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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i3.

28292

Por um Ateísmo Tranquilo: O Racionalismo de François


Châtelet no Périclès et Verdi de Gilles Deleuze
[For a Quiet Atheism: François Châtelet’s Rationalism in Périclès et
Verdi by Gilles Deleuze]

Marcelo de Sant’Anna Alves Primo*

Resumo: Em 1988, Gilles Deleuze dedica Periclès et Verdi, ao amigo


François Châtelet. Quando fora chamado pelo Collége International
de Philosophie para participar das últimas mesas redondas dedica-
das à morte do amigo, Deleuze vê na recusa de deus e de toda trans-
cendência châteletianas uma serenidade ateia depois de Nietzsche. À
época de seus estudos de Filosofia na Sorbonne, Châtelet pela pri-
meira vez entra em contato com Deleuze, e a partir daí constituir-se-á
a sua projeção como filósofo da história e como filósofo político. Nesse
sentido, eis o seu interesse pela filosofia de Châtelet: gradativamente
refaz a trajetória filosófica do amigo e, ao mesmo tempo, conjura a sua
morte e homenageia-o postumamente através da ressonância do pen-
samento de Châtelet em sua própria filosofia.
Palavras-chave: Chatêlet; Deleuze; filosofia; ateísmo.
Abstract: In 1988, Gilles Deleuze dedicates Periclès et Verdi to his
friend François Châtelet. When Deleuze had been summoned by the
Philosophie Collective International to attend the last roundtables
devoted to his friend’s death, he saw in the refusal of god and all
Chateletian transcendence an atheistic serenity after Nietzsche. At
the time of his studies of philosophy at the Sorbonne, Châtelet first
comes into contact with Deleuze, and from there his projection will
be constituted as a philosopher of history and as a political philo-
sopher. In this sense, here is his interest in Châtelet’s philosophy:
it gradually retraces his friend’s philosophical trajectory and at the
same time conjures his death and posthumously honors him through
the resonance of Châtelet’s thought in his own philosophy.
Keywords: Chatêlet; Deleuze; philosophy; atheism.

* Professor Titular do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e do PPGFIL-UFS. E-mail:
marceloprimo_sp@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7406-5371.

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MARCELO DE SANT’ANNA ALVES PRIMO

“O ateísmo não é um drama, ele é a serenidade


do filósofo e a conquista da filosofia.”
Gilles Deleuze, O que é a filosofia?

1- Introdução balhar com Foucault e Deleuze na


instauração do departamento de
Pode causar estranhamento aos Filosofia da Universidade de Vin-
mais íntimos do pensamento de cennes (Paris VIII), conduzindo-o
Deleuze que este, já tendo escrito durante uma década. Em 1983 co-
na década de oitenta do século laborará com a criação do Collège
passado os dois monumentais vo- International de Philosophie e
lumes de Capitalismo e Esquizo- morre em 1985. Nesse sentido,
frenia juntamente com Guattari, se Deleuze “nunca parou de co-
em 1988 dedicasse um trabalho mentar outros autores e, ao fazê-
ao racionalista François Châte- lo, sempre afirmou um pensa-
let. Quando fora chamado pelo mento próprio e original” (ZOU-
Collège International de Philo- RABICHVILI, 2016, p. 35), isso
sophie para participar das últi- bastaria para explicar o seu in-
mas mesas redondas dedicadas à teresse pela filosofia de Châtelet,
morte do amigo e filósofo da histó- pois gradativamente refaz a tra-
ria, Deleuze vê na recusa de Deus jetória filosófica tanto dos amigos
e de toda transcendência châtele- como dos intercessores, ao mesmo
tianas uma serenidade ateia de- tempo conjurando a sua morte e
pois de Nietzsche. À época de homenageando-o postumamente
seus estudos de Filosofia na Sor- através da ressonância do pensa-
bonne, Châtelet pela primeira vez mento de Châtelet em sua própria
entra em contato com Deleuze, e filosofia.1
a partir daí constituir-se-á a sua
projeção como filósofo da história
e como filósofo político. No pós-
maio de 1968, ele começa a tra-

1 Segundo Luiz B.L. Orlandi, “No caso deste pequeno livro, essa atração por linhas virtuais traduz-se como
concentrada atenção a certos singularizadores nocionais. Graças a estes, descortina-se uma breve tessitura de con-
ceitos, esse lugar de intersecção (mas não de fusão) das duas vertentes: a obra de Châtelet e a de Deleuze. Então,
é como se tivéssemos neste livro o esboço conceitual de uma virtualidade comum a esses dois pensadores con-
temporâneos. É essa comum virtualidade (mas estendendo-se esse comum como transmutividade, como complexa
diferenciação) que cada uma dessas obras vai erigindo enquanto tração distintamente sua própria maneira de pen-
sar, seu modo singular de revirar-se nela. Sendo assim, caberia lembrar alguns poucos conceitos que, variando em
cada um desses modos de pensar, tornam possível pelo menos entrever seu plano de coexistência” (p. 1).

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2 - O Racionalismo de François filósofo é aquele que descreve e


Châtelet segundo Deleuze pensa as mutações do pensar, co-
locando a filosofia a serviço da
Logo de início, Deleuze levanta a imanência, optando por uma geo-
seguinte questão: “François Châ- logia em vez de uma genealogia e
telet sempre se definiu como raci- vendo que o verdadeiro problema
onalista, mas qual racionalismo?” “de modo algum é da ordem de
(1988, p. 7, tradução e grifo crer ou não crer em Deus” (ZOU-
nosso)2 . Referindo-se sempre aos RABICHVILI, 2016, p. 95), então
clássicos da Filosofia, define-se, essa tendência filosófica instalada
antes de qualquer coisa, como nesse plano puro da imanência é
um aristotélico, mas distinto de uma escolha política, fazendo vir
um tomista devido, sem margem à tona os verdadeiros problemas
de dúvida, à “maneira de recu- à medida que libera gritos, dores
sar Deus e toda transcendência. e vozes sufocadas, uma vez que
Todas as transcendências, todas almeja escapar à disseminação do
as crenças em um outro mundo intolerável. O combate no campo
ele chama de ‘pretensões’” (Id. da imanência é a antítese do jogo
Ibid.). Por meio desse repúdio conformista propiciado pelas má-
às transcendências em seu cará- quinas produtoras de universais,
ter singular e plural, jamais houve subjugando os outros “ao domí-
nesse sentido uma filosofia tão nio de estratégias ou focos trans-
tranquilamente ateia, à exceção cendentes, sejam estes a Razão, a
de Nietzsche. Deleuze aqui re- racionalidade de presidentes da
fina a sua definição do que seja república, líderes de grupelhos,
um ateísmo tranquilo, como uma interesses poderosos ou deuses
“filosofia que Deus não é um pro- quaisquer” (ORLANDI, p. 2).
blema, a inexistência ou mesmo Segundo Deleuze, o campo de
a morte de Deus não são proble- imanência é constituído por uma
mas mas, ao contrário, condições relação “Potência-Ato”, sendo que
que é preciso considerar como ad- essas duas noções só existem em
quiridas para fazer surgir os ver- correlação, como que siamesas. É
dadeiros problemas: não há ou- por aí que “Châtelet é aristotélico,
tra modéstia. Jamais filosofia al- pois ele experimenta uma espé-
guma se instalou tão firmemente cie de fascínio pela potência: o
em um puro campo de imanência” homem é potência, o homem é
(Id. Ibid.). Nesse sentido, se o matéria” (1988, p. 8). Contudo,

2 Todas as traduções das passagens do texto de Deleuze são de minha autoria.

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Deleuze cita uma passagem do li- mocráticos e combatendo com o


vro Chronique des idées perdues do intuito de contornar demolições
amigo, quando indica que o seu sempre ameaçadoras aos indiví-
principal interesse é a potência ou duos e às coletividades. Havendo
o que faz o poder ser poder, que a exigência de o combate ser acu-
causa prazer em ser exercida na rado com o seu próprio estilo, ele
medida do possível, intentando não pode sucumbir a apelos “a
compreender e descobrir os me- uma ‘cidade ideal’ ou a um ‘Es-
canismos de captação de potência. tado universal de direito’. Com
Segundo Châtelet, só assim é pos- efeito, esse combate privilegia a
sível ter gosto por ela, manter ela ‘singularidade’ que não é precisa-
viva dentro de si e despertá-la ao mente o individual, mas o caso,
seu redor, definindo-a como liber- o acontecimento, uma configura-
dade (Id. Ibid., p. 9). Deleuze ção de ‘acontecimentos’, um ‘devir
indaga duplamente: como passar ativo’, uma ‘decisão’” (ORLANDI,
da potência ao ato e qual é o ato p. 2). Assim, Deleuze afirma
dessa potência? Ele afirma que o que o próprio ato, sendo relação,
ato é a razão, mas esta em um sen- é sempre político e a razão, por
tido bem peculiar, pois sua vez, sendo processo, é polí-
tica (op. cit., p. 9), não havendo
psicologia, mas uma “política do
a razão não é uma facul- eu”, não havendo metafísica, mas
dade, mas um processo e uma “política do ser”, não ha-
consiste precisamente em vendo ciência, mas uma “política
atualizar uma potência ou da matéria”, já que o homem “é
formar uma matéria. Há responsável pela própria matéria”
um pluralismo da razão, (Id. Ibid., p. 10). O autor cita o
porque não temos motivo exemplo da faixa musical. Esta,
algum para pensar nem a sendo uma matéria sonora, é um
matéria nem o ato como processo de racionalização que
únicos (1988, p. 9). consiste em instaurar relações hu-
manas nessa matéria, de tal ma-
A essa altura, como pode ser tra- neira que ela atualize a sua potên-
duzido aqui o aristotelismo de cia e torne-se ela mesma humana
Châtelet? Significa a instaura- que, na verdade, seria o exemplo
ção de relações humanas em uma preciso para mostrar através dos
multiplicidade qualquer indepen- órgãos dos sentidos a imanência
dente de sua envergadura, lim- entre o homem e a natureza, pois
pando o caminho para devires de- a orelha torna-se orelha humana

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quando o objeto sonoro torna-se vel fazer uma história dos siste-
musical. Deleuze aqui aponta mas de dominação na qual sempre
para o todo bastante diverso dos se exerce a atividade dos mestres,
processos de racionalização que “mas esta não seria nada sem o
constituem o devir ou a atividade apetite dos que, em nome dos gol-
humana, a Práxis ou as práxis, pes que recebem, aspiram a dá-
pois “não sabemos se existe a esse los” (Id. Ibid.). Nesse sentido,
respeito uma unidade humana, exercido ou suportado, o poder
do ponto de vista histórico ou do é tanto uma atividade existencial
ponto de vista genérico” (Id. Ibid.). social humana como é, concomi-
tantemente, a passividade de sua
existência natural. Dessa simul-
taneidade da potência e seu re-
3 - As Definições de Potência e
verso, Châtelet extrai exemplos
Ato
como o da união entre a terra e
Caso existisse uma matéria es- a guerra sob a pena de Claude Si-
pecificamente humana, uma po- mon e o marxismo que jamais cin-
tência pura distinta do ato capaz diu a existência ativa do homem
de atrair o fascínio dos homens, histórico da existência passiva de
ela não seria liberdade neles sem um ser natural que é o seu du-
mostrar-se antes como o seu con- plo. Recorrendo a uma citação do
trário, ou “captação” nos termos livro de Châtelet Questions, Objec-
de Châtelet, isto é, seria um ato tions, Deleuze indica que a razão
obtuso da potência, oposto ao ato e o seu oposto (a irracionalidade)
capaz de realizá-la (DELEUZE, é um tema filosófico sempre re-
1988, p. 11). Seria um reverso, corrente, que pretende uma ciên-
uma privação ou uma alienação cia crítica da passividade efetiva,
da razão, como se aí existisse uma solo da humanidade. O homem
relação não-humana, mas interior morre não pelo simples fato de ser
ou imanente à própria relação hu- mortal, mas porque não come o
mana, tornando a liberdade uma suficiente, porque é privado das
capacidade para o homem vencer necessidades mínimas e reduzido
o homem ou de ser vencido. Aqui, à animalidade. Nisso o materia-
a potência é o pathos, ou seja, a lismo histórico tem a sua parcela
passividade, mas esta sendo, an- de contribuição, pois refresca a
tes de qualquer coisa, a potência memória dos homens com esses
de receber os golpes e de desferi- fatos e estabelece os fundamentos
los, como uma estranha resistên- do que seria o método de análise
cia. Deleuze afirma que é possí- dos mecanismos que governam

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em uma determinada época o fato (Id. Ibid.). As relações humanas


da passividade (Id. Ibid., p. 12.) têm o seu início em uma métrica,
Deleuze entende que há valores uma organização do espaço que
inerentes ao pathos: 1) um deses- é o sustentáculo da cidade, uma
pero do mundo, que se apresenta arte de estabelecer distâncias en-
recorrentemente em Châtelet com tre os homens que não são hierár-
uma polidez exemplar. Sempre quicas, porém, geométricas, dis-
havendo entre os homens a de- tâncias que não estão nem muito
molição, seria melhor a destrui- perto nem muito longe, evitando
ção de si próprios sob condições dar ou receber golpes. Segundo
agradáveis e até mesmo romanes- Deleuze, a lição ensinada pelos
cas. E se a vida, certamente, é um gregos através desse encontro dos
processo de demolição, essa cer- homens como um rito, um rituel
teza “soa como uma constatação d’immanence, foi não deixar os ho-
de imanência” (Id. Ibid., p. 13). mens estagnarem-se em um cen-
Deleuze alude ao único romance tro fixo, “mas adquirir a capa-
escrito por Châtelet, Les annés de cidade de transportarem consigo
demolition, de inspiração em Fitz- mesmos um centro para organi-
gerald, onde a elegância não é zar todos ou totalidades de rela-
perdida de vista em um desastre, ções simétricas e reversíveis efe-
onde mesmo a tentação da morte tuadas por homens livres” (1988,
se dá em um elemento sublime p. 14). Poder-se-ia ter em conta
como a música. Faz-se necessário que isso não bastaria para vencer
levar em conta o vetor de destrui- o desespero do mundo, já que há
ção que pode atravessar um indi- cada vez menos homens polidos,
víduo ou toda uma coletividade, contudo, a polidez de Châtelet
Péricles ou Atenas. O primeiro li- só seria uma espécie de disfarce
vro de Châtelet, justamente inti- para um terceiro valor do pathos:
tulado Périclès, é a imagem plena 3) uma bondade calorosa, não
do herói ou grande homem Pé- estando em consideração aqui o
ricles, “mesmo em sua ‘passivi- nome que convém, enquanto esta
dade’, mesmo através de sua fa- qualidade tenha profundamente
lha, que será a falha da demo- pertencido à Châtelet, sendo mais
cracia, mesmo seguindo o inqui- do que um valor, sendo uma dis-
etante vetor” (DELEUZE, 1988, posição do pensamento, um ato do
p.13); 2) o segundo valor do pathos pensamento que particularmente
seria a polidez, grega, que já se- significa
ria o esboço das relações huma-
nas, “o início de um ato da razão” não saber de antemão
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como alguém, eventual- eterno.


mente, achar-se-á capaz
de instaurar nele e fora
dele um processo de ra-
4 - O Pluralismo da Razão
cionalização. Certamente
há em todos os casos per- Em seus últimos livros, Michel
didos, o desespero. Mas se Foucault conduzia esse plura-
há uma chance de alguém lismo da razão para uma análise
que aí tenha necessidade, das relações humanas que engen-
como procede para sair draria o projeto de uma nova ética
de suas demolições? Tal- oriunda do que entendeu como
vez todos nascemos sob “processos de subjetivação”, mos-
um sol de demolição, mas trando as bifurcações e a histo-
não desperdiçaremos ne- ricidade quebrada de uma razão
nhuma chance. Não há sempre em estado de alienação ou
Razão pura, ou raciona- liberação nas relações do homem
lidade por excelência. Há consigo mesmo. Nesse sentido, a
processos de racionaliza- Foucault foi necessária a ida aos
ção, heterogêneos, muito gregos não para ver neles o mi-
diferentes segundo os do- lagre da razão – como defendia
mínios, as épocas, os gru- John Burnet no seu livro A Aurora
pos e as pessoas (Id. Ibid., da Filosofia Grega (chamado por
p.14-15). Deleuze de “miserável milagre”
), mas somente para dar um di-
Deleuze anuncia que a Razão não agnóstico do primeiro esboço de
pode ficar aprisionada a um único um processo de racionalização, se-
modelo ou definição. O seu plu- guido posteriormente por outros
ralismo se dá em processos diver- autores, sob diferentes condições
sos conforme os seus campos de e determinadas épocas e lugares.
atuação, tempos e lugares, indiví- Mais do que isso, ele definiu a ci-
duos e grupos sociais. O processo dade grega por uma relação de-
de racionalização, enquanto razão terminável como rivalidade dos
imanente, inerente ao pathos, não homens livres ou cidadãos, na ex-
pode enclausurar-se em uma fixi- tensão de uma racionalização e de
dez que paralisa os atos do pensar. uma subjetivação, nas quais a um
É caracterizado por sua provisori- homem livre era impossível co-
edade em determinados momen- mandar outros homens livres, da
tos históricos e políticos, não po- mesma maneira como era capaz
dendo mais ser entendida como de comandar a si próprio. Este
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era o ato o ou processo particu- dos fins do homem, sustentamos-


larmente grego, no qual não era lhe uma transcendência ainda
possível empreender um ato fun- teológica” (DELEUZE, 1988, p.
dador, mas um fato singular em 17). Deleuze classifica o em-
uma cadeia rompida. Para De- pirismo de Châtelet como racio-
leuze, é aqui que os pensamentos nal e, ao mesmo tempo, seu raci-
de Foucault e Châtelet se encon- onalismo de empírico e pluralista
tram, pois também para este úl- (Id. Ibid., p. 18). O conceito cha-
timo teletiano de empiria depende de
dois princípios, a saber: 1) o abs-
trato nada explica, e sim ele que
a racionalização é tam- deve ser explicado e 2) o univer-
bém um processo histó- sal não existe, existindo somente
rico e político que conhece o singular, a singularidade, sendo
com Atenas a sua primeira esta definida não como individu-
ocorrência, mas também alidade, mas “o caso, o aconteci-
a sua falha e seu afasta- mento, o potencial, ou antes a re-
mento, Péricles, do qual partição dos potenciais em uma
afastar-se-ão outros acon- matéria dada” (DELEUZE, 1988,
tecimentos tomados em p. 19). Fazer um mapa político de
outros processos. Atenas um indivíduo, de um grupo ou de
não foi o advento de uma uma sociedade é a mesma coisa,
razão eterna, mas o fato pois tratar-se-á de estender uma
singular de uma raciona- singularidade até avizinhar-se de
lização provisória, especi- uma outra, produzindo uma con-
almente brilhante (1988, figuração de acontecimentos, tão
p. 17). rica e consistente quanto for pos-
sível. Para Deleuze, somos histori-
Nesse sentido, sob a pena de adores quando somente “sabemos
Châtelet está denunciada a ou- retomar a operação que o próprio
trecuidance de uma razão uni- Péricles fez, esta conexão, esta
versal, pois quando é reivindi- conjunção de singularidades que
cado o direito a uma razão uni- permaneceriam latentes e isola-
versal, incorre-se no erro da pre- das sem uma política a qual se dá
tensão que é, na verdade, uma corretamente o nome de Péricles”
“impolidez metafísica” que con- (Id. Ibid.). Mesmo o indivíduo
sistindo em reconhecer “na ra- mais insignificante é um campo
zão uma faculdade humana e so- de singularidades que só obtém
mente humana, uma faculdade seu nome próprio das operações

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que ele empreende sobre si e na como todo plural, empírico e his-


vizinhança para daí haurir uma tórico. Contudo, histórico aqui
configuração extensível. Deleuze ganha um contorno bem preciso,
relembra o que Châtelet diz de si pois não é entendido como o tra-
mesmo, que teve uma educação balho do historiador, que para ser
pequeno-burguesa, foi influenci- objetivo tem que se manter à dis-
ado por Hegel, vivendo um des- tância e constituir um objeto que
ses períodos históricos que dei- supostamente só é pertencente ao
xam enferma qualquer alma um passado, mas no sentido de uma
pouco sensível. Independente- história do presente (Id. Ibid., p.
mente da matéria considerada, é 21). Assim, se o processo de raci-
o que chamar-se-á de a empiria onalização se mostra como a atu-
ou história no presente, pois isso alização de uma potência, como
que é atualizar a potência ou tor- o tornar ativo, como produção
nar ativo. É na vida e seu pro- de relações humanas, como pro-
longamento, como da razão e de longamento de singularidades e
seu processo, uma vitória sobre como decisão, logo é fazer o mo-
a morte, visto que não há outra vimento, pois “todo filósofo in-
imortalidade que a história no vocando o concreto sempre rei-
presente, sem outra vida a não ser vindicou ‘fazer o movimento’ an-
aquela que conecta e faz convergir tes de pensá-lo na abstração do
as vizinhanças, chamada por Châ- universal” (DELEUZE, 1988, p.
telet de decisão: “Châtelet chamá- 21)3 . O movimento é o próprio
lo-á de ‘decisão’ e toda a sua fi- ato da potência, pois fazer o mo-
losofia é uma filosofia da decisão, vimento é passar ao ato, instau-
da singularidade da decisão, em rar a relação humana, e decidir
oposição aos universais de refle- não é querer fazer o movimento,
xão, de comunicação...” (Id. Ibid. mas fazê-lo. Deleuze concede que
p. 20-21). Estando ou não em Ate- nem todo movimento é processo
nas, e se toda ação é “pericleana” de racionalização, mas se Châte-
e se o que se destaca dessa ação é let é aristotélico, é porque atribui
uma decisão, Deleuze mostra que à distinção entre movimento natu-
para Châtelet, o peso do empírico ral e movimento forçado um valor
se impõe como multiplicidade, ou prático histórico notável: o mo-

3 Para François Zourabichvili, esse seria o problema do hegelianismo apontado por Deleuze: “Eis por que o he-
gelianismo não é um erro, mas um fenômeno ao mesmo tempo pior e mais interessante: o desenvolvimento de uma
ilusão necessária, transcendental. Era inevitável que Hegel viesse a atribuir ao negativo o papel de motor no pen-
samento, mas permanecendo no nível da representação. Sem dúvida, o negativo é a melhor maneira de representar
o movimento; mas de representá-lo, justamente, e não fazê-lo” (2016, p. 86, grifo nosso).

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vimento forçado vem sempre do (Id. Ibid., p. 23).


alto, de uma transcendência que
lhe dá um fim, de uma mediação
do pensamento abstrato que lhe A naturalidade ou o movimento
impõe um curso, recompondo-o natural da faculdade da razão é
incessantemente com linhas retas algo processual, que se opõe dia-
antes mesmo de tê-lo empreen- metralmente ao movimento for-
dido, de uma razão supostamente çado da transcendência. A Ra-
universal; contrariamente, o mo- zão não segue um caminho pré-
vimento natural é composto de estabelecido. Movimenta-se natu-
singularidades e só acumula vi- ralmente em diversas direções e
zinhanças, deslocando-se em um adquire diversas formas, em um
espaço que criou de acordo com processo que fará com que ela en-
os seus desvios ou suas inflexões, contre a si própria não por sua re-
procedendo por conexões que ja- tidão, mas através de seus desca-
mais são preestabelecidas, indo do minhos ou desvios.4 Este movi-
coletivo ao individual, do interior mento não vem dos céus, não é
ao exterior, do voluntário ao invo- universal nem abstrato, mas ima-
luntário e inversamente. Assim, nente e plural.
citando Châtelet, Deleuze arre-
mata:
5 - Conclusão: O Ateísmo Tran-
quilo como Rejeição das Abstra-
Se a razão pode ser con- ções Filosóficas
siderada como uma fa-
culdade natural, é preci- Em seu livro Conversações, no ca-
samente como processo, pítulo “Rachar as coisas e rachar
enquanto ela encontra a as palavras”, que é uma entre-
si mesma ‘nos movimen- vista a Robert Maggiori na edi-
tos mais singulares, pro- ção do Libération de 2 e 3 de se-
duzidos pelas trajetórias tembro de 1986, Deleuze fala so-
entrelaçadas’ construindo bre a amizade de longa data com
um espaço volumoso que Châtelet, este dizendo que eles
vem, avança, que se dobra eram do “mesmo time” e tinham
sobre si, se dilui, explode, os “mesmos inimigos”. Eis a res-
aniquila-se, implanta-se posta:

4 Em Foucault, Deleuze afirma algo que poderia ser aplicado à insuficiência de definir a Razão por sua eterni-
dade e universalidade: “É evidente que toda forma é precária, pois depende das suas relações de forças e mutações”
(2005, p. 139).

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VERDI DE GILLES DELEUZE

– Penso que sim. Châte- do conceito” (DELEUZE, 1992, p.


let tinha um sentimento 121). Sendo para Deleuze a
vivo disso tudo. Ser do imanência o baluarte de toda a fi-
mesmo time é também rir losofia, já que assume para si to-
das mesmas coisas, ou en- dos os percalços a serem enfren-
tão calar-se, não precisar tados e suporta todas as conde-
‘explicar-se’. É tão agra- nações, perseguições e injúrias di-
dável não ter que se expli- recionadas a ela, é porque o pro-
car! Tínhamos também, blema da imanência está muito
possivelmente, uma con- longe (se é que algum dia foi) de
cepção de filosofia. Não ser meramente abstrato e/ou teó-
possuíamos o gosto pelas rico. E para os mais serenos e
abstrações, o Uno, o Todo, tranquilos, ainda é estranho que
a Razão, o Sujeito (1992, “tantos filósofos ainda assumam
p. 108-109). como trágica a morte de Deus. O
ateísmo não é um drama, ele é
Se o ponto de partida de toda a a serenidade do filósofo e a con-
reflexão sobre o pensamento de quista da filosofia” (Id. Ibid.) O
Châtelet foi a identificação com o processo de racionalização exige
“ateísmo tranquilo” de seu com- e implica em uma tranquilidade
panheiro do Collège International que permite ver que a imanência
de Philosophie e a constatação que da razão está relacionada com a
não se trata mais de saber quem práxis intrínseca aos atos do pen-
vai vencer o embate sobre a exis- samento. Esse movimento natu-
tência, a inexistência e a interfe- ral não está enredado nem com-
rência dos deuses na terra, De- prometido com discussões abstra-
leuze caminha junto com Châtelet tas se os deuses existem, inexis-
quando afirma em O que é a filo- tem ou se são providentes recom-
sofia? que o pensamento cristão pensando os bons e punindo os
não produz conceitos senão pelo maus. Assim, o ateísmo tranquilo
seu ateísmo, pelo ateísmo mais de Deleuze mostra que, diante
recôndito do que em qualquer ou- desse dado, sempre viverá e so-
tra religião e para os filósofos breviverá o homem, conduzindo-
“o ateísmo não é um problema, se serenamente no mundo com o
a morte de Deus menos ainda, ateísmo que lhe é imanente e, em
os problemas só começam a se- consequência, “pacificamente sem
guir, quando se atingiu o ateísmo Deus” (CHABBERT, 2018, p. 50).

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.3, dez. 2019, p. 183-194 193
ISSN: 2317-9570
MARCELO DE SANT’ANNA ALVES PRIMO

Referências

CHABBERT, Marie. “On Becoming-Secular: Gilles Deleuze and the Death of God” , in: Working Papers
in the Humanities. Cambridge: MHRA, 2018, vol. 13, p. 50-59.
DELEUZE, Gilles. Périclès et Verdi: la philosophie de François Châtelet. Paris: Les Éditions de Minuit,
1988. ____. Conversações. Trad. de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992.
____. O que é a filosofia? Trad. de Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34, 1992.
____. Foucault. Trad. de Cláudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005.
ORLANDI, Luiz Benedicto Lacerda. “Combater na imanência” , in: http://www.pucsp.br/nucleodesub-
jetividade/Textos/orlandi/combater_na_imanencia.pdfacessado em 28/02/2017.
ZOURABICHVILI, François. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. Trad. de Luiz B. L. Orlandi. São
Paulo: Ed. 34, 2016.

Recebido: 20/11/2019
Aprovado: 07/01/2020
Publicado: 26/01/2020

194 Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.7, n.3, dez. 2019, p. 183-194
ISSN: 2317-9570

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