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1º Curso de Aperfeiçoamento por Alternância em Agroecologia para

Técnicos agropecuários de nível médio dos Territórios da Cidadania da


Região Amazônica
Módulo 4: Revendo conceitos: sustentabilidade sócio econômica e
ambiental e extensão agroecológica
Tema 3: Extensão Agroecológica
_______________________________________________________________
Texto obrigatório 1

Extensão rural e a Agroecologia: novos rumos, novas metodologias e


velhas instituições1

Eros Marion Mussoi2


Como introdução
O objetivo deste texto é proporcionar instrumentos que permitam a análise por
todos e todas, da forma de atuação histórica da Extensão Rural e sua
importância na difusão de uma matriz tecnológica que tem sido colocada em
xeque frente a necessidade de outros tipos de agricultura e relações sociais de
produção. Desta forma, pretendemos colocar em debate a natureza da
formação e qualificação profissional do potencial técnico-gerencial que atua em
Ater-Assistência Técnica e Extensão Rural e seus desafios presentes frente às
imposições de ordem sócio-ambiental contemporâneas, dando alguns
instrumentos analíticos que nos possibilitam “buscar saídas” (técnicas e
metodológicas) frente ao modelo hegemônico, simbolizado pela transferência
de tecnologia e pelos pacotes tecnológicos construídos de maneira massiva.
Ou seja, precisamos discutir a atuação do agente de Ater frente à necessária
transição agroecológica. Para tanto, precisamos partir de uma análise, mesmo
que rápida, dos condicionantes históricos que determinaram as linhas mestras
dos processos de formação profissional e de atuação da Ater na nossa história

1
Texto preparado para o Curso de Agroecologia à Distância promovido pelo MDA-Ministério de
Desenvolvimento Agrário para técnicos atuantes nos Territórios da Cidadania da Região Norte
2
Técnico Agrícola, Engenheiro Agrônomo, Mestrado em Educação Agrícola e Extensão Rural,
Doutorado em Agroecologia e Desenvolvimento Sustentável. Aposentado como Extensionista da Epagri-
SC, Professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Entre 2003 e 2006 exerceu funções no
Ministério de Desenvolvimento Agrário/Secretaria de Agricultura Familiar/Departamento de Assistência
Técnica e Extensão Rural, Brasília-DF. eros.mussoi@terra.com.br
recente. Com isto procura-se evidenciar a dinâmica da realidade e,
evidentemente, sua complexidade atual, que exige rever os conceitos e
práticas neste campo.
Certamente, e não poderia ser diferente, a unidade “Extensão Rural
Agroecológica” tem uma relação muito forte com outros temas que vocês estão
estudando (“a prática do extensionista rural e os desafios da agricultura familiar
de base ecológica”; “postura do extensionista rural: diálogo de saberes”;
“problematização sobre a análise na produção agropecuária e no extrativismo
com enfoque na agricultura familiar e princípios e conceitos em agroecologia”,
por exemplo). Se, em algum momento, mesmas linhas ou abordagens forem
seguidas em diferentes temas, não entendam como “repetição”, e sim como
reafirmação e integração temática.

Reflexão sobre uma revisão histórica: modernização da agricultura e a


organização institucional centralizada e descendente
Primeiramente, partimos do princípio que todos somos técnicos e já
vivenciamos, senão toda, pelo menos parte desta história. Então, a cada
momento vocês são convidados a refletir a suas próprias histórias. Isto ajudará
muito nosso trabalho. Se tiverem condições, discutam com seus colegas,
procurando construir conjuntamente a história de cada um, desde a escola que
os formou, depois suas vidas (mesmo que ainda curta para alguns) nas
entidades onde trabalharam e trabalham.
Vocês conhecem o método de trabalho com grupos chamado Linha do Tempo?
Se conhecerem, procurem exercitá-lo. Vai ajudar muito.
Se nunca exercitaram este método entre técnicos/as ou mesmo aplicando-o
com agricultores/as, na Caixa 1 (abaixo) vão algumas dicas de como ele pode
ser exercitado.

2
Caixa 1

Procurem, individualmente ou em grupos se possível, relacionar fatos


marcantes que ocorreram com vocês, nos diversos momentos de suas
vidas profissionais.
Analisem como vocês foram formados ainda na escola. Como aprenderam
as tecnologias, e que tecnologias foram estas. Como lhes foi ensinado a
transmitir para os(as) agricultores(as) e pescadores(as) o que vocês
aprenderam.
Que metodologias eram mais usadas? Como os agricultores
participavam? Como era o processo de Extensão Rural?
Verifiquem se houveram alterações na forma de atuar de vocês e da
Extensão Rural em geral e nas tecnologias recomendadas.
Tentem dividir esta reflexão em períodos, se possível (décadas ou de 5
em 5 anos, por exemplo).
Após este exercício, sua reflexão e a discussão com colegas, voltem ao
texto.

Para chegarmos à questão da qualificação profissional do agente de Ater e


entender sua forma de atuação, é fundamental procurar entender o processo
que determina a formulação da política de ciência e tecnologia na agricultura
para possibilitar uma maior clareza no que se refere à gestão pública deste
setor. Fica evidente que esta definição ao nível macro está perfeitamente
vinculada com as condicionantes mais globais da política de desenvolvimento
econômico. Ou seja, os papéis que a agricultura deveria desempenhar foram
determinados por modelos político-econômicos mais amplos.
A partir deste entendimento, pode-se visualizar como o Estado se organiza
para proceder a gestão "pública" a curto, médio e longo prazos, e suas
conseqüentes necessidades operacionais.
A mudança no padrão tecnológico na agricultura nos últimos 50 anos tem sido
crescente e não menos surpreendente. A transformação da base técnica3 na
agricultura, enquanto processo de alteração dos meios de produção utilizados,
passando do uso de insumos naturais à fatores de produção industriais, vem
dada como o resultado da implantação depois da Segunda Grande Guerra, de
um modelo que buscava o aumento da produtividade agrícola mediante
alterações na base genética de um conjunto de espécies vegetais (e

3
Quando falamos em “base técnica” estamos nos referindo aos diversos padrões tecnológicos
adotados.

3
posteriormente animais) articulada com o emprego de um pacote integrado de
técnicas que incluía sementes, adubos corretivos do solo, fertilizantes,
pesticidas, herbicidas, irrigação, mecanização, etc4. Tal concepção se encontra
claramente expressa na proposta convencional de articulação do tripé:
pesquisa, extensão e crédito rural. Ou seja, era o padrão tecnológico
dominante nos países desenvolvidos, a matriz que havia de ser difundida e
financiada (com recursos públicos) por todo o mundo. Como resultado deste
modelo reforça-se a tendência da pesquisa reducionista "por produto" e
atendendo demandas específicas de setores hegemônicos, buscando o
máximo da produtividade possível, sem medir as possíveis conseqüências
sócio-ambientais, e igualmente um serviço de extensão rural que tinha por
função "transferir" a tecnologia gerada para uma massa passiva de agricultores
"atrasados", transferência esta viabilizada pelo crédito rural.

Caixa 2
O que abordamos acima coincide com a reflexão de vocês?

Em que medida existe divergências?

Será que fomos muito críticos ou tem sentido esta reflexão que mostra que
a agricultura, principalmente a familiar, foi induzida a assumir “um modelo”
que descaracteriza algumas de suas enormes qualidades?

A Extensão Rural atuou como instrumento de política agrícola. Ela foi


“culpada” ou somente desempenhou um papel que lhe era reservado?
Reflitam!

Depois da reflexão, vamos adiante que isto poderá ficar mais claro.

Este modelo leva a agricultura a um novo dinamismo, sem dúvidas, e


caracteriza um tipo de demanda profissional essencialmente especializada e
mesmo pontual. O aumento de produtividade e de produção física agrícola
expressa transformações significativas desde o ponto de vista econômico e
técnico para uma determinada área do setor agropecuário e para os setores
4
A nível mundial, este processo foi convencionalmente chamado de "Revolução Verde" e teve amplo
apoio de agências internacionais como a USAID, FAO, Fundações Rockfeller, Ford e Kellog. Para
maiores aprofundamentos sobre o processo da "Revolução Verde" e suas conseqüências, ver GEORGE,
Susan. O Mercado da Fome - as verdadeiras razões da fome no mundo. Rio de Janeiro, Editora Paz e
Terra, 1978, e PEARSE, Andrew. Seeds of Plenty, Seeds of Want - Social and Economic Implications of
Green Revolution. Oxford: Clarendon Press, 1980.

4
agroindustrial, comercial e financeiro. Por outro lado, são percebidas sérias
conseqüências para a agricultura como um todo, especialmente para um
segmento significativo e majoritário da agricultura familiar. Resulta evidente a
enorme contradição entre o progresso técnico alcançado na agricultura (no
sentido do seu crescimento, de sua produção, de sua tecnologia e de seus
resultados econômicos) e as conseqüências que este modelo tem trazido para
um importante contingente de agentes deste processo, que são os pequenos
agricultores familiares. O progresso técnico não foi acompanhado por
transformações sociais equivalentes. Se, por um lado, se observa um grande
avanço tecnológico-econômico, por outro, constata-se uma notável regressão
social (CHONCHOL, 1983: 137-154)5 e sérias conseqüências desde o ponto de
vista ambiental. O modelo "modernizador" mostrou claramente seu caráter
socialmente excludente e ecologicamente degradante.
Mais que analisar com profundidade as conseqüências da implantação deste
modelo de desenvolvimento político-econômico, a preocupação central neste
momento, é trazer para debate a forma como o Estado/setor público se
organizou para atender a demanda de crescimento econômico, frente ao papel
reservado para a agricultura e o tipo de profissional de Ater (e da pesquisa) que
ele exige. Partindo das relações que se estabelecem entre os setores agrário e
urbano-industrial, pode-se analisar o papel do Estado na conformação de um
determinado padrão de desenvolvimento agrário e compreender seu
comportamento com relação à ciência e tecnologia.
A "modernização" da agricultura dá-se, em termos nacionais, em função de um
conjunto principal de fatores como: construção de um setor industrial de bens
de produção para a agricultura; expansão de uma forma de produção integrada
a outros setores da economia, especialmente as indústrias de insumos
agrícolas; crescimento da agroindústria de processamento e transformação,
que produzia para os mercados interno e externo; ampliação da eficiência das
diferentes estruturas organizacionais mais diretamente ligadas ao
desenvolvimento agropecuário, como a pesquisa agrícola, a assistência técnica
e a extensão rural, e a estrutura de armazéns; as expansões dos mercados

5
CHONCHOL, Jacques. Políticas de desenvolvimento rural integrado na América Latina nos últimos 10
anos. In: Seminário Agricultura - Horizonte 2000: Perspectivas para o Brasil. Brasília- DF, Anais.
Brasília: MA/SUPLAN/FAD, 1983. p. 137-154.

5
interno e externo; e o fundamental aporte do crédito rural, financiando a
agricultura de forma altamente subsidiada, mais especificamente nos anos 70'
e princípios dos 80'.
Os vetores da mudança estão localizados no desenvolvimento técnico-
científico dos setores responsáveis pela geração das inovações, sejam
públicos ou privados. A lógica inovativa das indústrias de pesticidas,
fertilizantes, máquinas e sementes (oferta de tecnologia), assim como das
técnicas produtivas agronômicas e das variedades de grande cultivo extensivo
saídas da pesquisa pública (em atenção às demandas do setor industrial e de
parte do setor produtivo agrícola), respondem em grande medida ao perfil
tecnológico da agricultura contemporânea. Para dar viabilidade e suporte a
este "novo" modelo modernizador, o Estado se organiza, ampliando suas
ações no que se refere à produção e gestão da ciência e a tecnologia agrícola.
Para dar a resposta requerida pelo modelo geral de desenvolvimento, o setor
público agrícola a nível nacional, organiza a pesquisa e a extensão rural, de
forma a que estes instrumentos sejam viabilizadores do modelo
"modernizador" preconizado.
Caixa 3

Mais uma “paradinha” para reflexão.

Falamos anteriormente do “famoso” tripé Pesquisa, Extensão e Crédito.

Nele praticamente se baseia toda a ação de políticas públicas que apoiaram o


modelo de “modernização da agricultura”.

Tenho insistido que falar em “Extensão Rural” isoladamente seria como


apoiar uma pessoa com a perna quebrada, mas só com uma muleta... ela
anda, mas com muita dificuldade.

A pesquisa foi (e é) fundamental.

Então vamos entender um pouco de como se formou a Pesquisa em nosso


país e sua influência na tecnologia “transmitida” pela Extensão Rural.

Em 1962 é criado o Departamento Nacional de Pesquisa e Experimentação


Agropecuária (DNPEA) que coordena Institutos Regionais de Pesquisa e
Experimentação (IPEAN no Norte; IPEANE no Nordeste; IPEACO no Centro-

6
oeste; IPEACS no Centro-sul e IPEAS, no Sul). Em 1968, são criados o
IPEARM-Meridional; o IPEAD-Oeste e o IPEAOC-Amazônia Ocidental) . As
pesquisas no âmbito do DNPEA são classificadas dentro de algumas
prioridades de cultivo que produzem divisas; pesquisas fundamentais;
pesquisas zootécnicas; pesquisas veterinárias e pesquisas em tecnologia de
alimentos. Com o DNPEA surge uma relação mais intensa com o serviço de
assistência técnica e extensão rural (representado na época pela ABCAR -
Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural). Estruturam-se então no
Brasil duas instituições que correspondem a um pré-requisito fundamental da
"Revolução Verde"6: uma instituição geradora de tecnologia e outra "difusora"
dos pacotes tecnológicos. O caráter centralizador e descendente deste arranjo
institucional vai implicar na organização de entidades estaduais (associações
de crédito e assistência rural, no caso da extensão rural e institutos de
pesquisa, no caso da investigação agropecuária) que implementassem as
determinações da "nova" política de modernização da agricultura.

E a Ater e a Pesquisa viabilizando o “modelo”


Para a viabilização deste novo modelo agrícola e a garantia de sua difusão,
tanto os serviços de pesquisa agropecuária como de extensão rural se
estruturam de maneira descendente e centralizada. No caso da pesquisa
agropecuária, com a criação da EMBRAPA e dos institutos estaduais e suas
correspondentes estações de pesquisa, tem-se uma estrutura que permite que
o modelo seja concebido e financiado a nível centralizado (via projetos/linhas
de pesquisa prioritárias). Da mesma forma acontece na extensão rural, com a
criação da ABCAR (e posteriormente da EMBRATER), das associações
estaduais e seus respectivos escritórios regionais que concebiam e
coordenavam (para não dizer "fiscalizavam") as ações das equipes de

6
Não é demais recordar que a Revolução Verde nasce nos escritórios da Fundação Rockfeller em 1943,
que financia a quatro geneticistas norteamericanos para, no México, buscar aumentar, através da criação
de variedades de milho e trigo “altamente produtivas” (as VAP’s), o grau de produtividade destas culturas
agrícolas. Deste trabalho, surge o CIMMYT - Centro Internacional de Melhoramento de Milho e Trigo.
Mais tarde, a Fundação Rockfeller se alia à Fundação Ford para repetir a atuação na Ásia, fundando o
IRRI - Instituto Internacional de Pesquisa em Arroz, para buscar a alta produtividade em arroz
(GEORGE, Susan. O mercado da fome - as verdadeiras razões da fome no mundo. Rio de Janeiro:
Editora Paz e Terra, 1978). É sabido também, a notável dependência à indústria (de insumos químicos e
metal-mecânicos) que esta "modernização" trouxe à agricultura, além das já conhecidas conseqüências à
degradação do meio ambiente.

7
execução municipal. É fácil constatar, que as estruturas organizacionais vão se
tornando mais complexas, na medida em que o modelo agrícola vai exigindo
maior grau de especialização.
A lógica geral que dava suporte a este sistema estava alicerçada na
superioridade do "saber científico" que deveria ser gerado pelos centros de
pesquisa (ou adaptado da investigação internacional, como foi o caso da
Revolução Verde) e transferido, pelos serviços de assistência técnica e
extensão rural, dentro de uma estrutura organizativa tipo piramidal (e bem
supervisionada para garantir sua adoção).
Esta característica, de "linha descendente" e centralização programática dava
muito poucas possibilidades de manejo das "prioridades locais"/territoriais e de
atenção à pequena agricultura familiar. A natureza (massificante) das políticas
desenvolvimentistas e seu componente modernizador da agricultura definiam
um modelo tecnológico que demarcava um estrato de produtores que seriam
beneficiados com assistência técnica e crédito. Desta forma, os agentes de
extensão na esfera municipal eram meros executores de programas que
vinham "de cima" e aos agricultores era reservado o papel de "adotantes" de
um "pacote tecnológico". Os níveis intermediários da estrutura organizativa de
extensão rural (regionais e estaduais), dentro desta funcionalidade específica,
atuavam como "controladores e supervisores" dos programas, no intuito de
garantir sua aplicação e sucesso.
Na verdade, este modelo institucional centralizado não é resultado da
"criatividade brasileira", como se observou anteriormente. É sim um mecanismo
de "ajustes" para fazer factível, o mais rápido possível, os resultados no campo
produtivo, integrando definitivamente a agricultura à indústria e à produção de
exportação. Neste modelo, a extensão rural deveria cumprir seu papel, agora
mais claro, de "ponte" entre a pesquisa agropecuária e os agricultores (agora
um grupo bem definido e seleto), com suporte do crédito agrícola altamente
subsidiado.
Na nossa história recente, a Extensão Rural (aqui entendida genericamente
como Ater) tem se mostrado um efetivo e eficiente instrumento de política
pública e como agente dinamizador do desenvolvimento, na medida em que
pela sua metodologia, capilaridade e esperada descentralização, tem

8
condições de uma proximidade estratégica com o conjunto da população rural,
em especial a Agricultura Familiar.
Evidentemente esta primeira afirmação não apresenta novidade alguma no
sentido de refletir o tema. Seria necessário, para tanto, pensar cada termo do
mencionado acima para um entendimento da relação entre Extensão Rural
como um dos agentes de desenvolvimento. Isto implica em relacionar as
diversas concepções de desenvolvimento e o que realmente o país precisa e
deseja, a Agricultura Familiar como foco prioritário de ações de política pública
e as metodologias de intervenção no espaço rural.

Caixa 4
“Paradinha estratégica”:
Com base no exposto, vamos refletir um pouco mais...
A primeira constatação é que a Extensão Rural, entre outras políticas
públicas, nas últimas décadas sofreu influências dos modelos político-
econômicos dominantes e assim cumpriu diversos papéis no sentido de
viabilizar estas expectativas. O principal é reter que hoje, a análise crítica que
é possível fazer a respeito às conseqüências do modelo econômico-
desenvolvimentista, pela sua natureza excludente do ponto de vista sócio-
econômico e político, e agressiva ambientalmente, inclui as políticas
públicas que lhe deram suporte e as metodologias para sua implementação.
Vocês concordam? Se não, porque? Se positivo, vamos adiante.

Isto posto, vale a pena “olhar para trás” e verificar que nas últimas décadas a
política pública Extensão Rural teve diversos tratamentos diferenciados e isto
refletiu na organização social e produtiva, principalmente da Agricultura
Familiar. Voltem à Linha do Tempo que foi sugerida na Caixa 1 e relacionem
com o que vocês vivenciaram ou souberam que aconteceu.
Tivemos momentos de “euforia” e crescimento pleno, onde a Extensão Rural
“cresceu e se multiplicou” como todo apoio do Estado/Governos Federal e
estaduais (finais da década dos anos 60, 70 até meados de 1980)...
evidentemente reproduzindo o modelo de crescimento econômico hegemônico
e políticas públicas específicas.

9
Depois... ora, depois por diversas razões, aconteceram momentos de
descrédito e mesmo desconsideração institucional. Foram momentos onde se
desenhava a extinção e/ou fusões de instituições, fortes influências político-
partidárias, demissões de profissionais, enxugamentos, eliminação de
programas importantes... além do crescimento de outros mecanismos de
assistência técnica, que foram razão deste descrédito, mas não só. Foram
momentos de uma certa falta de identidade institucional e programática.
Momentos extremamente difíceis que foram enfrentados de maneira
diferenciada em cada estado da federação, já que nos inícios dos anos 90 a
Extensão Rural em nível nacional foi extinta, deixando um vácuo político-
estratégico e de apoio financeiro específico.
Alguns estados conseguiram, com muitas dificuldades, e mesmo decisões
precipitadas (como foi a “municipalização da agricultura” da forma como foi
implementada), manter com recursos próprios este serviço.

Extensão Rural para que e com quem?


Ao discutir-se Extensão Rural (e principalmente uma Extensão Rural que
tenha na dimensão Agroecológica um vetor fundamental), logo vem a
questão: para que e com quem? Certamente a resposta do “com quem” nos
leva a um olhar diferenciado com referência a públicos excluídos no modelo
convencional, como agricultores e agricultoras familiares, que na sua
conceituação generalizada, podem e devem incluir um conjunto grande de
públicos diferenciados como veremos mais adiante. Mas seria interessante, a
partir de um debate sobre Agricultura Familiar, encaminhar a questão.
O debate sobre Agricultura Familiar impõe uma reflexão sobre o modelo de
"desenvolvimento" no qual este tipo de agricultura está inserido. Este repensar,
nos leva a uma série de constatações que evidenciam que o "modelo"
assumido desgastou-se sem atender às demandas concretas do conjunto da
sociedade.
A natureza de uma concepção "urbano-industrial-exportadora" como modelo de
desenvolvimento, já identifica setores privilegiados com os seus resultados. O
modelo foi (e é) concentracionista (de riquezas e poder político), excludente
socialmente, e agressivo em termos de meio ambiente, desprestigiando a
satisfação das necessidades básicas da grande maioria da população

10
(aumentando assim a fome, a desnutrição e o desemprego/sub-emprego) em
favor da produção para exportação e da produção industrial (subordinando a
agricultura à indústria).
Outro ponto fundamental como conseqüência, é a definição de um novo
desenho de ocupação do espaço territorial nacional, que provoca a
potencialização do "urbano", principalmente das grandes cidades e polos
industriais dinâmicos, em detrimento do "agrário", provocando um drástico
esvaziamento deste (em termos humanos, produtivos e de importância
política).
Inúmeros estudos mostram que a agricultura no geral, e a Agricultura Familiar
em particular, através da transferência de recursos/capital (e, portanto, de sua
descapitalização!) foi condicionada a dar suporte a este processo. No entanto,
pelas suas características, a Agricultura Familiar (como produtora de alimentos
básicos baratos, como reserva de mão-de-obra, como consumidora de insumos
industriais, e como geradora de um movimento econômico considerável) é, ao
mesmo tempo, importante para o modelo geral, e gradativamente excluída
dele. Esta exclusão pode ser direta ou relativa. Direta, no sentido em que os
atores sociais componentes deste tipo de agricultura, por um processo de
marginalização/exclusão são obrigados a abandonar sua atividade/modo de
vida. Relativa, na medida em que, para se "adaptar" ao que o modelo impõe, a
Agricultura Familiar é obrigada a "abrir mão" de características que determinam
sua existência enquanto modo de produção específico e, principalmente, forma
de vida.
Este processo histórico pode ser verificado em maneira crescente em muitas
partes do mundo, embora em graus e intensidades diferentes. No geral, o que
se constata é que, a Agricultura Familiar gradativamente está sendo
condicionada a mudar o seu perfil, adequando-se ao modelo de
desenvolvimento hegemônico e, portanto subordinando-se definitivamente à
indústria e ao "místico" mercado neo-liberal (que, "por si só", resolverá "todas
as distorções sócio-econômicas")7. Neste processo, a Agricultura Familiar
(como modo de produção específico) vai perdendo a sua identidade.
Características fundamentais vão se degradando num processo de "erosão
7
A recente crise da economia norte-americana provou que isto era uma falácia, pois ao primeiro sinal da
bancarrota dos bancos e entidades de crédito imobiliário, eles correram para o Estado solicitando ajuda
financeira enorme.

11
cultural" (principalmente, erosão de conhecimentos historicamente construídos)
que poderá ser irreversível. Sem querer desenhar um "tipo ideal", poderíamos
para efeito de raciocínio, caracterizar a Agricultura Familiar como possuidora
de um conjunto de elementos fundamentais que atuam integrados
sistemicamente. Este conjunto de elementos certamente define a Agricultura
Familiar como uma forma de vida, que tem (seus atores sociais) um
saber/conhecimento construído histórica e coletivamente; que tem uma lógica
própria de decisão; tendo uma relação harmônica com o meio ambiente (ou
pelo menos, muito mais harmônica que a agricultura empresarial-capitalista
convencional); usando de forma articulada e eficiente o trabalho familiar;
baseando-se num processo de diversificação produtiva que garanta a produção
para o abastecimento próprio e a necessária integração com o mercado
local/regional, garantindo também níveis adequados de bio-diversidade
(produtiva, medicinal, artesanal e de reserva biológica); sendo capaz de
processar muitos dos produtos por ela produzidos e reciclar dejetos para sua
re-utilização. Este tipo de agricultura é, a nível externo, capaz de se articular no
seu conjunto, possibilitando a resolução organizada/coletiva de seus
problemas, uso de potencialidades e instrumentos de produção. Estas
características lhe proporciona mecanismos próprios de resistência ao
processo de "modernização" convencional.
No entanto o que se verifica, é a crescente negação destas características pela
pregação da "agricultura empresarial" e da "formação profissional de um novo
agricultor" (voltado à agricultura de mercado e portanto especializado). Deve-se
ter cuidado ao assumir este discurso da "modernidade", da "adaptação à
realidade" (construída dentro da lógica do capital em que o alimento é tratado
unicamente como “mercadoria”), da "reconversão". Reconverter o que e para
que? Será que "reconverter" a Agricultura Familiar para produzir para o
"mercado" (sem discutir quem é o "mercado" e quem determina o mercado)
não será subordinar definitivamente este tipo de agricultura a uma lógica que
não é a dela (portanto negando-a concretamente)? Buscar "alternativas
econômicas" fora do agrário ou em "nichos de mercado" pela reconversão é, a
bem da verdade, admitir que a Agricultura Familiar é insuficiente para o seu
auto-desenvolvimento e incapaz de, por suas próprias características, se
integrar (e não, se subordinar) a outros setores da vida social. Certamente a

12
Agricultura Familiar não é “insuficiente", pelas suas características
fundamentais. Insuficiente é o modelo de crescimento econômico geral (e as
diversas versões de políticas de governo que lhe dão suporte). Certamente,
antes de pensar em "reconverter" a Agricultura Familiar" (com suas qualidades
implícitas), deveria se tentar RECONVERTER a mentalidade monetarista e
consumista que permeia um significativo conjunto de decisões políticas na
atualidade.
O futuro deste tipo de agricultura passa por uma revisão profunda do
paradigma de desenvolvimento que, sem dúvidas, indica para as dimensões da
Agroecologia e da Sustentabilidade como fatores fundamentais de viabilização
de um novo modelo agrário e de sociedade, ambientalmente são e com justiça
social.
A matriz tecnológica que nortearia um novo processo de desenvolvimento
deveria se pautar em estilos de agriculturas sustentáveis, buscando uma
crescente transição para processos ecologicamente mais respeitadores das
relações naturais e do conhecimento popular. Isto nos remete a duas outras
condições a serem enfrentadas: o investimento sério e comprometido em
Pesquisa, na medida em que o conhecimento neste campo deve ser
constantemente dinamizado, ao lado do resgate do conhecimento popular em
poder de gerações de agricultores(as). Evidentemente este desafio condiciona
a uma outra relação de compromisso e proximidade entre a Extensão Rural, a
Pesquisa e a Sociedade para que, de forma participativa, se gerem, se
adaptem e se universalizem conhecimentos que promovam as populações sem
agredir o ambiente, pensando também nas gerações futuras. Desta forma,
pensando em novas matrizes produtivas, há que se praticar outras matrizes
pedagógicas que ampliem a participação dos diversos atores do
processo de desenvolvimento.
Outra questão fundamental é a gestão social. Não é mais possível pensar em
políticas públicas concebidas e implementadas a partir de “centros iluminados
de poder”. A concentração decisória foi muito danosa para nossa sociedade
como um todo e para as instituições de política pública em particular. Além de
concentrar decisões e benefícios, ela delimitou espaços privilegiados para
alguns estratos e decisores, não permitindo ou tolhendo o surgimento de novas
lideranças e potenciais. O que se busca atualmente é uma ampla discussão

13
com a Sociedade de maneira a possibilitar a geração e gestão participativa dos
diversos projetos que contribuam com o efetivo desenvolvimento sustentável e
eqüitativamente distribuído.
Ao lado destas duas questões precedentes, vem a constatação que a Extensão
Rural oficial já não está sozinha neste enorme trabalho de ser “animadora” do
desenvolvimento, como era em décadas passadas. Além da necessária maior
aproximação com a Pesquisa Agropecuária e Universidades, numa relação de
trocas constante, certamente é fácil constatar a existência de um conjunto de
novos atores institucionais que precisam ser articulados em forma de Rede
para melhor exercerem seu potencial a partir dos espaços territoriais onde
estão inseridos, evitando duplicação de esforços, no sentido de projetos
solidários buscando objetivos comuns.
Novas concepções de desenvolvimento impõem uma revisão num conjunto de
procedimentos de intervenção que o modelo convencional de crescimento
econômico induziu e, automaticamente, em outros parâmetros em termos de
qualificação profissional8. Estes “procedimentos e estratégias” situam-se em
diversos campos, dados pela complexidade determinada pelos ambientes
sociais.

Fundamentando a caminhada
Com base no que foi anteriormente colocado, justifica-se que, em função do
esgotamento dos modelos clássicos de desenvolvimento e de todos os
instrumentos (inclusive e principalmente, os pedagógicos), que lhe deram
sustentação, é necessária a busca constante de “novas” posturas didático-
pedagógicas e de qualificação profissional.
Enrique Leff9 nos apóia nesta reflexão. Ele afirma que, por exemplo, a questão
ambiental (e o desenvolvimento sustentável) não se esgota na necessidade de
dar bases ecológicas aos processos produtivos, de inovar tecnologias para
reciclar os rejeitos contaminantes, de incorporar normas ecológicas aos
agentes econômicos, ou de valorizar o patrimônio de recursos naturais e

8
Deve-se ressaltar que avanços importantes foram realizados, neste sentido, em termos de cursos
superiores e técnicos, com inclusões e modificações curriculares fundamentais e mesmo uma
disseminação positiva de cursos superiores, interiorizando o processo de produção e universalização do
conhecimento.
9
LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, Rio
de Janeiro: Vozes, 2001.

14
culturais para passar para um desenvolvimento sustentável. Continua ele,
afirmando, que a questão ambiental/desenvolvimento sustentável, não só
responde à necessidade de preservar a diversidade biológica para manter a
equilíbrio ecológico do planeta, mas de valorizar a diversidade étnica e cultural
da espécie humana e fomentar diferentes formas de manejo produtivo da
biodiversidade, em harmonia com a natureza.
A gestão ambiental do desenvolvimento sustentável exige novos
conhecimentos interdisciplinares e o planejamento intersetorial do
desenvolvimento; mas, sobretudo, um convite à ação dos cidadãos e cidadãs
para participar na produção de suas condições de existência e em seus
projetos de vida. O desenvolvimento sustentável é um projeto social e
político que aponta para o ordenamento ecológico e a descentralização
territorial da produção, assim como para a diversificação dos tipos de
desenvolvimento e dos modos de vida das populações que habitam o planeta.
Neste sentido, oferece novos princípios aos processos de democratização da
sociedade que induzem à participação direta das comunidades na
apropriação e transformação de seus recursos ambientais, e certamente na
produção coletiva de novos conhecimentos e na sua universalização e
gestão.

Caixa 5
Com isto, é possível perceber que como “pano de fundo” desta busca, existe
uma questão profundamente pedagógica, na medida do envolvimento da
população e dos técnicos/cientistas, na valorização, resgate e produção
coletiva de conhecimentos, coerentes com esta nova proposta de
desenvolvimento.
Mas, o que significa isto? O que mudaria na forma de atuar da Extensão
Rural clássica? Reflitam isto para avançarmos.

Max-Neff10 propõe um “desenvolvimento em escala humana”. Tal concepção de


desenvolvimento concentra-se e sustenta-se na satisfação das necessidades
humanas fundamentais, na geração de níveis crescentes de auto-dependência
e na articulação orgânica dos seres humanos com a natureza e a tecnologia,
10
MAX-NEFF, Manfred A . Desarrollo a Escala Humana. Montivideo: Ed. Nordan-Comunidad/REDES,
1993.

15
dos processos globais com os comportamentos locais, do pessoal com o
social, da planificação com a autonomia e da sociedade civil com o Estado.
Para tanto ele defende que desenvolvimento se refere a pessoas e não a
objetos. Ou seja, os sujeitos do desenvolvimento são as pessoas... que, por
sua vez, não podem ser transformados ou encarados como “objetos” do
processo. No entanto, chama-se atenção para que os discursos estão cheios
de eufemismos e “lugares comuns” (para não dizer “modismos”). As palavras
não se ajustam aos discursos. Em nome do povo instituíram-se e instituem-se
sistemas onde a população deve simplesmente acatar, de maneira obediente,
as definições do Estado Todopoderoso, da tecno-burocracia e das instituições
(inclusive ONG’s e organizações dos próprios agricultores),
Em contraposição, o Estado deve desempenhar um papel fundamental abrindo
espaços de participação efetiva a distintos atores sociais e institucionais, a fim
de evitar que, através da reprodução de mecanismos de exploração e coerção,
consolidem-se projetos autônomos perversos que atentem contra a
multiplicidade e diversidade que se pretende reforçar. A capacidade dos
diversos grupos e indivíduos para decidir sobre seus próprios recursos e
regular seus destinos, garante que o processo não seja discriminatório nem
excludente, considerando também, e sobremaneira, o conjunto da sociedade,
as gerações presente e futuras, e a Natureza.
Em espaços locais – de escala mais humana – é mais fácil que se gerem
embriões de auto-dependência cujas práticas constituam alternativas
potenciais às grandes estruturas piramidais de poder. Políticas alternativas
centradas no Desenvolvimento em Escala Humana, e por isto Sustentável, irão
estimular a constituição de sujeitos sociais capazes de sustentar um
desenvolvimento autônomo, autosustentado e harmônico em diversas
dimensões. Isto não significa, deve ficar claro, que o desenvolvimento somente
se limita a privilegiar espaços microssociais.
Com isto, o Desenvolvimento Sustentável efetivo, requer estruturar a produção
e promoção de conhecimentos com vistas a socializar a consciência crítica e os
instrumentos cognoscitivos necessários para contrapor as múltiplas formas de
dependência e dominação. Tal reestruturação precisa que as novas idéias
confrontem-se com àquelas até agora dominantes nos espaços das políticas

16
públicas. É necessário impulsionar a participação popular nos sistemas de
produção e socialização do conhecimento, sem cooptação.
Encaminhando para nosso tema-foco, é importante caracterizar uma posição
(genial) deste autor: “Este mundo está farto de grandes soluções. Está cansado
de gente que sabe exatamente o que há para se fazer. Está aborrecido de
gente que anda com a ‘pasta cheia’ de soluções buscando problemas que
encaixem com estas soluções. Creio firmemente que devemos começar a
respeitar um pouco mais a capacidade de reflexão (e de solução do povo) e o
poder do silêncio”.

Concluir para que? ou querendo não concluir? Ou por uma nova postura
pedagógica!!!

Caixa 6
Pelas reflexões precedentes, acreditamos que todos e cada um tem
capacidade de refletir suas próprias experiências e concepções em termos de
atuação profissional em Ater e ajudar a construir propostas de natureza muito
mais contemporâneas e ajustadas as novas (e diversas) realidades.
Evidentemente, a própria forma que colocamos as nossas reflexões
determinam um “assumir posturas”... não existe neutralidade. Mas cada um
deve realizar suas reflexões à luz da sua visão de mundo e da sua postura
política (aqui entendida, como uma das dimensões do desenvolvimento
sustentável).
Uma questão torna-se fundamental neste desafio: a busca de uma nova
concepção de desenvolvimento implica em novas formas de atuação.
Voltando ao início (onde propusemos uma fundamentação da
caminhada), seria interessante novamente, realizar algumas
ponderações para pensarmos juntos.

Se o Paradigma Agroecológico tem como fundamento a visão multimensional


do Desenvolvimento; a análise integral e integrada de ecossistemas e
agroecossistemas, portanto multidisciplinar a partir de uma lógica endógena;
procura valorizar o saber popular, o saber coletivo historicamente construído, o
saber dos agricultores, agricultoras, indígenas, quilombolas, pescadores e

17
pescadoras; trabalha por isto com o etno-conhecimento; busca enaltecer a
solidariedade e a ética como princípios fundamentais... certamente a
caracterização do processo de intervenção de Ater a ser assumido, é
profundamente diferente da clássica, difusionista, transferencista de
conhecimentos.
As posturas difusionistas/transferencistas, baseadas na pedagogia clássica,
deram sustentação a um modelo de crescimento econômico (para diferenciar
da concepção de Desenvolvimento Sustentável) comprovadamente em crise,
do ponto de vista tecnológico, ambiental, humano, social e mesmo econômico.
A Extensão Rural sempre se orgulhou de “ter uma metodologia própria”...
quase como se fosse sua propriedade e que só ela poderia utilizar. Na
verdade, era uma utilização combinada de diversos métodos, simples e
complexos, individuais, grupais e massais, que usados articuladamente
proporcionariam um maior grau de adoção, certo? Isto sempre numa
perspectiva de “transferência de tecnologia” e de uma pedagogia indutora de
mudanças comportamentais sem a devida conscientização dos atores sociais,
que hoje estamos criticando, em favor de métodos “mais participativos”.
O que precisa ser buscado é uma lógica de intervenção e de qualificação
profissional que mantenha a coerência com as bases epistemológicas da
própria Agroecologia como ciência.
Certamente, no campo metodológico, muitas referências nos aproximam de
propostas mais participativas. No entanto, deve-se ter o cuidado de não adotar
acriticamente “modelos metodológicos e técnicos” para implementação em
processos de Desenvolvimento Rural Sustentáveis.
Se não houver entendimento dos princípios pedagógicos e dos amplos
conceitos fundamentais que estão sustentando “metodologias e concepções de
desenvolvimento” (mesmo as ditas “participativas”), corre-se o risco de adotar
o método sem a percepção das dimensões políticas e humanas que levam à
verdadeira libertação e, especificamente, à produção coletiva e universalização
de conhecimentos, e à organização do social. Corre-se o risco de adotar um
conjunto de procedimentos (uso de métodos e instrumentos)... e utilizá-los sem
entender a perspectiva libertadora, humanista e construtivista da proposta.
Se isto acontecer, pode-se estar próximo ao que Paulo Freire chama de
manipulação e conquista (mesmo que na melhor das intenções)... onde

18
participação confunde-se com envolvimento, legitimação ou mesmo presença
física, que tem forte noções de antidialogicidade.
Buscando a ajuda de alguns pensadores/pedagogos, eles nos levam a
entender que o processo de ensino-aprendizado é construído pela estimulação
e pelo desafio constante. Eles nos sugerem que não pode haver, nesta
perspectiva, atitude superior de educadores/extensionistas, de saber absoluto,
de transferência de conhecimentos. Esta perspectiva se gera em situações-
problema concretas, e nos desafios que se vão colocando na construção do
entendimento dos problemas e das soluções com o próprio grupo de
educandos-educadores (a partir de suas próprias reflexões).
Sem dúvidas, esta perspectiva apresenta progressos com relação à
perspectiva clássica e significa um caminho interessante para outros autores
que buscavam humanizar a educação e o processo de comunicação entre
pessoas e grupos sociais.
Pensadores/educadores com Paulo Freire e Vygostsky, contribuem muito com
o que estamos denominando arbitrariamente corrente progressista.
Vygotsky desenvolveu a teoria histórico-cultural ou sócio-interacionista, que
centra esforços em descobrir as origens das funções psicológicas e na
caracterização dos aspectos humanos do comportamento. Ele afirma que, na
medida em que o ser humano transforma o seu meio para atender as suas
necessidades básicas, transforma-se a si mesmo, numa interação
dialética. Desta forma, o desenvolvimento mental do ser humano não é dado e
nem passivo. Ele se dá na inter-dependência do desenvolvimento histórico e
das formas sociais da vida humana. A cultura é, desta forma, parte constitutiva
da natureza humana e também resultado, através da internalização dos modos
historicamente determinados e culturalmente organizados através dos tempos.
Desta forma, assumir uma postura construtivista, libertadora e humanista
implica em uma mudança de postura... uma outra visão de mundo
(cosmovisão) para transformá-lo. Isto supera a qualquer visão puramente
didática ou de “uso” de métodos (mais ou menos participativos).

19
Caixa 7
Está complicado de entender? Vamos ler novamente e analisar com cuidado
o que se colocou acima. Analisar com cuidado significa ler e procurar
entender cada palavra (mesmo que precisemos usar o dicionário para isto) e
o texto no seu conjunto.
Sempre tentem relacionar com a vivência e o cotidiano de cada um.

Como já dissemos, o uso de métodos, acriticamente (uso do método pelo


método), pode ter uma forte dose de manipulação, que é uma característica
básica da teoria antidialógica da ação. Paulo Freire, nos diz que “a
manipulação, como forma de dirigismo, que explora o emocional dos
indivíduos, inculca neles aquela ilusão de atuar ou de que atuam na atuação
dos seus manipuladores”. Na verdade, manipulação e conquista, expressões
da invasão cultural e, ao mesmo tempo, instrumentos de mantê-la, não são
caminhos de libertação. São caminhos da domesticação.
O humanismo verdadeiro não pode aceitá-las em nome de coisa alguma, na
medida em que ele se encontra a serviço do homem concreto. Ser dialógico,
para o humanismo verdadeiro, não é dizer-se descomprometidamente
dialógico; é vivenciar o diálogo. Ser dialógico é não invadir, é não manipular.
Ser dialógico é comprometer-se e empenhar-se na transformação
constante da realidade.
Estas questões colocam, especificamente para o nosso caso de análise, o
“agente de Ater” num dilema: se transforma seus conhecimentos, suas
técnicas, em algo estático, materializado e os estende mecanicamente aos
agricultores/agricultoras, invadindo indiscutivelmente sua cultura, sua visão de
mundo, concordará com o conceito de extensão (no sentido de antes criticado,
de estender, de transferir) e estará negando o homem como um ser de
decisão. Se, ao contrário, afirma-o através do trabalho dialógico, não invade,
não manipula, não conquista; nega então a compreensão do sentido de
extensão (FREIRE, 1983).

20
Caixa 8
“No processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente, aquele que se
apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por
isto mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o aprendido-
apreendido à situações existenciais concretas. Pelo contrário, aquele que é
‘enchido’ por outro de conteúdos cuja inteligência não percebe; de conteúdos que
contradizem a forma própria de estar em seu mundo, sem que seja desafiado,
não prende. Para isto, é necessário que, na situação educativa, educador e
educando assumam o papel de sujeitos cognoscentes, mediatizados pelo objeto
cognoscível que buscam conhecer. A nada disto nos leva pensar o conceito (e a
prática clássica) de extensão”. (Paulo Freire, 1983, adaptado pelo autor)

Educação Popular
O que se chama de Educação Popular surge em função do desgaste do
modelo clássico de educação e resultado de perspectivas geradas pelas
alternativas à este tipo de educação, antes mencionadas.
Esta perspectiva de educação tem sua forte base no participativo e no popular.
Ela procura retomar o exercício da palavra, com a geração e resgate coletivo
do conhecimento. Com isto é esperado que aconteça o empoderamento das
populações (e portanto, a inclusão política). O fortalecimento da identidade
apresenta-se como recurso do processo de interação cultural, que levará à
revitalização da cultura dos povos, e o desenvolvimento da capacidade de
expressão própria, favorece o exercício da palavra que conduz à cidadania
plena.
Na perspectiva de Educação Popular, a educação está intimamente
relacionada com a organização social.
Desta forma, a Educação Popular, tem como premissas: a comunicação
intercultural, o que sugere a perspectiva de plasticidade cultural versus a
invasão cultural; trabalha com a diversidade (reconhecendo-a e valorizando-a);
está baseada na dialogicidade (através do diálogo crítico e criativo) e, por isto,
na horizontalidade, pela não hierarquização do conhecimento, não

21
expressando poder de uns sobre outros; está baseada na abertura para
mudanças e novos aprendizados.
O saber popular, segundo GARCIA (1982)11, é fruto de experiências de vida
(trabalho, vivência afetiva, religiosidade, etc). É a partir deste saber que o
grupo se identifica como tal, troca informações entre si, interpreta a realidade
em que vive.
Sofrendo carência em todos os seus níveis, dela retira sua força. É uma força
débil mas, potencialmente, mais forte do que qualquer outra.
O saber popular é um saber de resistência.
Assim, o ato educativo se dá na relação agente/grupos populares. E este ato é
passível de ser educativo na medida em que ambos os parceiros têm saberes
diferenciados (e respeitados). O elemento popular ‘sente’, mas nem sempre
compreende ou sabe; o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre
compreende ou, sobretudo, ‘sente’. O erro do intelectual consiste em crer que
ele pode saber sem compreender, e, sobretudo, sem sentir e se apaixonar (não
somente pelo saber, mas pelo objeto do saber)... se comprometer.
Com isto, revela-se onde se dá a diferença de saberes. O que é comum ao
“elemento intelectual” e ao “elemento popular” é que ambos nem sempre
compreendem. O “elemento intelectual” por carência no sentir, o “elemento
popular” por carência no saber.

Caixa 9

Mais uma vez, peço que voltemos sempre que a leitura se tornar difícil.
Vamos ler com calma, procurando entender cada palavra e seu sentido para
a discussão que estamos fazendo e associando com nossa prática
profissional e mesmo existencial.

Neste sentido, com todos os cuidados antes referidos, é importante caracterizar


a existência de uma série de propostas de metodologias participativas que
circulam, e contribuem para a disponibilização de instrumentos (lembremo-nos,
instrumentos) para serem exercitados, aprimorados e re-inventados.

11
GARCIA, Pedro Benjamin. Educação popular: algumas reflexões em torno da questão do saber. In:
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A questão política da educação popular. São Paulo: Editora Brasiliense,
1982.

22
Estas propostas metodológicas deveriam, na sua essência, terem o viez
pedagógico libertador. Mas pode nem sempre ser assim (pela aplicação
acrítica e mecânica de métodos).
Mesmo assim, solicitando sua análise criteriosa a partir da clareza pedagógica
necessária para a implementação participativa e coletiva (portanto, a partir da
sua concepção, com a participação dos agricultores e agricultoras),
apresentamos algumas referências bibliográficas que podem abastecer nossa
sede/ânsia de conhecimentos, práticas e instrumentos nesta área:

Brose, Markus (org). Metodologia participativa: uma introdução a 29


instrumentos. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2001.

Geilfus, Frans. 80 herramientas para el desarrollo participativo. San Salvador:


IICA/GTZ, 1998.

Kummer, Lydia. Metodologia Participativa no Meio Rural: uma visão


interdisciplinar. Conceitos, ferramentas e vivências. Salvador: GTZ, 2007.

Ruas, Elma Dias et al. Metodologia participativa de extensão rural para o


desenvolvimento sustentável – MEXPAR. Belo Horizonte: Emater-MG, março
de 2006.

Verdejo, Miguel Expósito. Diagnóstico Rural Participativo – guia prático.


Brasília: MDA/Secretaria de Agricultura Familiar, 2006.

CEPAGRI. Formação básica multiplicadora. Caçador-SC: Cepis - Cepagri,


junho de 1996.

Nestas breves referências bibliográficas, certamente poderemos conhecer e


saber “çomo utilizar” alguns instrumentos metodológicos. No entanto, chamo
atenção de todos/as, que o fundamental é termos clareza da nossa posição
pedagógica. Os instrumentos podem ser inventados e re-inventados. A postura
pedagógica é que vai definir nosso compromisso ou não com a participação
efetiva, com a construção conjunta do conhecimento, com a valorização do
saber do outro(a).

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Certamente, temos um conjunto de métodos que podem e devem ser
exercitados na construção e execução dos planos de trabalho onde a Extensão
Rural Agroecológica está envolvida com outros parceiros.
Neste sentido temos o Diagnóstico Rural Participativo, que é importante
conjunto de instrumentos metodológicos que possibilita o conhecimento da
realidade pela própria comunidade, estabelecendo processos de gestão social,
tanto dos planos de desenvolvimento quanto do monitoramento das ações e
das políticas públicas envolvidas (anexo um documento bem prático para o
conhecimento e exercício de vocês). Mas este assunto (instrumentos
metodológicos) não é para tratar em textos escritos, que se tornaria
essencialmente longo e cansativo, e sim praticá-los concretamente na nossa
realidade.
Temos também (ver os manuais que mencionei) um conjunto de métodos de
intervenção que favorecem a nossa relação técnica e organizativa com as
comunidades e grupos sociais. E ai valorizo inclusive alguns métodos já
utilizados pela Extensão Rural clássica. Ou seja, mais uma vez, a questão não
é a “escolha” deste ou daquele método e sim a forma de sua utilização dentro
de uma postura pedagógica construtivista.
Mas falar em metodologia em Extensão Rural Agroecológica, é entender que
nossa ação deve ser, além de participativa (considerando os/as atores sociais
com quem interagimos), deve ser interdisciplinar (considerando as diversas
disciplinas nas quais o trabalho de Extensão Rural Agroecológica se apóia,
como a Sociologia, a Antropologia, a Nutrição, a Economia Ecológica, por
exemplo) e interinstitucional (considerando os outros atores institucionais,
ONG’s, outras OG’s, Universidades, etc, que atuam ou atingem o mesmo
território).

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