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9 Variações Sobre Coisas e Performances LEPECK
9 Variações Sobre Coisas e Performances LEPECK
André Lepecki2
Tradução de Sandra Meyer3
Resumo
Abstract
KEYWORDS: Dispositif, becoming-thing, experimental dance, performance, subjectivity.
1
Este texto foi encomendado por Lilia Mestre e Van Elke Campenhout e é uma versão ligeiramente diferente daquela que apareceu pela primeira
vez em IT, Thingly Variations in Space, Bruxelas, MOKUM, 2011. Sou grato ao seu convite. Ele foi reimpresso em Swedish Dance History, 2012.
2
Ensaísta, crítico e dramaturgo, é Professor Assistente no Departamento de Estudos da Performance - New York University, onde leciona no programa de
pós-graduação teoria da dança, dramaturgia experimental, teoria da cultura e crítica cultural desde 2000. Autor de Exhausting Dance (Routledge, 2005);
coordenador das antologias Intensification, Contemporary Portuguese Performance (Theaterschrift Extra/Danças na Cidade, 1998), Of The Presence of
the Body (Wesleyan University Press, 2004) e The Senses in Performance (Routledge, 2005).
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Professora Associada do Programa de Pós-graduação em Teatro da UDESC.
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O ensaio de Agamben é em parte dedicado a uma arqueologia da noção de “dispo- Para uma arquelogia desta noção de coreografia veja-se Lepecki 2006, principalmente
sitif” em Foucault. capítulos 1 a 3.
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instante em que a vida dos indivíduos não a mercadoria completa a sua colonização da vida
é modelada, contaminada ou controlada social. Não é apenas que a relação de merca-
por algum dispositivo” (Agamben, p. 15). dorias é agora fácil de se ver; o mundo que
É neste sentido que a definição de Agam- vemos é o mundo da mercadoria “(Débord,
ben de dispositivo como instrumento de p. 29, grifo meu). O destino político da mer-
controle se torna útil para investigar o re- cadoria (muito próximo, como vemos, da
cente surgimento e predomínio de objetos noção de dispositivo de Agamben) é, então,
em algumas danças experimentais. Em completar o seu domínio total sobre a vida
primeiro lugar, porque desvela a perfor- social, sobre a vida das coisas, mas também
matividade das coisas; e em segundo lu- sobre a vida somática, uma vez que a sua
gar, porque, dado que a dança possui uma dominância se inscreve profundamente
relação íntima com as questões política e nos corpos. De fato, a mercadoria domina
ética da obediência, dos gestos governa- não só o mundo das coisas, mas também a
dos, dos movimentos determinados, não esfera do perceptível, do imperceptível, do
é de admirar então que a dança (mas tam- sensível e do infra-sensível, o domínio do
bém a arte de performance, graças à sua desejo, até mesmo o domínio dos sonhos.
verve politicamente aberta e, particular- A mercadoria governa, e por isso mesmo
mente, a sua preocupação sobre como ob- ela rege mesmo as próprias possibilidades
jetos provocam ações) deva se aproximar de se imaginar o que seria governamentali-
de objetos – já que os objetos parecem es- dade. Além disso, a mercadoria regula não
tar governando nossa subjetividade, pare- apenas sujeitos, mas também a própria vida
cem estar nos subjetivando, direcionando dos objetos, a vida da matéria - a vida da
gestos e corpos, sob a função dispositivo. vida e da vida das coisas. Sob seu domínio,
Mas quem sabe, talvez haja algo mais do seres humanos e coisas encontram a sua ca-
que apenas controle... pacidade de abertura para infinitas poten-
cialidades esmagadas ou substancialmente
3. Variação mercadoria diminuídas. Mesmo sendo a mercadoria
um objeto material, seu poder se constitui
Karl Marx observou que, se a atividade por impedir que coisas sejam deixadas em paz.
humana é capaz de estabelecer mudanças Ou seja: que coisas possam existir fora de
na matéria transformando-a em objetos de regimes de instrumentalidade, de uso, e de
uso (por exemplo, tornando um bloco de mercantilização total do mundo (incluindo
madeira em uma mesa), o capitalismo faz afetos). De fato, a transformação incorporal
com que os objetos sustentem uma trans- de uma coisa em mercadoria correspon-
formação suplementar, “mágica’ ou in- de ao seu aprisionamento em um único (e
corpórea, onde tudo que é feito para o uso frenético) destino: tornar-se um objeto uti-
de seres humanos é transformado imedia- litário anexado a toda uma economia de
tamente em “uma coisa muito estranha” excesso, regida por um modo espetacular
(para usar a expressão do próprio Marx), de aparição e demandando firmemente
chamada de mercadoria. Guy Débord no- e sempre o “uso correto” de objetos. Esse
tou como neste modo peculiar de transfor- objeto vinculado ao capital está fatalmen-
mação, “obtemos o princípio do fetichismo te direcionado (desde a sua concepção) ao
da mercadoria, a dominação da sociedade caixote de lixo, de preferência num prazo
por coisas cujas qualidades são ‘ao mesmo inferior a seis meses, quando ele se torna-
tempo perceptíveis e imperceptíveis pelos rá novamente mera coisa, ou seja, matéria
sentidos’” (Débord, 1994, p. 26). Débord to- sem valor para o capital, sem significação,
mou este princípio de dominação e usou-o sem propósito a não ser apenas ser. O ca-
para definir a nossa “sociedade do espe- pital chama a esses objetos: lixo. Perante tal
táculo”, que não é uma sociedade feita de sistema, talvez a contra-força dos objetos
espetáculos, mas uma onde “o espetáculo (sua resistência) resida exatamente em ser
corresponde ao momento histórico em que e querer ser mera coisa.
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de sua alusão ao ato de escuta, cuidado e louvável, provocar elogios” (Franko, 1986,
atenção com a sua alteridade? ” (p. 146). p. 22). Consequência desse elemento fun-
Uma resposta possível é dizer que, talvez, damental e constitutivo da personalidade
um devir-coisa não seja um destino tão e do auto-centramento da dança é um blo-
ruim assim para a subjetividade. Quando queio do eventual desejo do dançarino em
olhamos ao redor, certamente parece ser se tornar coisa, em tornar-se animal -- pois
uma opção melhor do que continuar a vi- que ofuscado pela necessidade imperiosa
ver e a ser sob o nome de “humano”. A de constantemente afirmar e reafirmar a
“coisa” nos lembra que organismos vivos, sua personalidade, melhor, a sua pessoali-
o inorgânico, e aquele terceiro produzido dade, e o seu eu. Na década de 1990 e início
pelo seu confronto chamado “subjetivi- dos anos 2000, algumas experiências im-
dade”, todos necessitam ser libertados da portantes de Vera Mantero, Boris Charmatz
força subjugadora chamada dispositivo- e Xavier LeRoy, dentre outros, parecem ter
mercadoria -- força que esmaga a todos privilegiado um devir-animal como uma
num modo da vida empobrecido, ou tris- linha de fuga para a dança. Recentemente,
te, ou dócil, ou limitado, ou utilitário. E Marcela Levi e Lucia Russo criaram uma
uma coisa (ou seja, a “coisidade” em qual- peça extraordinária, Natureza Monstruosa,
quer objeto e sujeito) pode realmente nos onde o devir animal surge como plano de
oferecer vetores e linhas de fuga longe da imanência poético-coreográfico. (O Butoh
soberania imperialista de dispositivos co- teve um impulso político-performativo si-
lonizadores. Para tal, as coisas teriam que milar, um devir-animal como rejeição do
ser deixadas em paz, permitindo-lhes as- humano e da pessoa, Hijikata: “Eu adoro
sim afirmarem-se coisa, mais uma vez - de costelas, mas, mais uma vez, considero as
forma a combater ativamente a sua sujei- costelas de um cão superiores à minha”).
ção a um regime particularmente detes- Parece-me que neste momento, uma linha-
tável do objeto (o regime do dispositivo- de-fuga pode ser encontrada nas danças
mercadoria) e um regime particularmente que investem num devir-coisa. Tal devir
detestável do sujeito (o regime da pesso- é fundamental para que se encontrem re-
alidade-espetáculo) que aprisionam am- gimes outros de visibilidade para a dança,
bos, objetos e sujeitos, em uma prisão mú- para o dançarino, regimes onde nem o ob-
tua. Talvez alguma dança recente tenha se jeto nem a pessoa ocupem mais o centro,
preocupado justamente com esta tarefa de sejam o centro centrado da dança. Assim,
libertação mútua: das coisas e dos corpos, outros espaços são inventados, envolvendo
das subjetividades e dos objetos. Nesse o espectador, dissolvendo o palco, moven-
mútuo e necessário esforço, talvez preci- do distinções. Um desses novos regimes de
semos seguir o conselho de Mario Pernio- visibilidade é a dança-instalação, onde “o
la e “colocar nossa confiança não no divi- horizonte aberto das instalações” leva exa-
no ou no humano, mas no modo de ser da tamente à “dissolução espacial da obra de
coisa” (Perniola, 2004, p.110). arte” (Perniola, p. 103), destruindo o traba-
lho como objeto de arte para revelar o tra-
7. Variação anti-pessoal balho como uma vaga coisa. Aqui, podemos
Mark Franko nos lembra da força cons- nos lembrar da formulação de Heidegger
titutiva do “pessoal” na dança da Renas- sobre a performatividade das coisas: a coi-
cença, uma força que podemos ver atra- sa, antes de tudo, agrega.
vessando toda a história da dança teatral
8. Variação linha-de-fuga
ocidental: “A pessoa do bailarino é o defi-
nitivo e único objeto de louvor e censura na É claro que objetos sempre estiveram
dança. é por isso que “o corpo que dança presentes na dança. Rosalind Krauss nota:
deve por sua vez apresentar o admirável “um grande número de escultores euro-
eu para louvor e indicar tal exibição como peus e americanos pós-guerra se interessa-
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ram igualmente pelo teatro e pela experi- na relação entre objetos e seus efeitos esté-
ência estendida do tempo que parecia ser ticos (na dança, no teatro, nas artes visuais,
parte das convenções do palco. A partir na performance e na instalação). Esta mu-
deste interesse surgiram algumas escultu- dança corresponde à ativação política da
ras para serem usadas como acessórios em coisa, para que esta possa fazer aquilo que
produções de dança e de teatro, algumas de melhor faz: despojar objetos e sujeitos
para funcionar como performers substi- de suas armadilhas chamadas “dispositi-
tutos, outras para agir como geradores de vo”, “mercadoria”, “pessoa” e “eu”.
efeitos cênicos no palco “(Krauss, 1981, p.
9. Variação da citação final
204, grifo meu). Porém, atualmente, não é
escultura criada por artistas visuais que ve- “Portanto, quando eu me dou como
mos surgindo em obras de dança – mas tra- coisa, não me refiro de modo algum a me
lha, que coreógrafos arrastam para o palco, oferecer à exploração e benefício dos ou-
não exatamente para fazer uma cena, mas tros. Eu não me ofereço para o outro, mas
para criar um ambiente. Além disso, essas ao movimento impessoal que, ao mesmo
tralhas são utilizadas de modo totalmente tempo, desloca o outro de si mesmo e per-
diferente da forma como Krauss havia des- mite que ele, por sua vez, se dê como coisa
crito o uso de esculturas em eventos tea- e me acolha como coisa” (Perniola, p. 109).
trais e de dança. Hoje, objetos aparecem,
mas não como “adereços” (ou “properties”
– como objetos cênicos são chamados, de
modo revelador, em Inglês), nem como
geradores de “efeitos cênicos”, ou como
“performers substitutos” (ie., como mario-
netes). Ao invés, vemos hoje em dia uma
série de trabalhos onde objetos e corpos
ocupam espaço lado a lado e ... às vezes,
pouco mais acontece. Esse simples ato de
colocar coisas em sua quietude, imobilida-
de e concreta coisidade ao lado de corpos,
não necessariamente junto com os dançari-
nos, mas lado a lado, resulta em um evento
substancial: sublinha a estreita linha que
simultaneamente separa e une corpos e
coisas, delineia uma zona de indiscernibili-
dade entre o corporal, o subjetivo e a coisa.
Tal operação não é duchampiana, no sen-
tido de querer afirmar o objeto cotidiano
como arte, apos o objeto ter sido assinado
por um artista ou trazido para um contexto
de arte. Ao invés, esta operação pretende
afirmar o objeto como coisa, e assim libertar a
coisa capturada no objeto, aprisionada que
fora pela razão instrumental e pelos dis-
positivos artísticos. Investir em coisas, não
como substitutos do corpo, nem como ele-
mentos significantes ou representativos de
uma narrativa, mas como parceiros, como
entidades co-extensivas no campo da ma-
téria, é ativar uma mudança fundamental
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REFERÊNCIAS
Agamben, Giorgio. Homo sacer. Sovereign power and bare life, Meridian. Stanford, Calif.:
Stanford University Press, 1998.
———. “What is an apparatus?” and other essays, Meridian, crossing aesthetics. Stanford,
Calif.: Stanford University Press, 2009.
Benso, Silvia. The face of things: a different side of ethics, SUNY series in contemporary
continental philosophy. Albany, N.Y.: State University of New York Press, 2000.
Debord, Guy. The society of the spectacle. New York: Zone Books, 1994.
Franko, Mark. The dancing body in Renaissance choreography (c. 1416-1589). Birmingham,
Ala.: Summa Publications, 1986.
Krauss, Rosalind E. Passages in modern sculpture. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1981.
Lepecki, André. Exhausting dance: performance and the politics of movement (1. publ. ed.).
New York: Routledge, 2006.
Moten, Fred. In the break: the aesthetics of the Black radical tradition. Minneapolis: Univer-
sity of Minnesota Press, 2003.
Perniola, Mario. The sex appeal of the inorganic. Athlone contemporary European
thinkers. New York London: Continuum, 2004.
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