, dadas as dificuldades de prova que suscita. De facto, quando é que se
poderá afirmar que a conduta de alguém foi imprescindível a um dado resultado? Um
exemplo disto mesmo é ilustrado pelo entendimento da co-autoria, enquanto causa
não essencial: como se pode afirmar peremptoriamente esta relação se qualquer dos

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co-autores pode desistir e ainda assim, o crime ser levada adiante pelos demais? Esta
doutrina exclui esta modalidade de co-autoria, que é muito frequente.

3. Teoria do domínio do facto:

O que importa realçar é que o direito penal não contende com a maior ou menor
eficácia causal das condutas, mas sim com o seu sentido de anti-normatividade, que é
aferido por relação às normas de determinação. É com base nesta ideia que tem de se
estabelecer a distinção entre as várias formas de comparticipação. É com base neste
entendimento que surgiu a teoria do domínio do facto, que é a dominante
actualmente.

Segundo esta doutrina, é necessário distinguir primeiramente a autoria negligente da


autoria dolosa, pois tratam-se de dois conteúdos autónomos, com diferentes sentidos
de contrariedade a uma norma de determinação. Assim sendo, na autoria negligente
vigora um critério unitário, isto é, não há lugar à distinção entre autoria e participação.

Na negligência é autor aquele que violar um dever objectivo de cuidado, lesando dessa
forma bens jurídicos penalmente tutelados. A própria estrutura do delito negligente
parece não admitir a distinção entre autor e participante. Este conceito unitário de
autoria no que concerne com a negligência, não é referido à ideia de “conditio sine qua
non” mas sim ao conteúdo do dever objectivo de cuidado que foi violado, nos termos

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da teoria da adequação. A negligência é punida com pena especialmente atenuada
pelo que qualquer diferenciação deve ser deixada ao julgador.

Daqui se retira que o específico critério de distinção entre autoria e participação


adoptado pela teoria do domínio do facto vale apenas para os ilícitos dolosos. Estes
consistem naquelas condutas conscientes e intencionais que levam à lesão de bens
jurídicos. Essa lesão só pode assim ser imputada à pessoa de cuja vontade depende a
realização do crime. Assim sendo há autoria quando o “se” e o “como” surgem em
resultado da vontade do agente, quando o crime surge como obra da livre decisão do
agente.

Não basta à autoria a previsibilidade do crime, exigindo-se também o poder de


controlo por parte do agente, isto é, exige-se que ele tenha poder para iniciar,
suspender e cessar a actividade criminosa.

Voltando ao exemplo do farmacêutico, segundo a teoria do domínio do facto ele já


não podia ser considerado autor do crime de aborto, pois a efectiva realização do
mesmo não dependeu da sua vontade, mas sim da vontade da mulher. Isto é assim
independentemente do farmacêutico deter ou não o monopólio do produto que
vendeu.

Não basta existir qualquer nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, pois
este nexo também existe entre o instigador ou o cúmplice e a lesão do bem jurídico.
Também eles antevêem, nos termos da teoria da adequação, a possibilidade prática da
realização do crime.

O domínio do facto é a tradução, em termos categoriais, do próprio ilícito doloso, que


se caracteriza pela congruência entre os aspectos objectivos e subjectivos da infracção.
Para existir esta congruência é necessário que resida na vontade do agente a fonte e a

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raiz do acontecimento exterior em que se traduz a lesão do bem jurídico, que se
deverá assim ao conhecimento e à vontade do agente.

É este o critério utilizado para distinguir as formas de comparticipação, quer na


moderna teoria alemã, quer na portuguesa. Esta teoria do domínio do facto é no
entanto alvo de múltiplas variantes. Há por exemplo a variante do domínio do facto
potencial, que se aplica mesmo aos delitos negligentes. Em todo o caso, o cerne
comum a todos estes entendimentos é o controlo psicológico-fáctico da infracção, que
substitui o puro nexo de causalidade preconizado pelos normativistas através da teoria
material objectiva. Também face à teoria subjectiva há uma diferença: não basta o
“animus domini”, sendo também necessário o “factum dominare”, isto é, o domínio do
facto na sua globalidade.

É com base neste critério que passamos à análise das várias figuras da
comparticipação.

1. Autoria:

Já foi sendo definida ao longo da exposição sobre a teoria do domínio do facto.

Para haver autoria não basta que a actuação do agente seja condição necessária para o
crime se realizar, tendo ainda que ser suficiente.

A autoria pode ser imediata, mediata ou pode ser uma co-autoria.

1.1 Autoria imediata: Não é necessário haver uma proximidade física entre o agente e
a verificação do resultado, isto é, é perfeitamente possível haver uma dilação espacio-
temporal entre a realização da conduta e a verificação do resultado. Note-se que esta
possibilidade é cada vez mais frequente dada a evolução tecnológica.

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1.2 Autoria mediata: O agente não realiza materialmente o crime, isto é, não pratica
os actos de execução por suas próprias mãos, mas sim através de outra pessoa. Isto
parece um bocado contraditório, pois é difícil de aceitar a possibilidade de atribuir ao
agente condutas realizadas por outrém. Por esta razão é que a autoria mediata só
existe nos seguintes casos, que são aqueles em que o domínio do crime cabe ao
“homem de trás”:

a) Casos em que o agente que concretiza o crime (autor imediato) é um inimputável,


que funciona como um verdadeiro instrumento guiado pelo “homem de trás”, ainda
que actue com dolo do ilícito (o que nunca pode é actuar com dolo da culpa). Nestes
casos, a pessoa que age através do inimputável é quem controla a execução, pelo que
o facto acaba por ser a projecção da sua vontade.

b) Casos de coação invencível, isto é, de não exigibilidade assimilável ao estado de


necessidade subjectivo ou desculpante (art. 35.º). Para o direito penal a acção não será
considerada crime do sujeito que efectivamente a executou, tendo o resultado de ser
imputado ao sujeito que controla a execução. A situação de não exigibilidade faz com
que o agente que efectivamente pratica a conduta se torne num mero instrumento
nas mãos do “homem de trás”, quer este tenha criado a situação ou se tenha limitado
a aproveitá-la.

c) Casos em que o agente que executa o crime está em erro, sobre o sentido jurídico-
penal da sua conduta. Nestes casos o agente desconhece que a sua actuação irá
resultar na prática de um crime.

Exemplo: A quer destruir a torre dos clérigos e para esse efeito instala no edifício uma
bomba. Para disfarçar o mecanismo explosivo faz uma ligação a partir dessa bomba até
ao interruptor da electricidade de uma das salas da FDUP. A empregada da limpeza ao
entrar na sala carrega no interruptor e a torre explode. Foi a empregada que praticou
o acto de execução que provocou o crime. Todavia o resultado ocorrido só era
previsível para o autor mediato, isto é, para o “homem de trás”. Portanto era este que
detinha o domínio do facto.

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d) Casos que se inserem nos designados aparelhos organizados de poder (hipótese
introduzida por Roxin): O autor refere-se às instituições fechadas, fortemente
disciplinadas a nível interno e com um aparelho sancionatório e disciplinar também
muito forte. Exemplos: Aparelhos militares, máfias, sindicatos do crime. Tratam-se
daquelas organizações secretas que têm como finalidade a prática de crimes (trafico
de pessoas, droga, armas…). Estas organizações caracterizam-se essencialmente pelo
seguinte:

 Forte disciplina e hierarquia internas;

 Grande capacidade de disponibilidade de meios económicos e humanos;

 Prática de actos ilícitos.

Nestas organizações a ordem dada por um superior atribui-lhe o domínio do facto. As


características destas organizações levam a que o poder inibitório da norma seja
excluído e ultrapassado pela pressão exercida sobre o agente.

É que o “chefe”, sem sair do seu gabinete, profere uma ordem dirigida à prática de um
crime e tem a certeza que essa ordem vai ser cumprida, dada a forte organização
interna e as sanções gravosas que são aplicadas aos incumpridores. O chefe é assim
autor mediato, pois é que detém o domínio do facto, isto é, o controlo do início, da
interrupção e da cessação do crime.

Em todos estes casos o que importa é a que título é aplicada a punição do “homem de
trás”. Sempre que a influência exercida pelo mesmo não configurar uma das quatro
situações enumeradas estamos perante um caso de instigação.

Diferente e complementar é a questão de saber se há ou não punição do executor e,


em caso afirmativo a que título. No caso do inimputável como não existe culpa
também não haverá pena.

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Também as situações de não exigibilidade equiparadas ao estado de necessidade
desculpante excluem a pena. Quanto ao agente que está em erro depende se o
mesmo é ou não censurável. Se for, o agente pode ser punido a título de negligência,
desde que preenchidos os respectivos pressupostos. Nos casos de organização
criminosa o executor em princípio será punido a título de dolo.

1.3 Co-autoria: Esta figura surgiu no final do séc. XIX, sob a forma da chamada teoria
ocasional. Há co-autoria quando:

a) Há um acordo entre dois ou mais agentes dirigido à prática do crime. O acordo pode
ser escrito ou oral, expresso ou tácito e anterior ou concomitante à realização do
crime. É o âmbito deste acordo, desta colaboração na elaboração do projecto
criminoso, que delimita o âmbito de imputação na co-autoria. Cada um dos co-autores
é punido com a pena aplicável ao autor imediato, isto é, como se cada um dos agentes
tivesse realizado o crime isoladamente.

Note-se que isto só é assim quanto à execução do que foi acordado entre todos. Se
durante a execução um dos agentes decidir ir para além do acordado só esse
responderá por esse “excesso”.

Exemplo: A e B acordam invadir determinada mansão para roubar um quadro de


Picasso que lá se encontra. Se B resolver furtar ainda outra peça do interior da mansão
haverá um furto em co-autoria e simultaneamente um furto individual, que só será
imputado a B. Também é o acordo que distingue a co-autoria da autoria paralela.
Exemplo: C e D decidem, separadamente, assaltar a mesma casa, com diferentes
objectivos. C pretende furtar um quadro e D uma jóia preciosa. Trata-se de um caso de
autoria paralela pois o que há são dois projectos criminosos independentes, que só
acidentalmente se interceptam em tempo e lugar. Se C auxiliar D pode acrescentar-se
à sua pena pelo seu próprio furto, uma pena de cumplicidade pelo furto de D. No
entanto continuaria a haver aqui duas unidades objectivo-subjectivas e portanto, de
acordo com a tese do ilícito pessoal, não se pode configurar aqui um caso de co-
autoria.

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b) Para além do acordo é necessário que haja uma participação ou intervenção
conjunta na execução do crime. Trata-se da participação material e efectiva de todos
os agentes na realização do plano. É neste domínio que se levantava uma das críticas à
teoria formal objectiva, pois não é necessário que todos os agentes pratiquem actos de
execução que se integrem na acção fundamental do crime. Isto é assim por uma razão
de congruência com a realidade da vida.

Basta que exista uma participação material relevante, necessária ou essencial no


contexto concreto do plano criminoso, por parte de todos os agentes. Isto porque a
repartição de funções para a realização do crime é de certa forma aleatória e fungível.
Por esta razão, também a prática de actos essenciais à realização do crime,
concomitantemente à prática dos actos de execução, cabem na concretização do
crime.

O plano funciona aqui como definição dos próprios papeis dos agentes. Assim se
determina se a conduta do agente é acessória ou essencial à realização do crime e se
deve ser excluída ou incluída respectivamente, na situação de co-autoria. Ou seja, é
através do projecto e da qualificação da conduta do agente como acessória ou
principal que se vai determinar se ele é um co-autor ou um mero cúmplice. Isto só
pode ser aferido em cada caso concreto. É necessário atender ao carácter essencial ou
não essencial dos actos praticados pelo agente na realização do plano. Qualquer dos
co-autores representa uma peça essencial do projecto criminoso. O cúmplice por sua
vez é aquele que se limita a praticar actos de auxílio, actos meramente secundários
para a realização do plano.

Pense-se no exemplo de um assalto a um banco: o sujeito que fica a aguardar pelos


outros no carro com a ignição ligada é um co-autor, pois essa actuação é essencial ao
próprio crime. Já a agente que fica por ali a rondar para o caso de ser necessário
chamar reforços não passa de um mero cúmplice.

2. Participação:

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Na participação criminosa o agente já não domina a prática do acto. A participação
pode ocorrer através das figuras da instigação ou cumplicidade.

2.1 Instigação: O instigador limita-se a incentivar o agente a praticar o crime. Trata-se


de uma situação claramente distinta da de autoria mediata porque o executor é livre
para praticar ou não o crime. O seu conteúdo de censurabilidade reside na perversão
da vontade de outra pessoa. O instigador exerce uma influência psicológica sobre o
agente, no sentido de o convencer/apoiar a praticar o crime.

2.2 Cumplicidade: O cúmplice é aquele que pratica actos de auxílio material ou apenas
de auxílio psíquico, ou seja, de suporte emocional. É com base nesta previsão da
punição da cumplicidade psíquica que parece poder defender-se a abolição da
categoria da instigação.

Na cumplicidade o autor já está em si mesmo decidido a praticar o crime, sendo que o


cúmplice se limita a auxilia-lo, a nível material ou intelectual.

Frequentemente é necessário distinguir, num caso concreto, se estamos perante um


caso de cumplicidade ou de co-autoria. Nestes casos é necessário atender, para além
do domínio do facto, ao critério da essencialidade do contributo do agente para o
preenchimento do tipo.

O art. 26.º descreve todas as situações de autoria e refere-se ainda à instigação, que é
incompreensivelmente punida nos mesmos termos que a primeira:

“É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de
outrém, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro
ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto,
desde que haja execução ou inicio de execução.”

Por si mesmo – autoria imediata;

Por intermédio de outrém – autoria mediata.

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Tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros
– co-autoria;

Quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto – Instigação.

Desde que haja execução ou início de execução – Está aqui consagrado o princípio da
acessoriedade.

Tanto a instigação como a cumplicidade só são punidas a título de dolo, o que revela a
ideia da fragmentaridade de segundo grau que caracteriza do direito penal. Trata-se de
uma limitação paralela à que estabelece a excepcionalidade da punição da negligência
e da tentativa.

Do requisito do início da execução se retira que não se toma por relevante uma
tentativa de instigação ou de cumplicidade. Tal é o problema da acessoriedade da
participação: esta só existe quando é acessória da autoria. Para tal é necessário que o
agente já tenha iniciado a execução.

Esta aqui presente a chamada acessoriedade mínima, que tem sido frequentemente
criticada, na medida em que o cúmplice ou instigador é punido pelo seu acto e não
pelo do executor.

A acessoriedade existe pois apenas no sentido de responsabilidade acessória e como


limite da punição, e não no sentido de o agente participante ser punido por actos de
outrém, o que seria um atentado ao princípio da culpa.

Mas poderia também vigorar entre nós uma acessoriedade máxima, se fosse
necessário que o executor praticasse uma conduta típica, ilícita e culposa para que a
participação fosse punida. Mas repare-se que também aqui haveria uma violação ao
princípio da culpa, na medida em que se faz depender a punição do participante do
preenchimento de certos pressupostos, por parte de outrém.

Ou então poderia vigorar uma acessoriedade limitada, que exige que o executor
pratique uma conduta típica e ilícita para o participante seja punido. Seria então

51
necessário que o executor preenchesse um tipo legal de crime e que não actuasse ao
abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude.

Esta acessoriedade é já independente da culpa do autor, mas continua a ser uma


solução errada nos quadros do ilícito pessoal. Ao nível dos tipos justificadores a
ilicitude já é pessoal, intrínseca à conduta do próprio agente, pelo que não deveria
ligar-se de forma alguma à conduta ou punição de outrém. É perfeitamente possível
que, nos termos do art. 38.º/n.º4 que exige o conhecimento de que se está a actuar ao
abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude, que numa situação de comparticipação
alguns dos agentes tenham uma conduta lícita e outros não. Assim sendo, não deveria
abrir-se aqui uma porta para a punição do agente por uma ilicitude de outrém.

Seguindo a doutrina introduzida por Eduardo Correia a nossa lei é clara, consagrando
uma acessoriedade mínima, que apenas exige que o autor pratique actos de execução
(actos típicos, correspondentes a um tipo incriminador), para que o participante seja
punido.

O art. 27.º consagra que a cumplicidade é punida de forma mais atenuada que a
autoria (e que a instigação).

No quadro do ilícito pessoal ninguém participa no ilícito de ninguém. Não há


participações de ilícitos. Isto de acordo com o Prof. Almeida Costa, sendo esta uma
posição única na doutrina nacional.

Crimes de intenção e crimes específicos:

Há determinados crimes que para serem consumados exigem que o agente se


encontre em determinadas circunstâncias. No caso dos crimes específicos exige-se que
possua certas características técnicas, ou que tenha determinada relação com a vítima
(por exemplo, grau de parentesco). Nos crimes de intenção exige-se, como é óbvio,
uma determinada intenção. É o caso do furto – não basta o dolo de causar dano a
outrém, sendo necessário a intenção de apropriação.

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Exemplo: O dono de uma propriedade manda o seu criado roubar galinhas ao vizinho.
O criado pratica o crime sem intenção, uma vez que as galinhas são para o dono e não
para si mesmo.

Actualmente entende-se que o dono é punido como autor mediato e o empregado


como cúmplice mas nem sempre foi assim. Na verdade, estas situações redundavam
na impunidade de ambos os agentes. Hoje estes problemas não se colocam tanto ao
nível dos crimes de intenção porque a lei consagra que a intenção de apropriação pode
ser para si ou para outrém.

Os mesmos problemas se levantavam quanto aos crimes específicos, quando o autor


material não possuía a qualidade exigida, mesmo que o homem de trás a possuísse
(impunidade).

O mesmo se diga quanto à comparticipação, em que só alguns agentes preenchiam as


qualidades exigidas pelo tipo legal de crime:

 Sendo um crime especifico impuro: alguns dos agentes seriam punidos com
pena mais grave e outros com pena mais leve.

 Tratando-se de um crime especifico puro, uns agentes seriam punidos e outros


não.

Para suprir esta dificuldade o CP consagra o regime geral da comunicabilidade das


circunstâncias, no art. 28.º. Assim sendo, basta que um dos comparticipantes (mesmo
que um mero participante, não tendo que ser um autor) possua a qualidade em
questão para que todos os demais sejam também punidos nos quadros do crime

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específico ou de intenção em causa. Já não existe a lacuna de punição que derivava da
acessoriedade mínima. As excepções a esta regra estão consagradas na lei.

Os Crimes comuns ou gerais , de acordo com o princípio constitucional da igualdade os


tipos legais de crime podem ser praticados por qualquer indivíduo. Tratam-se dos
crimes comuns ou gerais que podem ser praticados por qualquer pessoa,
independentemente das suas específicas características. A maior parte dos crimes são
comuns ou gerais, havendo neles indeterminação dos sujeitos (generalidade e
abstracção da norma jurídica).

1.2) Crimes específicos - Que só podem ser praticados por determinadas pessoas, que
possuem determinadas características/qualidades (por ex. profissionais).

1.2.1) Os crimes específicos são puros ou próprios quando a qualidade do agente é


fundamento da própria ilicitude, ou seja, quando só podem ser praticados por aqueles
que reúnem determinadas qualidades. Se o facto for praticado por uma pessoa
desprovida de tais qualidades já não é considerado crime, pelo que se diz que não há
correspondência destes crimes com os crimes gerais ou comuns. Exemplo: crime de
corrupção – arts. 372.º, 373.º e 386.º CP.

1.2.2) Os crimes específicos são impuros ou impróprios quando a qualidade do agente


já não é fundamento da ilicitude, mas sim do agravamento ou da atenuação da pena a
aplicar. Nestes crimes já há tipos legais correspectivos ao nível dos crimes gerais ou
comuns. Exemplos: Crime de furto ou abuso de confiança que, nos termos do art.
375.º do CP é agravado pela qualidade do sujeito, passando a constituir crime de
peculato. O crime de violação de domicílio é um crime comum ou geral de acordo com
o art. 190.º, mas se for praticado por um funcionário já é um crime específico
impróprio – art. 378.º CP.)

O nº 2 do art. 28.º estatui um regime que acarreta algumas dificuldades. É que quase
todos os crimes específicos acarretam uma agravação da pena e o preceito em questão
prevê que quando no caso concreto se aplicar a algum dos comparticipantes uma pena
mais grave, abre-se a possibilidade de substituir tal pena por aquela que se aplicaria se
não interviesse a regra do nº 1. Há aqui uma grande margem de discricionariedade do
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julgador. Além disso, este preceito só vale para os crimes específicos impuros, em que
a qualidade do agente funciona apenas como fundamento da agravação da pena e não
como elemento constitutivo do próprio crime.

Este artigo foi um dos mais negociados do Código colocando em conflito


especialmente Eduardo Correia, enquanto defensor da teoria material objectiva, e
Figueiredo Dias, adepto da teoria do domínio do facto. Contudo, ao contrário do que
sucedeu com o art. 17.º – erro sobre a ilicitude, o compromisso necessário não
resultou numa norma perfeita do ponto vista legislativo. Parece que na interpretação
desta norma teremos de ver uma porta aberta para a aplicação analógica da
atenuação especial da pena, quando esteja em causa um crime específico puro. Esta
parece ser a solução mais razoável para chegar a um tratamento uniforme dos
comparticipantes em ambas as modalidades do crime específico.

O crime especifico ou de intenção é também um delito de mão própria, isto é, uma


categoria excepcional em que o legislador restringe a punição do autor imediato.
Trata-se da única excepção apontada pela doutrina à regra geral do domínio do facto,
para além das que estão na lei.

O art. 29.º afirma que cada comparticipante responde pela sua culpa, o que
corresponde a uma afirmação da intransmissibilidade da culpa e ao afastamento da
acessoriedade máxima. A comunicabilidade das circunstâncias só se aplica ao ilícito.

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