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quatro mãos
Posted on Março 8, 2013
Heloisa Primavera: O primeiro texto de Bernard Lietaer que li foi uma entrevista feita
em 1997 pela jornalista Sara van Gelder, para a revista americana Yes, que teve como
título: “Além da cobiça e da escassez: o futuro do dinheiro”.[3] Ali encontrei reflexões
bastante heterodoxas, mesmo tendo em conta minha formação como bióloga devinda
socióloga graças a uma tese sobre o movimento peronista dos anos 50, numa tentativa
de compreender o que se passava no meu país de adoção. Envolvida com os clubes de
troca na Argentina, que começavam a organizar-se em grandes redes, encontrar o livro
The future of Money recém-saído numa livraria de aeroporto foi mesmo um golpe de
sorte que me fez encontrar inspirações suficientes para continuar apostando no que
acreditava ser um fenômeno inteiramente novo, mesmo para grande parte dos que o
praticavam. Tive poucos aliados na academia, na época. Hoje, existe mais de uma
centena de trabalhos de graduação, mestrado e doutorado sobre o caso argentino, na
América Latina e em outras partes do mundo. O que atualmente acontece no Brasil, de
certa forma, é produto de uma entrevista que fiz com o professor Paul Singer, em 1998,
procurando subsídios para continuar minha pesquisa. Ele não os tinha, então, mas
escutou atenciosamente minhas observações sobre o movimento emergente e, a partir
delas, escreveu um pequeno artigo sobre o tema para a revista Trueque[4], colocando a
possibilidade de que essas neoformações pudessem vir a integrar a nascente Economia
Solidária…
Paul Singer: Não me lembrava desse artigo, mas parece que passou tanto tempo que é
difícil relacioná-lo com tudo o que ocorreu em pouco mais de uma década. Lembro-me,
sim, que um assistente meu, o André Ricardo de Souza, hoje doutor, tinha iniciado um
projeto para implantar um sistema canadense…
HP: Eram os pioneiros LET’S, de Michael Linton, que estão presentes neste livro, no
Capítulo 6, entre as moedas que favorecem a criação de trabalho. Na verdade, o
primeiro clube de trocas inspirado no modelo argentino nasceu em São Paulo, em
agosto de 1998, e ainda existe, com a sua moeda social denominada bônus. Dois anos
depois, os organizadores do Banco Palmas, ainda em seus primórdios, tomaram contato
com esse modelo e o acrescentaram às demais estratégias de microfinanças e à
promoção de empreendimentos.
Como acreditamos que ela deva estar em crescimento permanente, optamos por incluir
muitas referências na Internet e construir um site em que informações atualizadas
poderão ser encontradas, compensando o hiato que existe entre o livro em papel, objeto
insubstituível, mas sempre anacrônico, e a realidade que às vezes se transforma
vertiginosamente.
PS: Parece-me uma excelente iniciativa. Li o livro O Futuro do dinheiro há vários anos,
li também seu capítulo sobre o Brasil, que achei muito bom, e estou terminando de ler o
recentemente publicado Informe ao Clube de Roma, escrito por Lietaer em colaboração
com outros colegas e que tem o título “Dinheiro e sustentabilidade. O elo perdido”[5].
Considero que toda a obra de Bernard Lietaer é extremamente iluminadora em questões
que sempre foram tratadas de maneira convencional, com pouca ou nenhuma novidade,
pela Economia e mesmo pela Sociologia. O tamanho e a complexidade da crise que
vivemos hoje requerem – necessariamente – novos tratamentos políticos, mas também
teóricos, para encontrar saídas. Daí sua importância.
HP: A propósito de Silvio Gesell, poucos sabem no Brasil que ele migrou da Alemanha
para a Argentina no começo do século passado e que foi lá que fez as observações sobre
o funcionamento da economia que deram origem a uma obra monumental[6] em que
propõe essa idéia de “demurrage” ou “oxidação” do dinheiro que ficasse parado. As
moedas complementares podem ser produzidas pelo estado (por governos municipais ou
estaduais), por empresas ou grupos de empresas ou pelos próprios usuários, em sistemas
de autogestão. A essas últimas, denominamos moedas sociais, para diferenciá-las de
outras produzidas pelo estado para fins emergenciais, como foram os bônus da
Argentina, ou mesmo por empresas privadas para concentrar e manter sua clientela,
como são os vales-refeição e as milhas aéreas que permitem viajar ou fazer compras em
empresas associadas. Muitas moedas sociais usam ainda hoje esse mecanismo de juro
negativo, que consiste em pagar periodicamente uma pequena importância para manter
válida a moeda, como é o caso, em particular, das moedas regionais na Alemanha[7] e
de algumas moedas de comunidades em transição, como o Brixton Pound e o Stroud
Pound, da Inglaterra.[8] Na Argentina, poucos grupos o fizeram porque a necessidade
de liquidez era tão grande que ninguém pensava em guardá-las, mas, sim, em usá-las o
mais rápido possível para satisfazer às necessidades imediatas.
PS: A propósito, o caso das moedas sociais na crise da Argentina tem uma imensa
importância histórica. É preciso vê-lo, na virada do século, no contexto de uma crise
fortíssima, devida ao mal chamado “ajuste estrutural” imposto pelo FMI e pelo Banco
Mundial. Essa crise deveria servir como um “trailer” para governos como os da Grécia,
da Irlanda, de Portugal e da Espanha: os países se endividam por estímulo de quem
empresta, e a cobrança é usada como chantagem, levando os países a se autoarruinarem.
A Argentina foi uma clara precursora do que está acontecendo hoje na Europa. Por
outro lado, vê-se também como uma iniciativa da sociedade civil, que nem pretendeu
ser revolucionária, mas simplesmente quis diminuir o impacto da crise de desemprego,
multiplicou-se exponencialmente e transformou-se em boia de salvamento para boa
parte da população empobrecida.
HP: Nos fins da década de 90, com a política monetária de convertibilidade do peso
argentino em dólar americano, coincidente com o auge das moedas provinciais (oficiais)
e dos clubes de troca organizados em grandes redes regionais, um professor inglês
tomou uma foto no interior do país onde uma loja exibia – quase com orgulho – um
cartaz que dizia: “Aceitamos pesos, dólares, bônus provinciais e créditos (dos clubes de
troca organizados)”! Esse fato foi resgatado em sua obra[9] e a foto está disponível.
Outro aspecto inovador da obra de Lietaer, mais desenvolvido em outro livro[10] ainda
não traduzido nem ao português nem ao castelhano, é a interpretação do significado do
dinheiro nas diferentes culturas, o que traz consigo maior ou menor facilidade de
mudanças radicais nos sistemas monetários. Apelando à teoria dos arquétipos do
inconsciente coletivo de Carl Gustav Jung, o autor relaciona a resistência à mudança ao
medo da escassez, mais forte em umas culturas do que em outras. Uma síntese dessa
abordagem pode ser encontrada na entrevista com Lietaer citada na nota 3: a vocação
humana pela cobiça e pela avareza é uma conduta irracional que provém da repressão
dos arquétipos do inconsciente coletivo, em particular da Grande Mãe (a Pachamama
andina) e também da Amante, a Iemanjá da tradição afro-brasileira. O interesse desses
argumentos é precisamente compreender por que não mudamos radicalmente
comportamentos que “sabemos” que nos estão levando ao abismo, para conceber
estratégias de mudança mais eficientes e de curto prazo. É o que temos trabalhado
nesses últimos anos. A chamada “ciência” econômica trata de números e esquece que é
uma ciência humana, porque se relaciona ao comportamento individual e coletivo de
seres humanos, que têm emoções, sentimentos, e sem-razões, tendências coletivas do
grupo de pertencimento, por isso diferentes culturas têm tratamento tão diferente do
dinheiro, do bem privado e do bem comum.
PS: Concordo inteiramente com você. A tendência da Economia que é ensinada hoje, e
que a meu ver é totalmente ideológica mesmo que pretenda ser a visão “científica” do
mundo, é que ela parte do pressuposto não discutido de que o ser humano é racional e
egoísta. Todos somos racionais e infinitamente egoístas: isso é um pressuposto não
discutido na Economia. Obviamente não é verdadeiro como generalização. Isso
simplifica a tal ponto a análise teórica do comportamento humano que, de acordo com
essa visão, o que você faz com o dinheiro? Pois faz o máximo para multiplicar o seu
dinheiro. Se você não é rica, quer ficar; se é rica, quer ser milionária; se é milionária,
quer ser bilionária… Usa seu computador para cálculos de probabilidades para
multiplicar seu dinheiro e começa a não gastar esse dinheiro para que ele se multiplique.
Investe em ações na Bolsa para aumentar esse número ao infinito, sem limites. Por isso,
essa conduta multiplicada milhões de vezes paralisa uma parte importante do dinheiro
que fica “jogando” para produzir mais dinheiro e nunca se usa para a economia de
produtos e serviços necessários ao funcionamento do conjunto da sociedade. Todos nós
sabemos que isso tem efeitos extremamente negativos para todas as pessoas, mesmo que
às vezes isso não seja percebido assim. A típica crise capitalista pode ser explicada
como um momento de pavor da camada mais rica das sociedades, que monopoliza
grande parte do dinheiro de todos. A classe dominante sente-se insegura e retém uma
proporção importante do dinheiro. Por isso é importante a contribuição de Silvio Gesell,
que propõe que quem retenha o dinheiro pague, em vez de ganhar mais dinheiro. A meu
ver, essa idéia continua válida, mas a mudança não será rápida porque os possuidores do
dinheiro têm muita força política.
Daí que a saída de diversificar – pluralizar as moedas que propõe Lietaer – seja
brilhante: cada grupo inventa a moeda que precisa para seu próprio uso, e com isso
escapa em certa medida da crise. O atual governo brasileiro compreendeu isso assim e
apóia essa criação monetária, que surpreende o próprio Bernard Lietaer.
HP: Nesse sentido, um caso paradigmático é o que se dá em Campo Limpo, na zona sul
de São Paulo, onde estão funcionando duas moedas (sociais) locais: a Sampaio[11] e a
Solano[12]; a primeira, em um banco comunitário, e a segunda, num circuito cultural
paralelo. São familiares, mas não se confundem, e ainda não se colocou a necessidade
/possibilidade de unificação delas, mas, sim, a manutenção da diversidade. É também o
caso dos coletivos Fora do Eixo (FDE), que desde 2005 vêm crescendo e construindo
um novo eixo que agora os inclui e atravessa as fronteiras do Brasil e da América
Latina. Acabam de lançar uma Universidade Livre FDE e dispõem de seu próprio banco
FDE, articulado por coletivos de vida comum, com casas em vários pontos do
país.[13]
Vivemos um momento muito rico, em que estão vindo à tona iniciativas de pequeno
porte, mas de grande poder transformador, que fazem as diferentes iniciativas
começarem a se perceber como complementares umas das outras. Pois são; nenhuma é
superior à outra, todas são necessárias, e quantas mais conhecermos, mais
possibilidades de transformação social – que precisamos.
Paul Singer: Se não me engano, Tião Rocha é aquele que ensina embaixo da árvore…?
Gostaria muito que ele viesse nos contar sobre essas conquistas que fez num lugar dos
mais pobres do Brasil, lá no Jequitinhonha, certo? Também para contar a ele que na
Rio+20 aconteceram coisas muito interessantes, como foi a Cúpula dos Povos, que
ainda está sendo minimizada. Então é isso mesmo, assim estamos vivendo hoje, com
o rei do Butão fazendo o trabalho que as ciências sociais não foram capazes de
fazer… Com meus companheiros do Banco Palmas inventando coisas que nem na
Universidade nem no governo eu fui capaz de criar.
Por isso é que estamos olhando, além dos outros campos que já estão ocupados e bem
povoados, para os movimentos de restauração das florestas, de permacultura integral em
zonas rurais e urbanas, as diferentes iniciativas de desenvolvimento de pequena escala
recuperadas como construção de cidadania. E também estamos acompanhando os
“indignados”, uma vez que se acalmem… Na verdade, a origem dos indignados não está
centrada na ira, como se pensa em geral, mas na recuperação da dignidade. Cheguei a
essa compreensão há pouco tempo, em março de 2012, quando fui convidada pela
Universidade de Liverpool para o Diálogo Norte Sul sobre Economia Solidária[22],
para expor sobre o estado da arte das moedas sociais e complementares na América
Latina. Na verdade, o pensamento de Bernard Lietaer sempre esteve voltado para o
desenvolvimento local, daí a sua referência permanente a moedas locais ou
comunitárias, por isso entendemos que uma das estratégias dessas comunidades é a
criação de uma moeda local.
HP: Sou otimista. Acredito nos jovens. E nas tecnologias como força libertadora, em
particular, na potência da internet como espaço de democratização. Darcy Ribeiro, que
foi meu orientador de mestrado há muitos anos, previu essas duas condições. Disse que
estávamos condenados à democracia pela difusão da informação, principalmente
graças à internet. E até chegou a cobrar dos jovens a indignação! Ou seja, hoje não falta
nada. Só saber olhar. E acompanhar.
PS: Eu também acredito nos jovens. Não tínhamos falado sobre isso, mas minha
esperança são os jovens. São menos preconceituosos, têm menos heranças para carregar,
menos dogmas para defender, são mais livres e corajosos para experimentar.
[3] http://www.yesmagazine.org/issues/money-print-your-own/beyond-greed-and-
scarcity
[4] Singer, P. Clubes de troca y economía solidaria (1998). Revista Trueque, Buenos
Aires: www.redlases.org/biblioteca. Ver aqui na página: Efemérides 1998.
[6] www.silvio-gesell.de/html/el_orden_economico_natural.html
[8] http://www..transitionnetwork.org
[9] Peter North, 2007. Money and Liberation. The Micropolitics of Alternative Currency
Movements, Minneapolis/London, University of Minnesota Press.
[10] http://www.tauschnetz.ch/Bibliothek/mysteriumgeld.pdf
[11] http://www.bancocomunitariosampaio.blogspot.com
[12] http://www.agenciasolanotrindade.wordpress.com
[13] http://www.foradoeixo.org.br
[14] http://www.felicidadeinternabruta.blogspot.com
[15] http://www.produitinterieurdoux.org
[16] www.cpcd.org.br.
[17] http://lalineadehorizonte.blogspot.com.ar.
[18] http://www.decrecimiento.info
[19] http://www.livelihoods.eu/senegal-restoration-of-mangrove.html.
[20] www.transitiontowns.org
[21] http://www.desazkundea.org/ II Encuentro Decrecimiento y Transición, Octubre
2012
[22] http://www.solidarityeconomynorthandsouth.blogspot.com