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Nana Simons

1º Edição – 2018

Copyright © 2018 Nana Simons


Todos os direitos reservados.

Revisão: Hellen Caroline


Capa: Mia Klein
DEDICATÓRIA
Para a Mel,
Para todas as Dani’s,
Para todos os esclerosados;
Que esse livro dê voz a quem não pode falar.
NOTA DA AUTORA
Juro que vai chegar um momento do livro que você ter lido isso será
fundamental.
Geralmente quando tem essa "Nota da Autora" nos livros, eu adoro. E
SEMPRE choro. Cara, eu juro que não importa o que está escrito, eu
choro. Porque isso quer dizer que algo que a autora ou o autor vai dizer no
começo, tornará o livro ainda mais especial e eu me sinto tão próxima
deles, então ao invés de colocar essa pequena grande nota no final, decidi
colocar bem aqui. Para que essa fosse a primeira coisa que você pudesse
ler. Calma leitor, juro que linha após linha vai passar rápido e quando você
perceber, já estará no prólogo. E o mais importante, quando a página certa
chegar, essa nota fará tanto sentido quanto todas as outras linhas do livro.
Eu tenho vinte e um anos agora. Eu tinha vinte anos quando comecei e
terminei esse livro. Eu tinha vinte quando descobri uma deficiência no meu
olho direito. Tinha menos de quinze quando precisei usar meu primeiro
óculos, porque a miopia me pegou de jeito. No começo nós pensamos "Ok,
vamos fazer o óculos. Ela vai enxergar e vai ficar tudo bem". Mas eu
não gostava do óculos. Quer dizer, a maioria dos adolescentes não gosta,
certo? Eu não era diferente. Então eu não usei. O óculos "parou
de funcionar". Eu precisei voltar no oculista e o médico me disse "Seu grau
aumentou, se você não usar o óculos constantemente, ficará cega do olho
direito e depois do esquerdo." Eu tinha o que? Uns dezessete quando ouvi
isso? Quem é que leva os médicos a sério quando tem dezessete?
Do Capítulo trinta em diante desse livro, foi tão difícil escrever. Porque
haviam dias que eu simplesmente não podia abrir meus olhos na luz que a dor
era quase insuportável. Então eu voltei no médico. Três oftalmologistas
depois e alguns exames, eu finalmente tinha minha receita do novo óculos.
Mas tinha uma notícia com ela também. Meu olho direito não tem mais grau,
nasci com algum tipo de cicatriz, que faz com que minha visão com o tempo,
vá piorando. Não tem nenhuma cirurgia, nenhuma lente, nenhum óculos que
possa corrigi-lo e fazer com que eu possa ver nitidamente com ele outra vez.
Algumas pessoas nascem com cicatrizes e outras adquirem ao longo da vida.
Eu descobri por uma médica meio japonesa e muito gentil, que preciso cuidar
do olho esquerdo, porque o direito, hoje, é um mistério. Eu não sei o que vai
acontecer a partir daqui. Se daqui a dois, cinco ou dez anos vou perder
totalmente a visão do olho direito, ou se isso é apenas uma pequena
dificuldade, que vou ver embaçado com ele como hoje, para sempre. Eu não
sei se esse é um problema que talvez um dia, afetará ambos os meus olhos.
Quem me acompanha a algum tempo, sabe que no final dos livros, sempre há
lágrimas e recebo mensagens dizendo o quanto a história de alguma forma
ajudou. Enquanto escrevo essa nota, eu penso em todas as pessoas que
perderam algo, ou que se sentem incompletas de alguma forma. Eu ainda
vejo. Eu ainda sinto. Eu ainda sou eu. Só que um pouquinho mais especial.
Você não precisa se sentir sozinho quando algo acontecer. Passe por cima da
dor, se torne amiga dela e faça com que ela fique quieta do seu lado, então
continue vivendo.
Eu sei que terão dias onde escrever será uma tortura, porque a dor física vai
me ganhar. Mas se eu parar, o que isso faz de mim? Eu nunca fui alguém que
desiste fácil. E desde o meu primeiro livro, eu costumo pedir que meus
leitores se segurem em algo e fiquem firmes. Estou dizendo isso para mim
mesma agora, mesmo que às vezes morro de medo do futuro.
Eu continuo escrevendo.
Eu espero que com essa leitura, você encontre algo para se segurar também.
NOTA DA MEL DUARTE
(@odiariodeumaesclero)

Fui diagnosticada com Esclerose Múltipla aos 28 anos e quase de imediato


percebi que a vida estava me dando uma segunda chance. De ser mais feliz,
mais agradecida, mais calma. De viver com mais amor.
Depois do meu diagnóstico, pessoas e coisas incríveis acontecerem na minha
vida. E a Nana Simons foi uma delas. Nosso encontro foi obra da vida e, por
mais que em pouco tempo eu tenha percebido que me faria bem ajudá-la a
construir a Dani, eu não imaginava que a ajuda maior seria para mim.
Foi muito intenso e emocionante reviver momentos da minha vida antes e
depois da Esclerose para ajudar a construir os momentos difíceis da Dani.
Relembrar das dificuldades, especialmente nos meses do surto, pesquisar
aspectos que eu ainda não conhecia, encontrar um jeito de explicar tudo que
sentia e senti para ser descrito no livro... foi incrível!
E estou muitíssimo feliz por ter passado por todo esse processo e ter ainda
mais certeza que só tenho motivos para agradecer.
Por tudo. Por todos. Por mim. Pela Nana. Pela Dani.
Vai, Dani! Leve conhecimento, gere empatia, mostre amor, quebre tabus e
mostre para esse povo que JUNTOS SOMOS MAIS FORTES!
Prólogo
5 ANOS ANTES
Brasil, Minas Gerais

“...quando eu estiver pronta para ser corajosa e meus cortes curados com o tempo
O conforto irá descansar em meus ombros e vou enterrar meu futuro para trás
Eu sempre irei guardar comigo
Sempre estará em minha mente
Mas há um brilho nas sombras
Eu nunca saberei se não tenta”
gabrielle aplin, home

— Vamos, Dani! Elevação, pulo, braço e sequência de pulos no ar.


Eu girei em volta dela, fugindo da lição, e ela revirou os olhos,
sorrindo para mim.
— Pulo e... — Me abaixei, equilibrando-me na ponta da sapatilha no
pé direito, os dois braços abertos e a perna esquerda esticada para frente,
caindo em seguida com graciosidade.
— Brinque, dona Danielle — repreendeu. — Continue brincando.
— Senhora Reis, eu estou pronta. Tenho estado desde meus três anos
de idade. Serei a próxima bailarina a sair daqui para uma grande companhia
de dança e... não vou esquecer quem me ensinou tudo o que sei.
Ele apontou a caneta para mim.
— Tudo o que te ensinei a usar — retifica —, porque o dom nasceu
com você. Agora vamos ao trabalho. Você está pronta para dançar, sim, mas
preparação nunca é demais e nós ainda temos duas horas.
— Certo.
Deixei a brincadeira de lado e passei a mão pela minha testa. O suor
escorria das minhas têmporas até o pescoço. Minhas costas estavam
encharcadas.
— Longe das barras. Vá para a direita, no centro da sala.
Eu fiz como ela disse e esperei até que as primeiras notas de Vois Sur
Ton Chemin, de Bruno Coulais, soassem.
O violoncelo se fez presente e eu comecei com pequenos passos,
unindo as pernas.
Pulo e junta. Pulo e junta. Frente. Separa, pulo e junta. Batterie.
1, 2, 3. 1, 2, 3. 1, 2, 3.
Os passos eram cantados em minha mente com total calma e
preparação. Havia treinado e aprendido durante anos, para ser a melhor. Eu
não errava. E quando a música começava a tocar, era apenas como se eu
tivesse saído da barriga da minha mãe dançando.
Continuei girando e encenando com meus braços o que deveria
passar a quem estava assistindo. Meus olhos fechados, cabeça focada nas
milhares de vezes que ensaiei aquela coreografia, e meus ouvidos sensíveis a
cada acorde.
Aquilo durou os cinco minutos da música.
A abertura.
O meio.
E o fim.
Ali era onde começava.
Eu fui bem em cada uma das execuções, mas se falhasse naquele
final, começaria tudo outra vez para garantir a mim mesma que, quando a
hora chegasse, eu seria perfeita.
As últimas notas chegaram, a música foi ficando mais baixa, os
instrumentos mais lentos e o último verso ecoou.
— Arabesque. — A voz da senhora Reis soprou em meu ouvido e eu
fiz um giro perfeito, meu pé cravando no chão. — Pulo e allongé. Braços no
ar. Arabesque dois. Arabesque três.
Desci a perna, levantei e me inclinei até que meu corpo ficou
completamente equilibrado no ar em minha perna direita.
— Arabesque croisée.
Meu sorriso cresceu no rosto ao pegar meu reflexo no espelho e ver
que fiz exatamente como nos ensaios. No ritmo, pontual, e em sincronia com
a música. Em sintonia com meu próprio corpo.
Meu corpo era regido por apenas uma coisa: a música. Ela era o
sangue que bombeava em minhas veias e as sapatilhas como se tivessem
nascido junto comigo. Calcei a primeira com dois anos e comecei a dançar
com três. Eu tinha dezessete e era a melhor na escola onde fazia aula.
Era apenas questão de tempo até que estivesse dançando pelo mundo.
A constatação e a certeza disso foi dada quando a música acabou. A
última tecla do piano foi pressionada e o silêncio preencheu o estúdio.
Por longos minutos, apenas a minha respiração era ouvida.
Finalmente senhora Reis deu seu veredito.
— Perfeito, Danielle. Perfeito.
Eu sabia que era. Eu tinha que ser. Sorri para a senhora Reis e a vi
secando os olhos com seu paninho.
Ela saiu da sala dizendo que ia buscar uma água para mim, então me
sentei no chão. Tirei as sapatilhas e as levei ao peito.
Com uma respiração profunda, abracei meu futuro.

(..........)

No dia seguinte, eu aproveitava o sol na beira da piscina e tomava um


suco natural para tentar repor as energias do dia anterior. Eu estava pegando
tão pesado com os treinos ultimamente, que vivia cansada. Hoje foi um
daqueles dias. Minha segunda audição da vida estava marcada para daqui três
semanas e eu tinha estado trabalhando duro para que tudo desse certo. Que
não falhasse, que não errasse.
E naquele dia acordei já sem vontade de levantar da cama. Não havia
um músculo do meu corpo que não protestasse de dor, mas o sol que invadia
meu quarto pelas janelas era tão quente e gostoso que não resisti.
— Mais suco, Dani? — Regina perguntou, se aproximando com uma
bandeja.
— Você é uma benção na minha vida. — Soprei um beijo em sua
direção e ela fechou a mão como se o pegasse.
— Cuidado com o sol, menina.
Eu pisquei e sorri, a observando voltar para dentro de casa.
Minutos se passaram e resolvi sentar um pouco na sombra, o sol
começava a esquentar demais. Levantei da espreguiçadeira e minha cabeça
girou. Caí sentada novamente. Regina me diria, "eu te avisei", se tivesse
visto. Fiquei tanto tempo debaixo dos raios que nem notei o quão quente
estava.
Esperei alguns segundos antes de tentar outra vez, e fiquei de pé.
Nem vi o que aconteceu. Só me dei conta de que caí na piscina
quando meu corpo molhado voltou à superfície e segurei na borda. Tossi um
pouco e respirei fundo, fechando os olhos com força, tentando fazer aquela
tontura ir embora logo.
Me impulsionei para cima, mas foi como se não tivesse feito, pois
não consegui levantar. A tontura piorou, meus braços começaram a arder.
Uma sensação estranha me tomou. Minhas mãos fraquejaram na borda de
concreto, fazendo-me soltá-lo sem nenhuma força nos braços, que caíram
moles ao lado do corpo. Minha visão turvou.
— Regina... — chamei, mas foi baixo demais, ela não me ouviria. —
Regina! — gritei dessa vez.
Sem me apoiar pelas mãos, tentei nadar para cima na piscina funda, mas não
conseguia, meus pés dormiram no mesmo momento. Afundei até o chão,
minhas pernas moles não obedecendo, não ficando firmes. Eram como
gelatinas de tão bambas. Eu não as sentia e não conseguia controlá-las.
Meus pulmões começaram a arder por ar, então abri a boca, inevitavelmente
engolindo água, e foi nesse momento que o desespero me bateu por
completo.
Sem ar, aos poucos meus olhos começaram a fechar. As bolhas saindo da
minha boca e o sol brilhante acima da água e de mim foram as últimas coisas
que vi antes de tudo escurecer.
Eu havia pensado que seria uma escuridão passageira, mas mal sabia que era
apenas o início dos dias mais sombrios.
Capítulo 1
DIAS ATUAIS
Brasil, Rio de Janeiro

"Coisas acontecem
Pessoas acontecem
A vida acontece
A única solução é se adaptar
Para o bem ou para o mal
O tempo não para
Quem para é você quando cansa de lutar"
nana simons

Deixei a chave pendurada no prego ao lado da porta assim que


cheguei a casa e fui procurar por eles. Eu estava atrasada e consequentemente
a atrasei, também. Chutei os sapatos fora, deixando-os na porta, e prometi a
mim mesma que lembraria de tirá-los dali. Na hora do almoço no trabalho,
encontrei uma nota de vinte reais caída no chão. Peguei e esperei ali mesmo,
vendo se o dono voltava atrás, observando se tinha alguém procurando algo,
mas nada, então enfiei no bolso e levei comigo. Tinha pensado que era uma
onda de sorte, que seriam dias calmos, mas meu pé atolado em fezes ao pisar
na calçada do prédio me mostrou que, como sempre, eu só tinha o azar ao
meu lado.
Encontrei minha melhor amiga segurando-o no colo, o balançando de
um lado para o outro lentamente em nossa pequena sala. Ela estava
perfeitamente maquiada, com seu cabelo escuro e escorrido arrumado,
usando um vestido e saltos. Pronta para seu compromisso da noite.
— Oi. Obrigada, Mali. Obrigada mesmo. — Eu estava ofegante.
Sentia o suor em minha testa.
Ela assentiu, torcendo o nariz em desaprovação.
— Odeio te ver fazendo isso.
Seus olhos claros estavam estreitos. Mesmo com a maquiagem forte e
escura, os olhos já pequenos de japonesa pareciam fechados, me encarando
com desaprovação.
Eu a ignorei, pegando Cody e o levando até nosso quarto, deitando-o
no berço. Os cabelos escuros estavam bagunçados, as bochechas rosas e a
meia que usava estava preta. Dei um olhar a ela por cima do ombro.
— Deixe-me adivinhar. Ele estava brincando até agora.
— Não exatamente agora, mas até uns vinte minutos atrás.
— Se eu o acordar para tomar um banho, ele vai querer brincar mais.
Passei por ela sem encará-la e fechei a porta do quarto. De lá até a
pequena sala, dividida com a cozinha, eram poucos passos, já que nossa casa
não era exatamente uma cobertura na Barra. Longe disso. Peguei a mochila
de super-herói e me sentei no sofá, tirando a agenda dele de dentro para
verificar se tinha algum recado.
O carimbo da professora e a assinatura dela de dias atrás nas páginas
foram a última coisa que vi.
— Ué, não tem nenhum recado hoje?
Mali foi até a cozinha e voltou com um papel, me entregando.
— Aqui.
— O que é?
— Veja.
Franzindo o cenho, li o recado à caneta na folha e me voltei para ela.
— Te entregaram isso quando foi buscá-lo?
— Sim, e a coordenadora ainda fez questão de frisar a palavra
"atraso" para que qualquer um na recepção ouvisse.
— Está brincando?
Ela bufou.
— Pareço estar?
Me recostei, jogando a cabeça para trás e fechando os olhos com
força. Mais essa, agora. A escolinha de Cody estava com dois pagamentos
atrasados, a coordenadora cobrando minha amiga que me fazia o favor de ir
buscá-lo e ainda tinha que passar vergonha no meu lugar, e para piorar... eu
desconfiava que a professora vinha deixando de dar atenção a ele por conta
disso. Como se a culpa pelo atraso fosse da criança.
— Desculpe — pedi e ouvi um suspiro dela como resposta.
— Não é para mim que você tem que pedir desculpa, Dani. É para si
mesma. Você tem vinte e um anos e parece à beira dos quarenta. Está
acabada e trabalhando feito louca para ganhar algo que mal paga sua parte do
aluguel e a comida.
Era verdade. Doía ouvir, mas era a mais pura realidade. Não que eu
tivesse alguma escolha, mas a vida não parava de brincar comigo e eu tinha
mais problemas do que soluções.
— Eu sei. Obrigada por me lembrar de como estou nas nuvens.
— Já cansei de te falar o que pode fazer, mas você continua firme
nessa pose de menina do interior inocente.
— Mari Louise, sei suas opiniões sobre isso, mas a resposta ainda é
não.
Ela revirou os olhos.
— Que seja! Se prefere ficar na miséria do que fazer um esforço para
pelo menos pagar a educação do seu filho, não posso fazer nada.
— Me deitar com qualquer um não é esforço para uma vida melhor,
Mali. É um atalho. Eu prefiro fazer do meu jeito.
— Está dando muito certo.
— Pode não ser o melhor, mas me deixa dormir tranquila à noite.
Eu levantei, deixei a mochila dele de lado e tirei a blusa, já
prendendo o cabelo e indo em direção ao banheiro. Precisava de um banho.
Todos os dias ela vinha com o mesmo discurso, só que contados de formas
diferentes, em outras palavras para não ficar tão maçante.
— Vai me ofender agora, Danielle? O que você faz não é muito
diferente de mim. A diferença é que eu vou até o finalmente da coisa. Mas se
fosse eu, com uma criança pequena e as despesas que você tem, não pensaria
duàs vezes. — Ela suspirou e passou a mão pelos cabelos. — Eu vi que ele
estava sem danone e frutas, então comprei, estão na geladeira.
Parei na metade do caminho para o banheiro e a fitei.
— Mali...
Ela levantou a mão me parando e pegou sua bolsa.
— Não me diga que não precisava. Nunca vou vê-lo sem as coisas e
deixar de comprar.
— Eu ia dizer obrigada.
Minha amiga me deu um sorriso fraco.
— Bem, não tem de quê. Te vejo amanhã.
Esperei que ela saísse e continuei meu caminho para o banheiro.
Fechei a porta e me encostei nela. Meus olhos refletidos no espelho estavam
vermelhos de sono, olheiras profundas, e meu cabelo parecia que não via uma
lavagem há meses. Tão diferente da garota que eu era acostumada a ver anos
atrás. Tirei a roupa e abri o chuveiro. Meu corpo recebeu a água quente com
louvor e meus olhos fecharam, tanto que mais um pouco e eu teria dormido
ali mesmo.
Seria bom sair do banheiro e encontrar uma sala vazia, sem Mali me
dando suas lições de moral invertidas, jogando na minha cara coisas que eu
não aguentava mais ouvir. Eu me sentia uma amiga terrível, às vezes, por
desvalorizar suas opiniões e conselhos, mas em outras também sentia que
nem ela acreditava tanto assim em suas palavras.
Eu a admirava muito, mesmo sabendo a forma como ela conseguia
estar "bem" e na situação boa que estava. Nós tínhamos a mesma idade, mas
o que ela disse não deixava de ser verdade.
Seus cabelos eram bem cuidados, as unhas estavam sempre bem-
feitas. Se ela quisesse ir viajar, tinha dinheiro para isso. E eu... bem, eu tinha
um bebê para cuidar e precisava dormir cedo. Vivia contando o dinheiro para
garantir que teria para o ônibus do dia seguinte até o trabalho, depois voltava
para casa e me preparava para o segundo turno do meu dia. O "trabalho" que
mais me rendia lucros. Limitados, mas já ajudava.
Desliguei a água e me enrolei na toalha, dando graças a Deus ao
contemplar o silêncio que estava a casa. Eu estava morrendo de fome, minha
última refeição havia sido um lanche natural que comi no trabalho e uma bala
que comprei de um garoto que vendia no ônibus por um real, mas o sono
estava me alcançando tão fortemente que só o pensamento de ficar mais
alguns minutos em pé me fazia cambalear.
Voltei ao quarto, dando uma última conferida em Cody, e coloquei
uma camisola. Foi questão de segundos, depois de deitar, e eu já estava
desmaiada.
Minha cabeça que antes encostava no travesseiro tranquila, apenas
pensando no futuro e a maior preocupação era o "look do dia", agora girava
em torno de contas, a falta de dinheiro para solucioná-las, o futuro do meu
bebê e até minha situação no dia seguinte.
As palavras de Mali se faziam presentes mais do que nunca quando
eu deitava depois de um longo dia de trabalho. Os "e se..." e a vontade de
dizer um "sim" às suas ideias eram grandes, mas eu ainda tinha um fio que
me segurava ali, intacta para não fazer nenhuma besteira.
Mas se não fosse o barulho da respiração suave do meu filho, eu
estaria tendo pesadelos outra vez.
Capítulo 2
"...de vez em quando
Eu fico um pouco solitária
Cansada de ouvir o som de minhas lágrimas
De vez em quando eu desmorono
Eu não sei o que fazer e estou sempre no escuro"
bonnie tyler, total eclipse of the heart

O dia poderia ter amanhecido com o meu telefone tocando. Eu


acordaria na hora, cuidaria do Cody e depois iríamos para a escola, mas eu
era uma vítima da vida em todos os sentidos, então é claro que deixei o
celular fora do carregador na noite passada e ele desligou, sem bateria.
Cody foi meu despertador humano, bem mais eficiente que o
aparelho, já que meu filho não podia ser colocado em soneca ou "mais cinco
minutos".
Terminei de vestir a roupinha dele e peguei sua bolsa, então saímos
do quarto.
— Mamãe tem esses pensamentos de colocá-lo no silencioso, mas
você sabe que é brincadeira, não sabe?
Ele resmungou e segurou um pedaço da maçã que cortei. Era um
verdadeiro malabarismo fazer as coisas com ele no colo, mas eu aprendi a
equilibrar ambos.
— Mamã.
— Quer dizer... meio que é um pouquinho verdade nos domingos de
folga. — Pisquei para ele, o que lhe arrancou um sorriso.
Isso não era difícil. Cody era um bebê risonho. Minha gravidez não
foi um sonho de perfeição, eu precisei me virar para pagar minha parte do
aluguel e me alimentar o suficiente para não desmaiar no trabalho. Depois
que cheguei no Rio, vindo de Minas Gerais, tive uma amostra do que era
lidar com a realidade. Minha vida sempre tinha sido fácil, mas foram tempos
difíceis, principalmente quando se é jovem, em uma cidade grande, não sabe
nada e está grávida.
Consegui um emprego na única coisa que não exigia diploma
superior e experiência. Atendente de lanchonete. Uma padaria meio bar que
ficava na Lapa. Consegui esconder a gravidez até o quarto mês de gestação,
mas meu chefe descobriu no dia em que me efetivaria. Outra funcionária, que
assim como eu estava no período de experiência, contou. Só uma ficaria com
a vaga, então é claro que ela garantiu a sua chance, mesmo sabendo que meu
filho tinha a chance de ficar sem comer.
Mas eu não podia julgar. E se ela tivesse dois ou três para sustentar?
Eu sabia que no lugar dela não teria feito aquilo, mas cada um com a sua
cabeça.
Naquele dia, eu já me via sem rumo. Devolvi o avental e fui para o
ponto de ônibus, chorando desesperadamente. Estava lá esperando a
condução quando alguém se aproximou. Levei um susto tão grande que
pensei que era assalto, mas era só uma moça querendo falar comigo.
Eu podia ser chamada de louca e inconsequente, mas naquela noite
conheci Mali. Ela me ofereceu um teto, já que sua companheira de quarto
tinha se mudado, e me indicou para uma vaga de emprego. Quando perguntei
o motivo de ela fazer aquilo sem nem me conhecer, sua resposta foi:
— Vi o que aquele bundão fez com você. E se tenho uma cama
barata e uma chance de emprego, por que não te ajudar?
Eu me contentaria com qualquer coisa que me fosse oferecido, mas
fui às alturas quando o endereço indicado me deixou em frente ao Teatro
Municipal do Rio. Só podia ser um sonho ou Mali era minha fada madrinha.
Acabou que a mulher que me entrevistou ficou sensibilizada com a
minha história. A menina do interior que veio para a cidade grande atrás de
uma vida de sucesso etc...
Isso era o que ela pensava.
Se esse fosse o meu motivo de ter saído de Minas, eu dormiria
aliviada todas as noites.
A vaga era de faxineira e eu já morria de dores só de pensar na
dureza que seria. Mali me aconselhou a não contar da gravidez, para esperar
até que eu fosse admitida e registrada, mas não podia fazer isso. Contei que
estava de quatro meses, porém, tinha garra e vontade de trabalhar, então a
mulher, provavelmente com dó de mim, me ofereceu uma vaga como
recepcionista.
— Se você me prometer sorrir e receber todos bem mesmo nos seus
piores dias, ser rápida com o computador e telefone, e ainda comprometida, o
emprego é seu.
Foram suas palavras e eu nunca dei um abraço tão apertado em
alguém como dei nela. Me desculpei logo depois, entre as lágrimas que me
escapavam, mas a emoção e o alívio eram tão grandes que ela quase chorou
junto comigo.
Raiana era o nome dela. Às vezes eu a via pelo teatro e
constantemente ela me chamava para sair. Tinha uma filha que adorava
brincar com Cody. Esses eram os momentos que podíamos nos ver.
Quando perguntei a Mali de onde a conhecia, ela mudou de assunto,
me distraindo ao falar sobre como faríamos na casa, mas depois, com o
passar do tempo e conforme fomos nos tornando amigas, ela me contou de
seu emprego e que foi lá que conheceu Raiana.
Eu jamais imaginaria que Rai fizesse aquilo. Não que eu tivesse algo
contra, mas ela sempre foi tão séria, na dela. Era muito divertida, sim, mas eu
só... não esperava que ela tivesse uma segunda vida, assim como Mali. Mas
até aí... quando eu poderia esperar que entraria nessa também?
Claro que eu não fui tão fundo quanto elas. Não queria nem colocar
os pés na boate, mas juntando as despesas da casa, minhas próprias infelizes
despesas, a escolinha de Cody, babá nàs vezes em que eu precisava pegar
turnos de hora extra a fim de garantir um dinheiro a mais, e os meus remédios
que eram caros... um salário como recepcionista não dava conta.
Demorei três meses para aceitar ir até a boate e conhecer. Mali e
Raiana estavam ao meu lado, me garantindo que eu faria apenas o que
quisesse, sem pressão. Fui apenas quando o desespero bateu, no momento em
que mais um remédio entrou em minha lista de gastos e a escola de Cody,
mesmo que fosse a mais barata que consegui, aumentou a mensalidade.
No começo eu ia dançar com uma máscara, duàs vezes por semana.
Me recusava a tirar a máscara e a calcinha. Depois vi que quando eu ficava
totalmente sem roupa, as notas no palco eram maiores. Só que meu rosto não
havia dinheiro que me faria mostrar ali dentro. Isso evoluiu para três noites,
quatro, e com o tempo me vi indo todos os dias, menos sábado e domingo.
Eu tinha vinte e dois anos, uma jornada dupla de trabalho entre crises,
Cody, e os tropeços da vida.
Eu tinha vinte e dois anos e estava lidando com tantas coisas, que
ainda não sabia como não havia pirado naquela época. Meu filho foi o
alicerce de tudo. Era quem me mantinha de pé e me dava forças para respirar
todos os dias. Graças a ele eu ainda insistia.

(..........)

Depois de deixar Cody na escola, corri para pegar o ônibus até o


metrô e de lá segui até o teatro. Era uma distância de uma hora até lá. Graças
a Deus que na maioria dos dias o metrô não dava problema, e eu só precisava
de um ônibus.
Quando cheguei, correndo como sempre para bater o cartão a tempo,
Larissa, a menina que dividia o turno comigo, já me esperava. Parecia ansiosa
e quando entrei atrás do balcão, entendi o porquê ao vê-la segurando o meio
das pernas.
— Bom dia — falou enquanto já corria para fora. — Preciso ir ao
banheiro.
Eu nem respondi, porque ela não teria ouvido, já estava longe.
Guardei minha bolsa no armarinho e liguei o computador. Os
funcionários ainda estavam chegando. "Bom dia" sendo distribuído para
todos os cantos. Era quinta-feira, então estavam todos animados, pois sexta-
feira estava a um pulo de distância. Pelo menos na administração, já que o
pessoal dos cargos artísticos e a recepção trabalhavam normalmente.
Larissa, eu e as outras meninas que faziam o horário da noite,
revezávamos o sábado. Haviam finais de semana em que tínhamos que ir
todas, o que acontecia quando grandes concertos estavam para acontecer, por
exemplo.
O último musical, mais de um mês atrás, tinha causado o alvoroço
familiar de quando pessoas famosas iam se apresentar lá. Ninguém menos
que João Carlos Martins. Eu já tinha o visto antes, quando ele se apresentou e
o Teatro foi dominado por turmas de escolas e faculdades. Passeios e pessoas
que estavam ali para pesquisar sobre ele e fazer algum trabalho, e também
aqueles que amavam música, por natureza.
Confesso que só o "oi" do cara já me desmontou. Pelo amor de
Deus... ele era uma lenda.
Durante toda a semana, sempre aconteciam apresentações, e embora
eu morresse de vontade de trabalhar no turno da noite para ficar e ver os
concertos, tinha meu segundo trabalho e meu filho para cuidar, e nada era
mais importante que ele.
Meus horários de almoço geralmente eram usados para ver o pessoal
ensaiando quando estavam no Teatro. Era renovador poder observar aquelas
pessoas dançando, cantando e encenando. Eles viviam para aquilo, assim
como eu fazia antes de tudo acontecer.
— Menina... — Larissa falou, voltando para nosso posto de trabalho.
— As coisas estão agitadas por aqui.
— Eu estou vendo. O que aconteceu?
— O pessoal daquela companhia chique de dança está vindo para
conhecer as instalações.
Eu parei tudo o que estava fazendo para encará-la.
— Mentira que é hoje?
— Sério — resmungou, comendo uma barra de cereal escondida.
— Larissa, não brinca com o meu coração desse jeito!
Ela revirou os olhos.
— Olha no calendário, Dani. Você às vezes fica perdida no tempo.
Fiz o que ela disse, quase caindo para trás ao ver que a apresentação
da Connely Dance Academy of Paris estava mais próxima do que eu me
lembrava. Tipo como um pulo, um sopro, um espirro de distância.
Larissa balançou a cabeça, rindo ao meu lado.
— Você é doidinha da Silva com essa coisa de dança, não é?
Ela nem imaginava o quanto.
— Imagine que Picasso está entrando por aquela porta. Vai saber
como me sinto.
Ela arregalou os olhos.
— Oh, meu Deus! É tão importante assim?
Eu engoli em seco e voltei a olhar as anotações que fiz no calendário.
A Connely estava entre as melhores companhias e escolas de dança de ballet
do mundo, entre Juilliard School, American Ballet Theatre, Bolshoi Ballet
Academy e tantas outras que em meu mundo atual, eu só poderia observar
pela internet e sonhar. Mas agora eles estariam aqui, apenas a alguns passos
de mim, e parecia tão inalcançável mesmo assim.
— Merda, Dani. Se eu soubesse que era uma coisa tão grande para
você, tinha te lembrado ontem ou mandado uma mensagem — lamentou-se
ela. — Mas é que você estava meio que contando os dias, não achei que fosse
esquecer.
— Eu sei, também não pensei. Acontece que as coisas ficaram
complicadas com Cody e a escola dele. —Dei de ombros, me lembrando
onde estava, que era a vida real, cheia de problemas e contas pra pagar,
forçando um sorriso. — Mas está tudo bem, só fiquei meio baqueada. Não ia
fazer diferença se eu lembrasse, de qualquer jeito.
— Eu entendo. Você só fez uma referência a Picasso, mas já estou
sentindo como se o próprio fosse entrar por aquelas portas a qualquer
momento, mesmo que seja impossível.
Eu forcei um sorriso. Era importante para ela. Larissa estudava história à
distância por falta de tempo, e à noite cursava artes plásticas no modo
presencial. Sua intenção inicial era um estágio em algum museu, mas o
Teatro foi o mais perto que conseguiu de estar em contato com a arte.
— É, amiga... estamos sonhando demais, acordadas — brinquei.
— Melhor isso do que a vida real, na qual meus vizinhos me acordam
duas horas antes do que eu preciso para vir trabalhar. Acredita que fizeram
festa ontem até às três e hoje o som estava alto às sete? Eu só levanto oito e
meia!
— Pelo menos nessa parte tenho tranquilidade. Meus vizinhos mais
próximos precisam trabalhar para ganhar a vida, também.
Ela abriu um saco de balas e escondeu atrás do pote de canetas.
— Menina, não consigo parar de comer.
— Eu estou vendo. — Dei risada. — E é só doce, né?
Ela mostrou a língua.
— E Cody, como está?
— Bem. Cada dia aprende mais.
Só de falar nele eu já tinha um sorriso no rosto.
Aquele horário, bem cedinho, às vezes era tranquilo, então tínhamos
um tempinho livre para conversar antes que o telefone começasse a tocar com
várias ligações.
— Saudade dele. Vamos marcar de levá-lo no parque quando minha
afilhada for lá pra casa.
— Claro. Ele vai adorar.
Letícia tinha três anos, era mais velha que ele, mas meu filho era o
tipo de criança que se adaptava com qualquer pessoa e em todo lugar. Tudo
em sua mão virava brinquedo e ele não poupava sorrisos.
Olhei no relógio, vendo que ainda tinha um dia inteiro pela frente, e
aquela velha melancolia me bateu. Cody ainda faria dois anos, estava
passando pela fase que mais aprendia as coisas e eu perdia a maioria delas.
Precisava trabalhar para nos manter, mas era difícil saber que haviam
momentos com ele que eu nunca teria de volta.
Como a primeira vez que ele andou e falou. Eu tinha perdido isso.
Cody foi para a escolinha com apenas 6 meses. Minha licença durou cinco,
porque de alguma forma Raiana conseguiu esticar um mês a mais para mim.
Por conta da minha saúde, o pós gravidez foi difícil e esse mês a mais ajudou
para eu me recuperar quase completamente. Depois, ele ficou um mês com
uma babá enquanto eu trabalhava, até que consegui colocá-lo na escola
definitivamente.
Suspirando, voltei ao trabalho e logo o telefone começou a tocar de
verdade. As pessoas iam entrando e saindo, nós respondíamos e-mails e toda
a rotina do dia a dia.
Quando chegou a hora de almoço, dei uma passada em uma das salas
de ensaio, mas estava vazia, ninguém a havia ocupado no dia. Voltei à copa e
comi lá mesmo. Queria dar uma volta pela rua, pegar um ar e ver as pessoas,
mas como não tinha dinheiro para comer fora, levei marmita. Depois de
comer nem dava tempo.
No máximo, consegui dar uma volta lá dentro.

(..........)

Voltei após quarenta minutos, porque tinha me atrasado no dia


anterior. Assim que me viu, Larissa olhou na bina e uniu as mãos em frente
ao peito.
— Dani, atende essa para mim, por favor?
— Quem é?
— Não sei, mas eu estou tentando passar a ligação dele faz tempo e
toda hora cai. Acho que o pessoal lá embaixo está desligando.
— Que linda você, né? Aí eu atendo pra levar gritos?
— Juro que faço o que você quiser! — prometeu. — Olho o Cody
para você ir a um encontro.
Eu bufei uma risada e peguei o telefone.
— Vou morrer esperando esse dia.
Eu nem lembrava mais o que era ter encontros.
— Teatro Municipal, boa tarde.
— Minha secretária já ligou quatro vezes e vocês estão desligando.
Será que comigo vai passar ou vai me deixar esperando, também?
Eu estreitei os olhos mesmo que não pudesse vê-lo. A pessoa não
falou nem "boa tarde".
— Senhor, deve haver algum problema nos telefones da
administração. Quer deixar seu nu...
— Eu não quero falar com administração. Me passe para Carlos
Domingues, o diretor artístico.
— Não acho que será possível, pois ele...
Ele bufou, como se estivesse muito irritado.
— Ele não estará ocupado para esse assunto. Diga que é James.
Eu tinha ordens para não passar nenhuma ligação ao Carlos sem antes
ele passar na recepção e nos autorizar. Tampei o bocal e fitei Lari, que
mordia os lábios, me encarando.
— E aí? — sussurrou.
— Ele está irritado — sussurrei de volta. — Carlos já passou aqui?
Ela balançou a cabeça em negação e eu fechei os olhos, voltando ao
senhor-irritado-James.
— Eu passarei qualquer recado que o senhor tiver, mas é que antes de
transferir qualquer...
— Escute, garota — ele rosnou, me cortando, o sotaque meio
enrolado ficando evidente, porém não consegui descobrir de onde era. Eu
chutaria inglês, ou italiano, mas vai saber —, passe a ligação agora ou eu
garanto que será a última que vai atender nesse lugar.
Meu queixo caiu.
Quem aquele homem pensava que era?
— Escute, senhor — frisei o "senhor" para que ele entendesse que eu
o achava um resmungão sem educação nenhuma. — Eu sou funcionária do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro e não sua, senhor-passe-logo-a-ligação.
Seja mais educado da próxima vez e quem sabe eu deixe o seu recado. Passar
bem!
Desliguei o telefone na cara do sujeito e suspirei.
— O que foi? — Larissa perguntou ao meu lado.
— Nada. Só mais um grosso se achando o dono do mundo.
Ela bufou.
— É o que mais tem — concordou ela. — Por aqui, então, nem se
fala.
Eu fiquei quieta por alguns segundos.
— Ele disse que era James. Você acha que é alguém importante?
Lari deu de ombros, abrindo outra bala.
— Sei lá. Se for, vai ligar depois. Ah... comprei sonho e rosquinhas
de açúcar. Pode pegar na copa, se quiser. Estão no meu potinho amarelo.
— Você ainda não aprendeu que não adianta esconder? Todo mundo
sabe que aquele pote sempre tem ouro dentro — falei, rindo.
Ela revirou os olhos.
— Uns enxeridos. Trouxe só para mim, você, Rai e Guilherme.
— Guilherme só vai comer esses doces no dia de São Nunca.
— Capaz de ele comer revezando entre o doce e uma batata doce
recheada com alface. Ainda vai comer enquanto corre na esteira. — Ela
levantou os braços e fez uma voz grossa. — Foco e força, monstro! Batata
doce! Crossfit, estilo de vida, lema, foco e brócolis!
Eu tampei o rosto, escondendo a risada das pessoas que passavam,
ficando vermelha de tanto rir. Ela piscou e sorriu. Eu não entendi, mas no
mesmo momento, Guilherme surgiu.
— E aí, meninas?
Ela roncou uma risada.
— E aí, garoto da academia?
Eu puxava e soltava o ar, tentando me fazer de surda para a voz dela,
antes que tivesse outra crise de riso.
— Sabe como é, né, gatinha?! Estilo de vida.
Ai, meu Deus!
— É isso aí, cara. Bora malhar!
— Treinar — ele corrigiu, e pelo rosto dela, eu sabia que Lari estava
querendo revirar os olhos.
Ela ficava louca quando ele empacava no balcão e não saía de jeito
nenhum. Nem quando chegava gente e nós queríamos atender, mas ele não
saía da frente.
Só faltava querer falar de whey protein com as pessoas.
— Isso, treinar. — Ela sorriu, forçado até demais, cerrando os olhos e
mostrando quase todos os dentes da boca.
Um cara loiro e alto, lindo de morrer, que também trabalhava ali, saiu
do elevador e acenou para nós.
— Boa tarde, meninas.
— Boa — Larissa respondeu, enrolando uma mexa do cabelo no
dedo.
Se ele reparou, não demonstrou.
— Boa tarde — respondi, tentando realmente focar no e-mail que
tinha acabado de chegar.
— Vou indo, cara. Você vem?
Guilherme desencostou e acenou para nós.
— Vou indo, meninas. Até amanhã.
— Até. Vai correndo — Lari brincou. Quando eles passaram pelas
portas, ela se virou para mim e soltou: — Porra... santo loiro. Além de gato,
ainda faz aquela pose de "não te dou moral" e mais... afastou o encosto.
— Para com isso. O Guilherme é legal.
— Nos primeiros dois dias. Porque quando começa a falar de
academia... Nossa! Não tem santo que aguente!
Franzi a testa.
— Eu sei. É uma benção quando o telefone dá um sossego, mas
quando ele para aqui, tudo o que eu quero é que toque com uma ligação atrás
da outra.
Ela riu e pegou um chiclete do bolso, me entregando um também.
— Se ele visse a gente comendo isso, ia palestrar sobre as calorias.
Eu gemi só com o pensamento.
— Santo loiro que o levou embora.

(..........)

Consegui sair no horário certo para chegar na escolinha e pegar


Cody. Aproveitei que foi dia de pagamento e dei adeus a uma boa quantia, já
acertando os atrasos na diretoria e correndo para ver meu filho.
A professora segurava a mão dele e de outro aluno, e sorriu para mim
quando me aproximei.
— Boa noite.
— Boa noite, mamãe! Olha quem chegou, Cody!
Minha língua coçou para perguntar se ela não tinha nenhum bilhete
dos últimos dias, nenhuma lição, nada para me passar, já que a agenda voltou
para casa vazia, mas deixei pra lá. Já tinha acertado os pagamentos, mesmo, e
não queria criar um clima ruim com a pessoa que cuidava do meu filho.
Cody caminhou até aonde eu estava e eu o peguei alguns passos à
frente. Ele ainda tinha o cheirinho do perfume que passei nele e o cabelinho
estava arrepiado, sinal de que bagunçou provavelmente na hora da soneca da
tarde.
Beijei seu rosto uma e outra vez.
— Oi, meu bebê. Vamos para casa? Hum? Ver tia Mali. Dá tchau
para a sua prô.
Ele acenou com a mãozinha e deixou a cabeça no meu ombro, me
abraçando. Eu acenei para ela em despedida, recebendo um grande sorriso de
volta. Engraçado como o dinheiro muda as atitudes das pessoas. No dia
anterior, mesmo, estavam tratando minha miga mal, mas foi só acertar as
contas, me tratavam superbem.
— As pessoas são difíceis, filho. Uma pena você ter que crescer e
conhecer esse mundo do jeito feio.
Nós esperamos no ponto e graças a Deus o ônibus passou rápido, mas
estava lotado. Eu descia dois pontos antes do final, fiquei na frente, em pé,
enquanto um casal de adolescentes se pegava no banco preferencial. Me
viram, mas tipicamente fingiram que não. Eu que não ia pedir o lugar.
Nunca pedi.
Uma vez estávamos eu, Mali e Rai voltando para casa num sábado à
tarde, tínhamos ido fazer o último ultrassom do bebê e eu estava com uma
barriga enorme. Eu fiquei em pé, suando, morrendo de dor, e alguns jovens
sentados nos bancos preferenciais. Mali e Raiana deram um show e mesmo
depois que eu já estava sentada, elas continuaram falando. Eu fiz a pose
tímida, mas foi só descermos do ônibus que comecei a rir junto com elas,
igual a uma louca.
— Vai aí, motô! — alguém gritou do fundo.
— Não vai andar enquanto alguém não der lugar para a moça com o
bebê aí na frente sentar — o cobrador avisou, também gritando.
— Não precisa, moço, tudo bem — falei.
— Que isso, dona?! Senta aqui! — um rapaz de outro banco, que
nem era preferencial, ofereceu.
— Tudo bem, ele já dormiu, pode ficar. Obrigada.
O cara parecia cansado, cheio de suor na testa. Certeza que tinha
trabalhado o dia todo.
— Ou! Vocês dois aí! — Uma senhora cutucou a perna do
adolescente com a bengala. — Não estão vendo a moça com o bebê no colo?
Ou vão fingir que estão dormindo igual quando eu entrei?
O garoto fez uma careta, mas levantou, indo para a parte de trás
pisando fundo. A menina se fez de desentendida.
— Desculpa. Senta aí, senhora.
Ela seguiu o namorado e eu sentei, então finalmente o motorista
voltou a dirigir.
Aquela desaforada tinha me chamado de senhora? Bufei.
Vinte e dois anos e eu já era uma senhora. Que ótimo!
Mali tinha razão, às vezes eu era muito besta, mesmo. Na próxima
vez, eu mesma exigiria meu direito.
Senti uma coisa em minha perna e olhei, vendo a bengala me
cutucando. Olhei para cima e a senhora piscou para mim. Lhe dei um sorriso
agradecido e pisquei de volta.
Ainda tinha muita gente boa no mundo.
Capítulo 3
“...eu digo que o amor é uma flor
E você é somente uma semente
É o coração com medo de quebrar
Que nunca aprende a dançar
É o sonho com medo de acordar
Que nunca aproveita a chance
E a alma com medo de morre
Que nunca aprende a viver..."
nirvana, the rose

— Bom dia! — minha amiga cantou, no dia seguinte, beijando a


bochecha de Cody, que batia sua bolacha no suporte da cadeirinha ao invés
de comer, e a minha em seguida.
Lhe dei um sorriso.
— Bom dia, amiga.
Ela usava um vestido azul colado de uma manga só e uma plataforma
preta. Antes das oito da manhã. Abriu a geladeira e pegou um pequeno cacho
de uvas.
— Eu vou mais cedo hoje, mas prometo que saio a tempo e vou pegá-
lo para você.
— Por que vai tão cedo hoje?
Ela me deu um sorrisinho antes de responder.
— Parece que o leiteiro gostou de mim. Me convidou para tomar café
em sua cobertura na Barra!
— Ah, que nojo... não o chame assim, por favor.
— "Ah... venha aqui, vem, minha ovelhinha!" — ela imitou a voz
dele e riu, me fazendo rir junto.
— Que horror! Ainda não posso acreditar que ele faz isso.
Ela me jogou um beijo por cima do ombro, já saindo, e gritou:
— Estou atrasada. Um beijo. Ah! Fiz bolo, está no micro-ondas, pode
levar para você e as meninas, se quiser.
Eu franzi a testa, mas não tive tempo de perguntar, porque a batida da
porta soou. Mali só confeitava quando não estava bem. Praticar confeitaria
era uma espécie de terapia para ela, então mesmo com aquele sorrisinho
atrevido em seu rosto, eu percebi que algo estava errado.
Balançando a cabeça, encarei meu filho.
— Tia Mali é doida, bebê.
Ele riu como se me entendesse e começou a resmungar suas
conversas indecifráveis. Pequenas palavras aqui e ali, mas ele estava em uma
fase que adorava recitar as vogais.
— A... — comecei.
Ele parou de brincar com a bolacha e me encarou, já fazendo seu bico
para continuar.
— Éééééh.
— I...
Ele inclinou a cabeça e sorriu.
— Óuuuu.
As coisas não estavam boas, mas aquele sorriso aliviava meu coração
de uma forma que eu não podia explicar. Meu filho era tudo o que eu
precisava para olhar para frente e segurar a barra do dia que me esperava.
Seguindo nossa rotina, peguei o ônibus e o deixei na escolinha, tendo
que correr antes que ele se distraísse dos brinquedos que sua professora deu a
ele e começasse a chorar por mim. A escola dele ficava a uns vinte minutos
de casa, mas era só morro pra subir, então ficava impossível ir a pé.
Esperei o ônibus e corri para o meu primeiro trabalho.

(..........)

A manhã no trabalho passou normalmente. Larissa estava um pouco


resfriada, então a tranquilizei de que tudo bem ir antes de mim para o almoço.
Quando voltou, já foi se desculpando pelos dez minutos de atraso, mas a
verdade era que eu estava tão perdida em pensamentos que nem percebi.
O relógio estava sendo meu inimigo, porque a cada minuto que
passava, ficava mais e mais próxima daquilo que estava me assombrando:
uma parte da minha antiga vida.
Passei a ela o que precisava antes de sair e fui até a copa esquentar
meu almoço. Mexi e remexi na comida, mas não tinha fome. Um embrulho
na garganta fazia impossível a missão de engolir qualquer coisa. Empurrei
algumas garfadas apenas para não passar mal e deixei de lado. Tinha tempo
de sobra para andar pela rua, mas não estava com clima. Resolvi que, já que
ainda tinha quarenta e cinco minutos pela frente, não ficaria ali sentada.
Meu primeiro destino foi uma das salas de ensaio, a maior delas,
onde continham espelhos em todas as paredes, barras em todos os cantos e ao
acender a luz, a iluminação completava aquele cenário perfeito.
Entrei e pisei naquele chão de madeira que meus pés tanto
conheciam, e como se estivesse em transe, apaguei a luz, deixando apenas
que os raios de sol que penetravam pelas janelas de vitrais iluminassem o
ambiente. Em um momento eu estava calçada e no próximo, meus tênis
estavam fora.
Em um deslize de saudade, ali sozinha em um lugar que me era tão
familiar e amado, deixei que meu coração me governasse e peguei meu
celular e o fone de ouvido no bolso.
Stay de Rihanna encheu meus ouvidos em uma versão instrumental.
Meu coração se encheu em uma fagulha, o sangue aqueceu e minha
mente nublou na hora.
Soltei o cabelo, porque embora na maioria das vezes nós
dançássemos com ele preso, eu adorava senti-lo balançar comigo. Como se
nenhuma parte do meu corpo conseguisse ficar parada.
Embora soubesse que estaria cansada quando terminasse, a ponto da
tontura quase não me deixar ficar em pé, eu ainda senti a necessidade de fazer
aquilo naquele momento.
Eu tinha a letra de cor, na memória, e os movimentos calculados nos
pés. Hoje era um dia bom, eu acordei bem.
Eu queria dançar.
Nunca mais seria perfeito, mas era o bastante para acalmar meu
coração e me deixar saber que uma parte minha ainda estava presente.
Eu ainda era eu.

"Round and around and around and around we go"

Meus olhos fecharam quando o refrão chegou, e a descarga de fúria


no piano era a mesma que eu tentava passar através do meu corpo.

"Now tell me now, tell me now, tell me now... you know"

Quando girei e pulei com uma sequência, sabia que tinha um sorriso
no rosto.
Eu não queria que a música acabasse, mas ela já estava no fim. As
últimas notas, os últimos momentos nos quais um pouco do sol refletia em
mim, meu cabelo bagunçava com a dança e eu me movia como se fosse livre.
Ali eu era eu.
Dançando eu era eu.
Mas a música acabou. Era inevitável e ela sempre acabava. Não era
eterno e não era real.
Aquela felicidade, aquela sensação de estar realizada outra vez...
apenas passageira. E quando a música acabou e o silêncio me fez companhia,
voltei à realidade.
Meus pés descalços no chão, no piso do meu trabalho... da minha
vida. Abri os olhos e me fitei através do espelho. Eu ofegava, cansada,
tremendo e morrendo de sede. Isso era o que acontecia agora quando eu
ousava dançar como fazia. Mas não foi isso que chamou minha atenção, e
sim as duas pessoas paradas na porta da sala, olhando diretamente para mim.
Uma menina aparentemente da minha idade, usando meias, uma saia
de seda um pouco abaixo do joelho e uma regata. Uma bailarina. Se não fosse
o coque rígido em sua cabeça que me confirmasse isso, seria a sapatilha em
seus pés.
Ela sorria para mim, muito diferente do homem ao seu lado, e eu
fiquei abalada por um momento, diante dele. Revirei minha mente tentando
lembrar se era possível que o conhecesse, que fosse alguém que trabalhava no
Teatro, mas não. Eu certamente lembraria daquele rosto.
Um rosto quadrado, uma fina camada de barba se estendendo por sua
mandíbula e queixo, nada exagerado, exatamente combinando com a dureza
de seu olhar. Inclusive... os olhos verdes mais penetrantes que eu já tinha
visto.
Não que tivessem sido muitos, porque homens como aquele... não
eram o tipo que você encontrava a cada esquina.
Uma blusa manga longa puxada até os cotovelos faziam o contorno
de braços fortes evidentes e a calça jeans escura me deixava ver que ele era
magro, porém forte. Não tipo o Guilherme, como se ficasse constantemente
na academia, mas o corpo de alguém que se preocupava em estar bem. Com a
saúde e a aparência.
Ele passou a mão pelos espessos cabelos castanho escuros, que eram
compridos até um pouco abaixo da orelha, quase tocando seus ombros, lisos e
soltos, então me levantou uma sobrancelha.
— Você terminou?
Isso certamente não era o que eu esperava ouvir, principalmente
vindo com um tom de voz tão duro, como se estivesse irritado.
A garota ao lado dele mexia nervosamente nas mãos e tinha os olhos
levemente arregalados. Me questionei se ele estava perguntando se terminei
minha inspeção em sua aparência ou do show que provavelmente
presenciaram. Eu esperava que tivessem chegado no final, porque eu devia
ter sido um desastre e não precisava de ninguém presenciando isso.
— Eu... Desculpe-me, senhor, estava apenas...
— Se a senhorita terminou, existem pessoas que precisam usar essa
sala. É claro, se não se importar. —As últimas palavras foram recheadas de
ironia.
Com certeza a vergonha estava estampada em todo o meu rosto. Com
muito custo, avancei um pé na frente do outro para sair.
— O sapato, senhorita — ele cuspiu rudemente.
Eu queria estreitar meus olhos e gritar com ele que não precisava ser
tão grosso, mas voltei alguns passos e peguei meu tênis no canto da sala, em
silêncio. Afinal de contas... eu estava errada em estar ali.
Ele virou de lado quando me aproximei, dando-me um mínimo
espaço para sair. A garota ao seu lado foi educada o suficiente de voltar atrás,
então pude passar.
O Teatro tinha eco e um retorno de voz alto. Ele deveria saber disso e
não fez questão de esconder suas palavras quando falou com a menina.
— Chame os outros.
Sentei em um dos bancos de uma das salas que estava em
manutenção e coloquei meus tênis de volta. Aquele homem foi muito além de
horrível. Não havia necessidade nenhuma de falar comigo daquela forma. Eu
não era um cão que só ouvia ordens berrantes, e sabia muito bem que se
alguém chegasse, eu deveria sair. Na verdade... nem devia estar dançando lá
dentro, mas aconteceu. Só podia rezar e esperar que ele não resolvesse levar o
assunto à diretoria.
Por um momento, ele me fez esquecer meu corpo incapaz de fazer o
que eu mais amava na vida.
Mas também apagou a breve felicidade que senti ao dançar outra vez.
Capítulo 4
"...todos os sonhos do passado
São enfraquecidos tão rápido
Por fantasmas do passado
Quando o amor era para durar
Ela vai jurar 'por seu coração'
Que nunca mais vai sonhar..."
vaya con dios, what's a woman

Nós estávamos rindo de um cara que sempre aparecia para tentar


convencer Larissa a comprar seus doces de pote, pouco depois de eu voltar
do almoço no dia seguinte. Eu amava os doces, mas ele não fazia questão de
me vender, queria vender para ela. E minha amiga não comprava de jeito
nenhum.
— Você ia ajudá-lo, se comprasse.
Ela me deu um olhar de quem diz "sério?"
— Amiga — falou —, ele vende muito bem, mas faz pouco caso pra
todo mundo que compra. Acredita que ontem na hora do seu almoço ele veio
e falou "se você comprar, ainda leva meu número de brinde"? Aí que não
compro mesmo!
— Ele pode ser o seu par perfeito, nunca se sabe — comentei, rindo,
e ela revirou os olhos.
A verdade era que além de a maioria do pessoal comprar os doces
dele lá dentro, eu suspeitava que o cara continuava aparecendo diariamente
por conta dela. Guilherme pensava a mesma coisa.
Foram cinco minutos depois de a nossa crise de risos ter acalmado,
que Carlos Domingues, o diretor artístico do Teatro, apareceu e parou em
frente ao balcão.
— Boa tarde, meninas.
— Boa tarde — nós respondemos.
— Alguma correspondência ou recado para mim?
Larissa colocou uma chave em cima do balcão e disse:
— Sua esposa passou aqui e deixou a chave do carro dela. Avisou
que vai sair mais tarde do trabalho e pediu para o senhor deixar no mecânico,
por conta da revisão.
— E eu já levei uma caixa que chegou no seu nome logo cedo e
deixei em sua sala.
Ele assentiu e suspirou.
— Certo. Bom, olhem só... eu não estou acusando de nada, só quero
saber uma coisa.
Nós nos entreolhamos e imediatamente ficamos tensas.
— Saber o quê?
— Quem estava aqui ontem por volta das duas?
— Nós duas — respondi.
— Quem atendeu um homem chamado James?
— Eu.
— Nós duas.
Falamos ao mesmo tempo e ele levantou uma sobrancelha.
— Danielle ou as duas?
— Eu atendi. — Era verdade. Ela falou com a secretária dele, eu fui
quem enfrentou a fera.
Carlos me deu um olhar que eu não sabia se estava levemente
encrencada ou muito ferrada.
— Vá até a minha sala em cinco minutos, leve caderno e caneta.
Dito isso, ele se afastou e nos deixou. Eu esperei até que ele entrasse
no elevador e fitei Larissa.
— Que merda! — ela exclamou.
— Ele vai me demitir.
— Por que você foi dizer que falou com ele, Dani?
— Porque é verdade.
— Mas eu falei com ele primeiro, quer dizer... foi com a secretária.
Mas se a ligação não tivesse caído três vezes comigo, ele não estaria tão
bravo e você não teria desligado na cara dele!
— Exatamente. Quem desligou na cara dele fui eu, não você.
Ela bufou.
— Tá, mas e agora, se ele realmente te demitir? Você tem o Cody,
Danielle! Devia ter pensado e me deixado assumir o erro que foi eu quem
começou.
— Então quem iria perder o emprego seria você.
— Mas eu não tenho um bebê!
— Tem aluguel e despesas do mesmo jeito. Ai, quer saber? Agora já
foi!
— Já foi nada. Eu subo no seu lugar, falo que a gente se confundiu e
eu que atendi!
— Não, Lari. —Levantei da cadeira e peguei o caderno e a caneta,
como Carlos instruiu. — Só... vai rezando para ele não me mandar embora.
Forcei um sorriso e me afastei, assistindo-a balançar a cabeça
negativamente.
Peguei o elevador quase desmaiando de medo. Se ele me demitisse eu
estaria muito, muito ferrada. Sabia que aquele James era importante. Ligou
exigindo falar com um dos diretores e eu desliguei na cara do homem, o
deixando falando sozinho.
Balancei a cabeça para mim mesma, me olhando no espelho, mas a
vontade era de chorar.
Maldita hora que fui pegar aquele telefone. Maldito homem por ser
tão grosso!
Mas eu estava fazendo meu trabalho. Carlos sempre disse que suas
ligações só deveriam ser passadas quando ele nos avisasse e ontem ele não
avisou. A culpa não era só minha!
Quando finalmente cheguei em frente à sala dele, bati na porta e
esperei até que ela foi aberta.
— Entre.
Eu fiz e ele a fechou. Nunca tinha sido chamada na sala de um dos
superiores e a primeira vez não estava sendo nada boa. A esperança sempre
foi que quando eu pisasse ali, seria para receber uma promoção, um aumento
de salário ou sabe Deus uma proposta que mudaria minha vida radicalmente.
Mas como sempre... nada a meu favor.
Tinha certeza que aquele James ligou e contou toda a história, e além
do mais, deve ter contado na versão dele. Eu precisava pelo menos ter o
direito de me defender e contar a minha parte.
Já ia começar a falar sem Carlos nem ter pedido, quando vi que além
dele, tinha outra pessoa na sala.
Ele. O da barba, cabeludo, grosso e mal-educado como uma porta
enferrujada.
Ele tinha contado que me viu dançando. Não bastou ter me tratado
daquela forma, ainda precisou ir fofocar para o meu superior. Ele estava em
um Teatro, deveria se acostumar em ver pessoas dançando! Como eu ia saber
que teria ensaio lá justo naquela hora? Mesmo que estivesse errada em sequer
dançar lá.
— Eu juro que posso explicar! — falei para o senhor Carlos.
— Eu acho que já ouvi explicações o suficiente dele, mas vá em
frente.
Carlos se sentou em sua cadeira e eu fitei aquele homem antes de
olhar meu "chefe". Ele estava na faixa dos quarenta, usava um terno bege e
mantinha as mãos cruzadas sobre a barriga lisa. Os cabelos levemente
grisalhos e a testa franzida, combinando com a careta com que me fitava.
— Senhor, eu estava em horário de almoço, a sala estava vazia e eu
não pensei que alguém fosse entrar lá justo naquele momento. Se soubesse
que tinha ensaio agendado, garanto por Deus que não teria feito aquilo!
Ele ficou em silêncio por alguns segundos antes de levantar uma das
mãos.
— Não teria feito o quê?
O grosseirão levantou a mão.
— Ocorreu algum engano, Carlos. Não creio que uma das bailarinas
tenha me atendido no telefone.
— Bailarina? — Carlos franziu a testa ao perguntar. — Danielle é
recepcionista.
— Ah. — O grosseirão levantou uma sobrancelha para mim. —
Então parece que sua funcionária anda fazendo mais do que atender o
telefone de forma mal-educada.
— O que está acontecendo, Danielle? Não estou entendendo mais
nada!
Eu também não estava e me dedurei sozinha.
— Senhor... por que eu estou aqui?
Carlos suspirou como se já estivesse impaciente.
— Ontem eu recebi uma ligação importante, urgente, que precisava
ser passada para mim. Mas ao invés disso eu tive Cobain esperando por horas
e ainda foi tratado de uma maneira inaceitável.
— Cobain? O homem com quem eu falei se chamava James.
Ele apontou para o grosseirão.
— Cobain James.
Meu queixo só não foi ao chão porque estava muito chocada até para
isso. Engoli em seco uma, duas vezes, e abri a boca para falar, mas as
palavras simplesmente fugiram.
— Senhor, e-eu...
— Você falou com ele, certo? Atendeu e desligou na cara dele?
Eu assenti com pesar.
— Sim, senhor.
— Trouxe o caderno e a caneta que eu pedi?
— Sim.
Minha cabeça estava baixa. Eu só esperava o veredito final. Se a
palavra "dispensada" ou "demitida" saísse da boca dele, estava preparada para
ajoelhar e implorar por mais uma chance.
— Agora anote aí: me certificar de com quem estou falando antes de
resolver por mim mesma que não é importante.
Eu levantei a cabeça e o fitei.
— Mas senhor... eu só não passei a ligação por uma ordem sua.
— Que ordem?
— Que só devemos passar as ligações depois que o senhor ligar e
autorizar, porque tem coisas para fazer em certos momentos e não pode
perder tempo atendendo todos que ligam — repeti suas exatas palavras e ele
se remexeu na cadeira, olhando de canto para James.
— Sim, eu disse isso, mas Cobain era uma exceção.
— Mas eu não tinha como saber. — Minha voz era calma, mas queria
gritar. Como eu ia adivinhar?
— Então a culpa é minha que eu e ele perdemos um dia inteiro e só
nos encontramos porque liguei em seu celular?
Eu fiquei quieta. Queria dizer que sim, a culpa era dele, mas então
seria chutada para fora de lá apenas com a carteira de trabalho carimbada e
um papel para ir procurar meus direitos.
— Vou ser mais atenta, senhor. Tentarei perceber quando a ligação
for importante.
— Não sei, Danielle. Atrasamos toda uma agenda por conta de uma
única ligação que você não passou. Não sei se posso deixar passar.
Meus olhos encheram de lágrimas.
— Senhor Carlos...
Minha voz era uma súplica e ele me encarava de olhos estreitos,
como se eu fosse culpada pela fome no mundo. Depois do que pareceram
horas, Cobain interferiu, dando um passo à frente.
— Não há necessidade disso, Carlos. Deixe-a voltar ao trabalho.
Tenho certeza que não vai se repetir, não é... Danielle?
Eu o olhei e assenti.
— Sim, senhor. Não vai se repetir.
Eu não esperava aquela atitude vindo dele, mas ainda assim me
irritou mais ainda. Se ele não tivesse feito a birra de correr para Carlos, eu
nem estaria ali.
Carlos me encarou por alguns minutos, batendo a caneta na mesa.
— Você terá uma segunda chance, mas lembre-se que é pela mesma
pessoa que a senhorita tratou mal
Eu assenti dura e de má vontade.
— Posso voltar ao trabalho?
— Sim.
Saí da sala segurando as migalhas de dignidade e orgulho que ainda
me sobravam. Nunca, em todo o tempo que trabalhei ali, passei por tal
situação. Tudo por conta daquele fofoqueiro que não pôde lidar com alguém
que o tratou de igual para igual.
Agora eu sabia que tinha que aguentar grosserias calada e fazer o que
me mandavam, mesmo quando me tratassem como se não fosse gente.
Entrei atrás do balcão pisando fundo e Larissa já veio querendo saber
o que houve.
— E aí? Não me diz que ele te demitiu, porque subo lá e te desminto!
— Não demitiu. Mas foi por pouco. Aquele idiota do tal senhor
James estava lá com ele e contou. Agora me diz porque um cara adulto tem
que vir fazer fofoca? Ele sabia muito bem que meu emprego estaria em jogo!
Me abaixei para pegar o celular na bolsa e continuei contando.
— E aí ele vem com toda aquela pose de "sou o Deus do mundo" e
fica levantando aquelas sobrancelhas para mim. Me dizendo como trabalhar.
— Bufei. — Fala sério! Eu fui grossa porque ele foi um estúpido e a próxima
vez que aquele grosseirão vir dar de mestre da vida pra cima de mim...
— Creio que há um envelope para mim aqui — uma voz grossa e
irritada falou acima da minha cabeça e eu nem precisava olhar para saber
quem era.
Larissa, de olhos arregalados, entregou a ele. Seu olhar indo de mim
para senhor James. Eu não ousei levantar ou virar para encará-lo.
Meu coração tinha simplesmente parado.
— Aqui, senhor.
— Obrigada...
— Larissa.
— Obrigado, Larissa, por sua educação. É algo raro hoje em dia.
Assim como respeito.
Passaram-se alguns segundos até que ela falou:
— Ele já foi.
Eu levantei com as pernas tremendo, e me joguei em minha cadeira.
— Que merda — sussurrei.
Ela assentiu, o rosto ainda em choque.
— Sim — confirmou, seus olhos brilhantes. — Mas ele é um gato.
Capítulo 5
"...me diga quem você é
Me fale sobre a sua estrada
Me conte sobre a sua vida
Tire a máscara que cobre o seu rosto
Se mostre e eu descubro se eu gosto
Do seu verdadeiro jeito de ser..."
pitty, máscara

Era sempre assim.


Minhas mãos agarraram o pole dance com força o bastante para
garantir que eu não cairia de tanto tremer.
O show era bom para eles, mas para mim era como a hora do
pesadelo, seguido da morte. Eu amava dançar, mas não ali, não daquele jeito.
Tinham noites que eu conseguia esquecer onde estava e a música alta me
distraía, por breves minutos conseguia fingir que era apenas eu e meus
movimentos.
Mas então a gritaria começava e eu me lembrava que era a atração de
um terrível show.
Tudo acontecia por uma razão, eu tinha que acreditar nisso.
Precisava.
A pequena cidade onde eu nasci carregava muita religião e eu aprendi
a ter fé desde pequena. Mesmo que tudo me dissesse que minha vida só ia por
água abaixo, eu continuava lutando. Enquanto houvesse ar em meus pulmões,
essa fé me manteria de pé.
Se começasse a pensar demais sobre subir em um palco onde dezenas
de homens podiam me ver tirar a roupa, eu desmaiaria. Estaria livre daquela
tortura, mas quem passaria fome depois seria Cody. Eu duvidei disso uma
vez, paguei para ver e tive a sensação de precisar juntar moedas para comprar
o leite dele, já que o meu corpo não aguentou receber os medicamentos e
produzir o alimento do meu filho, sem contar que eu mal comia.
Não era fácil ser mãe solteira, sem experiência profissional e
formação superior. Eu tive uma amostra de como as mulheres que faziam
parte das estatísticas viviam e não era bonito.
Quando tinha tudo e minha única preocupação era a próxima música
que ia dançar, aquele tipo de coisa no jornal nem me sensibilizava. Como
julguei mal, como estava errada. Realmente existem coisas que só se entende
quem passa por elas, quem sente na pele.
Como estava sendo comigo.
Mas já tinha passado da hora de eu me preocupar comigo mesma. As
minhas prioridades eram baseadas nele e não importava o que eu tinha que
fazer para conseguir manter meu filho bem. Eu faria.
Dançar sem roupa para um monte de homens desconhecidos,
inclusive.
Quando a música acabou e eu saí do palco, a máscara escondia
minhas lágrimas e o batom vermelho acompanhava o sorriso em meu rosto.
Ele durou apenas até eu chegar no camarim improvisado com as outras
meninas e colocar meu roupão.
Peguei meu celular na bolsa e verifiquei se tinha alguma mensagem
da babá e não havia nada. O relógio marcava uma e quinze da manhã. Eu
ficaria até às três. Todas às vezes que fosse necessário, Borges, o gerente da
casa me chamaria para voltar ao palco.
Graças a Deus no dia seguinte era sábado. Eu trabalharia meio
período e poderia ficar com Cody.
Logo que cheguei do Teatro, depois de pegar Cody na escola, dei
banho nele e garanti que estava tudo em ordem. Fiquei só esperando a babá,
uma garota do prédio que cuidava dele por um bom preço para eu ir ao
segundo trabalho do dia, e saí com Mali. Ela pagou o Uber e fomos em
silêncio para a boate.
No meio do caminho ela pegou minha mão e deu um aperto, me
enviando um sorriso. Eu desconfiava que mesmo ela alegando adorar aquele
trabalho, era mentira. Como se esperasse que sua animação fosse esconder,
de fato, o quanto desgostava.
Ou talvez eu odiasse tanto fazer aquilo que estava imaginando ser o
mesmo para todas.
— Foi linda hoje, Elle — uma das meninas me elogiou. Ela ajeitava
sua maquiagem ao meu lado.
— Obrigada, Rubi.
Elle foi o nome que Raiana sugeriu que eu usasse. Todas as meninas
da boate tinham algum falso para esconder sua identidade. Algo que eu não
entendia, já que mostravam o rosto e isso dizia muito mais que o nome.
Apenas eu e as duas outras meninas que dançavam, usávamos
máscara. Eu morria de medo de alguém me ver lá dentro. Sempre que estava
dançando, sentia como se no meio daquele monte de gente tivesse alguém
conhecido escondido, apenas esperando eu voltar ao camarim para se revelar.
O meu grande segredo "perverso" sendo descoberto.
Lorena, uma loira alta, se aproximou sorrindo e fumando um cigarro.
— Ainda não mudou de ideia sobre fazer um a mais?
Ela se referia à programas.
— Nem vou mudar.
— Não sabe o tanto de dinheiro que está perdendo — Paraíso falou.
Todos os dias elas tentavam me convencer a entrar de cabeça naquele
mundo. Diziam que para quem já estava com o pé dentro, não demorava
muito até mergulhar.
Não no meu caso.
— Eu faço um dinheiro legal dançando, gente. Respeito que vocês
façam suas coisas nos quartos... mas prefiro manter distância do contato
físico com esses caras.
— Pois eu acho que deveria ter uma noite do leilão da virgindade —
Kika brincou. — A gente fala pra esse bando de macho que tem uma
mercadoria pura e intocada. Aposto que vão pagar uma grana preta para você,
meu bem.
Eu sorri, balançando a cabeça para as loucuras dela.
— Daria supercerto se não fosse o fato de ela não ser virgem, dãr —
Mali comentou, entrando no lugar. Ela piscou para mim e eu lhe dei um
sorriso. A noite mal tinha começado e ela já foi para o quarto.
Fiquei a observando enquanto as meninas conversavam, e pela sua
feição, novamente um aperto no peito me veio. Queria que ela me dissesse de
verdade porque estava ali. Não era porque gostava daquela vida, mas as
lágrimas nos olhos dela diziam tudo.
Alguém me abraçou por trás e só pelo perfume eu sabia que era
Carolaine.
— Pois eu estou dentro! Não saí da minha Bahia pra brincar, não,
meus amores. Vim para esse Rio pra arrasar!
As meninas gritaram entre risadas, e falando seus bordões. Eu me
divertia com elas.
Quem não conhecia de verdade o mundo da prostituição, olhava para
elas com desgosto e puro preconceito. Eu sabia disso porque antes de me
envolver, as via exatamente assim.
Mas quando você descobre o motivo de estarem ali, sabe que mesmo
com as brincadeiras e os sorrisos nos rostos, elas têm histórias para contar e
não era direito de ninguém julgar.
Claro que tinham aquelas que estavam ali porque queriam, porque
gostavam. Eram minoria, sim, mas novamente... ninguém tinha nada a ver
com isso e nenhuma pessoa era Deus para apontar o dedo e falar que estavam
certas ou erradas.
Elas não obrigavam ninguém a entrar naquela boate e não miravam
armas na cabeça dos homens para pagarem por elas.
Quando você tem que escolher entre deixar seu filho passar fome ou
ter que vender seu corpo como alguma delas tinham, qual escolha faria?
Quando todas as portas de emprego batem na sua cara sem nem te deixar
dizer seu nome?
"Não temos vagas"
"Necessário experiência"
"Vamos ficar com o currículo e surgindo a oportunidade ligaremos"
Rubi tinha uma filhinha de quatro anos com síndrome de down. Nós
vimos o sofrimento dela na pele dois meses atrás, quando a garotinha ficou
com pneumonia, internada por dias entre a vida e a morte. Algumas das
meninas, mesmo tendo o dinheiro apertado, ajudaram nas vaquinhas para
comprar os remédios.
Carolaine precisava pagar os tratamentos da mãe, com um câncer que
já havia tomado a maior parte de seu corpo. Então ela sorria ali dentro e
nunca deixava transparecer, mas quem olhava com o coração, enxergava o
quanto ela sofria.
Kika veio de Belém do Pará. Estava na faculdade de lá, tinha acabado
de perder a mãe e conheceu um cara que aproveitou de sua fragilidade para se
aproximar. Ele a prometeu mundos e amor eterno, e a convenceu de ir com
ele para São Paulo tentar uma vida de sucesso na cidade grande. Ela
acreditou, ingênua e apaixonada. Cinco meses depois ela foi presa por estar
morando com um dos traficantes mais procurados do país. Ele usou o nome
dela para todos os tipos de crimes e ela só foi saber quando chegou na
delegacia.
Uma ficha de sete anos com tantos golpes não a permitia conseguir
um emprego em lugar nenhum. Depois de três meses morando em abrigos e
dormindo na rua após sair da cadeia, ela se rendeu à noite de São Paulo. Veio
para o Rio quando conheceu Lorena, que estava lá de viagem com um cliente.
Lore estava na vida por prazer, era isso o que ela dizia. Mas os
hematomas que às vezes escondia antes de se vestir para começar os turnos
na boate me deixavam desconfiada sobre isso.
Paraíso tinha filhos no interior que precisavam de dinheiro, e um
marido que morreu deixando dívidas que ela necessitava pagar. Ou pagava ou
dizia adeus aos filhos. Eu não sabia os detalhes da história e ela nunca
contou, mas novamente... estava ali sem saída.
Eu tinha um carinho por cada uma delas e as entendia. Sofria e sorria
com elas, também.
Era assim que a gente levava.
Uma dando força a outra; uma ajudando a outra e tentando fazer
daquilo ali um pouquinho mais fácil de aguentar.
Só quem estava dentro sabia que o glamour que os filmes mostravam,
estava longe de ser realidade.
Só quem vivia na pele sabia como era ser apontada sem poder contar
sua história e seus motivos.
Tudo na vida tinha uma razão.
Assim como cada uma delas, para ter entrado naquela vida.
Capítulo 6
"...então não se preocupe com a escuridão
Ainda podemos encontrar um jeito
Pois nada é para sempre
Nem mesmo a fria chuva de novembro..."
guns n' roses, november rain

Como eu esperava, o início do meu sábado estava sendo recheado de


sono. Cheguei em quase quatro da manhã e tive até às sete para dormir.
Quando pisei em casa, Cody dormia tranquilamente em seu berço e a
babá dele no sofá. Fiquei com tanta dó de acordar a menina, que só joguei
uma coberta em cima dela e fui deitar, mas antes, levei meu filho para a cama
comigo.
Aos sábados ele não ia para a escola, então era mais um dia que a
babá ficava com ele até eu chegar.
Quando Mali estava em casa, insistia que não tinha problema nenhum
em olhar, mas eu sentia como se estivesse jogando uma responsabilidade que
era minha para outra pessoa, como se me aproveitasse dela. O que ela sempre
dizia ser bobagem.
Era a folga de Larissa, e a menina que estava comigo naquela manhã
era Andreza, um amor de pessoa. Muito fácil de trabalhar. Como ficávamos
só meio período de sábado, não almoçamos. A gente tirava vinte minutos
cada uma para lanchar e voltar ao balcão.
Na hora da minha pausa, passei por uma sala onde estava tendo
ensaio. Um pianista tocava e os bailarinos se aqueciam.
A saudade apertou meu peito e respirei profundamente. Era uma cena
encantadora e comovente. Eu imaginava o que eles deveriam estar sentindo
naquele momento.
A ansiedade, antecipação, o medo de errar...
— Olá.
Eu pulei com o susto da voz repentina atrás de mim.
— Meu Deus! Oi — respondi. —, eu... conheço você.
Ela sorriu e os cachos do cabelo preto balançaram com o movimento.
Era a mesma garota que tinha me visto dançar no dia anterior. Eu não
esperava vê-la tão cedo por ali, principalmente em um sábado.
— Na verdade, não nos conhecemos de oficial... mas eu fico feliz que
esta faz isso agora. Meu nome Liana.
— Você não é brasileira — constatei, sorrindo.
— No. Sou de Canada, mas tem tios em Brasil.
— Entendo. Meu nome é Danielle, eu trabalho aqui.
Os olhos dela brilharam.
— Pensei isso! Você está em ballet de Rio?
Eu fiz o possível para manter o sorriso no rosto.
— Não, sou recepcionista daqui. Atendo as pessoas no balcão. E
você?
— Ah... eu estou na Connely em Paris. Vamos ter grande uma
apresentação aqui.
— É... eu sei. E vocês vão ensaiar hoje tão cedo?
Ela franziu os lábios e deu uma risadinha.
— Queríamos todos dormir, mas diretora de arte e a coreógrafa que
temos são rígidas e bravas. — Ela fez uma careta como se para confirmar
suas palavras, me tirando uma risada.
— Mas quando você estiver no palco vai valer a pena.
Falei para consolá-la, mas era a mais pura verdade. Horas e horas
incansáveis de ensaios eram esquecidas quando o desempenho era posto em
cena.
Ela inclinou a cabeça para o lado e ia falar algo, mas alguém de
dentro da sala a chamou, então me fitou e perguntou:
— Você gostaria de assistir o ensaio?
Jesus...
Eu adoraria, mas com certeza na metade estaria chorando e não
queria azedar o bom desempenho deles com meus dramas.
— Não... eu acho que pode ficar para outra hora, tenho que descer e
continuar com meu trabalho.
Ela assentiu.
— Verdade.
— Liana! — um homem dentro da sala a chamou.
— Acho melhor você ir, estão precisando de você.
Ela sorriu e revirou os olhos.
— Sempre precisam. Nós nos vemos, sim, Danielle?
— Sim, e pode me chamar de Dani.
Ela piscou e acenou um tchau. Eu fiquei por mais alguns minutos os
observando, até lembrar que precisava cuidar da minha própria vida e parar
de sonhar sonhos impossíveis.

(..........)

Quando cheguei em casa mais tarde, estava planejando dormir um


pouco e depois levar Cody para passear, mas esses planos evaporaram assim
que vi Mali sentada no sofá com os olhos vermelhos, de pijama e com um
rolo de papel ao lado.
Cody dormia tranquilamente de fralda e uma cueca do Batman ao
lado dela no sofá.
— Ei... o que houve? Ficou resfriada?
Ela balançou a cabeça e fungou, dando de ombros.
— Nada demais, só a bosta da vida dando na minha cara como
sempre.
Eu franzi a testa.
— O que foi, Mali? — Ela ficou em silêncio, encarando a TV na qual
passava algum reality show, me ignorando totalmente. — Mari Louise!
— Não estou doente — afirmou e virou seus olhos mel-esverdeados
para mim. — Você já se apaixonou alguma vez? — perguntou.
— O que tem a ver paixão com você estar aqui chorando e... Ai,
merda! — lamentei por ela — Está sofrendo de amor?
Ela riu.
— Claro que não!
— Então por que está me perguntando?
— Porque essa mulher do programa de TV foi em rede nacional dizer
que se apaixonou vinte e cinco anos atrás em um carnaval, teve um bebê e
está procurando o cara até hoje, porque ele é o amor da vida dela.
— Tomara que ela encontre.
— Eu acho que ela foi até aí só pra aparecer, fala sério. Não existe
paixão que dure vinte e cinco anos.
— Claro que existe! Principalmente se ela vê o rosto do cara todos os
dias no filho ou filha.
Ela assoou o nariz.
— Tá, mas você não me respondeu se já se apaixonou.
Eu acariciei levemente a cabecinha cheia de cabelos escuros de Cody.
— Acho que de verdade, não.
— Nem pelo pai dele?
Uma raiva muito comum despertou em mim com aquele assunto.
— Achava que sim, até ele mostrar o imbecil que era.
Ela assentiu e beijou minha bochecha.
— Um idiota completo.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. Ela assistindo a televisão e
eu assistindo meu bebê.
— Como será o homem que você amaria?
Eu parei um pouco para pensar em sua pergunta e estreitei os olhos.
— Não me diz que você fez um Tinder para mim de novo! Porque da
última vez você escapou, mas dessa eu te mato!
— Não fiz — respondeu, rindo. — Só estou curiosa. Você é uma
eterna encalhada, quero saber quem será o milagre que vai mudar isso.
Eu revirei os olhos.
— Não sou encalhada, só tenho outras prioridades.
— Tuuuudo bem. E supondo que existisse alguém que entraria nessa
lista de prioridades... Como ele deveria ser?
— Você não vai desistir, não é?
— Nops.
— Ok. — Suspirei. — Ele será calmo e observador, mas vai falar nas
horas que for necessário. Terá um foco, um sonho, e vai correr atrás disso.
Ele é apaixonado pela vida e...
— Espere! — pediu ela. — Nossa, é muita coisa! Eu achei que você
fosse falar três qualidades e ponto, mas está levando a sério. Então vamos
anotar.
Mali se inclinou para a mesinha de centro e pegou a agenda de
telefones, arrancou uma página e tirou a tampa da caneta com a boca,
cuspindo no chão.
— Certo, agora vamos lá — voltou a falar minha amiga.
— Nojenta.
Sua risada preencheu o ar.
— Calmo e observador. Focado e sonhador. Apaixonado pela vida
e...
— Extrovertido. Ele tem amigos e é muito social, se diverte muito.
Ela parou e me encarou.
—Nossa... ele vai morrer de tédio com você, amiga.
— Continue a lista e cale a boca.
— Você que manda.
Eu pensei um pouco antes de continuar.
— Ele quer ter uma família. Ele se preocupa comigo, mas não se
intromete na minha vida. Respeita meu espaço assim como eu respeito o dele
e... não é ciumento. Ele confia em mim e eu confio nele também.
— Caramba! Quando achar esse homem, me avisa. Ele vai ser o
motivo da nossa amizade acabar. O cara é tão raro que até eu brigo por ele.
— Não é verdade. Tem muito homem que não é ciumento, por aí.
— A maioria é corno. Se não for... será um dia, se Deus quiser!
— Louise!
Nós rimos e Cody se mexeu. Fiz sinal de silêncio e ficamos olhando
até ele ficar quietinho outra vez. Minha amiga deu uma risadinha.
— Vamos lá... agora aparência.
Eu fechei os olhos para imaginar, mas a imagem mais absurda me
veio à mente e abri os olhos de novo. O grosseirão se fez presente em meus
pensamentos e senti raiva de mim mesma. Quase fui demitida por conta dele
e estava imaginando o cara enquanto montava minha lista do homem
perfeito.
Mas aquilo devia ser porque eu estava com tanta raiva dele que meu
psicológico o trouxe de volta. Com certeza era isso.
— E aí, Dani?
— Hum... ele é careca. Tem olhos castanhos e não é muito alto. Uns
cinco centímetros a mais do que eu está ótimo. Ele pode ser magro ou ter um
corpo de um cara normal. Não me importo se tiver uma barriguinha de
cerveja. Ele precisa ser educado e gentil, e ele odeia teatros. E é muito...
muito gentil!
Quando terminei, a encarei e vi que não anotava nada, mas me
encarava como se eu fosse um alienígena.
— Você acabou de descrever o Borges. Que horror!
— O Borges não é careca.
— Nossa... aquela penugem no meio da cabeça conta como cabelo?
Ai, que ridículo, meu Deus. Ah! Situação financeira?
— Sei lá. Um trabalho estável que nos dê segurança e possa juntar
com os meus pra pagar as contas no final do mês.
— Danielle, sonha mais alto! Nossa, isso você encontra em qualquer
esquina. Aí o cara é demitido e vocês fazem o que com a penca de filhos, o
aluguel e as contas pra pagar?
— Eu sou realista. Não vou sonhar com um empresário.
Ela bateu a caneta nos lábios.
— Vamos colocar agente imobiliário. Eles ganham muito bem.
— E são chatos.
Ela levantou uma sobrancelha.
— E você é superdivertida.
Revirei os olhos e ameacei pegar o caderno, mas ela riu o tirando do
caminho.
— Voltando à aparência... vamos cortar o Borges dessa lista, meu
amor. Vamos usar essa imaginação e sonhar mais alto...
— Lá vem você colocar alguém com as características do William
Levy, Maluma ou Caio Castro.
— Nah, esses estão passados. Eu pensei em um barbudo, musculoso e
de cabelo grande... com olhos claros e cara de viking. Imagina só? Eles estão
na moda.
Eu tirei a agenda da mão dela tão rápido que a caneta voou da outra.
— Não. Nada de barbudos e cabeludos. Prefiro o Borges.
Ela revirou os olhos e levantou, indo para a geladeira.
— Você vai morrer quase virgem, falida e com mau gosto.
Mali continuou falando sobre meu mau gosto e o homem dos sonhos
dela, mas eu não prestava atenção em suas palavras. Meu foco estava
naqueles rabiscos na agenda.

ü Calmo
ü Observador
ü Muito educado
ü Muito gentil
ü Supersocial
ü Amigável
ü Extrovertido
ü Divertido
ü Focado
ü Sonhador
ü Apaixonado pela vida
ü Quer ter uma família
ü Se preocupa, mas não invade meu espaço
ü Não é ciumento
ü Careca
ü Olhos castanhos
ü Altura mediana
ü Magro ou corpo normal (Ok se tiver uma
barriguinha de cerveja, só não pode ser
musculoso)
ü Odeia teatros
ü Um trabalho estável
ü Nada de empresários
ü Agente imobiliário está ótimo (talvez um
taxista)
Descrevi meu homem dos sonhos e quando li a lista percebi uma
coisa. Ele não tinha nada a ver com aquele grosseirão.
Ainda bem, porque um homem daqueles eu não queria nem para dar
bom dia.
Homem dos meus sonhos... jamais! Eu queria pura e simplesmente
muita distância de Cobain James.
Capítulo 7
"...cada suspiro que você der
Cada laço que você quebrar
Cada passo que você pisar
Cada sorriso que você fingir
Eu estarei te observando..."
the police, every breath you take

ü ELE É CALMO E OBSERVADOR

Incrível como a semana sempre demorava uma eternidade para


chegar ao fim, enquanto o restante do sábado que eu tinha livre acabava
rápido demais e o domingo parecia um piscar de olhos.
Cody e eu acordamos cedo, então o levei a uma praça no bairro,
comprei um sorvete — dividindo com ele já que não tomava sozinho ainda
— e o assisti brincar na rua com outras crianças. Domingo era o dia de folga
geral, então meus vizinhos estavam fora de casa, espalhados pelas calçadas,
carros de som ligados, cada um tocando um ritmo diferente e a gritaria
rolando solta.
Garrafas e latinhas de cerveja passando de mão em mão, fumaça de
cigarro que não parava de subir... e enfim, um domingo normal ali na região.
Eu morava no Grajaú, zona norte do Rio. O bairro não era aquela
maravilha em questão de segurança, mas era acessível, tinha mercado, escola,
lojinha de tudo quanto é coisa bem perto e cabia no meu bolso. Quer dizer...
pelo menos dividindo o aluguel com Mali, cabia. Eu sabia que pelo dinheiro
que ela fazia, poderia muito bem sair dali e ir para um lugar melhor, ou até
dividir o aluguel com alguma das meninas que ganhavam tanto quanto ela.
Mas minha amiga era fiel demais para me deixar sozinha e mandar eu me
virar.
Ela me salvou sem nem me conhecer e continuava fazendo isso
diariamente.
Nós voltamos para a casa por volta das cinco, quando Cody já caía de
sono. Sua roupinha estava suja de comer, brincar e pular; os pezinhos pretos
de ficar descalço, porque ele simplesmente odiava usar sapatos. E quando foi
o momento de dormir, ele demorou um pouco. Estava bocejando, cansado,
mas ainda queria brincar.
Já eu, foi questão de minutos depois de colocar a cabeça no
travesseiro, que dormi.

(..........)

— As meninas vão em um lugar novo hoje. Dizem que é possível


apenas dançar e se você for boa, nem tem que tirar a roupa.
Mali me falou assim que pisei em casa naquela segunda-feira. Cody
correu para ela, fazendo carrinho com a boca e gargalhando quando foi
levantado no ar.
— Segunda é meu dia de ficar com ele. O único dia que tenho à
noite.
— Eu sei. Mas vi que o remédio está acabando e consegui uma vaga
pra você. Vai essa noite e se achar que compensa, pode até conversar sobre
mudar o dia.
— Eu acho melhor não, Mali. Vou ficar onde estamos mesmo. Já
conheço e sei como funciona.
Deixei minha bolsa no sofá e sentei, tirando o tênis do pé. Estava
muito cansada e as olheiras debaixo dos olhos denunciavam isso. Fazia um
calor insuportável no Rio, a tarde no trabalho foi torturante, e Lari, como
sempre, compreensiva com a minha situação, entendendo quando eu
precisava me ausentar por alguns minutos.
Mali sentou com Cody em frente a sua caixa de brinquedos.
— O problema é que... nessa nova compensa muito mais para nós. Eu
fui ontem, logo em um domingo, e fiz em uma noite o que geralmente levo
três para conseguir no Borges.
Eu arregalei os olhos.
— Uau... é muito dinheiro.
— Sim, e para quem dança lá, também compensa. Não vou te
pressionar e se você resolver ficar onde estamos, vou ficar com você, mas
seria bom pensar nas opções.
— Não, Mali, nem vem com essa! Se eu for ficar no Borges e para
você compensa ir para essa nova, não vou te pedir para não ir.
— Você não tem que pedir — ela afirmou, enquanto levantava um
avião no ar. — Olha, Cody... avião. Diz avião. Consegue dizer?
— Inhããã.
— Quase lá, bebê. A-vi-ão. Diz!
— Você já abre mão e deixa de fazer muita coisa por causa de mim
— insisti.
— Não é sacrifício nenhum. Você é minha melhor amiga e seu filho é
uma parte do meu coração. O que tiver que fazer por vocês dois, eu vou
fazer.
Quando ela disse isso, lágrimas vieram aos meus olhos e me sentei no
chão com os dois. Cody de prontidão subiu em meu colo, me mostrando mais
uma vez o bebê carinhoso que era quando me abraçou, depois voltando a
mexer em seus brinquedos. Eu abracei minha amiga, dizendo a ela sem
precisar usar palavras, o quanto era grata por tê-la em nossas vidas.
— Obrigada, Mali.
Ela encolheu o ombro.
— Eu faço essas coisas boas para ver se Deus me aceita no céu.
Revirando os olhos, a soltei e dei uma cotovelada que a fez rir.
— Má — Cody me chamou, mostrando o boneco Chucky que tinha
ganhado de Raiana.
— É lindo, bebê.
Mari Louise torceu o nariz.
— Raiana tem um gosto tão horrível. Olha o brinquedo que dá pra
criança.
— Ele adorou.
— A filha dela pediu uma Polly Pocket sereia e ela deu uma boneca
Monster High.
— Mas essas bonequinhas são fofas.
— Ela deu aquela que tem duas cabeças em um corpo só.
Eu torci o nariz dessa vez.
— Pelo menos o Chucky não fala "eu vou te matar".
Ela riu e beijou a cabeça de Cody, em seguida ficou de pé.
— Vou tomar banho. A Paraíso vai passar aqui para me pegar.
Quando ela estava próxima de entrar no quarto, eu a chamei.
— Dá tempo de eu me arrumar?
Ela balançou a cabeça.
— Não, Dani, você não vai.
— Eu sou adulta, esqueceu?
— Mas só vai porque está se sentindo forçada!
— Não, na verdade eu quero ir para saber se vai ser melhor do que no
Borges. Se posso ganhar mais em outro lugar, fazendo a mesma coisa, por
que não tentar? Talvez consiga até trabalhar menos e ficar mais com Cody.
Ela me deu um olhar avaliativo, desconfiada.
— Tem certeza? Se não quiser ir...
— Mali, pare. Eu vou. Só tenho que ver se a Beatriz pode ficar com
ele essa noite.
— Certo, então vou tomar banho rapidinho para deixar o banheiro
livre para você.
Eu assenti e quando ela foi, peguei meu filho, o deitando no tapete ao
meu lado. Ele tentou segurar meus cílios com a ponta dos dedinhos gordos e
beijou meu rosto, deixando-me toda babada.
— Mamãe também te ama, mas preciso ir hoje. Você entende, não é?
— Mamã?
— A mamãe queria ficar aqui e brincar, filho. Mas tenho que ir
ganhar dinheiro pra você ter as coisas.
Ele continuou distraído com seu brinquedo enquanto eu alisava seus
cabelos. Os fios lisos e pouco encaracolados nas pontinhas eram de um
castanho claro que quase chegava ao loiro. Diferente do meu, castanho
escuro. Porém, ele puxou meus olhos. Um marrom brilhante e tinha os olhos
redondos como os meus. Mali sempre dizia que eram olhos encantadores.
Ele me olhou, mostrando seu personagem que trocava de cabeça, e
sorriu. Depois ficou de pé e voltou a sentar no meio dos brinquedos, se
perdendo no mundo dele.
— Queria te dar mais, bebê — sussurrei. — Muito mais.
— Terminei, Dani! — Mali gritou, saindo do banheiro e já entrando
em seu quarto.
Eu suspirei e levantei, peguei Cody e alguns brinquedos e o levei até
o quarto dela. O sentei em sua cama e Mari Louise deu um gritinho,
brincando com ele.
— Um homenzinho vai me ver! Fecha o olho já, menino!
Ele riu e levou as duas mãos até os olhos, os tampando.
— Ai, meu Deus! — Entrei na brincadeira. — Onde foi parar esse
menino agora?
Ele já gargalhava, fazendo nós duas rirmos junto.
— Será que está aqui embaixo? — Mali levantou os travesseiros.
— Ou será que está aqui? — Ajoelhei no chão, olhando embaixo da
cama.
— O bebê está perdido. Onde é que foi parar, hein?
Cody começou a bater palmas como se quisesse chamar nossa
atenção, dizendo que estava ali, e nós fizemos festa, o beijando.
No fim, saí do quarto ouvindo a gargalhada dele que ecoava pelo
corredor.
O melhor e mais bonito som que havia nessa vida.
Fui para o banheiro saltitando, ao som da única música que ainda
podia dançar: o riso do meu bebê.

(..........)
Eu limpei escondido a única lágrima que escorreu do meu rosto
quando uma mulher saiu do palco levando sua cadeira e eu entrei, sabendo
que era a minha vez.
Since I've Been Loving You, de Led Zeppelin, começou a tocar como
eu havia pedido e por um momento me apavorei, embora meus pés já
tivessem começado a se mover. Sempre escolhia músicas lentas para não
cansar muito rápido, para o meu corpo não falhar bem enquanto dançava para
todos verem. Eu estava ocupada olhando como de cima do palco a boate
parecia maior. Maior, luxuosa e refinada. Os clientes também eram de outro
nível. Engravatados e caras de camisa polo, calças caqui e sapatos com
aparência cara.
Meu olhar ainda vagava pelo lugar quando parou em um local
específico. Estreitei os olhos, tentando ver se era o que imaginava, e meu
coração chegou na garganta ao constatar que sim.
Em uma mesa pouco mais distante haviam três homens sentados, dois
deles conversavam e o outro tomava uma bebida, parecendo mais
concentrado no copo do que em qualquer outra coisa. Mas de repente seu
foco já não era mais o objeto nas mãos e sim eu.
Eu senti quando seus olhos passaram por mim e mesmo longe, sabia
que ele ainda me encarava.
Senhor Cobain James.
O homem de quem eu estava com tanta raiva encontrava-se ali, me
observando dançar quase nua, e havia uma gigante possibilidade de me
reconhecer e se isso acontecesse, eu podia dar adeus ao meu emprego no
teatro. É claro que ele contaria.
Mesmo que eu estivesse com a máscara e o cabelo solto para voar
sempre em volta do rosto, a paranoia me bateu fortemente e virei de costas.
Tentei tirar o senhor James da cabeça e me lembrar que Cody estava
em casa com uma babá esperando por mim e que era por ele que estava ali.
Para conseguir nos dar uma situação melhor.
Voltei a dançar com foco e concentração no poledance que ali em
cima, naquele momento pertencia a mim. Tropecei algumas vezes, mas
consegui disfarçar e dei graças a Deus quando acabou.
Corri para o camarim e me vesti, inventando uma desculpa qualquer
para Mali antes de sair, esperar um táxi junto com um dos seguranças do
fundo e ir embora.
Mas a percepção de que Cobain James havia me visto daquele jeito
me desestabilizava. E eu jamais admitiria... mas me perguntei se em algum
momento depois de tomar conhecimento que estava ali, não dancei para ele.
Capítulo 8
"...a sua sombra me cobre
As minhas lágrimas secam sozinhas
Gostaria de dizer que não me arrependo
E que não há dívidas emocionais
Mas, quando a gente se despede, o Sol se põe..."
amy winehouse, tears dry on their own

ü ELE É MUITO EDUCADO E MUITO GENTIL

Terça-feira chegou mortal, como sempre. Cody ficou na escola e eu


corri para o teatro, já atrasada.
Quando sentei na minha cadeira, Lari me deu um sorriso sonolento.
— Se prepara. Hoje isso aqui está uma loucura.
— Como sempre. Carlos apareceu?
— Sim. Falou que nenhuma ligação está autorizada, com exceção do
senhor James ou qualquer pessoa por parte dele.
Eu quase revirei os olhos.
— Certo. Ele estava bravo?
Ela franziu o cenho.
— Não. Mas no final do aviso disse, “Reforce bem esse nome para
Danielle”.
Eu gemi em frustração.
— Ele vai me demitir, tenho certeza. Vai só esperar as coisas ficarem
mais calmas por aqui e vai me mandar embora.
Ele passou a mão nas minhas costas.
— Claro que não, amiga. Eu e Gui nos juntamos e fazemos um
abaixo assinado — ela disse e eu ri.
— Não faria nenhuma diferença, mas agradeço mesmo assim.
Ela olhou para o corredor antes de se inclinar e falar baixinho:
— Adiantaria se ele chamasse toda a tropa do frango cozido e
brócolis.
Nós rimos e balancei a cabeça, abrindo meu e-mail para começar o
dia.

(..........)

A manhã passou em um piscar de olhos devido a movimentação no


Teatro.
Meu coração disparava só de pensar o motivo de aquilo estar
acontecendo, mas eu buscava respirações profundas e me lembrava de qual
era o meu lugar. Atrás daquele balcão atendendo mais ligações e sonhando
menos.
Larissa voltou do almoço uma hora e quinze minutos depois. Seus
olhos estavam vermelhos e levemente inchados.
— Ei... o que houve?
Ela balançou a cabeça.
— Nada. Desculpe pelo atraso. Eu volto mais cedo amanhã para
compensar.
— Não estou preocupada com isso, Lari. Quero saber porque está
assim!
Ela puxou as mãos das minhas e sentou em seu lugar.
— Não é nada, esquece isso. —Vendo que eu ia insistir, ela me deu
um olhar tão triste que resolvi deixar de lado por ora. — Por favor.
Eu suspirei.
— Está bem.
Por enquanto.
— Vou sair para almoçar, então. Trouxe só um lanche hoje, vou
voltar rápido.
— Dani — Olhei para trás, vendo Guilherme se aproximar e inclinar-
se sobre o balcão, depois beijar meu rosto —, preciso de um favor. Hoje as
coisas estão corridas lá na administração. Larissa vai cadastrar o pessoal que
está chegando para o passeio de visitação e eu tenho alguns documentos para
analisar. Pode fazer isso?
Eu assenti.
— Claro. O que você precisa?
— O senhor James tem que conhecer o Teatro, então preciso que
mostre as partes mais importantes que os bailarinos usam.
Eu arregalei os olhos.
— James... Cobain James?
— Ele mesmo.
Não! Eu queria gritar, mas como se já soubesse minha resposta, ele se
aproximou, andando calmamente pelo corredor e parando ao lado de
Guilherme. O olhar do grosseirão estava concentrado no meu rosto, apenas
esperando a próxima oportunidade de me dedurar, talvez.
— Claro — respondi a contragosto. — Que horas?
— Agora — foi o senhor James quem respondeu.
Eu estava na breve ilusão de que teria um tempo para me preparar,
mas ao que parecia, tudo o que se tratava daquele homem vinha para me
pegar de surpresa e nos piores momentos.
Ele não me poupou outro olhar quando virou as costas e começou a
caminhar para dentro novamente.
— Agora, Dani — Gui reforçou e eu saí do meu torpor, deixando o
celular na gaveta antes de andar apressada para alcançá-lo.
Ele encarava o vitral colorido das paredes altas do corredor de acesso
ao palco, em silêncio. Eu respirei fundo e fui até ele, parando poucos passos
atrás.
— Senhor James? Por onde gostaria de começar?
Ele desviou os olhos de lá e me fitou com pouco caso. Ele me
observou em um silêncio tenso e constrangedor, e eu tentei buscar em seu
olhar algum fio de reconhecimento, algo que denunciasse que ele havia
percebido ser eu na boate, dançando com cada batida uma peça de roupa a
menos.
Mas logo desviou o olhar e eu respirei aliviada. Ele não disse nada,
não deu nenhuma dica e eu ainda não havia sido demitida, então estava tudo
bem. Foi muito perto, mas ele devia estar tão bêbado que provavelmente nem
se deu conta de que era eu lá em cima.
Eu é que era paranoica demais.
— Você conhece o lugar, me apresente rápido e objetivamente. Não
quero saber nada sobre datas e histórias, apenas me leve aonde as equipes de
companhias costumam ficar e os lugares que usam.
Eu assenti, meio atordoada com sua frieza, mas já devia ter me
acostumado.
Gentileza e educação não eram o forte dele.
O levei até os lugares básicos do Teatro, nada importante. Só fui
passando e dizendo o que era, mesmo que ele pudesse ver com clareza. Ele
ficou em silêncio o tempo todo, nenhuma pergunta, nenhum comentário.
— Essa sala costuma ficar vazia, ninguém usa realmente. Mas eu
acho...
— Faça com seu achismo o mesmo que as datas e histórias. Poupe-
me deles.
Ele seguiu caminhando e olhando em volta com seu olhar superior.
Eu fiquei me recuperando do fora bruto e desnecessário, depois me recompus
e o alcancei.
Ele passou a mão na parede e algumas pequenas lasquinhas de tinta
caíram, fazendo-o erguer uma sobrancelha.
— Já ouviram falar em tinta? Reforma?
— Já ouviu falar em clássico? Renascentista? Rústico?
— Já ouvi sobre isso, ensinei sobre e sei diferenciar clássico de
caindo aos pedaços.
Minha boca foi ao chão. Eu sempre tinha achado aquele lugar tão
bonito, tão cheio de histórias e cultura. Como ele conseguia amargurar tudo
com sua energia pesada?
— Então aqui temos a entrada. — Ignorei sua resposta e fiz o
possível para continuar o tour. —Geralmente quem vai se apresentar passa
por aqui até o camarim. Temos banheiros para eles usarem sem precisar
virem aos daqui de fora.
— Isso é o mínimo.
Força. Força. Força.
Você precisa do emprego.
Pense em Cody.
Continuei andando e passamos pelas escadas largas de acesso aos
bancos no camarote.
— O senhor quer conhecer lá em cima?
— Faz parte da apresentação?
— Convidados importantes costumam ficar lá quando se trata de uma
companhia mais conhecida.
Ele assentiu.
— Sim, quero ver se a estrutura é boa para receber o tipo de gente
que vai vir.
Esnobe.
Se soubesse o quanto eu o estava xingando mentalmente, talvez
tentaria ser mais gentil. Ou não.
Eu subi as escadas com ele me seguindo e quando chegamos lá em
cima, forcei um sorriso e abri os braços.
— Então... é aqui.
Ele tirou os olhos entediados de mim e os passou pelo chão. As
cadeiras, as paredes, cortinas e até o teto. Nada ficou livre de sua inspeção.
— É isso? — Suspirou pesadamente. — Eu tenho pessoas vindo de
diversos países para sentar aqui?
Chega. Eu estava farta das reclamações dele. Daquele humor escuro e
aura pesada.
— Senhor Cobain, eu não me importo se o senhor pensa que meu
país é uma droga, se não come nossa comida ou que pensa que nosso Teatro,
um dos mais importantes do país, não está no seu nível de perfeição! Mas eu
vou lhe dizer uma coisa: pessoas muito mais importantes que o senhor já
passaram por aqui, aproveitaram e souberam aprender com o lugar. Eles
sentiram a magia, o amor, e entraram aqui com o coração aberto, não com um
caderno de críticas!
Eu respirava com força, de olhos arregalados pelas coisas que
acabara de dizer, e pelo olhar ainda indiferente dele.
Sua única reação foi levantar o braço, dando uma olhada em seu
relógio de pulso.
— Terminou o discurso? Tenho horários a cumprir.
Eu franzi a testa e observei seu rosto duro e tenso, e a forma como os
olhos verdes analisavam todo o lugar com desprezo.
— Não importa o que eu diga.
— O quê?
— Não importa o que eu diga. O senhor parece odiar esse lugar e
nada do que eu disser para tentar mostrar-lhe como ele é mágico, vai adiantar.
O senhor ainda assim vai diminui-lo.
Ele me fitou com um semblante inexpressivo.
— Magia não existe. Isso é apenas um museu velho onde pessoas
vêm gastar dinheiro e fingir que são cultas. Se você perguntar a qualquer um
aqui, em Paris, Londres ou qualquer outro lugar do mundo, saberão lhe dizer
o valor da roupa que usam para a noite, mas não terão ideia de qual ano o
lugar foi construído. — Ele parou por um momento, passando as mãos pelos
cabelos, e repetiu: — Magia não existe. E se a senhorita acredita no contrário,
deveria crescer, antes que o mundo lhe engula.
Ele virou as costas e saiu pisando fundo, seus sapatos ecoando no
espaço vazio.
Eu fiquei ali, apoiada em uma das cadeiras com encosto de veludo
vermelho, encarando o corredor por onde ele havia saído minutos atrás.
— 1909 — sussurrei.
Mas não importava, porque ele não ouviu.
(..........)

O caminho para a casa, assim como o restante da tarde no trabalho,


foi de pensamentos rodeados de "porquês?", de dúvidas, de questionamentos
que fiz a mim mesma com relação aquele homem.
Como era possível ser tão insensível, bruto e desrespeitoso?
Mesmo com todas as desgraças e obstáculos da vida, nem eu, que
tinha diversos motivos para ser até pior que ele, me tornei amarga daquela
forma. Eu tinha medo do dia seguinte, tinha medo da hora seguinte e temia
até mesmo sair de casa. Sabia que a qualquer momento poderia colocar a
mim mesma em risco. Mas ainda assim... continuava tentando, dia após dia.
Eu sorria e dava bom-dia às pessoas. Não tinha nenhuma certeza do
amanhã, mas ainda assim... lutava para que ele chegasse.
Agora aquele homem... Cobain James era a prova de que o dinheiro
transformava as pessoas. Ele era esnobe, egoísta, se achava o rei por onde
pisava, sem educação alguma e não tinha respeito por quem ele achava estar
abaixo dele, como eu.
Eu bufei, pensando em suas palavras rudes daquela tarde, e Lorena
levantou uma sobrancelha, me questionando sobre o que havia acontecido.
Apenas balancei a cabeça e voltei a prestar atenção na conversa delas.
Paraíso trocava a fantasia que usaria aquela noite uma e outra vez, em
dúvida entre anjinho ou demônio. Ela gostava de vestir coisas diferentes,
dizia que quando o personagem tomava conta era mais fácil lembrar que ela
não era apenas aquilo.
— O que acham dessa? — perguntou, tirando uma roupa de colegial
de dentro da mala.
— Obsceno — Mali comentou, do canto. Ela segurava o celular,
provavelmente tirando uma foto para seu Instagram.
Kika riu.
— Obsceno é bom para isso aqui. Eu voto na obsceno.
Lorena franziu os lábios.
— Já usou essa antes.
Paraíso bufou e jogou a peça de volta na mala.
— Que merda! — E voltou ao dilema, anjo versus demônio.
Elas entraram em uma conversa sobre maquiagem; Mali continuou
exibindo um sorriso perfeito e uma maquiagem incrível enquanto posava para
sua câmera; e eu fiquei olhando o relógio na parede, querendo que as horas
voassem direto para o momento em que eu ia embora.
Na mesma hora meu celular tocou. O nome de Gabi piscando na tela
me fez ficar alerta e saí do camarim, fugindo do barulho de conversas e
risadas. Fui até o final do corredor, onde quase não tinha barulho e atendi.
— O que houve, Gabi?
— Cody... fez... mas já reso... ve e voltou... mas vou como você dis...
Franzi a testa e olhei ao redor. O sinal estava ruim, fazendo a voz
dela sair toda cortada.
— A ligação está péssima. Espere um segundo, Gabi.
Abri a porta dos fundos e estranhei que Léo, o segurança, não estava
lá. Me encostei na parede da calçada, puxando o roupão de seda com a logo
da boate mais apertado em meu corpo. Já passava das três da manhã e por
incrível que fosse, estava frio.
— Gabi, pode falar agora!
— Desculpa ligar, Dani, sei que deve estar ocupada.
— Para o meu filho nunca estou ocupada. O que houve? Estou
pegando um táxi de volta para casa agora mesmo.
— Não precisa, Dani. Na hora que liguei ele tinha acordado
assustado de um pesadelo e não parava de chorar, mas consegui acalmá-lo e
ele pegou no sono outra vez. Sinto muito mesmo. Não precisa vir embora.
Meu corpo ficou totalmente apoiado na parede naquele momento,
apenas o concreto me segurando para não cair. Mais uma vez o meu filho
precisou de mim e eu não estava lá para ele.
Meu bebê estava assustado, com medo, e só precisava de mim, mas
eu não estava com ele, como sempre. As lágrimas brotaram em meus olhos e
assenti, mesmo que Gabi não pudesse ver.
— Tudo bem. Olha... eu saio daqui a pouco e vou para casa. Vou
falar com o gerente da fábrica e tentar sair mais cedo, mas se não conseguir,
já já estarei aí.
Para ela e todas as outras pessoas que me conheciam, eu trabalhava
em uma fábrica de papel no horário da noite. Existiam muitas empresas com
aquele turno de trabalho, então a desculpa era válida e convincente.
— Está bem. Mas não se preocupa mesmo. Ele agora está dormindo
como um anjo.
Fechei os olhos, segurando um soluço.
— Ok — sussurrei. — Obrigada, Gabi. Até mais tarde.
Desliguei e deixei meu braço cair, os ombros e a cabeça também.
Eu mais do que ninguém sabia como pesadelos podiam ser horríveis.
Destruidores de sonhos.
Perfeitos Dementadores.
Meu bebê tinha sofrido mais uma vez com um e a pessoa que deveria
abraçá-lo estava longe, tirando a roupa para dezenas de homens em um lugar
escuro e sujo.
— Ei! — uma voz chamou ao lado e eu despertei, limpando as
lágrimas que corriam em minha bochecha.
Ouvi passos perto, mas não olhei. Tentei abrir a porta, desesperada,
mas não conseguia.
— Merda — sussurrei.
Léo devia ter me trancado para fora. Aquela porta nunca ficava
aberta, sempre deveria estar trancada. Ele não tinha como imaginar que eu
saí, até porque era uma regra da boate. Nunca sair em horário de trabalho
para não chamar atenção de possíveis abusadores que frequentavam a noite
do Rio de Janeiro. As roupas que eu usava explicavam bem o porquê disso.
Ali, naquela rua deserta, eu era um alvo fácil.
— Você não deveria estar aqui fora sozinha, garota — um homem
avisou, ele parecia sério, só então eu olhei. Três homens estavam parados a
vinte passos de mim. O que falou isso ergueu as mãos para o alto. — Não se
preocupe, não vou machucá-la. Seus olhos parecem que vão pular do rosto.
Tentei abrir a porta novamente, mas então, de soslaio, vi um deles dar
um passo mais perto. Estava escuro, nada fácil de reconhecer as três sombras,
mas eu ouvi com clareza e reconheci perfeitamente a voz que falou depois.
— Danielle?
Eu o olhei na mesma hora. Minhas mãos soltaram a maçaneta de
ferro como se estivesse pegando fogo e apertei o celular na outra mão, dando
um passo atrás.
Cobain James.
O homem que eu ansiava não precisar ver nunca mais, estava bem ali,
diante de mim, de cara com a minha maior vergonha.
— Você a conhece? — o primeiro perguntou, então riu. — Merda!
Serei amaldiçoado. Ele está pegando a stripper.
A palavra fez meu coração doer e minha pele arrepiou da pior forma,
com repulsa de mim mesma.
Cobain deu outro passo, ignorando o homem de trás.
— Danielle.
Seu tom de voz era tão incrédulo quanto a expressão em seu rosto, e
o tom de voz duro abrandou apenas um pouco, como se estivesse tão chocado
que até sua voz tinha falhado.
Ele deu dois passos à frente e estreitou os olhos.
— O que faz aqui?
Eu dei um passo para atrás, fugindo de seu olhar penetrante que era
capaz de me deixar travada no lugar apenas pela força que carregava nas íris
verdes.
— E-eu...
Então aconteceu. Seus olhos desceram pelo meu corpo e franziram
ainda mais, todo o rosto se tornando duro. Ele não observava meu corpo,
minhas pernas nos saltos e as meias sensuais que éramos obrigadas a vestir.
Não. Ele olhava para o roupão que deixava muito claro o que eu fazia ali.
Vi o farol de um carro se aproximando no fim da rua e a luz do único
poste que funcionava iluminou o suficiente para eu ver que era um táxi.
Com as pernas tremendo, me segurei de pé o suficiente para
atravessar a rua, quase sendo atingida pelo carro, e aproveitei, abrindo a porta
de trás. O taxista foi levantando as mãos ao alto, pensando que era assalto.
— Moço, anda! Dirige, rápido!
— Só trabalho com cartão, não tenho dinheiro aqui — argumentou,
ainda com as mãos no ar.
— Eu tenho cara de quem vai te assaltar?! — Olhei para trás e vi que
Cobain se aproximava enquanto seus amigos o encaravam sem entender. —
Pelo amor de Deus, dirige. Aquele homem que está vindo vai me machucar!
O motorista pareceu acreditar em mim e olhou pelo retrovisor. A cara
de Cobain devia ser assustadora, porque logo o carro começou a se mover
para longe. Mentir foi minha única saída, embora eu realmente não soubesse
se ele me faria mal ou não. Se fosse considerar pelo humor e sua
personalidade, era até capaz.
Eu olhei uma última vez, vendo-o parado no meio da rua e me
olhando como se eu fosse uma assassina pega em flagrante. Era quase isso e
o que eu mais temia aconteceu.
Um dos meus segredos, o mais humilhante e vergonhoso, foi
descoberto e não poderia ser por alguém pior do que Cobain James.
Eu estava muito ferrada.
Capítulo 9
"...mas quando você aponta seu dedo tão selvagemente
Existe alguém para acreditar em mim?
Para ouvir meu apelo e cuidar de mim?
Onde posso estar seguro? A onde pertenço?
Como posso esquecer aqueles lindos sonhos que compartilhamos
Eles estão perdidos e não consigo acha-los
Às vezes eu tremo no escuro
Como posso continuar?..."
freddie mercury, how can i go on

ü ELE SE PREOCUPA, MAS NÃO INVADE O MEU ESPAÇO

Quarta e quinta eu rezei a todos os santos e deuses para que Cobain


não aparecesse no Teatro, e ele não apareceu. Eu trabalhei em um estado de
tensão constante e cada vez que alguém do RH passava por mim, eu tremia
— mais do que já tremia normalmente —, me perguntando se era o momento
em que eu seria desmascarada. Mas não aconteceu, e os pensamentos
pavorosos só aumentavam na minha mente. Então, antes de ir embora na
quinta, eu tive uma luz e vi na agenda de Carlos, onde estava anotado que
eles teriam uma reunião no horário de almoço na sexta.
Eu liguei para o Teatro no dia seguinte e informei que não poderia ir,
porque não estava bem. O pessoal da administração tinha meus documentos
médicos e relatórios, e eu raramente faltava, então Andreza me cobriu e eu
pude ficar em casa tremendo de medo de receber uma temida ligação.
Cobain contaria a Carlos, com toda a certeza.
Eu já estava até pensando em outras formas de conseguir dinheiro
para repor o salário do Teatro, porque sabia que segunda-feira estaria no olho
da rua.
(..........)

No sábado, meu filho brincava com as outras crianças enquanto eu o


observava e esperava Mali voltar de onde tinha ido comprar pastel para nós.
Era o sábado cultural na Vila e Cody adorava. Praticamente todas as crianças
juntas para as atividades que aconteciam ali, graças a alguns adolescentes que
tiveram a iniciativa de ocupá-las com coisas produtivas.
Tinha pintura de rosto, brincadeiras em geral, mágica e lanches à
vontade.
Era uma forma incrível de incentivar a arte, que os pequeninos não
ficassem na rua durante toda a tarde presenciando as coisas ruins que
aconteciam, mas aprendiam e faziam o que deveriam fazer naquela idade: se
divertir.
Vi minha amiga se aproximando com os pastéis e sucos na mão.
— O que é esse sorriso no rosto? — perguntei, pegando o lanche de
Cody.
Ela sorriu mais ainda, fazendo os olhos já puxados quase fecharem.
— Acabei de conseguir um encontro.
— Sério? Aqui e agora?
Ela deu uma mordida na massa e assentiu.
— Sim, fiquei até surpresa. O cara não parecia nada com alguém que
viria aqui. Depois que pegou meu telefone, entrou em um carrão que o
esperava do outro lado da rua e eu fiquei ó... — Ela levou a mão ao queixo e
bateu nele — babando.
Sorrindo, balancei a cabeça.
— Quantos encontros você consegue por dia, Mari Louise? Fora os...
você sabe.
Ela desviou o olhar, mas continuou sorrindo.
— Quantidade não é qualidade. Meu estado civil prova isso. Mas...
esse cara pode ser a minha oportunidade de um noivo.
Eu dei risada de sua mania de "noivo" e bebi um gole do suco,
mantendo um olho em Cody.
Mali tinha essa coisa de não dizer que queria alguém, um ficante, namorado
ou um "crush". Ela dizia que precisava da "oportunidade de um noivo", ou
apenas a "oportunidade". Quando saía e voltava falando algo como "encontrei
várias oportunidades", eu sabia que era sua brincadeira sobre achar alguns
caras bonitos, com quem ela toparia sair. Criativa como só ela era.
— Você acabou de conhecer e já acha que ele é a oportunidade?
— Você também acharia se visse os belos pares de olhos azuis que
ele tinha.
Dei de ombros.
— Olhos azuis realmente não me atraem em nada, Mali.
E era a mais pura verdade. Aquela cor tinha sido encantadora uma
vez, mas agora... até mesmo o céu perdia seu encanto para mim, por ser azul.
Ela revirou os olhos, alheia ao meu drama particular, e pegou o pastel
de Cody.
— Vou levar para ele.
É claro que minha melhor amiga não tinha como saber, eu nunca
disse a ela. Mali não sabia nada sobre mim, Minas Gerais e quem eu fui anos
atrás. Ela conhecia a Danielle que abrigou e ajudou sem fazer perguntas, sem
cobrar respostas. Apenas sempre deixou claro que estava lá por mim, se
precisasse, e eu sempre disse que correria para ela se acontecesse, mas nunca
fiz.
Assim como existiam coisas que ela nunca explicava e eu não
perguntava, também. Era um acordo mútuo, silencioso, nosso, no qual cada
uma tinha seus próprios problemas que guardavam para si. Se eu não estava
disposta a falar dos meus, não podia cobrar dela e o mesmo servia para Mali.
E isso sempre funcionou.
Ela se sentou ao lado de Cody, que em segundos pulou em seu colo e
revezava sua atenção entre o delicioso pastel de pizza e os carrinhos que
brincava com mais dois garotos do bairro.
— Danielle? — Olhei para trás, vendo Suellen, uma das
organizadoras do projeto.
— Oi, Suellen.
Ela sorriu e estendeu a mão.
— Como vai?
— Bem, tudo certo. Você?
— Tudo ótimo. O projeto está crescendo, cada vez mais crianças,
estamos conseguindo entrar em novos bairros... tudo indo bem. Cadê o Cody?
Apontei para onde ele estava e ela riu.
— Bem ali, comendo como sempre.
— Ele está uma gracinha.
— Obrigada. E sobre os avanços com o projeto... fico muito feliz.
Isso aqui tem sido incrível para nós. Tenho certeza que vai ajudar muitas
outras pessoas.
Ela assentiu com confiança.
— Espero que sim. Estamos negociando com os donos de algumas
comunidades para tentar implantar no interior delas. Estou crendo que vai dar
certo.
— Vai sim, tenho certeza.
— Mas... — ela começou e parou, meio sem jeito. — Não é só para
jogar conversa fora que te procurei.
— Mesmo? Quer falar comigo?
— Sim. Na verdade... quero te fazer um convite. Vejo que você
sempre está aqui com Cody, quando pode, e quando não consegue vir, ele
vem com a japonesinha ali.
— Eu gosto de como ele fica feliz quando vem aqui. Sempre volta
para casa com um sorrisão.
— E é aí que meu convite entra. Queria saber se há alguma chance de
você querer fazer parte do projeto? Como uma auxiliar, e quem sabe uma das
organizadoras futuramente?
Eu pisquei, abri a boca e fechei, então pisquei novamente.
Definitivamente não estava esperando aquilo.
— Uau, Suellen... isso é... uma surpresa total!
Ela riu.
— Eu sei, tenho te observado faz tempo, vejo como é uma mãe
presente e aqui precisamos de pessoas assim, totalmente certas de que têm
carinho para dar às crianças. Porque elas vêm aqui procurar o que não têm em
casa. Suporte, carinho, diversão. Muitas delas precisam ser adultas ao invés
de crianças. Toda ajuda é necessária.
— Suellen, eu estou tão lisonjeada e feliz com o convite, mas
extremamente chateada de precisar falar não. Não posso nem te dizer que vou
pensar ou algo do tipo. Quando estou aqui, raramente é porque algo
aconteceu no trabalho. Não vai abrir ou revezo com minha colega de
recepção. Mas trabalho todos os sábados, então eu seria uma peça inconstante
da equipe. Vocês nunca poderiam contar cem por cento comigo.
Ela levou os punhos aos olhos como se estivesse chorando, mas
depois sorriu.
— Eu entendo. Também trabalho durante semana e no sábado à
noite. Tem coisas na parte da tarde que acontecem por aqui, que eu falto por
conta do serviço. Mas agradeço a honestidade, Danielle. E posso ver que
você entraria se não fosse esse empecilho. — Deu de ombros. — O jeito é
continuar procurando até encontrar a candidata perfeita.
Sem pensar muito, meu braço levantou e apontou direto em Mali.
— Aquela mulher é sua escolhida, tem que ser. Ela cuida do meu
filho como se fosse dela e tem um coração enorme. Se me dá a liberdade de
indicar alguém, Mari Louise é a pessoa. Talvez até melhor que eu para o
papel.
Suellen sorriu mais ainda e me abraçou.
— Salvou minha vida, Dani. Uma das garotas saiu e precisamos
muito de alguém. Alguém que ligue mais para o futuro dessa geração do que
o pagamento que não conseguimos dar, sabe? Nem tudo é dinheiro.
Eu assenti, engolindo em seco e a assisti se aproximar da minha
amiga, sentando-se perto dela. Meu filho, educado como era, praticamente
enfiou seu pastel na bochecha de Suellen, que riu, negando a oferta.
Cody era uma criança tão fofa e...
— Não há nenhuma segurança no lugar onde você mora.
Minha mão foi ao peito pelo susto, ao mesmo tempo que minha
cabeça virou, encarando o homem que vinha me deixando em um estado de
nervos e ansiedade macabro. Ele estava ali, diante de mim em uma calça e
camisa social, olhando para nada além dos meus olhos. Me acuando,
pressionando e exigindo total atenção de mim, sem nem precisar pedir.
— Senhor James? O que faz aqui?
— Eu cheguei lá e tudo o que detalhei ao seu porteiro foi o seu nome,
e ele já foi dizendo que você não estava, mas de prontidão me informou onde
encontrá-la.
Seu tom de voz era irritado como sempre, não me dando nenhuma
resposta para o que perguntei.
— Você foi até minha casa?
— Sim. Precisava falar com você.
— Não precisa mais?
Sua testa franziu.
— O quê?
— Você disse que precisava falar. Passado.
Ele estreitou os olhos.
— Não queira mudar de assunto, pensando que vai escapar. Sabe
muito bem porque estou aqui e não vou embora até resolver essa pendência.
— Não existe nenhuma pendência que envolva nós dois.
— Existe e você sabe. Não vou deixar isso pra lá.
Respirei profundamente e o fitei diretamente nos olhos.
— Preciso do meu emprego. Por favor, não diga a Carlos. Você não
tem ideia de como é a minha vida, e se eu perder o meu trabalho, estarei sem
rumo!
Ele cerrou a mandíbula.
— Você deveria ter pesado o que valia mais antes de resolver viver
duas vidas. De dia a menina culta e de noite a... — Ele parou suas palavras e
apertou os lábios juntos, passando as mãos pelos cabelos.
— A o quê?
— Acabe com isso. Escolha um dos dois ou eu vou escolher por
você.
Meus olhos arregalaram.
— O quê?!
— Você ouviu bem. Aquele lugar... aquela boate... isso não deveria
acontecer!
— Quem você pensa que é para dizer o que deve ou não acontecer?
— Irritação me tomou por completo. Ele tinha chegado ali sem ser
convidado, exigindo e ditando regras sem que eu pedisse! — É a minha vida
e são os meus trabalhos, não me importa o que você pensa sobre ambos!
Os olhos dele se tornaram mais escuros e a boca apertada em uma
linha fina, então sem que eu esperasse, segurou minha mão e me puxou para
a porta mais próxima. Era onde algumas das mulheres estavam, preparando
os lanches.
— Cobain!
Ele cruzou os braços na minha frente e passou os olhos por todo o
meu rosto.
— Se orgulha disso? Desse... emprego?
— O que te interessa isso?
— Não me interessa em nada, só me prova tudo o que eu te disse no
Teatro. As pessoas que estão lá fingem ser cultas, quando só se importam
com pouco. Você é a prova disso. Só se importa com dinheiro. O que é? O
Teatro não paga o suficiente para cobrir seus luxos, então precisa se submeter
àquela boate?
— Como ousa me julgar desse jeito? Você não faz ideia dos meus
motivos! Você é só um esnobe, grosseiro e intrometido, que se acha melhor
que os pobres. Pensa que está acima de mim só porque sua camisa custa duas
vezes o meu aluguel. Quer saber? Diga ao Carlos, se quiser, eu não me
importo! Só não venha mais atrás de mim, porque eu vou arrepiar a sua cara,
caso se meta na minha vida novamente!
Saí de perto dele, deixando-o dentro daquela cozinha improvisada, e
corri para Mali, pegando Cody no colo e a chamando para irmos embora.
Não olhei para trás.
Estava cansada de ter Cobain me fazendo sentir como nada cada vez
que abria sua maldita boca.
Capítulo 10
"...leve-me à magia do momento
Em uma noite de glória
Onde as crianças do amanhã ficam sonhando
Com você e eu
No vento da mudança"
scorpions, wind of change

ü ELE É SUPER AMIGÁVEL

— O que foi que te deu, hein, Dani? Suellen tinha ido fazer algo, mas
já ia voltar para continuarmos conversando. Eu saí do nada e ela vai me achar
a mal-educada do século!
Minha amiga fechou a porta de casa falando, mas eu não tinha nem
voz para respondê-la. Minha cabeça estava prestes a pifar. Uma tontura me
pegou e Mali percebeu, logo vindo me ajudar a sentar. Precisei ficar sentada
enquanto minha cabeça girava e minhas mãos começavam a tremer. Fechei os
olhos e me controlei para não chorar.
Ela segurava Cody em um braço e minha mão na outra, mas logo foi
colocando-o no chão e puxou sua caixa de brinquedos para perto.
— Aqui, bebê. Olha o carrinho. — Depois de distraí-lo, se voltou
para mim. — Dani, está se sentindo bem?
Eu assenti, angustiada.
— Tudo bem — sussurrei.
Ela franziu a testa.
— O que houve? Me conta logo, Danielle! Está me agoniando!
— Eu vou perder o emprego do Teatro. Serei demitida na segunda-
feira.
— Por que está dizendo isso?
— Aquele homem que estava falando comigo... ele tem meu emprego
nas mãos e eu o irritei o suficiente para que ele o tirasse de mim.
— Que homem? Droga, apareceu alguém lá? Eu estava tão animada
falando com Suellen e prestando atenção em Cody, que não reparei. Só vi
quando sumiu do salão e imaginei que tivesse ido ao banheiro. Desculpe,
Dani.
— Não é culpa sua... — Balancei a cabeça e foi inevitável, a primeira
lágrima de puro desespero deixou meus olhos. — Eu tenho tentado de todas
as formas fazer tudo certo. Para não faltar nada para você, nem para Cody,
nem aqui e em casa. Já falho nisso quase sempre e é você que repõe tudo!
Roupas para ele, as frutas e até meus remédios você já pagou quando não
consegui pegar pelo governo. E agora mais esse prejuízo. São novecentos
reais que vão fazer muita falta, Mali...
Ela segurou minhas mãos, sem entender nada.
— Dani, você precisa se acalmar e me dizer o que está havendo. Esse
cara... ele te machucou? E por que ele tiraria seu trabalho?
— Ele descobriu que eu trabalho no Borges. O vi lá dentro uma vez e
pensei que ele não tinha me reconhecido, mas agora acho que foi só um jogo
para me torturar e agir no momento certo. Ele é um esnobe riquinho, que
provavelmente se diverte destruindo vidas de pessoas inferiores a ele.
— Eu nem o conheço, mas já o odeio. Ele não pode fazer isso,
Danielle. Você tem um contrato, uma carteira assinada. Ele não pode te tirar
isso do nada.
Eu funguei.
— Pode, Mari Louise. Ele pode, porque conhece Carlos, que é um
dos caras mais influentes lá dentro. Ele quase me fez ser demitida uma vez
por causa de uma ligação, por que não seria agora se contasse que eu sou uma
stripper nas horas vagas?
— Isso não tem nada a ver, porra!
— Caso se tornasse de conhecimento público no Teatro que Raiana
trabalha na noite, o que aconteceria?
O rosto dela caiu na hora, entendendo o que eu queria dizer.
— Que merda. Demissão na certa. — Ela suspirou, ficou de pé e
caminhou de um lado para o outro com as duas mãos na cintura, então me
encarou seriamente. — Você acha que ele tem problemas mentais?
Eu soltei uma risadinha, porque sua pergunta era um eufemismo.
— Sim, acho que ele pode ser um pouco psicótico descontrolado.
Ela sorriu e sentou ao meu lado, me abraçando pelo ombro.
— Cody, vem cá. Sua mamãe precisa de um carinho do bebê
carinhoso — ela o chamou com a mão livre e ele nos encarou por alguns
segundos antes de deixar seus brinquedos e se aproximar, deixando a
cabecinha em meu joelho. — Isso aí, garoto.
Minha amiga beijou meu rosto e eu acariciei os cabelinhos do meu
filho.
— Obrigada, Mali. Mas ainda estou prestes a me tornar um encosto
falido por tempo indeterminado.
Ela deu de ombros.
— Nós vamos dar um jeito, sempre damos. Não é, Cody?
Ele olhou para cima e sorriu com seus poucos dentinhos solitários.
Eu quase me deixei ter esperanças de que ela estava certa.
Quase.

(..........)

Gabi chegou adiantada, então eu e Mali saímos um pouco mais cedo


do que o normal para ir até a boate. Seria nosso último dia no Borges antes de
ir para aquela nova boate. Íamos aproveitar para trabalhar lá pela última vez e
receber o salário do mês.
Ele pagava por dia antigamente, mas depois que as meninas
começaram a faltar muito, começou a segurar os pagamentos. Foi a forma
que encontrou de descontar nossa falta. O que era um absurdo, já que tudo o
que ele recebia, era pago na hora.
Os clientes pagavam para entrar e ele tinha o dinheiro na hora.
Pagavam para sair com as meninas e ele recebia na hora.
Então o dinheiro que descontava delas, era a comissão que já as
pertencia. Ele não perdia nada com as faltas, mas o ser humano era egoísta a
ponto de prejudicar o outro se isso fosse beneficiar a ele próprio. Borges era
um egoísta e eu estava pagando para ver sua cara quando todas nós
disséssemos a ele que estávamos indo embora.
Quando o Uber que Mali chamou parou na porta da boate, nós saímos
e eu precisei de uma concentração momentânea para me segurar naqueles
saltos.
Ela revirou os olhos e me deu o braço.
— Você tem um monte de saltos não sei pra que, Danielle. Nunca
usa. Eu que faço a festa com a maioria deles.
— Estou usando agora — resmunguei e ela riu.
— Parecendo uma pata choca.
— Sua bunda!
Ela riu mais ainda.
— Está bem, patinha. Vamos logo. Preciso sambar na cara do Borges
com essa plataforma quando disser a ele "me dá meu dinheiro, seu merda, e
já vai procurando outras para explorar, porque a gente tá caindo fora!".
Eu ri e meu pé entortou, fazendo-nos dar um gritinho e rir mais ainda.
Léo franziu a testa, mas sorriu ao nos ver na porta da boate.
— A noite nem começou e vocês já estão bem, hein?! — Eu o
cumprimentei com um beijo no rosto, mas seu interesse era Mali. Que de um
simples beijinho como o meu, virou um abraço que ela separou rindo e
balançando a cabeça para ele.
— Se controla, seu Leonardo e guarda suas mãos de siri para si
mesmo.
— Mãos de siri?
— Isso mesmo. Mãozinha boba que atira para tudo quanto é canto, buscando
algo pra pegar.
Ele riu e abriu a porta, deixando-a passar, mas quando foi minha vez,
Borges surgiu do nada e cruzou os braços na frente do corpo.
— Pode ir — falou para Léo, e depois que o segurança entrou, ele
falou comigo. — Boa noite, Elle.
— Boa noite, Borges.
Ele me encarava de queixo erguido, como se fitasse uma formiga a
sua frente.
— Bem... vou direto ao ponto em lhe informar que seus serviços não
são mais necessários.
Eu levei um minuto para raciocinar suas palavras.
— O quê?
— Isso que ouviu. Está dispensada.
Eu respirei fundo e assenti.
— Certo, apenas acerte meu pagamento e vou para casa.
Deixei de lado o fato de que ia me demitir eu mesma. Estava cansada
para ficar, como dizia minha amiga, "sambando" na cara dele com aquela
informação.
— Não há nada seu para receber aqui.
— O quê? Como não há nada para receber?
Ele deu de ombros.
— O dinheiro fica como multa por quebra de contrato.
— Ficou louco, Borges? Nem temos um contrato, nem sou sua
funcionária!
— A partir do momento que você trabalha no meu estabelecimento, é
minha funcionária, sim! Se vai sair, deveria me avisar bem antes para que eu
pudesse me organizar e colocar outra no seu lugar! Agora você sai e eu fico
no prejuízo!
Ele estava brincando comigo, só podia ser. Eu me desdobrei e perdi
noites inteiras com meu filho para estar ali e agora aquele lunático dizia que
eu não receberia nada?
— Borges, você está brincando com a minha cara? Eu trabalhei o
mês inteiro, o dinheiro é meu! Você tem várias mulheres aparecendo aqui
atrás de uma vaga todos os dias, não vai ficar no prejuízo de jeito nenhum. Se
não me pagar, juro que vou chamar a polícia!
Ele arregalou os olhos e deu dois passos à frente, temeroso, e a
fachada de chefão superior caiu por terra diante das minhas palavras.
— Não é culpa minha, Elle. Pelo amor de Deus, se chamar a polícia
estarei arruinado!
— Então pague a droga do meu dinheiro, ou a balada vai ser aqui
fora com as sirenes piscando com o barraco que farei nesse lugar!
— Resolva-se com James. Eu não vou passar por cima da palavra
dele de jeito nenhum. Vá cobrar dele e não ouse chamar a polícia. Eu só estou
fazendo o melhor para mim. Não quero problemas com aquele cara!
Dito isso, deixou-me na calçada de boca aberta e entrou. Ouvi o
barulho da chave e do trinco, e soube que ele não voltaria, aquelas tinham
sido suas últimas palavras.
De tudo o que ele disse, "James" e "Vá cobrar dele" passavam uma e
outra vez na minha mente, então o que ele me falou mais cedo veio com tudo.
"Escolha um dos dois, ou eu vou escolher para você".
— Eu vou te matar, grosseirão estúpido, arrogante, intrometido!
Resmunguei enquanto pegava meu celular e atravessava a rua.
Chamei um Uber pelo aplicativo e enquanto o carro não chegava, pesquisei a
única coisa que sabia sobre aquele homem na internet.
No Facebook não havia nada sobre ele, no Instagram e Twitter muito
menos. Então minha última opção foi o Google. Seu nome aparecia em
alguns tópicos, mas eu cliquei direto em um link que dava para um
Instagram. A foto tinha a Hashtag com o nome dele, na qual aparecia sério e
fechado, enquanto dois outros homens sorriam para a câmera.

"Eu (Dona Flor) e meus dois maridos. @RuyCantarini e #James"

A legenda era engraçadinha, mas eu não estava em um momento bom


para rir. Fui no perfil do cara, minhas sobrancelhas indo ao couro cabeludo ao
ver mais de onze milhões de seguidores.
Então me lembrei na hora de quem se tratava. Danilo Lobos, o
apresentador do talk show mais comentado da maior emissora do país. O cara
dividia seu tempo entre ser um babaca completo e um comediante brilhante.
Eu não o acompanhava, mas já tinha assistido o programa quando uma atriz
que adorava foi lá, mas era raro de ver. O cara era uma caixa de polêmicas
ambulante, e pelo seu Feed, parecia adorar dividir sua vida nas redes sociais.
Ao contrário de Cobain, que parecia nem existir no mundo virtual.
Se Danilo era a única forma de encontrá-lo, que assim fosse.
Olhei os stories dele e por sorte, a cinco minutos atrás postou que
estava jantando em um restaurante no Leblon. Fui no Google novamente,
dessa vez pesquisar o restaurante, e cancelei o Uber, mudando o destino e
pedindo outro.
Quatro minutos para a chegada do carro.
Quatro minutos para me decidir se realmente faria aquilo.
Mas então... um mês de um prejuízo que ele me causou.
Quatro minutos em que minha raiva só aumentou e eu ainda queria
matar Cobain James.

(..........)

Trinta e oito minutos depois, e com cinquenta e um reais a menos no


meu cartão de crédito, eu entrava no restaurante luxuoso do Leblon. Nunca
tinha ido ali. Antigamente visitava o Rio com muita frequência, mas apenas
para viagens de lazer, nunca para ameaçar uma figura pública e obrigá-lo a
me levar até seu amigo.
Entrei como quem não queria nada, até pensei em pedir uma bebida
no bar para disfarçar, mas só de pensar no quanto gastei até ali, mudei de
ideia e o procurei disfarçadamente com os olhos.
Avistei Danilo rindo com duas mulheres e três caras em uma mesa
nos fundos. Ele tinha uma taça de vinho no ar e falava algo que fez todos
rirem.
Reconheci Lisandra Lombardini, apresentadora de um programa da
mesma emissora que ele e um dos outros homens, que também fazia parte do
elenco.
Segui direto para os dois, indo calmamente. Quem me visse
chegando, assumiria que era uma fã, ou estava apenas procurando minha
mesa. Quando cheguei perto o suficiente, com as pernas tremendo e as mãos
suando, dei duas cutucadas no ombro dele, que levantou a cabeça e virou para
trás, já me dando um sorriso.
— Boa noite, posso falar com você?
Ele levantou uma sobrancelha e assentiu.
— Claro. Autógrafo, fotos?
— Não. Não é isso.
Ele sorriu mais ainda.
— Ah, então vai usar o truque de deixar o guardanapo cair no meu
colo e quando eu pegar, terá seu telefone nele?
Sério que tinham mulheres que faziam aquilo?
— Na verdade, quero que me leve até Cobain James.
A mesa inteira ficou em silêncio quando eu disse isso e todos os
olhos se prenderam em mim.
Lisandra sorriu, surpresa.
— Uma admiradora de Cobain... que surpreendente.
Eu a ignorei e voltei a olhar Danilo.
— Preciso mesmo falar com ele e não sei nenhuma forma de
encontrá-lo, mas é muito urgente.
Danilo riu e eu parei para admirar como era realmente bonito
pessoalmente. O sorriso que ele exibia em seu programa de TV era o mesmo
que ali. Parecia verdadeiro.
— Ouça, gracinha... se está tentando conseguir o número dele, vai ter
que tentar mais. Porque não vou passar.
— O que você teria para falar com Cobain? — foi Lisandra quem
perguntou.
Eu a ignorei novamente. Se eles soubessem que a comida e o teto do
meu filho estavam em jogo, não ficariam com aquele jogo de “quem pode
mais”, mas é claro que nenhum deles estava nem aí. Foi por isso que eu
cruzei os braços e joguei com toda a sinceridade, e além... deixei toda a
minha raiva evaporar.
— Eu estou irritada. Seu amigo me fez perder meu emprego por sabe
Deus qual motivo, e eu tenho uma pessoa que depende de mim e agora
preciso encontrá-lo para que ele me diga porque resolveu infernizar minha
vida sem nem me conhecer! Se você não me levar até ele agora, vou começar
a gritar aqui dentro dizendo que estou grávida de você e que você não quer
pagar a pensão da criança. Vou fazer hematomas em meu corpo e jogar as
fotos na internet, dizendo que você me ameaçou e me agredia constantemente
durante todo o nosso relacionamento.
Quando terminei, ele estava sério, então em alguns segundos um
sorriso surgiu em seu rosto e Danilo levantou, jogando seu guardanapo na
mesa antes de virar para seus companheiros de jantar.
— Amigos... algo precisa da minha atenção nesse momento. Deem os
meus elogios ao chef. Nos vemos segunda.
Seu braço veio em meu ombro e começamos a caminhar — eu
praticamente sendo arrastada — para fora do restaurante enquanto ele falava.
— Agora diga-me, você está saindo com James?
— O quê? — praticamente gritei, tirando seu braço de mim. — Claro
que não! Ele é um grosseirão intrometido. Só quero que me deixe em paz,
mas ele não entende isso.
Danilo riu.
— Essa é nova. Estou realmente muito, muito empolgado.
— Empolgado com o quê?
Ele acenou para alguém e logo um carro parou em nossa frente.
— Cobain não tem o costume de infernizar ninguém além de si
mesmo, então estou curioso.
Abriu a porta do carona para mim e fechou assim que entrei, tomando
seu lugar no motorista.
Minha testa franziu.
— Você vai me levar até ele, não vai?
Ele riu e acelerou o carro. Tive que me segurar para não ficar indo de
um lado para o outro. Ele dirigindo um carro parecia Mali controlando um
carrinho de bate bate.
— Vou levar, com certeza. Qual o seu nome?
— Danielle — resmunguei e graças a Deus eu estava de cinto, porque
ele freou bruscamente.
— Sinal vermelho, porra. — Então virou para mim. —Você é a
stripper daquele dia?!
Ele riu mais ainda, mas eu não vi a mínima graça.
— Você é um idiota como todos os jornais dizem.
— Se eu dissesse tudo o que jornais dizem sobre strippers, o que você
diria? — Eu ia responder, mas ele parou o carro no meio fio da calçada. —
Ele está nesse hotel. Diga que Danilo lhe mandou que vão deixá-la entrar.
Eu assenti, encarando seu sorriso aberto.
— Obrigada, Danilo.
— Disponha.
Desci do carro e dei dois passos para longe, antes de voltar e olhar
pela janela.
— Desculpe-me por chamá-lo de idiota.
Ele acenou.
— Não foi a primeira, nem será a última. Boa sorte, Danidani.
Piscou e acelerou para longe.
Eu fitei o hotel a minha frente, dando rápidos e longos passos pela
frente até entrar, então disse na recepção o que Danilo mandou.
A recepcionista pegou minha identidade e digitou algumas coisas em
seu computador, tirando uma foto minha com a câmera antes de devolver.
— Suíte 712, no décimo oitavo andar.
Eu entrei no elevador e esperei.
Esperei pelo inesperado.
Capítulo 11
"...o sábio disse para apenas achar meu lugar nos olhos da tempestade
Procurar as rosas ao longo do caminho, mas tomar cuidado com os espinhos
Apenas acredite em si mesmo
Ouça a voz que vem de dentro
É a chamada de seu coração
Feche seus olhos e você irá encontrar o caminho para fora das trevas
Aqui estou
Você me enviará um anjo?"
scorpions, send me an angel

ELE TEM OLHOS CASTANHOS

Parada em frente à porta do quarto dele, encarei o número dourado


em uma letra perfeita e esperei depois de dar três batidas na porta reluzente
de madeira escura.
O hotel parecia caro. Eu conseguia reconhecer o luxo, já vivi nele,
então sabia que se o elevador e os corredores já eram tão bem decorados, os
quartos seriam dose tripla disso.
Esperei para ver a porta abrir e aquele homem mal-educado aparecer.
Cogitei mil e uma formas de abordá-lo. Convenci a mim mesma de que
violência não era o melhor caminho e que meu filho me esperava em casa,
então não podia de jeito nenhum ser presa.
E ainda assim, não pude fazer nenhuma das opções que me passaram
em mente, porque não foi Cobain quem atendeu.
A loira bonita e bem arrumada me fitou de cima abaixo e ergueu suas
sobrancelhas bem-feitas antes de olhar por cima do ombro.
— Serviço de quarto, James.
Meus olhos estreitaram e sem pedir licença, empurrei a porta,
passando por ela.
— Dedetização? Não sou eu.
Ela abriu a boca, chocada, mas naquele momento eu já estava dentro
da enorme e luxuosa suíte e meus olhos procuravam com fúria a única pessoa
a quem eu dispararia minha raiva.
Cobain estava sentado em um sofá de frente para uma grande janela
de vidro, que ia do chão ao teto, dando acesso a uma maravilhosa vista da
praia, e levantou a cabeça ao me ver. Havia um outro homem com ele sentado
no sofá da frente e aparentemente os dois olhavam alguns papéis que estavam
espalhados pela mesa de centro.
Eu não ligava.
Eu queria gritar.
E fiz isso.
— Você ficou maluco?
As sobrancelhas dele franziram, tornando sua expressão sempre
ranzinza ainda mais pronunciada. Os olhos verdes que mais pareciam duas
fendas profundas não me diziam nada, mas a forma como me olhava não
deixava dúvidas de que não estava alegre em me ver ali.
Eu invadi seu espaço, assim como ele fez comigo. Três vezes.
Primeiro indo na minha casa sem ser convidado, depois no local onde eu fui
levar meu filho para brincar, e depois no meu trabalho.
Me fazendo ser demitida.
O cara sentado ficou de pé, pegando seu casaco pendurado no braço
do sofá.
— Vamos indo, Sheila. James parece ter assuntos a tratar.
Cobain continuava exatamente como quando entrei. Nem mesmo
vendo que suas companhias estavam indo embora o fez tirar os olhos de mim
e ter alguma reação.
— Não se incomodem — falei. — Só quero entender o que faz com
que esse homem seja um lunático perseguidor!
O cara riu, surpreso, curioso e sem graça.
— Bem, eu diria que a senhorita o está confundindo.
— Estou? — Minha voz foi aguda, eu estava tendo uma síncope. —
Por que não diz aos seus amigos como me fez perder meu emprego? Um mês
do meu suado trabalho! Noites de sono perdidas, noites nas quais eu poderia
ter ficado em casa e cuidado de coisas que preciso cuidar. Porque acredite ou
não, Cobain James, minha vida não é perfeita como a sua! — Seu nome foi
pura ironia em meus lábios e ele percebeu, a boca virando em uma carranca
com cada palavra que eu dizia.
Finalmente ficou de pé, colocando em cima da mesa a taça de vinho
que segurava com tanta força que partiu a parte debaixo. O vidro virou,
caindo e manchando todos os papéis.
Sheila arfou.
— James!
Mas os olhos dele estavam em mim, totalmente alheio a seus amigos.
— Falo com vocês em um outro momento, Portelli. Se importa de
acompanhar Sheila até o carro dela?
— De forma alguma.
— Mas James... — a mulher falou, se aproximando dele —, temos
assuntos a resolver! E você manchou todo o roteiro, como vai analisar os
próximos episódios se arruinou tudo?
Ele a encarou por apenas um momento, nada preocupado com os
papéis como ela estava.
— Você certamente tem cópias, mande em meu e-mail. Boa noite.
Eu era um vulcão prestes a entrar em erupção e ele parecia calmo
como se nada estivesse acontecendo.
A pergunta de Mali sobre ele ter problemas mentais me veio em
mente e decidi que sim, ele devia ter. Algum bem sério, inclusive.
A loira me olhou uma última vez antes de pegar sua bolsa e sair,
batendo seu ombro levemente no meu em seu caminho para a porta.
— Sou invisível, linda? — perguntei e ela parou, surpresa. Ela não
estava achando que eu ia ficar quieta, estava?
Santo Deus! Se ela soubesse das confusões que já arrumei quando me
tiraram a paciência, não ousaria dar uma de madame para cima de mim. E,
principalmente, não naquele momento em que eu estava vermelha de raiva.
A tal Sheila deu dois passos à frente, pronta para me responder, mas
o homem segurou seu braço e a levou para fora. A porta bateu fechada e
então éramos só nós dois. Eu e Cobain.
Eu virei para ele com sangue nos olhos, com tanta raiva que consegui
até mesmo não focar tanto em como era bonito.
Mas era o ditado que Mali sempre dizia: a pera bonita demais por
fora, sempre é podre por dentro.
Ali estava a prova disso e ele se vestia tão bem quanto, realçando a
beleza de seu rosto duro.
— Você não foi convidada até aqui. É uma falta de educação e classe
sem tamanho que apareça dessa forma.
— E você foi convidado até a minha casa? Até meu trabalho?
Ele bufou minimamente.
— Sua casa é um convite aberto, o portão nem fechado fica. E seu
"trabalho" nem se fala.
Minha boca foi ao chão e minha bolsa voou direto em seu peito, o
que o fez arregalar os olhos.
— O portão fecha sim, seu idiota! E se meu trabalho é tão horrível
assim, por que foi até lá? Hein? Pior do que eu, que danço lá, é você que
gasta seu dinheiro para se divertir lá dentro!
Ele cerrou os punhos ao lado do corpo e deu um passo à frente, seu
sapato escuro chutando minha bolsa.
— Eu fui acompanhar um amigo, não fui me divertir em um lugar
como aquele. Se fosse por lazer, teria escolhido um ambiente a minha altura
— rosnou.
Apontei para o chão.
— Você chutou minha bolsa?
Ele franziu a testa, então olhou para onde minha mão apontava e
abaixou lentamente, pegando-a nas mãos.
— Não fiz com má intenção. Perdoe-me.
Meus olhos arregalaram e eu quis gritar.
— Está se desculpando?
— Claro que sim, não sou mal-educado.
Não pude fazer nada além de ficar ali no meio daquela luxuosa e cara
sala da suíte de um dos melhores hotéis do Rio de Janeiro, encarando o
enigma que era o homem a minha frente.
— Eu fui demitida. Você tem me causado problemas, esse sendo o
mais grave deles. Eu perdi um mês de salário e...
A carranca voltou ao seu rosto quando me interrompeu.
— Você acha que tirar a roupa para dezenas de homens é a solução
para seus problemas? Quer seu emprego de volta?
Ele falava em um tom tão indignado que eu mal conseguia acreditar.
— Qual o seu PROBLEMA? Por que está tão incomodado? Por que
minha vida te interessa tanto, Cobain? Eu ia me demitir hoje mesmo, mas
pelo menos teria meu salário!
Ele jogou minha bolsa no sofá e enfiou a mão no bolso, pegando sua
carteira.
— Você quer dinheiro? Eu te pago o que deveria ter recebido! Não
entendo porque a raiva, deveria estar me agradecendo por tirá-la daquele
lugar!
Enquanto ele tirava a carteira do bolso e retirava notas de cem, eu não
sabia se sentava e chorava, ria descontroladamente, ou fervia uma caneca de
água para jogar em sua cabeça, para ver se os neurônios queimados fritavam
de uma vez e deixavam apenas os bons presentes para que ele pudesse pensar
direito.
— Não quero a droga do seu dinheiro! Aliás, não quero nada de você.
Só quero que me deixe em paz! Se não vai contar nada a Carlos, prefiro que
ao me ver no Teatro, nem olhe em minha direção — Fui até o sofá e peguei
minha bolsa —, porque nem seu bom-dia vou responder.
Caminhei até a porta, decidida a esquecer que aquele homem entrou
no meu caminho, já que sua missão em minha vida era apenas causar
conflitos e estresse com qual eu não podia lidar. Mas assim que minha mão
tocou a maçaneta, sua voz soou como se ele estivesse a centímetros de
distância e as palavras que eu jamais esperaria saíram de sua boca.
— Trabalhe para mim.
Minha cabeça virou como a de Regan MacNeil em O Exorcista.
— O quê?
Ele tinha os olhos fixos em mim e deu dois passos à frente.
Mandíbula cerrada, olhos estreitos e lábios apertados em uma linha fina.
Cobain James em conflito consigo mesmo. Talvez até ele estivesse
desacreditado do que disse.
Ele tinha os olhos mais expressivos que eu já encarei na vida, que me
causavam um misto de sentimentos sempre que era posta em frente a eles. Os
olhos de um homem que sabia o que queria.
— Se precisa de dinheiro, vou te ajudar.
— Não preciso da sua ajuda, da sua pena e nem do seu dinheiro!
Cobain balançou a cabeça.
— Quero lhe fazer uma proposta... Danielle.
Enquanto encarava seus olhos escuros e selvagens, tão intensos como
uma floresta em dias de tempestade, vi o quão sério ele falava e mesmo sem
saber do que se tratava, senti que todo o meu futuro dependia daquela
resposta.
Ele não ia repeti-la.
Era sim ou não.
Mas era definitivo.
E vindo de um homem como Cobain James, eu não fazia ideia do que
esperar.
Capítulo 12
"...amor, eu acho que hoje à noite podemos pegar o que estava errado e fazer certo
Amor, isso é tudo que eu sei
É que você é a metade da carne e sangue e me faz inteiro
Eu preciso tanto de você
Então pegue essas asas feridas
E você tem que aprender a voar de novo"
mr mister, broken wings

— Uma proposta? — perguntei, desconfiada.


Ele assentiu.
— É algo que acabei de pensar. Não quero ofendê-la, mas... acredito
que será algo benéfico para nós dois.
Eu apontei o dedo para ele, me controlando para não diminuir a
distância entre nós e atacá-lo com minha bolsa novamente.
— Cobain, não me faça odiá-lo mais ainda.
Ele franziu a testa.
— Por que você me odiaria? É uma proposta que será benéfica para
ambos. Já disse isso.
— Se for uma proposta indecente, juro que chamo a polícia.
Suas sobrancelhas ergueram e por um momento ele pareceu sem
palavras. Mas eu já tinha visto aquela história. Se ele sequer cogitasse me
pagar para... Jesus!
Meus dedos coçaram para pegar o telefone e discar o número da
polícia.
— Uma proposta... indecente?
Dei de ombros.
— Sim, já conheço essa conversa.
— Ouça a si mesma, Danielle — retrucou, ultrajado. — Por que eu
lhe faria alguma proposta desse tipo? Pelo amor de Deus, sou um homem
responsável e integro.
Isso não significava nada. Eu via homens que se diziam íntegros salivando
em cima das mulheres com quem trabalhavam no Borges todas as noites e
todos eles eram vistos como responsáveis.
— E o que é, então? — Estreitei os olhos. — Sei me defender muito
bem, Cobain. Não me venha com gracinhas. Eu estou muito louca de raiva
com você!
Ele pareceu ter perdido a paciência por completo quando pegou um
celular de cima da mesa, o balançando quando percebeu que havia derrubado
vinho em cima.
— Droga. — Passou por mim e abriu a porta. — Vamos.
— Ande vamos? — Ele parou o elevador, que descia vazio e entrou,
não segurando a porta quando ia fechar. Tive que correr para enfiar o braço.
— Obrigada!
— Você vai ver quando chegarmos lá. Não adianta explicar porque
você vai ficar perguntando e perguntando o caminho todo e quando estiver lá,
vai perguntar mais ainda. Então prefiro adiar a dor de cabeça.
Minha boca estava aberta e o elevador parou, abrindo as portas no
estacionamento. Ele nem se preocupou em abrir a porta de seu carro para
mim.
Tirando a quantidade de Uber que Mari Louise pagava quando íamos
para a boate, fazia muito tempo que eu não entrava em um carro tão luxuoso
como aquele.
Estiquei a mão automaticamente para ligar o rádio, e a voz dele veio
como um raio na mais bruta tempestade.
— Não toque. Não toque em nada.
— Quer que eu vá flutuando?
Cobain suspirou e me olhou brevemente. Ele estava tão irritado que eu
quis rir.
Todo o caminho foi feito em silêncio. Eu ignorei sua presença e bati
os pés no chão do carro o tempo todo, que só foi abafado pelo forro, mas
ainda assim o ouvi resmungando "Pare" duas ou três vezes. Quase não foi
uma palavra, foi mais um resmungo para dentro na linguagem Cobain que ele
aparentemente pensava que todos entendiam.
Quando o carro finalmente parou vinte minutos depois, ele desceu
batendo a porta e começou a caminhar para um portão velho, resmungando
novamente o caminho todo.
— O que disse? — perguntei.
Ele me ignorou. Tirou as correntes e abriu, as grades enferrujadas
fizeram barulho suficiente para ecoar na rua escura e vazia.
— Com um portão desse, como você acha que tem moral para falar
das paredes do museu?
Ele me deu um olhar rápido que dizia muito mais do que dez
palavras, e eu me calei.
Cobain seguiu por algumas pedras quebradas, e o que eu imaginava
que deveria ser uma grama verde e saudável, parecia mato seco que não via
um bom jardineiro há anos. Passei pelo caminho até mesmo empurrando
algumas folhas com os pés.
Paramos em frente a uma porta e eu olhei para cima. O lugar era
enorme.
— O que é isso?
— Uma casa.
Fitei seu rosto para ver se estava zombando, mas permanecia sério.
— Estou vendo que é uma casa.
— Então qual a razão da pergunta se está vendo?
Percebi enquanto ele tirava uma chave do bolso e abria a porta, que
agia naturalmente. As sobrancelhas franzidas e o rosto sério não eram
intencionalmente dirigidos a mim. Cobain era daquele jeito em seu normal.
Grosseiro, rude, confuso e absolutamente frustrante.
Eu me perguntei se alguma desgraça tinha acontecido em sua vida
para que fosse infeliz o tempo todo ou se foi criado de forma rígida. Será que
aprendeu a ser um estúpido ou aquela característica estava fundida nele desde
que começou a falar e dar os primeiros passos?
— Você vai entrar ou o quê?
Notei que me esperava com a porta aberta e o segui para dentro,
dando de cara com algo que eu não esperava.
Por Cobain ser Cobain, esperei que ao entrar ali, fosse encontrar uma
casa cheia de pó, onde lençóis cobriam os móveis, paredes escuras e quadros
de pessoas antigas nas paredes, mas estava redondamente enganada.
Um corredor que ia da entrada para uma sala de visitas, com sofás,
poltronas, cortinas de cores claras e paredes de cores também claras, onde um
lustre iluminou todo o ambiente quando ele acendeu. Mas de toda a
decoração, o que chamou minha atenção foi o grande piano magicamente
incrível. Estava no canto da sala, em cima de um tapete felpudo preto e
algumas folhas em cima, que deveriam ser as partituras.
Cobain tocava piano?
— Sala — ele disse, chamando minha atenção, e apontou para a
esquerda. — Cozinha.
Virou em seus calcanhares e sumiu pelo outro corredor, então eu
precisei deixar minha inspeção de lado e segui-lo. Parando no meio do
caminho, ele apontou uma porta.
— Banheiro social.
E voltou a andar, seguindo direto para uma escada. Ele andava tão
rápido em suas pernas longas que eu precisava quase correr para alcançá-lo.
Quando chegamos no segundo andar, Cobain parou novamente, e
novamente apontou. Mas dessa vez haviam tantas portas que ele indicou uma
por uma.
— Banheiro social. Suíte. Suíte. Quartos de visita. — Voltou a andar
e virou naquele cumprido corredor, onde na esquina encontramos outra
escada. Subimos e quando chegamos lá, eu já até sabia o que ele faria quando
vi duas portas uma de frente para a outra, e no final do corredor, o cômodo
tinha uma porta dupla enorme, cheia de detalhes em dourado. Apontou seu
longo dedo e falou novamente: — Quartos de visitas e quartos de visita.
Suíte.
Então caminhou até a porta que ia do chão ao teto, empurrando-a
aberta.
— E aqui — continuou e me deu passagem para entrar — é onde eu
preciso dos seus serviços.
Eu precisei de um minuto para tomar um fôlego e processar o cenário
a minha frente. Aliás, que me rodeava.
Em minha atual situação, não sobrava dinheiro para mimos
particulares e eu não podia me dar ao luxo de gastar como gastava antes, mas
tinha sido uma leitora assídua desde que Regina lia para mim quando criança.
Eu observava as ilustrações e quando meu cérebro começou a juntar e dar
sentido nas letras que formavam cada palavra, a leitura se tornou uma rotina
que eu amava.
Principalmente quando o ballet entrou em minha vida.
Em volta de mim, o teto alto — muito mais alto do que os andares de
baixo —, com paredes que estavam repletas de prateleiras onde livros as
preenchiam, pilhas no chão, alguns em cima de mesas. Poeira por toda a parte
e nas quatro estantes extensas abertas dos dois lados que ficavam no meio do
enorme cômodo, tinha muito mais. Eu precisaria de semanas, no mínimo,
para contar todos os livros ali.
Abaixei, pegando um que estava aberto virado para baixo no chão, e
quando fechei, uma nuvem de pó veio em meu rosto.
Cobain o tomou de minha mão enquanto eu tossia, e rosnou, jogando
o livro na mesa mais próxima sem nenhum cuidado. O livro bateu em uma
pilha meio bamba, fazendo todos ali irem para o chão juntos.
Deus, eu queria correr e pegar todos. Quando tinha minha própria
estante e podia colecionar minhas edições favoritas, era tão cuidadosa que
abria mão de que as empregadas limpassem até mesmo o chão de onde ela
ficava. eE mesma tinha minha rotina de limpeza. E ver Cobain jogando tantas
histórias ao vento como se não fossem nada, só me mostrava como era
insensível.
— Não vê que está cheio de pó? Se ficar doente não terá como sequer
começar o trabalho!
— Trabalho? Que trabalho? — perguntei, cobrindo a boca para tossir
mais.
Eu já podia ver minha sinusite atacando.
— Acha que te trouxe aqui para um passeio? Para conhecer a casa?
— Bem, eu não sei, Cobain. Você apenas passou voando por esses
corredores e não me disse nada além do que resmungos. Se fosse um passeio,
pelo menos teria me apresentado a casa!
Ele franziu ainda mais a testa já enrugada.
— Eu apresentei a casa.
Revirei os olhos a ponto de quase trocarem de lado.
— Claro. “Sala. Cozinha. Banheiro. Quarto.” Isso eu podia ver
claramente.
Seus olhos estreitaram.
— Você quer o trabalho ou não?
Colocando as mãos na cintura, o fitei seriamente. E muito
desconfiada.
— Então o que você ganha com isso? Vai me ajudar porque de
repente virou uma alma caridosa?
— Não. Estou me ajudando. Preciso de alguém de confiança para
resolver esse problema. Não quero colocar um desconhecido dentro dessa
casa. — Ele olhou ao redor antes de me encarar outra vez. — Acha que dá
conta?
— Eu não sou sua conhecida e certamente não tenho sua confiança.
— Sei que não vai me roubar porque tenho seu emprego no Teatro
em minhas mãos, e acredite, Danielle, eu faria você perdê-lo com apenas uma
ligação se você vier a fazer algo além do que eu permito dentro dessa casa.
Isso torna confiável de que não prejudicará o lugar.
— E se eu não quiser? Vai ir até o Carlos e fazê-lo me demitir
também?
Cobain franziu a testa.
— Não. Vou procurar outra pessoa que queira ganhar dinheiro rápido
e tão fácil quanto o que precisa ser feito aqui.
Eu olhei ao redor, pensando que ele deveria ter dinheiro, e de
qualquer forma estava me devendo pela boate. Meu lado leitora compulsiva
quis dizer "sim" imediatamente, mas a tendência perseguidora de Cobain e a
perna atrás que eu tinha com ele, me fazia hesitar.
A raiva gritante que existia quando eu fui atrás de Danilo Lobos para
ser levada até Cobain tinha esfriado, porque ele parecia bastante alheio ao
que tinha feito. Não entendia como me prejudicou, mas estava ali me
oferecendo um trabalho para repor aquilo.
Eu ainda tentaria receber da boate, mas por ora, tinha que resolver
Cobain.
— O que eu teria que fazer aqui? Limpar e guardar tudo no lugar?
Ele ergueu uma sobrancelha e coçou sua barba que já estava um
pouco maior do que eu via normalmente.
— Se fosse isso, eu não chamaria você. Ficaria aqui observando
alguém fazer isso, porque seria rápido. Agora o que você vai fazer levará dias
e eu não tenho dias de folga para sentar e observar.
— Nossa! O que quer que eu faça que vai demorar tanto assim?
— Essa casa existe a mais de cinquenta anos, assim como essa
biblioteca. Eu não faço ideia de quando foi a última vez que foi limpada. O
último livro que tentei tirar da prateleira a capa estava colada em outra e
rasgou, vindo apenas as páginas soltas e mofadas em minha mão. —
Suspirando, ele fez algo que teve minha atenção total por um momento.
Passou os dedos pelos fios do cabelo, os jogando para trás. E por Deus, fez
isso totalmente alheio a como ficava bem.
Ele era um babaca, mas eu não era cega. Cobain é o tipo que seria
considerado como pedaço de mal caminho. Totalmente fora dos trilhos.
— Está ouvindo?
Me sobressaltei, tirando os olhos de seus cabelos e focando no rosto
novamente.
— Perfeitamente.
— Ótimo. Se fizer alguma das coisas que eu citei para não fazer,
teremos problemas.
Me controlei para não arregalar os olhos e pedir para repetir. Fiquei
babando em sua aparência e perdi a parte provavelmente mais importante das
instruções.
Ele continuou.
— Varrer, passar pano e tirar o pó será função de outra pessoa
contratada para isso.
— E eu vou fazer o quê?
A carranca voltou com força a sua feição.
— Eu acabei de dizer!
— Eu não estava ouvindo! Estava pensando em coisas que preciso
comprar na farmácia!
Era mentira, mas ele pareceu pensar sobre isso.
— Eu não quero produtos femininos espalhados pela casa.
— Não vou espalhar nada pela sua preciosa casa. Ficarei apenas aqui
e tudo estará como você deixou quando chegar.
Os olhos verdes estreitaram.
— Separe os livros de alguma forma. Eu quero encontrar ficção
científica quando for procurar, separado de história, separado de geografia,
separado de romance. Entendeu? O que estiver caindo aos pedaços coloque
em caixas, sem capas coloque em outras caixas, e assim por diante.
— Tudo bem. — Eu dei de ombros como se fosse fácil, mas haviam
tantos livros ali que eu levaria meses se dependesse da lentidão com que
funcionava. — Dou conta.
Ele assentiu.
— Me diga um valor.
— O quê?
— Você fica me fazendo repetir as coisas, e eu odeio isso —
resmungou, suspirando. — Você já pode ir. Pense e diga se aceita, depois.
Surpresa com sua revolta, eu quis rir por um momento. Ele parecia
tão frustrado, como se não soubesse o que fazer comigo. Mas era bom para
aprender, eu estava na mesma situação.
— Eu aceito se me responder algo.
— O quê?
Inclinei a cabeça para o lado.
— Se sabia que era eu dançando na boate aquele dia, porque quando
me viu no Teatro no dia seguinte fingiu não ter me visto?
— Que boate?
— A que você estava com seus amigos. Por que esperou para me ver
no Borges para falar algo?
Ele franziu as sobrancelhas.
— A primeira vez que lhe vi em um lugar desses foi no Borges. De
que outra boate está falando? Eu vou a esses lugares com Danilo, porque não
confio que voltará para a casa se for sozinho. Não é algo que eu aprecie.
— Então... — comecei, mas ele me interrompeu.
— Então eu só deduzi que você trabalhava no Borges por te ver nos
fundos da boate quando estava saindo de lá. Minhas dúvidas confirmaram
quando vi a roupa que usava.
Eu assenti lentamente e comecei a andar para trás, dirigindo-lhe um
sorriso forçado que mostrava todos os dentes, e Cobain estreitou os olhos,
dando um passo à frente.
— A que outra boate está se referindo, Danielle? Está trabalhando em
outras?
Quando estava perto da escada, acenei com uma mão.
— Até logo, chefe. Me ligue quando quiser que eu comece!
Não ia arriscar não receber o dinheiro que tinha naquela boate caso
ele resolvesse aparecer por lá como o louco que era, e nem queria colocar a
oferta que me fez em jogo, também, então, naquele momento, a melhor saída
foi escapar do assunto.
Escapando dele.
Desci as escadas correndo e o ouvi gritar meu nome, era como um
rugido. Mas ao olhar para trás, vi que não me seguiu. Passei pela porta da
frente dando tchau àquela linda casa, e enquanto caminhava pela rua —
rezando para ninguém roubar meu celular — vi a quantidade de chamadas
perdidas que Mari Louise havia me feito.
Minha sorte foi que quando cheguei ao ponto de ônibus, um que
servia para mim passou. Dei sinal e entrei. Então finalmente pude respirar
estando longe de Cobain.
Capítulo 13
"...eu tomei o caminho de uma estrada
É a estrada em que eu deveria permanecer
Eu vejo o fogo em seus olhos
Mas um homem deve fazer o seu caminho
Você é durona o bastante para o meu amor
Apenas feche seus olhos para o céu acima de nós
Eu estou voltando para casa
Onde seus braços podem me libertar..."
cinderella, coming home

ü ELE É SUPERSOCIAL

— Vai Cody, dança! — Mari Louise o incentivou. Tocava Menina


Veneno, de Ritchie, e minha amiga balançava enquanto batia a massa do
bolo. Meu filho riu com as mãos no ar e se mexeu junto com ela, olhando
para seus pés e tentando fazer igual. — Só dá você, iê iê iê iê!
Eu os observava, sentada em frente à mesa, fazendo minhas contas do
mês, anotando na agenda com o calendário e a calculadora do lado, quase
chorando de desespero, mas disfarçando, porque se Mari Louise desconfiasse
de minha falência, ia querer pagar tudo. E por mais que eu admirasse sua
lealdade, ela tinha suas próprias coisas para fazer.
— Danielle, se não vier dançar, não vai comer o bolo.
Sorrindo, balancei a cabeça.
— Estou diminuindo os doces.
Ela revirou os olhos e continuou dançando.
Eu adorava domingos em casa com os dois. Depois de acordarmos
cedo porque meu filho achava divertido brincar em um domingo antes das
nove — mesmo que eu quisesse desesperadamente dormir até as onze —, ela
me fez contar detalhe por detalhe do que tinha acontecido depois de sair do
Borges.
O cretino disse a ela que eu passei mal e fui para casa apenas para
que ela não quisesse ir embora antes de trabalhar. Mas minha amiga era
esperta e quando notou que eu não atendia as ligações, viu que algo estava
errado. Saiu da boate mandando Borges ir ao inferno e me procurou, mas não
tinha muito aonde ir desde que eu não atendia o celular. Mari Louise ficou
em casa e dormiu no sofá. Eu a cobri e quando acordamos relatei toda a
história.
Ela bateu duas palmas e ficou vermelha de raiva.
— Se aquele Senhor Barriga acha que vai ficar com o seu dinheiro,
está muito enganado! Eu conheço gente da pesada que entra naquela boate
dele e quebra tudo e ainda pega seu dinheiro, o deixando com um prejuízo tão
grande que quando ele ouvir "Danielle" na vida, vai tremer.
Eu ri na hora, mas fiquei preocupada, porque Mari Louise era capaz
disso. A aparência calma e a tranquilidade com que ela lidava com as coisas
podia enganar facilmente, mas nós éramos iguais.
Nada de uma calma e a outra explosiva. Nós duas tínhamos nossos
momentos, talvez por isso nos dávamos tão bem. Quanto eu estava
estressada, ela estava calma; quando era ela a raivosa da vez, eu chegava com
a paz.
Nós funcionávamos bem e coitado do Borges se resolvesse continuar
com aquela história de não me pagar.
— Uuuuh! Eu amo essa! — Mari Louise soltou a bacia na pia e fez a
colher de microfone, então segurou a mão de Cody, dançando com ele e o
girando. — Tem 17 anos e fugiu de casa, às sete horas da manhã no dia
errado. Levou na bolsa umas mentiras pra contar... deixou pra trás os pais e
o namorado! Um passo sem pensar, um outro dia, um outro lugar aaaar!
Mali apontou a colher para mim e eu sorri, cedendo.
—O mundo vai acabar...
— E ela só quer dançar! O mundo vai acabar, e ela só quer dançar,
dançar, dançar... Pneus de carros cantam... thuru, thuru, thuru, thuru...
—Por que está toda animadinha, Mari Louise?
Ela rodopiou e passou a colher na pontinha do nariz de Cody,
deixando um pingo de chocolate antes de jogá-la na pia. Meu filho se
acabava de rir.
— Porque minha oportunidade vai me levar para jantar amanhã e ele
é tão perfeito, Dani... — O sorriso imenso em seu rosto e os olhos brilhantes
me fizeram rir também.
— Ah... o noivo. Que bom que ele é tudo isso, Mali. Você merece um
cara legal.
— Mereço mesmo! — Cody resmungou e ela mandou um beijo para
ele. — Não fique com ciúme, bebê. Você é meu eterno namorado.
— E vocês já estão compartilhando coisas da vida pessoal e tudo
mais?
— Ah, nós falamos de algumas coisas. Ele sabe que moro com a
minha melhor amiga e o filho dela, acha que eu trabalho fazendo eventos e
como modelo e... ele não é daqui.
— Falou de nós... que fofa! Ele te disse que não é daqui?
Mali deu de ombros.
— Ele não é de falar muito de si mesmo, eu percebi sozinha que ele
tinha um sotaque disfarçado. Mas quando bebe um pouco, acaba puxando as
palavras.
— Ele não é de falar de si mesmo, mas gosta de saber de você?
— Sim, e eu disse a ele que precisa ser uma troca. Se ele quer
informações, vai ter que dar informações também.
— Lindíssima, arrasou. Falou tudo, amiga.
Ela piscou.
— Sempre arraso.
Eu deixei a caneta de lado e estiquei os braços para o meu filho, que
estava observando as coisas do bolo serem prontas. Cody era uma
formiguinha.
— Cody, vem aqui dar um beijinho na mamãe.
Ele riu e se afastou, fugindo de mim. Ameacei levantar e ele gritou,
gargalhando enquanto corria — o quanto seus pequenos pés de pão
permitiam — para o quarto.
Nós estávamos rindo quando a campainha tocou e Mali foi atender.
Ela correu até a porta com o lenço na cabeça e lambendo a cobertura do dedo.
Mas o sorriso sumiu do meu rosto assim que vi quem estava parado lá fora.
Não era possível.
— Pois não?
Cobain olhou para ela franzindo a testa e entrou, parando seus olhos
em mim.
— Por que você não está trabalhando hoje?
Eu fiquei ali parada e de boca aberta, me perguntando em que mundo
aquele homem vivia.
Quando consegui falar finalmente, foi com minha amiga.
— Pode ir no quarto ver aquela coisa para mim, Mali?
Ela acenou com a cabeça em direção a Cobain, uma pergunta clara
em sua expressão.
— Depois falamos.
Ela ergueu as sobrancelhas e foi em direção ao corredor do quarto,
onde Cody provavelmente já deveria estar fazendo a maior bagunça.
— Qualquer coisa me chame, Dani.
— Então? — Cobain pressionou quando ela saiu. — São dez da
manhã, eu acordei às cinco e esperei até às sete para ver se aparecia, mas
você não foi. Isso quer dizer que resolveu não aceitar?
Seus olhos se moviam rápidos em meu rosto, como se ele tentasse ler
para garantir que eu falava a verdade.
— Você precisa aprender algumas coisas. — Levantei a mão,
balançando um dedo. — Há uma sequência de coisas erradas aqui. Sendo a
primeira que... você precisa parar de achar que pode entrar nos locais onde eu
estou como se fosse o dono. Segundo... hoje é domingo, e terceiro, se queria
apenas confirmar se eu aceitava ou não, por que não ligou? Telefones existem
para isso, Cobain!
— E daí que hoje é domingo?
Eu suspirei, querendo pegar um bloco de papel e caneta e desenhar
para ele que pessoas normais geralmente tiravam folga de domingo para
tentar descansar da semana toda trabalhando.
— Dia de descanso, de folga.
Ele franziu a testa e começou a resmungar, mas parou e passou por
mim. Então fez a última coisa que eu esperava. Abriu minha geladeira.
— Ei, o que está fazendo?
Cobain parou com a porta aberta e depois de olhar lá dentro, me
fitou.
— O que você faz com o que ganha no Teatro? Por que a geladeira
está quase vazia?
Eu empurrei sua mão e fechei a porta.
— Cuide da sua vida! Está vendo? É disso que estou falando. Você
acha que é o dono da minha casa! Abre minha geladeira do nada e pensa que
está tudo bem!
— Não abri do nada. — Ele levantou a mão e apontou o mural de
recados que ficava em cima da pia, onde em letras garrafais estava escrito
"Cancelar a compra do mês". — Por que vai cancelar a compra do mês?
A pior coisa em Cobain era que, mesmo sendo um enigma, eu
começava pouco a pouco a perceber coisas sobre ele. Como naquele
momento, no qual ele não estava jogando em minha cara minha situação,
sendo esnobe como no Teatro. Ele parecia intrigado. Eu não me atreveria a
dizer preocupado, mas curioso, sim.
— Por que não aceitou o trabalho que ofereci se ficará sem alimento
pelos próximos dias?
— Eu não recusei.
— Mas não foi hoje.
— Você quer que eu trabalhe no domingo? O único dia que posso ter
um pouco de ar?
De cuidar do meu filho, de descansar meu corpo e mente. Ele não
entendia e eu não queria entrar em assuntos tão pessoais com Cobain. O
máximo de distância possível era o melhor.
— Eu trabalho aos domingos — falou, como se aquilo explicasse
tudo.
— Tudo bem, Cobain, tudo bem! Se é isso o que quer, vou fazer o
que o grande senhor Cobain James quer! — Comecei a caminhar para o
quarto, mas parei ao ouvir suas palavras.
— Por favor, não demore a se arrumar.
Eu virei de súbito e coloquei as mãos na cintura.
— Como é que é? Você acha que eu vou parar a minha vida e ir fazer
o que você está esperando, só porque acha que pode tudo? — Balancei a
cabeça e apontei para a porta. — CAIA FORA, COBAIN!
Ele ficou parado, me observando surtar, para quando terminei, apenas
assentir e ir em direção a porta.
— Então você vai amanhã?
— Sim! — rosnei. — Amanhã! Segunda-feira quando todos os seres
humanos trabalham!
Eu bufava como um touro raivoso e ele tranquilamente calmo me deu
as costas e foi embora.
Sentei no sofá quando a porta bateu e respirei fundo. Nervosa,
irritada e mais confusa do que nunca. Ele era tão absurdo, estranho, diferente
e imprevisível, totalmente o oposto de qualquer homem que já conheci.
Eu estava tão curiosa sobre ele. Queria mandá-lo ir embora da minha
vida e ao mesmo tempo pedir para que me explicasse porque agia de tais
formas como fazia. Queria entendê-lo.
— O que foi a fera que saiu daqui?
— Cobain James. Meu novo chefe.
Ela arregalou os olhos e sentou no sofá junto com Cody, que logo
pulou para o chão e foi brincar.
— Amiga... como assim? Ele é o Cobain da história?
— Sim. — Parei por alguns minutos para refletir, então a fitei. —
Onde está aquela lista que você fez?
— Que lista?
— Do meu homem perfeito.
Mali pensou um pouco, então pegou a agenda telefônica e arrancou a
última página, me entregando.
— Aqui.
Eu peguei a caneta em uma mão, Cody no colo e fui para meu quarto,
o coloquei na cama e comecei a escrever.

ü ele nunca vai olhar as estrelas comigo


ü ele não gosta de música
ü ele não toca piano
ü ele odeia livros
ü ele é fútil e não tem pensamentos produtivos
ü ele adora fazer jardinagem
Quando terminei, peguei um pedaço de durex e colei na parede, bem
ao lado da minha cama.
Agora sim.
Eu estava ficando louca, porém uma louca precavida com uma lista
onde Cobain James nunca seria o homem perfeito.
Capítulo 14
"...há uma grande diferença entre nós
E um milhão de milhas
Não é segredo que nós dois estamos correndo contra o tempo..."
adele, hello

ü ELE É CARECA, MAGRO E UM CORPO NORMAL (OK SE


TIVER UMA BARRIGUINHA DE CERVEJA, SÓ NÃO PODE
SER MUSCULOSO)

— Não brinca, Dani? — Larissa estava boquiaberta depois de ouvir


meu resumo sobre toda a situação com Cobain.
Primeiro ela riu, dizendo que era uma ótima piada, mas cessou logo
que viu que eu não a acompanhava.
— Você ficou louca de aceitar uma coisa dessas? — questionou
larissa. — E se ele te prende na casa enorme e te mata? E se tem um porão
cheia de mulheres sofrendo e pedindo socorro? Jesus, Danielle! Pirou de vez?
Só pude revirar os olhos para suas teorias e voltar ao trabalho. Eu não
ia contar, mas não tive outra saída. Quando cheguei ao Teatro naquela
manhã, a primeira coisa que ela me perguntou foi porque a secretária de
Cobain James havia ligado e pedido meu número de telefone. Meu simples
"não faço ideia" não a convenceu, e ela tinha aquela expressão de "não vou
deixá-la em paz até me dizer".
Claro que ocultei detalhes.
Ter ameaçado Borges para me demitir, ter aberto minha geladeira, e
ocultei principalmente ele ter ido a minha casa. O que disse a ela foi que,
Cobain percebeu que eu tinha uma situação de vida difícil e me ofereceu um
emprego temporário.
Larissa logo se preocupou que ele tivesse me assediado para aceitar,
mas eu só pude rir. Lembrei na hora de sua reação de indignação quando eu
falei sobre uma "proposta indecente".
Eu nunca me achei desagradável aos olhos. Sabia que era bonitinha,
desarrumada e muitas vezes descuidada, mas bonita. Só que... bem longe do
patamar de Cobain. Ele era provavelmente o tipo que pegava modelos e
atrizes, mulheres bonitas e que tinham um bolso tão cheio quanto o dele.
Eu já estive naquele nível um dia, mas hoje não mais, então me
assediar era a última coisa que Cobain precisava e faria.
Quando deu meu horário de ir embora, pude sair mais calma, ir ao
banheiro e andar devagar até o ponto de ônibus. Já tinha combinado com
Gabi de ela ir buscar Cody e ficar com ele até eu chegar, então o caminho até
a casa de Cobain seria tranquilo.

(..........)

O jardim ainda estava decadente e o portão... eu tinha a sensação que


cairia assim que o soltasse.
Cobain não tinha vergonha de morar no meio de todas as casas
maravilhosas daquela rua e deixar a fachada da sua naquele estado?
Ele abriu a porta cinco minutos depois de eu tocar a campainha.
Usava uma calça de moletom, o cabelo solto e sua barba estava um pouco
maior, escondendo o maxilar desenhado. Eu fechei a boca e engoli em seco,
desviando os olhos de seu rosto. O que só piorou, porque meus olhos
miraram direto em seus ombros largos cobertos pela blusa preta. Porq ue ele
tinha que usar uma blusa tão colada?
E por que moletom?
Eu não precisava lidar com seu péssimo humor e a aparência divina
ao mesmo tempo. Um estresse de cada vez era o suficiente.
— Boa no...
— A pessoa que contratei não poderá vir hoje. Então você vai
começar amanhã.
Ignorando o golpe já imediato de sua educação refinada, mantive a
calma.
— Contratou para o quê?
— Varrer e tirar o pó da biblioteca. Limpar, no geral.
— Não tem necessidade de contratar alguém para varrer e tirar o pó,
eu sei fazer isso. E não vim aqui à toa, então acho melhor já começar.
Ele passou para o lado, me deixando entrar, e atravessou a casa, até
às escadas que eu já conhecia. Eu quis sentar e chorar no primeiro degrau
pensando na tortura que seria subir e descer várias vezes três andares todos os
dias.
Quando chegamos, ele continuava pleno e eu ofegava como um
cachorro querendo o sorvete de uma criança no parque. Só não babava
porque minha dignidade ainda existia.
Ele abriu a porta dupla e ficou do lado de fora, enquanto eu entrava e
deixava a bolsa pendurada.
— Se acha que dá conta de tudo, fique à vontade. — Ele virou para
sair, mas eu precisava falar algo.
— Cobain, hoje quase me atrasei por conta do ônibus.
Ele virou para mim.
— Você não tem um carro?
Eu bufei com uma risada. Se não fosse por Mali, não teria nem um
teto, quem dirá um carro.
— Não tenho.
Ele suspirou.
— Vou providenciar um carro para trazê-la até aqui depois do Teatro.
O acesso deve ser realmente difícil.
— Não quero um carro, mas ajudaria muito se você me passasse o
seu número, caso eu precise falar com você novamente.
— Não tenho um número.
— De celular?
— Não tenho.
Eu estava chocada e de boca aberta.
— E como é que se comunica com as pessoas?
— Elas vêm até aqui ou eu vou até elas, raramente, quando
necessário.
— É sério? E sua vida social?
Ele franziu a testa.
— Não preciso de uma. Eu não gosto de pessoas. Quanto menos
contato melhor.
— Todo mundo gosta de pessoas.
— Eu não — rosnou e passou as mãos pelos cabelos. — Mesmo que
tivesse um celular, nunca te passaria o número. Por Deus, você fala demais!
Ficaria mandando mensagens o dia todo assim como falaria o dia todo se eu
ficasse ouvindo.
Eu não ia contrariá-lo, porque aquilo era verdade. Mas ainda assim,
eu nunca conheci alguém — jovem — que não tivesse um celular. Cobain
deveria ser jovem, então... era apenas estranho.
— E se acontece uma emergência? Uma coisa de trabalho?
— Eu tenho um telefone fixo para isso, mas as pessoas têm preguiça
de usar. Gostam de viver olhando para a tela de um celular mais do que de
olhar para outras coisas. Eu não preciso de um desses, a tecnologia é uma
droga desnecessária.
Contendo um suspiro, peguei meu celular e coloquei na tela de
discagem.
— Pode falar o número.
— Está anotado na agenda ao lado dele, na sala de visitas. Ele fica
sempre desligado.
Tirei os olhos da tela e o fitei, confusa.
— E se algo acontecer e eu precisar ligar diretamente para você?
Como vou te avisar se o telefone estará desligado?
Ele fez um barulho em sua garganta.
— Se for urgente como diz, dará um jeito.
Cobain saiu pisando fundo e me deixou sozinha. Eu encarei o
caminho que ele seguiu por alguns minutos. Queria me lembrar alguma
música da igreja naquele momento, para que Deus sentisse minha falta de
paciência e me impedisse de cometer um assassinato.
Então peguei o primeiro livro do chão e o coloquei no corredor do
lado de fora.
O primeiro de infinitos que haviam ali dentro.

(..........)

Do lado de fora tinham diversas pilhas de livros encostados na parede


e eu organizei um plano em minha cabeça para colocar tudo em ordem.
Primeiro ia tirar todos os livros, depois ia limpar as prateleiras das
estantes e por último varrer o chão. As janelas empoeiradas seriam um
trabalho e tanto, e aquelas cortinas que não viam uma lavagem a sabe Deus
quanto tempo também precisavam de um banho, mas já deviam estar podres,
então eu diria a Cobain que precisava de novas.
Quando toda a limpeza fosse feita, eu começaria os livros. Ia tirar o
pó e tentar recuperar o maior número que conseguisse. Nem que tivesse que
enfiar uma faca em meu coração e colá-los com durex os que fossem
possíveis ficar inteiros ainda. Se Cobain não os quisesse, eu já sabia
exatamente para onde levar.
Meu único problema era o tempo. Aquilo seria demorado, e agora
que eu podia ficar à noite com Cody, não queria perder tantos dias ao lado
dele. Por isso, logo que saísse do Teatro iria para a casa de Cobain e ficaria
até às nove. O que me sobraria de tempo era o suficiente para chegar em casa,
dar banho em Cody e colocá-lo para dormir.
— O que está fazendo?
Eu pulei ao ouvir sua voz ecoando no corredor longo e vazio.
Segurando a vontade de jogar a montanha de livros que segurava, um por um
nele, coloquei no chão ao lado de outro monte e voltei para dentro da
biblioteca.
— A primeira fase do meu plano de organização.
Ouvi seus passos, então ele entrou e olhou ao redor.
— Está aqui há quatro horas e ainda não fez nada.
— Você vai ficar monitorando?
Ele deu de ombros.
— É a minha casa e eu estou te pagando para um bom serviço.
Soltando os dois livros, coloquei as mãos na cintura e o fitei.
— Você tem ideia de quantos livros tem aqui?
— Mais do que eu e você podemos contar.
— Então você quer que eu faça mágica? Cobain, você me ofereceu o
emprego e sim, sou grata por isso, por causa do dinheiro. Mas se vai ficar
como aquelas patroas chatas que ficam conferindo se a louça foi lavada
direito, me avise, porque saio daqui agora.
Ele inclinou a cabeça para o lado antes de assentir, sem me dar
nenhuma importância.
— Você pode ir embora.
Minha boca foi ao chão.
— O quê? Vai me demitir só porque não quero que fique em cima?!
Suas sobrancelhas franziram.
— Não. Entendi seu recado.
— Então por que está me mandando ir embora?
— Porque já está na hora do jantar, você deve ir comer.
Eu olhei o relógio em meu pulso e ergui uma sobrancelha para ele.
— Por que não posso jantar aqui?
— Não. — Cobain me deu as costas e saiu da biblioteca. Eu o segui
pelo corredor.
— E se no meio do caminho eu passo mal por não ter comido? Hein?
Sabe que posso te processar por me negar alimento, não sabe?
Ele parou e me encarou por alguns minutos.
— Tem razão. Eu já volto.
Quando o ouvi descendo os degraus da escada, me permiti sorrir.
Cobain dividiria um jantar comigo.
Seria uma ótima chance estabelecermos uma relação profissional
entre patrão e funcionária. Assim, talvez sua implicância comigo parasse e
ele visse que eu poderia, sim, ser uma boa profissional.
Será que ele estava apenas inseguro de que eu não cuidaria direito de
seus livros?
Talvez eu devesse falar durante o jantar sobre minha estante e sobre
ser uma leitora muito apreciadora de livros intactos e bem cuidados, assim ele
começaria a confiar que eu era confiável.
Dez minutos depois, Cobain voltou e eu escondi o sorriso, deixando
uma expressão neutra para recebê-lo.
— Pronto.
— Obrigada, Cobain. O que você pediu?
O primeiro passo era iniciar um bom papo e deixá-lo confortável para
começar a falar comigo. Toda a situação seria mais confortável se parássemos
de brigar o tempo todo. E apenas diálogos resolviam isso.
— Um táxi. O nome dele é Rogério da Costa. Vai deixá-la em sua
casa e me mandar uma foto de você entrando. Ele foi orientado a, caso você
passar mal por ainda não ter comido, levá-la a um hospital e ligar para sua
companheira de apartamento, Mari Louise Takahashi. Já está pago. Até
amanhã.
Enquanto eu ficava ali processando cada uma de suas palavras, o vi
sumir pelo corredor e descer as escadas. Uma porta no andar debaixo bateu
com um estrondo e eu me sobressaltei, acordando do choque de absurdo que
ele tinha me causado.
Talvez eu devesse deixar o primeiro passo de lado e pular para o
décimo, onde eu esquecia os diálogos e arrepiava a cara dele.

Capítulo 15
"...o que mais eu deveria ser?
O que mais eu poderia dizer?
O que mais eu poderia escrever?
Todos os pedidos de desculpas"
nirvana, all apologie

ü ELE ODEIA LIVROS


Quando cheguei a casa de Cobain no dia seguinte, bati na porta e ele
não apareceu para atender. Toquei a campainha uma terceira vez e nada.
— Só falta ter saído e nem para me avisar — resmunguei, sozinha.
Estava tão irritada com ele pela noite anterior que previ aquela ida à
toa até ali me irritar mais ainda. O taxista deve ter tomado multas por
velocidade, porque quando saí da casa de Cobain — batendo a porta muito
forte —, entrei no carro já assustando o homem.
Quando paramos em um farol ele me perguntou se estava me
sentindo bem ou precisava ir até um hospital. Ao chegarmos em frente ao
meu prédio, eu desci dando boa-noite e quando abri o portão vi um clarão
atrás de mim, quando olhei, era o taxista do lado de fora, tirando uma foto
assim como Cobain disse que faria.
Levantei cinco minutos depois e bati na porta outra vez, peguei na
maçaneta e a empurrei, e surpreendentemente... abriu.
Eu debati comigo mesma olhando para o extenso corredor vazio, se
entrava ou não. Eu precisava trabalhar, mas Cobain não estava em casa. Se eu
não entrasse, perderia um dia inteiro de trabalho, e se entrasse, ele poderia me
acusar de invasão de privacidade. Vindo dele eu não duvidava que fizesse tal
coisa.
Mas se eu trabalhava para ele, mesmo que temporariamente... Que
mal teria?
Eu ia apenas entrar, continuar arrumando o que me foi dito para fazer
e depois sair como se nem tivesse entrado ali.
Com esse pensamento, entrei e fechei a porta. Quando visse Cobain
outra vez, ia conversar com ele sobre os riscos de deixar sua porta aberta. Ele
parecia tão inteligente algumas vezes, mas outras era tão desligado. Quem
saía e não protegia sua casa antes de deixá-la sozinha? Ele não sabia que
podia voltar e não encontrar a maioria de seus bens?
Tudo bem que também podia ter sido acidental, mas uma casa
daquele tamanho não se devia esquecer de trancar. Sim, eu ia avisá-lo.
Mesmo ele sendo um grosseirão estúpido, eu não tinha porque querer vê-lo
prejudicado.
Passei tranquilamente pela grande sala. Aquela casa era tão bonita!
Rodopiei pelo lugar de braços abertos, uma péssima ideia, pois minha bolsa
bateu em um daqueles cabideiros chiques, quase o derrubando. Eu segurei e
me afastei devagar, garantindo que a coisa ficaria em pé sozinha.
Uma casa tão bonita que se eu destruísse qualquer coisa, o preço do
meu rim e o pulmão ficariam ali. Isso se Cobain mesmo não os arrancasse
como vingança.
Eu não queria e não tinha planejado, mas meus olhos bateram
naquela obra de arte e eu precisei chegar mais perto. O piano de cauda
enorme, que havia me encantado desde a primeira vez que pisei naquela casa.
A cor era tão escura que parecia preto, era fosco e quando toquei, tive
medo até que pudesse quebrar. Devia fazer um som incrível e meus dedos
coçaram para tocar.
Com esse pensamento, dei dois passos atrás, mas logo depois dei três
a frente e sentei, jogando minha bolsa no sofá mais próximo. Nunca teria
outra oportunidade como aquela.
Pressionei a primeira tecla e tentei me lembrar da sensação de dançar
sentindo apenas aquele instrumento mágico falando comigo. De como era
quando meu corpo conseguia me obedecer e junto dele, nós três nos
tornávamos uma única dança. Uma única sinfonia.
Eu sempre senti que enquanto dançava, tinha as teclas de um piano
debaixo dos meus pés. Nunca soube tocar. O dom que havia nascido em meus
pés não passou para as mãos, mas sempre admirei a forma como era tão forte
e delicado ao mesmo tempo.
Quando pressionei a segunda tecla, abri os olhos e olhei pela janela.
O céu estava tão azul e mesmo com o cansaço que aquele calor me causava,
eu me senti tão leve.
Apertei a terceira e de repente... uma imagem diferente visitou minha
imaginação.
Como seria Cobain tocando aquele piano?
— O que pensa que está fazendo?
Eu pulei para trás, caindo do banco com o susto, e quando fui
levantar, meu pé enganchou em uma das três pernas da mesa lateral, fazendo-
a virar e derrubar o vidro cheio de flores vermelhas dentro.
Eu arfei e me apressei para pegar, nem olhando em sua direção para
não encarar sua fúria. Mas antes que eu chegasse perto, Cobain estava lá e
segurou meus braços, puxando-me de pé com uma força que eu cambaleei
quando me soltou.
— Ficou maluca?
— Eu... desculpe-me! Você não estava e eu fui limpar, mas vi o
piano e como não estava achei que tudo bem tocar um pouco, e você não
estava mesmo, então...
— Basta.
Eu falava tão rápido, que quando o encarei ele parecia não saber se
havia me entendido ou não.
— Eu vou limpar.
Fui me abaixar novamente, mas sua mão segurou meu braço.
— Deixe aí. Eu não preciso de você pingando sangue por toda a casa.
— Mas eu...
Ele rosnou e virou as costas, saindo de perto e sumindo pelo corredor.
Logo depois ouvi uma porta bater e entendi que o assunto estava encerrado.
Eu levantei o banco, colocando-o de volta no lugar e sem pisar nos
cacos, coloquei a mesinha de pé um pouco mais longe.
Procurei nos banheiros do andar debaixo pela vassoura e uma pá, mas
não encontrei. Vencida e com uma coragem que surgiu do além, caminhei
por onde Cobain tinha sumido e o chamei. Levaram três chamadas para ele
aparecer no final, com uma caixa na mão.
— Eu preciso de uma vassoura para limpar isso — falei meio
insegura quando ele passou por mim e o observei abaixar ao lado do piano.
Cobain abriu a caixa e tirou outro vaso de vidro, então de repente
parou e me olhou por cima dos ombros.
— Você não tem trabalho a fazer lá em cima?
Engolindo em seco, assenti e me afastei. Mas não sem antes virar
para olhá-lo uma última vez.
Ele já não me encarava mais, mas pegava cada uma das rosas e as
verificava antes de colocar no vidro que havia tirado da caixa.

(..........)

Eu passei o resto da noite terminando de tirar os livros das


prateleiras, e o corredor do lado de fora da biblioteca já começava a ficar sem
espaço. Teria que começar a empilhá-los dentro dos quartos daquele andar.
Cobain provavelmente não os usava, então estaria tudo bem.
Meu cabelo estava para cima, e os fios soltos grudavam na minha
testa pelo suor. Meus braços tinham marcas de carregar o peso e eu estava tão
cansada que poderia cair ali mesmo e dormir a qualquer momento, e Cobain
me encontraria desmaiada habitando o mundo dos sonhos.
Era realmente impressionante que uma limpeza nunca foi feita no
lugar. E mais impressionante ainda que ele tivesse me deixado cuidar
daquilo. Mesmo com o cansaço, fazia algum tempo que eu não via prazer em
alguma coisa fora Cody.
— Como está indo?
Eu fechei os olhos por um minuto antes de os abrir e virar para
encará-lo de pé, parado no meio da porta com as mãos nos bolsos da calça.
— Acho que estou começando a me acostumar com você chegando
assim. Parece uma assombração. Eu nem te vejo pisar a não ser que você faça
de propósito quando está irritadinho.
Ele franziu o cenho.
— Eu não fico irritadinho.
Eu coloquei o livro que segurava em frente aos lábios para que ele
não visse o meu sorriso e assenti.
— Ok, você não fica.
Ficamos em um silêncio por alguns segundos, enquanto ele olhava ao
redor e eu olhava para ele. Estranhamente concentrada nele.
— Desculpe-me por ter entrado sem sua permissão.
Ele parou sua inspeção e me encarou, tirando uma chave do bolso e
se aproximando, a estendendo para mim.
— Quando eu não estiver, você pode entrar. Precisa estar dentro para
trabalhar.
— Sim. — Abaixei a cabeça, envergonhada. — E desculpe por...
tocar seu piano.
Ele desviou o olhar, os estreitando, e passou por mim.
— Está conseguindo organizar as coisas? Há alguma coisa faltando
para que consiga trabalhar?
Ele ouviu meu pedido de desculpas, mas não quis falar sobre aquilo.
Eu não ia insistir, já tinha feito estragos demais para apenas aquele curto
período de tempo.
— Está tudo certo. Eu vou colocá-los todos por ordem alfabética
depois, com o nome dos autores ou dos livros. Ainda não sei.
— Certo. Como achar melhor.
Ele virou para sair, mas num impulso, puxei assunto. Nós nunca
falávamos e mesmo ele sendo um xucro, eu estava tão curiosa sobre aquele
homem, que os pequenos momentos que passávamos juntos apenas
aumentavam ainda mais esse sentimento de querer saber mais.
— Sabe o que reparei?
Cobain parou, me encarando outra vez. Eu coloquei a chave no bolso
da blusa.
— Você não tem livros de romance aqui.
Suas sobrancelhas ergueram.
— E o que você chamaria de romance?
Minhas mãos ergueram, como se fosse óbvio.
— Colleen Hoover, Jojo Moyes, Carina Rissi, Sophie Kinsella, Gayle
Forman, Jane Austen e várias outras.
Ele franziu a testa.
— O que são? Romances de banca para fazer chorar?
Meu queixo caiu.
— Você acabou de insultar alguns dos principais nomes do romance?
Cobain bufou, deixando o jornal de lado.
— Maiores nomes do romance? Você por acaso sabe algo sobre
Thomas Mann, Liev Tolstoi ou Emily Bronte, também, mesmo que seja um
clichê enorme e... Oscar Wilde? São apenas alguns dos que vou começar a
indicar. Pegue um deles e leia, depois venha falar comigo sobre literatura.
Com meus olhos arregalados, o segui para fora da sala até o andar de
cima, enquanto ele seguia seu caminho até a biblioteca.
— Oscar Wilde? De O Retrato de Dorian Gray? Isso não é um
terror?
Cobain parou e virou-se para mim.
— Terror? — Um passo à frente e eu um atrás. — Você não disse
isso.
— Eu disse.
— Dorian Gray viveu uma luta consigo mesmo. Sua consciência,
razão e coração batiam juntos em um único ritmo e ele não fazia ideia de qual
seguir. Ele se apaixonou, como a maioria dos homens tolos fazem, e então...
tudo foi quebrado, assim como está destinado acontecer no amor.
— Amor? Cobain, não me lembro de ter visto amor na obra.
— O que você entende como amor? — Ele analisava toda a sala sem
parar, então começou a caminhar pelas estantes enquanto eu me mantinha
parada no mesmo lugar.
— Quando um casal se apaixona e...
— Errado. Pare aí. — Ele pegou um livro, levantando uma fumaça de
pó e o abriu, caminhando entre ela de volta para mim. — O amor pela
vaidade o movia. Pela luxúria e pelos enganos da mente. Ele não amou uma
mulher em primeiro lugar. Amou a si mesmo, ao sexo e aos prazeres carnais.
Há amor por todas as páginas.
— Então... amar a si mesmo é mais importante do que amar outra
pessoa?
Ele fechou o livro e pensou um pouco, sua testa franzida.
— Não. Ideal seria se todos nós conseguíssemos passar pela vida sem
amar qualquer coisa. Assim como Dorian fez no começo. Ame a si mesmo e
ame os bens materiais, isso não fará com que o caminho se torne sombrio
mais para frente. — Ele parou e limpou a garganta. — Claro... falando pela
análise do livro.
Eu balancei a cabeça, mal acreditando em suas palavras "vazias".
— Um eterno mártir. Eu vou tentar ler o livro com outros olhos,
porque diferente de você... acredito que qualquer um pode ler qualquer coisa
que quiser. Mas o filme é horripilante.
Ele revirou os olhos. Revirou. Os. Olhos!
— Filmes... por Deus. Adaptações são uma droga. É como tirar uma
foto sem foco e esperar que fique boa.
Boquiaberta, cruzei os braços. Eu já estava vendo que teria que dar
uma aula a ele.
— Você nunca assistiu Jogos Vorazes? É uma das melhores
adaptações de todos os tempos!
— Jogos quem?
Eu precisei rir de sua reação.
— Jogos Vorazes. Você nunca leu e nem assistiu? Você é um
extraterrestre? Tudo indica que sim.
— Eu não assisto coisas e eu não leio livros juvenis.
— Jogos Vorazes não é só juvenil! Quer dizer... pode ser lido por
todas as idades, eu acho, mas...
— Você tem um péssimo gosto — ele acusou. — Espero que os dias
nesse lugar te façam melhorar isso, para o bem do seu cérebro.
— Existem diversos livros por aí afora e é muita arrogância da sua
parte dizer que o meu gosto não é bom, quando na verdade... existe leitor
para todos os gêneros. Eu adoro os romances atuais, mas gosto de algumas
autoras antigas que acabei lendo em algum momento da vida. Você gosta dos
"clássicos", mas não sabe se algum dia vai ler um autor novo e gostará,
também.
— Não existem leitores de todos os tipos, existem os que têm bom
gosto e os que têm péssimo. Como você.
Indignada com suas palavras, avancei enquanto ele entrava no cômodo
rodeado por livros e mais livros.
— Não escuta o que está dizendo? Livros são universos onde não
importa quem os escreveu e quando escreveu, a única coisa que tem real
importância é se ele o fará se sentir como se admirasse uma paisagem bonita.
Se ele te faz refletir, se te faz sonhar... se te deixa feliz.
— Basta! — esbravejou. — É por isso que você sonha tanto. Porque
vive presa a esse mundo fictício de romances com finais perfeitos. Talvez
devesse começar a ler terror para entender um pouco de como a realidade é.
— O que eu entenderia que não entendo agora?
— Que é desastrosa, medonha e letal. — Seus olhos eram como na
primeira vez que o vi, e a voz era a mesma que falou comigo no telefone. —
Não há nenhuma paisagem para observar, a não ser aquela que desmorona na
sua frente se você sequer ousa esperar demais — ele falou de uma forma tão
grave que eu decidi não discutir mais.
— Cobain...
— Não estarei aqui amanhã. — Ele tirou um molho de chaves do
bolso da calça e deixou na mesa antes de sair. — Venha para o seu último dia
e não precisa voltar mais. Deixarei seu pagamento em sua conta bancária.
Adeus, Danielle.
Enquanto seus passos ecoavam para longe naquela enorme casa, eu
enfiei a mão no bolso, segurando o molho de chaves e incrivelmente não me
perguntei o que faria sem o dinheiro que aquele "emprego" me daria, mas me
questionei... o que tinha desmoronado a sua frente quando ele ousou sentar
para observar uma paisagem bonita.
Capítulo 16
"...manchadas e confusas a verdade e as mentiras
Então eu não sei o que é verdade e o que não é
Sempre confundindo os pensamentos em minha cabeça
Estou me afogando...
Me afogando em você"
evanescence, going under

ü ELE QUER TER UMA FAMÍLIA

Era sexta.
Era sexta e Cobain me demitiu.
Era sexta, Cobain me demitiu e havia um valor absurdo de dinheiro
na minha conta.
Eu não trabalhei o suficiente para ganhar dez mil reais. Eu não
trabalhei nem uma semana. Deixei os livros todos no corredor do lado de fora
e a biblioteca dele ainda estava uma bagunça, e ainda assim ele havia me
dado o suficiente para cobrir muito mais do que as minhas despesas.
Dez mil reais antigamente seria o preço da minha compra no
shopping, hoje em dia... era uma barra de ouro.
Mas aquilo ali não era um programa do Silvio Santos no qual eu
sentava e o esperava atirar aviões de cem reais. Eu não queria aquele dinheiro
dado, não era justo.
Foi por isso que na manhã daquela sexta, o dia seguinte de ter saído
de sua casa, demitida, eu encarava a tela do Google no computador de Mari
Louise e o molho de chaves que ele havia me dado antes de me demitir. Por
que eu não devolvi? Nem eu sabia. Mas sabia que o que estava prestes a fazer
era algo terrivelmente invasor e o que eu faria depois, seria pior ainda.
Digitar Cobain James na barra de pesquisas foi fácil e os resultados
chegaram tão fácil quanto. Não haviam muitas informações. Em notícias não
tinha nada de imagens, apenas algumas tiradas com ele caminhando na rua.
Em apenas duas ele fitava a câmera. A primeira estava sozinho e encarava a
lente, sério como eu estava acostumada a vê-lo; e a segunda, estava com
Danilo Lobos, que sorria enquanto Cobain parecia nada feliz em ser o foco.
Eu ia ver os vídeos, mas de repente me coloquei no lugar dele, me
sentindo como se fosse eu a estar sendo investigada. Ele tinha dinheiro
suficiente para contratar o melhor detetive e descobrir o que quisesse sobre
mim, mas se eu soubesse, não gostaria nada. Então por que estava ali
bisbilhotando?
Com esse pensamento, fechei a janela da internet e levantei, não sem
antes pegar o molho de chaves.
Me detive por um passo, porque tinha acabado de dizer que não
queria bisbilhotar a vida dele, mas estava prestes a voltar naquela casa e
terminar o trabalho que ele pagou para que eu fizesse.
Mas isso era diferente. Eu convenci a mim mesma com esse
pensamento e voltei ao meu quarto. Peguei minha bolsa e conferi se estava
tudo dentro. Meu plano era correr para a casa dele logo depois de sair do
Teatro.
Cody dormia tranquilamente em seu berço e eu sai sem bater a porta.
Gabi ficava de levá-lo em uma sexta-feira do mês, porque ele entrava uma
hora mais tarde e precisava levar um brinquedo, coisa que eu não podia
esperar para fazer, se não chegaria atrasada no trabalho.
Encontrei Mari Louise na cozinha e a abracei com um beijo estalado
na bochecha.
— Bom dia, japonesa.
— Bom dia, bibliotecária.
O notebook dela estava aberto no youtube, tocando Pulsos, da Pitty, e
ela já começava a pegar ingredientes do armário.
— Amo essa música. O que você vai fazer?
Ela sorriu.
— A vizinha do 43 B encomendou um bolo para o aniversário da
afilhada.
— Minnie, Frozen, Moana, o que vai ser?
— Abelhas com lacinho rosa. Eu já desenhei e vai ficar muito fofo.
— É claro que vai ficar, você é incrível nisso. Já te disse que deveria
abrir um negócio de confeitaria.
Ela bufou.
— Precisa de dinheiro para fazer isso.
— Você tem dinheiro, Mari Louise, só o está gastando com as coisas
erradas.
Minha amiga deu de ombros, quebrando três ovos na bacia redonda.
— Pode ser.
Me aproximei e dei-lhe um beliscão na bunda, a fazendo pular e rir.
— Você é muito talentosa, dona japonesa. Deveria investir em seus
dons culinários.
— Nós duas sabemos qual o meu dom, dona bibliotecária.
Tristeza inundou minha voz.
— Não fale assim de si mesma, Mari Louise.
Ela deixou a colher de lado e desligou a batedeira, limpando as mãos
no avental antes de tirá-lo.
— Eu preciso ir no mercado comprar alguns ingredientes. Você e
Cody já vão sair?
Em momento nenhum ela me olhou nos olhos. Mas aquela era sua
típica reação para quando o assunto ficava mais sério. Mali fugia de qualquer
sentimentalismo.
— Hoje é aquela sexta. Gabi vai levá-lo mais tarde.
Mali me olhou.
— Mas hoje não é a reunião de classe dele?
— Não.
— Você disse que já tinha até avisado no Teatro e que Andreza ia te
cobrir.
Eu franzi a testa.
— Não, isso é só na última semana do mês.
Mali riu.
— Hoje é dia vinte e oito.
Eu fui até a folhinha do calendário pendurada para conferir e ali
estava. Merda. Meus olhos arregalaram e minha boca abriu em choque.
— Meu Deus do céu, Mali! Esqueci! Fiquei tão estressada com a
coisa toda do Cobain que nem prestei atenção nisso!
— Compreensível. Eu nem conheço o cara e fiquei nervosa só de vê-
lo aqui naquele dia.
— Estou rindo, mas isso é trágico — falei enquanto voltava ao quarto
para acordar Cody. — Que homem do caramba, até de longe me confunde!

..........

A reunião escolar de Cody durou cerca de duas horas. Eu tinha


esquecido completamente que teria aquela conversa mensal com a professora,
mas graças a Deus tinha Mali para me lembrar.
Liguei no Teatro de qualquer forma, para reforçar que não iria, e
Larissa confirmou que Andreza já até estava lá. Realmente, apenas eu tinha
esquecido.
Esquecido de algo do meu filho.
Uma sensação ruim se instalou no meu peito, de medo, de ansiedade,
porque eu sabia muito bem o que acontecia quando eu começava a esquecer
as coisas. Mesmo que não fosse recorrente, sempre terminava comigo
pedindo socorro, ou tentando. O fato de ter esquecido algo de Cody, tornava
tudo pior ainda. Meu filho sempre foi a prioridade máxima em minha vida
desde que o descobri. Eu nunca precisava nem ler uma segunda vez alguma
receita de remédio quando ele ficava doente, porque me lembrava os horários
exatamente.
Esquecer sua reunião mensal? Algo que mesmo que ele fosse
pequeno era tão importante, me colocou totalmente para baixo.
Quando nós saímos de sua escola, com a nova lista de material para
comprar pedida pela professora, eu passei em uma papelaria e já comprei.
Cogitei ir para a casa e aproveitar o dia com ele, mas daí olhei o cartão em
minhas mãos e me lembrei qual dinheiro estava cuidando daquela compra e
mudei de ideia na hora.
Precisava trabalhar.
Assim que paramos no ponto de ônibus, peguei meu celular e liguei
para Gabi. Precisava que ela ficasse com Cody para ir trabalhar.
— Dani, hoje realmente não vai dar. Você me disse que não
precisaria de mim, que ficaria de folga por causa da reunião dele e depois ia
cuidar do Cody o resto do dia.
— Eu sei que disse, mas é que eu arrumei esse bico por alguns dias e
não posso levá-lo.
Cody me olhou quando eu disse aquilo e inclinou a cabeça para o
lado, a deitando em meu ombro como se me entendesse.
— Eu juro que ficaria com ele, Dani, o problema é que eu estou no
centro comprando umas coisas para o chá de bebê de uma amiga, depois
daqui marquei com ela de começarmos a decoração lá no salão do prédio
dela.
Eu suspirei e assenti, mesmo que ela não fosse ver.
— Tudo bem. Eu vou dar um jeito. Obrigada, Gabi.
Desliguei depois de nos despedirmos e fitei meu filho.
— O que a mamãe faz, amor?
Ele sorriu e me deu um de seus beijos babados.
— Cody, olhe para mim.
Segurei suas bochechas gordinhas e olhei no fundo de seus olhos, o
fazendo rir. Ele pensava que eu estava brincando.
— Filho, isso é uma conversa séria. Você precisa prometer que vai
ser um menino comportado, ok?

(..........)

— Cody, não coloque isso na boca! — Corri até onde ele estava
sentado e tirei o livro de suas mãos.
Abri a boca dele, conferindo se não havia comido nenhuma folha, e
suspirei. Eu estava tão ferrada.
Meu corpo já protestava do esforço que eu o estava submetendo, sem
depois dar um descanso para compensar e, além de tudo, precisei levar Cody
junto comigo. Por um lado era bom. Se Cobain chegasse e visse que invadi
sua casa, não me mataria ao ver meu filho.
Eu toquei a campainha, bati na porta e esperei. Andei por todo aquele
jardim o procurando e bisbilhotei por cada janela que tinha a cortina aberta.
Ele não estava em casa. A chave foi muito útil naquele momento e caso ele
chegasse antes de eu ir embora, eu poderia dizer que ele mesmo me deu a
chave, então não era invasão.
É claro que eu não queria devolver o dinheiro, porque me ajudaria
demais. Mas também não ficaria com ele de graça, então, com ou sem
protestos de Cobain, eu ia terminar o que me comprometi a fazer.
Cody bateu suas mãos nas pernas, as sobrancelhas se unindo em um
protesto irritado quando ele foi até outra pilha de livros. Eu senti que se
pudesse falar, ele diria: “Não vai me dar? Eu pego outro”.
Eu me deixei parar o trabalho por um momento e o observei perto o
suficiente para correr até ele caso precisasse.
— Você não tem idade para me desafiar, garoto.
Ele resmungou e olhou para os livros, um em cima do outro,
decidindo qual pegar. Ele decidiu pela do meio, onde só tinham aqueles de
capa dura e mais pesados do que seu próprio corpinho. Com toda a garra e
força que um bebê pensa que tem, Cody envolveu os dedinhos em um deles e
tentou pegar. Eu me dobrei, rindo de seus esforços, e ele me olhou com uma
cara de choro tão fofa que só me fez rir mais ainda.
Céus, eu era uma péssima mãe! Mas aquilo era tão divertido. Me
lembrava quando ele nasceu e eu e Mali ficávamos tirando fotos de suas
caretas e rindo, colocando filtros de bichinhos nele. Era tão, tão engraçado.
Seus pés gordinhos bateram no chão de madeira quando ele desistiu,
e ele parecia gostar do som, porque se distraiu dos livros para bater uma e
outra vez, rindo com a nova descoberta.
Eu quis correr até ele e beijá-lo pelo o resto do dia, mas aproveitei
seu momento calmo e longe de artes para voltar a estante onde estava e
continuar levando os livros para fora.
Eu estava na sessão de "Ciências e Economia" e não conhecia
nenhum livro e nenhum autor. O que tornou a tarefa um pouco tediosa, já que
eu não podia fuçar nos assuntos. Não ia entender nada.
Mas em meio a eles, um livro de tom azul claro, bem diferente dos
demais escuros, chamou minha atenção. Eu o puxei e li o título “Matheus, o
duende e a bruxinha boa”, de Esther Cohen.
A capa parecia tão fofa e eu o separei para mostrar para Cody. Queria
que ele começasse a conhecer os livros, para que os amasse assim como eu
fazia. Eu sempre achei que não existia influência melhor para formar o
caráter de uma criança para a adolescência e a vida do que os livros.
— DANIELLE!
Eu travei no lugar onde estava. Qualquer pensamento coerente
deixando minha cabeça e larguei o livro, correndo ao final da estante até onde
havia deixado Cody.
Cobain estava parado em frente a porta, com uma expressão de quem
me assassinaria naquele exato momento.
— Cobain...
— O que é isso? — ele rosnou e eu dei um passo atrás. Ele parecia
tão irritado, tão confuso e tão indignado.
— Um... bebê?
— Por que tem uma criança vestindo os meus sapatos? Ou melhor,
por que tem uma criança vestindo os meus sapatos, na minha biblioteca e na
minha casa?
Eu olhei para onde seu dedo apontou e quis rir. Eu não tinha nenhum
juízo.
Cody estava sentado em cima de dois livros, com uma mão no joelho
e a outra na boca e nos pés, onde antes seus pés estavam descalços, agora
estavam enfiados em duas botas enormes.
Ele me olhou e sua voz vibrou em uma gargalhada, então seus olhos
desviaram de mim para o homem a sua frente, então ele fez algo que nem eu
e muito menos Cobain esperávamos.
Meu filho levantou, e meio cambaleando dentro dos enormes sapatos, ele se
arrastou até estar na frente do meu chefe, ergueu suas mãozinhas, chamando
Cobain com os dedos.
E eu só pude arregalar meus olhos com o que veio a seguir.
— Papa?
Capítulo 17
"....você vê um céu azul agora?
Você pode ter uma jornada melhor agora
Abra os seus olhos pois ninguém aqui pode nos impedir
Nossas esperanças e sonhos estão em algum lugar por aí
Talvez eu e você possamos fazer as malas e dizer adeus
E voar para longe daqui"
aerosmith, fly away from here

Em passos rápidos e longos eu abaixei e segurei Cody, tirando a bota


de seus pés antes de levantar com ele. Eu devia ser realmente uma péssima
mãe, porque estava usando meu filho como defesa em uma tentativa de não
enfrentar a fúria de Cobain.
Cody continuava esticando seus bracinhos para ele, resmungando.
— Papapapapapa.
Minha mão voou delicadamente, tampando sua boca, e dei dois
passos atrás, buscando alguma distância entre nós. Meu filho se remexeu,
irritado porque eu estava acabando com seu momento.
— Cobain, eu posso explicar totalmente porque ele está aqui comigo.
— Isso é seu?
Minhas sobrancelhas ergueram.
— Isso? Esse bebê? Uma pessoa, não um isso?
Sua testa franziu e as narinas inflaram.
— É ou não?
— Sim, é meu filho.
— Eu não sabia que você tinha um.
— Eu não achei necessário falar.
Tirei a mão da boca de Cody e ele balançou ainda mais, fazendo sons
indicando que começaria a chorar a qualquer momento. Tentei segurar suas
mãos que continuavam chamando Cobain com aquele sinal de “vem” que
crianças fazem, mas ele pareceu ainda mais irritado.
Cobain se aproximou e minha respiração travou na garganta. Tudo
passou em minha imaginação. Desde ele tirando Cody de mim e me
prendendo no porão como Larissa havia dito, até me expulsando de lá à base
de xingamentos. Meu filho presenciaria aquilo e seria revoltado para sempre.
Mas eu devia imaginar que Cobain não faria o que eu suspeitava. Se
havia uma coisa que ele fazia bem, era me surpreender.
Ele apenas esticou os braços e em dois segundos, Cody estava em seu
colo.
— O garoto quer vir comigo, deixe-o vir.
Sem outra palavra, ele me deu as costas e saiu da biblioteca. Quando
o vi sumir na escada, pareceu que acordei de um sonho e me dei conta do que
tinha acontecido, então o segui.
— Cobain! Por favor, me dê o meu filho.
Ele continuou descendo.
— O que acha que eu vou fazer? Jogá-lo escada abaixo?
— Eu não sei. Você sabe segurar uma criança direito?
Ele parou no último degrau do segundo andar e me fitou.
— Eu tenho um sobrinho.
Uma única resposta antes de continuar descendo, que respondeu
minha pergunta.
— Você tem um irmão?
— Se eu tenho um sobrinho...
Sim, era verdade, eu estava perdendo qualquer raciocínio naquele
momento. Meus pés descalços pisavam no forro da escada para o primeiro
andar e eu ouvia a risada de Cody conforme ele se divertia com o movimento
de descer as escadas.
— Você está nos levando até a porta?
Ele não respondeu. Como sempre, me ignorar era seu passatempo
favorito.
Chegamos no primeiro andar, mas ao invés de ir para a porta de
entrada, ele deu a volta na escada e abriu uma porta de vidro no fundo, que
levava ao jardim de trás. Ou melhor... no mato de trás. Era um espaço tão
bonito, rodeado por um muro alto de pedras claras, uma árvore seca e a
grama mais ainda.
Se algum dia aquele lugar já foi bem cuidado, deveria ser expendido.
Olhei para cima, vendo como a vista para o céu era limpa e aberta. Uma
cadeira de balanço naquela varanda e aquela vista, seria simplesmente o
paraíso.
Cobain levou Cody para trás da varanda, e o seguindo, vi que existia
muito mais. Inclusive uma daquelas balanças coloridas de bebê. Meu coração
apertou por um momento, vendo como ele segurou meu filho para colocá-lo
ali, mas Cody com suas mãozinhas ágeis, agarrou uma na barba dele e a outra
no cabelo.
Cobain ajoelhou no chão, na altura do balanço, e colocou Cody ali,
encaixando suas pernas nos dois buracos certos. Então, com paciência e
habilidade, desenganchou os dedos gordos do meu filho de seu cabelo e da
barba.
Eu continuei parada, engolindo em seco e sem palavras. Sem saber o
que dizer naquele momento. Cobain tinha uma natureza tão estúpida que vê-
lo agir delicadamente com outro ser humano era muito estranho,
principalmente sendo um ser humano que veio de mim, alguém por quem ele
parecia não ter a menor simpatia.
Ele se levantou e segurou a corda de um lado, encostou na coluna
atrás de si e balançou Cody bem devagar. Meu filho exibia seus dentinhos em
um sorriso enorme, balançando os braços e as pernas enquanto olhava aquele
lugar.
Um lugar que para mim parecia tão destruído, mas ele em toda sua
inocência só via bondade e beleza. Mesmo em Cobain, quando se jogou no
colo dele sem nenhuma reserva, esperando que porque eu era boa com ele,
qualquer outra pessoa seria. Uma inocência tão linda, que se pudesse, eu faria
de tudo para preservar.
— Por que não falou sobre ele?
Tirei meus olhos de Cody e olhei para ele, dando de ombros.
— Já disse, achei que não precisava.
— Deveria ter dito. Eu teria depositado mais.
— Não quero o seu dinheiro, Cobain. Não dado. Quero trabalhar para
isso.
Seus olhos finalmente me encontraram. Sob a luz do sol, pareciam
ainda mais verdes, e mesmo que a barba cobrisse uma parte de seu rosto, eu
conseguia ver as sardas por sua pele clara.
— É por isso que trabalhava naquela boate?
Envergonhada, tanto por sua pergunta, quanto pela intensidade com
que me encarava, cruzei os braços, tentando me dar uma sensação de
proteção diante dos olhos dele.
— Mães solteiras têm despesas que um salário do governo não cobre.
E tem gente que recebe muito menos do que eu. Eu só dançava, elas precisam
fazer coisas piores.
— Sinto muito.
— Sobre o quê?
— Por as coisas serem assim. — Ele parou e me olhou nos olhos. —
Por ter falado da maneira como falei com você depois de tê-la visto na boate.
Não era da minha conta, mas eu já...
Cody fez um barulhinho e Cobain se inclinou na hora, segurando a
mão dele.
— Tudo bem, garoto. Estou aqui, você não vai cair.
Um vento passou por mim e meus olhos lacrimejaram ao ouvir suas
palavras. Ele falou para Cody, mas as palavras atingiram meu coração como
flechas. Porque desde que me tirou da boate e me deu um emprego seguro,
pagando-me mais do que eu conseguiria ganhar, Cobain vinha fazendo
exatamente aquilo. Mesmo sem saber, ele me impedia de cair.
Ele estava ali.
Me irritando, se intrometendo em minha vida e tornando tudo um
caos, mas ao mesmo tempo... o sorriso estampado no rosto do meu filho,
junto com a sensação que se formou em volta do meu coração naquele
momento, me fez pensar que aquilo não era uma boa ideia.
Eu já vivia em uma corda bamba, e Cobain parecia exatamente como
aquilo que me tiraria o equilíbrio para que eu caísse de vez.
— Desculpe quando ele te chamou de... você sabe.
— Onde está o pai dele?
Eu engoli em seco, querendo fugir do assunto, mas Cobain estava
sendo tão bom, que eu senti que devia pelo menos uma resposta a ele.
— Em Minas Gerais.
Ele me olhou e pareceu ter percebido que aquele ponto de conversa
não era o meu favorito.
— Está tudo bem, crianças falam coisas o tempo todo. Quanto tempo
ele tem?
— Pouco mais de um ano.
— Por que você o trouxe hoje?
— Não tinha com quem o deixar.
— E por que você veio? Seu pagamento já foi transferido.
— Muito mais do que eu trabalhei para ganhar — esclareci. — Você
deve ter falado que eu não precisava voltar no calor da emoção, eu entendo
isso.
— Não falei no calor de nada, falei sério.
— Estou acostumada a sua estupidez, Cobain. Pode falar o que
quiser, eu vou terminar o que comecei. Suas palavras ranzinzas entram por
um ouvido e saem pelo outro.
Ele resmungou de onde estava e Cody resmungou também. Parecia
até que tinham finalmente encontrado alguém que os entendia, já que os dois
viviam resmungando e reclamando da vida.
— Ele é muito bonito.
Eu meio que amoleci com aquelas palavras.
— Obrigada.
Ele ficou de pé e passou por mim, entrando na casa.
Cody começou a fazer avião com a boca, babando em seu queixo e na
camisa que usava.
— O que a criança come?
Dei de ombros.
— O nome dele é Cody e ele come qualquer coisa que seja
mastigável.
— Cody não é um nome brasileiro. — Dito isso, ele sentou do outro
lado e deu um biscoito de chocolate na mão de Cody.
Eu me controlei para não ficar encarando-o. Já havia percebido que
Cobain era impulsivo e fazia as coisas sem pensar muito.
Aquela atitude de sentar e conversar comigo e pegar meu filho, era
reflexo de como ele provavelmente tratava o sobrinho. O que foi uma
surpresa, porque eu nunca imaginaria que ele gostasse de crianças.
— Não é, mas eu gosto do nome. — Gostava mais do que ele ou
qualquer pessoa poderiam imaginar. — E o seu? Cobain James também não
é.
— Não é muito comum na França, também, mas meus pais são
criativos.
Ele era francês? Meu santo Deus!
— Sério? Eu chutava que você era inglês. Fala português muito bem,
tem o sotaque, mas é pouco.
— Eu nasci aqui. Meus pais vinham sempre para visitar meu
padrinho e em uma dessas viagens eu tinha oito meses. Cheguei antes da
hora.
— Uau... e ficou morando aqui?
Ele puxou uma longa respiração e deu outro biscoito para Cody.
Então me olhou e bateu os dedos no balcão. Era como se ele estivesse
tentando decidir o que fazer comigo.
Eu esperava que não parasse de falar, porque era a primeira vez que
estávamos conversando civilizadamente e eu gostei. Mesmo que suas
palavras fossem resmungos e a testa estivesse sempre franzida, como se
passasse tanto tempo irritado que a expressão congelou em seu rosto.
— Eu vinha todas as férias ficar com meu padrinho, quando estava na
escola. E deixei a faculdade para vir trabalhar com ele. Aprendi francês
enquanto estava aqui e aprendi português enquanto estava lá.
— Isso é muito legal. Você já viu a Torre Eiffel, não é?
— Eu já disse que você fala demais?
— Hoje não.
Ele balançou a cabeça e foi até Cody, segurando sua mão e afastando
o rosto quando meu bebê tentou segurar sua barba outra vez.
— Tchau, garoto.
Ele ia saindo da cozinha, mas antes me olhou uma última vez.
— Tenho algumas coisas para fazer. Só tranque a porta quando sair.
Pegue o táxi que estará esperando na porta.
— Mas você me demitiu, não foi? — perguntei, segurando o riso.
— Está recontratada.
Ele saiu sem dizer mais nada e incrivelmente, ao invés de gritos,
Cobain me arrancou um sorriso. Eu olhei para Cody e ele sorriu também.
Peguei sua mão e fiz um toque com ele, meu parceiro nas piores horas.
— Você vai poder assistir Pinkfong quantas vezes quiser depois da
tarde de hoje, filho.
Capítulo 18
"...minha imagem desaparece e a escuridão virou cinza
Observando pelas janelas
Você está pensando se eu estou bem
Há segredos roubados de lá do fundo e a batida do tambor está fora do ritmo
Se você estiver perdido você pode procurar
E vai me encontrar, hora após hora"
cyndi lauper, time after time

— Ficou lindinho, não foi?


Eu despertei dos meus pensamentos e assenti, sorrindo para Mari
Louise. Ela me mostrava as fotos que a vizinha do 43 B havia enviado para
ela, do aniversário da afilhada. O bolo foi uma surpresa e no vídeo a mulher
gravou a reação da garota quando viu. Ela adorou, o que não me surpreendeu.
O bolo e os docinhos estavam lindos, como tudo o que Mari Louise fazia na
cozinha.
— Ficou maravilhoso, amiga.
Sorri para ela e tentei me concentrar no que ela falava a seguir, mas
foi impossível. Desde que tinha voltado da casa de Cobain na tarde de sexta-
feira, só conseguia pensar em tudo o que tinha acontecido.
Na forma como ele me tratou, como tratou Cody, como foi protetor e
gentil com o meu filho, como parecia completamente desarmado e por um
momento... eu consegui ver além do grosseirão ao qual estava acostumada.
Consegui ver o Cobain que tinha um coração bondoso, mesmo que aquela
bondade simpática se estendesse apenas à crianças, mas ainda assim estava
lá.
Saí da casa dele com Cody depois de muito trabalho. Meu filho tinha
finalmente cansado de brincar e já coçava os olhinhos com sono, então eu
soube que sua aventura ali no meio dos livros estava terminada.
O taxista nos esperava do lado de fora, e quando entrei ele se
sobressaltou, me fazendo perceber que estava dormindo.
Eu hesitei antes de fechar a porta.
— Moço, se sente bem para dirigir?
Eu não queria colocar meu filho dentro de um carro no qual o
motorista poderia dormir a qualquer momento.
Ele ajeitou o boné e assentiu.
— Sim, senhora. É que ficar parado muito tempo me deu sono.
Eu fechei a porta e segurei Cody de frente para mim.
— O movimento está fraco hoje?
— Que nada. Mas o moço que me chamou aqui me pagou o
suficiente para eu te esperar e ir para a casa o resto do dia. Se bobear dá pra
ficar até de folga amanhã.
— Você está aqui fora me esperando a tarde toda?
Ele deu de ombros e fez a curva, deixando a rua da casa de Cobain
para trás.
— O taxímetro estava ligado a tarde toda, sim. — Ele me olhou pelo
retrovisor e piscou. — Seu namorado queria ter certeza que chegasse em casa
segura.
Eu sorri forçado por suas palavras e encarei a janela, segurando firme
nas mãozinhas de Cody que com o movimento do carro não demorou a
dormir.
Sentada ali com Mali eu realmente me perguntava o que o levava de
uma atitude à outra. Uma hora ele era um cavalheiro, na outra se assemelhava
a um cavalo, e depois conseguia unir os dois em um só. Se a intenção de
Cobain era confundir mentes femininas que se aproximavam dele, estava
conseguindo.
Eu também não sabia porque naquela hora não corrigi o taxista,
falando que não éramos namorados. Mas a surpresa foi tanta que me travou e
minha única reação foi ficar em silêncio para acabar de vez com aquele
assunto.
— O que acha?
— O quê?
Ela cruzou os braços, deixando o celular de lado e balançou a cabeça.
— Você está totalmente no mundo da lua hoje, Dani. O que
aconteceu? Foi aquele cara, não é?
Eu levantei do sofá e fui até a cozinhar pegar uma garrafinha de água.
— Que cara?
— Não se faz de besta e não vem aflorando esse sotaque mineiro,
não, Danielle. Pode começar a falar!
— Não aflorei o sotaque.
— Aflorou, sim. Toda vez que fica nervosa você sabe que começa a
puxar essas suas palavras de forma que eu nem consigo entender. Pode ir
falando e fale em um português que eu entenda.
Revirando os olhos, guardei a garrafa e coloquei o copo na pia e dei
as costas para ela.
— A única que tem um cara aqui é você.
— Tenho e não nego. Meu “olhos azuis” está vivíssimo, mas e esse
Cobain? Você parece que está em transe sempre que volta da casa dele.
— Nada a ver, Mali. Vou ir deitar um pouco.
Ela correu e ficou na minha frente, bloqueando a passagem do
corredor com os braços abertos.
— Nada disso! Está vendo? Está tão vidrada no cabeludo que nem
me ouviu quando eu disse que vamos jantar fora com Raiana.
— Não ouvi e não concordei, tá doida?! Vou dormir.
— Danielle, você só dorme! E não estou falando por maldade,
entendo que você precisa dormir, mas apenas hoje se dê um momento de
folga e faça um esforço para se divertir.
Cruzei os braços e estreitei os olhos, e ela usou sua infalível tática do
bico e os olhos piscando.
— Por favor? Quanto tempo não temos um momento de meninas
juntas?

(..........)

Mali convenceu Gabi a ficar com Cody em pleno domingo às sete de


noite, e ela e Raiana mergulharam de cabeça em um plano de me levar para
fora de casa. As duas sabiam que lugares agitados não eram os meus
favoritos e principalmente não me faziam bem, então me convenceram de que
um jantar só de meninas era o ideal.
Não estava frio e nem calor no Rio de Janeiro naquela noite, mas uma
brisa leve encaixou muito bem com um dos últimos vestidos soltos que eu
ainda tinha de Minas. Mali me emprestou um salto baixo, porque passar a
noite em um alto não era minha escolha favorita.
Mesmo querendo trancar-me em meu mundinho com Cody no
apartamento, no fundo eu sabia que precisava ter um momento com minhas
amigas, também. Havia uma frase que Mari Louise sempre me falava:
"Você é mãe, mas não é só mãe. Você é uma mulher jovem e linda,
também, que precisa viver."
Deixar meu filho em casa não era fácil, mas quando ainda no táxi nós
três já estávamos rindo por todo o caminho, eu não consegui me arrepender
de ter ido.

(..........)

O jantar foi incrível e eu infelizmente fui levada de volta à última vez


que comi tão bem daquele jeito. Um foie gras em um restaurante caro da
minha cidade natal.
Um encontro antes de tudo a minha volta desmoronar.
— Esse jantar vai sair o olho da cara — Mali falou, rindo e
levantando sua taça de vinho —, mas... Borges percebeu que era melhor não
brincar comigo e pagou nosso dinheiro, então hoje é por minha conta.
— Ele pagou?
Ela sorriu para mim.
— Sim. O seu está em casa. Mais um motivo para você sorrir, dona
bibliotecária.
Um sorriso cresceu em meu rosto e alívio me inundou. Mesmo com o
dinheiro de Cobain, qualquer valor que entrasse era bem-vindo, e se eu
trabalhei para ganhar na boate de Borges, então era meu e pronto. Tinha que
vir para mim de qualquer jeito.
Raiana ergueu as sobrancelhas.
— Bibliotecária, hein?
— Mali gosta de fazer gracinhas. É apenas um emprego temporário.
— Logo para Cobain James, Dani?
— Na minha situação, emprego não se escolhe. O que você sabe
sobre ele, Rai?
Ela pensou um pouco, e deu de ombros.
— Nada demais.
— Deve saber algo, sim, você trabalha na administração. Fica mais
perto dos chefões do que eu.
— Ele é muito reservado. Quando vai lá, dá bom-dia para quem
estiver perto e vai falar com Carlos. Acho que ele não é uma pessoa ruim, só
bem estranho. Pelo menos os bailarinos da companhia não desejam que ele
sofra um acidente e morra, então ele também não é um chefe infernal. Como
eu disse... só um homem reservado e estranho.
— Então você é apenas a sorteada, Dani. Ele gosta de atazanar você
— implicou Mali.
— Obrigada, Mari Louise, ajudou muito.
Elas deram risada da minha desgraça e Mali me abraçou de lado.
— Relaxa, amiga. Contando que ele não seja um assassino, está tudo
bem. Pense no dinheiro e faça o seu trabalho. Quando menos esperar já vai
poder sair de lá.
O pensamento de não precisar voltar para a casa de Cobain me trouxe
uma sensação estranha, mas eu joguei para o fundo, ignorando.
— Sim — Raiana concordou. — Apenas aproveite a conta bancária
de Cobain James e sua generosidade.
— Ninguém é tão generoso assim de graça — Mari Louise falou. —
Alguma coisa ele quer.
— Ai, Mali — Ela revirei os olhos e riu —, cale a boca.
— Desculpe atrapalhar as senhoritas... Danielle?
Eu olhei para trás e acima da cabeça, vendo alguém que realmente
não esperava.
Danilo Lobos.
— Danilo... olá. Como vai?
Ele pegou minha mão e beijou em um cumprimento cheio de
elegância.
— Muito bem. Você?
— Bem. — Eu recostei na cadeira e o apresentei às duas. — Mali,
Raiana, esse é Danilo. Danilo, essas são minhas amigas, Mari Louise e
Raiana.
A boca de Raiana abriu mais do que o normal. Ela parecia incrédula.
— Danilo Lobos? Da TV?
Ele sorriu e ajeitou a gravata.
— Ao vivo e a cores. — Ele estendeu a mão para Rai, que aceitou de
bom grado, depois a ofereceu a Mali, certo de que minha amiga estava
também impressionada com sua presença.
Mas ela apenas torceu o nariz e deu um rápido aperto em sua mão.
— Mari Louise.
— Danilo Lobos. É um prazer conhecê-la. Depois desse encontro vou
ser obrigado a me mudar para o Japão.
— Nem tente. País de primeiro mundo não aceita qualquer coisa.
Ele riu, parecendo divertido mesmo com o claro insulto, e pegou a
mão dela outra vez, dando um rápido beijo antes de soltar.
— Vou deixar as senhoritas jantando em paz e voltar ao trabalho. Só
queria dizer "Olá". Até mais, Danidani.
Assobiando, ele nos deu as costas e voltou para sua mesa.
— O que foi isso? — perguntei à Mali.
Raiana ainda encarava aquela direção.
— Aquele é todo o elenco do "Seu casamento, nosso sonho" na mesa
com ele. Eu amo esse programa, meu Deus! Lizandra é ainda mais elegante
pessoalmente e olha só a Sheila, ela é lindíssima, não é? Queria meu bolo de
casamento feito por ela e meu vestido desenhado pelo Ruy. Será que se eu me
inscrever dou sorte?
— Raiana gosta deles, por que você não?
Mali bufou.
— Porque esse Danilo é um escroto, simplesmente. Fala cada merda
naquele programinha dele que me deixa revoltada.
— Isso é tesão acumulado. O cara é um gato, meu Deus! Não sei
como ainda está solteiro. Se eu tivesse uma chance, agarrava e não soltaria
nunca mais.
— Boa sorte com isso — Mali resmungou. — Eu já agarrei o meu
noivo e não pretendo soltá-lo. Meu “olhos azuis”, sim, é um homem de
verdade.
Eu ri, acompanhada de Rai, e tomei o meu suco.
— Conte-nos mais sobre esse olhos azuis.
Ela suspirou e sorriu, então voltou ao seu assunto favorito no
momento, falando sobre a oportunidade do noivo perfeito, que vinha a
conquistando cada dia mais.
Em algum momento durante suas divagações, eu olhei para o lado,
direto na mesa de Danilo, e ele nos fitava também. Não só ele, mas Sheila
também tinha sua atenção em nós. Eu desviei e voltei a ouvir Mali, mas o que
me pegou de surpresa foi o sentimento estranho de sentir falta de alguém.
A decepção de ele não estar ali com seus amigos também.
Capítulo 19
"...o ar que eu provei e respirei mudou de rumo
Todas as imagens foram banhadas de preto
Todo o amor tornou-se mal
Transformou meu mundo em escuridão
Tatuando tudo que vejo, tudo que eu sou e tudo que serei
Eu sei que algum dia você terá uma linda vida
Eu sei que você será uma estrela no céu de um outro alguém
Mas por que não pode ser no meu?"
pearl jam, black

ü ELE É FÚTIL E NÃO TEM PENSAMENTOS PRODUTIVOS

Na segunda-feira eu estava mais do que ansiosa para chegar logo à


casa de Cobain.
Quer dizer, chegar ao trabalho.
Isso era o que eu dizia para tentar convencer a mim mesma, porque
sabia que no fundo, no fundo, queria mesmo era vê-lo.
Era um pouco mais tarde do que eu costumava ir, por volta das sete e
meia, quase oito. Estranhei logo que cheguei, porque haviam dois carros
luxuosos parados em frente ao portão decadente.
Cobain não recebia visitas. Pelo menos eu nunca tinha visto desde
que comecei a frequentar sua casa, e ele mesmo havia dito que "não gostava
de pessoas" e não via motivos para ter uma vida social.
Passei pelo portão, que como sempre fez um barulho afiado, e depois
enfrentei o malabarismo que era enxergar as pedras que levavam até a porta
com todo o mato tampando o chão. Cobain realmente precisava dar um jeito
naquilo.
Antes de apertar a campainha, cogitei voltar para casa. Se ele
realmente estivesse com companhia para a noite, não gostaria nada de me ver
ali. Já não gostava normalmente, em dias que tinha visita, então, seria até
pior. Mas por outro lado, eu precisava trabalhar. Os livros ainda estavam
todos do lado de fora em uma bagunça de pó, páginas rasgadas e sujeita.
Serviço que não podia esperar.
Convencida de que podia apenas dar boa-noite e subir para cuidar da
minha responsabilidade, apertei e aguardei que alguém atendesse.
Qual não foi minha surpresa quando a porta aberta revelou Lizandra?
Ela me encarou por alguns instantes antes de me medir de cima
abaixo.
— Pois não?
Um sentimento estranho me tomou.
Decepção, angústia, um aperto de algo que eu conhecia bem,
surgindo. Maldito ciúme.
Tentando disfarçar, eu sorri. Ou tentei.
— Cobain está?
Suas sobrancelhas subiram e ela sorriu, irônica.
— James, você quer dizer?
— Cobain é como eu o chamo. Ele está?
Ela abriu a boca, mas de repente uma mão a calou. Danilo surgiu
atrás dela e abriu a porta totalmente.
— Como vai, Danidani? James está aqui, entre.
— Obrigada, Danilo. Olá.
Ele piscou quando passei por eles e adentrei a sala, onde Cobain
estava segurando uma taça de vinho e olhava uma página de jornal recortada.
Meus pés no chão devem ter chamado a atenção, mas ele não
levantou a cabeça.
— A audiência está boa, Danilo. Não vejo porque... — Suas palavras
pararam no ar quando finalmente olhou para cima e me viu. — Pensei que
não viria mais, está tarde.
— Eu não sabia que tinha visitas, desculpe.
Ele bebeu o resto do que havia na taça e a deixou de canto, junto com
o que lia no jornal.
— Eu também não.
— Mas não se preocupe, não vou incomodar. Vou apenas subir e
fazer o que tenho que fazer, depois vou embora.
— Nada disso — Danilo surgiu falando. — Fique e jante conosco.
Lizandra sentou e cruzou as pernas.
— Deixe a menina, Danilo. Ela precisa trabalhar.
Ouvi passos vindo do corredor e logo Ruy, que eu brevemente
conheci no restaurante, apareceu.
Ele parou quando me viu, olhou para todos e depois se aproximou,
estendendo a mão.
— Danielle, certo?
— Isso.
— Fica para jantar com a gente? O cabelo do Danilo é horrível, mas
ele até que cozinha bem.
Eu sorri inevitavelmente, mas neguei.
— Obrigada, mas realmente tenho coisas para fazer.
Danilo se aproximou de Cobain e jogou um braço por seu ombro.
— James será um chefe terrível se não a convidar para uma refeição.
O que diz, meu amigo?
Cobain tirou o braço dele, seus olhos fixos em mim.
— Danielle não espera que eu seja um bom chefe, ela já se
acostumou.
Bufando, Danilo se afastou dele, pegou uma taça vazia e me
ofereceu.
— James é o menos importante aqui, então nos diga, quer jantar?
Eu ia insistir que não, que ia trabalhar, mas nesse momento Cobain
estreitou os olhos, como se me ameaçasse. Uma clara declaração de "não
aceite". Mas eu vi como um desafio e me peguei colocando as mãos na
cintura quando respondi.
— Eu vou aceitar.
Danilo riu.
— Isso aí, garota!
James suspirou pesadamente e balançou a cabeça enquanto seus
amigos iam para a sala de jantar. Os cantos de seus olhos franziram e por um
momento eu pensei ter visto a sombra de um sorriso, mas ele abaixou a
cabeça e fez sinal para eu seguir atrás dos outros.
Eu fiz.
E tinha quase certeza de que Cobain sorriu para mim.

(..........)

Eu adorava Danilo Lobos.


Ele era o contrário completo de Cobain. Não foi por isso que eu o
adorei, claro, mas pelo senso de humor. Ele fazia piada com tudo e todos o
tempo todo, principalmente consigo mesmo.
Ruy era mais calmo, educado e mais contido, mas tínhamos pontos
em comum que me fizeram gostar de conversar com ele naquela noite.
E Lizandra... Bem, ela me olhava como se eu precisasse passar por
um teste. Como se ela tivesse que aprovar o fato de eu estar ali.
Era estranho sentar com pessoas — fora Cobain — que eu já tinha
visto tantas vezes pela televisão. Não assistia o programa de Danilo, mas o
que Lizandra apresentava, sim. Eles faziam casamentos incríveis e ali pude
perceber que a "amizade" que demonstravam ter no programa não era
ensaiada. Realmente se davam bem.
— E os vestidos? — Ruy perguntou. — O que acha dos vestidos?
Danilo revirou os olhos.
— Lá vai ele querendo encher o ego. Danidani, por favor, diga a ele
que acha os vestidos uma droga.
— Não acho uma droga, são lindos. O da noiva sereia...
simplesmente incrível.
— Acho que foi um dos mais bonitos, também — Lizandra
concordou, o que me surpreendeu. Ela vinha me ignorando a noite toda.
— Também gosto dos bolos.
Ruy deu uma risadinha.
— Todo mundo gosta. Só não gostam de quem os faz, mesmo.
— É a Sheila, não? — perguntei, lembrando-me da loira do hotel e
do restaurante.
— Sim — Danilo respondeu. — Terrível, talentosa e irresponsável
Sheila que deixou o programa na mão.
— Pare de falar dela quando ela não está aqui para se defender —
Lizandra pediu.
Ruy bufou.
— Ela não teria defesa nem que quisesse. Você não se demite no
meio da temporada de um programa de TV, sabendo que prejudicará seus
colegas, a equipe, a emissora e acha que está tudo bem.
Durante todo o jantar eu havia evitado olhar para Cobain. Ele não
falou nenhuma vez, o que eu imaginei que fosse algo normal, já que nenhum
de seus amigos reclamou.
— E o que você faz? — Lizandra me perguntou.
— Trabalho no Theatro Municipal.
— Ah... — Ela desviou os olhos de mim para Cobain. — E o que faz
lá?
Todos eles me encaravam com expectativa. Eu me senti pressionada
no meio de tanta riqueza. Estava mais do que acostumada a ela antigamente.
Antes de tudo, eu estava no lugar deles. Eu pressionava, nunca era
pressionada.
— Sou recepcionista. Recepcionista do Theatro.
— Que... interessante.
Ela exalava... dó. Olhou para Cobain com uma cara de decepção tão
grande que eu engoli em seco para não levantar e sair correndo dali, ou
mandá-la enfiar sua dó onde era bem-vinda.
Danilo puxou um outro assunto qualquer, trazendo a leveza de volta
ao momento que ela havia deixado tenso. O que aquela mulher esperava? Eu
estava me sentindo como naqueles filmes onde o cara rico começa a namorar
com uma sem nenhum dinheiro, e havia a vilã que tentava estragar tudo.
O pensamento me fez olhar para Cobain e me surpreendi ao ver que
seus olhos já estavam em mim.
— Então, Danielle... — Ruy chamou. — Qual das canções de Cobain
você mais gosta?
Eu franzi a testa ao mesmo tempo que Danilo bateu na mesa.
— Certeza que é a trilha de O Cavalheiro de Misery Day. Três
Oscars, meus caros.
— Danilo, não — Cobain finalmente falou.
Eu não estava entendendo nada. Olhei para ele e ergui as
sobrancelhas.
— Você toca nos casamentos do programa?
Todos na mesa, menos Cobain, deram risada, como se eu tivesse dito
o maior absurdo da história. Ele olhou para baixo.
— No programa? Porra, Danidani. Não — Danilo brincou, me
deixando mais confusa ainda.
Ruy sorriu para mim.
— Sinta-se honrada, Danielle. Você está trabalhando para um dos
maiores compositores das telas de cinema.
— Entre os mais premiados e mais talentosos —Lizandra continuou.
Cobain continuava segurando o garfo e a faca sobre a mesa, olhando
seu prato. Todos voltaram a conversar, mas agora eu não os ouvia.
Olhei na direção da sala, mesmo que não pudesse ver através da
parede.
Lembrei do piano e... tudo fez sentido.

(..........)

Eles se despediram por volta das dez.


Danilo acenou pela janela do carro e eu acenei de volta, sorrindo para
ele. Cobain permanecia da mesma forma ao meu lado. Quando os faróis do
carro sumiram na outra rua, virei para Cobain.
Ele passou por mim e entrou, eu fiz o mesmo, fechando a porta antes
de segui-lo para dentro.
Eu deveria na verdade pegar minha bolsa e ir embora, mas... não fiz.
Ele fechou a cortina da sala que dava para a rua, sentando-se no sofá logo
depois.
— Então... seus amigos já foram.
— Sim. Imagino que tenha sido a noite perfeita na sua visão.
— Por quê?
— Eles gostam de conversar e você é a pessoa mais falante que eu
conheço na vida.
Eu fiquei ali, parada, o encarando por um momento.
— Cobain...
— Nada do que eles disseram hoje será discutido.
Mesmo curiosa, eu assenti. Haviam coisas sobre mim que eu não
falava. Forçá-lo a fazer isso seria hipocrisia completa.
— Você está irritado?
— Não.
Mesmo que ele usasse aquele tom de resmungo, eu podia ver que não
estava irritado. Ousei sorrir de seu espírito idoso e sentei no sofá do outro
lado de sala. Longe, mas de frente para ele.
— Está com dor de cabeça?
Cobain apoiou a cabeça no encosto do sofá, seu corpo escorregando
um pouco para baixo. E, oh, céus... a blusa que ele usava com as mangas
dobradas até o cotovelo subiu um pouco, me dando a visão de sua pele
levemente beijada pelo sol e pelos escuros que me fizeram desviar o olhar
imediatamente.
— Muita dor de cabeça. Você está bem? Está vermelha.
Eu quis fechar meus olhos e enfiar a cabeça debaixo do sofá, mesmo
sem ter espaço para tal feito.
— Não... — Limpei a garganta e me abanei. — Está calor aqui
dentro.
Ou ele percebeu meu constrangimento, ou estava se sentindo de bom
humor, se isso fosse possível para ele. Porque ele se inclinou para frente,
apoiando o cotovelo nas pernas e segurando o rosto.
— Esse pigarro são suas cordas vocais pedindo socorro. Dizendo
"pare de me gastar, pare de me gastar!".
Eu estreitei os olhos e virei para ele, pronta para surpreendê-lo.
— “Você me diz para ficar quieta porque minhas opiniões me deixam
menos bonita, mas não fui feita com um incêndio na barriga para que
pudessem me apagar. Não fui feita com leveza na língua para que fosse fácil
de engolir. Fui feita pesada, metade lâmina, metade seda. Difícil de esquecer
e...
— Não tão fácil de entender” — ele falou junto comigo.
Minha boca caiu aberta e o encarei, incrédula.
— Como você sabe Rupi Kaur?
Ele deu de ombros.
— Não sei.
Um sorriso cresceu em meu rosto e novamente, ao invés de
surpreender aquele homem, surpresa estava eu.
— Você a conhece!
— Talvez.
— O que foi, Cobain? Não é vergonha dizer que você lê uma das
mais influentes poetisas e feministas da atualidade.
Ele revirou os olhos, me fazendo rir.
— Não estou com nenhuma vergonha.
— Que bom. Vou admitir que... você tem bom gosto.
— E você tinha alguma dúvida disso?
— Convencido. Você sabe que ela é uma artista contemporânea, não
sabe?! Não era você que estava até uns dias atrás dizendo que eu tinha mal
gosto? Pensei que George Bernard Shaw e Lord Byron fossem as únicas
coisas na sua lista de escritores favoritos.
— Não fale com sarcasmo sobre Byron. Aquela mente brilhante criou
a melhor versão de Don Juan. — Cobain ficou de pé, parecendo quase
relaxado enquanto falava. — Deveria ser obrigatório que sinos tocassem
todas às vezes que o nome dele fosse citado.
Eu não podia conter o sorriso em meu rosto.
Cobain passou por mim, erguendo as sobrancelhas quando apontou a
escada.
— Vou dar um pouco de felicidade a você e te mostrar minha coleção
de Rupi Kaur.
Eu o segui, mordendo o lábio inferior para que meu sorriso não
parecesse tão grande como realmente era.
Ele tinha uma coleção de Rupi Kaur.
Uma. Coleção.
De Rupi Kaur!
— Você sabe que existe uma grande possibilidade de que eu nunca
mais saia dessa casa, não sabe? Ou pior... que eu fuja com todos os
exemplares que você tem dela.
Ele parou quando chegamos no topo da escada e virou para mim.
— Qual foi o último elogio que alguém fez a você, Danielle?
Sua pergunta me pegou de surpresa e eu não soube o que falar.
— Eu não me lembro — sussurrei.
E era verdade.
Cobain me olhou com tamanha intensidade que me fez segurar ainda
mais firme no corrimão.
— O melhor elogio é aquele que inspira. Que te comove. Rupi
entendeu isso em algum momento da vida dela e a há algo que ela escreveu
que me fez repensar todas às vezes que eu dei bom-dia a minha mãe e disse
que ela estava bonita.
Minha testa franziu em confusão.
— Não estou entendendo. Dizer a sua mãe que ela é bonita é algo
bom.
Ele assentiu.
— Sim, é. Mas... quando lhe vi com seu garoto naquele dia, me fez
lembrar de algo que Rupi escreveu e eu quis dizer a você. Que eu deveria ter
dito a minha mãe, também.
Aquelas palavras fizeram com que o maestro que comandava meu
corpo começasse a reger cada célula e cada uma parecia um instrumento,
porque todas começaram a tocar juntas.
Coração disparado.
Mãos suando.
Garganta seca.
Veias pulsando.
E a ansiedade me dominando, apenas esperando para saber o que o
fez lembrar.
Eu virei uma orquestra completa.
E as partituras eram uma bonita mistura de Cobain James.
Que poema ele queria citar para mim?
Cobain ergueu a mão direita e a passou no ar, como se limpasse um
vidro. Eu encostei no corrimão para esperar o que viria a seguir.
— “Quero pedir desculpa a todas as mulheres que descrevi como
bonitas antes de dizer inteligentes ou corajosas. Fico triste por ter falado
como se algo tão simples como aquilo que nasceu com você, fosse seu maior
orgulho, quando seu espírito já despedaçou montanhas. De agora em diante
vou dizer coisas como, ‘você é forte’ ou, ‘você é incrível!’, não porque eu
não te ache bonita, mas porque você é muito mais do que isso.”
O silêncio que se instalou após ele terminar só foi interrompido pelo
som de nossas respirações.
Eu sabia que se soltasse o corrimão, rolaria escada abaixo. Sabia que
meu choque e surpresa estavam estampados por todo o meu rosto. Que meus
olhos mostravam a ele cada grama de sentimento que passava por mim.
“Não porque eu não te ache bonita, mas porque você é muito mais
do que isso.”
— Eu não sei o que dizer agora — sussurrei.
Ele desviou o olhar, passou as mãos pelos cabelos jogando-os para
trás e suspirou.
— É apenas um poema. Vamos, vou mostrar a...
Cobain de repente parou de andar e seus olhos arregalaram
levemente, perdendo o foco.
Em apenas um minuto, toda a leveza daquele momento foi embora.
Aquele pequeno instante que passamos juntos, compartilhando algo
tão profundo e intenso...
Aquele olhar.
Aquelas palavras.
Algo tão profundo como o que ele me disse.
Tudo caiu por terra.
— Cobain? O que foi?
Vi o movimento de sua garganta engolindo e ele enfiou a mão no
bolso da calça, tirando um celular. O aparelho vibrava em sua mão
— Você não disse que não tinha celular?
Ele me ignorou e atendeu.
— James.
Sua voz parecia tão fraca, mas ainda assim, era forte e imponente. Ele
ouviu por alguns minutos, então tirou da orelha, desligou e me deu as costas.
— Ei, onde você vai?
Ele começou a descer as escadas tão rápido que tive vontade de
segurá-lo e garantir que não cairia.
— Qual é, Cobain?! você prometeu me mostrar sua coleção!
Chegamos ao primeiro andar e ele passou pela sala, pegando a chave
em cima da estante de vidro, porém sua pressa foi tanta que seu braço bateu
em um vaso cheio de flores. Eu dei um pulo para trás, desviando dos cacos
que quebravam em mil pedaços no chão e o olhei, percebendo que só aquilo o
fez parar de andar.
Não os meus chamados.
Não a minha voz.
Um vaso de flores.
Ele olhou para o chão, onde as flores se perdiam entre terra e cacos
de vidro, e depois para a porta, como se tentasse se decidir se continuava seu
caminho ou limpava a bagunça. Mas pelos seus olhos eu podia ver que não
era apenas aquilo, havia mais.
Como uma luta interna.
Ir ou ficar.
— Cobain?
Minha voz pareceu tirá-lo do transe, o acordando, e então aqueles
verdes tempestuosos estavam em mim.
Não o Cobain que eu vinha conhecendo com os dias de convivência,
nem de longe o que apenas segundos atrás me disse algo tão bonito, mas o
homem que me viu dançando na sala do Teatro e aquele que me tratou tão
mal, me mandando crescer.
— Saia daqui, Danielle. — As palavras foram duras e certeiras, como
uma espada diretamente em meu coração.
Ele tentava destruir cada traço de simpatia que eu havia criado por
ele.
— O que você...
Ele deu um passo à frente, seus sapatos amassando o vidro e as
flores, os olhos firmes e tempestuosos em mim.
— Esqueça cada espaço de tempo do dia de hoje. Pare de me olhar
assim, pare de sonhar, pare de querer. Você me faz desejar quebrar promessas
que me destroem, e se eu fizer isso, vou arrastá-la para o fundo do poço
comigo. E não queira isso, porque não é bonito. Então não esteja aqui quando
eu voltar.
Meus olhos arregalaram com suas palavras. Eu levantei a mão em
uma clara ameaça de tocá-lo, e sabe Deus porque fiz aquilo, mas na minha
cabeça, o toque de alguém que se importava com ele faria com que se
acalmasse e parasse de dizer coisas absurdas.
Obviamente Cobain não pensava o mesmo. Ele se afastou, dando-me
as costas e abrindo a porta ao mesmo passo que eu me aproximei.
— Cobain...
Seu corpo virou abruptamente e todo o controle foi embora. Com um
murro na porta, fazendo-a bater na parede, ele gritou.
— SAIA DAQUI!
Eu me assustei, dando um passo atrás. Seus olhos pareciam
atormentados, pela primeira vez eu via Cobain fora de sua postura sempre
séria e contida. Ele estava fora de controle, totalmente perdido.
Tudo isso com apenas um telefonema.
Nenhuma outra palavra saiu da minha boca.
Enquanto ele caminhava pelo jardim para fora dos portões daquela
casa, eu fiquei ali, o observando. Incapaz de me mover por um momento, sem
saber se ia realmente embora, o seguia ou ficava e esperava para ver se
quando ele voltasse, estaria mais calmo.
Olhei para dentro, apenas as paredes me rodeando e um vento frio
entrando pela porta.
Meu coração retumbando em meu peito, fazendo parecer tão alto, que
me tornei surda para qualquer outra coisa que não fosse meus batimentos
cardíacos.
Fechei os olhos, pressionando-os bem forte juntos e a imagem do
rosto perturbado de Cobain surgiu imediatamente.
E quando algo que rodeava a mim mesma pingou em meu braço,
olhei para baixo, vendo uma gota rolar e se desfazer no chão.
A primeira vez que eu derramei uma lágrima por Cobain James.
Ali eu soube que não seria a última que choraria por ele.
Capítulo 20
“...ei, você
Você pode me sentir?
Você me ajudaria a carregar a pedra?
Mas era apenas fantasia
Não há nenhuma esperança"
pink floyd, hey you

Haviam dias em especial, que deveria ser avisado assim que abrimos
os olhos algo como “se prepare”.
Acordei com aquela sensação estranha e familiar, um pouco do que
senti a primeira vez que tive meu coração partido, quando Renato Vilanova,
meu primeiro namorado aos quinze, resolveu que minha virgindade não o
interessava se eu não pretendia o deixar tirá-la de mim e beijou Gisele
Moreto em frente ao colégio todo, inclusive eu.
Ou quando caí na primeira apresentação de ballet. Todos que me
conheciam e que não conheciam, mas estavam simplesmente para agradar aos
meus pais, esperavam que eu fosse perfeita. Eu era Cinderela pela primeira
vez, com a orquestra da cidade tocando de fundo e meu namorado na época,
assistindo na primeira fileira ao lado de meus pais e seus amigos.
No primeiro ato eu fui saltitante e fiz o que ensaiei para fazer,
aplaudida de pé. Mas no segundo... em um momento eu girava e no próximo
meu queixo estava no chão. Diretamente na direção de papai. A expressão em
seus rostos jamais sairia da minha memória.
É claro que na época eu culpei meu parceiro de dança. Gritei e
esperneei que ele deveria ter me segurado. Meu colega, amigo e parceiro que
ensaiou incansavelmente ao meu lado durante meses. Eu o visitei duas
semanas depois e me desculpei. Pelo menos com ele não foi tarde para ajeitar
o estrago.
Parecia como quando descobri minha gravidez, também. A
consciência de que todos os planos estavam arruinados, porque na minha
rotina e na minha estrada calculadamente definida, não havia espaço para um
bebê. Uma bailarina que deseja sair da pequena cidade e brilhar no mundo
não deve engravidar antes da hora, isso quebra qualquer protocolo. Havia
sido meu pensamento na época, mas com o tempo a gente aprende que na
vida não há protocolos.
Não há certezas, garantias e nem promessas que poderiam ser
cumpridas para sempre.
E quando fui embora de Minas Gerais, deixando toda a minha
história para trás. Poucas roupas, dinheiro contado, nenhuma garantia, apenas
o medo. Junto com o que ainda sobrava de mim, e claro, meu bebê. Meu
coração que batia fora do corpo.
Mas é engraçado como a vida funciona, como o destino trabalha.
Como algumas pessoas estão simplesmente fadadas a sofrer. Eu acreditava
firmemente que um raio atingia o mesmo lugar uma, duas ou cinquenta
vezes.
Eles vinham me acertando desde muito tempo. Eu só não aprendi a
me acostumar.
Pesquisei Cobain James no YouTube.
Não haviam muitos vídeos. Ele tinha um canal VEVO, mas seu rosto
não estava em nenhum lugar. Todos os vídeos eram com fundos escuros,
fumaças ou efeitos diversos que combinavam com o som. Um pianista. Era o
que Cobain fazia. Ele tocava piano com uma maestria tão impressionante que
eu ouvi a playlist em sequência, repetindo três vezes, e só parei porque
haviam lágrimas em meus olhos.
A cada nota atormentada no instrumento, eu fechava os olhos e o
imaginava tocando. Me perguntava qual história cada uma daquelas
composições trazia.
Eu tinha um motivo para ter fugido. Quatro motivos. Se parasse para
contar com mais atenção, talvez até encontrasse mais.
Mas e Cobain? Do que ele fugia?
O que fazia com que o homem que se derramava diante de um objeto,
se escondesse em sua caverna, sozinho e monstruoso? O que aqueles olhos
verdes viram, que o fez se tornar constantemente sombrio e fechado?
Segredos eram como bichos sanguessugas que atormentam sua alma
e além de te torturar, fazem com que você se torture. Faz com que você
acredite que merece caminhar pela escuridão. Eu entendia disso. Sabia qual
era a sensação. E mesmo que nunca fosse descobrir quais eram os segredos
que faziam Cobain torturar a si mesmo, dei play na música outra vez.
Perguntei à imagem de seus dedos tocando piano naquela gravação,
se aqueles olhos verdes tempestuosos algum dia já foram calmos como a
grama em um dia de verão.

(..........)

— Gabi falou que a professora dele pediu para você mandar a


agendinha amanhã — Mali comentou depois da janta.
Nós sentamos para assistir Cake Boss, que ela adorava.
— Ué, eu sempre mando.
— Não mandou hoje. Ele deve ter tirado da mochila e jogado debaixo
da cama.
— Sim, pode ser. Vou procurar.
— Ela disse que precisa encontrar e tem que ser aquela, porque
parece que ela foi assaltada e levaram a bolsa que estava a pasta dela. Então
ela perdeu a maioria das notas sobre as crianças e quer a agenda deles para se
reorganizar.
— Coitada — murmurei — Amanhã ele levará.
Depois disso ficamos em silêncio. Uma das coisas que eu adorava em
Mali, era como conseguíamos ficar em silêncio com facilidade. Acho que
quando você se torna próximo de alguém, não existe aquela necessidade de
falar o tempo todo, de preencher os espaços com papo furado e conversa
fiada. Tinham dias raros que eu queria ficar quieta e ela respeitava, e tinham
muitos dias constantes que ela queria um espaço e eu aprendi a lidar também.
Não existia aquela cobrança de “Por que você não fala comigo o
tempo todo? Nós moramos juntas, somos melhores amigas!”
Se Mari Louise se mudasse e perdêssemos o contato, eu ficaria triste
e a saudade seria tremenda, mas se algum dia ela me ligasse, depois de um
mês ou um ano e dissesse que precisava de mim, minha pergunta não seria
“Depois de um ano? Por que você não ligou?”. Eu diria: “O que você
precisa? O que posso fazer?”.
Como se adivinhasse meus pensamentos, ela virou seu rosto em
minha direção com seus pequenos olhinhos puxados, sorriu e pegou minha
mão.
— Tenho pensado em trocar de número.
— Mas... seus clientes não teriam como falar com você.
— Eu sei.
Sem fala por um momento, absorvi aquela informação. Mari Louise
estava na “vida” há um longo tempo. Tinha vinte e dois anos, assim como eu.
Ela começou com dezesseis. Enquanto eu dançava e caminhava rumo aos
meus sonhos, ela dava início a um pesadelo.
E aquilo estava prestes a acabar.
— O que aconteceu?
— O nome dele é Felipe. Ele aconteceu.
— O “olhos azuis”.
— Sim.
Dei um aperto em sua mão e devolvi o sorriso.
— Eu acabei de começar a gostar dele.
Ela riu e pulou em mim, me abraçando enquanto ríamos.
Mesmo que eu estivesse com um caroço na garganta pelos
acontecimentos da noite anterior, minha amiga estava feliz. Isso era o
suficiente para me fazer sorrir por um instante.

(..........)

Faltavam dois minutos para meia noite. Eu já devia estar dormindo,


mas a agenda de Cody desapareceu e eu precisava encontrá-la. Então,
enquanto a casa inteira dormia, eu abria cada porta de armário, olhava
debaixo dos móveis e até mesmo procurei dentro da descarga. Afinal, você
nunca sabe onde uma criança vai para esconder um objeto da qual não sabe a
importância que tem.
Mas enquanto o piso de madeira rangia sob meus pés, havia um
constante murmúrio na minha cabeça que me indicava onde a agenda estava.
Eu só me encontrava teimosa demais naquele momento para aceitar. O molho
de chaves dentro da minha bolsa nunca pareceu tão pesado, e olha que eu
nem a segurava.
Eu sabia que devia ter deixado aquelas chaves lá antes de sair, mas os
tropeços dos meus pés enquanto eu caminhava para fora, com as lágrimas
silenciosas escorrendo pelo rosto, me distraíram de que aquela casa era um
lugar onde eu nunca mais podia voltar, portanto, a chave que não me
pertencia tinha que ficar lá dentro.
Quem é que conseguia ser racional quando os acontecimentos davam
um giro como aquele e um homem como ele vai de calmo e conversador para
uma fera incontrolável e estúpida, que machuca seus sentimentos sem nem se
importar? Eu não conseguia, era por isso que ainda tinha as chaves.
E era por isso também... que eu sabia que algum momento entre
brincar com Cody, arrumar os livros e Cobain chegar naquela tarde nos
dando um dos momentos mais delicados e especiais da vida, a agenda do meu
filho havia ficado naquela casa.
A agenda com todas as suas anotações, a agenda que a professora
pediu. A agenda que eu tinha que ir buscar.

(..........)

Eu liguei no Theatro e avisei que ia me atrasar. Enquanto Mali levava


Cody na escola, eu peguei um ônibus e fui resolver o que precisava. De
maneira nenhuma aguentaria até de noite para voltar lá. E incrivelmente, a
sorte estava ao meu lado, porque assim que Larissa reconheceu minha voz no
telefone, sua primeira frase foi:
— Aquele gatão está aqui hoje.
Cobain não estava em casa, então eu tinha livre acesso para pegar a
agenda do meu filho, trancar a porta, deixar a chave em algum lugar daquele
jardim e sair.
Quando entrei, reparei que as flores que ele tinha derrubado já
haviam sido postas em outro vaso de vidro. Subi rapidamente a escada do
primeiro andar, parando no meio da escada para o segundo a fim de respirar e
acalmar uma súbita tontura, e continuei meu caminho.
Ainda estava tudo exatamente como deixei.
Me peguei bobamente pensando se ele não mexeu em nada esperando
que eu voltasse, mas tratei de empurrar aquela esperança ridícula para longe,
afinal, o mentiroso tinha sim um telefone. Um que funcionava muito bem. Se
quisesse que eu voltasse, poderia me ligar. Mas meu celular não tocou
nenhuma vez. Eu já tinha sido muito idiota se tratando de Cobain. Era hora
de parar e pensar em mim. Já tive machucados demais, não precisava dele
como acréscimo.
Desconfiava que Cobain não apenas machucava, ele destruía.
Depois dele, eu suspeitava que mudar de estado não bastaria.
A agenda de Cody estava lá, perto das botas em um canto qualquer,
algumas folhas rasgadas, porque novamente, ele não sabia o que estava
fazendo e eu devia ter olhado. A peguei e suspirei.
A vontade de ficar ali era enorme. Massacrante.
Me deixei imaginar coisas, como ele mesmo disse depois daquele
jantar e ali estava a resposta para tudo o que me atrevi a cogitar. Saí da
biblioteca antes que meu coração vencesse a razão e eu me submetesse a mais
humilhações da parte dele.
Tinha que ir trabalhar, pegar meu filho na escola e procurar alguma
forma de repor o dinheiro que conseguia dançando. Precisava pensar, dar um
jeito na bagunça que Cobain criou em apenas alguns dias.
Mas foi um segundo e...
O cérebro humano é confuso. Eu descobri isso seis anos e alguns
meses atrás, quando considerei que minha vida havia acabado. Em algum
momento entre descer a terceira escada e caminhar pelo corredor até o
segundo, uma luta interna se iniciou na minha cabeça. Não uma emocional
como ficar ou ir embora, mas literalmente... uma luta.
Os guerreiros que deveriam tentar me proteger estavam doentes,
assim como eu. E eles decidiram que depois de meses, era a hora de me
derrubar... outra vez.
Eu ouvi diversas vezes a frase “em um segundo, milhares de
pensamentos me passaram pela cabeça” ou então, “parece que você sente
quando vai morrer” ou “minha vida toda passou como um filme diante dos
meus olhos”. Todas elas se encaixavam naquele único segundo.
Um piscar de olhos.
Um passo.
Um estalar de dedos.
Uma palavra.
O ponteiro de um relógio avançando.
Tudo aquilo levava um segundo, também.
Um segundo dentro de cada minuto que eu levei da escada até o
corredor.
Um segundo que minha visão duplicou, tornando a escada impossível
de enxergar direito; um segundo de consciência, em que eu tentei com um
último esforço jogar meu corpo para trás, para que não rolasse os degraus
abaixo.
Um segundo que eu caí de costas ali, meu corpo atirado entre a
escada e o chão do segundo andar.
Um segundo que eu sabia que nenhuma ação me ajudaria naquele
momento, que o imprevisível voltou a acontecer, que eu perdi meu próprio
controle.
Minhas mãos dormiram. Uma em frente ao meu rosto, que estava
virado de lado encarando a parede, a outra em algum lugar. Qual eu não
sabia, era impossível sentir.
Eu estava no meio da escada? No início dela? Eu já havia rolado e
não percebi?
Sentia minhas pernas formigando, minha cabeça rodava mesmo
estando parada. Nem um músculo se moveu. Apenas minha mão, que pulava
a cada alguns segundos. Outros segundos.
Eu não podia gritar.
Eu não podia esticar a mão até a bolsa um pouco acima da minha
cabeça.
Eu não podia levantar sozinha.
Não havia nenhum comando que naquele momento meu cérebro
fosse obedecer.
Lágrimas de conformidade, vergonha e desespero começaram a rolar,
eu sabia disso porque meus olhos embaçaram ainda mais.
As picadas começaram nos dedos dos pés, dentro do tênis.
As picadas nos dedos, o formigamento em todo o meu rosto e meu
braço pulando.
Eu fechei os olhos, consciente de que aquilo não acabaria tão cedo,
de que seria impossível me mover, de que meu corpo não obedeceria a nada
que eu miseravelmente tentasse fazer. Me tornei mais uma vez conformada
que não havia porque ter medo dos perigos do mundo, porque o meu perigo
era eu mesma.
Minha inimiga que habitava constante e incuravelmente dentro de
mim.
Capítulo 21
"...eu ando nessa rua vazia
Na alameda dos sonhos despedaçados
Meu coração superficial é a única coisa que está batendo
Às vezes eu desejo que alguém por aí me encontre
Estou andando por todo o caminho
Na linha do limite entre o abismo
E eu ando só"
green day, boulevard of broken dreams

ü ELE É APAIXONADO PELA VIDA

COBAIN JAMES

Uma merda.
Uma merda de dia.
Uma merda de mês.
De ano.
De vida.
Um carro passou pela rua deserta daquela casa gigante e eu cogitei
apenas por um momento me jogar na frente dele, só para testar. Mas me
condenei por aquele pensamento logo depois. E também, com o azar que eu
tinha, talvez o carro voasse, não me acertando, como em O Quinto Elemento,
então o esperei passar e atravessei.
O portão velho rangeu, como sempre, irritando-me. Abri a porta
depois de passar por todo aquele mato seco, tirei um que ficou pendurado em
minha calça e entrei. O silêncio era bem-vindo. Mas também parecia mais
barulhento do que uma avenida lotada.
Toda aquela filosofia barata de que no silêncio nós podemos ouvir
nosso pensamento, era verdade. Eu odiava isso, mas odiava mais ainda as
conversas intermináveis de lugares não vazios. Então aprendi a lidar com
minha mente. Ela não falava tanta merda, apenas me irritava.
Então pensando nisso, eu percebi que odiava as vozes e meus
pensamentos também. E a ideia do suicídio pareceu tentadora outra vez,
mesmo que eu jamais fosse concretizá-la.
Fui até a cozinha sem nenhuma vontade de comer algo, olhei para os
móveis, para o teto, para o chão, e saí. Então voltei de novo e peguei o pote
de biscoitos de chocolate. Abri a cortina da janela da sala, me sentei e
coloquei o pote ao meu lado. Não estava mais tão sozinho.
Meu olhar viajou para o piano, onde ela havia se sentado e tocado
como se estivesse em casa, e por Deus, ela tocando era o som de cinquenta
gatos morrendo. Aquele vidro de biscoitos, já pela metade, me fazia lembrar
do garoto balançando na varanda dos fundos, olhando para mim como se eu
fosse a coisa mais legal que ele havia encontrado aquele dia. Os pés enfiados
na minha bota, o sorriso que me deu e o trabalho que tive para tirar os farelos
da barba. Sim, me fez sentir menos sozinho.
Tirando o fato de que eu a mandei ir embora e aquilo nunca mais
aconteceria.
Levantei em um rompante, jogando o pote longe de mim. Os biscoitos
espalharam no chão junto com os cacos de vidro. Eu estava irritado, muito,
como sempre ficava.
Me arrependia profundamente de ter levado Danielle para dentro
daquela casa, de ter a perseguido, entrado na vida dela sem pedir licença,
porque eu sabia no fundo da minha alma, que aquilo iria acontecer. Olhos
como aqueles não veem alguém como eu e se conforma. Ela esperava me
consertar, colocar minhas peças no lugar e me fazer o quê? Ver a vida com
alegria?
Tirei o telefone do bolso e o deixei no sofá, me permitindo ter uma
rara folga por apenas um momento enquanto acabava de vez com a última
parte dela naquela casa. Tinha que acabar de vez com aquela biblioteca. Toda
a merda dos livros e o cheiro dela impregnado naquele lugar não me deixaria
dormir em paz.
Se colocar fogo ali não fosse incendiar a casa inteira, eu faria isso.
Por Deus... eu faria.
Subi a primeira escada e atravessei o corredor cuspindo fogo. Que
porra eu estava pensando? Nem eu sabia. Minha cabeça era uma confusão,
principalmente depois da noite anterior, depois de tudo o que aconteceu,
depois dela.
Mas assim que cruzei a esquina para a segunda escada, meus pés
travaram no chão um segundo antes de eu correr degraus acima. Meus
joelhos bateram no chão, minhas mãos voaram para ela e meu coração batia
tão rápido, que por um momento pensei que teria um ataque ali mesmo.
— Danielle!
Ela tinha os olhos abertos, parecia olhar para mim, mas eu não tinha
ideia se me entendia, se me via.
— Está me ouvindo? Você caiu? — Ela permanecia em silêncio, o
rosto mal se movia. Nenhuma palavra, nenhum esforço para levantar. —
Diga alguma coisa, pelo amor de Deus!
Verifiquei por cima se havia algo de errado, se estava sangrando,
qualquer coisa!
Tirei as mechas de seu cabelo que cobriam uma parte do rosto e o
segurei virado para mim.
— Você precisa me dizer o que houve — sussurrei, mas minha
resposta foi uma lágrima silenciosa que escorreu de seu olho. Engolindo em
seco, tentando controlar o tremor de minhas próprias pernas, a levantei.
Seu corpo não pesava em meus braços e por um momento, algo
inexplicável passou por mim. Como um déjà vu. Era terrível olhar para o
rosto paralisado, que até um dia atrás sorria e não parava de falar.
Me arrependi naquele momento de todas às vezes que reclamei das
palavras dela. Não disse em voz alta, mas prometi ali, silenciosamente, que
nunca mais reclamaria. Ela podia falar o quanto quisesse, eu aguentaria.
Tranquei a porta e joguei a chave no jardim, preocupando-me em
levar só a chave do carro. Coloquei Danielle no banco traseiro, deitada,
observando que as lágrimas caíam cada vez mais. A pulsação estava normal,
ela respirava, então por que diabos não falava?
Me preparei para dar partida, mas de repente parei. Eu deixei o
celular em cima do sofá. Perto dos biscoitos caídos e os cacos de vidro.
Minha mão voou para a maçaneta, mas um suspiro veio do banco de trás e eu
fechei os olhos respirando profundamente, e escolhi.
Naquele momento, eu tinha que escolher.
E precisava ser a mulher no banco de trás do meu carro.

(..........)

Eu não era parente dela, não sabia nada sobre seu estado, então não
me deixaram entrar.
Tinha que ligar para sua amiga, tinha que tentar encontrar algum
familiar, entender o que havia acontecido. Ela teve um ataque de pânico?
Uma crise nervosa? Não sabia.
E ninguém naquela porra de lugar queria me dizer.

(..........)

— O senhor chegou com a paciente Danielle?


Eu não era um cara violento, mas quis socar a cara daquele médico.
Quatro horas depois eu estava ali sem nenhuma notícia. No lugar que eu mais
odiava e sem nenhuma certeza.
— Sim — rosnei, mas ele deveria estar acostumado aquele tipo de
humor nos acompanhantes dos pacientes, porque apenas me pediu para segui-
lo.
Eu fiz e assim que chegamos a sua sala, eu fechei os punhos,
controlando minha inquietação enquanto sentava em sua frente.
Ele suspirou, escreveu durante alguns minutos em uns papéis e tirou
os óculos, depois encostou em sua cadeira.
— O estado que ela chegou já nos gerou uma desconfiança, então
fizemos alguns exames. Ela está tomando os remédios agora, iniciando
novamente seu tratamento.
Minha testa franziu em confusão. Do que ele estava falando?
— Que tratamento?
— Esclerose múltipla. O que aconteceu foi um surto.
Eu levei alguns segundos para encontrar minha voz. Não tinha o que
dizer, não fazia ideia de que porra dizer.
— Ela sabe?
— Sim. Tem desde os dezessete anos. A doença é mais comum entre
vinte e quarenta anos, mas acontece antes ou depois.
Eu engoli em seco, um sentimento familiar de impotência me
invadindo.
Outra vez.
Outra maldita vez.
— Não conheço muito da doença.
Ele assentiu, como se já esperasse que eu dissesse aquilo.
— Imagino que não. É algo com que as pessoas realmente não se
preocupam muito. Bem, vamos lá. Quando eu digo “esclerose”, não me refiro
aquele termo antigo que usavam para falar sobre problemas mentais. Digo
esclerose de cicatriz. Ela tem múltiplas cicatrizes no cérebro e na medula do
sistema nervoso central. O próprio sistema imunológico dela a ataca. Ao
invés de atacar um vírus ou uma bactéria, ataca o corpo dela.
— Ataca exatamente... que parte do corpo?
Ele deixou seus papéis de lado após um momento e pegou um lápis,
abriu a gaveta e tirou um durex de lá. Levantando o durex, ele disse:
— Isso é a mielina. A mielina é uma capa que protege os nervos do
corpo. — O doutor enrolou o durex em volta do lápis. — Dentro dessa
proteção, os impulsos elétricos direcionados pelos nervos são mais rápidos. A
esclerose múltipla ataca a mielina, então os nervos ficam desencapados,
desprotegidos, por isso os impulsos se tornam mais lentos.
— Então... o corpo brigando com ele mesmo?
— Exato. É importante dizer que cada ato nosso, sentar e levantar,
mexer o dedão e sorrir, é algo comandado através do nosso sistema nervoso,
por impulsos elétricos. Eles saem do cérebro, passam pela medula e seguem
para os órgãos. Esses estímulos elétricos precisam ser transportados entre um
neurônio e outro. E os neurônios são as células protegidas pela mielina. Então
quando atacam a mielina, as destrói e os estímulos elétricos que deveriam
passar por ali se perdem. É como um fio de cobre sem capa. Isso faz com que
o portador perca o controle de si mesmo, sem conseguir saber como o corpo
vai agir. E aí gera os sintomas.
— Sintomas?
— Sim. São imprevisíveis como toda a doença em si, não se sabe o
que pode acontecer. O sintoma varia muito do local afetado. Pode causar
perda de visão, perda de força, alteração de coordenação, falta de controle da
bexiga, visão dupla, fadiga, dores, tremores, dormência em um ou mais
músculos, perda da fala, de memória ou até da capacidade de andar.
— E esses sintomas... são temporários, certo?
— Bem... não dá para dizer com certeza. Os danos à mielina causam
interferência na comunicação entre o cérebro, medula espinhal e outras áreas
do sistema nervosa central. Isso pode ou não resultar na deterioração dos
próprios nervos, em um processo potencialmente irreversível.
— Como ela sabe quando acontece? O que ela sente?
— Ela não sabe. Nem ela e nem nenhum portador. É chamado de
surto, quando um ou mais sintomas acontecem e isso foi o que ocorreu hoje,
um surto.
— Eu a encontrei no chão, acordada, mas não sei explicar, ela não me
respondia, não conseguia falar direito. E se ela estivesse na rua?
— Provavelmente ficaria no chão até que alguém passasse e a
ajudasse, o que é muito comum de acontecer com os portadores.
— Isso é loucura.
— Não é loucura. É cruel e real. As agressões são intermitentes,
então ela vem e volta. Ou seja, sofre a agressão e o nervo se recompõe, uma e
outra vez. Então o paciente tem sintomas que pioram, duram algum tempo e
depois melhoram.
— Tudo bem, façam o que tem que ser feito. — Engoli o caroço na
garganta para conseguir falar. Aquilo era surreal. — Cirurgia, não sei, só...
terminem com isso de uma vez, eu pago o quanto for preciso.
— Senhor...
— James.
— Senhor James, o dinheiro nesse caso não compra uma solução.
Existem remédios e tratamentos, mas não há uma cura. Ela tem e terá
esclerose múltipla enquanto viver.
Uma doença. Danielle tinha uma doença autoimune. O próprio corpo,
uma parte importante que deveria protegê-la, a atacava. Eu me levantei,
zonzo e sufocado com aquelas informações.
— Eu preciso ir até ela. Tenho que ver se está tudo bem.
— Rapaz, posso falar para você como alguém que já viu muito dessa
doença?
— Por favor.
— Haverá dias que levantar da cama será uma tarefa quase
impossível para ela. Coisas básicas como apertar um botão, segurar um talher
e levar a comida à boca, amarrar o cadarço ou até mesmo... abraçá-lo.
— Por que está me dizendo isso?
— Porque você ouviu tudo e não me parece com alguém que vai
deixá-la, que vai desistir. Isso é bom, é decente. Tragédias não têm hora
marcada para acontecer. É ela, mas poderia ser qualquer outra pessoa.
— Isso não é uma tragédia. Ela ficará bem.
Ele me encarou por alguns minutos, nós dois ali de pé. Ele
expressando toda a sua dó por mim e eu com minha firme certeza no
impossível.
— Tudo bem, rapaz. Acredito que já pode vê-la no quarto.
Saí sem dizer mais nada e dei a volta no hospital para chegar até ela.
Seu quarto ficava perto da UTI, no corredor contrário. Eu me recusei a ver
isso como um sinal, segui em frente sem olhar para trás. Ignorei o som dos
aparelhos que ultrapassavam as portas, alguns gritos e a urgência dos
médicos que passavam por mim correndo.
Abri a porta, esperando ver Mari Louise ali dentro. Mas Danielle
estava sozinha.
Aquela cena era tão familiar para mim que meu primeiro impulso foi
correr para fora e colocar o máximo de distância possível, mas como sempre,
ela me fazia ficar.
Ela despertava em mim um instinto protetor desde que a vi.
Dançando como se sua vida dependesse daquilo, com um sorriso sonhador,
uma alma leve e o coração puro. Eu a persegui, louco como parecia e fiz com
que ela saísse daquele lugar horrível que não foi feito para ela dançar.
Não era limpo como ela e eu jamais conseguiria explicar minhas
ações quando existia Danielle na mesma situação, só que era assim.
Então eu me aproximei, segurando-me para não tocar o lado do rosto
que eu via. Podia ver seu olho fechado, o rosto virado para a janela. Os
cabelos cor de chocolate escuro jogados no travesseiro, sua pele branca tão
pálida que apenas os fios castanhos contrastavam com a roupa de cama.
Frágil, pequena e indefesa Danielle.
— Você está aqui.
Sua voz me surpreendeu e eu achei que estivesse dormindo.
— Sim. Pensei que estivesse dormindo.
— Pensei que tivesse ido embora.
— Estava falando com o médico.
— Não precisa ficar, Cobain.
— Eu sei.
— Não me deve nada.
— Sei disso também.
— Então pode ir.
Eu entendia. A última pessoa que ela deveria querer ali era eu, mas
nunca fui bom em fazer o que ela esperava.
— Você já pode abrir os olhos, vai ficar tudo bem.
Eu não sabia se realmente ficaria, mas a vontade de consolá-la e dizer
aquilo foi maior que a de ficar em silêncio. Ela rolou a cabeça para mim,
ainda sem abrir os olhos, mas eu podia ver seu rosto dessa vez.
— Cobain, o que você vê quando fecha os olhos?
A voz dela era apenas um sussurro baixo.
— Nada — respondi. — Não vejo nada.
De repente, Danielle abriu os olhos e quando aquelas íris castanho
quentes, cheio de aconchego e dor se firmaram em meu rosto, meu corpo
quase desabou em alívio. Mas como tudo na minha vida, eu não deveria
comemorar a vitória cedo, havia sempre um ponto no meio do caminho onde
eu seria atingido, e esse ponto foi onde lágrimas pesadas começaram a rolar
por seu rosto.
— Então você vê o que eu vejo agora. Eu não consigo te ver, Cobain.
Eu não vejo nada.
Capítulo 22
"...eu me machuquei hoje para ver se eu ainda sinto
Eu me concentro na dor, a única coisa que é real
Cheio de pensamentos quebrados que não posso consertar
Se eu pudesse recomeçar a milhões de milhas daqui, eu acharia um caminho
Mas o que eu me tornara
Meu mais doce amigo?
Todos que eu conheço vão embora no final"
johnny cash, hurt

— Você entende, Danielle?


— Sim.
— Administramos os remédios para os sintomas quando você
chegou, e embora os movimentos já estejam voltando, eu prefiro que você
fique até amanhã para garantir. Fizemos a pulsoterapia hoje, vamos ver como
será a partir daqui.
Eu assenti, sentindo-o tirar o acesso do meu pulso e descer o encosto
da cama.
— Por que fiquei paralisada daquela forma? Nunca aconteceu no
corpo todo.
— Bem, pode ter sido o nervosismo. Você ficou muito nervosa. E
talvez o susto também.
— Talvez ou foi isso?
Ele me deu aquele olhar. Aquele de quem não tinha uma resposta
para a minha pergunta.
— Existem vários fatores na EM, Danielle. Cada organismo reage de
uma forma, tem sintomas diferentes, causas distintas.
Tradução: Ele não sabia. Assim como já aconteceu antes. Eu não
sabia se culpava ele ou a medicina em geral, por não saber nem mesmo
responder uma pergunta. Uma simples. Por que meu corpo tinha aquele
defeito?
Eu descobri a esclerose múltipla com dezessete anos. Os médicos
eram mal informados e não sabiam o que responder quando fazíamos as
perguntas mais complicadas. Dizer que foi difícil era um eufemismo. Foram
exames atrás de exames, e meses até que chegassem a um diagnóstico
correto. Então era aquilo, lá estava eu com dezessete anos, sonhando com o
mundo, mas presa em um lugar.
Tanto eu quanto minha família não aceitávamos. Me recusei a fazer
qualquer tratamento e eles não me obrigaram. Mesmo que fosse o papel dos
dois, mesmo que devessem ter dito que eu precisava fazer. Mas evitar os
boatos de ter uma filha incapaz, deficiente, era melhor do que estar ao meu
lado. Era mais fácil ignorar a doença e fingir que estava tudo bem.
Porém, se tornou impossível fingir quando meses depois, eu tive
outro surto, e a primeira perda. O ballet. Minha realidade virou uma cadeira
de rodas e os tratamentos constantes para tentar de alguma forma evitar que o
outro surto acontecesse. Mesmo que aquilo não pudesse de nenhuma forma
ser evitado.
E eu melhorei.
Mas não a ponto de poder dançar outra vez.
Eu podia dançar por uma hora, talvez duas. Mas rodar o mundo
saltitando em minhas sapatilhas como sempre sonhei, como treinei a vida
toda para fazer, já não era mais minha realidade.
— Você já sabe que ficará um pouco cansada nos próximos dias,
então descanse. Se tivesse alguém para ficar com você durante esse tempo,
isso seria essencial.
— E minha visão? — Assim que a pergunta saiu, eu precisei engolir
o caroço preso da garganta e morder os lábios para não chorar
compulsivamente.
— Pode levar tempo, Danielle. Semanas e até meses. Os sintomas de
um surto recente podem desaparecer completamente, mas às vezes é possível
ficar com sequelas ou algumas dificuldades. Além da pulso, faremos
fisioterapia e reabilitação. Vamos ver como estarão os movimentos da perna e
dos braços amanhã, que são os mais importantes para que você faça as coisas
básicas do seu dia a dia.
Eu queria gritar na cara dele que o básico era enxergar. Poder ver a
minha frente. Nem quando fiquei sem sentir minhas pernas não foi tão
desesperador quanto ver um absoluto buraco negro.
Aquela impotência outra vez.
Primeiro, com dezoito anos veio a incapacidade de andar. O surto que
eu pensei que seria o pior, que eu considerei como aquele que me derrubou,
mas não. Ali estava aquele que realmente tinha o poder de me colocar para
baixo.
Como eu ficaria sem enxergar?
Como ia trabalhar?
Como veria Cody?
Meu Deus... a possibilidade de não ver mais o rosto do meu filho era
tão aterrorizante. Minha cabeça pendeu para baixo, sem aguentar mais
segurar tudo que estava preso dentro de mim. Comecei a chorar, sentindo a
mão do doutor me dar um aperto reconfortante.
Eu sabia que poderia acordar daqui algumas semanas ou até meses e
ver outra vez, mas também poderia não ver nada nunca mais. Aquela doença
maldita era imprevisível assim.
Assisti um filme uma vez chamado “100 metros”, e uma médica se
referia à esclerose como “a doença de mil caras”. Eu entendia o porquê. Ela
era tão inconstante, tão traidora!
O medo que eu tinha de sair na rua e cair a qualquer momento, de não
conseguir falar enquanto fazia uma simples refeição, de estar dirigindo e
perder o controle do carro com Cody dentro... haviam tantas possibilidades.
Tantas coisas que passavam pela minha cabeça e eu sabia que sim, cada uma
delas podiam acontecer.
— Nós vamos recomeçar o tratamento, Danielle. Você é muito
jovem, não perca as esperanças.
Fácil para ele falar, mas eu tinha certeza que se não estivesse cega,
poderia vê-lo olhando com toda a piedade para mim.
Minha juventude não valia de nada diante daquela situação. Porque a
esclerose me escolheu, e ela, diferente daquele médico, não tinha dó de nada.
A prova estava na frente dele.
Vinte e dois anos de idade e não podia enxergar.

(..........)

Houveram batidas na porta um pouco mais tarde e eu esperei. Não


podia fazer mais que isso. Segundos depois o cheiro familiar do perfume de
Mari Louise, que sempre irritava meu nariz, foi possível de sentir no quarto.
— Dani?
Eu virei a cabeça, tentando dar a ela a amostra de um sorriso ou
qualquer coisa para tranquilizar sua voz de choro.
— Ei, japonesa.
— Meu Deus, Danielle! Me assustou tanto! — Seus braços
cuidadosamente me rodearam e ela beijou minha cabeça, passando a mão em
meu rosto e cabelo. — Eu queria estar em casa para saber e não ter demorado
tanto a chegar, desculpe.
— Como soube que eu estava aqui?
— Cobain foi até nossa casa. Eu estava com Felipe e quando cheguei,
ele estava lá de pé em frente a porta, esperando. Disse que não tinha meu
número para ligar e me explicou rapidamente antes de me chamar um táxi.
Saber que ele havia se dado ao trabalho de fazer aquilo trouxe novas
lágrimas, mas as segurei.
— Ele está lá fora?
— Não, Dani. Ele me pagou o táxi e foi embora.
— Ah. Claro.
Não entendia a pontada de decepção que senti. Afinal, eu mesma
autorizei o médico a contar cada detalhe a ele, pedi para que fosse franco o
suficiente. Assim talvez Cobain fugiria assustado. Talvez se ele me magoasse
mais uma vez, indo embora ao descobrir como eu era defeituosa, eu não me
atreveria a pensar sobre a forma como ele me olhou e me segurou em seus
braços.
Mas ele não fugiu, ao contrário, foi me ver no quarto e me disse que
eu ficaria bem. Mas isso foi só até eu dizer o que aquele surto causou.
Aparentemente minha cegueira era um problema, além de falar
demais. Se antes ele já não me suportava, a partir de então era que não tinha
porque ficar perto mesmo. Até me surpreendeu que tivesse ido até Mali, mas
isso provavelmente foi para não se sentir responsável por algo. Por eu estar
na casa dele e aquilo ter acontecido lá.
Mas ele podia ficar tranquilo, eu nunca causaria problemas.
Ele não me veria mais.
— O médico disse que você ficará para que eles possam garantir que
vai ficar tudo ok, mas amanhã no máximo de tarde já poderá ir embora.
— Eu sei. E Cody?
— Liguei para Gabi. Pedi para ela buscá-lo e ficar em casa essa noite.
Liguei para o Theatro no caminho, também. Como você não vai amanhã, eu
achei melhor deixar Larissa avisada.
— Mali.
— O médico passou alguma receita? Ele disse que...
— Mali.
— Passo para comprar tudo no caminho de volta amanhã.
Ela estava me ignorando, evitando falar sobre o que já devia saber. É
claro que Cobain diria.
— Mari Louise, pare!
Ela soluçou.
— Nós vamos dar um jeito. Isso não é nada. — Mari Louise fungou,
e foi doloroso não poder olhar em seus olhos e garantir que tudo ficaria bem.
— Você vai ver. É apenas passageiro, daqui algumas semanas você estará
perfeitamente recuperada. Eu sei disso.
Sua voz desceu para um sussurro, como se a última frase não fosse
algo que ela acreditasse tanto assim. Mas não a culpei, afinal, eu também não
acreditava.
Minha vida já era complicada de muitas formas, mas agora era mil
vezes pior.
Eu estava sozinha naquela completa escuridão.
Capítulo 23
“...para que dissimular?
Ela me segue aonde quer que eu vá
Melhor encarar e aprender com ela a caminhar
Não vou mais negar por todo caminho minha sombra está
E isso nunca se desfaz
Eu quero saber me querer
Com toda beleza e abominação
Que há em mim"
pitty, a sombra

— Dani, talvez não seja o momento... mas preciso falar sobre o


Theatro.
— Não tem momento certo para isso, Rai, era o meu emprego. O que
você disse a eles?
Nós estávamos no táxi a caminho de casa. Uma mistura de
sentimentos presentes em meu peito e a angústia que eu havia sentido quando
fiquei sem andar anos atrás.
— Bem... ainda é o seu emprego. Eles te deram um mês, que são suas
folgas atrasadas.
— Minha visão e coordenação não voltam em um mês.
— Nós não sabemos disso, Dani. — Mari Louise tentou me
tranquilizar, mas era tão óbvio e ele sabia também.
Eu teria que ligar e abrir o jogo sobre o que estava acontecendo, e me
preparei para ouvir um “sinto muito, mas não podemos fazer nada”. Porque
Larissa não podia trabalhar por duas, e Andreza, que me cobria às vezes, não
tinha como fazer dois turnos. Eles tinham que contratar alguém e Mali sabia
que tudo cairia em cima dela.
É claro que ela não falou, sua personalidade protetora me
tranquilizaria de todas as formas apenas para que eu não me desesperasse.
Ela ia assumir as despesas de Cody, da casa e as minhas também.
Mesmo que cinco anos atrás estivessem há milhas de distância, nunca
pareceu tão perto.
Se esticasse as mãos, poderia sentir.
E meu inferno começava outra vez.

(..........)

— Está pronta?
Eu segurei firme a mão de Mari Louise e agradeci mentalmente por
Raiana me apoiar no outro braço.
— Vamos.
— É claro que ela está pronta — Raiana elogiou com uma animação na voz
que eu até acreditaria se não a conhecesse bem. — Quando tudo voltar ao
normal, estaremos recriando essa cena, você vai ver só.
Eu tentei sorrir para não a deixar sem graça, mas apenas tentei, sem
sucesso. Cody estava lá em cima com Gabi e eu só conseguia pensar nele
desde que saí do hospital. Eu esperava realmente que quando ele corresse em
minha direção, alguém me avisasse, porque derrubar meu filho ou tropeçar
nele não era algo que eu queria fazer.
Mari Louise estava sendo o anjo que costumava ser, e Raiana pediu
folga no trabalho para lidar comigo naquele momento. Eu odiava a volta para
casa depois de um surto. Pior ainda por saber que devido ao tratamento, eu
ficaria tão cansada, que às vezes até mesmo ir da cama até a cozinha beber
algo seria terrível.
E quando Cody quisesse brincar, e para levá-lo na escola, e para dar a
ele seu café da manhã. Eu nem conseguia andar sozinha.
— Dani. Podemos?
Eu respirei profundamente e assenti. Havia esquecido por um
momento que as duas continuavam ali, me segurando de cada lado, só
esperando que eu desse o primeiro passo. Um passo tão difícil, porque eu
sabia que depois dele não poderia parar. Teria que passar pelo caminho
inteiro para chegar até a minha nova condição: uma completa dependente.
Queria conseguir me soltar das duas e caminhar por mim mesma,
guiando-me pelas paredes e com um pé na frente para evitar possíveis
tropeços, mas parecia que elas sabiam que se me soltassem, eu desabaria ali
mesmo. Não apenas por cansaço, mas por desistência.
Porque eu era fraca quando se tratava da minha doença, e ela se
tornava forte, porque sabia que era uma luta ganha.
Muitas vezes eu me perguntei se aquilo não era um teste psicológico,
ou Deus me perguntando quanto eu podia aguentar. Como se a minha cabeça
brincasse comigo mesma, testando meus limites e me desafiando a parar. E
por todas as forças do universo, eu não aguentaria nem chegar à segunda fase.
Tornava-me incapaz de jogar o jogo. Me esquecia de Cody, de Mari Louise,
de Raiana, e só queria esperar pela próxima passada de perna que a vida me
daria.
Eu ouvi o sinal do elevador, andei com elas e entrei, ouvindo as
portas fecharem logo depois.
Alguém fungou ao meu lado e eu deveria ficar chateada por saber que
nem minhas amigas conseguiam lidar empolgadas com aquilo, mas fiquei
satisfeita. Porque eu não era a única sabendo que tudo ficaria uma droga.
Queria saber o que Cody pensava.
Arrastei um pé atrás do outro quando chegamos ao nosso andar. As
portas abriram e elas caminharam lentamente comigo. Ouvi a porta. Ouvi
Gabi. Ouvi até mesmo os passarinhos cantando do lado de fora, alheios ao
meu drama. Mas ouvir Cody foi como pegar toda a pressão e o medo que eu
tentava manter escondido e jogar direto em meu rosto.
Eu queria sumir.
Sumir para um lugar onde fôssemos apenas eu e ele, e não existisse a
esclerose para ficar entre nós. Onde ela não levaria minha visão e me
impediria de ver minha alegria.
— Ma-ma!
Ouvi seus pezinhos batendo no chão de madeira, e os de outra pessoa
logo atrás dele. Gabi, sua fiel babá que não fazia ideia do porque eu fiquei
cega em poucas horas, pelo menos não sabia, mas talvez agora já estivesse
até se preparando para dizer que não poderia mais cuidar dele.
— Calma, rapazinho. Mamãe já vai pegar você — tentou tranquilizar.
Eu ouvi seu grito e os lamentos que ele fazia por não poder se aproximar.
Engoli em seco.
— Me leve até o sofá e o coloque no meu colo, por favor.
Elas fizeram o que pedi e eu encostei, preparada para receber meu
filho.
— Vou colocá-lo em seu colo, Dani.
Segundos depois senti suas perninhas geladas em cima da minha, as
mãos agarraram minha blusa e as minhas automaticamente foram para
segurá-lo. O cheirinho dele ainda era como no dia anterior pela manhã. O
abracei, envolvendo uma mão protetora em sua cintura enquanto ele
resmungava, e a outra subi em seu cabelo, ainda como antes.
— Fiquem perto, por favor.
— Estamos aqui, Dani.
Mesmo que eu estivesse sentada e ele também, minha mão direita
ainda estava fraca e meus dedos não aceitavam meus comandos. No
momento, eles eram donos de si.
— Ma-ma?
— Oi, bebê. — Mal percebi quando as lágrimas começaram a cair, só
senti a mão de alguém em meu ombro.
— Para onde ele está olhando? — sussurrei.
— Para você — Raiana respondeu com a voz embargada, tão baixa
quanto a minha.
— Ele só tem olhos para você, Dani — Mali completou e eu soube
que a mão que me consolava era dela. — Ele está sorrindo.
— Está feliz que a mamãe voltou para casa — Gabi falou.
— Abra os olhos, Dani. Deixe que ele veja que você está aqui.
— Eu não posso, Mali. Não posso vê-lo.
— Mas ele pode te ver. Eu não sei das suas dores e não faço ideia de
como é estar no seu lugar. Mas ouça-me. Você deixou que essa doença tirasse
os seus sonhos, o seu sorriso e sua vontade de lutar. Não a deixe tirar você do
seu filho também.
Como se entendesse e concordasse com cada palavra de Mali, Cody
deitou a cabeça em meu peito e sua mão minúscula tocou a minha. Palma
com palma, como nós sempre fazíamos.
E ali estava ele, meu ponto de realidade, meu equilíbrio. Tocando-me
como eu o toquei diversas vezes para acalmá-lo. Quando ele chorava e eu
segurava sua mão daquele mesmo jeito, o tranquilizando de que ainda estava
ali, que não importava o dia de amanhã, naquele momento eu ainda estava
com ele, e faria de tudo para estar no dia seguinte também.
Ele ergueu a outra mão livre e tocou meus olhos, tentando abrir com
seus dedinhos pequenos, e eu abri. Mesmo que a minha frente fosse apenas
uma escuridão aterrorizante, ela se tornou calma e inofensiva por alguns
momentos.
Ouvi a gargalhada de Cody, feliz de pensar que eu olhava para ele, e
eu tentei fazer isso. Me lembrei de como ele estava da última vez que o
peguei, de seu sorriso, dos pequenos dentinhos e a covinha na bochecha; do
cabelo que caía em sua testa e balançava com seus movimentos. E o vi.
Mesmo que em minha imaginação.
A coisa mais bonita que eu fiz na vida, a pessoa mais especial do
mundo para mim, estava bem a minha frente. Eu sentia seu cheiro e podia vê-
lo também.
Sorri um pouco, verdadeiramente, como só ele me fazia sorrir nas
horas impossíveis.
Meu pequeno homenzinho, forte como eu não podia ser.
O único motivo para eu ainda querer tentar lutar.
Capítulo 24
"...deste momento em diante
Se você se sentir que está partindo, não vou deixar você cair
Vou te segurar até a dor passar
Você nunca vai estar sozinha"
nickelback, never gonna be alone

Um.
Dois.
Três.
Três.
Dois.
Um.
Eu precisava trabalhar equilíbrio e força.
— Tem certeza que pode fazer isso, Dani?
Não, eu não tinha. Mas precisava.
Meu filho voltaria da escola em poucas horas e ficar sentada o dia
inteiro não me ajudaria a recuperar o que foi perdido.
Então nas duas mãos eu apertava duas bolinhas improvisadas que
havia na caixa de Cody, e fazia um exercício que vi na internet, em um canal
do Youtube, que consistia em levantar e sentar.
Respirava alguns segundos em pé e sentava, respirava e levantava. E
assim por diante. Minhas pernas protestavam.
— Não devemos esperar o fisioterapeuta ou algo do tipo?
— Eu não vou ficar sentada o dia inteiro enquanto você trabalha,
cuida do meu filho e da casa. Se existe algo que posso fazer para pelo menos
conseguir andar direito e pegar as coisas decentemente com as mãos, farei.
A pulsoterapia era uma droga. Por Deus, eu estava inchada. Ela age
de uma forma diferente em cada pessoa, é administrada de diversos modos,
durações, e tem efeitos pós diferentes. Eu estava morta, como era comum na
grande maioria que passava por ela, mas queria tentar antes de simplesmente
cair na cama e dormir.
Mari Louise nunca falou, mas eu imaginava que ela devia me achar
exagerada e preguiçosa, porque na maioria das vezes, eu só queria ficar
deitada ou dormindo. O cansaço era tanto que explicar se tornava impossível,
e não importava quantas horas da noite eu dormia, ainda assim dormia de dia
também.
— Tudo bem, Dani, mas forçar a barra também não vai ajudar. Deixa
o seu corpo descansar.
Eu bufei e não respondi. Descansar não era muito a palavra.
Descansar era o ato de repousar para se sentir disposto depois. No meu caso,
descanso não se encaixava, porque eu quase nunca estava disposta depois da
pulso.
— Não estou forçando nada.
— Está morrendo, Danielle. Por Deus, olha você cambaleando. Está
até vermelha! Se sua intenção é ficar melhor para quando Cody chegar, se
continuar assim vai desmaiar na frente do seu filho.
Ela era minha melhor amiga, muitas vezes me conhecia em níveis
que nem eu podia me conhecer, mas naquele momento me dividi entre a
raiva, revolta e mágoa. Não com ela, não com suas palavras que eu sabia que
eram a verdade, mas por toda a situação.
— Já passei por isso antes, Mari Louise. Você não é médica para
ficar me dizendo o que fazer.
— Tem razão, não sou mesmo. Mas sou eu quem estou aqui
acompanhando tudo!
— Mali, você é minha amiga e eu te respeito demais, tanto pelos anos
juntas quanto por tudo o que faz por mim, mas você não vai controlar a
minha vida.
— Não quero controlar, Dani! Só acho que existem coisas que você
faz, que não são saudáveis. Tipo achar que um cara na internet sabe de tudo.
— Você está com dó e acha que eu vou quebrar, mas eu já enfrentei
essa maldita doença outras vezes e sei como lidar com ela. Você não precisa
me dizer que eu estou fraca até para ficar com o meu filho! Me apoie, pelo
amor de Deus. Me diga que eu consigo ao invés de me incentivar a ficar
deitada o dia todo, vendo os dias passarem!
— Você já enfrentou isso antes, mas eu não. Essa é a primeira vez
que eu tenho que ficar aqui e ver a minha amiga tentando parecer firme,
quando está desmoronando! Por que está querendo provar algo para mim,
Danielle? Eu sei o quão forte você é, mas precisa me ouvir de vez em
quando!
Nós ficamos ali, em silêncio por vários minutos. Eu suada, quase
caindo para trás sem conseguir me manter firme de pé, as bolinhas presas em
meus punhos e os olhos quase fechando de exaustão. E ela, mesmo sem poder
vê-la, sabia só por sua voz, que o humor não era melhor que o meu.
Mas não tive chance de responder, pois a campainha tocou naquele
instante.
Ela respirou profundamente e ouvi seus pés batendo com força no
chão. Aproveitei a deixa, soltei as bolinhas no chão e tateei as costas da
cadeira, usando-a para chegar até o sofá ao lado. Sentei mesmo suada e ouvi
Mari Louise destrancando a porta. Dessa vez, o barulho foi de pegadas ainda
mais altas no chão de madeira, então Mali se exaltou.
— O que vo...
— Onde ela está?
Aquela voz.
Eu a conhecia de longe. Mesmo sem poder vê-lo sabia que era ele ali.
Na verdade, mesmo antes que dissesse qualquer coisa, apenas pela invasão
abrupta, a forma como entrou já o denunciava.
Cobain James.
A quase briga com Mari Louise foi esquecida imediatamente, assim
como todo o resto. Ele estava ali e eu não fazia ideia do porquê, mas dias
depois de ter saído daquele hospital, Cobain finalmente apareceu. Pelo menos
o tremor que iniciou em minhas pernas, daquela vez eu sabia que não era um
sintoma, mas sim um reflexo do que a presença dele me causava.
— Você não pode entrar aqui dessa forma. Eu vou chamar a polícia!
— Mari Louise o enfrentou.
Eu queria fazer o mesmo, mas o choque só me permitiu continuar
sentada ali esperando que ele desse o primeiro passo e começasse a explicar o
motivo de sua visita.
— O que vocês duas têm com a polícia, hein?
— Nada — ela falou —, mas teremos um Boletim de Ocorrência
contra invasão daqui a poucas horas se você não sair!
— Então vá providenciar seu boletim, porque eu preciso falar com
Danielle.
— Meu Deus, você é tão absurdo! Olha só, Dani está cansada e
precisa descansar agora, então porque você, só... vá embora.
— Eu vou assim que ajeitarmos tudo para ela ir comigo.
— O QUÊ?! — O grito da minha amiga me fez dar um pequeno pulo.
Eu quis gritar junto por não poder literalmente ver o que estava acontecendo.
— Parem de discutir como se eu não estivesse aqui. Estou cega, não
surda! E que história é essa de ir com você?
Passaram-se alguns segundos em silêncio, então começaram
novamente.
— Temos um acordo. — A voz de Cobain era baixa e afiada.
— Eu não quero que você a leve!
— Não tenho como instalar uma enfermeira aqui, Mari Louise,
portanto ela irá comigo.
— Nós não precisamos de uma enfermeira!
— Ah, não? E como vai manter a casa? Vai trabalhar por três?
— Sim, posso fazer isso.
— E como cuidará do garoto e dela? Vai deixá-los sozinhos para
sair?
— Gabi está aqui para isso e...
— Então é mais uma despesa.
— Eu dou conta, nós sempre nos viramos!
— Que acordo é esse que ele está dizendo, Mali?
Nenhum dos dois me respondeu, e um silêncio pesado encheu a sala.
Era angustiante não saber o que estava acontecendo. Se eles se encaravam, se
me olhavam com pena ou revoltados comigo por ser um problema.
— Estou me aproximando, Danielle — Cobain falou, então segundos
depois o sofá afundou ao meu lado.
Eu me recostei, buscando alguma distância entre nós.
— Dani, não tem que se sentir obrigada a fazer nada que ele diga, nós
vamos dar um jeito em tudo.
— Vão mesmo, Mari Louise? Então qual a necessidade do
empréstimo que me pediu se dará um jeito em tudo?
A informação me chocou por meio segundo, então explodiu como
uma bomba no meu colo. Se eu pudesse ver, Mali me veria atirando flechas
incendiárias em sua direção.
— Mari Louise!
— Seu filho de uma mãe! Ela não precisava saber disso!
— Claro que precisava, Mali! Por que escondeu isso de mim? E
pior... por que fez isso?
— Porque o tratamento público é uma droga, Dani. Eu pensei que se
fizéssemos com tudo pago você poderia se recuperar mais rápido, eu não sei,
não pensei direito. Estava nervosa, você está triste o tempo todo e ele era a
única saída.
Eu queria não estar brava com ela, entendia seu desespero, mas pedir
dinheiro a Cobain a ponto de fazê-lo ir até ali ditar regras não me agradou. Eu
já me sentia culpada pelos dez mil na minha conta que não tiveram o trabalho
terminado, e agora essa!
— Não precisamos do dinheiro, Cobain, esqueça que ela lhe propôs
isso. Pode voltar para a sua vida, está tudo bem.
— Eu não estou aqui só pelo pedido dela.
— Então por quê? Por dó? Eu não preciso dela, então apenas vá!
Eu estava tão brava, tão chateada e decepcionada. Além de estar tudo
isso com ele, estava comigo, também. Porque aqueles sentimentos surgiram
de uma expectativa, e essa expectativa é uma droga. Te faz esperar demais de
quem nunca te prometeu nada. Eu passei uma semana inteira esperando que
ele fosse aparecer e pelo menos perguntar como eu estava. Mas... ele não me
devia isso, então porque em algum momento eu cheguei a esperar?
Agora ele estava ali, com pena de uma mulher pobre e dependente,
com uma criança pequena.
Seu dinheiro ajudaria em muita coisa, sim, mas meu orgulho falava
mais alto.
No início meu tratamento era feito com os melhores médicos,
remédios que não importava o preço e as despesas nunca chegavam a minha
mesa para ver a conta. Mas isso foi quando um surto impediu os movimentos
das minhas pernas e meus pais viram que querendo ou não, eu precisava me
tratar. Por aquele lado, viver em Minas Gerais, com Regina cuidando de mim
o dia todo e a segurança financeira que minha família tinha era muito mais
fácil. Mas só quando envolvia o dinheiro.
Uma das coisas que eu li sobre a EM logo que recebi o diagnóstico,
foi que meu estado emocional era muito influenciável no meu físico.
A negação, o choque, a confusão completa e a raiva estavam sempre
presentes nos primeiros dias, meses. Depois disso, eu passei a viver meio
depressiva, sempre ansiosa e estressada, e essa instabilidade emocional era
um dos gatilhos perfeitos para me deixar ainda mais à beira de um surto.
Emoções que viviam presentes enquanto eu vivi debaixo do teto dos
Castro D'Avilla.
Mesmo que ter mudado para o Rio depois que tudo aconteceu tivesse
me deixado exposta e frágil àquela instabilidade, também, ainda assim era
mais calmo do que lá. Uma tempestade longe dos meus pais, era melhor do
que a calmaria perto deles.
Os remédios pelo governo eram difíceis, muitas vezes faltava, e quem
precisava até mesmo sofria com dificuldade de pegar, mas era de graça, a
única forma que eu tinha de me tratar. Até porque o custo de tudo era caro,
uma despesa que, dependendo do que era preciso para o tratamento, chegava
até a dez mil reais, isso se não fosse mais.
Eu não tinha aquele dinheiro.
— Não tenho dó de você, nem pena, e nem estou aqui por obrigação.
Me perguntei se meus olhos abertos deveriam mostrar a ele toda a
angústia, medo e tristeza que sentia.
— Então por quê?
— Porque... porque você é minha funcionária. Estava trabalhando na
minha casa e se posso fazer algo para ajudar, farei.
Um balde de água fria.
— Eu não era sua funcionária desde quando você gritou comigo me
mandando sair daquela casa.
Ouvi um suspiro frustrado vindo dele e abaixei a cabeça,
entrelaçando meus dedos em nervosismo.
— Você não me dá escolhas, Danielle. Nunca dá. Sempre tenho que
ir pelo pior caminho com você.
Engoli em seco.
— Que caminho?
— Peça para sua amiga nos deixar sozinhos, ela acha que eu vou
estrangular você a qualquer momento caso saia daqui.
— Acho mesmo — Mari Louise falou.
No começo eu poderia concordar com Mari Louise, mas agora pelo
pouco que quase conheci de Cobain, sabia que ele não me machucaria.
Esperava que não e tinha quase certeza disso.
— Tudo bem, Mali. Eu vou conversar com ele.
— Eu não acho uma boa ideia, Dani. Esse cara só te faz passar
nervoso e você não pode ficar nesse estado ago...
— Mari Louise — chamei uma única vez, a interrompendo.
Ela ia me enlouquecer.
— Tudo bem. Certo. Mas eu estarei logo ali, bem do lado. — Os
passos dela foram ouvidos, lentamente se afastando.
— Ela foi o caminho todo estreitando os olhos para mim. Alguém
tem que avisá-la que nem se quisesse ela seria assustadora fazendo essa cara.
Ignorei seu estranho espírito irônico e suspirei.
— O que você quer, Cobain?
— Quero ajudá-la a passar por isso. Quanto mais cedo estiver
recuperada, mais rápido pode voltar a fazer suas coisas.
— Isso ainda não é da sua conta.
— É da minha conta que quando tudo aconteceu você estava na
minha casa e mesmo sem nenhum contrato assinado, você trabalhava para
mim.
— Mas...
— Tem noção de como será para Mari Louise, cuidar de você e do
garoto, pagar as contas dessa casa, e a babá para ficar com ele enquanto ela
estiver fora?
— Tenho o dinheiro que você me pagou e o auxílio doença também.
— O dinheiro que eu te paguei não vai durar para sempre e o auxílio
doença é uma mixaria. Sem contar que o afastamento não é para sempre. Se
quiser se aposentar, será um longo processo para reivindicar seus direitos.
Até lá vai fazer o quê?
Eu sabia daquilo. Cada uma das palavras fazia sentido, mas admitir
era difícil, e aceitar ajuda pior ainda.
— Eu... eu vou dar um jeito.
— Pelo amor de Deus, você é teimosa demais! Veja pelo lado
profissional. Eu estou lhe oferecendo uma forma de melhorar. Será um
empréstimo.
— Empréstimo? Eu nunca teria dinheiro para te devolver.
— Eu sei, mas pode me pagar com o término do serviço que
começou. Minha biblioteca não será arrumada sozinha e eu não confio em
ninguém para colocar lá dentro, você sabe disso.
Me deixei refletir em suas palavras por alguns momentos, e ele ficou
em silêncio, me esperando considerar.
— Mas eu posso ficar aqui. Aceito sua ajuda, mas fico aqui.
Realmente não tem cabimento ir com você para qualquer lugar.
— Você não está pensando por todos os ângulos, Danielle. Quando
Mari Louise não estiver aqui, o que você vai fazer? A babá do garoto não vai
abrir mão da vida dela para ficar de olho em você.
— Deficientes visuais ficam sozinhos em casa o tempo todo.
— Sim, deficientes visuais que tiveram um tempo para se acostumar,
para lidar com a vida nova. Tenho certeza absoluta que nenhuma pessoa que
perca qualquer função do corpo fica sozinha nos primeiros dias. Na minha
casa, pelo menos, eu estarei em meu escritório e tudo o que você tem que
fazer é chamar.
— Você não trabalha fora?
— Eu preciso sair às vezes, mas estou lá na maioria do tempo. Eu
posso pagar alguém para levar o garoto na escola e buscá-lo também. Posso
pagar os melhores médicos, o melhor tratamento e a melhor recuperação.
Posso fazer qualquer coisa. Então me diga, por que você não aceita de uma
vez?
— Porque seria como dever a você.
Fora meu argumento já gasto de “eu não quero ir”, eu não tinha
nenhuma outra resposta para debater com ele. É claro que podia mandá-lo
sumir e não voltar mais, dizer a ele para parar com a mania de se meter na
vida alheia, mas... tudo o que ele me oferecia era benéfico para mim.
Mari Louise não morreria de trabalhar, e tudo o que eu teria que fazer
depois seria terminar a biblioteca.
E realmente... por que não?
— Cobain? — Minha voz era baixa. Tão fraca como a minha
segurança em perguntar algo tão cru a ele.
— O quê?
— Por quê?
Eu não precisava explicar a pergunta.
Por que ele estava ali? Por que insistiu tanto? Por que queria me
ajudar? Apenas o apelo de Mari Louise fez com que aparecesse depois de
dias longe e só informasse que eu estava indo com ele?
Ouvi sua respiração ficar mais pesada e podia até ser coisa da minha
cabeça, mas o ouvi engolir antes de me responder.
— Eu não sei, Danielle. Eu realmente não sei.
Capítulo 25
“...você acha que consegue distinguir o paraíso do inferno?
Céus azuis da dor?
Um sorriso de uma máscara?
Nós somos apenas duas almas perdidas, correndo sobre o mesmo velho chão
O que nós encontramos?
Os mesmos velhos medos
Eu queria que você estivesse aqui"
avenged sevenfold, wish you were here

ü ELE É UM SONHADOR
COBAIN JAMES

— Você está brincando, certo?


— Dá um tempo, Lizandra.
— Ah, Danilo! Dar um tempo?
— Sim, dá um tempo.
— O que foi que ele virou? Um benfeitor, fazendo caridade? Ou uma
enfermeira? Por Deus!
Enquanto os dois discutiam, eu observava as pétalas da rosa vermelha
que começava a querer murchar em cima da minha mesa. Mesmo que eu
tentasse a todo custo mantê-las bonitas e saudáveis, eu sabia que uma hora
não aguentariam mais. Elas morrem. Como tudo na vida, aquelas flores iriam
embora também.
— Eu falo e falo e ele nem escuta!
— Ele não tem que ouvir esse monte de merda.
— Sou amiga dele e quero alertá-lo!
— Amigos compreendem e aceitam quando algo faz bem a outro
amigo, não ficam enchendo a porra do saco.
— Enchendo o saco? O que é que faz bem para ele?
— Ela faz.
— Ela? A deficiente? O que fará bem a ele?
Eu ouvia cada palavra dos dois, mas continuava observando a cor da
rosa. Um vermelho ainda forte, vivo, mas não tão brilhante. Talvez tenha
perdido a vitalidade. Estar respirando não quer dizer estar vivo, então talvez...
as rosas respirassem, mas não estivessem vivas de fato. Aquelas da minha
mesa e as de casa também.
Minha mesa sobressaltou e eu olhei para frente, vendo Lizandra bater
com as duas mãos na madeira.
— James! Me escute!
— Liz...
— Cale a boca, Danilo! Cale o inferno da boca! Aquela mulher...
acabou. Esclerose múltipla é algo que você desconhece, mas o irmão do meu
cunhado tem e ele está se desfazendo a cada ano.
— Pelo amor de Deus, Liz! — Danilo protestava, já de pé.
— Ao invés de falar, ela vai começar a babar, os banhos você vai ter
que dar porque ela não se aguentará de pé. Hoje ela come, mas amanhã talvez
nem consiga mais! Ao invés de tirar calcinhas, você vai trocar fraldas!
— Porra, Liz — Danilo repreendeu. — Você poderia fechar a boca
agora, já deu!
— Você sabia, James? Ela pode daqui a poucos anos ficar demente.
Vai acabar numa cadeira de rodas, é fatal!
Eu não gostava de falar. Não gostava principalmente de gastar
palavras à toa. Debater ignorância era como dar murro em uma ponta de faca
para tentar firmá-la no concreto. Você apenas se corta, mas ela nunca afunda.
Eu respeitava Lizandra, gostava dela. Admirava seu trabalho e o
senso para negócios, mas detestava sua mania de se meter em nossa vida. Em
algum momento entre trabalho e a convivência fora dele, ela pensou que
podia palpitar em minha vida e de Danilo. Ruy escapava apenas porque era
casado, então existiam limites. Para nós também existia, mas ela parecia não
ver, ou via e se fazia de cega para isso.
— Está tudo bem, Lizandra. Existem tratamentos — foi o que eu
disse e era a única coisa que me deixei dizer.
Ela revirou os olhos e começou a caminhar pela sala. Olhei
brevemente para Danilo e ele parecia puto, mas até aí, ele estava puto na
maior parte dos dias. E ela estava fora de controle, porque não podia nos
controlar, então se perdia.
— Você está jogando tudo fora. Sua carreira, seus sonhos, vai
decepcionar sua família, tudo por alguém que não tem nada pela frente.
Uma rara risada subiu em minha garganta, mas segurei. Quis deixá-la
explodir para fora apenas para ver se Lizandra se chocava o suficiente para
parar de falar. Sonhos e carreira? Eu me lembrava exatamente há quanto
tempo liguei para o meu empresário, as gravadoras e qualquer contato com o
mundo dos negócios e me desliguei, deixando claro que estava totalmente
fora.
Tinha apenas uma obrigação: Connely dance Academy of Paris.
E sonhos... eles morreram junto com todas as outras coisas que
importaram um dia. O amor pela arte, a vontade de viver, a paixão pelo
mundo, por pessoas. Foram enterrados junto com o homem que eu fui um
dia.
— Sabe Deus se não há uma mulher perfeita para você em algum
lugar no mundo!
— Isso não é um romance, Liz. Ele só está ajudando a garota, ela não
tem ninguém.
— Não é um romance? Olhe para ele! Se parece com uma cena muito
familiar para mim. O que você quer, James? Se prender outra vez a alguém
que não está mais aqui?
Fora os xingamentos de Danilo, a sala se tornou um completo
silêncio. Eu realmente não queria falar mais nada, especialmente depois
daquilo. Me levantei, caminhei até a porta e a abri.
— James... Desculpe-me, eu não deveria ter dito isso.
Eu olhei para baixo, apenas esperando que saíssem.
Ela não deveria ter dito, mas disse. Esse era o mal do ser humano,
falar antes de pensar, agir antes de considerar consequências e magoar sem se
colocar no lugar alheio.
Danilo segurou o braço dela e me deu um olhar antes de sair. Eu
admirei o silêncio e a tranquilidade da sala. Fechei a porta e me sentei,
ligando o computador para começar minhas pesquisas.
“...ela não se aguentará de pé...”
“Hoje ela come, mas amanhã talvez nem consiga mais!”
“...você vai trocar fraldas!”
“O que você quer, James?! Se prender outra vez a alguém que não está mais
aqui?”
A amiga de Danielle, Mari Louise, tinha me procurado dois dias após
ela sair do hospital, me pedindo ajuda. Eu conhecia mulheres interesseiras,
fingidas, falsas e as verdadeiras também. E ela parecia desesperada. Em seus
olhos eu podia ver como se sentia incapaz de dar conta de tudo o que estava
prestes a cair em cima dela.
E não, eu não podia simplesmente encher a conta delas de dinheiro.
Dinheiro nunca resolvia. Eu já vi o suficiente para saber que ele é
necessário e preciso, mas não fundamental. Danielle não precisava de
dinheiro, até porque nenhuma quantia do mundo a curaria.
Eu via aquele olhar que ela carregava todos os dias ao me olhar no
espelho, e eu nunca saberia explicar, mas o alívio que me causou vê-la
tranquila enquanto seu filho brincava no jardim decadente da minha casa, fez
com que eu quisesse tirar todas as dores daqueles olhos.
Mesmo que as minhas nunca pudessem ser apagadas, existia uma
necessidade em mim de fazê-la se sentir segura outra vez.
Ela me pediu alguns dias. Se fosse por mim, teria saído de sua casa
ontem mesmo e a trazido junto comigo, mas Danielle era teimosa. Tão
teimosa como eu nunca vi, e orgulhosa ao extremo. Aceitei, porque ela já
tinha perdido parte de sua independência. Eu queria ajudá-la, mas não a fazer
se sentir uma inválida que precisava seguir tudo o que eu ditava. Então a
última palavra era dela.
Pelo menos enquanto minha pouca paciência ainda durava. Eu estava
a apenas um dia de entrar lá e levá-la embora de uma vez. Já tinha a
enfermeira preparada, o quarto de hóspedes no primeiro andar estava
renovado, e as cercas nas escadas para o garoto.
Ela só precisava decidir que era a hora de ficar segura outra vez.
Passei a mão pelo rosto e suspirei, voltando a focar na tela do
computador a minha frente. Eu estava incomodado com aquilo
profissionalmente dizendo, é claro. Sabia que ela não tinha condições de ficar
na situação que estava, desamparada, e pelo fato de já ter trabalhado para
mim, era minha obrigação ajudar. Mas tão logo que estivesse bem
novamente, ela iria embora.
Sim, iria.
Eu mesmo a mandaria ir. Afinal, não havia nada benéfico para ela ou
o garoto ficarem perto.
Ela já tinha problemas demais.
Enquanto fuçava a internet em busca de respostas e informações, lia
coisas que ora me tranquilizavam, ora me faziam pensar em cada palavra do
que Lizandra disse, e ora me deixou profundamente sentido por saber um
pouco mais do que Danielle enfrentava.
Uma pessoa portadora da doença havia colocado um vídeo em seu
canal, onde ela aparecia deitada, com o corpo encolhido e os movimentos da
mão que tentava mexer eram descoordenados.
“...ela não se aguentará de pé...”
Passei para o próximo, agoniado. Esse era de uma garota dizendo
como havia passado por um segundo surto, os dias seguintes, o tratamento, a
dificuldade de voltar à rotina normal com os sintomas ainda presentes.
E o próximo me chamou a atenção. O título era “Como me curei da
Esclerose Múltipla”.
Cliquei, curioso, e mesmo sabendo que não havia uma cura, uma
esperança borbulhante cresceu em meu estômago. As primeiras palavras da
mulher foram “Deus me salvou. Ele curou a minha enfermidade!”.
Bastou aquilo.
Bufando, fechei o computador com força, sem me importar se não
ligaria novamente. Deus era uma piada. Ele tinha uma incrível mania de
acabar com a vida de quem não merecia.
Aquela mulher na cama, a outra que dizia ser curada, e Danielle...
todas vítimas.
E por que Deus todo poderoso as fazia sofrer daquela forma se ele era
tão bom assim?
Ela adorava falar, ela tinha um filho, um trabalho, e já passava por
tantas dificuldades, mas ainda assim o sorriso permanecia em seu rosto. Ela
usava seus vestidos e tênis, e aquelas sapatilhas coloridas demais, o cabelo de
qualquer jeito que quisesse e nunca mostrava o seu pior a ninguém.
Ela carregava um fardo que não merecia.
Enquanto eu... eu não tinha nada. Nada a perder, nada a ganhar. Por
que aquele tipo de merda não acontecia comigo? Por que eu era saudável e
forte e tinha dinheiro mesmo que não mexesse um dedo para isso?
Deus e as forças que as pessoas acreditavam eram superestimadas,
porque enquanto alguns sofriam, outros tinham tudo em ordem perfeita e
outros viviam para idolatrar essa fé maluca, descabida e ilusória.
Eu realmente não acreditava. Eu só desprezava Deus existindo ou
não, porque não era possível que alguém tão bom gostasse tanto de ver
alguém passar por tanta escuridão como ele parecia gostar de ver. Eu odiava a
vida, e o fato de ter ficado aqui quando não deveria estar nem respirando.
Então... por que Deus não me escolhia? Por que não eu?
Pior... por que ela?
Por que elas?
Estava acontecendo de novo.
Tudo outra maldita vez.
E como da última, eu só podia olhar enquanto tudo ia pelos ares.
Capítulo 26
"...eu abro os olhos e vejo que quem está se apaixonando aqui sou eu
De uma maneira diferente, eu quero mais
E agora eu lhe digo abertamente
Você possui meu coração, então não me machuque
Minha vida está mudando todos os dias
De todas as maneiras possíveis
E meus sonhos, nunca são exatamente como parecem
Porque você é um sonho para mim"
the cranberries, dreams

Eu havia dito sim para Cobain, para sua ajuda e seus argumentos.
Sabia que ele estava certo em todos os ângulos. Queria minha melhora para
que eu terminasse a biblioteca e eu queria melhorar. Então era isso.
Mari Louise queria ir junto, entrar e garantir que não havia nenhum
perigo para mim. Mas a alertei de que estava sendo paranoica, afinal, Cobain
nunca tinha representado nenhum risco para mim. Mesmo que por vezes
parecesse um louco e fosse ranzinza ao extremo, nunca me senti ameaçada
perto dele. Nunca houve aquele sentimento de dúvida.
“Será que ele faria algo?”
“E se ele fizer?”
Não, nunca. Apenas segurança e irritação. Sim, ele tinha o dom de
me tirar do sério, mas até aí, eu também o deixava impaciente diversas vezes.
Sendo assim, naquela manhã de domingo eu acordei cedo e fiz
minhas malas com a ajuda de Mali, enquanto Gabi olhava Cody na sala para
sermos rápidas. Eu não queria que Mari Louise fizesse tudo, então ela
separou primeiro as roupas de Cody, deixando em uma pilha que eu
alcançasse sem ver, e as guardei dobradas na mala que levaria para ele,
depois foram as minhas. Ela perguntou no mínimo cinquenta vezes se eu
tinha certeza, se não queria que fosse junto, que nós podíamos fazer dar certo
apenas nós em casa. Mas eu sabia a verdade e minha amiga também.
Por isso ela ligou para o telefone fixo que Cobain havia deixado e o
avisou de que eu estava pronta para ir. Ele subiu e pegou nossas malas sem
falar muito, como sempre, e desceu para nos deixar sozinhas. Gabi foi junto
com Cody também, para nos dar privacidade por alguns minutos.
Mari Louise me abraçou tão forte, tão apertado, que me fez recordar
da época em que Cody nasceu. Quando eu estava desesperada na sala de
parto e ela chegou, correndo em seus saltos e o vestido curto, o cabelo com o
brilho da maquiagem e a maquiagem borrada. Era por volta das quatro da
manhã, e eu sabia no momento que a vi que ela estava trabalhando na boate e
saiu apenas para ir ficar comigo.
E mesmo com todos a olhando torto por claramente deduzir o que ela
fazia, ela permaneceu ao meu lado, sorrindo e chorando comigo enquanto
Cody chegava ao mundo.
Eu me dei conta enquanto descíamos do nosso apartamento até o
térreo, de que desde que me conheceu, Mali abriu mão de parte da sua vida
para cuidar de mim.
Em várias conversas com Raiana, ela já havia confidenciado que
Mali era uma baladeira de primeira, vivia viajando e nunca parava em casa.
Que nem precisava pagar um aluguel, porque os homens com quem saia
faziam de tudo por ela. Eu me lembrava de ter ficado surpresa que ela parou
com tudo aquilo só porque eu e Cody estávamos lá e a perguntei, disse que
estava tudo bem continuar fazendo suas próprias coisas.
E as palavras dela nunca sairiam da minha mente.
“Eu saía para não ficar sozinha aqui. Um quarto do hotel mais caro
dessa cidade não impede as lágrimas que caem enquanto eu estou deitada
nas camas luxuosas. Mas ficar aqui comendo brigadeiro de panela com você
e Cody me faz esquecer que tenho motivos para chorar.”
De uma forma ou de outra, Mali e eu salvamos uma a outra.
Nós continuávamos fazendo isso dia após dia.
Quando chegamos no térreo e depois para fora, Mali me guiou até
que ouvi a porta de um carro sendo aberta.
— Pronta para ir?
Eu senti quando as mãos de Mali se foram e as grandes de Cobain
seguraram a minha, ajudando-me a entrar. Mas eu parei por um segundo.
— Onde está Cody?
— Em sua cadeirinha, com seu Buzz Lightyear bem ali atrás.
— Ele não tem uma cadeirinha e nem um Buzz Lightyear.
— Ele não tinha. Agora tem.
Eu engoli o caroço na garganta e segurei sua mão, finalmente
sentando no banco.
Queria olhar para trás e verificar seu rosto, se sorria, se estaria com
medo, assustado. Mas logo eu pude ouvi-lo.
Cody nunca teve uma cadeirinha. Foram poucas às vezes que andou
de carro, apenas quando nós pegamos táxi. E agora eu o ouvia batendo as
mãos e animado com o brinquedo, fazendo barulhos com a boca,
entusiasmado para fazer mais aquela grande descoberta.
Mais uma vez... graças a Cobain James.
Ouvi a porta do outro lado batendo, então Mali e Gabi me deram os
últimos abraços antes de fecharem a minha.
— Respire fundo, Danielle. Respire — ele murmurou com o carro
ainda parado. Me perguntei se podia ver como eu tremia, ou apenas supôs
que eu estava a ponto de começar a chorar, toda confusa, ali mesmo.
Mas engoli as palavras antes que começasse a tagarelar, e respirei,
mas foi pior. Porque só consegui sentir seu cheiro.

(..........)

— Vou segurar seu braço para ajudá-la a não tropeçar nas pedras.
— Tudo bem.
Eu segurava Cody no colo, e nisso, senti o leve toque da sua mão no
meu braço esquerdo. Ele estava próximo. Muito próximo. Próximo o
suficiente para que eu sentisse as pontas de seu cabelo passando pelo meu
ombro.
— Você quer que eu o leve?
— Não, tudo bem.
— Ele é pesado — argumentou.
— Eu estou acostumada.
— Certo. — Nós seguimos lentamente e em silêncio. Ele me guiava e
eu agradeci por Cody estar sonolento, porém tive que concordar sobre seu
peso.
Ainda mais agora que meu braço ainda tinha aquela fraqueza e minha
perna arrastava um pouco, nem perto de cem por cento recuperada.
— Danielle, eu posso levá-lo, você está abrindo e cerrando os
punhos.
Engolindo seco, eu parei e assenti, virando-me de lado e entregando
meu bebê.
— Obrigada.
— Nada para agradecer — resmungou.
Segundos depois, ouvi a chave na porta e tropecei para dentro sem
esperá-lo. Literalmente tropecei, mas seus dedos estavam segurando meu
cotovelo no mesmo segundo.
— Cuidado! — rosnou. Eu estremeci, encolhendo as mãos junto ao
meu corpo para evitar quebrar qualquer coisa, e esperei por ele. Logo ouvi
seu suspiro. — Venha, fique sentada no sofá com ele enquanto eu pego as
malas.
Eu fiz isso, apertando meu filho em meus braços e respirando
profundamente. Estava tudo tão silencioso e eu desejei acordar Cody para
que ele falasse, evitando aquela sensação de estar completamente sozinha.
A porta bateu e os passos soaram pelo corredor.
— Cobain? — perguntei, trêmula. Mesmo sabendo que era ele, foi
uma reação automática querer confirmar. Só me tranquilizei quando o ouvi
respondendo.
Se fosse qualquer outra pessoa, eu nunca poderia proteger Cody de
quem quer que fosse.
Aquelas ideias começaram a me assombrar no momento em que eu
percebi que não via nada e agora um monte dos mesmos pensamentos
rodeavam minha mente.
— Você parece cansada, então vamos apenas estabelecer algumas
coisas antes de ir para a cama um pouco.
— Tudo bem, só... pode chegar mais próximo? Eu odeio não saber
qual vai ser seu próximo passo.
Era verdade. Podia ouvi-lo, mas não sabia onde ele estava ou fazendo
o quê.
— E antes você sabia?
— Não, mas quando podia vê-lo era mais fácil. Apenas sente-se
perto, por favor.
Houve um momento de silêncio, então o sofá ao meu lado o
denunciou ali.
— Próximo o suficiente?
Eu assenti e me virei na direção dele.
— Certo, e agora?
— Eu trabalho em casa na maioria das vezes, então tudo o que tem
que fazer caso precise, é me gritar, embora a enfermeira vá estar sempre
perto.
— As escadas...
— Coloquei grade em todas elas e nas portas também. Mesmo que
ele abra a porta do seu quarto, por exemplo, embora eu não o veja alcançando
a maçaneta, ficará preso pela grade lá dentro. Tirei todas as coisas que
pudesse machucá-lo do alcance. Está tudo no alto agora.
Sentia meus olhos arregalarem a cada nova descoberta, e mesmo sem
vê-lo ou me ver, a surpresa estava estampada em meu rosto, eu sabia disso.
— Aqui no primeiro andar tem um carpete no chão da sala, corredor
e o quarto. Assim, quando ele quiser andar pela casa ou até cair, não irá se
machucar.
— Cobain...
— Se bem que, ele não vai cair.
— Bebês caem o tempo todo.
— Ele não vai.
Cerrei meus lábios e suspeitei que caso tentasse falar, as lágrimas
começariam a correr livres por meu rosto.
— Eu não acho bom que você saia, também. Se precisar sair ou de
qualquer coisa, me diga e eu vou cuidar disso. Para ficar aqui dentro, sei que
talvez você não goste, mas eu tomei a liberdade de lhe conseguir uma
bengala. Parece extremo vendo que logo sua visão voltará, mas para evitar
que caia ou tropece quando eu ou Solange não estivermos perto, vai ser muito
útil.
Não, não era extremo. Era exatamente o que eu precisava, e ele
estava ali dando sem eu nem precisar pedir.
Quanto mais aquele homem faria por mim?
Eu soltei um riso nervoso, tentando disfarçar a vontade de abraçá-lo e
gritar mil agradecimentos.
— Isso é um monte de ordens, e eu discutiria à tarde toda se não
estivesse morrendo de sono. Vou aproveitar que Cody dormiu e tirar um
cochilo. Mais alguma coisa para proibir, chefe?
Minha pergunta foi cheia de sarcasmo. A última coisa que queria era
que Cobain percebesse como me desestabilizou com sua prontidão para tudo
que se tratava de nossos cuidados. Mas ele me surpreendeu ao responder:
— Sim.
— E o que é?
— Não toque o piano.
Franzi a testa.
— Isso é algum trauma de infância? Tipo Cristian Grey?
— Quem?
— Cinquenta Tons de Cinza.
— Não faço ideia do que seja isso.
— É um filme baseado em uma trilogia incrível de uma autora
internacional.
— Não, nada a ver com isso. Haverá um trauma se você o tocar.
Estou proibindo pela segurança dos meus tímpanos.
Eu deveria estar ofendida, mas a maior gargalhada de choque
explodiu para fora.
— Eu não sou ruim!
— Não, é péssima.
— Mas... eu sempre achei que tocava bem!
— Não sei quem ou o que te fez pensar assim, mas eu juro que depois
de ouvi-la tocar eu desejei ser surdo.
Ouvia algo diferente em sua voz, como se ele estivesse brincando e ri
mais ainda. Tudo bem, eu sabia que não era exatamente boa com
instrumentos, meu talento estava concentrado todo na dança e isso estava
bem para mim. E era melhor ainda que eu não ligasse para a sinceridade
grosseira de Cobain, porque começar a viver com ele seria um longo tempo
aturando aquilo.
Ainda mais se eu fosse rir de cada maldita coisa que ele dissesse.
Seria pelo menos um pouco de humor nas horas vagas.
— Cobain, se vamos ficar aqui, então seremos como... amigos?
— Não.
— Então...
— Eu não sei a denominação para duas pessoas morando juntas e
uma criança no meio. Quer dizer, eu vou estar a dois andares de distância,
não é como se fôssemos nos ver toda hora.
— Ok — concordei após alguns segundos, com o lábio preso entre os
dentes e a cabeça girando mil voltas na nossa atual situação. — Colegas de
quarto, eu acho.
— Me faz lembrar da faculdade, quando eu dividi um apartamento
durante um ano com três caras.
— Você não podia ter o seu próprio?
Ele demorou a responder, até pensei que não fosse, mas enfim falou:
— Sim, podia. Mas eu queria ter a experiência real da coisa. Sentir na
pele o que era estar na faculdade, não só ir e passar por essa etapa sabendo
que se tudo desse errado eu tinha o nome da minha família para conseguir
algo depois.
Minhas sobrancelhas ergueram em surpresa e eu troquei o braço que
segurava o peso de Cody. Ele estava muito gordinho.
— Eu não teria imaginado isso.
Mais uma coisa que nos fazia diferentes. Quando eu tinha dinheiro e
um nome, nunca me importei de usá-los. Meus pais estavam sempre lá para
fazer o que eu queria, material e financeiramente falando. Enquanto Cobain
escolhia lutar suas próprias batalhas e seguia seu próprio caminho. Embora
minha curiosidade fosse enorme e quisesse enchê-lo de perguntas, eu sabia
por experiência própria que quando ele começava a ser muito questionado, já
se afastava.
Falar não era muito sua praia, falar de si mesmo pior ainda.
— Certo, então... chefe e funcionária vivendo sobre o mesmo teto?
— perguntei. — Não, espere. Chefe, funcionária e um bebê.
— Não vamos rotular, é apenas por um tempo.
Sua voz era baixa, e o reforço de que seria temporário caiu em meu
estômago causando um incômodo que eu não entendia. Mas mantive o
sorriso no rosto quando me ergui com dificuldade, ainda carregando Cody.
— Então... amigos não rotulados por tempo definido.
— Sem conversar sobre merdas profundas e sem se intrometer.
— Estranho, já que você é o único que sempre se intromete.
— Estamos empatados, já que você é aquela que gosta de falar de
merdas profundas.
Eu teria revirado os olhos para ele.
— Ah, e Cobain? Pare de falar “merda”, porque se essa for a próxima
palavra que meu filho aprender, vou tocar piano para você o resto das nossas
vidas.
Dei risada, porque era para ser uma piada, mas ele ficou
completamente silencioso e me acompanhou até meu quarto temporário,
apenas resmungando sobre a enfermeira que chegaria em breve. Eu não
entendi nada. Tateei a parede até chegar a cama, coloquei Cody nela e o
abracei deitando também.
Mas então, pensando um pouco, me toquei sobre o exato momento
em que ferrei a leveza das coisas.
Eu disse que faria algo pelo resto da vida, quando ele já havia
deixado claro que era temporário.
Capítulo 27
"...eu acho que estou caindo
Segurando em tudo que eu acho que é seguro
e eu estou tentando escapar
Eu gritei quando ouvi o trovão
Mas o que me restou foi um último suspiro
E com ele, me deixe dizer
Olhos tristes me seguem
Mas eu ainda acredito que tenha restado algo para mim
Então, por favor, venha ficar comigo
Porque eu ainda acredito que tenha algo para mim e para você"
creed, one last breath

Eu conheci a enfermeira, Solange, um pouco mais tarde naquele


mesmo dia.
Cody ainda dormia quando ela bateu à porta, se apresentou e me
disse que ajudaria a dar banho nele, assim eu poderia tomar o meu depois.
Pedi que ela só me acompanhasse e ficasse de olho enquanto eu fazia aquilo.
Mari Louise fez um furo na tampa do shampoo para eu diferenciar do
condicionador, assim pelo menos aquela tarefa ainda podia realizar.
Solange o enxugou e colocou sua roupa, e durante o processo eu
fiquei em pé ao lado, segurando sua mão. Ele não costumava estranhar
ninguém, mas não era por isso que eu o deixaria sozinho com alguém que não
conhecíamos.
Ela o levou pouco depois, e tomei o banho mais rápido de toda a
vida, a chamando da porta para me buscar.
Cody brincou no quarto, me deixando aliviada por se distrair tão
facilmente.
Solange não era muito de conversar. Falava pouco, inclusive. E cada
vez que estava por perto, se movimentando em silêncio, meu coração falhava
várias batidas. Quando nossa refeição ficou pronta, eu disfarçadamente dei
uma colherada na dele primeiro. Sabia que estava sendo paranoica, mas se
tratando do meu filho, eu me passava por louca sem nenhum problema. Era
uma droga não poder cozinhar para o meu bebê, e a apreensão de não ter
ninguém conhecido por perto para acompanhar se tudo estava bem.
Quando Solange finalmente terminou de me auxiliar e nos levou de
volta ao quarto, pedi que deixasse o abajur ligado e encostei na cabeceira,
esperando que Cody cansasse dos brinquedos.
Meu telefone começou a vibrar e Cody se animou, o sono longe de
vista. Mari Louise tinha um daqueles aparelhos antigos com teclado e me deu
para que conseguisse fazer chamadas por discagem rápida e atendê-la
também.
— Eu me perguntei quanto tempo demoraria até que você sentisse
nossa falta.
— Meu Deus! Senti assim que o carro deu partida. Não, espera! Senti
enquanto fazíamos as malas. Você já se arrependeu? Já quer voltar para casa?
Posso ir buscá-la agora mesmo.
Foi impossível não rir.
— Não, Mali. Está tudo bem. Quer dizer, dentro da situação toda.
— E a enfermeira? Não diga que ela é uma daquelas chatas e
rabugentas.
— Não sei, na verdade ela não fala muito, então sem opiniões
formadas por enquanto.
— Ela é como o próprio chefe? Deus, você vai voltar para casa muda
ou falando mais do que o normal para compensar todo esse silêncio.
— Não é como se importasse. Na maior parte do tempo seremos só
eu e nosso garotinho.
— Nem me fale! Eu já estou louca de saudades dele. Será que posso
ir visitar amanhã?
— Você se mudaria pra cá se pudesse, Mali.
— Com toda a certeza!
— Eu preciso ver como vai ser tudo aqui, por enquanto. Cobain está
estranhamente calmo, mas ele é... difícil. Então quero falar com ele primeiro.
Você sabe... ver meus espaços e os limites dele e tudo mais.
— Ah, dane-se esse cara! Ele praticamente arrastou você até aí.
— Não exagera, Mari Louise. Ele me deu a opção, só que ela era
infinitamente melhor do que qualquer uma que eu ou você tínhamos. Eu vim
por escolha própria.
Um pouco pressionada por mim mesma, mas era verdade. Cobain não
me amarrou até às portas da casa, ele ofereceu e eu aceitei.
— Bem, sim, tudo bem — concordou, frustrada. — Mas deixe claro
que eu vou visitar e ele que não ouse reclamar!
Sorrindo, eu concordei. Falamos por mais alguns minutos até eu
começar a bocejar. Nos despedimos e depois de desligar, Cody começou a se
aninhar mais perto, poucos minutos depois do silêncio absoluto e o carinho
que meus dedos faziam em seus cabelos, ele dormiu. Sua respiração abrandou
o silêncio.
Coloquei a mão em seu peito, sentindo-o subir e descer. Eu não podia
ver, mas podia sentir.
Suspirei, bocejando, e nos ajeitei melhor na cama. Disse a mim
mesma que a relutância em dormir era para vigiar o sono do meu filho, mas
sabia que não tinha apenas a ver com isso. Eu esperava por ele. Talvez um
boa-noite, ou perguntar como estávamos. Mas Cody começou a ronronar
baixinho, dormindo pesadamente, e não aguentei continuar mantendo os
olhos abertos.
Cobain disse que não nos veríamos muito, mesmo estando na mesma
casa, e pude provar que era verdade. Ele não apareceu em nenhum momento
naquela noite.
E aquela sensação de segurança que eu sentia apenas com sua
presença, não chegou.
Foi a primeira vez que eu o quis por perto, mesmo sabendo que
deveria ficar o mais longe possível.

(..........)

Quando acordei, os pássaros cantavam.


Consegui ouvir porque o silêncio ainda era esmagador.
A próxima coisa que percebi, ainda com os pássaros cantando do lado
de fora, foi que meus braços procuraram por toda a cama, mas meu filho não
estava ali.
Então eu gritei.
Meu coração batia tão rápido que por um momento esqueci minha
incapacidade de ver, descendo às cegas da cama, tropeçando e caindo no
chão. Levantei-me tentando não esbarrar em nada, procurando pela bengala
por onde alcançava, mas não consegui.
Os pássaros não cantavam mais, ou apenas eu não estava ouvindo, de
tão alto que se tornaram meus batimentos cardíacos.
Finalmente encontrei a porta, girando a maçaneta redonda, e saí,
encostada nas paredes para ir...
Parei.
Bem ali, no meio do corredor.
Para ir aonde?
— Cobain — chamei, mas se minha voz fosse realmente tão baixa
quanto eu imaginei que soava, ele nunca ouviria.
Tentei outra vez. E outra, e mais uma.
O desespero começou a me tomar por completo. Sozinha, dentro
daquela casa enorme, sem o meu filho. Sem Cobain. Sem segurança.
“Fuja e se esconda, Danielle. Mas eu vou encontrá-la.”
Um soluço rasgou minha garganta e me encolhi quando ouvi alguém
se aproximando pelo corredor.
Meu Deus.
Meu Deus.
Meu Deus.
— Danielle?
Respirei.
— Cobain?
— O que está acontecendo?
— Cody! Cobain, onde... o-onde ele está?
— Danielle, acalme-se, está bem?
— Não! O meu filho, onde ele está?!
Ele me levou até um sofá e senti suas grandes mãos em meu rosto,
espalhando as lágrimas.
— Pare de chorar, escute-me.
— Não — sussurrei, balançando a cabeça fora de seu aperto. — Por
favor, apenas o traga para mim! Ele o levou, ele o pegou. Por favor!
Por um momento ele não se moveu, então se afastou, seus passos
pesados no chão e pouco depois o ouvi. Ele gritava.
— Solange! Solange!
Solange?
— Sim, senhor?
Ao ouvir a terceira voz na sala, minha respiração começou a voltar ao
normal, minhas mãos acalmaram em meu colo e comecei a raciocinar
novamente.
Solange, a enfermeira.
Droga.
— Ela não vê nada! Como no inferno se sentiria se acordasse no
escuro e seu filho não estivesse onde o deixou?
Cobain não gritava, mas eu podia sentir sua raiva. O tom de voz tão
duro como nas nossas primeiras conversas.
Sinto muito, Solange.
Eu queria dizer a ela. Queria me desculpar e pedir que ele não a
repreendesse, mas permaneci ali, me dando conta de que eu simplesmente
surtei.
— Eu sinto muito, senhor James. Não pensei que faria mal!
— Espere no meu escritório.
— Dona Danielle, eu...
— Tudo bem, Solange. Faça o que eu disse, por favor.
A ouvi indo embora e mesmo que minha razão, pelo menos uma
pequena parte dela, me dissesse que eu podia estar exagerando, não consegui
falar com ela. Queria dizer que tudo bem, que entendia sobre estar fazendo
seu trabalho, mas não falei. Não disse uma palavra até que Cobain colocou
meu filho em meu colo.
Um suspiro trêmulo me escapou quando as lágrimas voltaram a cair.
Totalmente consciente de tudo ao meu redor. Meu mundo estava em minhas
mãos novamente.
Ele estava bem.
Eu estava bem.
Estava tudo bem.
Assustei-me quando as mãos calejadas dele seguraram a minha
levemente. O súbito frio na barriga combinando com as lágrimas, o
desespero, o pânico e a falta de visão.
Deus, eu era uma maldita bagunça e Cobain podia ver tudo
claramente.
— Por que ficou tão assustada? Foi por causa do escuro?
Beliscando meu lábio inferior, debati comigo mesma sobre como
explicar a ele medos que nem eu entendia. Era irracional, passado e estava
longe de mim e de Cody. Cobain e ninguém poderia entender o pânico
absoluto que estar longe do meu filho me causava.
Eu não o protegi uma vez, mas aquilo não aconteceria nunca mais.
— Fui boba — sussurrei. — Desculpe-me toda essa cena.
— Não foi uma cena, Danielle. Mães temem por seus filhos, se não
ficasse assustada eu não entenderia.
— Mas eu chorei e gritei e...
— E tudo bem. Tudo bem chorar e gritar. É humano.
— É desnecessário.
— É humano — reforçou. — Significa que ainda sente, que ainda se
importa.
— Eu não sei o que houve. Acordei e ele não estava lá. Eu deveria ter
deduzido que estaria com Solange, mas... eu não sei, não pensei em nada na
hora.
A expressão em meu rosto deve ter dito algo sem eu precisar falar
mais. Porque ele soltou minha mão esquerda, mantendo apenas a direita
firme.
— Você cuidou dele sozinha durante muito tempo, eu entendo que
esteja assustada com essa situação nova. Mas agora, preciso que acredite em
mim quando digo que está segura aqui dentro.
— Eu acredito.
Ele não fazia ideia do quanto aquelas duas palavras eram verdadeiras.
— Então vou dividir algo com você, está bem?
— Sim — sussurrei.
— Eu odeio estradas. Dirigir por muito tempo e estar dentro de um
carro... isso me apavora.
— Mesmo?
— Sim. Então, quando eu sinto que não consigo mais me manter
dentro do carro, eu paro e tento sentir o meu coração.
— Como?
Ele pressionou dois dedos no meu punho.
— Aqui. — Então sua outra mão de repente estava em meu pescoço.
Ele não segurou, não apertou e nem se manteve por muito tempo. Apenas o
suficiente para apertar levemente os mesmos dedos ali. — E aqui.
Eu respirei profundamente, desejando mais do que qualquer coisa que
pudesse ver seus olhos naquele exato momento.
— Ok.
— Enquanto você busca seus batimentos, vai esquecer o pânico e se
lembrará que está viva.
— E se não ajudar?
— Então você grita. Grite e não peça desculpas por isso. Comece a
pedir desculpas no dia em que não gritar e nem chorar mais. Será um sinal de
que até mesmo as emoções mais simples estão deixando você. Até que se
torne incapaz de sentir qualquer coisa.
Engoli em seco e fechei os olhos com força, encostando a bochecha
na cabeça de Cody.
Sua mãozinha segurando minha camiseta.
Minha mão direita sobre seu peito.
Ele ainda respirava. Ele ainda estava comigo.
E eu ainda sentia.
Capítulo 28
"...não consigo suportar a dor
Mas quando você me segurar em seus braços
Vou cantar mais uma vez
Leve outro pedaço do meu coração agora
Você sabe que pode"
janis joplin, piece of my heart

ü ELE NÃO É CIUMENTO

— Bom dia.
Minhas costas tencionaram ao ouvir Cobain, e logo depois, um banco
arrastou pela cozinha.
— Bom dia — respondi sem muita animação, ainda um pouco
envergonhada pelos acontecimentos da tarde anterior.
Cobain se manteve em silêncio, mas eu podia ouvi-lo se mexendo
pela cozinha e depois comendo de frente para nós. Cody estava ocupado com
seu cereal, vez ou outra ele ria e eu me perguntei se Cobain se aproveitava
que eu não podia ver para fazer gracinhas. Não parei para pensar sobre os
prós e contras de nós três convivendo juntos, e a proximidade que ele
começaria a criar com Cody.
— Não, garoto. Eu não quero. Coma sua comida.
Cody parou de bater sua colher e voltou a resmungar e comer.
Solange havia nos ajudado a preparar o café da manhã, na verdade
ela praticamente fez tudo. Eu acreditava que ela ainda estava um pouco
chocada tanto por minha reação, quanto pela de seu chefe. Me desculpei e
disse a ela que não estava acostumada a não acordar com meu filho ao meu
lado, ela garantiu que entendia, mas eu ainda me senti uma doida prestes a
pirar novamente a qualquer outro momento.
— O que pretende fazer hoje? — perguntou, fazendo-me bufar.
— Bem, eu não sei. Preciso checar minha agenda movimentada
primeiro.
— Sua mãe está bem-humorada nessa manhã, garoto. Talvez ela não
se importe se eu me sentar do seu lado e alimentá-lo, já que tem mais cereal
na bancada da sua cadeirinha do que em sua boca.
Céus.
— Não me importo, ele sempre faz uma bagunça. Geralmente eu
posso olhar e controlar, mas bem... você sabe. Hoje isso não é possível.
— Sem problemas, farei isso.
Uma cadeira arrastou, então Cody bateu palmas. Eu sorri.
— É terrível não saber se ele está se divertindo ou pedindo socorro.
— Ora, não me ofenda, Danielle. Esse cara está sorrindo como se eu
fosse uma árvore de Natal exclusivamente dele.
— Isso seria um bom motivo para ele sorrir, já que nunca viu uma.
— Como?
— Mari Louise e eu não comemoramos o Natal. — Dei de ombros.
— Quer dizer, nada contra. Só ficamos nós três juntos e jantamos. É um dia
comum como qualquer outro.
— Sem enfeites, sem árvore e os presentes?
Sua voz tinha um tom desacreditado.
— Nops, nada disso. Você comemora?
— Estou com a minha família quando isso acontece, então
basicamente toda a tradição está presente.
Eu assenti e tateei a bancada atrás do copo, terminando meu suco.
Cobain não parecia bem alguém que comemoraria o Natal, mas ele sempre
tinha uma surpresa sobre si mesmo que me chocava, aquela foi só mais uma.
O Natal, mesmo em Minas Gerais, sempre foi algo bem distante.
Meus pais faziam um jantar em casa, que era preenchido por assuntos de
negócios e convidados de alto padrão. Todos chatos, tediosos e com toda a
certeza nunca compareciam para comemorar realmente a data. Eu invejava as
ceias em família, nas quais tinha realmente o amor que aquela festividade
pedia. O Natal perdeu o brilho, principalmente com a memória do último em
que estive na minha cidade.
Eu queria que Cody conhecesse o verdadeiro sentido do Natal, mas
temia nunca poder proporcionar um incrível para ele. Se pudesse, queria que
ficasse para sempre em sua memória. Que sempre quando pensasse no dia, o
incluísse em sua lista de dias preferidos.
— Você não precisa trabalhar? — perguntei, afim de mudar de
assunto.
— Eu trabalho aqui.
— Mamama!
— O que foi, bebê? Mama está aqui. O que houve, Cobain?
— Nada. Ele só está sendo um espertinho. Calma, amigo. Não
queremos manchar sua honra derrubando leite por toda a roupa, não é?
— Da-da-da-da-da.
Meu coração pulou um pouco mais rápido e eu decidi que sim,
definitivamente aquele homem ficando próximo de Cody era um problema.
Não que eu fosse evitar, porque meu filho merecia ser coberto de pessoas que
o amassem, mas precisava me proteger de focar demais em como aquele
grosseirão se tornava um fofo perto do meu bebê. Cobain estava me dando
um espaço, onde o máximo que cresceria seria uma possível amizade. Eu
tinha que entender isso e continuar tirando dos pensamentos qualquer outra
esperança.
Perder outra pessoa próxima não era meu objetivo.
— Então, você trabalha aqui. Como?
— Hum, sim. No escritório.
Compondo?
Cuidando da Conelly?
Como você cuida de uma companhia de dança gigante à distância?
O que te fez comprar a companhia?
Você dança?
Todas as questões me passaram pela cabeça. Queria perguntar, mas
tinha a sensação de que com Cobain era necessário ir devagar. Bombardeá-lo
de perguntas sempre o fazia se afastar, e no momento, eu queria que se
sentisse confortável de falar comigo, e não pressionado.
— Legal. Tipo um CEO, hein? — brinquei, mas só quando ouvi
minhas palavras percebi como pareci sem noção.
— Algo assim — resmungou. — Seu fisioterapeuta começa hoje.
A mudança bruta de assunto quase me fez rir. Aquilo era Cobain
James decidindo o rumo de nossas conversas. Mas eu não podia reclamar, já
que em comparação a antes, ele estava milagrosamente muito mais paciente.
Se tratando de Cobain, era um monte de paciência.
— Sério?
— Sim. Ele esteve com a última seleção feminina de vôlei, então
acredito que vai dar tudo certo.
— O que disse?
— Ele é bem profissional, sabe o que está fazendo. Vai ficar tudo
bem.
— Não duvido disso, só não estou raciocinando quem você contratou
para me ajudar com exercícios em casa.
— Não é nada demais. Ele é um conhecido.
Jesus.
O fisioterapeuta da seleção de vôlei?! Cobain definitivamente não
entrava em campo para brincar.
— É demais, sim!
— Você vai reclamar sobre isso?
— Não vim para ser um incômodo, Cobain. Você já fez tanto e...
Ele suspirou.
— Apenas deixe o cara fazer o serviço dele.
— Mas...
— Sem “mas”. Cody precisa da mãe firme e forte. Eu não vou poupar
nada para que esse garoto a tenha.
Meus olhos molharam com lágrimas.
Sentados na mesa daquela casa enorme, Cobain James me fez
suspirar.
Ele nem percebeu, mas naquele momento um pedaço do meu coração
foi arrancado.
E estava bem ali, nas mãos dele.

(..........)

Igor Telles.
Eu olhava para ele e me lembrava de todas às vezes que assisti aos
jogos.
Deus, eu queria pedir um autógrafo, uma foto e até mesmo o número
de algumas das jogadoras que arrasaram meu coração me fazendo torcer.
Mas me controlei, e logo depois de Cobain ter nos apresentado e
começarmos a sessão, meu coração de fã se acalmou um pouco. Eu já tinha
passado por duas fisioterapeutas, então o processo não era estranho para mim.
Eu já sabia a maioria das perguntas que Igor faria, tinha as respostas na ponta
da língua e também já imaginava quais exercícios nós faríamos. O que me
surpreendeu, na verdade, foi a forma como ele trabalhou.
Para mim era difícil confiar, principalmente sem a visão. Não saber o
que ele estava fazendo e qual seu próximo passo e confiar que quando ficasse
sozinha com ele, seria totalmente profissional.
Minhas duas outras fisioterapeutas foram éticas, responsáveis e
profissionais. Tinham o toque de sensibilidade para lidar comigo, mas talvez
pelo desgaste do trabalho e todos os pacientes que vieram antes, e que ainda
viriam depois de mim, a relação não crescia além do esperado.
Mas Igor foi meio surreal. Desde o primeiro momento me fez sentir
confortável. Ele deu um boa-tarde e fez uma piada que apenas eu ri, e quando
ficamos apenas nós dois me confessou que Cobain era sempre mal-
humorado.
Nós começamos com os exercícios no chão, com um daqueles
colchonetes. Primeiro, Igor ajudou a levantar uma perna e um braço, testando
as flexões e a amplitude dos movimentos, fazendo pausas de alguns segundos
entre os lados do meu corpo. Eu percebia que meu movimento direito era
quase completo, enquanto o esquerdo estava comprometido. Em diversas
partes da sessão, tive a mesma impressão e ele também.
O segundo foi a fita nos calcanhares. Ele segurava meus braços na
frente, e eu esticava uma perna, depois a outra, tendo as mesmas dificuldades
de quando deitada.
Mal chegamos ao terceiro e eu já estava cansada.
— Vamos trabalhar sua coordenação motora, Dani. Posso chamá-la
assim?
— Claro.
— Ótimo, vamos lá. Quero ver se consegue colocar o calcanhar
direito no joelho esquerdo.
Uma coisa tão absurdamente simples levou várias tentativas.
Eu me desequilibrava e voltava o pé no chão, e tremendo, depois de
vários minutos consegui alcançar a meta. Porém meu pé não permaneceu no
alto por muito tempo. Diferente de quando fui colocar o calcanhar esquerdo
no joelho direito. O máximo que meu pé alcançou foi a canela.
— Certo, vamos trabalhar seu lado esquerdo em breve. Criaremos
uma rotina, ok? Será intensa, mas vamos respeitar todos os limites do seu
corpo em busca da recuperação.
Eu não respondi. Era desanimador não conseguir fazer algo tão fácil.
— Agora abra seus braços. Em linha reta, dobre o cotovelo e leve o
dedo indicador até a ponta do nariz.
Aos abrir os braços, vacilei para o lado, por conta da falta de
equilíbrio e Igor me manteve firme outra vez.
Braço direito, ok.
Braço esquerdo, abaixando e levantando, totalmente instável para
chegar até o nariz. O braço caía como uma geleia impossibilitada de ficar
firme e só consegui tocar o nariz quando Igor segurou meu antebraço e
ajudou.
— Vamos testar seu desequilíbrio estático. — Ele caminhou alguns
passos comigo. — Bem aqui. Agora estique os braços para a frente e fique
parada.
— Eu vou cair.
— Estou bem aqui, não se preocupe.
Eu fiz como pediu e balancei em meus pés menos de dez segundos
depois.
— Certo, agora dinâmico. Estique os braços e tente caminhar, estou
bem aqui.
Eu avancei um passo à frente e desequilibrei para o lado. Igor me
segurou.
— Calma, Dani. Vamos devagar, passos lentos. Um pé depois do
outro.
Dei dois passos antes de sair da linha outra vez.
— Vamos fazer isso quando sua visão voltar e ver o que acontece.
— Você acha que ela volta?
Ele segurou meu braço e andamos antes dos meus joelhos encostarem
em algum lugar.
— É uma cadeira, sente-se.
— Acabamos?
— Apenas mais dois e sim, por hoje acabamos.
— Ok. Igor, e minha visão, o que você acha?
— Se há uma coisa que sabemos sobre a esclerose, é que não
sabemos nada. Um sim ou um não, não depende de nós, apenas dela. Não
existe nenhuma certeza. Mas é claro que devemos torcer e esperar pela
melhora. Vamos fazer o tratamento como se deve, e acreditar. Mais do que eu
ou Cobain acreditando em sua recuperação, você tem que crer.
Eu suspirei, sabia que na questão de não existir certezas, ele estava
certo.
— Ok.
— Agora, aqui. Diga-me caso sinta algo.
— Sinto algo na canela.
— Qual?
— Na direita.
— Certo, e agora?
— Não, nada.
— Passei um algodão pela direita, depois na esquerda. Na esquerda
você não sentiu.
— O que é isso?
— Vamos ver como está sua sensibilidade. Sente algo?
—Sim, hum, bem leve na esquerda.
— É uma caneta. E agora?
— Sinto mais na direita agora.
— Muito bem.
O ouvi mexendo em alguma coisa e recostei na cadeira.
— Se eu disser que desisto, você me apoia a parar?
— Te apoio a tomar uma água e termos alguns minutos de descanso.
Eu gemi.
— Meu Deus... eu sinto que vou morrer aqui mesmo, nesse momento.
Ele riu.
— Eu sinto que vou morrer quando exijo demais do meu corpo,
também, mas sei que é só aquele sentimento que quer me derrubar. É
psicológico.
— Você é fisioterapeuta e essa foi a coisa mais contraditória que
disse. Você não deveria me incentivar a me exercitar o dia todo?
— O corpo tem 206 ossos, 650 músculos e mais de 50 bilhões de
células. Levantar tudo isso da cama de uma só vez é complicado.
Minha risada o fez rir mais ainda.
— Péssima hora para piadas da profissão.
— Eu sei. Mas vi essa passando pelo Facebook ontem e não via a
hora de encaixá-la em alguma conversa.
Quando meu riso acalmou, ele segurou minhas costas enquanto eu
segurei seus ombros e me ajudou a ficar de pé, levando-me para o sofá.
— Você foi muito bem, Danielle. Estou impressionado.
Eu bufei.
— Não se sinta obrigado a ficar me dizendo essas coisas. Acredite
em mim, já aceitei que a condenação chegou para mim.
Fui surpreendida quando suas mãos seguraram as minhas, e a voz
dele se tornou mais leve.
— Você é uma paciente, ok. Mas precisa compreender que a doença
não é o centro da sua vida. Tem seu emprego, seus amigos, seu filho e uma
vida inteira pela frente. Você é maior que a EM. Ter fé nisso é fundamental
para que o tratamento dê resultado.
Eu funguei, sensibilizada com suas palavras, e assenti.
— Obrigada.
— Acho que já terminaram por hoje. — Pulei no lugar ao ouvir a voz
de Cobain e Igor soltou minhas mãos, se afastando, enquanto outros passos
ficaram mais próximos. De Cobain.
— Obrigada, Telles. Vou conversar com Danielle e ligo para você.
Vamos ao meu escritório acertar os detalhes de hoje.
— Não se preocupe, James. A de hoje é por minha conta. Até mais,
amigo. E Dani... fique bem. Lembre-se do que eu disse.
Eu sorri.
— Vou me lembrar. Até mais.
Depois de ouvi-lo ir para longe, abri a boca para agradecer, mas
Cobain falou primeiro.
— O que você vai lembrar?
— De ter esperança — sussurrei. — De... começar a acreditar.
Ele não disse nada por vários minutos.
— Cobain? — Nenhuma resposta. — Cobain?
Suspirei, balançando a cabeça ao perceber que ele deve ter saído
enquanto eu divagava, sem se dar ao trabalho de me responder.
Mas logo o sorriso voltou aos meus lábios novamente.
Grata por perceber que não, minha doença não era o centro da minha vida.
Capítulo 29
"...me pergunto como podemos sobreviver a isso
Mas se no final estiver com você
Eu aceitarei a chance, vou correr o risco
Ainda que machuque meu coração
Estarei bem aqui esperando por você"
richard marx, right here waiting

ü ELE ODEIA TEATROS

Eu sentei sob o sol depois de falar com Mari Louise no telefone.


Respirei ar puro.
Absorvi o silêncio.
Apreciei a paz.
Solange e eu levamos Cody na escola, e ela me acompanhou
enquanto eu tomava um banho e almoçava, depois me deixou sozinha no
jardim da casa. Eu ainda não tinha ouvido de Cobain desde que acordei. As
formigas já tinham mordido meus pés, meu suco já tinha ficado quente depois
da minha demora em beber, e o relógio continuava girando, enquanto eu
permanecia sentada esperando meu filho voltar.
Eu era uma pessoa agitada. Ficar muito tempo parada não funcionava
para mim, mas me deu tempo para refletir.
Quando a vida está seguindo rumos que você planeja e espera, você
está sempre tão concentrado em suas próprias batalhas e vitórias, que quando
a derrota chega, você se pergunta como não a pressentiu. E
consequentemente, percebe que outras pessoas estão em situações ferradas,
também, mas você sempre esteve tão envolvido em si mesmo que nunca
percebeu. Eu me perguntava, sentada no meio do jardim, como seria para
uma pessoa que não enxergava a vida toda. Tentei me lembrar de quantas
vezes passei por um deficiente visual e não me aproximei para ajudar, ou um
cadeirante querendo atravessar uma avenida lotada e nunca empurrei.
A vida tem uma forma irônica de mostrar todos os lados da moeda.
Quando eu tinha dinheiro e vivia com todo o conforto que uma conta
bancária recheada podia proporcionar, nunca tinha pensado sobre nada além
de mim, meus sonhos e meu próprio caminho. Eu não pensava sobre as
prostitutas das esquinas, sobre a saúde pública, sobre mães solteiras e muito
menos sobre as dificuldades de encontrar trabalho.
Mas é muito difícil fazer essa reflexão quando não está naquele lugar.
Eu era um exemplo disso. Precisei perder tudo e ser colocada no meio do
tabuleiro para começar a jogar.
Talvez no fim, não importasse muito se você é rico ou pobre. Em
algum momento passará por algo que te faz ver o outro lado, aquele que você
nunca se preocupou em prestar atenção.
— Danielle? O que faz aí?
Virei a cabeça em direção a voz de Cobain e levantei a mão.
— Só pegando um sol.
— Eu pensei que o calor te fazia mal.
— Me deixa cansada — respondi, surpresa. — Como sabe disso?
— Andei lendo um pouco.
Não tentei esconder meu sorriso ao ouvir aquilo.
— Tentando se preparar para o que pode vir pela frente?
— Acredite em mim, eu tenho preparação para qualquer coisa que
possa vir.
— Se tratando do meu estado, talvez não.
— Seu “estado” não é o pior que já vi, não se preocupe com isso. —
Ele bufou.
Ouvi seus passos ao pisar em algumas folhas secas, e quando ficou
próximo, senti um tecido jeans encostar em minha perna.
— Fazia tempos que eu não me sentava nesse jardim.
Sim, Cobain James sentou ao meu lado, numa tarde em seu jardim.
— Bem, você precisa aproveitar o que tem. Esse lugar é incrível.
Ele ficou em silêncio por alguns minutos. Me perguntei o que estava
pensando, para onde estava olhando.
Sobre quem ele era.
Quem se tornava quando ficava em silêncio.
— Não, não é incrível. Mas já foi.
Eu percebi que começava a compreender alguns pontos de Cobain,
pelo simples fato de ter segurado minha língua e não perguntei o porquê. Por
que não era mais incrível?
Sua voz baixa, quase um sussurro quando confessou isso, me fez
perceber que era um assunto delicado. Perguntar a ele como uma curiosa o
que tinha acontecido, seria como se ele perguntasse algo sobre o meu
passado.
Existem coisas que só deveriam ser ditas quando a pessoa estivesse
pronta para dizer, não por sentir que deve algo. Era sobre confiança.
— Então, Cobain James. — Cutuquei seu braço com o cotovelo. —
Você deveria dar um jeito. Não só no jardim, mas naquele portão e na frente
da casa também. As crianças que passam na frente devem pensar que é mal-
assombrada.
— Não exagere.
— É verdade. Quando eu tinha treze anos, sempre que estava
voltando da escola de ballet na minha cidade, passava com minha babá e uma
amiguinha que era minha vizinha e estudava comigo também, por uma casa
muito assustadora. Quer dizer... não seria assustadora hoje com a minha
idade, mas com certeza as crianças que a veem acham horripilante.
— Uma mulher adulta com medo de uma casa. Deveria se
envergonhar, dona Danielle.
Eu dei risada.
— Eu não tinha tanto medo assim. Ela era de uma cor amarela bem
clara — expliquei, com a mão esticada à frente, como se pudesse desenhar e
ele ver a imagem — e tinham alguns detalhes de azul turquesa encantadores.
— Amarelo e azul? Uma combinação e tanto.
— Definitivamente era incrível! — concordei, cheia de animação. —
Ela tinha algumas madeiras faltando e aqueles matos na frente, que
tampavam alguns vasinhos de flores nas janelas do primeiro andar. E a
porta... a porta era sem palavras. Parecia que tinham galhos sobre ela, como
se fosse um tronco de árvore amarrado, entende?
— Não.
— Então! Exatamente assim! Mas mesmo velha, eu tenho certeza que
um dia foi uma linda casa. Se algum dia eu pudesse comprá-la, não pensaria
duas vezes. Mesmo que nunca tivesse dinheiro para reformar, ela é incrível.
Teria até uma caixa de correio com a mão de Cody pintada de tinta, como em
Up, altas aventuras.
— O que é isso?
— Sempre esqueço que você vive em outro mundo. É um filme, com
certeza uma das melhores animações que já existiu no mundo!
Começou baixo, mas de repente Cobain estava rindo ao meu lado. Eu
parei de falar e virei para ele. Queria tanto ver aquela risada acontecendo.
— Ah, Danielle... mais de vinte anos, uma criança para criar e ainda
sonha com uma casa inspirada em desenhos e lembranças da infância.
— Não zombe de mim, seu grosseirão!
— Ok. Parece uma casa encantadora.
Mordi o lábio e assenti.
— Será. Cody vai amá-la também.
— Isso não te machuca? Pensar no passado e nas lembranças antigas?
Querendo misturar uma casa da sua infância ao futuro.
— Não. — Minha resposta foi sincera. — Acho que quando você
lembra de antes, isso impede que se perca, sabe? Se todos os obstáculos da
vida me fizessem bloquear lembranças do passado. Eu perderia uma parte de
mim.
— Esquecer que o ballet foi uma parte de você não seria bom?
Esquecer o que te machuca faz com que a dor vá embora.
— Não — sussurrei. — Isso me torna completa. Com as dores, as
lembranças e tudo mais.
Seus pés arrastaram após alguns minutos de silêncio e ele se
levantou.
— Vamos a um lugar comigo. — Suas mãos seguraram as minhas, e
eu sorri.
— Onde?
— Pare de ser curiosa.
Rindo, o deixei me ajudar a levantar e o segui para fora.
Por todo o caminho até o carro, Cobain me guiou, segurando minha
mão.

(..........)

— Certo — comentei —, sinto ar-condicionado.


— Não brinca, Sherlock?! Isso é porque temos ar-condicionado aqui
dentro.
— E aqui dentro é exatamente onde?
— Você sabe que se parar de falar e esperar até que eu chegue lá,
tudo seria mais fácil? — resmungou.
— Mas seria sem graça, porque eu perderia a chance de deixá-lo
irritadinho.
Ele rosnou.
— Já disse que não fico irritadinho.
Segurando o riso, ouvi quando um elevador chegou e entramos.
Tocava uma música clássica que não reconheci.
— O que está tocando?
— Um medley de Piratas do Caribe, pela Akademia Filmu i
Telewizji.
— Ah, sim... agora reconheço. Isso é demais!
— Sim. Uma das melhores que ousaram fazer um repertório dos
filmes. Já foi a algum concerto?
— O último foi aos quinze. E você? Deve ir a muitos.
O elevador apitou e Cobain segurou meu antebraço enquanto
caminhamos para fora.
— Costumava ir. As coisas vão ficar um pouco agitadas agora.
Não entendi de início, mas o ouvi abrindo uma porta, então vozes e
música de fundo, risadas e gritos, soaram no ar com um eco.
— Aqui. — Pegou minha mão direita e colocou em seu ombro. —
Vamos descer uma rampa. Se segura, eu vou devagar.
— Ok.
As vozes foram acalmando até que apenas uma falava e depois outras
respondiam.
— Pararam de falar por nossa causa? Isso é uma festa?
Cobain me ajudou a sentar, e fui rodeada por uma poltrona
confortável.
— Eu administro a maior companhia de ballet da França.
— Sei disso. Conelly.
— Sim. — O ouvi respirando fundo, antes de voltar a falar. —Você
não pode ver, mas nesse momento nós estamos sentados na primeira fila do
Teatro onde os bailarinos têm ensaiado há semanas. Eles vão se apresentar
em breve e eu precisava acompanhar pelo menos um ensaio.
Meu coração pulou no peito e meus olhos encheram de lágrimas.
— Cobain —sussurrei.
— Eu prometo que quando você puder ver outra vez, vai assistir ao
melhor espetáculo de ballet que estiver em exibição.
— Aqui?
— Em qualquer lugar do mundo. — Ele nem me deu tempo de
responder. — Desculpe, elas estão falando inglês. Vou traduzir para você.
— Não se preocupe. Eu entendo.
— Sabe falar inglês?
— Sim. Espanhol e um pouco de italiano, também. Quando você
sonha em viajar o mundo, se prepara para tudo. Meus pais achavam
importante que eu soubesse falar vários idiomas.
— Isso tem a ver com a dança, não tem?
— Tudo a ver.
— Conte-me sobre sua história com o ballet.
Abaixei a cabeça, abri os olhos e os fechei novamente pela pontada
de dor que causou.
— Dancei antes mesmo dos cinco anos de idade e decidi que queria
ser uma bailarina famosa antes de saber o que era fama. Eu amava dançar.
Me libertava, sabe? Fui aceita na melhor escola de Minas Gerais e os
professores de lá não cansavam de falar sobre como eu era talentosa.
Um sorriso triste brotou em meus lábios ao lembrar da senhora Reis.
— Quando a doença apareceu?
— Tive o primeiro surto com 17. Eu tinha passado por uma rotina de
treinos muito pesada, mas estava acostumada. Então, quando aconteceu,
pensei que era apenas exaustão.
— Seus pais não quiseram investigar melhor?
— Eles também pensaram que era algo momentâneo, que alguns dias
de descanso me deixaria cem por cento outra vez. Mas ninguém contava com
o diagnóstico. Não fiquei com sequelas, então pensei que ok voltar à vida
normal.
— Mas não ficou ok?
— Não. Perdi o movimento das pernas sete meses depois, durante
uma audição para uma escola de dança em Portugal. Eu caí bem na frente da
bancada onde os quatro responsáveis mais importantes da escola assistiam. O
pianista que me acompanhava levantou e me ajudou. Só me deixou em uma
cadeira na sala de preparação e voltou para tocar para a próxima candidata.
— Sinto muito.
— Comecei o tratamento com dezoito anos, fiz a fisioterapia e tomei
meus remédios. Minhas pernas voltaram e pensei que estava recuperada, mas
quando fui para um treino percebi que não conseguia fazer os mesmos
movimentos que tinha feito a vida toda e não aguentava mais dançar por
muito tempo.
— Como foi quando parou de dançar? Isso foi sua vida durante anos.
— Antes de Cody, isso era a minha vida. Às vezes, mesmo quando
não tinha ensaio, eu ia até o estúdio apenas ler lá dentro ou ficar vendo vídeos
na internet.
— Como sua segunda casa?
— Não. Como minha única casa, realmente. Minha casa, com os
meus pais, nunca foi um lar. Não no meu coração. Perder a dança foi
devastador e eu acho que se não tivesse Cody, teria desistido em um piscar de
olhos.
Ele não disse nada, mas eu não esperava que dissesse. Cobain era
aquilo. Ele recebia o que você estava disposto a dar e era o melhor ouvinte,
porque quando acabava, ele nunca te questionava. E aquela era a melhor
parte, porque às vezes... eu só queria ser ouvida.
— Obrigada — sussurrei e ele não perguntou o porquê. Ele sabia.
Seus dedos frios alcançaram os meus, dando um breve aperto antes
de soltar.
Então voltamos a prestar atenção no que acontecia em cima daquele
palco, mesmo que eu só pudesse ouvir e sentir.
Capítulo 30
"...tudo que você tem a fazer é fechar os olhos
Só estender suas mãos e me tocar
Me segure perto, nunca me deixe ir
Mais que palavras, é tudo que eu sempre precisei que você demonstrasse
Então você não teria que dizer que me ama
Porque eu já saberia"
extreme, more than words

— Danielle? — Solange me chamou na tarde do dia seguinte.


Cobain tinha saído, Cody estava na escola e ela estava assistindo a
TV do quarto que foi atribuído ela. E eu continuava no meu novo lugar
favorito daquela casa: o jardim.
— Sim?
— Você tem uma visita.
Eu sorri, apostando que era Mari Louise. Tirei os óculos de sol e o
coloquei na mesa de madeira. Queria que minha amiga visse meus olhos.
Queria normalidade entre nós. Que assim como Cobain, ela conseguisse
esquecer que eu não podia ver.
— Tudo bem, deixe entrar, por favor, Solange.
Passaram-se alguns minutos antes de a porta do jardim bater e as
folhas serem amassadas pelos passos de alguém.
— Que mistério é esse, Mali? Achei que quando viesse pela primeira
vez aqui, entraria gritando.
— Você vai comprar uma rifa?
Franzi a testa ao ouvir a voz que falava comigo.
— Solange? — chamei, querendo que minha enfermeira explicasse
quem era minha visita. Porque Mari Louise com certeza não seria.
A cadeira arrastou no cascalho do canto onde a mesinha ficava longe da
grama.
— Ela foi fazer um suco de amora e mel para nós. — Senti algo fino
bater na minha canela.
— Ai!
— Oh, desculpe-me. Essa droga de bengala tem vida própria.
— Quem é você?
— Sou Marilyn. Marilyn Monroe.
— Eu estou falando sério.
— Tudo bem. Sou Maria.
— Ainda não faço ideia de quem seja.
Será que minha memória estava sendo afetada? Porque realmente não
fazia ideia de quem era Maria.
— Bem... eu já fui Marilyn alguns anos atrás, atuando pelos palcos da
vida. Mas hoje... só me mudei para a casa aqui da frente e sempre te vejo
sentada nesse jardim sozinha. Pensei que quisesse alguma companhia.
Eu recostei na cadeira e estreitei os olhos. Ela não sabia que eu não
podia ver.
— Você veio para paquerar o dono da casa? Porque ele não está.
Ela riu, em alto e bom som.
— Garota, eu sou velha. Você realmente acha que tenho alguma
disposição para me engraçar com aquele rapaz?
— Você não tem cara de velha — menti. Eu nem sabia que cara ela
tinha.
— Sua enfermeira me disse que você não pode ver. Inclusive, pode
chamá-la e a deixar saber que está tudo bem? Ela me disse que estaria
olhando pela janela para garantir que você ficaria bem.
Solange falava demais. Mas isso foi tão fofo!
Eu olhei para trás, sorri e ergui a mão com um joia.
— Ela viu?
— Sim — Maria me garantiu —, e já fechou a janela.
— Agora só espero que isso não seja um sequestro e você tenha me
manipulado para despistar minha única segurança.
— Se isso fosse um sequestro eu poderia levá-la junto, não acha?
Duas pessoas, duas vezes mais o valor do resgate.
Eu dei risada.
— Bem, que bom que você é velha para carregar nós duas, então.
— Exatamente.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, até eu não aguentar mais.
O que foi bem rápido.
— Então, o que a fez mudar para cá?
— Novos ares, novas pessoas, novos caminhos. Saudade.
— Saudade?
— Sim. Você sabe... aquela dorzinha no peito e a vontade de voltar
ao passado.
Sim, em partes eu sabia. E em alguns momentos, por algumas partes,
eu queria voltar também.

(..........)

O tempo passou e eu nem percebi. Maria, ou Marilyn, me distraiu


contando histórias e me fazendo rir, e o vento gelado que começou a nos
bater nem me incomodou. Eu não sabia como Cobain se sentia sobre ter um
estranho em sua casa. De alguma forma, o jardim parecia ser meio que fora
do ambiente dele.
Era o meu lugar.
E o frio me faria entrar, consequentemente tendo que dar adeus a ela.
Deus... eu nunca fui tão grata por ter uma vizinha curiosa, e que
queria tanto um pouco de companhia quanto eu.
— Olha só — ela comentou tempos depois —, eu já vou indo. Está
ficando escuro.
Meu sorriso murchou.
— Mas o suco ainda não ficou pronto.
Ouvi sua risada.
— Não tinha nenhum suco.
— Não?
— Não, menina. E com essa demora para ele chegar, acho que você
já tinha percebido isso. Mas posso voltar e fazer um se você me prometer que
vai plantar as amoras.
Eu sorri.
— Feito.
— Até mais, menina.
Franzi a testa quando ouvi a porta batendo novamente. Uma sensação
estranha no estômago se fez presente, e não entendi o porquê.
Mas já me perguntava quanto tempo amoras demoravam a crescer,
porque quando isso acontecesse, Marilyn iria voltar. Eu precisava de
sementes.

(..........)

— Por que você ama tanto os livros? — Cobain me perguntou


naquela noite, enquanto jantávamos.
Cody já estava na cama e Solange havia ido para sua casa, tinha que
cuidar da neta. Então éramos apenas eu e ele. Ele chegou dizendo que tinha
comprado comida, mas era muita, então se eu quisesse, podíamos dividir. Era
japonês e eu fiquei envergonhada de dizer que não gostava, mas ele percebeu
na primeira mordida que dei e tirou os pratos, então fez dois cup noodles para
nós. O meu era de galinha e o dele, de legumes.
Tínhamos entrado em uma discussão breve sobre nossos sabores
preferidos serem galinha caipira, e tinha apenas um. Eu odiava o de legumes,
ele mais ainda. No fim, enquanto ele debatia seriamente sobre o porquê tinha
direito a ficar com o único de galinha, eu joguei a carta mestra que me
proporcionou o sabor que eu queria.
Meu drama.
Quando dei a primeira garfada, me deliciei. E depois quase morri de
rir ao ouvi-lo reclamar sobre legumes ter gosto de comida vencida a
cinquenta anos.
— Hum... eu não sei. Apenas amo.
— Mas tem que haver um motivo. Ninguém gosta de nada só por
gostar.
— Claro que gosta. Às vezes você só gosta e não tem um motivo
exato para isso.
— Não, Danielle. Veja só, porque você gosta do sabor galinha e não
gosta do sabor legumes?
— Porque o de galinha tem os pedacinhos de frango e os de legume
tem um cheiro muito forte.
— Todos eles têm cheiro forte, que resposta ridícula. Viu? Por isso
eu tinha direito ao de galinha. — Deus, ele parecia tão mal-humorado e eu só
podia rir daquela discussão absurda.
— Certo, soberano Cobain James! Por que você não gosta do de
legumes e gosta do de galinha?
— Porque o de legumes é horrível, assim como de carne, feijão e todos os
outros sabores. Mas o de galinha é o melhorzinho. Então entre o ruim e o
péssimo, fico com o ruim.
Gargalhando, empurrei meu copo para a frente depois de terminar e
apoiei o queixo nas mãos.
— Ok, você venceu. Eu amo livros porque quando minha vida parou,
eles me fizeram continuar viajando.
Aquela resposta não poderia ser mais verdadeira.
— Agora... eu tenho um presente para você.
— Você tem? — Meu sorriso ficou maior ainda.
— Sim. Pelo sabor galinha, eu deveria não te dar. Mas por essa
resposta sincera... aqui está. Estique suas mãos.
Eu fiz isso, ansiosa para saber o que era.
— Eu não embrulhei.
Dei risada, passando as mãos pelo objeto que me foi entregue.
— Não importa — sussurrei. — O que é?
— Anos atrás eu tive uma lesão na mão direita e não pude mais tocar
como tocava antes. O piano é provavelmente a coisa que me liga ao mundo.
Então eu me perguntei como deveria estar sendo para você viver sem os seus
livros.
— Cobain...
— Dei um jeito de conseguir livros em áudio daquela tal de Jojo
Moyes, e da Colleen alguma coisa. Da Carina Ricos e Sophia Kerella
também. Gayle Forman e Austen.
Carina Rissi e Sophie Kinsella, eu o corrigi mentalmente, mas estava
chocada demais para falar, e desconfiava que se abrisse a boca, diria alguma
besteira sem tamanho. E droga, ele já tinha feito algo tão incrível, se
importando em me devolver a leitura mesmo que eu não pudesse ler. Quem
se importava se disse os nomes errados?
— Você pode me dizer, caso queira qualquer outro. Eu vou
providenciar.
Ele continuou falando e falando, mas tudo o que eu podia ouvir eram as
batidas do meu coração.
Se algum dia eu me perguntasse qual foi o momento que iniciou o
fim de tudo, qual foi o ponto em que nossa destruição começou, teria sido ali.
Enquanto eu chorava na cozinha da casa dele.
Quando eu me perguntasse, nos últimos suspiros, quando aconteceu,
eu diria que foi naquele exato momento.
Bem ali, quando me apaixonei por Cobain James.
Capítulo 31
"...contando aquelas histórias que já contamos
Porque não dizemos o que realmente queremos dizer
Não somos quem costumávamos ser
Somos apenas dois fantasmas no lugar de você e eu
Tentando nos lembrar de como é sentir o coração bater"
harry styles, two ghosts

— Fazem poucos dias que você está aqui e já te vi repetir esse filme
no mínimo 5 vezes.
— Seis — rebati, fungando e jogando mais pipoca na boca.
Eu assisti muitos filmes durante minha vida inteira. Constantemente.
Todo o tempo. Estava no meu top coisas favoritas junto com livros, músicas,
meu filho e o pão de queijo que só Minas Gerais sabia fazer. Eu carregava
comigo uma filosofia de que, se algum dia algum grande diretor decidisse
criar um filme que unisse tudo isso em um só, seria meu filme preferido. Mas
enquanto nenhum grande cineasta apostava naquela ideia, eu continuava
firme de que o melhor filme era O Diário de Uma Paixão.
Tudo bem, havia um grande empate com Amor Além da Vida e
Titanic. Mas O Diário de Uma Paixão... ele arrebatava meu coração em cada
uma das vezes.
— Muitas vezes para repetir um único filme.
Eu queria revirar os olhos para Cobain a ponto de eles grudarem no
teto.
— Bem, eu gosto dele. — Parei de comer e virei na direção de sua
voz. — E você me disse que não tinha TV a cabo.
— Eu não tinha.
— Mas você tem. Estou vendo no canal a cabo.
— Eu assinei antes de você vir. Não são todas as pessoas que estão
acostumados a não assistir TV, eu não sabia bem do que você gostava, então
pedi todo pacote. Mas se soubesse, teria comprado apenas o DVD desse
filme.
— Você pode sempre perguntar.
— Perguntar o quê?
— Sobre os meus gostos. — Dei de ombros.
— Por que você acha que eu quero saber dos seus gostos?
E o ogro estava de volta.
— Porque é uma forma de nos conhecermos.
— Eu já conheço o suficiente. Seu nome é Danielle, você é uma
jovem cuidando do seu filho pequeno, tem um péssimo gosto para leitura e
aparentemente para filmes também.
— Não sei porque, mas imaginei que você diria algo como isso.
Muito previsível, Cobain. Eu poderia ficar aqui debatendo os mil motivos
para repetir esse filme, mas dado ao fato de que não posso realmente vê-lo,
estou apenas escutando.
Ele se aproximou. Com o tempo e a falta de visão, comecei a
conseguir perceber as coisas muito melhor através dos sons. E os pés dele
batiam descalços no carpete.
— Sendo assim, não seria mais fácil ir no YouTube ouvir as
músicas?
— Não. Eu gosto da companhia das vozes, do instrumental que toca
cada cena, do farfalhar de cada simples movimento dos personagens. Eu
gosto de tudo o que envolve esse filme. Satisfeito?
— Não, estou começando a me preocupar com sua sanidade.
Entretanto, vou admitir uma coisa, mas vou esquecer que disse isso no
minuto seguinte e qualquer coisa que você disser sobre isso, vou te
desmentir.
— Ok, o que é?
— As composições do piano são incrivelmente boas. — Suspirou.
Eu dei risada com sua confissão, o pegando no flagra mesmo sem
querer.
— Você estava aqui ouvindo o tempo todo, não estava?
— Talvez. Mas... novamente, isso é algo que nunca admitirei.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. Diário de Uma Paixão era
um dos filmes que bem no começo da minha admiração por livros, roubou
meu coração e agora o pensamento de não o assistir pelo menos uma vez na
semana me deixava em pânico.
Lembrava-me do quão sensível eu podia ser.
As lágrimas do final era um alívio como a chuva em meio à seca.
— Diga-me — pedi a ele. — Qual seu filme favorito?
— Eu não tenho. Filmes são uma perda de tempo.
— Essa é uma das maiores bobagens que eu já ouvi na vida.
— A lista é grande?
Eu bufei.
— Enorme, e grande parte dela contém palavras de um pensador
chamado Cobain James.
— Muito engraçado, Daniele. Muito madura.
— Obrigada. Você sabe como dizem... Mantenha sempre acordada a
criança dentro de si. Não posso evitar, às vezes ela escapa e supera o “eu”
adulta.
A parte final do filme chegou, quando finalmente a pessoa que está
assistindo o filme pela primeira vez consegue perceber que o casal da
história, na verdade, também são os velhinhos.
Noah e Allie.
— Meu Deus, Danielle. Você vai alagar a casa.
Eu funguei.
— Cale a boca. É perfeito!
— Ela tem alzheimer?
— Como percebeu?
— Ela não se lembra da história deles, fica bem claro.
— Sim. — Chorei mais um pouco. — Como você é insensível! Como
pode não estar chorando?
— O Curioso Caso de Benjamin Button.
— O quê?
— Meu filme favorito. O Curioso Caso de Benjamin Button.
— Por quê?
— Porque me fez pensar em como a vida é curta. Você entende? Nós
estamos aqui sentados, e o relógio não para. Ele nunca para. Há um monte de
coisas que nós podemos querer fazer e não fazemos. Há pessoas que entram e
saem dos nossos caminhos e o relógio continua andando. Até que tudo o que
sobra é... nada.
— Isso não é verdade.
— É claro que é. Benjamin Button perde pessoas durante toda a sua
vida. Ele sabe que sua existência está fadada à perda.
— Sim, Cobain. Mas é inspirador que ainda assim ele insista em
amar mesmo sabendo que vai perder mais tarde.
— Inspirador? É trágico. É como nesse filme que você repete
incontáveis vezes. Não importa o que esse cara faça, a esposa dele nunca vai
se lembrar. Ele pode ler para ela quantas vezes quiser, mas ela nunca vai
saber quem ele foi, quem ele é.
— No coração ela se lembra.
— O coração dela não é o mais importante nessa situação. Não é o
coração que a faz lembrar, é o cérebro. Esse amor deles? Acabou no
momento em que ela ficou doente.
Filho. Da. Puta.
Ele realmente disse aquilo?
Eu coloquei a pipoca de lado e levantei, irritada. Tateei atrás da
bengala, mas não encontrei.
Eu realmente me apaixonei por esse cara?
— Onde você vai?
— Para o meu quarto.
— Não quer mais falar sobre o filme?
— Não, Cobain. Eu não quero!
— Tudo bem, ajudo você.
“Esse amor deles? Acabou no momento em que ela ficou doente.”
— Não quero sua ajuda! Quer saber? Eu cansei de falar com você.
Cansei de você e vou dormir mais cedo hoje.
— É sábado à tarde.
— Quem se importa? Eu estou com sono!
Cobain riu sem nenhum humor.
— Quando finalmente conseguimos conversar, você explode. O que
te deu?
— Conversar? Se você não fosse um ogro grosseiro, essa conversa
teria durado!
— Eu sou um ogro grosseiro?
“Não é o coração que a faz lembrar, é o cérebro.”
— Sim! E quer saber? Eu realmente não sei como consigo viver na
mesma casa que você. Por alguns momentos, você tem um lapso de calma e
eu esqueço como é estúpido, mas em um minuto você abre a boca e me faz
lembrar.
— E eu tinha esquecido como você me dá dor de cabeça.
— Eu não sou a errada aqui, você é! Eu duvido que haja uma mulher
no mundo que tenha paciência de ficar no mesmo ambiente que você por uma
hora, sem começar a criar planos de homicídio.
Nós ficamos em silêncio.
Eu bufando.
Ele totalmente quieto.
Eu gritando e ele nem sequer levantou a voz.
Por que ele estava tão calmo?
— Por isso você está sozinho, é um rabugento. Nenhuma mulher
aguenta por muito tempo. É isso!
— Você sabe muito bem das coisas, não é?
— Sobre você e sua incapacidade de ser social? Sei!
— Muito bem, Danielle. Vamos ver se nenhuma mulher me aguenta
ou se o problema é você!
Ele andou pela sala e o ouvi pegando o telefone, depois praticamente
amassando os números com tamanha fúria.
— Sheila? Sim, é James.
Eu dei um passo à frente. Meus olhos arregalaram, mesmo que eu não
enxergasse nada.
— É o telefone da minha casa. Sim, anote o número. Ouça, você quer
ir jantar? Ótimo, estou passando aí. Sairei de casa agora. Tudo bem. Até.
O telefone bateu na base, fazendo-me pular, então em passos rápidos,
ele se aproximou.
— Vou chamar Solange, porque o ogro, grosseiro e rabugento tem
um jantar para ir agora, porra —rosnou.
Eu abri a boca para falar, mas fechei.
Meu coração batia como se eu tivesse acabado de correr uma
maratona, e assim que ele se afastou, eu quis pegar todas as minhas palavras
de volta.
— SOLANGE!
Seu grito foi a última coisa que ouvi antes de a porta bater fechada.
Realmente bater.
Ele estava irritado.
Quer merda eu fiz?
Capítulo 32
"...querida, você é tudo que eu quero
Quase não consigo acreditar
Que estamos no paraíso"
bryan adams, heaven

ü ELE NÃO GOSTA DE MÚSICA


COBAIN JAMES

“Nenhuma mulher aguentaria ficar perto de você por muito tempo!”


Foi o que Danielle disse, e na hora eu só pude pensar que era uma
besteira sem tamanho, mas agora, sentado de frente para Sheila, só pensava
que talvez fosse o contrário.
Aliás, talvez não. Provavelmente. Com cento e cinquenta por cento
de chances de que era o contrário.
Busquei Sheila em sua casa, a levei em um restaurante caro,
comemos comida japonesa, porque nem todas as mulheres tinham mal gosto
como Danielle, e muitas gostavam daquela culinária. Mas enquanto comia, só
pude pensar em como talvez ela estivesse certa e não fosse algo tão gostoso
assim. Mas Sheila adorava. Isso tinha que significar algo.
Qualquer maldita coisa.
Por outro lado, eu sabia que aquilo era insano. Eu não saía com uma
mulher há seis anos. Não pensava em nada sobre mulheres há seis anos. E
agora por uma provocação ridícula daquela maluca, estava ali fingindo que
queria estar em um encontro.
Sheila já estava acostumada com o meu silêncio constante e minha
sinceridade bruta, portanto, não reclamou sobre conversar praticamente
sozinha o tempo todo. Ela estava muito bonita e me dirigia aqueles olhares de
quem esperava que algo fosse acontecer no fim da noite.
Céus, eu era um babaca!
Me perguntei se ela se vestiu tão rápido depois de receber minha
ligação, ou se já estava pronta, porque a produção do visual estava realmente
grande.
E eu era um pouco mais babaca ainda por querer ir embora desde os
dez primeiros minutos do jantar.
— Então, Cobain, como vão as coisas com a Conelly?
— Como sempre.
Ela esperou que eu dissesse mais, mas quando percebeu que aquela
era minha resposta, sorriu, assentindo.
— Ótimo! Maravilhoso! Que bom. E... com a família?
Franzi a testa. Ela não conhecia a minha família. Por que estava
fazendo tantas perguntas? Eu já tinha perdido as contas de quantos
questionamentos ela havia feito. E no total, minhas respostas consistiam em:
“Normal.”
“Como sempre.”
“Tudo bem.”
“Sim.”
“Não.”
E ela não parava de perguntar. Não tirava o sorriso do rosto, não
deixava escorregar a postura perfeita da dama elegante que era.
— Sim. Todos bem.
— Ah, claro. Quantos irmãos você tem mesmo?
Eu a fitei. Realmente a fitei. Ela era muito bonita mesmo.
O que está fazendo perdendo seu tempo aqui com um homem como
eu?
— Desculpe, Sheila. Isso não está funcionando.
Ela colocou a mão por cima da minha e automaticamente tirei. Não
tínhamos qualquer intimidade ou liberdade para aquilo.
Qualquer foto sendo tirada naquele único segundo, tinha o poder de
destruir minha vida. O restante dela.
— O quê? C-como assim? Está uma noite perfeita, James!
Eu podia dizer que ela estava falando sério só pela determinação em
seus olhos.
— Sheila... — Suspirei antes de continuar. — Isso aqui não vai dar
em nada.
O sorriso escorregou de sua face até sumir e ela endireitou os
ombros.
— Por que me convidou para sair essa noite, então?
Pensei um pouco em minha resposta, coisa que eu geralmente não
fazia.
Com Danielle, por exemplo, eu dizia qualquer coisa que viesse na
ponta da língua e ela não estava nem aí. Aprendeu a aguentar minha merda
desde o primeiro dia, e me forçou a aturar sua personalidade gritante.
Sheila provavelmente choraria se eu dissesse algo estúpido.
— Não te liguei na intenção de trepar, Sheila.
Merda.
Eu devia saber que essas não seriam as palavras certas.
Seus olhos arregalaram, um deles começou a ter uma crise de tiques,
piscando nervosamente. Ela sorriu o sorriso mais forçado e duro que eu a vi
dar, e pegou sua taça, tomando um único gole antes de levantar.
Merda.
Antes de me dar as costas e sair do restaurante, ela parou ao meu
lado, ainda sorrindo.
— Quer saber, James?
— Provavelmente não.
— Mas eu vou dizer. Eu coloquei o vestido mais elegante do meu
closet, fiz minha maquiadora improvisar um penteado e fazer uma
maquiagem incrível em questão de minutos, e esses saltos acabam com os
meus pés. Tudo isso porque depois de anos ao seu lado, finalmente pensei
que teríamos uma chance. Mas você é apenas um filho da puta, então, eu vou
deixá-lo aqui para pagar o jantar e dizer a quem me perguntar, que fui eu
quem não quis nada com você.
Eu assenti. Aquilo era provavelmente o mínimo que eu deveria
aceitar. Ela esteve anos esperando algo de mim?
— Sheila?
— Sim?
— Eu teria pago o jantar.
Ela bufou.
— Sério? Depois de tudo o que eu disse essa é sua resposta?
— Na verdade... Você precisa de um táxi para casa?
— Vá se foder, James. Eu realmente não vejo uma mulher no mundo
que poderia aguentá-lo. Passe pessimamente mal.
Fiquei sentado depois que ela se foi.
Terminei minha taça. Paguei a conta. Peguei o carro.
Voltei para casa.
E percebi que mais uma vez... Danielle estava certa.

(..........)

Eu estacionei o carro e peguei a chave, passei pelas pedras recém


organizadas e me perguntei porque me incomodei em fazer aqueles ajustes.
Eu estava tão irritado, que era melhor que Danielle estivesse em seu
quarto quando eu passasse por aquelas portas, pois eu diria coisas que a faria
jogar algo em minha cabeça.
Foi uma perda de tempo e um lapso de consciência tão absurdo ter
ligado para Sheila e marcar um jantar, que eu não conseguia formar uma frase
de explicação coerente sobre aquilo, a não ser que: Danielle me deixava puto
o suficiente para fazer coisas que eu jamais faria.
Como sair com uma mulher outra vez.
Assim que abri a porta, minha mente ferveu mais ainda, porque depois de
tudo, ela estava ouvindo música. O som alto invadiu meus ouvidos e nem
mesmo meus passos pesados eram ouvidos. Joguei o sobretudo em qualquer
canto da entrada e fui direto para onde aquela encrenqueira estava.
E então...
Toda a minha fúria dissipou.
Ela não tinha um vestido elegante. Usava um vestido florido que ia
até seus pés, arrastando no chão sob os pés descalços. Com a mão direita,
segurava um pouco do tecido o balançando com o som, e na outra mão,
mantinha firme a mão de seu filho. Ela rodava pela sala, sorrindo e dançando
com o menino. O sofá e as poltronas foram afastados, dando a ela um bom
espaço para não tropeçar em nada, e mesmo sem passos muito elaborados, ela
parecia feliz como na primeira vez que a vi dançando.
Ela não tinha um penteado elaborado. O cabelo longo voava ao redor
dela, como uma cortina de seda escura, feita exatamente para enfeitar seu
rosto.
E não havia nenhuma maquiagem, mas ainda assim, ela parecia
devastadoramente bonita.
Uma mulher real.
Naturalmente linda.
Danielle...
Ela atraía. Ela brilhava. Ela era o sol daquela noite. Dançando pela
sala da minha casa com os pés descalços, o sorriso no rosto e emanando
alegria.
Ela nem percebia o que fazia com o ambiente que pisava.
E eu nem me lembrava mais porque estava tão zangado com ela.
Solange sorria para ela, cantando e rindo, batendo palmas enquanto a
admirava sentada no sofá. Eu continuei olhando sabe Deus por quanto tempo,
mas Solange por fim me viu, ficou pálida e deu um pulo do sofá. Eu levantei
a mão rapidamente, pedindo que saísse.
— Solange, veja, ele tem os pés rápidos como eu tinha — Danielle
falou, sem saber que éramos apenas nós três agora. — Será que ele vai ser um
bailarino como eu fui?
— Absolutamente não.
Ela arregalou os olhos castanhos, e travou onde estava, pegando o
garoto no colo.
— Cobain, eu não sabia que tinha voltado.
— Eu acabei de chegar.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, apenas eu, ela e seu filho
que agora quase dormia com a cabeça em seu ombro. Eu me aproximei e
peguei o menino, então o coloquei no sofá, e o rodeei de almofadas na frente.
Depois, me voltei para ela, que mexia nervosamente nos dedos das mãos.
Ela estava com medo do que eu faria quando chegasse, e antes de vê-
la dançar na minha sala, eu faria jus ao seu temor, mas agora... céus, eu só
queria dançar junto com ela.
E eu odiava dançar.
Então eu voltei a ela, peguei sua mão, sentindo-a tremer com meu
toque, e a outra foi em sua coluna.
— Cobain... o que está fazendo?
Eu não sei.
— Dançando.
— Você não está irritado?
— Eu estava. Muito. Mas acabei descobrindo que você tem razão.
Goo Goo Dolls, de Iris, foi a próxima a tocar. Nossos passos não
tinham nada a ver com o ritmo da música, então nos tornei mais lentos. Eu
em sincronia com a música, e ela comigo.

“E eu desistiria da eternidade para te tocar


Pois eu sei que você me sente de alguma maneira
Você é a mais próxima do paraíso que sempre estarei
E eu não quero ir para casa agora”

Eu dancei pela primeira vez em três anos. Por um momento, parecia


que voltei no tempo, e seis anos dançando todos os dias estavam ali
novamente. Quando eu ainda sorria, ainda ria, ainda vivia.

“E eu desistiria da eternidade para te tocar


Pois eu sei que você me sente de alguma maneira
Você é a mais próxima do paraíso que sempre estarei
E eu não quero ir para casa agora”

— Eu tinha razão em quê?


Eu a girei, pousando-a em meu peito segundos depois, e sua mão
dobrou em meu ombro.
— Nenhuma mulher pode me aguentar por muito tempo.
— Cobain...
— Nenhuma, a não ser você.

“E eu não quero que o mundo me veja


Porque eu não acho que eles entenderiam
Quando tudo é feito para ser quebrado
Eu só quero que você saiba quem sou eu”

— Sheila disse que eu sou um filho da puta depois de eu dizer


algumas coisas. E eu pensei que... realmente sou um ogro e um babaca,
também.
Seus dedos apertaram meu ombro.
— Não, eu sinto muito. Não deveria ter dito aquelas coisas, Cobain.
Foi cruel.
— Não, não foi cruel. Me fez perceber que mesmo querendo me
assassinar todos os dias, você ainda continua aqui. Você é a única que fica,
dia após dia. E por quê? Por que você não foi embora, Danielle?
— Eu... eu acho que existe mais além do que você deixa que todos
vejam. Você me disse uma vez que enquanto nos sentamos para admirar a
paisagem bonita, algo vem e destrói tudo e então está acabado. Mas eu acho
que... a dádiva de vê-la ser destruída é saber se podemos colocá-la de pé outra
vez.
Eu fiquei sem palavras. Não porque eu não queria falar, mas porque
realmente não sabia o que dizer.
— Danielle...
— As luzes estão acesas? — ela perguntou, eu assenti.
— Sim.
— E a janela aberta?
— Como sempre.
— E Cody?
— Está dormindo, deitado no sofá.
Ela sorriu, seus olhos na direção do meu peito. Eu queria levantar sua
cabeça e fazê-la olhar para mim, mesmo que não fosse me ver.
— Cobain?
— Sim, Danielle?
— Você está usando uma roupa preta?
Eu parei de dançar, confuso se realmente entendi o que ela disse. A
pressão da minha mão em sua coluna aumentou e minha voz tornou-se
ansiosa.
— Você está...
— Eu fiquei deitada com Cody por algum tempo depois que você
saiu e quando Solange abriu a porta, ela acendeu a luz e eu vi um clarão.
Nada nítido, mas já não é aquela escuridão que me amedronta. Talvez...
talvez minha visão esteja voltando e eu possa admirar a paisagem outra vez.
O relógio pareceu parar naquele momento. Eu me dividi entre
planejar pegá-la e a girar no ar, ou pular, ou abraçar o garoto Cody. Mas no
fim, apenas engoli em seco, com meu coração batendo mais forte do que eu
me lembrava de ter batido outra vez, soltei minha mão direita da sua e a
esquerda de sua cintura, e ergui as duas até seu rosto.
Eu poderia alegar que estava fora de mim, ou tomado pela emoção,
mas a verdade era que minha língua espiou para fora umedecendo meus
lábios e eu soube o que estava prestes a fazer. E parecia que ela sabia
também, porque os bonitos olhos castanhos fecharam preguiçosamente, suas
mãos subiram pelos meus braços, apertando o tecido que os cobria e a boca
avermelhada abriu levemente.
Eu dei apenas um olhar para trás, vendo o garoto deitado. Torci para
que ele não se importasse e levei o pequeno sorriso que enfeitava seu rosto
como um sinal. Diziam que quando crianças sorriam no sono, era porque
estavam sonhando com anjos.
Ele provavelmente sonhava com sua mãe naquele momento.
— Danielle? — sussurrei ao voltar a fitá-la.
— Sim?
Convenci a mim mesmo de que deveria dar um passo atrás, que fazer
aquilo era algo que mudaria o rumo de tudo e nada voltaria a ser como era.
Mas Danielle era algo que no fundo do meu subconsciente, eu já sabia que
mudaria tudo... mesmo antes de saber.
— Ainda quer saber o que eu vejo quando fecho os olhos?
Sua respiração travou para logo depois acelerar, o peito subindo e
descendo rapidamente. Sem nem encostar, eu jurava que podia ver seu
coração batendo.
— O quê?
— Você. — Meus dedos acariciaram a pele macia de sua mão e ela
se arrepiou, se inclinando em minha direção. — Eu só vejo você.
Então eu fechei meus olhos, assim como ela, e ao invés da escuridão,
eu vi o brilho dos olhos castanhos que habitavam minha mente desde que a vi
pela primeira vez. Abaixei a cabeça e a beijei.
Porque sem sua visão, ela não podia ver nada.
E eu, mesmo enxergando, não via nada além dela.

“Eu só quero que você saiba quem sou eu”


Capítulo 33
"...eu não sou uma pessoa perfeita
Mas apenas quero que você saiba
Eu encontrei uma razão para mim
Uma razão para começar de novo
Para mostrar um lado meu que você não conhecia
Uma razão para tudo que faço
E a razão é você"
hoobastank, the reason

Quando você é beijada pela primeira vez em anos, principalmente


quando seu último beijo foi o motivo do seu coração partido, você teme. Eu
esperava por esse medo dilacerante, e pela vontade de arrumar minhas malas
e ir para longe de Cobain, mas isso não aconteceu. Pelo contrário, eu queria
estar mais perto.
A cada manhã as coisas se tornavam um pouco melhores. Nós não
repetimos o beijo e Cobain nem desconfiava que cada segundo de seus lábios
junto aos meus naquela noite, tinha o poder de reconstruir um pouco daquilo
que já foi quebrado.
Ele se tornou um pouco distante e por um momento eu pensei que a
conversa iria direto vagar por aqueles lados do típico, “isso foi um erro”. Mas
ele nunca disse. O que não tornava as coisas melhores, porque também não
repetiu.
Eu conhecia um pouco mais de Cobain a cada dia. Descobria uma
mania nova, algum tique, alguma palavra que ele repetia demais e outras que
não falava de jeito nenhum. E percebia coisas que o irritavam ou animavam
também. Aprendi que aquele lado bruto não era uma máscara. Ele realmente
era um cara rígido, mas eu não me importei. Porque a forma como ele tratava
meu filho, ou até mesmo eu, me fazia sentir segura.
Segura como homens que transmitiam leveza nunca fizeram.
Nós nunca falamos sobre o beijo, sobre a dança ou as palavras que
ele disse, mas eu não me senti pressionada sobre isso. Aquela cobrança de
que deveríamos rotular e dizer com todas as palavras o que estava
acontecendo, porque eu sentia. E talvez, em algum lugar, ele sentiu também.
Eu não precisava confrontá-lo sobre o que houve naquele dia, pelo
simples fato de que tudo mudou depois daquela noite.
Haviam dias que ele ficava sentado comigo no jardim, enquanto eu
falava sem parar, ou ficava do meu lado assistindo um filme que eu escolhia,
enquanto eu podia ouvir minhas trilhas sonoras favoritas. Ele me mostrou os
CD's de bandas que gostava, e me fez ouvir músicas de quando nem eu e nem
ele, éramos nascidos.
Eu descobri que ele era um homem de trinta anos, com a
personalidade de um de setenta. Vi a cada dia seu senso de humor sarcástico
se libertar um pouco mais, e como ele falava sobre coisas que já viveu, ou
lugares que viajou, ou falava de algum familiar que sentia saudade.
Eu me apaixonei.
Nós nos beijamos.
E ele aprendeu a confiar em mim.
Cobain James não confiava em ninguém.
Enquanto nós vivíamos em nossa bolha, eu me recuperava e o mundo
continuava girando lá fora.
Pessoas nasciam, morriam, e conquistavam coisas. Alguém foi
promovido no trabalho, alguém foi demitido, alguém escreveu um testamento
e outro alguém recebeu uma herança. A vida nunca parava, nem mesmo
quando eu estava tão concentrada nele que me esquecia disso.
Dei adeus a Igor Telles, o fisioterapeuta, e quem voltou na outra
sessão foi Sabrina Silva, uma profissional incrível, também. Cobain me disse
que Igor não pôde continuar as sessões comigo, mas o rosnar que
acompanhava sua vaga explicação me fez desconfiar que talvez a decisão não
tivesse sido de Igor realmente.
Eu adorava nossos cafés da manhã, nossos almoços, os jantares e os
momentos de fazer nada juntos. Quando mesmo sem perceber, ele segurava
minha mão e acariciava os dedos, ou até mesmo uma vez, quando “A Espera
de Um Milagre” acabou, eu estava chorando sem parar, e ele segurou meu
pulso.
— Por que está apertando meu braço? — perguntei, fungando.
— Fique quieta, estou contando as batidas do seu coração.
Aquilo se tornou comum, rotineiro.
E todas às vezes que ele segurava meu braço novamente, eu nem
precisava perguntar. Aquela era uma das muitas coisas que Cobain fazia, e o
tornava um mistério.
Ele contava as batidas do meu coração.
Mas naquela manhã, quando o final do ano se iniciava, parecia
diferente das manhãs anteriores. E pensar sobre Cobain não foi o que ocupou
meus primeiros momentos na cama, e sim o que aconteceu logo que abri os
olhos. Há alguns dias eu conseguia diferenciar entre estar no escuro e no
claro, mas nem toda a sensibilidade visual estava de volta, nada era nítido.
Acontece que naquela manhã... simplesmente acreditei que eu era um
milagre.
Coloquei os pés para fora da cama e abri os olhos, pronta para ver
apenas a claridade que viria da janela, mas fui surpreendida quando enxerguei
o contorno da cortina balançando, a estante ao lado da porta e até minhas
pernas cobertas pela calça do pijama.
Tapei o olho esquerdo e não vi nada com o direito. Tapei o direito e
com o esquerdo voltei a ver. As imagens diante de mim estavam embaçadas,
mas estava ali. E em poucos minutos eu chorava.
Escorreguei da cama, ajoelhando em frente a ela, mantive os olhos
abertos e fiz algo que não fazia desde que fui embora de Minas Gerais.
Agradeci.
Eu finalmente podia ver o rosto do meu filho outra vez.

(..........)

Solange me abraçou, tão chorosa quanto eu, e não saiu do meu lado
depois de eu tomar um banho.
— Você precisa parar de chorar, Solange. Se não eu não paro,
também.
— Eu me sinto como se estivesse cuidando de você e o seu bebê há
anos, e você finalmente tivesse crescido. Não é estranho? Porque só nos
conhecemos há algumas semanas.
Eu a abracei.
— Não é estranho. Alguns corações se encontram por aí e
simplesmente se reconhecem. É tão bom finalmente poder ver seu rosto, quer
dizer, quase.
— Logo você verá, Dani. Vamos continuar tendo fé. Como diz minha
filha Rafaela, Deus é pai, não é padrasto. Ele sabe tudo o que faz.
— Eu sei.
Calcei o chinelo e abri a porta, lhe dando um sorriso antes de sair.
— Eles estão no jardim! — A ouvi gritar e fui direto para lá.
Foi um sopro de ar puro quando pude ver o azul do céu e a grama
verde no chão. E um pouco mais distante, duas figuras de pé.
— Ato! — Cody gritou com as mãos no ar.
— Pombo.
— Ato!
— Não, garoto. Não é um pato.
— Ato! — Cody repetiu, batendo os pés no chão.
— Teimoso como a sua mãe. São pombos — Cobain corrigiu, então
segurou a mão de Cody e os dois correram na direção dos pombos, fazendo-
os voar para longe.
Ouvi a gargalhada do meu filho e ele deu pequenos pulos de
animação, depois fez uma dança engraçada que eu precisei dar risada, o que
atraiu a atenção de ambos. Cobain soltou Cody, que correu em minha
direção. Me ajoelhei, abraçando meu pequeno homem, e segurei seu rosto
logo depois, observando o que podia ver.
— Mama?
— Ei você, meu bem. — Acariciei seus cabelos que estavam grandes
agora, mantendo-o junto a mim em um abraço apertado.
Ouvi Cobain se aproximar, mas não olhei para cima.
— Parece que ele cresceu tanto.
— É normal você pensar assim, mas foram só algumas semanas. A
única coisa que cresceu foi o cabelo. Nós podemos cortar quando você
quiser.
Nós.
Nós podemos.
Se ele soubesse o que aquela simples junção de palavras me fazia
sentir...
— Você está nos vendo. — Ele agachou atrás de Cody, e eu vi sua
boca se formar em um sorriso. Seu cabelo estava um pouco maior, assim
como a barba, que devia estar escondendo boa parte de suas sardas agora.
Mas os olhos verdes continuavam ali. Eu não via a hora de voltar a admirar
perfeitamente bem aquelas íris bonitas.
— Sim. É tudo um borrão, mas eu já chorei tanto apenas essa manhã
quando percebi minha visão infinitamente melhor, que só posso agradecer,
mesmo sem ver cem por cento.
Ele segurou minha mão e a levou até seus lábios, beijando levemente.
— Não posso dizer como estou feliz por você, Danielle.
— Eu sei que está. Obrigada.
— Mã!
— Sim, meu amor? O que foi?
Cody apontou para o céu.
— Ato!
Cobain suspirou.
— Pombos.
— Você realmente acha que um bebê vai te entender?
— Garoto, olhe para mim. Pombos. Diga isso. Pombos.
Cody ficou em silêncio. Eu revirei os olhos.
— Ombus — meu filho repetiu e Cobain o pegou, girando-o em volta
de si mesmo.
— Isso, garoto. Eu sabia que a convivência traria algo de incrível a
você.
— Convencido.
Ele me devolveu Cody.
— Espere, espere aqui. Tenho algo que você precisa ver.
Ele entrou para a casa e eu me sentei na grama para esperar. Voltando
pouco depois, Cobain colocou a mochila de Cody ao seu lado e tirou a
agenda de dentro, me entregando uma folha.
Eu peguei e trouxe para perto do rosto, tentando ver algo.
— Não consigo ver, Cobain. Só vejo riscos coloridos.
— Sim, é isso. É um desenho que veio da escola.
— Oh, meu Deus! Você trouxe seu primeiro trabalho escolar para a
casa, bebê?
Ele riu, se soltou do meu abraço e correu pelo jardim, voltando a
brincar com seus carrinhos e legos que o esperavam.
— Ele deve pensar o tempo todo “minha mãe me sufoca”.
— Ah, cale a boca. Ele ama ser beijado e abraçado.
— Todos os bebês amam. Até que fazem quinze e amam mais ainda,
mas não pelas mães.
— Ai, que horror! Pare. Eu não quero pensar sobre o meu bebê sendo
beijado por garotas.
— Ele beijará muitas garotas, eu garanto.
— Eu vou garantir que ele beije apenas uma e ela será a mulher com
quem ele ficará a vida inteira.
Cobain bufou.
Eu sabia que isso era impossível, eu estava sendo absurda, mas meu
coração de mãe não queria pensar no meu bebezinho se aventurando por aí
quando isso ainda estava tão longe de acontecer.
— E como ele encontrará essa garota, sem beijar algumas para fazer
o teste?
— Ele vai sentir.
Cobain riu. Eu sorri.
— Estou ansioso para ver a adolescência desse garoto.
Meu sorriso escorregou um pouco, conforme a ansiedade e o presente
medo do futuro se instalaram.
— Talvez você nem o veja nessa idade.
Depois de alguns segundos de silêncio, Cobain falou novamente.
— Mesmo se eu não estivesse na sua vida, eu estaria na dele,
Danielle.
Eu engoli em seco.
— Você promete? Promete que não importa o que aconteça, não vai
abandoná-lo?
— Claro que sim. Quem mais ensinaria a ele quais são os bons livros
e as boas músicas?
— A mãe dele.
— Se depender da mãe dele, ele terá pôsteres de One Direction em
seu quarto.
Dei um leve empurrão em seu peito.
— One Direction tem músicas incríveis, pare de ser um velho
preconceituoso.
Sua cabeça inclinou para o lado.
— Eles não têm alguma música sobre beijos?
— Algumas — sussurrei.
Cobain passou uma mexa do meu cabelo em volta de seu dedo
indicador e a usou como uma corda, puxando minha cabeça para perto da
dele. Quando sua mão segurou meu queixo...
— Oh! Vejo que atrapalhei!
Ele se afastou, levantando-se e estendendo a mão para me ajudar.
— Posso ajudá-la? — Cobain perguntou à mulher que acabara de
entrar.
— Solange me deixou entrar, ela já me conhece. Estive aqui uns dias
atrás, lembra-se, Danielle?
— Marilyn?
— Isso! Eu vim conversar e trouxe também um chá.
— Espere — ele continuou, segurando meu cotovelo. — Por que
Solange lhe deixou entrar? Eu não a conheço.
— Sou uma amiga de Danielle, vamos tomar um chá.
— Eu não me lembro de ter convidado a senhora para a minha casa.
— Ah, rapaz, você não precisa fazer isso. Eu viria ver minha vizinha
de qualquer jeito.
Ela segurou minha mão e bateu sua bengala no joelho dele, soltando
um pedido de desculpas risonho depois.
Eu ri, porque Marilyn não se importou nem um pouco com sua
grosseria, e porque percebi que sua veia gentil era toda para mim, quando o
resto do mundo tinha o acesso que eu tinha quando tudo começou: o
grosseirão insensível.
Me sentando na mesa do jardim com Marilyn, observei Cobain entrar
na casa com meu filho no colo e respirei.
Absorvi o falatório atropelado da velha mulher. Vi seu rosto
desfocado, ainda sem conseguir enxergá-la como era realmente.
Principalmente porque usava um chapéu e um óculos escuro grande demais.
E senti meu coração cheio. Imersa em Cobain James.
Ele era um salto no escuro. A única escuridão onde me senti segura
para mergulhar. E nem me importei se me afogaria no final.
Capítulo 34
"...eu sinto falta de metade de mim quando estamos separados
Agora você me conhece
Apenas para seus olhos
Eu tenho cicatrizes mesmo que nem sempre possam ser vistas
E a dor fica difícil, mas agora você está aqui e eu não sinto nada
Preste atenção, espero que você ouça porque eu abaixei minha guarda
Agora estou completamente indefeso
Apenas para seus olhos eu mostrarei meu coração
Para quando estiver sozinho e esquecer quem você é"
one direction, if i could fly

— Filho, por favor, você precisa comer. É gostoso, bebê. Olha. —


Dei uma colherada na gosma verde que ele se negava a comer, tentando fazê-
lo me imitar, mas a careta de desgosto que fiz, só o fez rir. Como se dissesse,
“eu avisei que era ruim”.
— Tudo bem, amor — concordei, deixando o pote de lado e pegando
uma banana. — Sem mais papinhas de salada verde. Quem foi que comprou
isso para você, hein?
— Eu comprei.
Cody começou a bater palmas ao ouvir Cobain, e simples assim, eu e
a banana fomos esquecidas. Meu filho só tinha olhos para o grande homem
cabeludo atrás de mim.
— Por que não se senta e experimenta o que comprou?
— Ele não gostou?
— Ah, ele adorou. Experimente.
Cobain pegou a tigela personalizada dos Backyardigans e encheu
uma colher, quase cuspindo depois de provar.
— Jesus! Como vendem isso para crianças? É horrível. — Ele pegou
Cody e fez um toque meio desajeitado de mãos. — Desculpe, garoto. Na
próxima você escolhe suas refeições.
Eu nunca poderia explicar o que me fazia quando ele interagia
daquela forma com o meu bebê. Cody nunca teve uma figura masculina por
perto, e agora tinha. E Cobain havia prometido que sempre estaria na vida
dele. Eu esperava realmente que independente do que acontecesse entre nós
dois, ele cumprisse sua promessa.
Cody era apenas um bebê inocente que se apegava às pessoas como
qualquer criança fazia.
Se ele se magoasse, perguntando por um Cobain que não estivesse
mais presente algum dia, a única culpada seria eu, por permitir que alguém se
aproximasse tanto, para partir seu pequeno coração jovem depois. Mas ainda
assim, eu não temia por isso. Cobain não parecia alguém que iria ferir uma
criança daquela forma.
— Você tem algo para fazer hoje?
— Fora cuidar de uma criança-pipoca? Não, nada.
— Ele tem uma babá?
— Tem, Gabi. Por quê?
— Danilo está fazendo aniversário hoje.
— Legal. Dê parabéns a ele por mim.
Cobain o colocou de pé em cima da ilha e Cody começou a dançar
com os bracinhos para o ar. Cobain balançou a cabeça, rindo com as mãos na
cintura.
— Esse moleque é uma figura.
— Pipoca, pipoca, pipoca, pipoca, pipoca pula. Vamos pipocar! —
cantei e ele dançou mais ainda, batendo palmas como sempre fazia quando
aquela musiquinha tocava.
Olhei para Cobain, que me encarava com a testa franzida e a boca
apertada.
— Você é louca. Seu filho também.
— Ele adora dançar.
— Sim, eu vejo. Então... Danilo disse que eu só entrarei na festa se
você estiver comigo. Eu não faço nenhuma questão de ir. Mas você quer?
Quer dizer... você quer ir?
Segurei o sorriso que queria explodir em meu rosto.
— Ir na festa?
— Sim. Na festa do Danilo.
— Claro. Quer dizer, se você quiser.
— Claro. — Ele assentiu. — Hum, vamos. Então...
— Então. — Eu estava sorrindo, segurando as mãos de Cody, que
continuava em seu momento particular.
— Sairemos às oito. Eu vou... hum... vou fazer algumas coisas no
escritório agora.
— Tudo bem. Às oito.
Ele tocou mais uma vez com Cody e saiu da cozinha. Eu esperei que
estivesse fora para agarrar meu filho e pular junto com ele.
— Ele não disse, bebê. Mas é como um encontro.
Cody bateu palmas e beijou minha bochecha.
Meu homenzinho estava torcendo por mim também.

(..........)

Tocava Michael Bublé desde que chegamos, quarenta minutos atrás.


Eu encontrei a desculpa perfeita em vigiar meu celular atrás de
alguma mensagem ou ligações de Gabi, no fato de que Cobain não conseguia
respirar dois minutos de paz antes de alguém se aproximar para alugá-lo. E
eram assuntos que eu sabia que ele não queria nem saber, por três motivos:
1) Sua expressão de tédio;
2) A falta de respostas para a maioria das coisas que diziam a ele;
3) Seu olhar vagando para longe da pessoa que tentava envolvê-lo em
uma conversa.
E essas eram apenas as principais. Mas também havia o fato de ele
olhar no relógio de pulso, as bufadas impacientes que dava e os pés batendo a
cada poucos minutos no chão. Sua falta de educação era rude, mas eu não
podia deixar de sorrir com o quão engraçado era a cara das pessoas notando e
se fazendo de cegas. Todo mundo que o abordava percebia seu mau humor,
mas ainda assim insistiam. Eu ouvia palavras como “patrocínio”,
“apresentação”, “reuniões” e coisas do tipo, então até entendia a má vontade
dele. Percebi que nem na festa de aniversário de seu amigo tinha sossego.
O único lugar que sua privacidade e paz eram respeitadas, era sua
casa. Fora aquelas paredes antigas e por fora malcuidadas, ele estava exposto
ao mundo. E as pessoas não sabiam ler placas em expressões. Não importava
que na de Cobain estivesse um claro “Não perturbe!”.
— Danidani!
Danilo me cumprimentou, oferecendo uma taça de champanhe.
— Ei, parabéns.
— Obrigado. Demorei a aparecer, desculpe. Alguém tinha urgência
em me felicitar. — Balançou as sobrancelhas e riu, revirando os olhos.
— Eu não precisava saber disso. Ia me desculpar por não trazer um
presente, mas depois dessa você até merece minha indelicadeza.
— Que nada! Já é um puta presente você fazer esse cara sair de casa
e vir até aqui.
— Ele costuma dispensar suas festinhas?
Danilo virou a taça, devolvendo a bandeja e pegando outras duas.
— As minhas e qualquer outra. Ele não suporta esse contato e a
barulheira toda. Geralmente, tomamos uma bebida no dia anterior ou no dia
seguinte do meu aniversário.
— Sinto muito.
— Não sinta. Ele é meu melhor amigo. Nossa comemoração em um
bar da esquina é bem melhor do que essa festa toda.
— Então por que você faz a festa?
— Não sou eu, é a minha assistente. Ela é uma velha que pensa que
isso faz bem para minha imagem. Não vou contrariar.
— Você pode. É a sua funcionária.
— É a minha mãe, também.
Eu dei risada, e o assisti roubar Cobain do outro cara, livrando-o de
mais aquela conversa fiada toda.
Pedi licença para ir ao banheiro e quando saí, me peguei presa em
uma sala com duas pessoas que não esperava ver naquela noite.
— Danielle! — Lizandra falou em um falso tom de empolgação. —
Como vai?
— Muito bem, e você?
— Oh, ótima. Se lembra de Sheila?
— Claro. — Acenei para a loira. — Bom te ver novamente.
— Não posso dizer o mesmo.
Fiquei surpresa diante de sua grosseria. Lizandra riu.
— Sheila está brincando, ela é brincalhona. — Seus olhos desceram
até minha perna, a que eu arrastava levemente para andar. — Vejo que está
um pouco debilitada.
— Estou bem.
Ela assentiu.
— Pobrezinha. Cobain nos falou sobre sua condição.
— Minha condição?
— Sim — Sheila respondeu. — Sentimos muito.
— Nesses casos os médicos dão algum tempo de vida, ou você
apenas senta e espera que chegue o momento?
— Não estou entendendo.
— Um conhecido tem o mesmo problema que você. Nós pensamos
que com os tratamentos ficaria melhor, mas acontece que hoje ele depende
completamente da esposa. A vida dela se torna mais miserável a cada dia que
passa.
Sheila estreitou os olhos para mim, e isso não abalou sua beleza
gritante.
— Você deveria ter vergonha de saber que futuro te espera e ainda
assim prender James a essa teia de... de...
— De? — desafiei.
— De destruição! Está indo ladeira abaixo e nem se importa e
arrastá-lo junto!
— O que queremos dizer, Danielle... — Lizandra continuou, abrindo
sua bolsa vermelho brilhante —, é que se está atrás de uma vida boa, não
precisa acabar com a do meu amigo. Faço um cheque agora e tudo o que tem
a fazer é se afastar de James. Ele tem uma vida inteira pela frente.
— E eu não tenho?
Ela deu de ombros, destacou um cheque e segurou uma caneta
dourada.
— Só me diga seu preço.
Eu não podia acreditar que àquela altura do campeonato, com todos
os problemas que eu já tinha, as duas iam querer me fazer de coadjuvante em
uma cena típica de novela mexicana. Aquela armadilha de me humilhar e
fazer-me correr para fora daquela casa. Comigo aquilo nunca daria certo. Se
elas me conhecessem na adolescência, quando eu andava de saltos rosa pelo
intervalo na escola com as minhas “amigas” naquela época, nunca ousariam
tentar essa tática.
Eu assenti, sorrindo para as duas antes de dar alguns passos à frente.
Estávamos longe demais e eu queria ficar perto para que as duas vissem a
determinação em meus olhos.
— Sheila... Cobain comentou que você lhe disse algo desagradável.
Eu realmente não te culpo, porque ele pode ser horrível com as palavras às
vezes. Mas a forma como ele te tratou, não deveria interferir em quem você
se torna. Então, a não ser que você realmente seja essa mulher maldosa que
está parecendo essa noite, não deixe que o que ele disse lhe faça ser
desagradável. Eu nunca lhe fiz nada para merecer esse seu olhar.
Ela abaixou a cabeça, desviando os olhos dos meus. Me virei para
Lizandra.
— E você... eu me pergunto se a verdadeira doente aqui não é você
por pensar de uma forma tão preconceituosa. Realmente espero que nenhuma
pessoa próxima sua, adoeça algum dia a ponto de depender de você.
Saí da sala de cabeça erguida.
Tinha convivido por muitos anos com pessoas como elas duas, que
mesmo tendo todo o dinheiro do mundo, não possuíam um pingo de
sensibilidade, empatia e gentileza com o próximo.
Sheila claramente tinha interesse em Cobain, isso estava muito claro
para mim desde o dia em que a conheci naquele quarto de hotel. Ele a
mandou embora e a mulher passou por mim esbarrando propositalmente.
Eu realmente estava feliz por ele não retribuir o interesse nela, porque
Cobain era bom demais para isso. E eu jurava que não pensava daquela forma
por ser apaixonada por ele, eram apenas fatos.
Existem mulheres que sugam.
Existem homens que sugam.
E quando você encontra alguém assim, a melhor coisa a fazer é
manter um muro de distância, até mesmo desviar do caminho dela. Porque no
fim, você se torna oco, tão vazio quanto a pessoa com que se envolveu.
Como Sheila. Como Lizandra.
Eu dizia isso por experiência própria. E queria o bem de Cobain mais
do que o suficiente para me alegrar por ele ficar longe.
E Lizandra, ela simplesmente queria protegê-lo. O tipo de amizade
que sufoca e tenta escolher por você. E ela me via como uma inimiga mortal.
Eu não sabia se pela minha doença, ou condições financeiras, ou até meu
filho como citou. Mas em sua visão, eu apenas não era boa o bastante para
ele. Lizandra me lembrava tanto minha mãe e suas amigas do clube da
sociedade de Minas, que era bizarro.
Eu não diria a Cobain, porque por mais que as duas tivessem
comportamentos mais que duvidosos comigo, pareciam se importar com ele.
E às vezes, era importante descobrir as coisas por nós mesmos. Cobain não
era nenhum menino ingênuo que precisava de instruções sobre boas e más
companhias. E nada do que eu dissesse ou fizesse, faria com que Sheila
deixasse de me ver como uma rival, e não impediria Lizandra de me colocar
vários degraus abaixo dela.
— Está tudo bem? — Cobain me perguntou quando voltei ao seu
lado.
— Sim, tudo certo. Ainda está tocando Michael Bublé.
— Poderia ser Sinatra.
Eu sorri, pegando uma taça que o garçom passava servindo.
— Ou Jamie Callum, que... eu tinha um pôster em meu quarto.
Ele revirou os olhos.
— Já te apresentei Nina Simone?
— “I put a spell on you, because you're mine...” — cantei,
balançando-me para trás.
— Louis Armstrong que poderia cantar uma lista de compras e ainda
seria uma das melhores canções em qualquer década.
— “Yes, I think to myself, what a wonderful world...”
Suas sobrancelhas ergueram quando cantei.
— Você conhece. Estou orgulhoso, Danielle.
— Pare de ser um velho chato, é claro que conheço. Essa música,
inclusive, me deixa triste.
— Uma música boa é como um bom livro, só é bom se quando acaba
você sente um aperto no peito.
— Eu não sei, Cobain James. Amo finais felizes e músicas alegres.
— “...You don't know oh-oh, that's what makes you beautiful...”
Eu ri.
— Você acabou de citar uma frase de One Direction?
— Foi só uma referência às músicas alegres que você gosta e não, eu
nunca cantei One Direction.
Ele apertava os lábios e as linhas de expressão na testa aprofundaram.
Só faltava corar. Ele estava envergonhado e foi impossível ficar séria.
— Tudo bem, vou esquecer isso. — Dei mais um passo atrás e ele
seguiu novamente. — Agora... Cobain?
— O que é?
— Você está dançando. E é Michael Bublé.
Ele olhou para os próprios pés que me seguiam, finalmente reparando
que havíamos parado no meio da sala. Então encolheu levemente os ombros,
passando a mão pelo cabelo e o queixo coberto da barba, antes de segurar
minha mão e puxar para si, girando-me.
— Então vamos aproveitar meu bom humor.
Como alguém poderia pensar em usá-lo daquela forma? O brilho nos
olhos daquele homem me fazia querer agarrá-lo e não soltar nunca mais.
Nenhum dinheiro no mundo me faria desistir de Cobain.
Eu ri.
Nós dançamos.
Sinatra, Callum, Armstrong, Simone e até mesmo Bublé.
E ele odiava dançar.
Mas dançou comigo até a hora de irmos embora.
Capítulo 35
"...talvez desta vez estamos quebrados
Porque eu não sei para onde ir a partir daqui
E se nós não podemos voltar atrás, amor
Eu não quero me afogar em lágrimas
Nosso amanhã simplesmente desaparece
E talvez desta vez nós estamos quebrados"
harry styles, broken

— Meus pais estão na cidade.


Cinco palavras.
Cinco palavras que me fizeram parar tudo o que estava fazendo e
prestar atenção total nele. O encarei por alguns minutos, conseguindo vê-lo
um pouco melhor com o olho direito. Ele sentou na minha frente, segurando
os brinquedos que Cody levava para ele um atrás do outro.
— Que bom.
O que mais eu poderia dizer?
— Eles virão para cá, se eu não for pra lá.
— Ah, sim, tudo bem. Eu posso ir para casa com Mali. Sem
problemas. — Levantei e peguei Cody. — Só espere eu colocar outra roupa
em Cody e arrumar uma bolsa, então...
— Venha comigo.
Eu parei.
Congelei meus pés no chão.
— O quê?
— Vamos até a casa dos meus pais comigo. Vamos apenas almoçar e
ficar um tempo.
— Não será estranho?
Sua testa franziu.
— Por quê?
— Quando eles perguntarem quem eu sou. E tem Cody, e...
— Meus pais amam crianças. Não será estranho.
— Hum, sim, você tem um sobrinho. É verdade. Sim, certo. Mas, e
sobre mim?
Eu estava gaguejando e ele reparou, mas gaguejei mais ainda quando
Cobain veio mais perto e segurou meu queixo. Meus olhos estavam tão
arregalados quanto os do meu filho.
— Danielle?
— Sim? — sussurrei.
— Não será estranho — ele sussurrou de volta e sem que eu
esperasse, selou nossos lábios.
O toque foi tão leve como uma pena arrastando em minha boca,
apenas dois segundos, talvez três. Poderia ter sido por vinte e eu não
reclamaria.
— Você vai vir?
— Sim.
Ele sorriu, passando a mão na cabeça de Cody antes de se afastar.
— Certo.

(..........)

Minhas mãos suavam. Aquele carro estava quente, mesmo com o


vidro aberto e o vento que vinha da janela batendo diretamente em mim.
— Onde eles estão hospedados?
— Não estão. Meus pais têm uma casa no Leblon.
— Sua família deve ver bem dividida entre a França e o Brasil.
— Sim, grande parte da minha família já viveu aqui. Estamos por
aqui, pela França e nos Estados Unidos. Os negócios expandiram bem.
— Todos falam português tão bem quanto você?
— Minha irmã ainda luta com algumas palavras de vez em quando,
mas se adaptou. Ela tem um chalé em Gramado e sempre passa o Natal lá.
Diz que é uma das cidades mais bonitas que já viu nessa época.
— É muito bonito mesmo. Eles enfeitam toda a cidade e parece um
lugarzinho encantado.
— Você já foi?
Desviando o olhar para encarar as ruas que passavam por nós pela
janela do carro, respondi minimamente.
— Sim.
Ele me olhou, mas percebeu que não era o momento de entrar
naquele assunto. Talvez pela minha voz, que falhou ao responder, talvez pela
minha expressão. Talvez eu não fosse tão boa em esconder coisas que me
machucavam.
— Meu pai vai se apresentar como Elvis, mas o nome dele é Henri.
— Por que Elvis? — Voltei a sorrir.
— Ele é fã do Elvis Presley. Acha que tem a voz igual e se deu o
apelido, embora seja o único que se chama assim.
— Eu vou chamá-lo de Elvis, então. Um sonhador precisa receber
apoio de alguém.
— Não faça isso. Ele vai começar a cantar para você e só vai parar
depois de dançar com a minha mãe pela canção toda.
Minha risada encheu o carro, e até Cody, que assistia o tablet de
Cobain no banco traseiro, confortável em sua cadeirinha, riu para mim.
— Estou imaginando você pequeno, com sua irmã dançando Elvis
pela casa.
— Eu era um ótimo dançarino.
— Aposto que sim. E como foi que o filho do Elvis se tornou um
pianista? O rei do rock e música clássica na mesma casa desestabiliza um
equilíbrio, não?
Um pequeno sorriso alcançou um lado de seus lábios.
— Eu não gostava da coisa clássica, sempre me deixava entediado. O
piano veio depois, quando eu descobri que podia fazer outros tipos de música
com ele.
— Por favor, não seja um clichê me dizendo que tocava rock e sua
primeira canção foi alguma do Nirvana?
Agora ele me deu um de seus raros sorrisos completos.
— Tudo bem, não digo.
Minha risada o fez rir um pouco mais.
— Isso é tão surpreendente, Cobain James.
— Não me culpe pela idolatria dos meus pais. O rock dominava
minha casa de um lado e o jazz do outro.
— Só não me diga que seu apelido na infância era Jimi. — Esperei
uma resposta, mas ele ficou em silêncio. Eu o fitei balançando a cabeça. —
Seu nome é apenas Cobain James?
Ele apertou os lábios em diversão antes de falar.
— Cobain... Manson James.
— Marilyn?
— Sim, meu pai estava na dúvida entre Manson e Lennon.
— John? Beatles, sério? Você tem algum nome de família?
— O que você consegue imaginar que possa combinar com Cobain
Lennon James?
Eu precisei parar para pensar por um momento.
— Hm... Fitzgerald?
Ele franziu as sobrancelhas.
— Não.
— Edwards?
— Não.
— Evans?
— Não.
— Urgh... eu não sei! Smith, Jones, Williams, Brown?
— Büttler.
— Cobain Manson James Büttler. Desculpe a pergunta, mas... em
algum momento da vida seus pais foram alcoólatras? É uma péssima
combinação!
Ele riu, estreitando os olhos para mim.
— Se você acha isso, espere até conhecer meus irmãos e minha irmã.
Eu senti um pequeno aperto bom no peito ao ouvi-lo planejar me
apresentar às outras pessoas da sua família, mas não deixei que a expectativa
gerasse qualquer esperança, tratei de continuar no assunto.
— Eu não sei se fico do seu lado para te dar apoio ou desisto
completamente de você.
— No seu lugar eu pensaria bem, visto que Cody está indo
diretamente para aquela casa, nas garras dos meus pais loucos. Posso forjar
sua assinatura e alterar o nome dele.
— Qual você colocaria?
O carro parou no semáforo e ele apoiou a mão no queixo, uma
expressão pensativa no rosto.
— Cody... Berry Mercury.
— Santo Deus. Freddie Mercury e...?
— Chucky Berry. — Me fitou e levantou uma sobrancelha. — Uma
das maiores lendas do rock que o mundo conheceu.
Eu gemi em frustração fingida.
— Quero você longe do meu filho.
— Impossível, o garoto me adora.
Eu precisei me esforçar para segurar o sorriso. Cody realmente o
adorava e eu desconfiava que mesmo que o nomeasse de Chuck, ainda assim
adoraria.
— E seus irmãos? Seus pais foram criativos nos nomes também?
— Minha irmã mais nova se chama Rose. Rose Chili Pepper.
Eu só consegui dar risada, porque embora a combinação fosse
inacreditável, o nome ficou bonito.
— Rose... eu suponho que seja Axl Rose?
— Exatamente. E Rose odeia rock. Led Cliff, é o meu irmão mais
novo.
— Led Zeppelin e...
— Cliff Burton, o baixista do Metallica. Minha mãe é fã dele.
— Ficou bem curtinho em comparação ao seu.
— Não se esqueça de colocar o Büttler no final de todos.
— Led Cliff Büttler não ficou ruim. Melhor que o seu, na verdade.
— Engraçadinha. E por fim, temos John Ozzy, o do meio.
— Certo... peguei o Ozzy Osbourne, mas John não me lembro.
— John é o nome real de Johnny Cash.
Eu levantei as mãos, confusa.
— Mas ele cantava country.
— Sim, mas ele também é um mito e meu pai pira nas músicas dele.
Eu balancei a cabeça.
— Estou realmente curiosa para conhecer seu pai. Sei que vou passar
vergonha porque não entendo um terço do que ele entende de música, mas...
— Não se preocupe. Ele provavelmente vai querer te dar uma aula e
vai adorar isso — Ele me olhou. — O interrompa a qualquer momento.
Eu ri o encarando e Cobain continuou me fitando, sorrindo por fim,
antes de voltar sua atenção para a estrada.

(..........)

— Cobain, você se esqueceu que eu lhe carreguei durante nove meses


e 10 dias? 10 dias a mais! Tudo isso para o quê? Se recusar a vir me ver, e só
veio porque ameacei de ir na sua casa. Você já foi um filho melhor!
Segurei o sorriso com o desabafo da mulher que era claramente sua
mãe, assim que abriu a porta. Cody estava em meu colo, brincando com seu
Buzz, fazendo-o repetir a fala gravada uma e outra vez. Eu me tornei mais
tensa do que já vinha no caminho todo quando Cobain abriu a porta e chamou
sua mãe, mas quando ela apareceu, gritando em seu sotaque pesado com ele
sobre ser um péssimo filho, percebi que era apenas drama de saudade e a
tensão diminuiu, deixando-me respirar um pouco mais leve.
— Estou bem também, maman. — Eu podia vê-lo revirando os olhos
e ela deu-lhe um tapa no ombro. — E a senhora?
Ela o soltou de seu abraço e balançou a cabeça.
— Meu coração dói nesse momento, mas estou bem. E você deve ser
Danielle! Estou feliz em conhecê-la finalmente. Danilo falou de você em sua
última visita.
— É muito bom conhecer a senhora também. Danilo... Lobos?
— Sim, sim! E me chame de Lice, sem essa coisa de senhora.
— Danilo esteve aqui? — Cobain perguntou.
— Ele ligou, ele sempre liga. — Ela me fitou, piscando antes de
continuar. — Ele nem saiu de mim e faz mais que meus próprios filhos. Você
sabe, James, que assim que nasceu, quando coloquei meus olhos em você e vi
os olhos verdes do meu marido, soube que eu teria problemas? Adivinhei na
mesma hora. E aqui está, tão ingrato quanto seus irmãos e irmã!
— Ei, o que meus olhos têm a ver com essa história?
Um homem falou, vindo do corredor, sorrindo. Tinha uma camiseta
cheia de coqueiros laranja e azul, um topete no cabelo grisalho e um
cachimbo na mão. Eu nem precisava ser apresentada para saber que era o pai
dele.
— São olhos de um aproveitador. Só me usa e me deixa na rua da
amargura! — Ela segurou minha mão e me deu um sorriso. —Você é
absolutamente linda, e esse bebê? É adorável.
— Obrigada. — Meu sorriso era nervoso e agradecido, estava tão
aliviada que ela era simpática. Era um contraste gigante do que eu conhecia.
A minha mãe nunca teria sido tão acolhedora, fazendo brincadeiras e
agindo como se não tivesse uma estranha em sua casa.
— Olha, ele está sorrindo para mim. Posso pegá-lo?
— Claro.
Cody foi para o colo dela sem nenhuma reserva. Meu filho era tão
dado. Ele nem se importava se nunca a tinha visto na vida, simplesmente
estava feliz em receber atenção de onde ela pudesse vir.
— Pai, essa é Danielle. Uma... amiga.
Escondi a decepção daquele lembrete e sorri, apertando a mão livre
do homem.
Uma amiga. Isso era tudo o que eu era. Precisava me lembrar disso.
— Pode me chamar de Elvis. Bom te conhecer!
Uma risada me escapou e assenti.
— Sim, é ótimo conhecer todos vocês.
Eu queria dizer algo como: “ouvi falar coisas boas sobre vocês”, ou,
“Cobain contou muitas histórias!”. Mas nem podia, porque eu só sabia seus
nomes até então, e descobri apenas a minutos atrás.
Ele piscou e deixou o cachimbo de lado, se aproximando de Lice.
— Querida, deixe-me conhecer o garotinho!
Ela olhou seu marido por cima do ombro.
— Não, fique aí você e seu filho com seus olhos claros. Nós,
castanhas, vamos nos juntar aos outros na piscina. Vamos, Dani. Vou
apresentá-la a família.
Meu coração encheu com o “Dani”, um sorriso se apegando
fixamente ao meu rosto. Dei um último olhar a Cobain antes de segui-la pelo
corredor largo. Avistei a porta de vidro com as bordas de madeira branca, e já
tive um vislumbre de uma criança correndo com outra logo atrás, conversas,
música e risadas.
Precisei parar por um momento quando ela abriu a porta, surpresa
com a visão diante de mim. Era uma cena de filme. A piscina com algumas
boias dentro, inclusive algumas de animais, um homem em frente a
churrasqueira e uma mulher próxima dele. Um rapaz que imediatamente
percebi ser irmão de Cobain, surgiu de algum lugar e correu, se jogando na
piscina. Ele emergiu, jogando seus cabelos compridos para trás e sorrindo, os
olhos verdes que eu bem conhecia estavam ali.
Haviam dois outros menininhos sentados perto de uma outra mulher,
brincando com super-heróis.
Olhei para trás, pegando os olhos de Cobain focados em mim. Etava
tão atenta em tudo, que não percebi que haviam nos seguido para fora. Eu
queria chamá-lo num canto e perguntar se estávamos no lugar errado, porque
ele definitivamente não parecia se encaixar ali. Todas aquelas pessoas
sorridentes, unidas, felizes... isso era tão distante dele.
O quieto, solitário, mal-humorado e triste Cobain que eu conheci.
— Vovó! — Um garotinho correu até Lice e abraçou suas pernas.
— Ei, meu menino. Você tem um outro companheiro para brincar
hoje, veja só. — Ela se ajoelhou, colocando Cody de pé em frente ao garoto.
— Esse é o Cody. A mãe dele é essa moça bonita, a Danielle.
Ele me olhou e os olhos escuros me fitaram cheios de insegurança
antes de se aproximar e estender a mão.
— Olá, sou o Dédier.
Deduzi que aquele era o sobrinho que Cobain disse que tinha. Sorri
para ele, tentando deixá-lo mais confortável e segurei sua mão.
— Um prazer conhecê-lo. Gostei do seu boné, Cody adora o Buzz.
— Mesmo? — Seus olhos arregalaram. — Eu tenho a coleção do Toy
Story, será que ele gostaria de ir brincar comigo?
Abaixei até ficar olho a olho com ele.
— Ele só tem o Buzz, então tenho certeza que se você mostrar os
outros, ele vai adorar.
Dédier levantou um soco no ar, pulando e gritando sobre ir pegar os
brinquedos no quarto.
— Aí estão vocês! — O rapaz da piscina abraçou Cobain, fazendo-o
reclamar sobre o encharcar e sorriu para mim. — Sou Led, legal te conhecer.
Aceitei seu aperto de mão, e imediatamente começou a passar a letra
de Stairway To Heaven em minha cabeça.
— Desculpe — falei. — Não consigo pensar em outra coisa que não
seja qualquer música deles agora.
Eles deram risada e Led acenou para Henri.
— Obrigada por isso, pai. É por causa disso que estou solteiro. Não
consigo nem começar a paquerar alguém que já viro piada.
— Você não teria nenhuma chance, idiota — Cobain falou, batendo
na parte de trás da cabeça de seu irmão mais novo.
Ele se afastou, rindo, e correu de volta para a piscina.
— Rose e John! Cobain está aqui, venham conhecer nossa visitante!
Ela deixou Cody e eu dei um passo à frente para segurá-lo, com medo
de correr até a piscina, mas Cobain parecia agir naturalmente quando se
colocou atrás do meu filho. Ele nem me olhou, não sei se sequer percebeu
que o fez, apenas fez.
Engolindo em seco, sorri para as pessoas que se aproximaram, me
abraçando e dando as boas-vindas.
John parecia ser mais sério, mas não como Cobain. Eu diria que...
tímido. Seu cabelo não era grande, também, e ao invés dos olhos verdes de
Henri, ele tinha os castanhos de Lice, mas ainda era tão bonito quanto seus
irmãos. Alto como eles e simpático como Led, mas diferente de Cobain.
— Fico feliz que meu irmão te trouxe. A família é meio louca, mas
você se acostuma depois de algumas horas.
— Ou sai daqui tão louca quanto. — Uma ruiva enrolada na toalha
me abraçou. — Oi, sou a Norise, namorada do John.
— Eu ouvi que você era bonita, mas não pensei que fosse tanto —
uma voz falou atrás de mim, e fui surpreendida com um abraço. — Sou a
Rose. Venha, vamos sentar e falar mal do meu irmão mais velho.
— Se controle, Rose — Cobain alertou.
— Ah, deixe eu me divertir, James!
Segurando minha mão, Rose nos levou até uma mesa à sombra do
jardim.
— Preciso ficar de olho no meu filho e...
— Relaxa! James está com os olhos grudados nele. E você tem um
lindo bebê.
Eu sorri e desviei os olhos dela por um minuto, para confirmar que
Cody estava bem.
Mas realmente, nem havia porque duvidar. Cobain o tinha em seus
braços enquanto seus pais e seus irmãos sorriam e tentavam se aproximar do
meu filho. Pela primeira vez na vida, Cody estava presenciando algo em
família. Era bom que eu não estivesse lá perto, porque sabia que estava à
beira das lágrimas.
Eu esperava mais do que nunca que a promessa feita por Cobain, de
ficar perto de Cody mesmo que não estivesse perto de mim, fosse real,
porque finalmente Cody era parte de algo maior.
Alguém além de mim e Mari Louise para chamar de família.
Capítulo 36
"...se eu permanecer completamente sozinho
Irão as sombras esconder as cores do meu coração?
Azul para as lágrimas, preto para os medos noturnos
As estrelas no céu não significam nada para você
Eu não quero conversar sobre como você partiu meu coração
Mas se eu ficar aqui apenas um pouquinho, você não ouvirá meu coração?”
rod stewart, i don't want to talk about it

— “You can do anything but lay off of my blue suede shoes”


Eu não podia me controlar.
Minhas bochechas doíam de tanto rir, como não fazia há muito
tempo. A família de Cobain era hilária, principalmente seus pais. Deus... eu
via o amor brilhando em seus olhos quando se olhavam e isso tornava tudo
melhor.
Henri cantava e dançava os maiores sucessos do Elvis. Ele começou
despretensiosamente. Não queria chamar nossa atenção nem nada do tipo,
mas eu percebi quando o vi dançando do outro lado da piscina, e foi
confirmado quando Rose se inclinou para mim e riu.
— Ele ama dançar as músicas do ídolo. O nome do James era para
ser Presley, mas maman o salvou.
— Céus, Cobain Presley seria terrível.
— Sabe que você é a única que o chama de Cobain? É até estranho.
— Mesmo? Me acostumei.
— Sim, acho que sim. É só estranho porque ele nunca gostou de ser
chamado assim.
Eu não me lembrava de Cobain já ter me dito algo ou reclamado da
forma como o chamo. Rose sorriu mais ainda.
— Mas não se preocupe, parece que vindo de você ele gosta.
Tampei o rosto com as mãos e ela caiu na risada. Rose e eu seríamos
a arte de tortura perfeita contra Cobain, porque ela falava tanto quanto eu.
O almoço foi servido da forma mais brasileira possível, e eles
falavam português tão bem que eu até me esquecia que não eram daqui. Vez
ou outra falavam em sua língua natal, que por acaso, me deixou de boca
aberta quando ouvi Cobain falando em francês com seu irmão. Graças a
cristo que Rose viu e me cutucou, provocando:
— Ai, Dani! Você é tão óbvia.
Eu o observava várias vezes pelo canto dos olhos, ora com seus
irmãos, ora sentado perto de mim na mesma mesa, sempre calado, sorrindo
um sorriso discreto, sem mostrar muito o que estava sentindo.
Em algum momento durante a tarde, eu desviei a atenção de Norise,
que me contava sobre os esportes radicais que ela e John gostavam de
praticar, e vi algo que encheu meu coração. Como se aquela tarde já não
estivesse perfeita, Cobain a melhorava mesmo sem perceber que fazia isso.
Ele estava com Cody, perto da piscina, ajoelhado perto de um
formigueiro, apontando e conversando com meu filho. Cody o encarava sem
piscar, as perninhas dobradas imitando a posição do homem a sua frente e os
cabelos molhados de suor. Ele tinha se divertido. Eu queria saber o que Cody
pensava quando olhava com tamanha atenção para Cobain. E mais do que
isso, queria saber o que a família de Cobain pensou quando viu aquela cena,
porque quando desviei o olhar, cada um os fitava da mesma forma que eu.
Havia um ponto de interrogação gigante em minha cabeça, provavelmente na
deles também.
— O que você faz, Dani? — Led perguntou, mordendo uma asa de
frango e entregando uma a Cody, que havia acabado de sentar no meu colo.
— Oh, sim, nos conte! — Rose bateu palmas. — E onde você e
James se conheceram?
Engoli em seco, olhando de volta para a enorme casa deles, a
estrutura de vida que tinham e olhei para mim mesma, percebendo só então
um pequeno pontinho branco na minha saia roxa, manchada de cândida.
Então fitei seus rostos ansiosos, esperando minha resposta.
— Eu, hum... bem... — Olhei para Cobain, incerta do que dizer. Ele
franziu as sobrancelhas e eu não fazia ideia do que isso significava.
— Parem de ser curiosos, vão deixá-la envergonhada — repreendeu.
— Não, quer dizer... tudo bem. Eu, hum... trabalho no Teatro
Municipal.
— Oh! Eu adoro Teatros! — Norise exclamou. — O que faz lá?
Eu não sabia porque estava tão receosa em dizer. Sempre tive orgulho
de mim mesma e de como consegui cuidar do meu filho e do trabalho, nunca
escondi quem sou. Ser batalhadora nunca foi vergonha para mim. Mas a
suspeita de que iriam me olhar torto, ou pensar como Lizandra, me deixava
cheia de inseguranças. Quer dizer, se uma mulher que era apenas amiga dele
pensava que eu era escória, o que sua família, absolutamente rica e
aparentemente perfeita, acharia?
— Ela é recepcionista.
Meus olhos arregalaram quando Cobain disse, tomando um gole de
seu suco tranquilamente depois. Baixei os olhos para Cody antes de olhar
para cima, esperando que desviassem o olhar, ou começassem a se afastar.
— Se conheceram lá? — John perguntou.
Eu não podia falar.
— Sim. Eu liguei e ela atendeu, e nos conhecemos quando apareci
alguns dias depois.
Esperei o silêncio tenso.
Mas então...
— Eu aposto cinquenta reais aqui e agora, que Cobain foi um
estúpido. Tanto na ligação quanto pessoalmente — Led falou.
— Quem vai apostar com você? — Rose revirou os olhos. — Todos
sabemos que ele pode ser um idiota quando quer.
— Não fale assim do meu bebê — Lice defendeu. — Danielle vai
pensar que ele é um ogro.
— Ela já diz isso sempre — Cobain falou e risadas soaram no ar.
— Boa, Danielle. — Henri riu, oferecendo-me a mão no alto para
bater.
— Eu sabia que essa menina era inteligente assim que a vi —Led
concluiu.
— Você não deveria se vangloriar demais, Led — Rose continuou.
— Onde Cobain é estúpido, você é idiota. Pode ser tão irritante quanto mais
ninguém.
— É tão bom que eu seja o irmão exemplar — John se vangloriou e
nisso começou outra rodada de discussões. Aproveitei a distração para me
recuperar da surpresa, da falta dos julgamentos.
Senti a mão dele pegar meu braço, e segundos depois, ele tinha os
dedos pressionados em meu pulso.
— Danielle?
— Sim?
Cobain se aproximou, deixando sua boca tão próxima quanto podia
do meu ouvido.
— Nunca tenha vergonha de quem você é. Eu não tenho e meus pais
nunca teriam.
Ele levantou, pegou Cody do meu colo e caminhou até a piscina,
sentando-se na beirada com as pernas para dentro. Eu fiquei ali, meus dedos
substituindo os seus. Lembrando-me de respirar.
— Já sei! — Lice gritou.
— O que foi, linda? — Henri perguntou.
— Vou pegar as fotos. Os álbuns de fotos!
— Isso! — Norise cantou. — Amo ver fotos!
Ela sentou do meu lado e piscou para mim.
— Você vai ver como John era uma gracinha quando pequeno.
— Maman, não se atreva! — Led gritou, correndo atrás dela. —
Essas são as piores fotos de sempre! Qual o problema com vocês? Já não
basta terem me nomeado de Cliff?
Terminei meu suco, apenas assistindo a conversa de Rose e Norise
sobre coisas diversas. Foi quando Henri sentou ao meu lado. Fiquei tensa.
— Ei, então...
— Oi. — Sorri discretamente, mexendo-me no banco.
— Gostou do meu show?
— Sim, Elvis... parece mesmo.
Ele bufou.
— Meninas bonitas e suas mentiras para agradar homens
desagradáveis.
Dei uma risada baixa, mas fiquei quieta. Não sabia o que falar.
— Eu não quero parecer futriqueiro, mas estou ficando velho e sou
casado com Lice, então vou usar isso como desculpa e perguntar... Você e
meu filho?
— Nós somos apenas amigos. Eu tive alguns problemas e Cobain me
ajudou, foi só isso.
— Entendo. Bem, se é assim que veem...
— Sim, sou uma amiga — repeti a forma como Cobain me
apresentou.
— Você sabe, Danielle... — ele começou assim que Lice saiu pela
porta, com Led atrás dela carregando duas caixas. — Eu sou um homem
muito rico, hoje, um dos maiores empresários da França.
Meu coração disparou, o almoço já ameaçando subir.
— Senhor...
— Mas antes de ter todo o meu patrimônio, conheci aquela linda
mulher ali. Eu era só um universitário que dividia o apartamento com mais
quatro colegas de quarto e fazia um cover do Elvis pelas ruas de Paris para
conseguir pagar a faculdade. E ela, nossa, ela parou em um semáforo, me viu
e desceu do carro esporte que dirigia, vindo naqueles saltos rosas e ficou me
assistindo a noite toda.
Eu estava de boca aberta agora, surpresa com a revelação.
— Ela me convidou para sair e não me deixou gastar os trocados que
consegui no chapéu com as apresentações daquela noite. Nós nos sentamos
debaixo da Torre Eiffel e ela me disse que ia me beijar, e se seu pé erguesse,
casaria comigo. Eu dei risada, porque... olha só para ela e olhe bem para
mim. Ela levantou o pé e depois me contou que foi de propósito, e que o
nome do nosso primeiro filho seria o do ídolo rock dela. Ela tinha um futuro
certo. Sairia da faculdade e tinha o mundo aos seus pés. Um noivo planejado
pelo pai, que era filho de um sócio dele, uma mãe infernal que me ofereceu
um cheque em troca de deixá-la, e um irmão que foi meu único cúmplice
nisso tudo. E sabe o que eu tinha? Uma bicicleta, que vendi para dar a entrada
no anel mais barato que consegui para pedi-la em casamento. Ela aceitou. Só
que o mais importante nisso tudo, é que ela tinha fé em mim.
Eu segurava as lágrimas quando ele levantou, soprando a fumaça do
cachimbo para cima.
— Ah, e mais uma coisa... meus filhos sempre me perguntavam
porque eu tinha uma fascinação tão grande pelo Elvis e eu nunca disse. Mas
agora você sabe.
— Por que está me dizendo tudo isso?
Ele sorriu.
— Você sabe o porquê. Como eu disse... é uma menina inteligente.
— Encontrei as fotos! Venha ver, Dani. Não vai acreditar em como
James era um bebê fofo. — Inclinando-se, ela sussurrou para mim: — Vou te
dar as fotos que ele está de cueca.
Limpei rapidamente a lágrima que escorreu, impedindo que alguém
visse, e dei risada. Quando olhei para cima, Henri piscou para mim. E eu falei
sem nenhum som, “Obrigada, Elvis”.
Lice abriu o primeiro álbum de fotos e começou a falar, mas foi aí
que tudo desabou.
Ou começou a desabar.
— O que foi, mano? James, cara?
Fomos atraídas pela voz de Led, que segurava o ombro de Cobain.
Ele se afastou e foi em direção a casa. Eu só percebi quando já estava lá e
segurei Cody antes que ele desse mais um passo perto da piscina.
Cobain olhou para trás, seus olhos arregalando ao perceber que saiu e
deixou Cody sozinho quando o tinha protegido o dia todo.
— Eu... meu Deus, Danielle. Desculpe! Meu telefone tocou e...
— Você disse que não tinha um — sussurrei, segurando meu filho
tão perto que precisei soltar um pouco para não o esmagar.
Cobain piscou, e piscou mais uma vez. E quando pensei que fosse
chegar mais perto e falar comigo, ele deu mais um passo atrás.
— Tenho que ir.
— James! — sua mãe chamou. Ele parou e a olhou com olhos
torturados.
— Tenho. Que. Ir.
Me sobressaltei quando a porta bateu.
A música não parecia mais tão divertida e as conversas não existiam
mais.
— Ele vai voltar em breve — Rose falou ao meu lado. Sua voz era
trêmula, assim como sua mão quando pegou a minha.
— Vamos... vamos entrar — Lice disse, mas percebi que tinha seu
celular na mão, como todos os outros, e olhava para a porta a cada dez
segundos.
— Ok. — Foi a minha resposta.
Me sentei na sala.
Aceitei uma xícara de chá.
Eu odiava chá.
Segurei meu filho perto e neguei quando o chamaram para brincar.
O telefone de Cobain tocou.
Ele disse que não tinha um.
Se eu não estivesse perto, Cody podia ter caído naquela piscina,
porque o maldito telefone tocou.
E todos ali sabiam o que significava, menos eu.

(..........)

— Talvez eu devesse levá-la para casa? — John ofereceu.


— Você não acha que ele volta, filho? — Lice perguntou, torcendo o
celular nos dedos. — Ainda são nove.
— Mãe — John disse apenas isso e ela assentiu, desviando o olhar.
Eram nove e quarenta e oito na verdade. E Cobain havia saído por
volta das quatro.
Cody dormia no meu colo e a tarde se tornou extremamente forçada,
todos tentando agir normalmente quando pareciam querer correr atrás dele. E
provavelmente só não faziam isso por causa de mim.
Eu teria perguntado o que houve. Deus sabe que minha língua solta
venceria. Mas o fato de que ele colocou meu filho em risco por uma ligação,
me fazia perguntar a mim mesma porque eu confiei. Estava quase impossível
manter meus olhos longe de Cody, quando a imagem de ele correndo
diretamente para a piscina ainda me aterroriza a cada minuto.
Céus... eu queria chorar.
Eu me despedi de todos, recebendo de Lice um abraço apertado, e
Rose me entregou um papel com o número dela anotado. Fui educada e
gentil, e meu embaraço começou quando dei o endereço da casa de Cobain
para seu irmão. John me olhou, mas não disse nada. Ele segurava a mão de
Norise enquanto dirigia.
Agradeci quando paramos em frente ao portão, peguei minha bolsa e
Cody adormecido no outro braço, e quase caí com todo o peso. Deixei a bolsa
escondida do lado de dentro do portão e o fechei, segurando Cody com os
dois braços.
A porta não estava trancada, então passei pelo corredor e quando
cheguei na sala, minha boca abriu em choque. Surpresa e terror. Medo de que
alguém tivesse entrado ali e feito o estrago que eu via pela sala. O piano
estava virado, cacos de vidro por todos os cantos e rosas jogadas pelo chão. O
sofá estava caído para trás e cada almofada pousada em um lugar, alguns
papéis no chão e a grande estante alta estava tombada, só não caindo em cima
de tudo porque ficou apoiada no lustre aparentemente muito resistente.
O que aconteceu ali?
— Cobain?
Eu queria correr dali, mas já não alcançaria John, e a preocupação de
que algo tivesse acontecido com Cobain era maior.
— Co-Cobain?
Segurei Cody mais apertado e avancei pelo corredor, a porta do
jardim estava aberta. Passei pela cozinha, vendo-a intacta, e de longe ouvi
algo. Uma música tocando. Não reconheci, mas a segui. E assim meus pés me
levavam para lá sozinha, automaticamente. Todo o medo de alguém ter
estado ali evaporou, porque de alguma forma, eu sabia que aquilo foi obra
dele e não um roubo ou algo do tipo.
Ele estava sentado no chão, com as costas contra a parede e a cabeça
também. Seus olhos perdidos no céu não mostravam nada, ele sequer teve
uma reação quando meus pés fizeram barulho no piso de madeira velha.
— Cobain... você está bem?
Sem resposta.
— Está machucado?
Nada.
— Precisa de alguma coisa?
Completo silêncio.
— Droga, você está me apavorando!
Ele me olhou. Minutos se passaram enquanto os olhos sem nenhuma
emoção se mantinham fixos nos meus, arregalados de pânico.
— Sim, Danielle. — Levantou-se lentamente e passou as mãos pelos
cabelos. — Preciso de algo.
— O que...
— Preciso de uma porra de paz! — gritou, empurrando o aparelho de
som para o chão. Me sobressaltei, dando dois passos atrás. — Preciso que a
porra do mundo pare de girar agora. Preciso que as últimas horas sejam
apagadas, preciso que se Deus existe, ele pegue a folha onde escreveu o meu
destino e reescreva, porque eu não aguento mais um segundo de merda! É
disso que eu preciso.
— Cobain...
— Pode falar com Deus? Hein? Pode dizer a ele para me deixar em
paz? Você não pode, então não pode fazer absolutamente nada.
— Não, por favor, por favor não volte a ser assim — supliquei.
Ele soltou uma risada sem graça, desesperada.
— Sabe o que é engraçado? Além de me foder como pode, ele ainda
manda você. Porque já não basta me tirar tudo, ele ainda tem que pegar o que
sobrou e arrebentar com isso também.
— O que você está dizendo? Cobain, fale comigo.
— Eu destruo tudo o que toco, tudo o que passa por mim se vai, e eu
não vou suportar se algo acontecer a você.
Minha testa franziu.
— Pare de dizer coisas assim sobre si mesmo. Lembre-se de como
tudo funciona quando conversamos. Me diz o que está acontecendo...
— Eu quero que você vá embora.
— Não me mande embora outra vez, porque não vou voltar. Você já
disse isso antes e olha onde estamos.
— Antes não era agora. — Ele se aproximou, seu rosto se tornando
uma máscara fria, do mesmo homem que me tratou com tanta indiferença
quando me conheceu.
Mas a diferença é que dessa vez eu o conhecia. Eu conhecia o
suficiente para saber que me afastar era uma forma de continuar se mantendo
sozinho. Mas por quê?
— É a mesma coisa se...
— Antes — gritou. — Não era agora!
Cody pulou no meu colo, acordando, e levantou a cabeça, seu
rostinho se contorcendo antes de começar a chorar.
— Eu não quero ter que machucá-la, Danielle. Mas vou se não for.
— Você não...
— Meu pai te contou sobre Elvis, não contou? A história da minha
mãe. E agora você acha que tendo sua preciosa fé em mim, vamos ficar
juntos e ter um futuro, como os meus pais?
— Eu nunca pensei assim!
— Eu não deveria ter beijado você, eu não deveria ter abraçado você
e eu com certeza não deveria tê-la trazido para cá quando já sabia que era
uma perda de tempo.
Meus olhos lacrimejaram e mesmo que ele estivesse sendo tão cruel,
eu ainda queria acreditar que era mentira. Mas suas palavras eram tão fortes,
tão cruas.
— Pare — sussurrei.
— Eu nunca deveria tê-la feito acreditar em algo que nunca vai
acontecer. Porque eu não sou a porra do seu príncipe encantado.
Eu solucei, as narinas dele alargaram, mas seus olhos se mantiveram
fixos em mim, vazios como minutos atrás.
Tropecei, batendo na parede atrás de mim, e só então percebi que já
me afastava dele. E com esse impulso, corri para fora.
Eu deixei Cobain James após ele quebrar meu coração dentro da mesma casa
onde o curou todas as outras vezes.
Capítulo 37
"...não se atreva a se render
Não me deixe aqui sem você
Porque eu nunca poderia
Substituir a sua perfeita imperfeição
evanescence, imperfection

— Essa lente ou a anterior?


— Essa.
— O que você enxerga agora?
— E, Y, B, M, O, N.
— Muito bem. Pode levantar.
Saí da cadeira e me sentei em frente à mesa do oftalmologista. Ele
pegou papel e caneta e começou a falar.
— Vamos fazer o exame de fundo de olho, está bem? Você consegue
ver normalmente com o olho direito, mas nada do esquerdo.
— Mas vou conseguir, certo?
— Até alguns dias atrás não podíamos afirmar que você voltaria a ver
com os dois, mas a de um olho já voltou, precisa esperar e ver como será a do
outro. Você nunca usou óculos, nem lentes de contato antes, conseguia
enxergar bem ou na média?
— Antes do último surto, conseguia ver até os mínimos detalhes de
tudo.
— Então, o problema não originou por algo na sua vista, mas por
conta da EM. Você pode fazer os óculos com o grau que tem hoje, mas pode
ser que daqui a alguns dias precise trocar novamente.
— E se a visão do meu olho esquerdo não voltar?
Ele apertou os lábios em uma linha fina.
— Literalmente, só o tempo vai dizer. Eu poderia te pedir um
acompanhamento dado a causa do problema agora, se essa fosse outra
situação. O caso é que, por causa da esclerose, não consigo fazer isso. Vou
pedir que volte no próximo mês e vamos ver de novo como está indo, e caso
você perceba alguma mudança, ligue e marque o retorno antes da data
agendada.
— Então... não há realmente nada que eu possa fazer além de
esperar? Nenhuma cirurgia, nada?
— Sinto muito, Danielle. Sei que você deve ouvir isso desde que foi
diagnosticada, mas por isso mesmo sabe que a esclerose é um mistério. Não
podemos fazer nada com o desconhecido, além de esperar pelos próximos
sinais.
— Sim, eu sei. Nunca tem muita coisa que eu possa fazer.
— Não é só com você. Ontem mesmo eu recebi um paciente que um
outro oftalmo lhe passou uma receita para um novo óculos. Ele pagou
setecentos reais para conseguir ver com o grau que o médico deu, mas
descobriu que na verdade, o que tinha era diabetes. Quando ela foi tratada e
normalizada, os óculos ficaram perdidos. Ele nunca teve problema na vista. E
isso é o que acontece quando se apressa algo que não deve ser apressado. Os
sinais estavam todos ali, mas o doutor errou, e isso levou o paciente a um
prejuízo que não era necessário. Não costumo falar sobre outros pacientes,
mas só quero que entenda que às vezes, a paciência é o melhor. Fique feliz
que a visão de um olho voltou.
— É, está bem. Nos vemos daqui um mês.
Peguei meus documentos na recepção e liguei para Mari Louise,
tentando avisar que já estava pronta para ir. A ligação foi para a caixa de
mensagens. Esperei cinco minutos e tentei de novo. Eu estava parada em
frente a porta, por isso, quase morri do coração quando um carro acelerado
parou na minha frente e buzinou. Mali abaixou a cabeça e acenou.
— Entra, amiga!
Levando a mão ao peito, arregalei os olhos olhando o carro que ela
dirigia.
— De quem é esse carro?
— “Olhos azuis” precisou fazer uma viagem de urgência e deixou
comigo.
Hesitante, abri a porta e entrei. O carro era tão luxuoso por dentro
como por fora. As unhas longas e bem-feitas dela brilhavam no volante, os
óculos escuros tampavam seus olhos pequenos e o sorriso enorme estampado
no rosto me fez balançar a cabeça.
— Mari Louise... isso não me cheira bem.
— Tá doida? É mais cheiroso que meu quarto inteiro!
— Você entendeu o que eu quis dizer. Ninguém viaja e deixa um
carro desse com alguém que conheceu há pouco tempo.
Ela tirou os óculos e o sorriso escapou um pouco.
— Ninguém se muda para a casa de um praticamente estranho em
pouco tempo.
Chocada com sua resposta, desviei o olhar e logo senti sua mão na
minha.
— Droga, Dani. Desculpe. É só que... eu sei que é muito, mas ele me
trata como uma rainha e não há nenhum problema em deixar o carro aqui,
quer dizer... ele confia em mim.
Assenti.
— Ok. Eu sei que não sou a mais inteligente para chamar sua atenção
sobre nada, mas me preocupo. É isso o que as amigas fazem.
O carro encostou e ela tirou o cinto, virando completamente para
mim.
— Fui uma estúpida, me desculpa. Eu só estou acostumada a ficar em
alerta. Parece que nada de bom acontece comigo e quando finalmente
aconteceu, não quero que meus medos e inseguranças venham à tona para
estragar isso, sabe?
— Tudo bem, Mali. Eu te conheço há anos, quando aparece um cara
do nada e principalmente nunca nem foi em casa se apresentar, meu primeiro
instinto é querer protegê-la. Não é que eu não ache que você mereça ser
tratada bem, é só... medo.
Medo de vê-la sofrer como eu; medo do tratamento digno de uma
rainha, se tornasse anos de fuga e tortura; medo de que quando ela dormisse,
implorasse que não tivesse pesadelos.
Ela sorriu e me abraçou.
— Eu sei, e é por isso que você é minha melhor amiga. E de qualquer
forma, ele já foi lá em casa, sim.
— Ah, é?
— Uhum! Você estava na casa do seu... — Ela parou e voltou a
dirigir, limpando a garganta. — Você sabe quem.
Meu coração doeu com a menção a ele. Era impossível esquecê-lo, e
quando eu conseguia por alguns breves minutos, sempre vinha algo que me
fazia lembrar. Faziam duas semanas que eu tinha saído da casa dele, e não
tive notícias desde então. De alguma forma Rose conseguiu meu número e
me colocou em um grupo com ela e Norise. As duas eram incríveis e se não
fosse o fato de me lembrarem constantemente dele, eu falaria com elas mais
vezes.
Rose nunca me falou o que aconteceu aquele dia e eu nunca
perguntei. Ela nunca falou sobre ele, também, e eu não questionei. Eu já tinha
passado por coisas suficientes para saber que haviam questões que, serem
deixadas para trás, era o melhor. Cobain tinha algo em sua vida que o fazia
jogar tudo fora por isso. E ele nunca me disse o que era. Mas a omissão só me
fazia pensar que eu não era importante como pensei para que ao invés de ele
confiar em mim e se abrir, preferisse me humilhar e expulsar de sua casa.
— Recebeu alguma ligação? — perguntei a Mali, estupidamente não
me impedindo de perguntar todos os dias a mesma coisa.
— Não, Dani. Nada. — Seus olhos estavam cheios de pena.
Era vergonhoso. Eu me mudei para a casa de alguém que mal conhecia, me
deixei sonhar com algo além de sobreviver dia após dia, para no fim, voltar
para a casa da minha melhor amiga, pedindo meu quarto de volta, e querer
que os últimos meses simplesmente fossem apagados, levando a dor embora.
O restante do caminho foi feito em silêncio. Já passava das quatro,
em breve eu teria que ir buscar Cody. Quando chegamos em casa, Mari
Louise foi direto para a cozinha, dizendo que ia fazer um bolo para tomarmos
café e eu deixar as coisas no quarto antes de voltar para ver se ela queria
alguma ajuda.
Prestes a sair, meu olhar prendeu na folha pendurada com durex na
parede e ela zombou de mim. Era uma piada completa.
— Ai, que droga, não tem ovos e nem fermento. Vou ao mercado
rapidinho e já volto, quer alguma coisa, Dani?
Peguei um pacote de biscoitos no armário e dei uma mordida, rindo
para ela.
— Você sempre odiou ir ao mercado, o que quatro rodas não fazem,
hein?
— Dão muita coragem! Eu nem me sinto mais tão preguiçosa. Vou
querer ir fazer compras todos os dias!
Ela saiu rindo e balançando a chave no alto. Eu tirei o tênis e liguei a
TV, sentando no sofá para passar o tempo enquanto ela não voltava. A nova
temporada de Irmãos à Obra estava muito interessante, mas meu telefone
tocou logo quando eles foram apresentar a casa já reformada ao casal.
— Alô?
— Danielle?
— Sou eu, quem fala?
— É Ivone, coordenadora da creche. Não queria incomodar, mas
preciso confirmar uma informação rapidamente com a senhora, antes de
deixar Cody sair.
Eu levantei imediatamente.
— O quê? Como assim deixá-lo sair? Ainda falta mais de uma hora.
Coloquei o tênis outra vez, com o telefone apoiado no ombro, e
peguei minha bolsa.
— Bem, é que nos contatos de emergência e as pessoas listadas aqui
para pegar a criança, estão apenas Raiana e Mari Louise.
— Sim, está correto.
Merda! Será que hoje era algum dia que sairiam mais cedo e eu
esqueci?
Tranquei a porta e acionei o elevador para subir.
— Nós só queríamos confirmar sobre Roberto e Marilia Castro
D'Avilla. Eles estão aqui alegando que são os avós e têm uma ordem para
levar Cody. A senhora autorizou?
Eu não ouvi mais nada.
A dor nas minhas pernas não significavam nada naquele momento.
Não quando eu deixei pra lá a demora do elevador e corri pelas escadas para
chegar o mais rápido possível até meu filho.
— Ivone, por favor, não os deixe levá-lo. Eu chego em alguns
minutos.
Desliguei o telefone e acenei para um táxi quando já estava
praticamente na frente do carro. Ele parou e gritou comigo, mas seguiu
minhas instruções provavelmente porque eu estava descontrolada.
Eu precisava chegar até Cody porque os meus pais estavam lá.
E eles podiam tirá-lo de mim em um piscar de olhos.
Capítulo 38
"...as sombras tornam-se tão longas diante de meus olhos
E elas estão movendo-se através da página
Subitamente o dia transforma-se em noite distante da cidade
E não hesite
Porque seu amor não vai esperar"
peter frampton, baby i love your way

Cada passo era um martelo cravando um prego no meu coração.


Eu só conseguia raciocinar “avós” e “ordem” na mesma frase, porque
aquilo sendo verdade, destruiria meu mundo inteiro. Meus pais tinham
dinheiro. Muito. Eu realmente não sei porque demoraram tanto a chegar até
mim, sendo que tinham poder para me encontrar.
Eu não me escondi. Eu fugi. Nunca deixei de usar meu nome, então
provavelmente, em todo o tempo longe, eles sabiam onde eu estava. Teatro, a
creche, cartões. Tudo me rastreava até aqui. E eles finalmente chegaram.
Roberto Castro D'Avilla, meu pai, juiz federal. Um dos homens mais
influentes de Minas. Ele tinha tanta gente em seu bolso que tiraria Cody de
mim antes que eu tentasse dizer uma frase contra ele.
E a minha “mãe” nunca se preocupou em demonstrar que não existia
nenhum afeto entre eles, foi um casamento de negócios e eu era um
acréscimo necessário para continuar com o jogo da família perfeita. Porém, o
jogo acabou quando meu noivo, o filho do prefeito da cidade me engravidou,
e a vergonha foi instaurada.
Esconder minha doença era fácil, mas uma barriga...
Eu ter fugido deve ter causado tantos problemas para eles, que eu só
podia imaginar o quão furiosos estavam comigo. Meu noivado apressado por
causa da gravidez era óbvio, então eu sempre me pegava pensando: que
desculpa eles deram na cidade? Como sumiram comigo? Eu causei uma
rachadura nas aparências, tanto na minha família, quanto na do meu... noivo.
E por que logo agora eles estavam aqui?
Abri a porta da secretaria, correndo pelo corredor, e assim que virei a
esquina, os vi. Eu queria voltar e me esconder o mais longe possível, queria
pegar Cody e abandonar o Rio de Janeiro, tentar sobreviver até que me
encontrassem de novo. Por que é que eu não pensei em usar um nome falso?
Vê-los anos depois de terem compactuado com o que quase me
destruiu, não era fácil. Minha mãe parecia mais jovem, meu pai estava mais
velho, com uma cara de cansado que foi substituída por uma expressão muito
severa quando me viu. Minha mãe passou seus olhos pela minha calça jeans,
os cabelos soltos —que ela odiava, porque dizia que não me deixava refinada
o suficiente —, e minha regata branca, que provavelmente não era boa ao seu
ver também.
Eu parei alguns passos à frente deles e olhei para a coordenadora.
— Eu vou levar Cody comigo, Ivone. — Surpreendentemente, minha
voz não estava trêmula como temi que estaria.
Isso era bom, eu queria aparentar coragem. Queria fingir que eles não
me aterrorizavam mais.
Ivone olhou entre nós três e abriu a boca, fechando-a logo depois,
então apenas assentiu e entrou pelo corredor onde ficavam as salas. Eu tinha
poucos minutos para fazê-los ir embora antes que Cody surgisse.
— Não vai nos cumprimentar, Danielle? — Minha mãe perguntou.
Sua voz era formal, como se estivesse falando com um empregado.
— Oi.
— Onde está sua educação? — meu pai questionou. — Alguns anos
vivendo nessa cidade, fazendo sabe Deus que tipo de libertinagens, e acha
que pode nos desrespeitar dessa forma? Mais do que já desrespeitou?
— Eu sou uma adulta e não devo nada a vocês.
— Uma adulta? — Minha mãe riu, debochada. — Eu esperava tudo,
menos isso.
Respirei fundo.
— O que querem?
— Ver nosso neto.
A resposta do meu pai foi tão bizarra, que precisei de um momento
para não rir, ou ir ao extremo e gritar com ele.
— Ver seu neto? E quando foi que decidiu que se importava?
— Esperamos até que voltasse ao seu juízo e viesse para casa, mas
como não aconteceu...
— O quê? Vieram me buscar è força?
— Como você sai da riqueza e se acostuma com a miséria que está
hoje? Difícil acreditar que uma filha minha está nessa situação.
— Eu estou bem, obrigada. Vocês podem voltar para Minas.
— Não sem ver nosso neto.
— Que ordem é essa que trouxeram? Querem me assustar
envolvendo a justiça? Tentando criar um caso que nunca vai acontecer?
— Não temos nenhuma ordem. Só dissemos para garantir que você
viria — meu pai esclareceu.
A raiva borbulhou.
— Eu nunca deixaria meu filho aqui, sabendo que o estavam
esperando.
Mamãe deu de ombros.
— Algumas mães não se importam.
— Outras sim — rebati. — As que têm um coração, por exemplo, e
que colocam o filho acima de tudo e todos. De qualquer coisa.
— Aqui está esse garotão — Ivone anunciou, andando pelo corredor
até nós, enquanto Cody corria com suas pernas curtas até chegar a minha
frente.
O peguei imediatamente.
— Vão embora, por favor. Me deixem em paz.
Dei um passo atrás e a pose da minha mãe vacilou por um segundo.
Vi sua mão levantar minimamente como se quisesse tocá-lo, antes de abaixar.
Ela engoliu em seco, os olhos completamente focados na criança em meu
colo.
— Temos o direito de vê-lo, Danielle. Isso é algo que você não pode
impedir.
— Posso! Posso impedir, e vou. Vocês não têm direito nenhum, é o
meu filho.
— É o nosso neto!
— Que se dependesse de vocês nem estaria vivo — rosnei. — O que
querem? Levá-lo de mim e transformar a vida dele em um inferno como
tentaram fazer comigo?
— Ora, não seja ingrata! Eu e sua mãe sempre...
— Ingrata? Como pode dizer isso depois de tudo o que me fizeram?
O que ajudaram a fazer?
Minha mãe pareceu abalada por um momento. Foi a mesma
expressão de quando cheguei em casa sangrando e ela chamou um médico,
enquanto me convencia dos motivos pelos quais não íamos dar queixa à
polícia. Ela se recompôs, segurando o braço do meu pai.
— Não vamos causar uma cena aqui, querido.
É claro que até ali, naquele momento, ela iria se preocupar com as
possíveis repercussões. Ela ainda continuava a mesma mulher. Longe da mãe
que eu precisei tanto, mas nunca tive.
— Nunca parou para pensar que o pai dele pode sentir sua falta? Não
é justo tirar uma criança do homem que a fez como você fez!
— Você realmente está dizendo isso? — perguntei. — Estão aqui por
isso, não é? É algum tipo de plano para fazer Robert parecer uma vítima? Eu
sou a vilã?
— Não existe nenhum plano. Robert ainda espera por você, isso é
tudo.
— Ele pode esperar no inferno, se quiser, enquanto bebe veneno!
— Danielle! — Minha mãe arregalou os olhos. Eles nunca tinham me
visto daquela forma.
É claro que não. Eles nunca tinham me visto como uma mãe.
— Robert vai se candidatar, e essa é sua última chance para voltar e
tentar fazer as coisas da forma certa. Nós estamos aqui e vamos acertar tudo
pelo bem.
— E se eu disser que não, vai ser pelo mal?
Minha mãe ia falar, mas meu pai levantou a mão, calando-a.
— Não vim para discutir, filha. Vim para falar o que vai acontecer e
você tem esse momento para acatar. Não tente medir forças comigo. A única
forma de vencer isso é em um tribunal e você sabe que não tem nenhuma
chance.
Então era isso.
Eu nunca tive nenhuma esperança de que eles tivessem ido atrás de
mim para tentar uma relação ou se reconciliar, mas ouvir claramente que
outra vez, só queriam me usar para o benefício de suas carreiras, era demais.
Doloroso.
Deixando transparecer toda a raiva e mágoa que estava sentindo,
olhei diretamente nos olhos de cada um deles.
— Eu ainda tenho as fotos. Tentem fazer qualquer coisa para levar o
meu filho e eu volto para Minas. Eu juro por Deus que acabo com a sua
reputação de bom pai e da família perfeita.
Deixando-os de boca aberta, saí da escolinha com Cody
completamente distraído, brincando com seu avião no ar. Era tão bom que ele
ainda fosse pequeno e nem entendesse porque eu corria, o segurando e com
lágrimas caindo dos meus olhos.
Peguei o primeiro ônibus que passou pelo ponto assim que cheguei lá
e me sentei, abraçando-o tão perto quanto podia.
— Mama?
— O que foi, bebê?
Ele olhou para os lados, deixando seu brinquedo cair no colo e fez
um bico.
— Papa?
Sua voz quebrou, assim como meu coração ao ouvir sua pergunta.

(..........)

Quando chegamos em casa eu já tinha conseguido finalmente


acalmar Cody e fazê-lo cochilar. Pelo menos por aquele momento, ele
esqueceria que já não estávamos na casa de Cobain. Quem disse que uma
criança tão pequena não tem consciência a ponto de sentir quando alguém
não está por perto? Eu esperava que ele não ficasse doente. Cobain se tornou
uma presença constante na vida de Cody, uma figura que mesmo sem
entender o que era, meu filho se apegou. Ele era importante para ele. E agora
ele estava sentindo falta.
O coloquei na cama com os travesseiros em volta e deixei um beijo
em sua bochecha antes de sair. Do corredor, ouvi um barulho.
— Mali? — chamei, e assim que entrei na sala a vi abaixada na
cozinha. — O que está fazendo?
— Nada, eu só... nada.
Ela levantou e abaixou a cabeça, passando por mim e tentando
tampar o rosto com o cabelo na frente.
— Está tudo bem?
— Sim.
No momento que ela respondeu, deixou cair algo no chão. Um saco
com pedras de gelo dentro.
Eu corri e peguei na mesma hora em que ela foi, também, e logo tive
o vislumbre do hematoma bem abaixo de seu olho.
— Quem fez isso? — Ofeguei. Surpresa, com os olhos arregalados e
a raiva que havia acalmado apenas um pouco do encontro com os meus pais,
borbulhou novamente.
Ela forçou os lábios em uma linha fina e levantou, na clara intenção
de sair sem me responder. Segurei seu braço, fazendo-a me encarar.
— Mari Louise!
— Não importa, está bem? Deixa pra lá.
— Como... o quê? Ficou maluca?
— É, Dani, deixa pra lá. É só uma coisa.
— Não é só uma coisa! Foi ele? O cara que você tem visto?
— Que eu estava vendo.
Santo. Deus.
De novo não.
— Então foi ele?
Ela me encarou por vários minutos em silêncio e seus olhos
brilharam com lágrimas não derramadas.
— Sim, foi ele.
— Ah, Mali...
A levei até o sofá e a abracei, porque eu sabia bem que a única coisa
necessária naquela situação era compreensão e apoio.
Me afastei para examinar seu rosto, vendo que além do olho já
ficando roxo, havia uma protuberância na bochecha e um lábio cortado. Um
único tapa não faria aquilo.
— Me conte.
— Eu recebi uma ligação no meu celular.
— Ok, e?
— Eu estava me trocando depois do banho e ele atendeu.
— Você pediu a ele para atender?
— Não.
— Então ele estava errado desde aí. Eu posso até imaginar as coisas
que anteciparam o ataque físico dele.
Ela franziu a testa.
— Ele nunca me bateu antes.
— Não importa. Hoje ele explodiu. É o mecanismo natural de
homens violentos. Eles têm sinais de alerta que se você não percebe, sempre
acaba sendo tarde, como foi com você. Como achar que pode atender seu
telefone se você não o autorizou a fazer isso. Mas continue.
— Eu nunca pensei que essas pequenas coisas levariam a isso.
— Está tudo bem, Mari. Nós nunca pensamos.
Era verdade. Observar o quadro era uma coisa, agora ser parte da
pintura era outra completamente diferente.
— A ligação era de... um cara. Um cara que eu tenho visto.
— Além desse? Do tal olhos azuis?
— Sim — sussurrou. — Merda! Se eu tivesse falado com ele antes
que descobrisse assim, talvez...
— Pare, Mali! Pare agora mesmo. Está arrumando uma justificativa
para o que ele fez. Nada justifica que ele coloque as mãos em você de forma
violenta.
Ela chupou uma respiração e espremeu os olhos quando encostei o
saco de gelo em sua bochecha, então segurou minha mão.
— Eu sei, eu sei. Estou tão confusa. Ele estourou e me empurrou,
depois veio para cima de mim e... — Ela estremeceu, balançando a cabeça.
— Foi horrível. Eu só consegui reagir quando ele foi para o banheiro. Peguei
minhas coisas e subi no primeiro táxi que passou por mim.
— Tudo bem. Você vai tomar um banho enquanto eu pego seus
documentos e nós vamos à delegacia.
Seus olhos pequenos arregalaram, ela negou freneticamente.
— Não! Dani, por favor... não faça nada.
— Você está louca?! Mali, olhe o que ele fez!
— Eu sei que é ruim, mas logo as marcas vão desaparecer e...
— E ele continuará livre para fazer o mesmo com outra e depois
outra. É um ciclo, Mari. Ele nunca vai parar até que alguém o impeça! E as
marcas físicas desaparecem, mas a imagem... isso você vai reviver para
sempre! Ele precisa pagar!
Seus olhos brilhavam com lágrimas não derramadas.
— É a minha decisão e eu não quero fazer isso.
— Não posso deixar que faça isso, Mali, eu...
— Acabou. Eu vou fingir que nunca o conheci e você vai esquecer
qualquer coisa sobre ele também.
— Por quê?
— Porque eu vou à polícia, vão prendê-lo e ele pagará a fiança.
Depois vem atrás de mim por ter sujado sua ficha limpa! E outra... talvez ele
nem seja preso! Você não o conhece, mas ele tem muito dinheiro, Dani. Se
ele procurar coisas sobre mim para me ferrar, pode descobrir sobre as boates
e alegar que eu sou uma prostituta o chantageando, querendo dinheiro ou algo
assim.
Sim, ele podia fazer isso, mas ainda era absurdo deixá-lo sair ileso. O
rosto dela inchando a cada minuto que passava, provava isso.
— Eu não posso deixar que ele te machuque e saia livre disso.
Ela finalmente deixou as lágrimas escorrerem, assim como eu.
Era tão estranho estar ali com os papéis invertidos. Era como um
espelho. Trágico do mesmo jeito, tão triste quanto eu me lembrava que
aquele tipo de situação era.
Eu não tinha mais argumentos.
— Eu nunca te contei sobre os meus pais, não é? — ela perguntou,
fungando e enxugando levemente o rosto. Estremeceu quando tocou a própria
pele.
— Não.
Afastei o saco de gelo e bati na minha perna. Ela entendeu, deitando
no sofá e apoiando a cabeça em minha coxa. Voltei a pressionar o gelo nos
estragos que a mão do infeliz causou.
— Minha mãe apanhava constantemente do meu pai. Ele era um
bêbado inútil e ela cansou, finalmente o deixando.
— Eu sinto muito sobre ela.
— Não sinta, ela é só mais uma dessas mães que fazem filho só por
fazer. Ela cansou de ser o saco de pancadas dele e me deixou em seu lugar
como substituta.
— Você fugiu?
Mali ficou em silêncio por alguns segundos antes de continuar.
— Sim. Ele quebrou meu pulso um dia quando me viu beijando um
garoto da escola que eu gostava. Sabe o que ele disse enquanto me arrastava
para casa? “Você é uma vadia como a sua mãe. Se vai se esfregar pelas
esquinas por aí, pelo menos faça como ela e lucre com isso”.
Eu chorei em silêncio, ouvindo as palavras que o homem que deveria
ter cuidado dela, lhe disse.
— Quando um cara quase conseguiu me pegar em uma das noites que
eu estava dormindo na rua, eu comprei um daqueles Amarelinhos e encontrei
anúncios que ofereciam o quarto e comida para o trabalho. Quando cheguei
lá... era o Borges. E foi assim que eu entrei para a vida. Fiz exatamente o que
meu pai disse que eu faria. Me tornei a minha mãe e tem noites que eu me
odeio por isso.
Nós tínhamos passados tão terríveis que era impossível não pensar
em o quão irônico o destino foi quando nos cruzou. E como foi bom,
também. Foi por isso que ela nunca me contou sua história. Porque algo que
te consome e te derruba não é legal de ser lembrado.
Principalmente quando vem de casa, do lugar que deveria ser cheio
de proteção, amor e cuidado.
Nós éramos ferradas.
— Eu odeio seu pai — falei.
Ela riu baixinho, gemendo de dor depois.
— Nem sei o que o seu te fez, mas o odeio também. Estamos quites.
— Sim, Mali. Pais do ano.
— Ainda bem que eu tenho você.
Afastei a franja de sua testa e beijei o local.
— Você quer dormir um pouco?
Ela negou.
— Eu deveria ir na delegacia, não é?
— Sim, deveria.
— Eu sei — sussurrou. — Estou sendo covarde, não estou?
Eu queria dizer que sim, mas minha consciência depois dessa tarde
começou a tamborilar sobre como eu estava sendo hipócrita.
— Faça a coisa certa para si mesma, Mari. Eu queria acompanhá-la
até uma delegacia agora mesmo e ferrar esse babaca, mas não vou te forçar,
mesmo querendo.
— Obrigada por ser a melhor amiga de sempre. Só quero esquecer
essa história e se envolver a justiça, ele nunca vai parar de me perturbar.
Lhe dei um pequeno sorriso e cuidei dos machucados. Podia tentar
conversar sobre isso de novo depois ou amanhã, pedir a ela que
reconsiderasse. Mas agora ela estava cansada e sua persistência em não
chamar a polícia seguiria firme.
E eu... eu não podia julgá-la, porque afinal... eu não dei queixa,
também.
Capítulo 39
"...ouça o vento soprar
A noite cai
Corra por entre as sombras
Dane-se o seu amor, danem-se as suas mentiras
Quebre o silêncio
Dane-se o escuro, dane-se a luz
E se você não me ama agora
Você nunca me amará de novo"
harry styles, the chain (fleetwood mac)

— Tem certeza de que vai ficar bem? — perguntei a Mali quando


terminei de arrumar a bolsa de Cody e me despedi dela.
— Eu que deveria te perguntar isso, Dani. Olha onde você está se
metendo outra vez.
— Isso não tem nada a ver com ele.
— É pior, porque é com a família dele.
— Eu nem sei se ele vai estar lá e caso esteja, vou ignorá-lo.
Ela me deu um olhar cético.
— Aquele cara dá uma piscada e você volta para essa coisa de vocês.
— Não existe nenhuma coisa e eu já disse que aprendi a lição.
— Eu espero que sim, Dani. Porque se voltar para casa mais tarde
com ele ou chateada por causa dele, eu mesma vou afastar esse imbecil.
Lhe dei um aceno de despedida e desci para esperar o Uber que já
chegava.
Embrulho de presente na mão, uma troca de roupa para Cody e minha
máscara de indiferença pronta para ser usada.
Logo cedo recebi uma ligação de Rose, me perguntando
hesitantemente se eu me lembrava do convite que me fizeram para a festa de
Dediér, o garotinho fofo que Cody havia passado aquela tarde brincando. Eu
neguei, inventando uma desculpa qualquer para não ir, mas quando ela
colocou o menino na ligação para me pedir que levasse Cody, não resisti. Eu
só podia esperar que não importasse o que aconteceu para que Cobain
surtasse e nos cortasse de sua vida, que caso estivesse lá, não causasse
problemas com nossa presença.
Pelo menos eu sabia que sua família ia nos receber.
Cody estava feliz, como sempre. Era um sábado ensolarado e ele
tinha esquecido o assunto “papa” desde aqueles dois dias atrás na creche.
O seu look do dia era um chapéu do Kiko com a jardineira azul e as
botinhas brancas. Eu não conseguia evitar dar risada todas às vezes que o
olhava, porque ele sorria com os dentinhos totalmente em exibição e os
olhinhos brilhantes.
Quando o Uber chegou, confirmei o endereço e printei a tela com a
foto do motorista, mandando para Mali depois. Tínhamos essa coisa de que
você nunca sabe quem está dirigindo, e ninguém está isento de virar uma
dessas vítimas da televisão. Então, só para prevenir, sempre fazíamos isso.
O presente de Dediér estava embrulhado em um papel azul cheio de
aviões pequenos, e como o menino provavelmente tinha todos os brinquedos
que queria, eu não fazia ideia do que levar e acabei comprando um brinquedo
que parecia legal para a idade dele na loja. De qualquer forma, ele não
parecia ser daquelas crianças que iam me dizer, “Que droga de presente”. Ele
era mais do tipo que diria que adorou, por educação, mas que eu ia conseguir
ver em seu rosto se gostou ou não.
Meu telefone tocou mais uma vez durante o caminho com o mesmo
Número Desconhecido chamando e de novo ignorei. Fugindo com medo de
ser meus pais ou algum advogado deles, mas também me perguntando com
um fio de esperança se não era Cobain.
Eles tinham ficado quietos desde o dia na creche, não apareceram
mais, mas se tratando dos meus pais eu podia esperar qualquer coisa.
E Cobain... ele apenas sumiu. Se não fossem as inúmeras lembranças
que me assombravam, pareceria até que ele nunca existiu. E às vezes, eu me
pegava querendo que não tivesse existido mesmo, porque então eu poderia
parar de querê-lo de volta. Esquecer seria mais tranquilo. Seria fácil.
Mari Louise não mudou de ideia sobre a denúncia. Mesmo que eu
quisesse arrastá-la até a delegacia, não podia fazer isso. Ela era uma adulta e
não importava quantas vezes tentei fazê-la pensar sobre isso, ela era
irredutível. E eu entendia. O medo nos domina nessa situação. Não havia
nada que alguém além dela mesma pudesse fazer.
Quando chegamos em frente a grande casa de pedraria clara, paguei o
cara e saí, já me encolhendo ao notar a quantidade de carros luxuosos parados
na rua. O homem de terno no portão me deixou entrar assim que eu disse meu
nome.
Um plano já se formava em minha mente: entrar, cumprimentar os
pais e irmãos dele, parabenizar Dediér e sentar em algum canto esquecido por
todos. Alimentar Cody e o observar brincando. Queria passar completamente
despercebida. Nós entramos no jardim da grande casa com Cody meio
andando e meio pulando ao meu lado. Ele olhava ao redor sorrindo e
acenando para as pessoas. Ok, a parte do plano de passar despercebida já
havia falhado, porque meu filho adorava uma atenção.
E eu entendia a reação de quem o olhava. O que você faz quando vê
um bebê de perninhas gordas, mãos animadas e dentinhos em exibição
passeando e cumprimentando qualquer desconhecido pelo caminho?
— Ah, aí estão vocês! — Rose gritou e correu até nós, me dando um
abraço antes de abaixar e pegar Cody. — Meu Deus, eu amo como ele é
receptivo. Olha isso! Me abraçando e com esses beijinhos todos.
— Nem me fale. Ele já chegou se sentindo em casa.
— Ele deve se sentir mesmo, e você também. Venha, meus pais estão
ansiosos para te ver.
— Ah... claro.
— Tem todo o tipo de comida que crianças gostam e os brinquedos
também. Ele vai se divertir muito.
Eu queria perguntar se Cobain estava lá, porque cada vez que nos
enfiávamos mais no meio dos convidados, o desespero de ser vista ali por ele
me esmagava.
Rose parou e chamou uma mulher que falava com outro casal.
— Sim, senhora?
— Viu meus pais, Tina?
— Foram até o escritório, precisa que os chame?
— Não, tudo bem. Só os avise que Danielle chegou e estou com ela,
por favor?
— Claro. — A mulher saiu e Rose continuou andando. Puxando-me
por uma mão e segurando Cody no outro braço.
— Ai, Dani, estávamos tão nervosos se você não ia vir. Dediér
perguntou sobre Cody praticamente todos os dias.
— Para ser bem honesta, eu havia esquecido completamente. Minha
cabeça está tão cheia com tudo e... — Parei de falar, me dando conta de que
ela nem fazia ideia da dimensão dos meus problemas. — Mas enfim, que
bom que você mandou a mensagem e consegui vir. É bom que Cody possa
brincar e se relacionar com outras crianças.
Ela puxou uma cadeira em uma das mesas do jardim, sentando Cody
em seu colo também. Em cima da mesa tinha um pratinho com doces e meu
filho descaradamente enfiou a mão lá, pegando vários de uma vez e enfiando
na boca. Enquanto eu arregalava os olhos, Rose se acabava de rir.
— Esse garoto vai me matar, eu juro.
— Pare, Dani. Crianças são crianças e eu acho incrível que ele não se
contenha. É um bebê revolucionário.
Revirei os olhos, mas ri também. Cody fazia tanto aquelas coisas e eu
realmente não me importava, desde que ele estivesse feliz e perto de mim.
Eu sabia que existiam aquelas mães que não deixam o filho comer
nem salsicha, e respeitava isso. Mas eu fui uma daquelas crianças, dessas que
nem brincar no parque podiam, para não sujar o vestido, e sabia o quanto me
fez falta ter uma verdadeira infância. Ele não comia doces e besteiras todos os
dias. Hoje era sábado e uma festa, então tudo bem.
— Então... de onde Dediér conhece todas essas crianças morando
fora do país?
— John vem pra cá constantemente e o trás. Nas férias da escola,
principalmente, ele costuma passar muito tempo aqui, e frequenta uma dessas
escolinhas de futebol. Essas crianças são de lá, amiguinhos que jogam com
ele e praticam outros esportes dentro da academia também.
— Agora que percebi que não me atentei a John ser o pai dele.
— Sim, ele é. Mas Norise não é a mãe. Quer dizer, ela é, mas não a
biológica. Ela o criou desde os três anos, que foi quando conheceu John.
— E a mãe dele?
— John adotou Dediér quando ele tinha oito meses. Achamos loucura
na época, ele era superbaladeiro e louco mesmo, mas acabou que virou um
pai solteiro perfeito, até Norise.
— Uau... eu nunca ia imaginar isso.
— Sim, e a história deles é bem clichê, porque Nori era a professora
do jardim de Dediér, e o safado do meu irmão a seduziu, e aí está.
Me peguei comparando a mim e Norise por um momento. Nós duas
trabalhando para ganhar a vida quando um daqueles irmãos chegou e
bagunçou tudo, mas no caso dela, foi uma bagunça que deu certo.
— Eles são um lindo casal.
— Sim, e ela ama Dedi. Ele quer pedir a ela para ser seu filho no
papel em seu aniversário.
— Hoje?
— Ele queria que fosse, mas está pensando em adiar para o
aniversário dela. Ele é convencido como seu pai, dizendo que será o melhor
presente que ela vai receber.
— Isso é muito fofo. Eu tenho certeza que não importa qual a data,
Norise vai amar.
Dediér ia ganhar uma nova mãe. A mulher que ele escolheu para
chamar disso. Droga. Era um ótimo momento para ter aquela conversa logo
com Rose.
Será que ela estava percebendo que eu olhava ao redor
constantemente? Em como minhas mãos tremiam ao pegar o copo de suco na
bandeja do garçom? Eu esperava que não.
Tentei me concentrar em qualquer outra coisa além da minha
conversa com Rose, para não olhar em seus olhos e pensar em seu irmão. Nas
coxinhas em cima da mesa, nos salgados maravilhosos que eu amava e era
uma das maravilhas das festas infantis, mas nem isso chamou minha atenção.
Nem isso me fez parar de procurar incansavelmente.
— Ele não vem — ela disse, chamando minha atenção.
— O-o quê?
— Eu vejo como você parece inquieta. Mas não se preocupe, ele não
vai aparecer. E caso fosse... não teria nenhum problema em você estar aqui.
Engoli em seco quando a decepção me pegou por completo.
— Por quê?
— É uma situação complicada e eu realmente não posso explicar,
mas preciso pedir que tenha um pouco de paciência com ele.
— Ele não vem porque estamos aqui?
— Não, Dani. Não tem a ver com você. Nós não o vemos desde
aquele almoço.
— Oh.
Ela se mexeu em sua cadeira e Cody tentou descer, olhando com
olhos brilhantes para os brinquedos a sua frente.
— Ele pode ir?
— Sim — respondi. — Posso olhá-lo daqui.
— A piscina foi tampada e há babás por toda a parte.
— Ok.
Rose suspirou, aproximando um pouco mais sua cadeira.
— Existem alguns... períodos que ele se isola. Não liga, não fica em
casa e surge tempos depois. E nem adianta perguntar por onde esteve, porque
ele não diz.
— Isso é terrível, Rose.
— Eu sei. Todos sabemos. Mas... não podemos fazer nada.
Não podiam fazer nada? Eles eram sua família! Sua única família e
permitiam o isolamento completo? Ignoravam quando ele voltava sabe Deus
de onde?
E se ele nunca voltasse?
— Algo aconteceu com ele, não é?
— Sim. Algo terrivelmente infeliz, e é por isso que eu imploro... se
há alguma chance de que você possa esperar por ele, faça isso. James é um
homem incrível, Dani. Ele só teve... tem, uma situação em sua cabeça que às
vezes explode e a única forma que ele arrumou para lidar com isso foi ficar
sozinho.
— Não há nenhuma razão para eu esperar. Ele me mandou ir embora,
Rose. Ele não me quer por perto.
— Está muito enganada. Conheço meu irmão e por causa de você
tivemos um lampejo do nosso antigo James naquele almoço.
Eu ia responder, mas na mesma hora Lice chegou, Norise estava logo
atrás dela.
— Encontrei um bebê perdido por aí e vou ficar com ele para mim.
— Ela dançou com Cody no colo e sorriu para mim.
— Oi, Lice. — Levantei para abraçá-la, e depois a Norise. — Norise.
Como estão?
Cody veio para o meu colo e cada uma pegou um lugar na mesa.
— Cansada. — Norise riu. — Eu me divirto mais do que as crianças
nessas festas.
Dediér veio correndo para perto e sorriu para mim.
— Olá, senhora. Será que Cody pode voltar a brincar?
— Oi, aniversariante. — Peguei o embrulho do presente e dei na mão
do meu filho, que entregou ao outro garoto junto com um abraço.
Dediér sorriu envergonhado e Cody me olhou, mostrando todos os dentes ao
rir orgulhoso de si mesmo.
— Um presente, iraaaado. Obrigado. Agora ele pode ir? Eu cuido
dele.
— Claro. — Dei risada de sua animação e assisti quando os dois se
afastaram correndo para longe. Dediér em passos largos e Cody correndo ao
seu lado com as perninhas curtas.
— Então, Dani — Lice me chamou. — Vieram só vocês dois?
Meus olhos piscaram uma e outra vez, entendendo que por eles não
fazerem ideia de onde Cobain estava, aquela era a forma de Lice confirmar se
eu sabia de algo. Balancei a cabeça, querendo tanto que minha resposta fosse
diferente da que dei.
— Sim, temos sido só nós.
Lice me deu um sorriso contido e passou a mão pelo rosto. Ela
aparentava preocupação com o filho e tinha tanta saudade quanto eu.
— Obrigada por ter vindo. Eu adoro que esteja aqui.
— Obrigada, Lice.
Rose e Norise embarcaram em uma conversa animada, e eu fiquei
olhando para Cody com os outros garotos maiores que ele. Até que um toque
na minha mão me chamou atenção. Pensei que fosse Rose ou até mesmo
Lice, mas ao olhar para baixo percebi que era eu mesma. Eu tentando sentir
meu coração e respirando profundamente.
A mãe do homem sumido por quem eu estava apaixonada me via
como uma esperança para ter seu filho de volta e por mais que eu quisesse ser
essa chance, sabia que não era assim.
O amor não deveria machucar, mas ele faz. E às vezes era necessário
colocar um curativo na ferida e se preparar para a próxima batalha.
Existiam dores que valiam a pena sentir.
Eu não disse a Rose, mas talvez ela não precisasse de uma
confirmação. Talvez em meus olhos estivesse impresso que eu teria
paciência, que esperaria por ele.
Capítulo 40
"...lá vai o meu coração batendo, porque você é o motivo
Lá vai a minha mente voando
E você é o motivo de eu ainda respirar
Estou sem esperanças agora
E eu escalaria todas as montanhas
E nadaria todos os oceanos
Só para estar contigo
E consertar o que quebrei
Porque eu preciso que você veja
Que você é o motivo"
calum scott, you are the reason

ü ELE NUNCA OLHARÁ AS ESTRELAS COMIGO

— Apague as velas, filho!


Segurei Cody e o aproximei do bolo que Mari Louise havia feito,
então nós três sopramos a vela com o número dois e as outras de estrela.
Cody estava tão animado só de ter seu bolo e alguém cantando parabéns para
ele, mas ainda assim, eu queria ter feito uma festa. Queria poder fazer uma.
— Isso aí, garotão! — Mali gritou, o pegando e levando para o nosso
sofá. — Agora é a hora dos presentes.
Ela pegou três caixas, uma maior do que Cody e as outras duas de
tamanho médio.
— Mama! — Cody gritou, apontando para a grande caixa. — Abre!
Rindo, me sentei no chão e abri o embrulho com ele pulando ao meu
lado. Mari Louise se deliciava enquanto eu a enviava olhares de repreensão.
— Você sabe o que eu penso sobre esses mimos.
Ela revirou os olhos.
— São só presentes. É o aniversário dele.
— Um não era o bastante?
— Não. Você sabe que eu amo estragar esse garoto.
— Essa eu vou deixar passar porque ele está pulando mais do que
pipoca de felicidade.
Rindo, Mali pegou Cody e o sentou em seu colo.
— Tudo bem, gatinho, agora conta pra tia. O que você deseja de...
— Não — interrompi antes que terminasse.
— Não o quê?
— Não pergunte isso.
— Por que não?
— Porque tenho medo do que ele vai responder.
Meu filho sorriu para mim e levantou, voltando sua atenção para as
coisas que acabara de ganhar. Ele segurou o novo brinquedo sem deixar de
lado o Buzz que permanecia na outra mão. Aquela velha pontada de saudade
e raiva me bateu, lembrando de quem o havia presenteado com aquilo, me
fazendo pensar que fazia exatamente um mês que eu não sabia nada de
Cobain. Cody ainda perguntava sobre ele algumas vezes, e eu precisava me
virar para encontrar uma distração antes que ele começasse a chorar
chamando “papai”.
— O Homem de Ferro é maior que ele.
Coloquei as pilhas no controle do carrinho e Cody arregalou os olhos
ao ver o brinquedo se mover sozinho.
— Então... — Mari começou. — Somos só nós três outra vez.
— Sim. Acho que sim.
— Você não tem falado com Rose ou qualquer um deles?
— Às vezes.
Mari Louise evitava aquele assunto tanto quanto eu, mas a
curiosidade vencia em alguns momentos. Ela deve ter percebido como eu
estava distraída vendo Cody se dividir entre os presentes que acabara de
ganhar e o antigo, que o homem que nos deixou deu para ele.
— E não disseram nada sobre... você sabe...
— Não. Eles sabem que eu não quero falar sobre ele.
— Isso foi meio que uma indireta para eu parar também?
Eu sorri.
— Um pouco.
Ela bateu palmas.
— Ok! Então... Vem aqui, gatinho, vamos descobrir o que esses
brinquedos fazem de interessante.
Nós nos levantamos, mas um segundo depois a campainha tocou. Já
era noite, então só podia ser Raiana, Gabi ou Larissa passando para dar um
beijo em Cody.
— Eu atendo.
Corri até a porta quando tocou uma segunda e terceira vez.
— Já vai!
— Elas estão impacientes hoje! — Mali gritou.
Rindo, destranquei e virei a maçaneta. Mas não era Gabi, Raiana e
menos ainda Larissa. Não era ninguém que eu esperava.
Porque eu não esperava Cobain James.
Vê-lo depois de tanto tempo era um alívio, reconfortante e
esmagador. Tudo ao mesmo tempo. Ele parecia tão bem, tão... inteiro.
Enquanto eu estava me segurando para não cair em pedaços. Cobain ergueu
uma caixa em sua mão, embrulhada em um papel de desenhos.
— Eu pensei que podia vir e dar os parabéns ao garoto.
Eu ia vomitar.
Não por vê-lo ou por repulsa de seu maldito belo rosto, mas porque
minha cabeça estava girando e eu tinha a sensação que ia desmaiar a qualquer
momento. Aquela única frase, deixando claro que a motivação para ter
aparecido depois de um mês inteiro era o aniversário de Cody, fez com que
eu me sentisse mal e muito bem ao mesmo tempo.
Péssima porque ele não foi para me ver. Mas feliz porque ele se
lembrou de que dia era hoje. Ele não falhou em sua promessa de nunca
abandonar Cody, embora eu tenha querido que tivesse.
Se além de quebrar o meu coração, Cobain tivesse quebrado o do
meu filho também, seria muito mais fácil ignorá-lo, seria um piscar de olhos
para que eu o expulsasse de casa e nunca mais o deixasse me afetar. Mas ele
não fez isso. Ele bateu na minha porta, com as mãos enfiadas nos bolsos e
olheiras escuras abaixo de seus olhos, apenas para ver o meu bebê em seu
aniversário.
— Claro — forcei as palavras para fora.
Ele olhou para longe de mim no exato momento em que pés
apressados bateram no chão. Eu queria fechar os olhos, queria não o ver
ajoelhando e abrindo os braços para receber Cody. Queria que aquela cena
não mexesse tanto comigo. Cody corria para nós com os dois braços
esticados e as mãozinhas abrindo e fechando, um sorriso gigante no rosto.
— Papapapapa.
— Ei, amigo. Eu senti sua falta.
Meu filho se agarrou a ele com uma força e afeto indescritíveis. Um
abraço de anos de saudade. De amor. De cuidado, de proteção e alegria. Um
abraço de pai e filho.
Cobain levantou com ele ainda no colo.
— Eu queria levar vocês para fazer algo. Mas não acho que você
queira ir, então se eu puder apenas ficar um pouco com ele, agradeceria.
Sim, desgraçado! Torça o meu coração por amar tanto meu filho!
— Rose te disse que é aniversário dele?
— Não. Você me disse a data, eu lembrei.
— Não me lembro disso.
— Eu lembro. E então? Tem planos para essa noite?
Responder sim ou não para ele seria como me dar um tapinha nas
costas ou um grande soco no queixo. Um significava que eu resisti, que
mantive minha decisão de ignorá-lo para sempre; e o outro, só me provava o
que Mari Louise disse sobre ele apenas aparecer e eu voltar atrás. Mas, no
entanto, não era eu que estava em questão, e sim Cody. Cobain estava
cumprindo com o que prometeu: que estaria presente mesmo que as coisas
entre nós não fossem boas.
— Vou colocar um tênis.
Ele olhou por cima dos meus ombros, e quando fiz o mesmo, vi Mali
de braços cruzados e lançando adagas de fogo em sua direção.
— Quando terminar vá até o terraço do prédio.
Franzi a testa, confusa com seu pedido, mas Cobain deu meia volta e
eu fechei a porta, encarando minha melhor amiga.
— Eu disse! Deveria ter apostado dinheiro nessa merda.
— Eu não teria para pagar — murmurei.
Ela se aproximou e segurou meus ombros.
— Não faça isso de novo! Você estava quase conseguindo dar a volta
por cima e olhe só, já vai se enfiar nas teias de mistérios desse cara!
— Não é isso. Ele veio para o aniversário do Cody. E eu como mãe,
não vou deixá-lo ir sozinho.
Passei por ela e entrei no quarto, colocando o tênis, uma blusa e
peguei o sapato e um agasalho para Cody também. Ela estava tão enganada,
porque eu nunca comecei a dar a volta por cima de Cobain.
— Dani, pare um pouco e pense só por um segundo.
— Um segundo. Pensei. Eu volto daqui a pouco.
— Danielle!
Ela me seguiu até a porta e segurou meu braço quando saí.
— Dani, sério...
— Mali, é a última vez. Eu juro que não é sobre mim, não dessa vez.
Seus olhos franziram.
— Mentirosa.
— Talvez, mas ainda assim eu vou.
— Não sei o que fazer para te convencer a ficar e não fazer essa
burrada.
Suspirando, beijei seu rosto e a fitei uma última vez.
— Eu o amo. Então apenas esteja aqui quando eu voltar, e se eu
chorar, me console antes de brigar comigo. Eu o amo e nunca se desiste do
amor só por ele não ser fácil.
Deixei Mari Louise me olhando do final do corredor e corri para
pegar o elevador que estava quase no andar. A viagem de dois andares abaixo
para pegar outra moradora, depois descer tudo para deixá-la no térreo e subir
tudo outra vez até onde ele me disse para ir pareceu durar anos. Quando
cheguei lá em cima, abri a manta que havia levado para Cody, mas parei por
um minuto antes de chegar mais perto. Cobain estava de costas. O cabelo
solto em movimento com a brisa do vento, o casaco que pendia em seu corpo
forte e a sombra do meu filho no seu colo.
Respirei profundamente e cheguei perto.
— Antes de qualquer coisa, preciso dizer algo.
— O quê?
— Não me faça sentir como uma idiota no final da noite por ter
confiado em você outra vez.
Deixei que visse a sinceridade e seriedade em meu rosto, enrolei a
cobertinha em Cody e me aproximei da beirada do prédio, segurando no
muro e observando a vista lá de cima. As luzes, o vento, o barulho dos carros
e música tocando em algum lugar fazia-me ter um pouco de ciência de que
aquilo era a realidade. Nada de sonhos, nada de fingir. Apenas real e nós.
— Nunca foi minha intenção fazê-la sentir assim.
Dei de ombros.
— Não importa mais. Eu já entendi que não vivo em um livro no qual
um beijo torna o sapo um príncipe.
O ouvi suspirar.
— Eu sinto sua falta todos os malditos dias.
Meu coração pulou, mas me mantive firme olhando para frente.
Tentando não deixar minhas pernas agora bambas cederem com sua
confissão.
— E hoje é o meu aniversário também.
Arregalando os olhos, o encarei como se não tivesse escutado direito,
e realmente duvidei se ouvi.
— O quê? Seu?
— Sim. Coincidências da vida.
Ou do destino, eu queria dizer, mas segurei a língua.
— Feliz aniversário — sussurrei.
Ele assentiu e pegou minha mão.
Respirei profundamente mais uma vez. Depois outra. E depois da
quarta, com ele ainda segurando meus dedos frios, parei de contar.
Não só porque as estrelas brilhavam no céu, mas porque ele as estava
observando comigo.
— Stardust — Cobain falou de repente.
— O quê?
— O filme. Stardust. Nunca assistiu?
— Sim, já assisti.
Ele olhou para cima e a mão direita correu pelo cabelo de Cody.
— Eu estava compondo a trilha sonora dele quando as coisas ficaram
difíceis. Não gosto de sair de casa quando o céu fica estrelado porque sempre
me faz pensar naquela época. — Seus olhos se voltaram para mim. — Você
acha que é bobagem minha?
— Não — respondi. — Acho que cada um de nós tem um motivo
para tudo.
— Olhe para o céu, Danielle. Diga que não é um pecado que eu não
goste de ver as estrelas.
Eu olhei, mas não disse.
— Você terminou as composições?
— Não.
Ficamos em silêncio. Mil perguntas rondavam minha mente, o ronco
baixo e suave de Cody era ouvido, e se não fossem os mistérios que o
rodeavam, tudo estaria perfeito.
— Onde vamos agora? O que vamos fazer, Cobain?
— Você vai para casa.
Engoli em seco.
— E você?
Ele deu de ombros.
— Caminhar um pouco. Talvez pensar.
Eu não estava afim de ficar imaginando o que aquilo significava e o
conhecendo, ele não diria.
— Então... esse não é o momento em que tudo se resolve?
— Você consegue me dar um tempo? Eu tenho tantas coisas para
resolver e não consigo pensar em nada que não seja a forma como falei com
você da última vez.
— Sua estupidez não me surpreende mais.
— Pode não ser surpresa, mas ainda é dolorosa. Suas expressões são
claras como água para mim.
Envolvi os braços mais forte em Cody e virei para Cobain.
— Então pare de tornar isso tudo doloroso e fale comigo. Você me
diz para ter paciência, para dar tempo, mas não explica nada! Você é o pior
livro que já tentei ler.
Com isso, tirei um sorriso pequeno e discreto de seu rosto. O vento
bateu nos cabelos, fazendo-os ir para trás e deixá-lo completamente a vista
para mim. Me apaixonei um pouco mais.
— Foi o aniversário mais especial que eu tive em um longo tempo.
Obrigado.
Nos encaramos por alguns segundos antes que ele beijasse levemente
minha testa.
— Ouça, Danielle. Eu quero contar algo a você, mas vamos começar
do começo. Você quer a verdade para acreditar em mim outra vez e eu vou te
dar isso. — Cobain puxou uma longa respiração. — Eu vou te dizer tudo e
você decide o que fazer depois disso.
Ele beijou Cody carinhosamente. Seus dedos enrolaram uma ponta do
meu cabelo e ele, que assim como eu, parecia sentir... se afastou. Mantive os
olhos fechados quando os passos correram para longe e a porta de metal
bateu.
Eu queria ter tido mais tempo. Queria ter olhado mais. Queria ter dito
que foi especial para mim, também. Mas como sempre acontecia com a
gente, parecia que estávamos sempre correndo contra o tempo.
Capítulo 41
"...é engraçado, você é quem está em ruínas
Mas eu era a única que precisava ser salva
Porque quando você nunca vê as luzes
É difícil saber quem de nós está desabando
Faz com que eu acredite não ser possível viver sem você
Isso me leva do começo ao fim
Mas quero que você fique"
rihanna ft mikky ekko, stay

— Tem certeza que tudo bem ir buscar ele?


— Sim — Mali respondeu, sem tirar os olhos da televisão. — Se
aquela maluca vier dando de louca pra cima de mim, vou com a minha
loucura direto nas fuças dela.
— Que louca?
— Aquela coordenadora sem noção. — Ela virou para mim e apontou
a barra de cereal que comia. — Estou pensando em fazer algo para que a
creche a demita. Sinto que aquela mulher maltrata as crianças lá dentro.
Revirando os olhos, peguei minha bolsa e as chaves.
— Você é paranoica.
— Não mais que você! — gritou assim que bati a porta.
Rindo, mas sentindo a tensão instalada em cada membro do meu
corpo, fui para o ponto de táxi que ficava na esquina do prédio e esperei um
motorista. Depois de informar o endereço, nem sequer me questionei sobre ir
até lá.
Cobain havia ido embora naquela noite e me pediu paciência. Eu lhe
dei dois dias de espera, e quando na noite passada ele me mandou uma
mensagem dizendo que me encontraria hoje, mas não falou sobre hora e nem
lugar, a paciência foi para o espaço. Era agora ou nunca. E dessa vez, se ele
não me dissesse que segredo era esse que guardava, eu faria com ele o
mesmo que fiz com meu passado: deixaria para trás.
Eu o queria por inteiro. Defeitos, verdades e cada uma das cicatrizes
que ele carregava, mas se só estivesse disposto a me dar metade disso, não
me serviria.
— Moça? — o taxista chamou, olhando-me pelo espelho.
— Sim?
— A senhora reconhece a casa? Não tem o número, mas estamos na
rua certa.
Eu olhei pela janela, vendo a mal pintada casa e com arbustos
demais, um pouco a frente.
— É aquela marrom lá na... — No momento em que comecei a falar,
a porta da frente abriu e o furacão que eu bem conhecia saiu.
— Senhora?
Não respondi. Minha mão foi para a maçaneta, nem me importando
que deveria pagar o homem pela corrida. Mas Cobain alcançou seu carro em
frente a calçada e entrou, olhando para nenhum lado. Seu foco estava à frente,
os fios longos do cabelo estavam uma bagunça e ele usava uma calça de
moletom, descalço. A camiseta deixava claro que era um pijama.
Por que ele estava em roupas de dormir as três da tarde?
— Siga aquele carro — falei mecanicamente.
Aquela frase que eu ouvia nos filmes e parecia sempre acompanhada
de adrenalina nas cenas de ação, agora me preenchia de pavor. O carro preto
de Cobain dirigia quase sem rumo, em alta velocidade, e passava pelos
cruzamentos sem nem mesmo parar para verificar se alguém estava vindo. As
faixas e sinais não o pararam. E em um ato de irresponsabilidade eu disse
para o taxista fazer o mesmo, praticamente gritando com o homem que
pagaria qualquer multa, mas que não perdesse o carro de vista.
As lágrimas de medo, dúvida, insegurança e preocupação queria
descer pelo meu rosto, mas eu estava em choque. Estatelada, me segurando
no banco de trás, nem mesmo coloquei o cinto.
Minha garganta secou e fechou, uma dor forte no peito quando o
carro dele estacionou em frente a um dos hospitais mais caros do Rio de
Janeiro. Mil e uma coisas me passaram pela cabeça. Todas elas eram
imaginar o pior acontecendo com ele.
O segui para dentro, ignorando os seguranças que o fitaram sem
entender, e depois a mim. Provavelmente estavam acostumados a ver cenas
como aquela todos os dias. Meus passos martelavam no chão, correndo atrás
dele e querendo gritar seu nome. Querendo pedir alguma explicação,
querendo deixá-lo saber que o que quer que estivesse o deixando daquele
jeito, daríamos um jeito. Ele podia contar comigo.
Tudo ficaria bem.
Tudo daria certo.
Ele virou uma esquina, passando pelas pessoas, trombando em outras,
até alcançar uma equipe no meio de uma sala de espera. Ele não me notou, e
os pares de olhos das pessoas de uniforme azul se mantinham firmes nele.
Na minha fera fora de controle.
E é tão engraçado como descrevemos algo que não esperamos.
E talvez fosse clichê demais dizer que o mundo parou, ou meu
sangue se tornou frio nas veias, ou até mesmo que meu coração bateu mais
forte do que nunca, mas foi exatamente o que aconteceu. Misturado com
todas as outras sensações.
E era feio espiar. Totalmente sem educação ouvir conversas alheias.
Mas eu fiquei.
Permaneci a alguns passos dele. Se levantasse meu braço, poderia
tocar suas costas. E quando um homem de jaleco branco se aproximou dele
com a testa franzida e tirou os óculos, eu parei minha mão no ar. Algo me
dizia para não o tocar, para não dedurar a mim mesma. Para ficar e ouvir,
porque talvez ele nunca me diria o que foi fazer naquele lugar.
Quando as pernas de Cobain fraquejaram e ele caiu de joelhos na
frente do médico, as minhas próprias bambearam. Quando seu grito
desesperador ecoou pelas paredes brancas do hospital, a voz do médico
penetrou por cima do burburinho em meus ouvidos.
“Fizemos todo o possível, senhor James. Mas sua esposa não
resistiu.”
Esperei apenas um segundo para dar um passo atrás.
Meu braço caiu ao lado do corpo, sem mais nenhuma intenção de
tocá-lo.
E mesmo que ele estivesse jogado de joelhos, desolado pela tragédia
que havia acabado de lhe acontecer... eu não me importei.
Seu coração estava partido naquele momento, assim como o meu.
Eu estava certa.
Eu mergulhei em sua escuridão e as ondas finalmente me alcançaram.
Me afoguei.
E não sabia como emergir.
Me perdi em tudo o que era Cobain James.
Capítulo 42
“...eu devia ter pensado melhor antes de mentir para uma pessoa tão bonita quanto você
Eu devia ter pensado melhor antes de arriscar te perder para sempre
Mas eu achei que você entenderia
Você pode me perdoar?
jim diamond, i should have known better

O táxi me esperou. Mas ele não parecia paciente e compreensivo


porque eu entrei desesperada no hospital. Ele só exigiu seu dinheiro,
cobrando bem mais do que eu provavelmente usei de seu tempo. Mas eu
peguei algumas notas cegamente e comecei a caminhar para longe dele e de
seu carro.
Não conseguia me concentrar em um pensamento só. As imagens
estavam todas distorcidas, era como um quebra cabeça com dez mil peças
minúsculas e todas pareciam iguais. Eu estava tão confusa. Queria voltar para
dentro daquele hospital e gritar com Cobain, perguntar o que diabos estava
acontecendo, mas ao mesmo tempo... queria ficar o mais longe possível.
Dele.
De suas confusões.
De seus mistérios.
De sua... esposa?
Deus... ele tinha uma mulher no hospital e estava comigo?
De repente tudo começou a fazer um pouco de sentido.
Sentei-me no banco escondido pelas árvores, embora fosse de tarde,
mas não tinha ninguém por perto e se eu surtasse, ninguém iria ver. Eu não
queria ninguém presenciando a merda que eu estava.
Por isso ele era tão fechado? Por isso nunca me dizia nada? Por isso
se isolava naquela casa enorme e fechada?
Oh meu Deus...
Uma esposa.
Isso me tornava o quê? Sua amante? Nós nem nos beijamos três
vezes, mas tudo o que passamos... as palavras... os abraços... eu confiei nele!
Eu morei em sua maldita casa!
Levantei e dei dois passos à frente, pronta para entrar e sacudi-lo nem
me importando com seu sofrimento, mas parei, voltei atrás e sentei de novo,
enfiando a cabeça entre as mãos.
— Merda, Cobain — sussurrei comigo mesma.
— Querida?
Ao ouvir a voz, respirei profundamente e lamentei que não estivesse
realmente sozinha ali.
Olhei para o lado mesmo sem querer e por um momento fiquei sem
reação. Pisquei várias vezes e cheguei o rosto um pouco mais perto, minha
visão ainda estava péssima, então podia ser um engano. Mas embora o rosto
estivesse um pouco mais enrugado do que eu me lembrava e a cor do cabelo
diferente, quando ela sorriu, a reconheci imediatamente.
— Senhora Reis? — Meus olhos marejaram e ela abriu os braços, me
aconchegando em um abraço cheio de carinho.
Minha professora de ballet, a que me acompanhou desde que calcei
minha primeira sapatilha, sempre foi um refúgio. Me deixava ficar em seu
estúdio quando eu queria fugir dos meus pais, me incluía na maioria de seus
planos em família, porque sabia que eu não tinha aquilo. E depois de anos
longe, ali estava ela.
— Mas... como?
— Eu fico muito feliz que sua visão tenha voltado, porque estive com
você antes no jardim daquela casa e só minha voz não foi o suficiente para
consolá-la.
Franzi a testa, tentando me lembrar a que ela se referia.
— Jardim de que casa?
— Daquele seu vizinho meio desajustado.
Meu queixo caiu em choque.
— Era a senhora? As amoras e tudo mais?
Ela riu e as linhas de expressão que eu bem conhecia se fizeram
presente.
— Sim, era eu. Convenientemente, eu juro que não planejei, aluguei
uma casa quando vim para a cidade e um dia te vi pela janela, passando pela
calçada com um garotinho, até entrar lá.
— É o meu filho, Cody.
— E ela? Onde ela estava? Eu ainda não a vi.
— Podemos não falar sobre isso agora?
Eu já estava sofrendo o suficiente para querer abrir outra ferida.
— Claro. — Ela segurou minha mão. — Eu suponho que encontrou
James lá dentro?
— Encontrar não é bem a palavra. O que a senhora veio fazer no
Rio?
— Eu soube que meu sobrinho tinha planos de vir para cá, ele não
quis dizer o motivo, mas acabei ouvindo uma conversa da sua mãe no jantar
de sexta com o pessoal da campanha política.
— Meus pais estiveram na escola de Cody.
— Eu sei, querida. Eu queria ter chegado antes deles e te levado para
outro lugar, mas já era tarde. Robert já tinha todo um plano quando chegou
aqui.
— Imaginei que ele tivesse vindo com meus pais, mas ainda não o vi.
Nem sei se estou pronta para isso.
Ela assentiu.
— Eu sinto muito.
Segurei sua mão e dei um aperto, garantindo silenciosamente que não
era culpa dela, que estava tudo bem, mesmo não estando.
Robert era seu sobrinho, eu o conheci quando ainda éramos crianças
e ele era um garoto doce, que me levava maçã do amor todas às vezes que eu
estava no estúdio ensaiando. Mas o tempo o mudou, as companhias o
mudaram, e ele se tornou aquilo. O meu pior pesadelo.
Senhora Reis ficou sentada comigo enquanto eu olhava para o nada.
Não me fez perguntas e mesmo que tivéssemos muito o que conversar, ela
entendia que aquele não era o momento. Parecia uma das vezes em que eu
fugia para o estúdio dela porque algo tinha acontecido em casa.
E tudo o que eu precisava era de silêncio e paz. Mesmo que não
tivesse nenhuma paz ali, ela me dava o silêncio e conforto quieto. Foi tudo o
que precisei.
— Venha, está fazendo um vento gelado e você está só com essa
camisetinha. Vou colocá-la no táxi e quando chegar em casa, beba muita água
e descanse. Aqui está meu telefone. — Ela enfiou um papel na minha mão e
beijou minha bochecha. — Sabe sempre onde me encontrar, menina. Não
hesite em vir até mim.
Eu assenti e esperamos em frente à rua da frente movimentava por
um táxi. Não demorou e ela acenou para um, que parou no meio fio. Eu abri a
porta e sorri para ela.
— Obrigada, senhora Reis. Eu espero estar bem logo para te visitar.
Embora eu duvidava muito que fosse sequer chegar perto daquela rua
e arriscar ver Cobain.
— Dani... — ela chamou antes de eu entrar. — Eu estive visitando
James nas últimas semanas. E querida... eu acho que ele tem sofrido tanto
quanto você. Ele foi muito maltratado pela vida, assim como você. Então o
que quer que aconteceu lá dentro... deem um ao outro a oportunidade de falar.
— Por quê?
— Porque eu os assisti pela minha janela. E enquanto você não podia
ver, os sorrisos dele eram todos seus. Assim como os seus eram dele.
Ela fechou a porta quando me acomodei no banco traseiro e se
afastou um pouco, acenando para mim.
Deixei o hospital para trás, sabendo que sorrisos escondidos não eram
o suficiente para esquecer uma traição como a dele.

(..........)

O teto do meu quarto naquela tarde parecia propício para eu deitar ali
para sempre e assisti-lo. Era vazio e totalmente neutro. Tudo o que eu
precisava. Detalhes complicavam tudo, coisas demais ferravam tudo, e por
isso, eu queria o neutro.
Comecei a pensar na minha vida antes de Cobain.
Antes dos meus dias começarem a girar em torno do meu filho e dele.
Em como eu me deixei dominar por um sentimento estranho e que nem
conhecia. Em como nos envolvemos. As lágrimas teimosas queriam sair, mas
eu as segurava com tudo de mim. Meu coração estava partido em mil
pedaços, mas eu os segurava nas mãos, tentando colocá-los juntos de volta.
Impossível.
Eu queria ser egoísta e pensar apenas em mim, mas a imagem de
Cobain ajoelhado chorando por sua... esposa... dominava meus pensamentos.
Se fechasse os olhos ainda conseguiria ouvir o grito. Poderia ver como se
estivesse lá, como ele se expos como nunca. Nem mesmo quando estávamos
na mesma sala eu o vi tão bem quanto hoje. E vi o pior lado.
O que sofre e que chora em silêncio. Que mente.
E eu estava entre querer cravar uma espada em seu coração e ao
mesmo tempo curar sua dor.
O amor é uma droga. E como todas, havia sempre os efeitos
colaterais. Cobain era uma maldita overdose, e eu nem sabia se existia
reabilitação quando se tratava dele.
Uma batida na minha porta fez minha cabeça levantar, ao mesmo
tempo que a voz desesperada de Mari Louise me chamou. Levantei e virei a
chave, dando de cara com o rosto pálido da minha melhor amiga.
— A porta — ela sussurrou, segurando meu braço. — Ele está na
porta.
Eu a puxei, levando-a para a sala para ter certeza que não tinha aberto
ainda.
— É Cobain. Não abra em hipótese alguma.
Os olhos pequenos da minha melhor amiga estavam arregalados
quando apertou mais meu braço.
— Não é ele — ela sussurrou, parecendo apavorada.
— E quem é?
Ela engoliu em seco e lançou um olhar quando a maçaneta girou, a
pessoa do outro lado forçando-a.
— Mali, o que foi?
Um murro seguido de várias batidas na madeira grossa nos fez pular.
— Vamos! Abra a merda da porta!
Robert.
Eu jamais confundiria ou esqueceria aquela voz.
E eu nunca estive tão aliviada em toda a minha vida por Cody estar
na escola.
— Não abra — sussurrei. — Fique quieta, Mali. Não diga nada.
— É o Felipe. Que droga — sussurrou de volta. — Me desculpe não
ter te ouvido, Dani. Se eu tivesse ido à polícia, ele não estaria aqui agora.
A fitei confusa.
— Felipe? Não, esse é o...
Nós duas pulamos para trás quando um estrondo veio da porta.
— Ele vai arrombar!
— Eu vou entrar de qualquer jeito, porra! Esse trabalho todo só está
me irritando mais! — ele gritou.
Mari Louise correu e pegou o interfone, chamando a portaria.
— Droga! Só chama. Aquele porteiro estúpido nunca fica lá quando a
gente precisa.
Eu estava travada no chão, meus pés parecendo estar grudados e
meus olhos nem piscando do movimento da porta.
— Dani. — Mali entrou na minha frente. — Corre para o quarto e se
esconde, eu vou tentar acalmá-lo enquanto você chama a polícia!
— Ele não vai te ouvir.
Por que ela estava se colocando em risco? Ela sabia o que ele tinha
feito comigo anos atrás, por que queria ficar e provar do mesmo?
— Eu o conheço bem, Dani, por favor, eu...
Ele se jogou contra a porta mais uma vez.
— Vagabunda! Abra a maldita porta, porra!
Mais uma vez.
— Dani! — Mari Louise gritou e eu vi em câmera lenta o rosto do
qual fugi e planejei nunca olhar novamente.
Os olhos me assombravam e os punhos cerrados que me davam
pesadelos.
Reagi.
Corri cegamente até a cozinha e abri a gaveta. Ouvi Mari Louise
gritando, e logo depois um barulho. Tateei entre os talheres e segurei o cabo
da faca, e quando me virei para frente, foi tarde. Sua mão segurou meu braço
e o bateu na parede, fazendo-me ofegar de dor e a faca cair no chão. Robert
inclinou a cabeça para o lado e analisou cada centímetro do meu rosto.
— Eu gostava mais quando você se comportava, querida.
Ele segurou meu rosto, apertando com força e me olhando
profundamente. Os olhos azuis brilhavam com uma fúria que eu presenciei
apenas uma vez e não queria estar perto nunca mais.
— Não pensei que te encontraria morando com uma prostituta. Você
era melhor que isso.
— Não fale assim dela.
Ele riu. O rosto perfeitamente esculpido se iluminou. Ele tinha uma
covinha na bochecha esquerda, exatamente a mesma no rosto de Cody. A
beleza enganava. Enganou a mim e a Mali. Eu lamentava cada uma das
mulheres que ele ainda ia machucar nessa vida.
— Você fugiu com meus filhos. Onde eles estão?
— Vai pro inferno.
Robert sorriu e encostou a testa na minha. Segurando meu rosto, ele
me bateu contra a parede, fazendo minhas costas arder em todos os cantos.
— Eu vi o menino. Ele é exatamente como o papai. Vamos, Dani, me
diga. Estão na escola? Onde você esconde a minha menininha?
A primeira lágrima caiu. Eu nem sabia se era de ódio ou tristeza.
Provavelmente os dois.
— Por que você usou Mari Louise?
— Porque ela é uma vadia fácil e você sabe que eu gosto de satisfazer
minhas necessidades antes de voltar pra você. Sempre foi assim.
— E eu ainda sou culpada por ir embora?
— Querida... — As mãos grandes e lisas, bem cuidadas, alisaram
meu rosto. Os olhos eram suaves naquele momento. Ele tinha uma
capacidade doentia de mudar em segundos. — Você foi embora porque eu
perdi um pouquinho o controle. Não foi culpa minha. Você fugiu, você me
privou dos nossos filhos e...
Robert olhou para cima e um sorriso torto cresceu em seu lábio.
Subitamente ele virou e segurou o braço de Mari Louise no alto. Tirando o
vaso de vidro da mão dela e rindo. Sua mão enrolou no meu pescoço e depois
no dela, a encostando na parede ao meu lado. Ele olhou para nós duas e
passou a língua pelos lábios.
— Ah, Mari Louise... embora você seja uma vadia, as portas da nossa
casa em Minas Gerais estarão sempre abertas. Tenho certeza que Dani não se
importaria de dividir o espaço. São melhores amigas, certo?
— Você é nojento — murmurei entredentes. — Eu te odeio.
— E eu te amo. Amo as duas.
Ele se aproximou e beijou minha boca, depois a de Mali, e nos soltou.
Robert arrumou o terno, ajeitando a gravata, então sorriu.
— Eu vim apenas para dar o ar da minha presença e deixar um
recado. Vou resolver as últimas pendências antes de voltarmos para Minas
Gerais. Tenho uma eleição para vencer e preciso da minha noiva recém
encontrada e dos meus filhos ao lado. Ah... e Danielle — O sorriso falso
sumiu, dando lugar a um rosto ameaçador —, é melhor que nenhuma das
coisas que você fez aqui cheguem até os ouvidos e olhos da nossa cidade.
Quando ele saiu, batendo a porta, um quadro pendurado na parede
caiu no chão, quebrando o vidro em vários pedaços.
Mari Louise veio lentamente em minha direção, os olhos tomados de
pavor.
— Eu nunca ia imaginar, Dani. Oh, meu Deus! Me perdoe!
Eu a puxei para um abraço e afaguei seus cabelos.
— Era exatamente o que ele queria. Nos desestabilizar, fazer com
que nós briguemos, mas isso não vai acontecer. A única coisa pela qual eu
estou com raiva em saber que vocês estiveram juntos é que ele te usou e
machucou. Você não merecia isso, Mali. Me perdoe.
Ela me olhou, parecia sem palavras.
— O que vamos fazer? Eu devia ter feito algo aqui dias atrás. Se eu
soubesse que foi ele quem fez aquilo com você, juro que...
— Mali, isso não é a questão. A gente ficar aqui debatendo o passado
não resolve nada.
— E o que vai resolver?
Meu instinto me dizia para arrumar minhas malas e fugir, msó que eu
não podia fazer isso. Estava com medo, mas fugir outra vez seria dizer a
Robert e aos meus pais que tinham controle sobre mim.
Eu fugi deles uma vez, mas não podia correr sempre que se
aproximassem a começassem a me ameaçar. Eu tinha um filho para cuidar, e
Cody dependia totalmente de mim. Ele já tinha uma vida ali e fazê-lo viver
nessa montanha russa tortuosa não era a saída.
Suspirei e fitei Mari Louise.
— Você fugiu do seu pai e eu dos meus. Mas nós não podemos fugir
para sempre.
Ela fungou, limpando os olhos.
— Então?
— Nós vamos ficar. E vamos lutar. Porque nenhum deles tem poder
sobre nós.
Capítulo 43
"...é como se as paredes estivessem desmoronando
Às vezes, sinto vontade de desistir
Mas eu não posso
Não está no meu sangue"
shawn mendes, in my blood

— É ele outra vez, Dani.


Quinta vez em uma semana. Eu não pensei que ele fosse me procurar
tão rápido. Na verdade... nem pensei que fosse.
— Ok. Vou chamar o porteiro mais uma vez.
— O porteiro foi avisado para não o deixar entrar! Esse idiota está
subornando aquele imbecil para subir, só pode.
— Ele não vai derrubar a porta — falei, mas no fundo eu estava
preocupada que fizesse.
— Mas eu estou muito atrasada Dani, preciso sair!
Bufando, busquei paciência, gentileza, responsabilidade para saber
que se jogasse algo na cabeça dele seria presa, e Cody precisava de mim.
Então caminhei pisando fundo até a porta, abrindo-a com uma falsa
serenidade que foi embora assim que vi seu rosto cínico e mentiroso.
Mari Louise passou por ele, batendo a enorme bolsa de ombro em seu
peito com uma força proposital, e poderia ter feito um homem menor
cambalear, mas Cobain nem desviou o olhar de mim para reclamar com ela.
Que bom, ele sabia que merecia até mais do que isso.
Nós nos encaramos por vários minutos em silêncio. As olheiras
presentes debaixo dos olhos nas últimas vezes que eu o tinha visto, não
estavam mais lá. O cabelo foi penteado para trás, com um coque em alguns
fios e o restante solto. Seus olhos verdes eram mais suaves e a luz que vinha
da minha janela me deixava ver claramente as sardas que o cabelo quase
sempre tampando o rosto escondia.
Eu tinha tanto para dizer e ao mesmo tempo... nada. Quando ele abriu
a boca, minha mão que segurava a porta automaticamente a empurrou para
fechar. Ele percebeu e a segurou, balançando a cabeça para mim.
— Me desculpe.
— Vá embora — eu disse entredentes, sem nenhuma paciência para
começar uma discussão na qual só eu iria me expor.
— Você estava lá.
— Apenas por poucos minutos.
Ele assentiu e coçou a barba.
— Mas ouviu o que o médico disse.
E vi cada uma de suas reações!, meu interior gritou, mas fiquei
calada.
Eu não sentia raiva. Sentia uma tristeza gigante que quase me
dominava. Me perguntava porque ele fez aquilo. Será que traiu sua esposa
comigo esse tempo todo? Será que a coitada estava no hospital por causa
disso?
— O que quer, Cobain?
— Conversar.
— Agora? Agora que eu já sei de tudo?
— Você não sabe de nada.
— E nem quero! Não preciso saber mais nada das suas meias
verdades ou completas mentiras.
— Danielle...
— Não! — gritei. Estava cansada disso. Cansada dele. E dessa vez
era pra valer. — Você me conheceu ferrada. Não sei se ficou com dó de mim,
se quis uma aventura, se eu fui um jogo, e nem quero saber. Mas você veio
atrás de mim. Eu sou culpada por todas às vezes que fui até você, mas não
vou me culpar por acreditar em uma mentira quando você mentiu tão bem!
Ele balançou a cabeça e deu um passo à frente.
— Dani, por favor.
— Não me chame de Dani. Não me chame de nada. Apenas vá
embora!
— Não sem antes te explicar...
— O que quer explicar? Que traiu sua esposa comigo? — Dei uma
risada amarga. — Se é que um mínimo beijo pode ser considerado traição,
além de tudo que envolveu esse... esse... sei lá o que que fizemos!
— Não é isso. Não é assim.
— Deixe-me te dizer algo — falei, apontando diretamente para seu
rosto. — Eu tenho coisas tão sérias para me preocupar... Se você soubesse
como está tudo uma droga, talvez tivesse um pouquinho de compaixão e me
deixasse em paz.
Sua testa franziu, foi a mesma expressão de quando ele estava prestes
a começar a se intrometer. Ele ergueu a mão esquerda, tocando a minha, mas
me afastei. Seus lábios apertaram em desagrado.
— O que está acontecendo?
— Não é da sua maldita conta! Se não sair, vou chamar a polícia.
— Já me disse isso antes e olha onde estamos.
— Tem certeza que quer falar sobre o passado? Sobre tudo o que já
dissemos um ao outro? Não vá por esse lado, James.
— Sou James agora?
Suguei uma longa e profunda respiração.
— Por favor, vá embora.
Para me salvar, o telefone tocou. Mas eu estava focada apenas em
fazê-lo ver que eu falava sério sobre ele ir embora, então a chamada caiu na
caixa de mensagem e quando a voz do outro lado se fez audível, saí do meu
torpor e olhei naquela direção.

“Ei, querida. É o Rob. Eu estou comprando nossas passagens de volta


nesse momento e passo para te pegar por volta das seis. Isso te dará
algumas horas para deixar tudo organizado. E diga a prostituta da sua
colega de apartamento que se ela estiver aí quando eu chegar... não será
tão agradável como da última vez.”

Não, não, não, não!


Robert era tudo o que eu não precisava naquele momento.
Cobain estreitou os olhos ouvindo a voz do meu ex-noivo,
aproximou-se do telefone e encarava o aparelho como se o próprio Robert
estivesse em sua frente.

“Nossos pais estão empolgados em saber que você está voltando e os


preparativos do casamento finalmente serão finalizados. Ainda temos
coisas para organizar aqui. Não vejo a hora de ter você e nosso filho de
volta em casa.”

O apito do fim da mensagem pareceu como uma bomba no cômodo e


os olhos de Cobain para mim eram o fogo após a explosão.
— Casamento? Passagens de volta?
— E-eu...
— “Nosso filho”? Que porra está acontecendo, Danielle?
— Não me venha querendo exigir explicações! Você mentiu esse
tempo todo e...
— E você não? Que eu me lembre, nunca citou que estava noiva e
muito menos pretendia voltar a Minas.
— Porque não pretendo e nem estou noiva!
Ele bufou e apontou para o telefone.
— Não é o que seu Rob diz, querida.
— Você não entende.
Ele ergueu os braços.
— Então me explique!
O problema não era falar, mas sim toda a dor que aquilo renascia em
mim.
— Eu fugi de Minas quando estava grávida. Estava noiva de um cara
que conhecia desde a infância. Ele foi para São Paulo estudar e quando
voltou se reaproximou de mim. Nós namoramos, noivamos e eu fiquei
grávida, não foi planejado. Isso acelerou os preparativos do casamento.
— Por que você fugiu?
— Robert tinha um temperamento difícil. Era como se fosse duas
pessoas ao mesmo tempo e eu sabia lidar com o lado bom dele, mas quando
aquele duvidoso aparecia... eu nunca sabia o que fazer. Perdoei algumas
traições com as meninas da nossa sociedade, quando ele ia até a minha casa
bêbado e não respeitava quando eu dizia não. Eu me sinto uma idiota por
lembrar do quanto aceitei por ele, mas parecia que eu devia algo apenas pelo
fato de ele ter ficado comigo quando estive doente. Ele passava as tardes
comigo em casa quando eu não podia sair, ou me levava em passeios calmos.
Mas ele mudou tanto quando seu pai começou a apresentar o mundo da
política, dos clubes e dos homens adultos. Eu não sabia o que fazer até que...
Cobain engoliu em seco.
— Até que...
Fechei os olhos, tentando bloquear meus ouvidos dos meus próprios
gritos que, mesmo na memória, pareciam tão dolorosos.
— Cody seria Conrado. Mas quando nasceu, Diana veio alguns
segundos depois e já estava morta.
— O quê? — sussurrou. Sua voz grave e ao mesmo tempo fraca me
fez cair sentada no sofá.
Falar sobre aquilo abria um buraco tão grande no meu coração, e
parecia que eu estava novamente naquela sala de parto, com Mari Louise me
consolando enquanto eles levavam minha menina para longe de mim.
— Eles eram gêmeos. Havia todo o risco de estar grávida e ter
esclerose, mas eu estava confiante, acreditava que tudo ia dar certo.
— Como... o que houve com ela?
— Eu pensava que havia sido por alguma complicação, que talvez a
culpa fosse minha e isso me fez odiar ainda mais o diagnóstico da EM. Tive
que esperar por dias até sair o resultado dos exames que fizeram nela.
— Não foi culpa sua, Danielle.
— Foi. Em partes, foi sim. Porque ela tinha lesões da agressão do pai.
— Abri os olhos e me surpreendi ao ver Cobain ajoelhado na minha frente.
— Robert é filho do prefeito e em uma cidade pequena ele é intocável. Os
meus pais não queriam um escândalo rondando nossas vidas, então quando
eu cheguei em casa machucada depois de tê-lo confrontado por uma traição,
minha mãe chamou uma médica e a pagou para ela ficar em silêncio. Eu
fiquei de repouso por um tempo e Robert voltou a ser quem era nos primeiros
dias do nosso namoro, de quando me apaixonei.
Eu me lembrava de quantas flores, mimos e palavras bonitas ele me
encheu. Mas nada me fazia esquecer. Nada me fazia perdoar a mim mesma
por ficar calada.
— Fugi quando tive a chance. Minha professora de ballet, a senhora
Reis, é tia dele. E ela me ajudou a ir embora.
— E agora ele voltou.
Assenti, tirando o esmalte das unhas para me distrair de seu olhar.
— Eu pensei que conseguiria ter meus dois filhos aqui. Sabia que
seria difícil, que talvez passasse por dificuldades, mas nunca me arrependi de
ter tentado lutar pelos dois. Mas todas às vezes que penso... — Solucei,
sentindo uma lágrima solitária finalmente descendo por minha bochecha.
Quando penso em Diana, e que ela não teve a chance de estar aqui... que seria
como Cody...
Cobain se sentou ao meu lado e me tomou em seus braços. Eu não
quis resistir. Ele me abraçou enquanto meu corpo inteiro tremia em soluços,
acariciando meus cabelos e nem se importando que eu molhava sua camisa
de lágrimas.
— Não foi culpa sua, não pense assim. Não foi culpa sua nem em
partes. Foi ele. Esse desgraçado.
— Eu... eu queria que ela tivesse tido uma chance e ela não teve.
— Shi... tudo bem, ma rose.
Eu chorei por longos minutos.
Nunca tinha falado sobre aquilo abertamente, nem mesmo com Mari
Louise, que presenciou e fez parte de todos aqueles momentos. Nem ela sabia
realmente o que tinha acontecido. E agora estava ali, nos braços do único
homem que amei na vida, cheia de raiva dele, mas tão agradecida por tê-lo
me abraçando.
Mas ainda assim... a realidade me batia à porta, me lembrando que
antes de todas as minhas confissões, haviam os segredos dele. Que mais uma
vez, eu estava dando tudo e ele nada.
Soltei sua camisa, vendo a camisa molhada em seu peito. Passei as
mãos por meu rosto e respirei longe dele, me afastando.
— Então... agora você sabe oficialmente tudo sobre mim.
— Ainda temos muito para conversar.
— Não. Acabou o tempo para conversas. Eu estou cansada de dar
tudo de mim e receber nada em troca. Saia da minha casa.
Ignorando-me, ele se aproximou e pegou minha mão, deixando um
beijo nas costas dela e acariciando meu rosto. Os olhos verdes refletiam
cuidado, afeto.
— Não se preocupe com mais nada. Tudo vai ficar bem.
Minha testa franziu, não entendi suas palavras e ele me soltou,
caminhando até a porta. Antes de sair, se virou para mim com um sorriso.
— Você é incrível, Danielle.
Toquei minha bochecha onde tinha a sensação que ainda podia sentir
seus dedos e chacoalhei a cabeça. Fui para o quarto e deitei ao lado de Cody,
o abraçando antes de fechar os olhos.
Capítulo 44
COBAIN JAMES

— Vai pagar muito caro por isso. — o fracassado inútil resmungou


enquanto tentava se levantar.
Eu estava orgulhoso do estrago que meu punho descontrolado tinha
feito em seu rosto de menino caro. Agachei-me ao seu lado me segurando
para não continuar batendo no pedaço de lixo. Levaram vários dias, mas eu
tinha em minhas mãos coisas o suficiente para coloca-lo em uma longa
investigação, e pagando as pessoas certas, poderia tê-lo preso em uma
simples questão de tempo.
Joguei os papéis a sua frente, provando a ele que não estava brincando
quando cheguei em seu quarto de hotel.
— Extratos bancários, desvios de dinheiro público, alguns registros
telefônicos... parece que você andou ocupado, Robert. — falei e seus olhos
estreitaram com mais raiva do que já estavam.
— Isso não é da sua maldita conta!
— Danielle e Cody são da minha conta, e Mari Louise
automaticamente passa a ser também. O que significa que se você chegar
perto de qualquer um deles novamente eu vou colocar isso tudo nas mãos
certas.
Ele se sentou e riu. Limpando o sangue do nariz com a manga do terno
agora amassado.
— Eu vou acabar com você.
Deixei um sorriso ansioso preencher meus lábios e levantei,
caminhando para a porta.
— Eu mal posso esperar para vê-lo tentar.
Capítulo 45
“...mesmo quando o céu estiver caindo
Mesmo quando o sol não brilhar
Eu tenho fé em você e eu
Então coloque a sua linda mão na minha
Mesmo quando estivermos nos últimos instantes
Mesmo quando for para fazer ou morrer
Nós podemos fazer isso, é simples e claro
Por que esse amor é a coisa certa”
miguel, sure thing

Eu voltei ao trabalho. Não queria chegar nem perto das boates,


porque só o pensamento disso já me lembrava dele, o que eu estava fugindo
pensar de qualquer jeito. O problema foi que ele se instalou na minha vida de
uma forma tão intensa, que tudo que eu fazia o envolvia. Meu trabalho no
Theatro, meus filmes preferidos, qualquer trilha sonora de filmes, meus
livros, meu filho, minha geladeira... tudo!
Mudei o número do meu telefone e queria ter mudado de endereço
também, mas Mali não quis. Disse que não daria a ele essa satisfação e que
eu estava completamente errada em mudar a minha vida por causa dele.
Senhor Carlos não me poupou de trabalho, o que eu agradeci. Menos
tempo livre significava menos oportunidades para ficar pensando nos “e se”.
Me enterrei no trabalho e me afoguei em Cody. O levava para passear, saía
com Raiana e Mari Louise, me inscrevi para uma maratona de corrida no
bairro que não participei porque dormi demais e perdi a hora, comecei a
escrever alguns poemas e até me arrisquei a fazer um curso de ortografia,
porque a minha era horrível.
E no fim do dia, eu sempre me perguntava porque fiz tudo aquilo, se
quando deitava a cabeça no travesseiro, pensava nele.
A Conelly se apresentou e foi perfeito. Eu chorei o espetáculo inteiro,
não por pensar no dono da companhia, mas porque queria estar participando.
Os dias se passaram, um mês foi embora e o terceiro sem Cobain
chegou.
Doía menos a cada dia. Às vezes parecia que ele foi um sonho vago,
uma alucinação borrada, mas outros eram tão claros como água e esses eram
os piores. Porque eu lembrava de tudo o que nós fomos... ou quase chegamos
a ser.
Meus pais me ligaram duas vezes e foram pacíficos, já Robert sumiu.
Às vezes eu pensava o pior, que isso era a calmaria antes da
tempestade, que estavam tramando algo e eu seria pega tão de surpresa que
nem teria como reagir, mas achei a solução em um advogado que estava me
orientando sobre tudo.
Mari Louise me apresentou a Erick Gusmão quando eu fiquei tão
desesperada a ponto de nem dormir à noite, e ele vinha me explicando que
com tudo o que aconteceu, meus pais não seriam nem loucos de tentar tirar
Cody, e que Robert tão tinha nenhum direito, principalmente por conta de
Diana. Isso me tranquilizava, mas às vezes a paranoia me batia e eu queria ser
uma mosquinha perto dos três para ter certeza absoluta que me deixaram em
paz.
Meus dias se tornaram rotineiros outra vez.
Eu já passava horas sem lembrar dele. E haviam dias que não ficava
tão triste a ponto de o coração doer.
Era um progresso. Um processo lento, mas eu chegaria lá.

(..........)

— E aí, Lari? Como está o treino com o cara novo?


— Tive que dar uma dura nele ontem quando veio me encher o saco
com esse cardápio chato de couve e cenoura rosa.
Guilherme franziu a testa e deu um sorriso confuso.
— Cenoura rosa? Quer dizer refogada? Não, nós não comemos isso.
Eu desviei os olhos do teclado para ele, notando mais uma vez que
parecia um desenho animado. Um daqueles no qual o cara é supermalhado e
descolado, mas não tem meio cérebro na cabeça e nem se importava com
isso. Talvez isso tornasse Guilherme tão divertido.
Eu sentia falta daqueles momentos no trabalho em que a gente estava
sem fazer praticamente nada e podíamos ficar conversando sobre nada em
especial, só matando tempo.
Me lembrava que eu era jovem, tinha amigos e precisava aproveitar
minha vida.
— Qual de vocês duas vai almoçar primeiro? — ele perguntou.
Eu dei de ombros.
— Por mim tanto faz, eu trouxe comida hoje.
— Eu não — Lari respondeu com um bico. — Esqueci em cima do
fogão.
— Aí, gata, tem um lugar bacana ali na esquina e como é véspera de
feriado, tá em promoção. Vamos lá comer, eu pago.
Larissa ergueu as sobrancelhas.
— Não é essa comida horrível que você come, né?
— É comidinha de vovó. Vai se sentir em casa. E eu vou ter que
malhar duas horas a mais depois disso pra valer o prejuízo de comer lá para te
fazer companhia.
Ele riu e deu dois tapas no balcão, saindo e assoviando. Larissa
revirou os olhos ao olhar para mim.
— Como se eu estivesse implorando pela majestosa companhia dele.
Rindo, pulei do banco para o chão e peguei meu celular.
— Já que você vai comer fora hoje, eu vou lá na copa comer a minha
comida segura e já volto.
Lari riu e me lançou o dedo do meio.
Passei por algumas pessoas no meio do caminho, cumprimentei
outras, mas não parei para conversar. Não era dia de visita, por isso a
recepção estava tranquila pela programação calma, mas tínhamos muito o que
fazer no sistema pelo computador.
Ao passar pelo corredor, foi impossível não parar em frente aquela
porta e entrar. Respirando fundo, tirei meus pés das sapatilhas só para sentir o
chão e as linhas da madeira rapidamente antes de sair. Em alguma sala perto,
tocava um clássico de Igor Stravinsky, e a vontade de dançar era gritante,
mas eu havia acordado com uma fadiga daquelas.
Me preparei para colocar os sapatos de novo e sair para comer, mas
de repente o clima mudou.
Eu só precisei olhar para cima através do espelho para confirmar o
que os pelos arrepiados da minha nuca já haviam dedurado.
— Olá, Danielle.
E ele estava bem na minha frente. Exatamente onde o vi pela
primeira vez.

(..........)

COBAIN JAMES

Ela parecia apavorada, mas ainda tão linda quanto eu me lembrava.


Os pés descalços e o fone na mão esquerda me fizeram perceber
imediatamente o que ela estava prestes a fazer. Por um momento eu quis me
socar, sabendo que se chegasse um minuto mais tarde, poderia observá-la
dançando.
Exatamente como na primeira vez que nos vimos.
Ela abaixou e alcançou o par de sapatilhas com um laço rosa em
cima, tropeçando pela rapidez com que levantou. Seus olhos vagaram pelo
lugar, como se procurassem uma saída, mas era óbvio que a única existente
estava atrás de mim. E dessa vez, eu não pretendia deixá-la escapar.
Não sem antes fazer o que deveria ter feito há muito tempo.
— Tenho que voltar ao trabalho — murmurou e deu um passo à
frente.
— Você não costuma mentir, por que está fazendo isso agora?
Fogo atingiu suas íris castanhas.
— Não deveria se incomodar, mentiras são o seu forte.
— Eu não menti.
— Sim, claro. E no seu manual de salafrário, omitir não é tão grave
quanto mentir, certo?
Minhas sobrancelhas ergueram com sua tentativa de ofensa.
— Manual de salafrário?
— Posso usar outra palavra, se quiser. Tenho várias que se encaixam.
Cafajeste, ordinário, mau-caráter, patife, calhorda, cínico, malandro... e... e...
— E?
— Desqualificado! — Ela bateu o pé no chão. — Isso.Totalmente
sem-vergonha!
Cristo, ela era adorável. Linda e adorável. Os lábios estavam em um
bico nada intencional, apenas combinava com a expressão irritada em seu
rosto. Eu queria rir.
Queria gritar com ela para que gritasse comigo, queria que ela se
aproximasse para que eu invadisse seu espaço logo depois e não me sentisse
tão culpado quando ela me acertasse um tapa por beijá-la. Queria tantas
coisas e todas elas pareciam inalcançáveis, inclusive seu perdão.
Respirei profundamente, saindo da frente da porta e me encostei na
parede ao lado, escorregando até sentar no chão. Meu coração batia acelerado
de pensar que estava arriscando deixá-la fugir ao sair da frente da porta. Mas
a intenção não era mantê-la presa. Eu queria que ela quisesse ficar, mesmo
que estivesse brava e desejasse ver o diabo a mim.
Olhando-a diretamente nos olhos, comecei. Dei o primeiro passo em
direção a paisagem mais bonita, esperando que dessa vez, enquanto sentava
para observar, ela não desmoronasse de novo na minha frente.
— Conheci Lumia aos dezoito anos. Éramos da mesma escola de
Artes. Ela estudava dança, ballet clássico, e eu piano. Ela morava com a tia
numa pequena cidade da França e ganhou uma bolsa na escola. Nunca teve
muitas condições, então quando me conheceu eu apresentei a ela tudo o que
envolvia o meu mundo. Ela nunca tinha ido a Teatros, Museus ou os pontos
turísticos mais famosos do país e eu a levei em cada um deles.
O rosto de Danielle estava cheio de incerteza. Ela provavelmente
estava se decidindo entre ficar e me ouvir, ou dar-me as costas e nunca mais
voltar. Eu faria a segunda coisa se fosse ela, mas estava agradecendo
silenciosamente que ela não fez isso.
— Eu pensei que eu era uma idiota por achar um lugar clássico como
o Theatro, um paraíso.
Eu deixei um sorriso fechado alcançar minimamente um lado do meu
rosto ao ouvi-la se referir a um dos nossos primeiros encontros, quando eu
detonei o lugar que ela defendia com unhas e dentes.
Se ela pensava que aquilo era incrível, eu me perguntava o que ela
acharia das galerias em Roma, ou das catedrais ao redor do mundo. Me
peguei pensando em como seria encantador apresentar a ela uma realidade
tão distante da sua.
A minha menina sonhadora que não parava de sonhar mesmo quando
vivia presa em incontáveis pesadelos.
— Casamos com vinte e nos formamos. Enquanto eu fazia meu nome
no mundo da música, ela crescia na dança. Ela entrou para uma grande
companhia, estudou com os melhores professores e conseguiu o que mais
queria, a Conelly.
Danielle arregalou os olhos, surpresa com a informação.
— Eu não sabia — sussurrou.
— Ela era uma das diretoras. Tinham outros três. Ela criou o projeto,
conseguiu patrocínios, mas ninguém confiava que uma mulher jovem
pudesse ter capacidade de cuidar de uma enorme companhia de dança
mundial. Então ela dividiu a cadeira e não me deixou colocar um centavo
para dar a ela o poder completo. Mas isso nunca foi um problema para nós.
Eu amava que ela era feliz, que estava realizada. A Conelly foi seu maior
sonho e ela queria tornar isso um legado, algo de família.
— Por isso você administra — ela constatou. — Por isso veio ao
Brasil.
— Quando eu te disse que praticamente vivi aqui desde criança, era
verdade. Mas sim, eu vim meses atrás para as apresentações no país. —
Suspirei e passei as mãos pelos cabelos, prendendo-os no alto da cabeça. —
Comprei todas as ações dos outros diretores e dividi entre meus irmãos
quando ela...
Parei subitamente, engolindo em seco ao lembrar que a pior parte da
história estava por vir.
E não me surpreendi quando Danielle ajoelhou na minha frente e se
sentou, fitando-me com os olhos banhados de água.
— Ela adoeceu. Pensamos que fosse estresse, cansaço do trabalho.
Mas hoje eu penso que ela só demorou tanto para aceitar ir ao médico porque
já desconfiava que fosse algo maior. Sempre dizia que não podia se dar ao
luxo de tirar férias, que tinha espetáculos pelo mundo e todos os bailarinos
precisavam dela. Ela era tão nova, tão talentosa e tão persistente.
Danielle pegou minha mão, apenas mantendo-a num aperto frouxo
enquanto eu falava.
— O câncer a derrubou. Ela estava dançando pelo mundo e de
repente... quimioterapia, remédios e uma pausa na carreira. A depressão
chegou com força e eu a encontrei na mais clássica tentativa de suicídio.
Estava dentro da banheira com os pulsos cortados. Corri com ela para o
médico, a salvaram e eu não entendia. Eu não entendia porque mesmo
comigo, minha família e a família dela por perto, a apoiando, ela queria
desistir. Só que... não é fácil entender a dor de outra pessoa. Você não
consegue olhar para alguém e se colocar no lugar dela a ponto de ser
compreensivo do "porque ela quis se matar?".
— Ela tinha depressão, Cobain. Ninguém controla as coisas que vêm
com isso.
— Eu sei. Mas você controla o que vem depois. Os melhores
tratamentos a levaram à cura. Passamos um ano perfeito juntos, ela voltou
aos ensaios, o cabelo cresceu, eu voltei a tocar, estava tudo bem.
— E então?
— Ela perdeu um bebê. Descobrimos com o sangramento. Três
meses.
— Eu sinto muito — Danielle sussurrou e a primeira lágrima
escorreu por sua bochecha rosada.
A mulher que eu amava, chorando pela que eu perdi e pelo nosso
bebê.
— Eu entendi e aceitei. Essa coisa toda de Deus sabe o que faz. Para
mim, ela estava ali. Um filho não substituía o outro, mas eu encontrei forças
nela para seguir em frente, quer dizer, podíamos tentar de novo.
— Mas ela não via da mesma forma.
— Ela foi para baixo na depressão de novo. Bem mais sério do que
na primeira vez, e pediu o divórcio. Eu saí de casa com dois policiais me
acompanhando, porque ela ligou para eles depois de eu me recusar a sair. Eu
estava com tanto medo de que ela fosse fazer algo contra si mesma! Tinha
certeza que no momento que colocasse meus pés para fora, receberia a pior
notícia possível. Mas tive que sair.
Suspirei, fechando meus olhos para relembrar em palavras o pior dia
da minha vida.
— Assinei o divórcio, ela enviou minhas malas pelo nosso motorista
e cortou contato com qualquer pessoa que eu conhecia. Então, quando meses
depois de silêncio completo dela, íamos completar seis anos de casamento,
ela me ligou. Eu fui na mesma hora para a nossa antiga casa. Uma cobertura
com vista para a Torre Eiffel que ela escolheu quando casamos. Eu bebia
vinho e trabalhava na composição da trilha de... de Stardust, e ela estava
deitada no sofá. Eu havia feito um chá para ela e a cobri, acendi a lareira e
mantinha um olho no bloco de anotações e outro nela.
Danielle baixou os olhos quando citei o mesmo filme que falei para
ela semanas atrás no meu aniversário. Finalmente entendendo meu problema
com as malditas estrelas.
— Lumia ficou ali olhando pela nossa vista incrível, ouvindo meu
dedilhar no piano e elogiou. Disse que eu era uma constelação inteira no céu
que pertencia a ela.
Eu conseguia visualizar a cena. Como eu a olhava apaixonado. Como
fui cego por não ver. Como aquele dia me destruiu.
— Ela levantou de repente, me abraçou e perguntou se eu morreria
por ela. Eu disse que sim, que se pudesse trocaria de lugar com ela. Que
aguentaria toda a dor apenas para que ela vivesse seus sonhos, que fosse feliz.
— Cobain...
— Ela sorriu, me beijou e me chamou para dar um passeio. Eu
estranhei porque depois da doença ela não queria fazer mais nada realmente.
Depois do bebê ela se trancou. Até mesmo eu que era a pessoa mais próxima,
acabei ficando distante, só conseguia o que ela estava disposta a me permitir.
— O passeio não foi bom?
— Nós nos agasalhamos, pegamos a chave do carro e ela pediu para
dirigir. Estávamos passando pelo rio Sena, acima da Ponte de Notre Dame.
Ela acelerou, sorriu e começou a cantar uma cantiga infantil de ninar. Os
cabelos dela voavam com o vento e por um momento eu pensei que ela
estivesse bem, porque eu juro que ela estava tão bonita... Mas ela soltou o
volante enquanto eu sorria de volta, e eu só me lembro da velocidade do carro
fazendo-o capotar e girar no ar. Nós caímos no rio. Eu acordei no hospital
três semanas depois e soube que ela entrou em coma.
Ouvi uma respiração aguda vindo dela, e levantei a cabeça, fitando
seus olhos.
— Minha ex-esposa ficou em coma pelos últimos três anos, até que
faleceu no mês passado. Seu coração parou de bater.
— Você se culpa? — ela sussurrou.
— Não. Eu sei como a amei, sei como lutei por ela. Sei como
diariamente quase morri um pouco ao vê-la definhar. Mesmo quando estava
viva, Lumia não era mais ela mesma. Eu não me culpo porque eu a amei
tanto quanto um homem pode amar uma mulher.
— Cobain, eu não sei o que dizer além de que sinto muito... por tudo.
— Você não tem que dizer nada.
— Tudo o que você passou, que ela passou, é horrível. — Danielle
ficou de pé, alisando o vestido e olhando inquieta para as paredes. — Eu... eu
preciso...
Me levantei também. Diminuí o espaço entre nós e segurei seu rosto,
tendo tempo de ver apenas seus olhos arregalados antes que minha boca
encontrasse a sua. Os dedos finos se agarraram às mangas do meu casaco e
ela suspirou, entreabrindo os lábios e me aproveitei, beijando-a como sempre
quis fazer pela primeira vez.
Não havia nada que me impedisse agora.
Sem mais mentiras, sem nenhuma omissão ou segredos do passado.
Ela podia ser minha e a forma como respondeu ao meu beijo me
deixou ainda mais confiante disso. Meu braço direito enrolou sua cintura,
trazendo-a para mais perto de mim e deixando-me sentir as curvas suaves do
pequeno corpo.
— Cobain... — ela sussurrou e suas mãos abriram no meu peito,
afastando-se antes que eu perdesse o controle ali mesmo. Seus olhos
angustiados me fitaram com atenção. Ela balançou a cabeça. — Não.
— O quê?
— Eu preciso... de ar.
Franzi a testa, abri a boca, mas ela já havia corrido para fora da sala.
Ela precisava de ar?
Deixei-me cair contra a parede e suspirei.
Se alguém me perguntasse, eu estaria pronto para dizer que não era
um cara de movimentos. Fora meus dedos que hoje incapacitados, um dia
foram capazes de saltar perfeitamente em cima das teclas de um piano, eu
preferia ficar parado.
Eu escolhi.
Danielle sabia dançar. E ela não escolheu parar. Isso foi arrancado
dela. E mesmo sem poder fazer como amava, me ensinou o que sabia, ela fez
meu coração dançar outra vez.
Ela era como o contraste de tudo o que eu me encaixava. Distante de
tudo o que eu conhecia. A luz na minha escuridão e o som quando meu piano
ficou mudo.
Ela me fez querer lutar assistindo sua luta e me fez ver que há mais
além do meu mundo fechado. Eu podia olhar além e ver que havia muito
mais.
Havia uma paisagem perfeita que não desmoronava, mas ficava mais
bonita a cada sorriso que minha bailarina deixava escapar. Eu não podia
perdê-la. Não agora que sabia que ela era o meu recomeço. Sem nenhuma
dúvida, eu precisava ser o dela também.
Capítulo 46
"...sua mão se encaixa na minha
Como se tivesse sido feita só pra mim
Mas coloque na cabeça que era para ser assim
E estou ligando os pontos
Junto com as sardas em sua bochecha
E tudo faz sentido para mim"
one direction, little things

Eu dei o primeiro passo.


Faziam duas semanas da minha última conversa com Cobain. De
quando nós finalmente tiramos todos os segredos e expusemos tudo. Não
havia nada sobre meu passado que ele não soubesse e nada sobre o dele que
eu não soubesse. Nossas mais profundas e dolorosas cicatrizes foram abertas
novamente, sem medo do que viria depois disso.
Eu o entendi depois de saber toda a história com Lumia. A mulher
sofreu e não soube lidar com isso, e Cobain ficou e aguentou mesmo
sofrendo junto. Nunca estive tão próxima de alguém que enfrentou a
depressão, mas podia imaginar como devia ser difícil lidar com isso. Cobain
colocou sua vida em espera por ela, mesmo quando já não havia porque ter
esperança. Ainda assim ele a amou. Eu o entendia e o admirava, mesmo que
em silêncio.
Por isso, quando a apresentação escolar de Cody antes das férias de
dezembro chegou, eu decidi dar aquele passo. Não sabia o que aconteceria a
seguir, o que seria de nós ou se sequer existiria um “nós”. Mas arrisquei.
Peguei meu celular, digitando uma mensagem para o telefone da
senhora Reis, e enviei.

*"Cody vai ter a última apresentação escolar desse ano. A senhora está
superconvidada.”

O telefone tocou segundos depois.


— Olá, senhora Reis.
— Ei, menina. Eu vi sua mensagem.
— A senhora vem? Se não conseguir, eu entendo. Pode vir conhecer
Cody quando quiser.
— Não, não é isso... É que...
— O quê? — perguntei, mantendo os olhos em Cody brincando no
parquinho da escola.
— Eu estou tomando chá com um doce rapaz mal-humorado.
Cobain.
— Ah — foi minha única resposta.
— Embora ele vá adorar me ter fora daqui, já que tem tentado me
expulsar desde que comecei a vir, eu acho que ele gostaria de poder assistir a
essa apresentação também.
E ali estava. O meu poder de dizer sim ou não, poderia ser talvez o
fim ou o recomeço de tudo.
— Se ele quiser — sussurrei em transe, limpando a garganta depois.
— Quer dizer... se ele quiser assistir. Cody gostaria disso.
— Cody gostaria, não é? —Eela deu uma risadinha.
— Senhora Reis — repreendi.
— Tudo bem, tudo bem. Eu vou deixá-lo saber que Cody ficaria feliz
de vê-lo.
— Certo.
— Até mais, menina.
Nós desligamos e eu comecei a rezar para que ela não aprontasse
nada, o que se tratando da senhora Reis, era difícil de não acontecer.
— Dani? — Monica, uma colega do bairro que trabalhava na
secretaria da escola, me chamou.
— Sim?
— A sala do Cody vai ser a terceira a se apresentar. Se você quiser
pegá-lo no parquinho e ver se está tudo em ordem...
— Ah, claro.
Ela sorriu para mim e foi atrás de outras mães, orientando cada uma.
Tirar Cody da fila do escorregador foi um sacrifício. Ele corria de
mim e subia as escadas, e depois de escorregar levantava a mão, apontando
um único dedo para cima ao dizer.
— Só mais um.
E desse “só mais um”, passamos de dez escorregadas. Quando
finalmente o tirei do brinquedo, dei água e o distraí de voltar ao parque para
que não sujasse a roupa. Fiz mais uma rápida sessão de fotos, não aguentando
a fofura que ele estava com as botinhas country de franjinha atrás, a calça
jeans com retalhos e a blusa azul xadrez.
Depois ele se divertiu sentado no primeiro banco da arquibancada
comigo, dançando junto com as duas primeiras turmas. Cada uma dançou
duas vezes. Algumas crianças ficavam com vergonha e se mantinham paradas
no meio do círculo, outras mais pulavam do que tudo. Eu nunca tive aquele
problema de incentivar Cody a dançar. Se fosse por ele, se enfiaria no meio
das rodas de todas as salas e dançaria mesmo sem ter ensaiado com a
turminha.
— Mamã!
— O que foi, filho?
— Dança!
Ele colocou a mão na cintura e segurou o chapéu, sorrindo com todos
os dentes amostra.
— Que gracinha! — uma moça ao lado elogiou, sorrindo para mim.
— Obrigada. — Sorri de volta e voltei a tirar fotos da peça que era
meu bebê.
Quando finalmente chegou a vez dele de dançar, o levei até a
professora e voltei para o meu lugar. Fiquei de pé para não deixar de filmar
um segundo, nem perder nada.
Cody olhou para mim e me deu um joinha antes de a música
começar.
As crianças fizeram duas rodas primeiro, meninas no meio e os
meninos fora, eles pareciam tão fofos e desajeitados, porque mal conseguiam
fazer os passos em ordem. Os que ficavam com vergonha se juntavam a
professora, que os incentivava a continuar a coreografia. Repetiram a dança
duas vezes e eu filmei as duas dando a desculpa de que caso perdesse uma,
teria a outra de reserva. Quando a música acabou, Cody continuou batendo
palmas com as mãos no ar. Se dependesse dele, a canção poderia repetir mais
algumas vezes e ele continuaria dançando.
Bloqueei o celular depois de tirar as últimas fotos e o guardei no
bolso, ajeitando a bolsa no ombro para ir pegá-lo, mas ao invés de vir em
minha direção, Cody começou a correr para o lado contrário. Franzi a testa,
acelerando o passo para ir atrás dele, mas foi só desviar meu olhar para cima
que entendi o motivo de seu desespero.
Não só eu fiquei estatelada no lugar, de repente parecia que outras
várias pessoas estavam brincando de estátua no meio do pátio comigo, mas
estávamos apenas observando a mesma cena.
Quando Cobain se inclinou e com um sorriso que eu nunca tinha
visto, pegou Cody, erguendo-o acima de sua cabeça antes de levá-lo ao peito
em um abraço. Seu cabelo estava solto e os fios que antes batiam mais um
pouco abaixo dos ombros, estavam no pescoço agora. Os olhos verdes
geralmente assombrados, estavam preenchidos de um brilho divertido,
carinhoso ao olhar para meu filho.
Ele veio.
E foi inevitável pensar que mesmo sem nem termos trocado duas
palavras, as rachaduras do meu coração estavam se movendo para perto uma
da outra.

(..........)

COBAIN JAMES

Era bom vê-la sorrir.


Mesmo que eu quisesse estar ao seu lado, com meus braços em volta
dela ou tocando seu rosto. Ela nem percebia o quão malditamente bonita
podia ser, nunca reparava em quem reparava nela, seu foco estava
unicamente no nosso garoto.
Eu não sabia para quem olhar.
Queria ver aquele garoto hilário dançando, se achando o próprio
Kevin Bacon em Footloose, mas também não conseguia perder um
movimento de sua mãe. Os sorrisos, às vezes que limpava as lágrimas de
felicidade e orgulho.
Droga! Minhas mãos doloridas valiam a pena ao ver aquele rosto
cheio de felicidade. Eu precisava dizer a ela que dei um jeito no ex estúpido,
e que um cheque muito gordo foi mais do que o suficiente para fazer seus
pais desistirem de levá-la de volta. Uma briga na justiça era o que eu queria,
mas o transtorno que isso causaria a ela e Cody me fizeram pensar duas vezes
antes de não assinar o cheque. Os pais dela eram ricos, não precisavam do
dinheiro, mas eram o típico tipo de gente que quanto mais tem, mais quer.
Além do mais, eu desconfiava que se não fosse por Robert, eles nunca teriam
ido atrás de Danielle.
Eu não tinha nenhuma garantia de que o cara não voltaria, mas estava
pronto caso ele decidisse colocar sua vida em jogo para me desafiar.
Eu me aproximei lentamente, ainda segurando Cody, e a olhei de
perto. Seus olhos castanhos estavam ligeiramente arregalados, eu sabia que
ela não ia me expulsar, nem explodir sua raiva no meio de todas aquelas
pessoas, então ousei chegar mais perto.
— Eu dancei! — Cody falou, eu sorri, mas ainda assim não consegui
tirar os olhos dela. Danielle forçou um sorriso para Cody, mas logo voltou a
me encarar.
— É, ele dançou.
— Eu sei, garoto. — Fiz um punho, tocando com o dele, e dei mais
um passo na direção dela. Ela engoliu em seco. — Olá. — Acenei com a
cabeça, me controlando para não a puxar para um beijo.
— Oi. Onde está a senhora Reis?
— Ela estava cansada. Achou melhor ir para casa dormir. — Eu não
queria dizer que chantageei a velha senhora para ter um tempo a sós com eles
dois, principalmente com ela.
Danielle franziu a testa, mas assentiu.
— Entendo. Então... legal da sua parte ter vindo.
— Eu não teria perdido isso.
Ficamos em um silêncio desconfortável por alguns minutos, e ela
olhava para todos os lados, menos para mim.
— Se você não conseguiu ver a dança, eu filmei... caso queira.
— Eu vi, as duas vezes. Mas eu quero, se puder me enviar depois,
seria bom.
Eu estava parecendo um bacaca frouxo e careta, mas o medo de falar
alguma coisa e afastá-la ainda mais estava me corroendo. Por muito tempo,
antes dela e mesmo depois, eu me fechei em uma concha e deixei
transparecer meu pior lado, aquele que inevitavelmente ainda estava presente.
Eu estava buscando todo o controle que existia em mim para não ser grosso,
mal-educado ou dizer algo desagradável como fiz constantemente com ela
antes.
Ela me fazia querer ser melhor e depois de perceber que poderia
perdê-la tão facilmente, saber que ela me deixou vir aqui era como um novo
combustível, um que eu não gastaria nem uma gota à toa sendo um estúpido.
Era hora de ela conhecer o melhor de mim. Na verdade... eu sabia
que já tinha passado da hora. A vida não me fez um babaca grosseiro, eu me
transformei nisso. Qual a melhor defesa contra os sentimentos, se ninguém
pode chegar perto o suficiente para te fazer sentir?
Mas isso não funcionou com ela. Quanto mais eu a afastava, ela
voltava e chegava mais perto. Até me fazer sentir outra vez.
— Quer comer um lanche? — perguntei e engoli em seco.
Danielle olhou em volta, ajeitou sua pequena bolsa cruzada e
balançou a cabeça.
— Eu acho que vou voltar para casa com Cody.
— Lanche! — o garoto falou, puxando minha mão.
Um sorriso minúsculo ocupou meus lábios.
— Acho que ele topa um lanche.
As sobrancelhas se uniram, mostrando seu descontentamento com a
decisão do garoto, mas Danielle sendo ela mesma, acenou e nós saímos da
escola. Meu carro estava parado do outro lado da rua, em frente a uma praça,
mas eu tinha outros planos.
Na verdade... a senhora Reis tinha.
Quando eu a convenci de ficar em casa, ela rapidamente foi para a
minha cozinha e me mandou tomar um banho e tirar o pijama, dizendo que eu
precisava ficar decente para reconquistar a mulher que colocava os sorrisos
mais bonitos no meu rosto. Quando voltei, ela me esperava já na porta com
uma cesta que não era minha nas mãos.
— Você não tem comida nessa casa, menino? Eu tive que dar meu
jeito! E não destrua minha cesta, eu a quero de volta — ela disse e me levou
até o carro, dando-me instruções severas de que eu devia me comportar e
passar uma boa impressão.
O topo da cabeça dela mal chegava em meu ombro e eu estava
recebendo suas ordens. A que ponto um homem chega para corrigir suas
merdas?
No meio da praça tinha uma daquelas mesas de madeira já com os
bancos. Me senti tão sortudo, porra. Foi como se o universo estivesse
começando a caminhar comigo, o vento soprando a meu favor.
Abri a porta traseira, pegando a cesta, e quando me virei de volta para
ela, seus olhos estavam arregalados. Ela abriu a boca uma vez, depois a
fechou e tentou falar de novo, mas parecia chocada demais. Eu entendia. O
cara que se recusou a dividir um jantar com ela e chamou um táxi, agora
estava tremendo e carregando uma cesta em uma praça.
Nós nos sentamos, um de cada lado, e eu sentei Cody na mesa. Ele
arrancou o chapéu de cowboy, jogando-o em algum canto e coçando a
cabeça, depois bateu palmas.
— Comer!
Baguncei seu cabelo e tirei o laço que a velha fez com uma fita
vermelha.
— É estranho — Danielle falou de repente, atraindo meu olhar mais
concentrado.
— O quê?
— Sentar aqui e conhecer você totalmente, mas ainda assim parece...
um estranho.
— Sim, é estranho. Eu estou preocupado de falar algo e piorar tudo.
Suas sobrancelhas ergueram, surpresa.
— Você está... pensando antes de falar?
— Acho que sim.
— Ok... isso sim é muito estranho.
— Acredite, está exigindo muito de mim não sair rosnando por aí e...
— Minhas palavras ficaram mudas quando abri a cesta e me deparei com o
que havia dentro. Ela estava de brincadeira comigo. Fechei as duas tampas e
me levantei, acenando para o carro.
— Sabe... acho que devemos comer em outro lugar. No McDonalds.
Cody ficou de pé em cima da mesa e levantou os braços.
— Big Mac! Big Mac! Qui lanche feliz, mamã!
— Por quê? Não! Eu gosto do piquenique — Danielle defendeu,
puxando a cesta para abrir.
— Eu acho... — comecei, mas já era tarde. Ela abriu e eu abaixei a
cabeça, me perguntando porque diabos não abri aquilo e conferi o que tinha
dentro antes de dirigir até ali.
— Não é tão ruim — ela tentou falar, mas começou a rir, até que
estava gargalhando enquanto tirava os pacotes de jujuba e três sucos Mupy.
Mupy de saquinho.
— Foi a senhora Reis quem preparou a cesta. — Tentei tirar o meu
da reta.
— Ah, então o piquenique não foi ideia sua?
— O quê? Não. Sim, foi. Um pouco, talvez.
Danielle prendeu o lábio inferior com os dentes, tentando segurar o
sorriso, mas seus olhos brilhavam.
— Não foi ideia sua e te conhecendo eu suspeito que a senhora Reis
não estivesse cansada.
Eu bufei.
— Por que eu iria pedir a ela para não vir?
— Eu não disse que você pediu. — Ela ficou de pé e pegou Cody,
dando-me um sorriso.
— Espera, vamos em algum lugar, podemos comer por aí.
Danielle balançou a cabeça e se aproximou de mim.
— Cobain, obrigada por ter vindo. Mas eu não tenho tempo agora,
tenho um compromisso mais tarde e de qualquer forma Cody já comeu
besteiras demais por um dia só.
— Compromisso? Com quem? — Meus olhos estreitaram e dei um
passo à frente.
Ela inclinou a cabeça para o lado e ergueu uma sobrancelha, me
lembrando imediatamente que eu não tinha nada com isso. Mas, Deus, como
eu queria ter.
— Até mais, Cobain. — Ela virou e começou a caminhar para longe.
— Merda! — Soquei o ar e suspirei antes de começar a segui-la. —
Eu posso te acompanhar!
Ela parou e vi seus ombros subirem com uma respiração profunda,
Virou-se para mim e embora o rosto fosse tranquilo, os olhos eram distantes.
— Hum... é melhor não.
— Deixe-me levá-la para casa.
— Cobain...
— Me deixe fazer qualquer coisa!
— Obrigada por ter vindo — repetiu. Como se eu fosse uma criança
chata que não entende a primeira vez que é dito.
— Danielle, eu prometi...
— Sua promessa é com Cody, não comigo.
— Dani, porra... por favor!
— Nós nos veremos por aí, quando quiser ver Cody. — Com seus
olhos fixos em mim, ela acariciou o cabelo do garoto.
E quando virou as costas outra vez, eu soube que não seria tão fácil
consertar os estragos que fiz. Eu não apenas parti seu coração, eu a quebrei. E
por já terem me quebrado antes, eu sabia como era difícil voltar.
Capítulo 47
"Respire fundo, respire claro
Saiba que eu estou aqui, esperando
Como pode um coração como o seu
Amar um coração como o meu?
Como eu pude viver antes?
Como eu tenho sido tão cego?
Você abriu meus olhos"
willamette stone, heart like yours

— Então, Gabi está com o bebê? — Erick, meu advogado, perguntou


enquanto enchia mais uma vez minha taça com champanhe. Eu precisava
parar.
— Sim. Ela é a babá dele.
— É de confiança? — Ele balançou a cabeça e riu levemente. — Que
pergunta! Claro que ela é de confiança, você não é o tipo de mãe que deixa o
filho com qualquer um.
— Ela é uma amiga de longa data, está tudo bem.
— Que bom. E como estão as coisas?
— Bem. Tudo bem.
Ele sorriu para mim, os olhos claros pareciam mel derretido, mas eu
podia ver a decepção em eu estar claramente desinteressada na conversa.
Erick era bonito, inteligente, muito simpático e engraçado. Tinha a vida toda
resolvida e não estava me pedindo nada, só puxando assunto, mas eu não
conseguia dar nem isso. Qual o meu problema com caras normais?
Faziam poucas horas desde que deixei Cobain na praça em frente à
escola de Cody e me arrumei, esperando Gabi chegar para sair. Foi uma
surpresa encontrar Erick ali, já que pensei que seria uma noite só de meninas.
Mali marcou comigo, Andreza e Raiana, falando que tinha algo para
comemorar, mas não disse o quê. E não só Erick havia ido, como também
Fábio, o cara com quem Rai estava saindo, e o namorado de Andreza,
Eduardo.
Eu estava tão feliz em ver que os episódios de Robert não a tinham
abalado a ponto de fazê-la perder o brilho. Ela estava pensando em estudar,
para aperfeiçoar e aprender mais sobre confeitaria, disse que tinha voltado a
ver o cara de quem havia me falado, embora ainda não me dissesse quem era
e estava saindo, uma vez até me convenceu de ir a uma balada com ela,
dançamos a noite toda e depois eu voltei para Cody, no aconchego da nossa
cama.
Mari Louise tratou de colocar Erick ao meu lado no restaurante, e eu
podia ver no sorriso sapeca que carregava, que ela já tinha planos naquela
cabecinha.
— Ok, pessoal! Ele está aqui — Mari Louise falou de repente,
chamando nossa atenção quando ficou de pé. O sorriso enorme no rosto
aumentou quando pegou outra taça de champanhe. — Aí está, meu novo
chefe!
Segui seu olhar, quase caindo para trás quando vi Danilo. E só piorou
ao ver que quem eu menos esperava estava ao seu lado. Danilo estendeu a
mão para cada um na mesa, cumprimentando todos, e sorriu para mim,
piscando.
— Eu sempre soube que ela adoraria vir trabalhar comigo. — As
pessoas deram risada, tomando seus lugares na mesa novamente.
Eu me sentei, também, petrificada diante do olhar dele.
— James... não sabia que viria — Mari Louise falou. Eu prendi meus
olhos na taça e tentei ignorar as vozes e todo o resto, mas quando ele falou,
foi impossível não ouvir.
— Eu não esperava vir, também, mas você deve saber como seu novo
chefe é insistente.
— Irritantemente, eu sei bem.
Raiana me cutucou com o cotovelo e eu a fitei, tentando fazer uma
cara de paisagem.
— O que foi?
— Vai se fazer de boba? Não está vendo seu viking gostoso sentado
bem na sua frente?
— Cale a boca.
Ela riu, dando uma garfada no meu petit gateau.
— Ele está te engolindo com os olhos.
— Então, vamos te ver na TV todas as quintas, hein? — Fábio
perguntou a Mali.
— Sim, vocês serão abençoados com essa visão constantemente
agora.
— Eu adoro o programa, agora vai ser melhor ainda de assistir —
Andreza falou.
Eu queria dizer algo, também, mostrar para Mali como estava feliz
por ela, mas as palavras simplesmente não saíam. Qualquer coisa que eu
dissesse seria motivo suficiente para ele rebater.
— O programa está renovado — Danilo começou a explicar logo
depois de fazer seu pedido. —De cara nova, bem repaginado. E Mari Louise
tem essa pegada moderna, mas também consegue ir ao clássico. Será incrível.
— E ele sabe bem disso, porque a quantidade e os tipos mais variados
e loucos de bolos testes que fiz, ainda me deixam com sangue nos olhos.
— Ela vai começar no emprego querendo se vingar do chefe —
Danilo falou, balançando a cabeça. — Espero que você aumente a audiência
com esse temperamento, japonesa.
Nossos amigos riram e continuaram conversando sobre o programa,
as novidades que viriam e o processo todo que foi até ela ser convidada por
Danilo. Eu estava tão surpresa quanto eles, porque afinal, Mali não tinha
comentado nada. Eu sempre a incentivei sobre valorizar seu talento, tentar
fazer o que ela amava, investir nisso, na confeitaria. E quando que ela
finalmente estava realizando aquele sonho, eu estava tão feliz!
— Vou pedir mais uma garrafa de champanhe — Erick avisou. —
Quer alguma coisa, Dani?
Um garfo tilintou ao bater no prato e eu sabia de onde vinha, mas
ignorei.
— Hum, não, obrigada. Na verdade... — Fiquei de pé, afastando a
cadeira para trás. — Vou ao banheiro um minuto, já volto.
A cadeira de Cobain foi afastada também, e antes que eu saísse, ele
apoiou as mãos na mesa, se inclinando para frente e olhando diretamente em
meus olhos.
— Vai me ignorar a noite toda?
— Olá, Cobain. — Fiz menção de sair, mas ele saiu do seu lugar para
chegar mais perto, e Erick levantou, ficando na minha frente.
Ok, eu não precisava daquele drama mexicano em público.
— Erick — chamei. — Sente-se, por favor.
— Calma, Dani. — Ele colocou a mão no meu ombro descoberto e
meus olhos arregalaram levemente conforme o rosto de Cobain se tornava
mais impaciente, irritado como eu bem conhecia. — Esse cara parece estar
com algum problema.
— Por que não tira sua mão daí antes que ela acidentalmente voe
pelo restaurante?
— Ok, meninos. — Mari Louise levantou, se colocando na frente de
Cobain. E embora o sorriso tivesse deixado seu rosto, eu podia ver que ela
estava se divertindo. — Por que vocês não sentam e tomam uma água?
— De que lado você está? —Cobain perguntou, fitando Mali como se
ela o tivesse traído.
Mali franziu a testa, aceitando a taça que Danilo oferecia.
— Eu estou do lado da minha amiga e ela não parece estar querendo
essa atenção toda.
— Relaxa, James. São só alguns drinks. — Danilo levantou, batendo
nas costas dele com um sorriso.
— Só uns drinks, não é? Traidor.
Danilo gargalhou, falando algo que não entendi. Mari Louise revirou
os olhos e me encarou.
— Eu não o convidei, desculpe por isso.
— É um bar aberto, você pode levar sua festa da infidelidade para
outro lugar, porque eu não vou sair. — Cobain cruzou os braços, se achando
o dono da razão na história.
— Eu preciso tomar um ar — falei, já os deixando.
— Vou sair agora. — O ouvi dizendo e tive que segurar um sorriso,
porque segundos atrás ele estava irredutível em sair dali.
— Sozinha, Cobain — avisei, olhando para trás e desviando das
pessoas enquanto me aproximava da saída.
— Tem ar o suficiente para nós dois lá fora.
— Não tenho tanta certeza disso.
— Prefiro você de bom humor — resmungou.
— Eu ia dizer que prefiro você quando respeita meu espaço, mas
esqueci que nunca fez isso.
— Minhas razões sempre foram nobres, Danielle. Não pode me
culpar.
— Continue dizendo isso se te ajuda a dormir.
— Espere! Onde está indo?
— Para longe daqui — respondi e saí do bar, atravessando a rua
imprudentemente sem olhar para os lados. Cobain seguiu logo atrás, vigiando
meus passos e me chamando, numa tentativa falha de me fazer parar.
E por que eu não parava?
— Porra! Da pra você me escutar?! — Sua voz se exaltou,
lembrando-me os primeiros dias de convívio, quando seus impulsos falavam
mais alto que a razão e acabávamos os dois gritando.
Parei finalmente, virando para o encarar.
— O quê?! — quase gritei.
— Eu estou tentando aqui. Você precisa me ajudar nisso.
— Escuta aqui — comecei, com a paciência perdida e minha vontade
de resistir a ele quase esgotando. Bati minha bolsa em seu peito, dando ênfase
a cada palavra. — Eu não quero te ouvir, não quero te ver e não quero falar
com você, a menos que seja sobre Cody.
— E por que isso?
Uma risada falsa me escapou.
— Você ainda pergunta? Acha que só porque me contou sua história,
ela muda os fatos?
— Sim.
— Bem... você está enganado. Tudo o que aconteceu com você foi
ruim, horrível, mas isso não te dava o direito de ser como foi comigo. Sabe,
Cobain, só tendo um tempo longe de você e refletindo sobre tudo é que eu
pude pensar claramente.
— Pensar sobre o quê?
— Sobre tudo! Sobre todas às vezes que me humilhou, que me
expulsou da sua casa, que foi cruel com palavras e atitudes e nem se importou
se elas me magoariam. E eu voltava porque achava que podia consertar tudo
e ficaríamos bem, certo? Porque éramos amigos! Mas então, o que você fez?
Me machucou, de novo e de novo!
— Quer saber? Você é tão hipócrita! Jogue na minha cara por toda a
vida o quão ruim eu fui, não tenho como mudar nada disso. Mas você me
acusa e fala como se nunca tivesse feito nada errado! Meus segredos nos
trouxeram até aqui, eles te magoaram, mas você nunca me contou sobre seus
pais, também. Nem sobre Diana ou o lixo do Robert. Ambos erramos, eu
assumo minha culpa e estou tentando fazer diferente agora, mas você não me
deixa!
— Eu não quero chorar mais, Cobain. Cansei e é isso. Estou feita!
Faz quase um mês que não derramo uma lágrima quando Cody pergunta
sobre você e isso é um avanço enorme. Não vou jogar esse jogo novamente
porque sei como termina. Sei como eu termino quando você diz que nós
fomos um erro, ou quando seu telefone toca e você me abandona.
Ele desviou os olhos e eu lamentei minhas últimas palavras.
— Isso obviamente não vai acontecer mais.
— Cobain, desculpe, eu só...
— Eu sei e entendo. Começamos mal de todas as formas possíveis,
mas ainda assim eu não mudaria nada.
— Pare — pedi e dei um passo atrás quando ele ficou mais perto.
— Eu me apaixonei. Pobre homem que não pode controlar o coração.
— Sua mulher morreu.
— Eu sei.
— Então o que estamos fazendo? — sussurrei, sobressaltando-me
quando ele me abraçou, deixando nossos rostos próximos e os lábios perto
demais.
— Eu não sei. — Cobain fechou os olhos e encostou a testa na
minha. — Podemos conversar? Por favor, venha comigo.
— Mali está lá dentro e...
— Ela vai entender. Você sabe que vai. Pare de arranjar desculpas
para fugir de mim, não vai funcionar mais.
— Eu não posso — sussurrei e meu coração partia um pouco mais a
cada negativa minha, mas o medo do que podia vir depois não me deixava
ceder.
— Diga que não me ama. — Ele balançou levemente meu rosto,
chamando minha atenção para seu desespero. — Diga que nunca sentiu nada,
que já não sente mais... diga que nunca me amou e eu a deixo em paz.
Uma pontada de dor me fisgou com suas palavras. Com a percepção
de que minha próxima resposta acabaria com tudo. Me lembrei no mesmo
segundo tudo o que passamos juntos e foi tão fácil pensar em todas as razões
pelas quais me apaixonei por ele.
— Não posso.
— O quê?
— Não posso mentir para você. Não para você.
Era fácil mentir para mim mesma, me enganar dizendo que o
superaria algum dia. Cobain sorriu, soltou meu rosto e segurou minha mão,
acenando para a rua, onde o carro dele estava estacionado.
— Venha comigo.
Minha resposta foi dar um passo à frente e depois o próximo. Então
ele abriu a porta para mim.

(..........)

— É tão estranho estar aqui de novo.


— É estranho estar nessa casa sem você — ele rebateu com os braços
cruzados, me observando de longe.
Continuei olhando para tudo e parecia exatamente o mesmo lugar,
sem nada ter mudado, mas eu me sentia diferente. E foi olhando um pouco
mais, que pensei ter visto algo que não estava ali antes. Olhei para ele antes
de chegar perto do piano, segurando um porta retrato branco, e meu coração
pulou no peito quando vi uma foto minha com Cody deitada. Dormíamos
abraçados, pacíficos.
— Quando tirou essa foto?
— Pouco antes de vocês irem embora.
— Por quê?
— Porque eu sabia que machucaria você, e queria ter algo quando
fosse embora.
Coloquei o retrato de volta.
— E ainda assim eu estou aqui.
Ele assentiu, fitando o chão.
— O que é o amor se não vale a pena lutar por ele, Danielle?
— Eu lutei.
— E desistiu tão fácil. Desistiu fácil demais.
— Não, só cansei de esperar.
Ele me virou as costas, passando as mãos pelos cabelos antes de me
encarar novamente.
— Eu esperei por anos. Esperei que minha esposa amasse mais a
mim do que sua tristeza. Esperei que ela quisesse tentar outra vez. Esperei
pacientemente e a levei comigo para onde fui, levando-a em cada viagem,
cada país, insanamente esperando que ela pudesse sentir que eu preferia estar
com ela, que mesmo quando tinha que ir, a levava junto, e talvez assim... ela
voltasse.
Lágrimas de pesar escorriam dos meus olhos. Eu podia sentir sua dor
a cada palavra dita.
— Esse peso na minha cabeça me dizendo que eu sou culpado, não
porque não tentei mais, ou porque a abandonei, ou até pelo acidente. Não foi
nada disso porque sei que em cada momento estive com ela, a amei, cuidei
dela e a protegi de tudo. Ela era o mundo inteiro para mim. Mas me senti
culpado por um momento desejar que ela não acordasse, porque então eu
perderia você. Principalmente, porque te amei enquanto ela ainda estava
respirando. Porque te quis, quando prometi a ela que nunca haveria mais
ninguém. Quando o telefone tocava, com o hospital me ligando, eu queria
desligar e voltar para você, não para ela. Eu sou culpado de todos os meus
pecados, Danielle, mas não vou pedir perdão por eles.
— Cobain...
— Não vou pedir perdão e não vou me arrepender. Amar você foi a
melhor coisa que me aconteceu e é esse amor que me salva todos os dias. Se
você veio até aqui comigo hoje, é porque não se arrepende, também. Você
me ama tanto quanto eu amo você.
Não havia mais para onde ir. E eu nem queria ir para lugar algum.
Tive dois segundos para deixar suas palavras afundarem em minha mente,
porque no três ele estava me segurando em seus braços e beijando-me, se
preparando para levar outra vez tudo de mim. Mas agora já não existia nada
que nos impedisse.
Não havia nenhuma razão para amá-lo em silêncio. Eu podia gritar ao
mundo e dizer repetidas vezes que o amava, porque éramos apenas nós. Eu,
ele e o tempo. E nós tínhamos todo o tempo do mundo.
Sem mais esperas, Cobain me alcançou e segurou meu rosto, então
me beijou. Não foi um beijo inocente como os nossos primeiros, mas ainda
assim, foi o mais inocente que já me deu. Não foi rápido e desesperado, mas
ainda assim... nublou meus pensamentos com paixão. Meus braços rodearam
seus ombros, segurando o pescoço pouco antes de nos afastarmos
minimamente. A troca de olhares entre nós deixava tudo claro. Ali, nós nos
pertencíamos.
Subimos as escadas de mãos dadas e eu entrei no quarto dele pela
primeira vez.
Minhas mãos alcançaram sua cintura, puxando o tecido da blusa para
cima e a jogando no chão. Meus dedos impacientes tocaram seu peito, onde o
coração batia acelerado, assim como o meu. Deixei sua boca e beijei aquele
local, dizendo a ele sem palavras que amava o que estava ali. Amava sua
mente confusa e seu terrível humor diário; amava quando ele sorria e quando
rosnava sem motivos; amava seu jeito grosso e como se achava o dono da
razão em tudo o que lhe cabia; amava cada detalhe; amava seu coração.
— Eu te perdoo — sussurrei, beijando-o outra vez.
Ele foi o homem mais bruto e mal-educado que conheci, mas ainda
assim, me protegeu de homens que foram um dia gentis. Amou meu filho, e
amou a mim, mesmo quando sabia o quão difícil seria aceitar estar ao meu
lado.
Sua mão fria causou um arrepio inesperado quando tocou meus
ombros, levando as alças do vestido para baixo e pousou um beijo em minha
pele.
— Eu te perdoo — repetiu, acariciando meu pescoço e trilhando com
dedos leves o caminho entre meus seios, desfazendo o último botão que me
impedia de ficar completamente exposta a ele pela primeira vez.
Uma lágrima escorreu quando o fitei, e olhos verdes brilhantes
sorriram para mim, acalmando o medo de ser tocada outra vez. A realização
de que eu confiava nele, de que aquelas mãos nunca me machucariam, me
tomou por completo e segurei suas mãos, puxando-o para perto de mim
quando caminhei para trás até meus joelhos encostaram na cama, e me deitei
nela. Cobain se pôs em cima de mim, seus braços fortes ao lado da minha
cabeça e os olhos viajando por todo o meu rosto, por meu cabelo espalhado
pelo lençol branco. Foram os olhares mais gentis que ele me deu, e ainda
assim, me senti a mulher mais desejada que já habitou aquela terra.
Virei o rosto, beijando levemente os músculos que me rodeavam.
Segura de que aquilo era certo. Que nos encaixávamos.
Ele aproveitou meus beijos e segurou meu rosto, virando-o de volta
para si. Aproximando seus lábios, tomou conta dos meus, invadindo minha
boca com sua língua ávida, tão desesperado quanto eu para chegar mais e
mais perto.
Arrepios dispararam sobre mim em cada camada de pele quando
acariciou-me, levando-me a fechar os olhos, suspirando de prazer.
— Eu te amo — ele disse com os lábios colados em meu ouvido, no
mesmo momento que me invadiu por completo, nos tornando um só.
Me agarrei a ele, beijando-o com fervor, com toda a paixão que havia
em mim. Cobain segurou meu rosto em suas mãos e encostou a testa na
minha, mantendo os olhos grudados nos meus enquanto nossos lábios se
abriam, cantando gemidos e suspiros.
— Eu te amo — devolvi as palavras com todo o meu coração, a mais
pura verdade.
Senti um prazer que nunca havia experimentado. Suas mãos, seus
braços, os lábios que me acariciavam em todas as partes... ele me adorava. Eu
soube então que nunca havia amado um homem. Que tudo o que pensei já ter
sentido, não foi nem o começo do que sentia naquele momento. Estar
apaixonada, estar entregue, fechar os olhos e saber que tudo ficaria bem
mesmo quando não havia nenhuma certeza disso, apenas aceitando o que o
coração dizia.
Eu era tão jovem, passei por tantas coisas e tomei diversos caminhos.
Mas enquanto Cobain James me cercava e amava como nunca fui
amada, percebi em minha alma que todos os caminhos, não importa quais
fossem... teriam me levado até ele.
— Sobre o retrato — ele sussurrou. — Ele está em cima do piano
porque eu gosto de tocar vendo a minha família. Por alguns momentos era
como se vocês estivessem ouvindo.
Capítulo 48
“...quero um romance como nos velhos tempos
Quero dançar suavemente quando é hora do show
Só eu e você
E aquela música lenta que nós gostamos”
blackpink, really

Me faltavam palavras para descobrir tudo o que senti quando abri os


olhos na manhã seguinte. O homem da minha vida estava deitado ao meu
lado, dormindo tranquilamente e minha mão descansava em seu peito, com a
dele por cima. Estávamos nus, apenas o lençol nos cobrindo, mas eu me
sentia mais confortável do que nunca. Parecia que já tínhamos feito aquilo
outras mil vezes, que nos conhecíamos há muito mais do que a realidade.
— Nem sei quanto tempo faz que dormi tanto.
Sorri ao ouvir sua voz, um sorriso pequeno enfeitava aquele rosto
perfeito e seus olhos continuavam fechados. Ele segurou minha mão,
levando-a aos lábios em um beijo carinhoso e me deu bom-dia com a
imensidão verde que era seu olhar.
— Eu sou um bom sonífero. Mari Louise sempre diz isso.
— Na verdade eu não tinha tranquilidade o bastante para só fechar os
olhos e encontrar o sono. — Ele segurou minha mão, mexendo nos meus
dedos como se os examinasse. — Eu não durmo, geralmente.
— Como assim? Tipo... literalmente?
— Não. — Ele riu. — Não literalmente. Veja, você chega em casa,
faz o que precisa fazer e deita, certo? Você dorme.
— Não tanto quanto eu gostaria — resmunguei.
— Preguiçosa. Então, comigo não é assim. Eu deito aqui e tento cair
no sono, mas não funciona. Geralmente só durmo quando desmaio de
exaustão. É como se meu cérebro me forçasse a desligar. Às vezes fico dois
dias sem dormir, e acordo em algum lugar da casa... daí sei que caí onde
estava porque meu corpo queria descansar.
— Você já foi ao médico ou algo assim?
— Já. Desmaiei durante um jantar com a minha família. Caí
literalmente de cara no prato. Foi quando meus pais perceberam que eu não
estava realmente tão bem quanto dizia estar. Fomos a um médico, fiz uns
exames, mas não tinha nada errado fisicamente falando. O médico disse que
seria bom se eu procurasse um terapeuta, que conversasse, mas a simples
ideia de sentar e falar sobre sentimentos, esperando que ajudasse, não me
pareceu interessante.
— Talvez tivesse ajudado.
Ele beijou a ponta dos meus dedos, depois virou o rosto para mim.
— Um terapeuta não teria me ajudado como você fez. E é
oficialmente a primeira vez em quatro anos que durmo durante a noite. Mas
se bem que... — Erguendo uma sobrancelha, ele sorriu ironicamente. —Tive
motivos para estar exausto.
— Idiota — sussurrei, acertando-lhe outra vez.
— Tudo bem, ma rose. Eu não vou dizer a ninguém que me fez
desmaiar com sua personalidade secreta e desgovernada exalando a
madrugada inteira.
Fui para cima dele, tampando sua boca com meus olhos arregalados.
Ele riu abraçando-me e puxando-me para mais perto.
— Como eu não dormia, fui a sua casa algumas vezes nas
madrugadas. Mari Louise me colocava para correr de lá, mas eu só saía
quando ela me deixava entrar e ver com meus próprios olhos que vocês dois
estavam bem. Você e Cody.
— Ela nunca me disse.
— Eu sempre pedi que não fizesse. Tanto porque não queria assustá-
la, quanto porque ainda não me via entrando em outra relação, assumindo o
risco de deixar alguém ser importante e depois perder.
— Droga — resmunguei, beijando sua bochecha, pescoço e os lábios.
— Você é tão fofo quando diz essas coisas.
— Não me chame de fofo — resmungou de volta. — Eu sou um
viking fodão.
Rindo, revirei os olhos.
— Se toca, Cobain.
— De acordo com sua amiga do restaurante, eu sou.
— A ouviu dizendo isso?
— Ela não fez questão de falar baixo, acho que até o chef ouviu.
Mesmo com o barulho das panelas e a agitação das pessoas e tal.
— Algumas mulheres têm atração em homens barbudos e cabelos
cumpridos. Traz essa coisa selvagem... meio príncipe de época, sabe? Para
mim... você foi...
— Te fiz lembrar algum Rei das histórias reais, eu sei.
— Na verdade, foi meio que Tarzan.
Cobain riu, balançando a cabeça em negação.
— Eu não tinha nada de Tarzan.
— O quê? Você só faltou me jogar por cima do ombro, bater no peito
e ficar nu.
— Bem... eu estou nu agora e com certeza posso te jogar por cima do
meu ombro.
Gargalhei e ele me calou com os lábios doces.

(..........)

— Eu não sei cozinhar nada, isso aqui não vai dar certo — ele
reclamou, deixando a caixa de leite de lado.
— Você nem tentou!
— É a terceira tentativa.
— Mas a primeira saiu errado porque eu não coloquei a quantidade
certa de leite.
— E a segunda?
— O fogão estava com a temperatura errada.
Cobain riu.
— A temperatura é uma só, amor. Você vira o botão e ele funciona.
Quem faz a comida naquela casa?
— Na maioria das vezes, eu. Mari Louise gosta de fazer doces e a
parte chata da comida diária é comigo. Mas panqueca não é comida diária,
então... estou no meu direito de errar antes de acertar.
Ele me encarou como se eu não fizesse nenhum sentido e pegou meu
celular, olhando a receita que eu ditava para ele. Peguei as laranjas e sentei no
balcão, descascando para fazer o suco enquanto o observava tentar preparar
nossa refeição.
— Óleo ou manteiga... tanto faz, certo?
— Claro que não, siga a receita.
A testa dele estava franzida em concentração. Os braços fortes e os
músculos das costas contraíam a cada movimento, o cabelo solto acima dos
ombros largos e as sardas tão charmosas... O impedi propositalmente de
colocar uma camisa. Já que eu tinha acesso livre a todo o material, não tinha
porque me poupar da bela visão que ele era. Eu era tão sortuda.
— A babá vai ficar com o garoto?
— Ela pode ficar até às seis.
— Quer ir pegá-lo antes?
— Hm... não. Ela estava planejando levá-lo para um parque junto
com a afilhada.
— Certo. — Cobain fez uma careta de repente, fechando os olhos e
segurando as mãos juntas.
— Ei, está tudo bem?
— Sim, está. Lembra-se da lesão que eu comentei um tempo atrás?
Me levantei na hora, chegando mais perto para ver se algo tinha acontecido.
— Lembro, o que foi?
— Às vezes dói.
— A mão inteira? Tipo, as duas? Dói como?
Ele sorriu e beijou minha testa, mesmo com suas dores, me olhando
com todo o carinho.
— Às vezes do antebraço até a ponta dos dedos, outras apenas no
pulso. Imagine uma cãibra, só que um pouco pior, e pode durar só alguns
minutos, o dia inteiro, ou ser só uma fisgada de poucos segundos.
— Você disse que foi apenas em uma mão quando me contou.
— Você estava sofrendo, eu não tinha porque piorar as coisas
jogando os meus problemas em você. Não se preocupe, daqui a pouco vai
passar.
Apaguei o fogo e lavei minhas mãos, tirando o suco da laranja. Puxei
um banco para perto e sentei em sua frente.
— Me conte como aconteceu.
— Drama demais, Danielle.
— Bem — Dei de ombros —, você está falando com a pessoa que
pode cair a qualquer momento e ficar travada em uma cama, então acho que
sei lidar com seu drama.
O sorriso sumiu do rosto dele, dando lugar a um olhar profundo,
sério, e me fez perceber que nunca tínhamos falado sobre aquilo, porque
nunca houve motivo. Por uma noite eu havia esquecido totalmente minha
doença e me senti normal, sem medo de que a qualquer momento algo crucial
poderia me acontecer.
— Não. — Ele segurou meu queixo, fazendo-me o encarar.
— Não o quê?
— Não comece a pensar demais.
— Pensar em coisas que você deveria pensar.
— Não é necessário falar disso agora, ma rose.
— Ontem estávamos dizendo livremente que nos amamos, fazendo
promessas e... vivendo. Mas você percebe que estar comigo é colocar mil
incertezas no seu futuro?
— Danielle.
— A qualquer momento eu posso mudar.
— Eu vou amá-la ainda assim.
— Eu poderia esquecer de você. Poderia esquecer Cody. Eu ainda
sou jovem, então não me desespero por isso, porque sei que meu filho estará
bem e com alguém que eu confio. Mas não é justo que você se prenda a mim
sabendo que pode estar trocando fraldas e dando comida na minha boca daqui
a cinco ou dez anos. Ou até antes... amanhã!
Ele segurou meu pescoço com uma mão, e a outra tampou minha
boca, só então percebi que estava quase gritando.
— Pare. Não sabote a sua felicidade, eu sei de tudo isso e eu estou
aqui. Você tem uma doença, eu sei. E tudo seria mais fácil se você lutasse
com ela, não contra ela. Faça seus tratamentos, tome os remédios, cuide-se
cem por cento. Eu posso sair de casa amanhã e ser atropelado, ou sei lá...
morrer em um assalto. Ou até mesmo ter um AVC. — Livrando meus lábios,
ele segurou minhas mãos. — O fato é que... ter a Esclerose não te condena à
morte, a menos que você se deixe cair. E acredite em mim, ma rose, eu nunca
vou deixá-la desistir.
— Não fale sobre ser atropelado ou morto de novo.
— Então não fale sobre si mesma como se não tivesse direito a ser
feliz só porque tem medo do que vai acontecer amanhã, ou daqui anos. ok?
— Ok — sussurrei.
— Ok? — ele perguntou de novo, sorrindo.
— Ok.
— Ótimo. — Cobain me beijou, abraçando-me antes de levantar. —
Agora, esse café não vai sair. Desisto. Vamos nos vestir e ir comer em algum
lugar.
Eu gemi de preguiça, quase batendo os pés e correndo de volta para a
cama.
— Não podemos pedir para entregar?
— Poderíamos, mas... se ficarmos em casa... — Puxando-me contra
seu peito, ele distribuiu beijos em meu pescoço — não vou querer saber de
comer mais nada além de...
— Shi! Não termine essa frase.
Ele gargalhou.
— Você está vermelha, ma rose. Fica tímida quando eu falo sobre
se... — Tampei sua boca assim como ele havia feito comigo, e seus olhos
brilharam com humor.
— Pare de ser tão...
— Tão? — perguntou com a boca ainda tapada.
— Safado — sussurrei.
Ele riu mais ainda e tirou minha mão, encostando-me no balcão e me
arrancando um beijo.
— Porra, você é absolutamente adorável. Agora é que nós vamos lá
pra cima mesmo.
Um grito de surpresa me escapou quando ele abaixou e me tomou nos
braços. Me agarrei em seu pescoço, gargalhando da cozinha e passando pelo
corredor até a sala, e quando chegamos na ponta da escada vi o piano, então
lembrei.
— Espera! Me desce.
— Dani, eu preciso resolver uma situação nas regiões baixas, depois
você encrenca com o que for.
Segurei seu cabelo pela nuca, puxando só o bastante para fazê-lo
parar no segundo degrau.
— Para baixo.
Ele estreitou os olhos, mas me desceu, ainda mantendo as mãos em
minha cintura.
— Puxe meu cabelo de novo e isso só vai me dar mais gás para subir
esses degraus.
— Você desviou do assunto. Agora que estamos aqui e claramente
sua dor passou, caso contrário não estaria me carregando.
— Me fez parar pra voltar nisso?
— Você sabe do que uma relação é feita? Conversas, principalmente.
Eu quero saber o que houve, o que causou a lesão e você desviou do assunto
na cozinha, me distraindo para fugir de falar sobre isso.
Ele suspirou, cruzando os braços e encostando no corrimão.
— Eu criava trilhas sonoras, compunha para peças, filmes, e qualquer
projeto que me encantasse. Mas nas horas vagas eu gostava de fugir do
clássico e pegar um pouco mais pesado.
— Pesado como?
— Sair da leveza. Tocar com tanta fúria que quebrava as teclas.
Ligava em algumas enormes caixas de som e deixava a música transbordar
até me dar dor de cabeça. Então veio a lesão. Eu estava tocando um dia e
parecia que havia quebrado todos os dedos. Isso aconteceu dois meses depois
de Lumia ter entrado em coma.
Eu segurei a mão direita e passei o polegar pela palma.
— Dói?
— Não.
— Mas você ainda consegue tocar, certo?
— Não em dias frios.
— E em dias como hoje?
— Não com a mesma fúria de antes, agora tenho que ser... contido.
Clássico.
Eu assenti e o beijei levemente antes de caminhar até o piano e
levantar a tampa.
— Toque para mim — pedi e minha voz era apenas um fio. Um
pedido de algo que eu queria há muito tempo.
Desde quando soube que ele era um pianista tão brilhante, queria ser
embalada pelo som que suas mãos podiam produzir. Aqueles olhos verdes me
observaram com curiosidade, passando para incerteza e logo depois... algo
mais.
— Se você dançar.
O espaço entre nós era pequeno, mas em alguns momentos, como
naquele, eu queria que todo o resto sumisse, e pudéssemos ser apenas nós.
Envolvi meus braços ao redor de seu pescoço, puxando-o para baixo e
beijando-o lentamente.
— Toque.
Cobain assentou e tomou seu lugar. Ele passou os dedos pelas teclas,
as observando, como se as estudasse.
— Quando descobri a EM, comecei a fazer crochê, fiz yoga, embora
não alcançasse muitos exercícios. Escolhia um tema por semana e fazia
maratonas de séries ou filmes que tinham a ver com os assuntos escolhidos.
Mas nenhuma dessas distrações me faziam sentir tão bem quanto dançar
fazia. Não posso mais dançar como antes, mas ainda danço. Assim como
você não pode tocar como antes, mas ainda toca.
Ele me deu a primeira nota. Segundos depois veio a segunda.
Assisti nos primeiros minutos sua mão esquerda movendo-se pelo
teclado como se dançassem naturalmente, e os dele estavam pregados em
mim, que usava apenas sua camiseta e minha calcinha, parada no meio da
enorme sala.
Ele parou de tocar e abriu os lábios, onde sem som formou as
palavras “eu te amo” e voltou à música, mas com as duas mãos dessa vez.
Como se a coreografia fosse ensaiada, ergui meus braços e girei, fazendo
movimentos que havia aprendido desde pequena.
Meu coração batia tão acelerado, mas calmo. Meus olhos estavam
bem abertos, observando-o com total atenção quando a dança me levava a
olhá-lo. O sorriso que enfeitava meu rosto e o vento que meus cabelos
faziam, como voavam ao meu redor... Eu me sentia uma flor desabrochando
diante de seu olhar. Uma flor bonita, mesmo em meio aos espinhos.
Uma rosa.
Dancei enquanto ele tocou e sorri o tempo inteiro, sendo embalada
pela melodia que o homem dos meus sonhos criava para mim.
Capítulo 49
“...existe uma música dentro da minha alma
É aquela que eu tentei escrever uma e outra vez
Eu te dou o meu destino
Estou te dando tudo de mim
Eu quero sua sinfonia
Cantando tudo o que eu sou
Com todo o meu fôlego
Estou devolvendo"
mandy moore, only hope

— Você tem um telescópio aqui, eu nunca vi um de perto — falei


enquanto ele vestia uma bermuda após sair da cama naquela manhã.
Fui até a varanda do quarto e passei os dedos pelo objeto. Parecia
complicado.
— Johnny trouxe para mim de uma viagem que fez para algum lugar.
— É muito bonito.
— Eu tenho quase certeza que ele não achou serventia e jogou pra
cima de mim dizendo que era um presente. Isso é a cara dele.
— Não seja assim, seu irmão é uma graça.
Braços fortes me rodearam e um beijo foi soprado na minha nuca.
— Meu irmão e “uma graça” saindo da sua boca não combinam, ma
rose. Venha aqui, olhe através da lente.
Ele me aproximou do telescópio, e segui suas instruções, esperançosa
que veria algo incrível no céu.
— Hm... Cobain?
— Hum?
— Só vejo nuvens.
— Eu sei. Não faço ideia de como usar isso. Eu só queria ficar aqui te
apalpando um pouquinho mais.
O empurrei, rindo de sua cara de pau.
— Seu tarado!
Ele riu e beijou minha bochecha antes de sair.
— Vamos ver se o furacãozinho está pronto para tomar café.
Eu o segui até o quarto ao lado e confusão me tomou quando abriu a
porta.
— O que é isso?
— Eu peguei os colchões disponíveis na casa. Achei que se não
tivesse chão a vista, ele não cairia.
Dei risada e ajoelhei na enorme cama de chão improvisada, me
arrastando até onde Cody estava deitado no meio. Deitando ao lado dele,
passei o braço ao redor do meu bebê. Gabi tinha levado Cody para nós na
noite anterior. Seu compromisso depois das seis era com Raiana, então as
duas foram de carro até a casa de Cobain devolver minha criança bagunceira.
Eu estava com saudades e ele fez questão de cansar tanto eu quanto Cobain
querendo brincar o tempo todo.
— Foi a primeira vez que dormi na mesma casa que ele, mas não no
mesmo quarto ou cama. A gente sempre fica grudadinho.
— Bem... ele é um homenzinho agora, talvez esse aqui possa ser o
quarto definitivo.
— O quê?
— É, pra não ficar tão longe do nosso, mas ainda assim ele ter o
próprio espaço.
— Ei, ei, ei! — falei, o parando com minha mão enquanto me
sentava. — Quarto dele? Nosso quarto?
— Óbvio.
— Cobain... não vou me mudar pra cá.
Ele riu.
— Claro que vai.
— Não vou, não.
O sorriso sumiu, dando lugar a uma carranca.
— Não brinca, Danielle.
— Estou falando bem sério. Quer dizer... a gente acabou de colocar
as coisas em ordem, por que mexer em tudo tão cedo?
Ele apertou a ponta do nariz e assentiu.
— Certo, não há outro jeito de explicar que não seja mostrando.
— Hã?
Ele ajoelhou no colchão e pegou Cody ainda adormecido, me
chamando para fora do quarto.
— Vem, tem que ver algo.
— Eu estou nua!
— Você está com o lençol. Ninguém vai te ver. Esqueceu que fora a
velha parece que não tem ninguém nessa rua?
Levantei e o segui meio cambaleando pela escada abaixo.
— Me pergunto se não foi por isso que você veio morar aqui.
— Isso foi um ponto positivo.
— Seja sincero, foi o único ponto.
— Na verdade, eu gostava do fato de ser uma casa que tem décadas,
tem uma aparência e modelo antigos. Me lembra os filmes de época e livros
históricos. Tudo que é velho tem seu charme, não acha?
Segurei seu braço quando chegamos na sala, andando lado a lado.
— Até a senhora Reis?
— Não. Ela é uma velha exceção.
— Mama?
Paramos no meio do caminho quando ouvi a voz rouca de sono de
Cody. Tirei o cabelo dos olhos dele e fiquei na ponta dos pés, beijando seu
rostinho.
— Oi, bebê! Precisamos cortar esse cabelo, heim?
Ele balançou a cabeça e apertou mais os bracinhos ao redor do
pescoço de Cobain.
— Papa.
— Filho... — Tentei pegá-lo, porque afinal, eu sabia que Cobain o
adorava, mas não havíamos conversado sobre onde ele entrava na vida de
Cody. Tio? Padrasto? Pai adotivo?
— Papa! — ele repetiu e segurou uma mecha do cabelo de Cobain
com uma mão, e na outra, pegou o dele mesmo. — Papa.
— Você não quer cortar o cabelo, garoto?
— Papa.
— Certo. — Cobain acariciou sua cabeça, voltando a caminhar para
fora. — Então não vamos cortar.
— Papa?
— Sim, garoto. Igual ao do papai.
Deus... meu coração ia parar de bater.
Eu estava apaixonada.
Tão apaixonada.
Como ele podia fazer com que eu me apaixonasse a cada minuto?
— Você vem, ou está com os pezinhos de Shrek grudados no chão?
— Pezinhos de Shrek? Idiota. Eu estava refletindo sobre você, muito
obrigada por me fazer voltar a sua realidade selvagem. Ogro.
— Ma rose, você é perfeita do calcanhar para cima. Agora venha,
tenho que te convencer a não me deixar.
Ainda enrolada no lençol, passei por ele dando-lhe um leve tapa no
ombro e me certifiquei que não havia ninguém na rua para poder sair. Ele
caminhou até o portão e virou para mim, então um sorriso preencheu seu
rosto.
— O quê?
— Venha até aqui.
Revirando os olhos, tentei ignorar sua beleza colossal enquanto
chegava mais perto, e quando parei na sua frente, cruzei os braços.
Cobain inclinou o rosto em minha direção.
— Segure esse lençol, não quero ter que arrancar os olhos de alguém.
Agora vire-se e veja se gosta do seu presente.
Tirei os olhos de tamanha beleza humana, apenas para encarar onde
ele apontava... e quase desmaiei. Ele fez isso. Cobain havia acabado de
derreter meu coração como mel, reconhecendo meu bebê como filho, e
quando eu pensava que não podia ser melhor, ele me surpreendia outra vez.
— Você não fez isso — sussurrei e ele riu.
— Eu acho que fiz. Bem... o arquiteto e os construtores fizeram,
também, mas...
Me joguei em seus braços, apertando-o com tudo o que eu tinha. Ele
me segurou, erguendo-me do chão e aceitando os milhares de beijos que eu
pousava por todo seu rosto.
— Meu Deus, eu te amo. Eu te amo tanto, tanto, tanto, mas tanto... —
Minhas mãos não podiam parar. Eu queria levá-lo para qualquer lugar dentro
da casa imediatamente, mas a risada de Cody me fez despertar, lembrando
que não estávamos sozinhos.
Soltei Cobain e dei alguns passos para frente, observando melhor a
obra que ele havia feito. Senti as primeiras lágrimas escapando dos meus
olhos, até que elas começaram a cair incontrolavelmente.
A fachada da casa que antes era de um marrom escuro, apagado e
sombrio, agora tinha outra cor. Amarelo. Um amarelo claro e delicado.
— Estava escuro quando chegamos aqui, então você não viu. Mas
agora...
— Shi... — Eu precisava de mais um momento em silêncio
observando aquilo.
Abri e fechei meus olhos algumas vezes, testando se era um sonho,
porque parecia perfeito demais para ser real. Eu não me lembrava da última
vez que tinha sido tão feliz, que tinha sorrido tanto, que me senti tão amada.
Depois de tanto sofrimento, tanta dor... ter alguém fazendo algo como aquilo
para mim era irreal.
Nas janelas haviam pequenos vasos brancos desenhados com riscos
azuis e brancos, cheios de flores coloridas.
E para finalizar o que mais me encantava naquele sonho real: a porta.
Eu não fazia ideia de como ele fez para recriar algo que eu vi na
minha infância e me apaixonei. A porta com os galhos enfeitando não tirou o
ar antigo e elegante da casa, só acrescentou. Estava linda. Eu me senti por
alguns minutos em Minas Gerais outra vez. Ao invés de lençol, vestia meu
uniforme de ballet por baixo da calça e blusa de moletom, e carregava minha
sapatilha na bolsa.
O fitei novamente, vendo-o levar Cody para mais perto do portão.
Meu bebê estava com as mãos erguidas e os dois me olharam, sorrindo para
mim. Quando cheguei perto, Cobain mostrou a mão recém pintada de verde,
e Cody me mostrou a sua tingida de azul claro.
— Tem um presente no meu bolso de trás.
Enfiei a mão em seu bolso, tirando um pincel e um pequeno tubinho
vermelho. Mordi os lábios, desistindo completamente de segurar o choro
quando percebi o que ele estava fazendo. Sem pedir explicação, abri o tubo e
joguei na palma da mão, usando o pincel para espalhar pelos dedos.
— Bem ali. — Cobain apontou mais à frente e abriu o portão.
Quando alcançamos a caixa do correio pintada de branco, Cody nos
olhou sem entender. Cobain segurou sua mão pintada e encostou na caixa,
deixando por alguns segundos antes de tirar. Eu fui a próxima e ele o último.
Meu filho.
Meu amor.
E minha casa amarela com a caixa de correio de Up, altas aventuras.
A casa que contei a ele quando não podia ver e uma das primeiras
vezes que conversamos verdadeiramente.
— Obrigada. — Beijei seu peito e ele a minha cabeça, devolvendo
meu abraço.
Cobain colocou Cody no chão, dentro do portão, e segurou meu
rosto, cravando nossos olhares, sorrindo quando começou a falar.
— Só podia ser descrito como sublime quando ela me encarava com
aqueles bonitos olhos castanhos, tão ricos quanto chocolate mais fino e me
deixava ver por trás de suas palavras. Ela brilhou através das minhas trevas
como um único feixe de luz em um túnel apagado e esquecido pelo tempo.
Como eu poderia não a amar? Como era possível não me apaixonar por cada
um de seus gostos e defeitos? Obrigado por voltar, ma rose.
— Isso saiu de um livro? — sussurrei, as lágrimas quase me
impediam de falar.
Ele pegou minha mão direita e a colocou sobre seu coração.
— Não. Saíram daqui.
— Dignas de um coração incrível.
— Você vai morar comigo?
— Sim. — Eu nem precisava pensar sobre isso.
— Vai se casar comigo?
— Não. — Dei risada e ele me acompanhou.
— Vamos ver.
—Minhas recusas te darão tempo pra pensar em algo criativo para me
convencer.
Exatamente como a casa.
A casa que ele tirou dos meus sonhos e me entregou na realidade.
Capítulo 50
“com você o coração magoado perdoa
E volta a fazer promessas que antes não poderia cumprir”
Nana Simons

— E como vocês vão fazer isso? Sabe que é insano, né?


— Mari Louise, você está dormindo com o seu novo chefe. Não pode
me acusar de ser insana.
Ela revirou os olhos, e sorte a dela estar atrás da câmera do
computador. Eu poderia pular em seu pescoço se fosse pessoalmente.
— Não deveria ter contado.
— Eu ia matá-la se não contasse! Mali, sério. — Bati as mãos,
tirando a poeira dos livros e a fitei. — Já parou pra pensar que misturando
profissional com pessoal, se der merda... vai ferrar as duas partes? Quer
dizer... e se ele for do tipo amargurado e te demitir?
— Não vai, ele prometeu.
— Meu Deus, Mari Louise... sério? Promessas não valem nada na
hora da raiva. E mesmo se fosse o caso da demissão... e seus sentimentos?
Um coração quebrado, um ex que estaria sempre na TV, nos jornais e nas
redes sociais, então você nunca esqueceria dele.
— Eu sei, já sei de tudo isso. Mas... droga. Eu realmente sinto algo.
— Eu meio que esperava por isso. Lá na primeira vez que vocês se
viram, desde quando você o enfrentou, eu sabia no fundo do meu coração que
ia dar merda.
— Dani, o James é estranho. Já me perguntaram se ele come carne
humana ou faz experiências em si mesmo. Então não julgue o meu
relacionamento.
— O quê?! — gritei e caí na gargalhada junto com ela. — É sério?
— A parte das experiências e da carne humana, não, mas ele é
estranho, sim.
— Só no começo e com quem não o conhece.
Ela deu de ombros.
— Contando que ele não seja um babaca escroto com você e Cody,
por mim ok.
Um sininho piscou na tela avisando de outra chamada.
— Tenho que desligar. Estou usando o computador do Cobain e ele
tem uma chamada, pode ser do trabalho.
— Tudo bem. Me ligue, qualquer coisa. Estou a uma chamada de
distância. Beijo beijo.
— Tchau, japonesa.
Desliguei e peguei meu pote de frutas com leite condensado, saindo
do escritório dele.
— Cobain? Alguém está te ligando.
— Como? Eu tirei o telefone da tomada! — ele gritou da sala.
— No Skype.
— Que porra — resmungou.
— Olha a boca, ogro.
— Esqueci, desculpe. — Passou por mim e entrou no escritório.
Sentei no tapete ocupando o lugar que ele estava brincando com
Cody, mas meu filho prontamente levantou e foi atrás dele.
— Totalmente abandonada. A vida não é justa.
Peguei os legos e comecei a montar algumas pecinhas, me
perguntando qual a graça daquele brinquedo. Cobain voltou minutos depois
segurando Cody.
— A gente podia ir à praia hoje — sugeri.
— Dani... — Ele franziu os lábios e sentou na minha frente,
mantendo Cody junto de si.
— O que foi? Está me assustando!
— Temos que ir até a casa dos meus pais.
— Aconteceu algo com eles? Está tudo bem?
— Seus pais estão lá.
Recostei-me na poltrona atrás de mim e respirei profundamente. Um
arrepio de pavor subiu pela minha espinha e toda a tranquilidade foi embora.
— Por quê?
— Teremos que ir descobrir.
Então... respondendo a minha pergunta, não estava nada bem.

(..........)

Lice estava sentada ao meu lado protetoramente enquanto eu


esperava escutar o que meus pais tinham a dizer. Ela de um lado e Cobain do
outro. Cody estava no quarto de Dediér com Henri, e eu podia ouvi-lo
algumas vezes, tamanha a sua diversão no andar de cima.
— Então — comecei —, em que posso ajudá-los?
Aquilo era tão desconfortável, e para qualquer pessoa podia parecer
tão estranho falar com tanta formalidade com as pessoas que me colocaram
no mundo, mas para eles... aquilo era o mínimo.
Quando eu cheguei com Cobain, Henri imediatamente levou Cody
para cima, o que me deixava saber que ele estava ciente de tudo e eu agradeci
mentalmente por isso. Cumprimentei os dois de longe, porque já estavam
sentados na sala com Lice em um silêncio absoluto e agora estávamos ali. E
nada foi dito.
— Robert está preso. Achamos que gostaria de saber — minha mãe
falou.
Meus olhos arregalaram em surpresa e por um momento pensei que
sua visita ali era mais uma manobra para tentar me chantagear.
— Eu fico muito feliz por isso. Agora ele pagará por tudo o que fez.
Ela assentiu e olhou para meu pai, mas ele se mantinha quieto
encarando as próprias mãos no colo.
— Fomos orgulhosos demais — ele soltou de repente, de uma vez.
— E cegos — minha mãe completou. — Se arrependimento bastasse
para voltar no tempo, eu voltaria e faria tudo diferente, Danielle.
Eu fiquei sem palavras. Aquela era a última coisa que eu esperava,
até porque um pedido de desculpas e declarações de arrependimento não
combinavam com eles.
— Você percebeu que eu fiquei balançada quando vi meu neto na
escola aquele dia.
— Sim, mãe, eu vi. Mas logo em seguida começou com as ameaças.
— Mas isso mudou quando chegamos em Minas. Tudo mudou. Seu
pai não era mais o mesmo e eu tampouco.
— Sua mãe deixou os trabalhos do clube da sociedade e eu fiquei...
limpo das minhas coisas com a lei.
— Por quê?
— Porque nos sentamos para jantar numa noite e percebemos que
seria sempre aquilo, apenas nós dois. Não teríamos netos e nem nossa filha
conosco. Eu fui o pai que aprendi a ser com o meu pai e sua mãe foi a mulher
que a mãe dela a ensinou a ser. Não fomos perfeitos e nem bons o suficiente
para você. Esse é o nosso arrependimento.
As palavras do meu pai me deixaram muda por um momento. Eu
apertava a mão de Cobain tão forte que até a minha doía, imagine a dele.
— Queremos fazer parte da vida de vocês. Da sua e de Cody. Saber
que você perdeu Diana vai me assombrar para sempre e esse é o meu castigo,
mas como uma mãe falha e errante que sabe do coração que você tem...
preciso ser egoísta e pedir o seu perdão. Entendo que talvez leve tempo até
que confie em nós, ou talvez isso nunca aconteça. Mas a ideia de envelhecer
e nosso neto nunca saber da nossa existência é aterrorizante.
Cobain permaneceu quieto e firme ao meu lado, sentado ali sendo a
minha rocha. A força que ele sabia que eu precisava. Meu coração estava tão
tocado pelas palavras deles, e mesmo que uma parte minha quisesse
distância, a outra venceu e eu sabia o que tinha que fazer.
— Eu os perdoo — falei depois de alguns segundos encarando cada
um. — Mas sobre tê-los na minha vida... não sei como isso é possível. Vocês
são como estranhos para mim, nunca tiveram atitudes que pais teriam.
Entendo que queiram ficar perto de Cody e mesmo que devesse não vou
impedir isso, mas é algo que ele decide. Vou recebê-los em nossa casa e
vocês podem conviver com ele até que decida se os quer em sua vida.
Meu pai não parecia muito contente, mas foi a reação da minha mãe
que me pegou completamente de surpresa. Ela piscou e uma lágrima
escorreu. Levantou-se e praticamente se jogou ajoelhada na minha frente,
apoiando a cabeça nas minhas pernas.
— Obrigada. Obrigada, minha filha. — Ela segurou meu rosto e
beijou minha bochecha. — Não vai se arrepender disso. Eu e seu pai faremos
de tudo para conquistar sua confiança e sermos dignos disso.
Soltei Cobain e levantei, puxando minha mãe junto comigo.
— Quando quiserem ver Cody, me liguem e avisem. Nós estaremos
esperando.
Ela chorou dessa vez e hesitante, me abraçou. Um abraço rápido e
leve, como se temesse ou não soubesse como demonstrar afeto. Meu pai
levantou também e a entregou um lenço, depois se aproximou de mim e
pegou minha mão, dando um leve beijo em minha testa.
— Obrigado.
Eu assenti e eles se encararam antes de olhar para Lice.
— Eu acho que nós vamos indo, então. Essa noite foi cansativa.
Lice ficou de pé imediatamente.
— Já está tarde, então sintam-se à vontade para passar a noite, se for
preciso.
— Agradecemos e muito obrigado por nos receber — meu pai falou.
— Mas meu jato está esperando. Tenho uma audiência pela manhã.
— Ah, claro. Então nos veremos em outras ocasiões, parece.
Cobain estava poucos passos atrás de mim, vigiando os dois com
total atenção. Meu pai se aproximou dele e pegou algo do bolso, depois o
abriu e entregou a ele. O cheque.
— Lamento que isso tenha sido necessário. Sinto muito termos sido
apresentados nessa situação.
Cobain assentiu uma vez, pegando o cheque de volta.
— É melhor que as próximas sejam agradáveis para Danielle e Cody.
Meu pai estreitou levemente os olhos, mas não disse nada. Ele era
orgulhoso e receber uma repreensão daquelas de outro homem não o deixava
feliz, mas ele sabia que mereceu.
Caminhamos todos até a porta da frente, e quando chegamos do lado
de fora, Henri nos alcançou.
— O garotinho caiu no sono. Ah, vocês já vão?
Meu pai estendeu a mão para ele.
— Está tarde, mas agradecemos terem nos recebido.
— Oui, portas abertas sempre.
— Mãe?
Ela parou e me olhou, parecia diferente, ou podia ser coisa da minha
cabeça. Mas eu jurava que ela não aparentava mais tanta rigidez, o medo de
falar com ela não estava mais presente em mim, mas não mais porque eu
tinha em minha cabeça que precisava superá-la, e sim porque já a superei. Era
tão bom que ela finalmente quisesse ser melhor.
— Por que Robert foi preso?
— Você esqueceu quem é o seu pai naquela cidade? — Dando-me
um sorriso, ela deu a mão para ele e acenaram para os pais de Cobain.
Fitei Cobain e ele me deu um pequeno sorriso de conforto. Observei
meus pais entrarem no carro e acenarem uma última vez antes de irem
embora.
— Bem... — Lice falou. — Vou preparar alguns biscoitos para
quando Cody acordar.
— Obrigada, Lice.
Ela me abraçou e como se não fosse o suficiente tudo o que já havia
feito, sussurrou para mim:
— Bem-vinda à família.
Eu a soltei com olhos brilhantes e Cobain tomou seu lugar, me
segurando firme. Ele sabia que tudo o que eu precisava naquele momento era
seu silêncio reconfortante e nossa paz.
Segurei sua mão, colocando os dois dedos no pulso, como ele havia
me ensinado.
— Cada batida uma pergunta, ok?
Franzindo a testa, ele assentiu.
— Certo, mas o que...
— Shii, fica quieto para eu conseguir sentir.
Fechei os olhos e me concentrei.
— Você me ama?
— Você sabe que sim.
— Certo. Você quer ter filhos um dia?
— Mais um? Sim.
Eu o beijei por sua referência a Cody.
— Espera, Dani... tudo isso é pra dizer no fim que vai aceitar meu
pedido?
— Não, eu te amo mais ainda não vou aceitar.
— E por que isso?
— Eu não sei. Você não acha muito óbvio que todo livro de romance
quando acaba, sempre finalize com a mocinha aceitando se casar?
— Eu não sei, dãr, porque não leio isso.
— Ok, mas é assim na maioria das vezes.
— Certo, e qual o problema nisso?
— Nenhum. Eu só acho que vou saber quando for a hora de te dizer
“sim”, mas você precisa me fazer uma promessa.
Ele me soltou e fez uma cara de ofendido, me fazendo rir.
— Você acha sinceramente que eu, um digno viking-shrek, vou
receber um “não” e voltar para mais?
— Acho.
— E tem razão. Eu vou continuar pedindo.
Eu o abracei enquanto ria e ouvi as vozes de Cody e Henri dentro da
casa.
— Obrigada por ser você — falei. — Je t’aime.
Ele arregalou os olhos.
— Você acabou de falar francês?
Eu o empurrei e corri para dentro.
— Oui.
— Ah, merda! Cody vai dormir aqui hoje, porque eu e você temos
assuntos das regiões baixas para resolver!
Capítulo 51
"Mas aqui, a luz das estrelas
Bem aqui, vejo o meu lugar
Aqui consigo sentir, estou onde devo estar
Já passou o nevoeiro
Para o alto me conduz
Vejo enfim a luz brilhar
É você a luz"
mandy moore, a se the light (enrolados)

3 ANOS DEPOIS

Era a nossa segunda viagem para a França. Na primeira, Cody ainda


estava com dois anos, e foi meio que as férias de Cobain para ficar conosco
antes que as viagens de trabalho o chamassem de volta. Ele continuou em
turnê com a Conelly, e mesmo sabendo a história e o porquê de ele continuar
o sonho de sua falecida esposa, eu nunca pediria que ele abandonasse. Às
vezes era frustrante, porque ele passava aniversários longe, os nossos de
namoro e os de sua família, feriados, algumas datas festivas, mas coloquei na
minha cabeça que se fosse parar, seria por si mesmo. E foi o que aconteceu
depois de quase dois anos. Ele vendeu as ações que o faziam sócio
majoritário e aos poucos deixou de vez a companhia.
Nossa viagem naquele momento era para comemorar, ele disse que
agora estava totalmente disponível para sua família e para fazer planos. Nós
levamos as coisas devagar, fui morar em sua casa, mas continuei com o
trabalho e Cody havia amado, porque tinha atenção de sobra. Ele me pediu
em casamento constantemente e meus sequenciais “não” nunca o
desmotivaram de continuar pedindo.
Talvez ele entendesse que o que Robert me fez passar, me deixou
com medo de depender outra vez, e por mais que eu confiasse minha vida a
Cobain, não estava preparada para o “sim”. Queria passar a vida ao lado dele,
o amava e ele transformava meus dias só por sorrir. Mas havia um tempo
para tudo, e em quase quatro anos juntos, meu tempo não havia chegado.
Isso era o que eu pensava até a semana anterior.
— Chegamos!
Fechei os olhos ao ouvir a voz de Cobain e ouvi os pezinhos
apressados de Cody correndo pelo apartamento.
— Maman! — chamou em francês. Ele era um aluno dedicado,
aprendendo com Cobain. —Estamos em casa! Maman? Onde ela está, papai?
— Calma, garoto. Vamos procurar. Ela é pequenininha, pode se
esconder em qualquer lugar.
— É verdade. E precisamos ter muito cuidado, porque você sabe...
aquilo que eu contei.
Estreitei os olhos e puxei um pouco a cortina da varanda para a sala,
observando os dois. Cobain sorria enquanto fingia me procurar embaixo do
sofá e onde quer que Cody dizia que eu poderia estar. Me perguntei o que ele
contou ao pai.
— Maman? Nós trouxemos comida.
Meu estômago roncou com aquela informação e eu soltei uma
risadinha, atraindo a atenção dupla.
— Ela está ali!
Sorrindo, fui até os dois, sendo rodeada na cintura por braços fortes e
nas pernas por duas mãozinhas agitadas.
— Vocês demoraram.
— Culpa do papai!
— Culpa do garoto.
Os dois disseram ao mesmo tempo, fazendo-me rir. Era sempre
assim, um jogando a culpa no outro pelas travessuras.
— Mas chegaram e agora temos a estreia da nova...
— Nova temporada do Seu Casamento, Nosso Sonho... — Cody
falou numa tentativa de me imitar.
— Ela quebrou o recorde, filho. É a décima vez que fala sobre isso
hoje.
— Não é não! Mas é que é importante — tentei me defender, mas era
verdade. Os dois tinham razão. Quando o assunto era meu programa favorito
e minha melhor amiga, eu era repetitiva.
Cobain me entregou um pacote de pipoca e eu arregalei os olhos, me
jogando no sofá para comer.
— Papai, por que temos que assistir a TV? Não podemos ir lá fora
brincar?
— Eu queria, filho. Mas sua mãe vai nos fazer assistir sua tia Mali de
novo.
— Eu não gosto desse programa. Ele me dá fome e mamãe nunca me
deixa comer tantos doces assim.
Eu ouvia a conversa dos dois me fazendo de surda, como se não
estivesse ali. Cody era muito ativo, não gostava de ficar parado, e assim
como Cobain, odiava tecnologia. Seu negócio era brincar ao ar livre, com
brinquedos, de brincadeiras antigas, interagir com outras crianças e coisas do
tipo. Mari Louise havia dado um tablet para ele no quarto aniversário e servia
de enfeite, porque ele gostava de livros ilustrados. Esse era um de seus
passatempos favoritos, o que eu, é claro, amei.
— Podemos pedir o jantar e uma sobremesa — Cobain falou.
— Peçam vocês dois. Eu vou comer isso e provavelmente dormir
depois.
— Mamãe tem que comer ou meu irmão vai ficar doente — Cody
falou, indignado, e segundos depois processei o que havia dito.
Eu parei a pipoca a caminho da boca e arregalei os olhos.
— Cody!
Ele me fitou e ajeitei o canudinho do copo.
— O que foi, mamãe?
— Era um segredo!
Ele franziu a testa e alguns segundos se passaram até que assim como
eu, seus olhos arregalaram e ele ficou de pé, olhando de Cobain para mim. Eu
não podia encará-lo agora, não quando meu bebê boca aberta contou o que eu
estava apavorada de falar.
— Eu esqueci, foi sem querer, eu juro! Não é justo que papai saiba
seu segredo, me desculpe.
— Filho... — Ele parecia ansioso e preocupado, e eu queria acalmá-
lo.
— Meu pai guardou segredo, ele tem um diamante para você. Agora
estão iguais. Eu nunca estive aqui.
Dito isso, ele saiu correndo, mas voltou, pegou seu copo e correu
novamente, sumindo em direção aos quartos.
Nós ficamos em um silêncio mortal até que eu o olhei de canto e vi
um pequeno sorriso irônico em seu rosto. Era bem aquele que ele usava
quando estava me dizendo que eu tinha péssimos gostos literários e musicais.
Convencido.
— Eu meio que já sabia.
— Como? — perguntei, ainda desconfiada sobre sua reação.
— Ele dava indiretas sem querer. “Mamãe precisa descansar”,
“mamãe não pode pegar peso e nem ficar no frio”, “mamãe tem que comer
bastante”, “eu espero que a mamãe me ame para sempre”.
Tapei o rosto com um gemido e recostei no sofá.
— Ele tem cinco anos, o que eu estava pensando quando achei que
ele não diria?
De repente, Cobain estava rindo e se aproximou, tirando minhas
mãos de sua frente para poder me olhar nos olhos.
— Você vai ter o meu filho, ma rose.
— Vou — sussurrei, tentando segurar o choro.
— A mira de um viking nunca falha, hein?
Revirei os olhos e ri um pouco, sabendo que falharia em não chorar.
— Ah, dá um tempo Ragnar Lothbrok.
— Agora eu tenho o diamante, o coração — Sua mão baixou para o
meu ventre e acariciou com o polegar — e o bebê. O que falta para ter o
“sim”?
— Você está feliz?
— É claro que sim, amor. Eu teria ficado feliz em qualquer momento.
Isso é perfeito.
— Eu estava com medo... Paris e um bebê... temi que você lembrasse
do seu bebê e não gostasse. Eu não quero substitui-la, ou a ele...
— Dani. — Ele segurou meu rosto, sorrindo para mim. — Danielle,
pare. Lumia está nas minhas lembranças, em um espaço guardado onde meu
primeiro amor ficou, e o meu filho está no meu coração. Mas a minha vida é
com você, agora. São os nossos filhos, a nossa Paris e o nosso presente. Ok?
— Ok.
— Ok, de verdade ou ok mais ou menos?
Eu sorri enquanto ele limpava as lágrimas que haviam escorrido.
— Ok de verdade.
— Fique aqui um minuto. — Ele levantou e pegou o controle,
desligando a TV. — Cody? Pode trazer o diamante para o papai?
Meu coração acelerou e eu percebi que mesmo não tendo certeza,
seria ali o momento de dizer sim. Ele havia acabado de me tranquilizar,
livrou-me dos medos bobos e faria o pedido outra vez. Eu tinha que dizer
“sim”.
Cody apareceu
— Excusez moi, maman.
— Ei, garoto, venha aqui. — Cobain ajoelhou e o chamou,
abraçando-o quando Cody chegou perto. — Está tudo bem, amigo. Você fez
certo.
Ele deu-nos um pequeno sorriso e saiu, pulando alegre outra vez.
Cobain sentou ao meu lado novamente e segurou minha mão, beijando-a
enquanto me observava.
— O quê? — perguntei.
— Você é linda.
Eu sorri.
— Bem... você é lindo, também.
— Eu assisti “O diário de uma paixão”.
— Sério?
— Sério, assisti.
— Então?
— Então eu me peguei perguntando como poderia sobreviver se
algum dia esquecesse algo sobre nossa história. Lembrei quando você disse
que poderia esquecer eu ou Cody a qualquer momento. E pensei... eu acredito
que isso não vá acontecer. Sei que vamos envelhecer juntos e bem,
saudáveis... Mas você entende o quão bonita nossa história é?
Eu já estava chorando.
— Sim.
— Sabe que ela nunca deve ser apagada ou esquecida?
— Eu sei.
Ele pegou o livro que Cody o havia entregado e o colocou em minha
mão, aquela que beijava segundos antes.
— Isso é meu diamante para você.
Franzi a testa sem entender e ele sorriu, apoiando a cabeça nas mãos
para me olhar. Os olhos verdes pelos quais eu era apaixonada só viam a mim.
Abri o livro e precisei de um segundo para respirar.

“Para todos que vierem depois de nós,


acredite sempre no amor... e não duvide das listas”

— Listas?
— Eu encontrei a lista que você fez em uma das caixas de mudança.
A lista do homem dos sonhos.
Eu dei risada e fechei o livro. Me aproximei o bastante para encostar
nossos lábios.
— Eu te amo.
Abri o livro novamente e não havia mais nenhuma dúvida. Ele
escreveu nossa história. Assim como Noah havia feito para Allie.
— Sim — sussurrei e me joguei em seus braços.
E eu nunca tive tanta certeza de uma palavra como tinha naquele
momento.
De onde surgiu nosso amor? Às vezes me pegava pensando nisso,
refletindo e tentando me lembrar de quando nasceu, de quando me apaixonei
por ele.
Mas tinham tantas vezes que poderiam ser a razão. Desde o começo,
quando ele me fez sua prioridade. Quando fez do meu filho o seu filho,
mesmo sem saber. E quando me escolheu, dividiu sua dor comigo e pegou
um pouco da minha, tornando mais fácil para nós dois caminharmos juntos.
Eu não sabia em que exato momento tinha me apaixonado por Cobain James.
Talvez quando criei aquela lista já estivesse definido que ficaríamos juntos,
mas a verdade é que eu não mudaria nada. E seria eternamente grata por
termos caído um no caminho do outro.
Capítulo 52
“...estamos destinados a mais
Porque você sempre se sentiu tão pequeno, mas saiba que você não é
E espero que você se sinta inspirado
miley cyrus, inspired

2 ANOS DEPOIS

— O helipópeturo estava perdendo o controle, ele ia cair, oh não! Vai


cair, é uma bomba super ultra tômica de bomba!
— Não se preocupe comandante Cody, aqui vai o super bebê-socorro
de emergência!
Tirei os olhos dos brotos de rosas que eu cortava no jardim por alguns
segundos para olhá-los aprontando em toda a grama. A gargalhada gostosa de
Felipe encheu o ar junto com a de Cody. Cobain carregava nosso mais novo
no ar, e eu só estava esperando para ver o momento em que ele colocaria o
leite de minutos atrás para fora direto na cabeça do papai.
Não seria a primeira vez.
— Eu vou salvar a mamãe antes que a bomba chegue até ela, venha
mamãe, fique perto e...
Eu só senti algo batendo na minha cabeça e água escorrendo por todo o
meu corpo.
— Ops... tarde demais — Cobain falou, mas eu podia vê-lo segurando o
riso.
Felipe fechou os olhos de tanto rir, nem se preocupando que acabara de
me acertar com a tal “bomba”.
— Bechigas d’água, Cobain? Sério?
Ele deu de ombros.
— Era o que eles queriam fazer. Eu sou só um homem que obedece
aos filhos, fazer o que. — ele desceu felipe, o segurando agora de cabeça para
baixo. O bebê gritou e Cody começou a rir do irmão.
— Você está rindo do que? — perguntei e me aproximei de Cody, só
por sua expressão, eu vi que ele já tinha percebido que seria eu a aprontar
agora.
— Não, mamãe. Me desculpe, me desculpe, me — eu o interrompi
antes mesmo de dar mais dois passos e o peguei, correndo até a piscina e nos
atirando dentro.
Viemos para cima rindo e ele alcançou sua boia do cavalo Bala No
Alvo, já tirando a camiseta que usava. Cobain se aproximou, sentando na
beira e segurando Felipe no ar, com apenas os pezinhos na água.
Quando fitei seu rosto, ele me olhava sem foco, como se nem
percebesse que estava me encarando.
— O que foi?
Ele sorriu, inclinando-se para me beijar, então sussurrou em meus
lábios:
— Você é deslumbrante, mamãe.
— Eu ia te dizer o mesmo, papai.
Epílogo 1
“...é inegável que devemos ficar juntos
É inacreditável como eu dizia que jamais me apaixonaria
Um: você é como um sonho que se tornou realidade
Dois: só quero estar com você
Três: Garota, é evidente que você é a única para mim
E quatro: repita os passos de um a três
Cinco: se apaixone por mim
Se algum dia eu achar que meu trabalho está terminado
Então voltarei para o primeiro passo
diga adeus a escuridão da noite, vejo o sol se aproximando
Você chegou e trouxe uma vida nova dentro do meu coração solitário
Você me salvou na hora exata”
brian mcknight, back at one

ANOS DEPOIS

— Vovó, vovó, olha o desenho que eu fiz! — Karine, a mais velha


de Cody, chamou, balançando uma folha no ar pela ponta de seus pequenos
dedos.
Eu me inclinei um pouco e peguei o papel, deixando que ela me
mostrasse o que cada rabisco significava. Você esperaria que fosse uma casa
feita de um quadrado e um triangulo como o teto, cortinas de coração, um sol
com sorriso e nuvens azuis, mas não. Karine tinha um talento realmente
incrível com os lápis, pincéis e qualquer coisa que fosse capaz de colocar cor
em uma superfície.
— Mas isso aqui é lindo demais, menina. É a Aline? — perguntei, me
referindo a sua irmã mais nova. O desenho retratava uma bailarina e um
homem, que eu imaginava ser Cody.
Quem diria que aquilo foi produzido por uma criança de onze anos?
Ela balançou a cabeça e fez uma flecha na cabeça da bailarina,
escrevendo algo, depois, na cabeça do homem. Em seguida, me fitou com
expectativa.
— Ah, doce menina... vovó não consegue ver essas letras
pequenininhas. Pode me dizer o que está escrito?
— Sim! — Um grande sorriso idêntico ao do meu filho mais
velho enfeitou seu rosto. — Essa é a bailarina mais bonita que já existiu no
planeta e esse... é o príncipe dela. O nome dele é como o de uma estrela do
rock.
Embora seu rosto fosse um pouco embaçado para eu ver mesmo
com os óculos, eu sabia que ela estava animada em me contar e tinha
planejado aquele enigma. Senti meus olhos encherem de água quando entendi
que o desenho não era sobre Aline, minha netinha de oito anos e seu pai. Mas
sobre eu e ele.
— Estrela do rock? Será que ouvi uma pequena princesa falando de
mim? — Cobain perguntou, se sentando ao meu lado e puxando Karine para
seu colo. Ela riu, como sempre fazia quando tinha a atenção de seu avô.
Mesmo após todos os anos, sua voz ainda era tão forte, ainda o
mesmo grosseirão, só que mais charmoso. E poderoso como quando o
conheci tanto tempo atrás.
— Vovô, o senhor sabe que sim! Só há um homem nesse mundo todo
— Abriu os braços, demonstrando o tamanho — que tem o nome de uma
estrela do rock.
Ela ainda era pequena, mas quando crescesse, saberia que existiam
inúmeros fãs de Kurt Cobain a ponto de nomear seus filhos, assim como os
pais de seu avô fizeram.
Ele piscou para mim antes de voltar a conversar com ela.
— É mesmo?
Ela assentiu firmemente.
— Sim! Papai me diz que eu sou seu maior chute na bunda porque
pedi uma camiseta da sua banda de rock, vovô. Mas eu disse que não sou isso
e pedi o CD também.
Eu me segurei para não rir. Karine acreditava firmemente
que Cobain, seu avô, era o dono de uma banda de rock. Ele era um homem
conhecido, não tanto, e nem comparado a Kurt, mas ela achava que sim,
Nirvana era de seu avô.
— Você deve pedir a seu pai a coleção toda dos discos, são muito
bons. E alguns autografados.
Os olhos dela arregalaram brilhantes.
— Vovô — sussurrou —, você tem razão.
— Eu sempre tenho, garota.
Ela riu e correu para onde Cody estava segurando Eduardo, seu bebê
de quase dois anos.
— Papai! Vovô me disse que posso ter CD's autografados de sua
banda, quando você vai pegá-los e trazer para casa?
— Cody está me lançando um daqueles olhares que diz que ele vai
me internar muito em breve, ma rose — Cobain comentou com uma risada.
Eu não podia mais ver muito além de alguns palmos a frente e era
sempre embaçado, portanto, o rosto do meu filho era apenas um borrão com
bordas pretas por estar muito longe.
— Erica está rindo dele? — perguntei, tendo certeza que minha nora
estava se divertindo como sempre fazia com aqueles dois juntos.
— Sim. Piscou para mim e me deu um joinha, e o safado
do Cody quase a empurrou para dentro da piscina. — Ele fez uma pausa e riu.
— Lá vem ela.
— Quem?
Mas ele não precisou responder, porque eu ouvi os pezinhos pulando
no chão e um suave som de música tocando, que vinha da caixinha que dei a
ela. Fechei meus olhos me deliciando com a sensação, me lembrando de
minha própria infância quando podia fazer aqueles movimentos bonitos.
— Ei, vovó! Eu aprendi um passo novo no ballet. Minha professora
ficou muito orgulhosa e disse que eu herdei o dom da senhora para dançar!
Mais uma vez me peguei emocionada e Cobain colocou um braço em
meu ombro.
— Mande meus sinceros agradecimentos a sua professora, minha
fadinha. Mas preciso dizer que você é muito melhor que a vovó.
Ela riu, e senti quando pegou minha mão e beijou, depois colocou em
seu rosto.
— Pode abrir os olhos, vovó?
Eu fiz e os estreitei para vê-la melhor.
— Oh, agora posso ver que você está mais linda do que ontem.
— Não nos vimos ontem, vovó — rebateu, rindo.
— Não? Ah... é verdade. É que eu sonhei com uma fadinha bailarina.
Ela fez um som de animação e deu alguns pulinhos.
— Era eu!
— Claro que sim — respondi, sorrindo.
Ela saiu correndo atrás de seus pais, contando sobre como tinha sido
a estrela do meu sonho na noite passada.
— Ela se parece com você, mais do que Karine.
— Cody tem uma mão cheia com essas duas.
— Tem. — Ele riu. — E eu espero que Dudu dê a ele um pouco de
trabalho, para ele sentir como me deixou de cabelos brancos.
Levantei um pouco meu braço esquerdo — que era bem mais fraco
que o direito — para dar um tapinha no dele.
— Não deseje isso ao seu filho, ele era terrível.
— Por isso mesmo. Será divertido vê-lo ficando velho de
preocupação. Mas como não sou um pai injusto, desejo isso a Felipe e Tiago
também. Eles me deram mais trabalho ainda do que Cody.
— Você se lembra quando fomos viajar e quando voltamos, eles
estavam dando uma festa?
— Sim, e ao invés de assumirem a culpa juntos como naqueles
filmes, um jogou em cima do outro.
Eu gargalhei com a lembrança, e como Cobain tinha ficado furioso,
mas riu descontroladamente quando eles foram para seus quartos.
— Você fez a pose de pai durão, mas achou muito bom, não é?
Orgulhoso de seus filhos adolescentes e sem um pingo de noção.
Ele riu.
— E no dia seguinte, a vizinhança toda estava dizendo que Cody foi
para a reabilitação porque viram uma ambulância chegar.
— Deus... de onde será que tiraram isso?
— O filho mais velho da vizinha fumava muita maconha na varanda
do último andar, eu tenho quase certeza que ele alucinou com isso e espalhou
o boato.
Eu franzi a testa, mas me divertia ao lembrar.
— Nem me lembre. Será que ele pensava que por estar no alto
ninguém sentiria o cheiro?
O peito de Cobain tremeu com uma risada.
— Não adiantava nada. O cheiro se espalhava e impregnava no ar.
Felipe adorava. Ficava pendurado na janela fungando. Você o pegou no pulo
em uma noite e ele disse que estava tentando prever se ia chover.
— Felipe e sua fase hippie quase me enfartou.
Nós rimos, nos divertindo com as lembranças de como nossos filhos
bagunçaram nossa vida em alguns momentos.
— Onde eles estão, por falar nisso?
— Mandaram uma mensagem dizendo que se atrasariam porque
tinham que pegar os meninos no futebol.
Eu assenti, olhando em volta e saboreando o som dos meus netos
brincando no grande quintal. Ainda estava tranquilo, depois Felipe chegaria
com Rodrigo e Alex, e Tiago com o casal terror, Manuela e Murilo.
— Eu queria cozinhar para eles outra vez — confessei, lembrando de
quando aqueles domingos tinham o aroma do meu almoço. Com o tempo,
minha culinária ficou cada vez melhor e eu amava quando todos davam uma
passada mesmo que durante a semana, porque amavam minha comida.
— Você sabe que nossas noras gostam de fazer isso.
Eu sorri.
— Sim, eu sei e adoro que elas gostem, mas seria bom poder
cozinhar novamente e ver o sorriso deles ao comer a comida da vovó.
Ele deu um aperto no meu ombro e beijou minha bochecha.
— Ma rose, você nem sempre consegue ver, mas eles têm um sorriso
em seu rosto apenas em falar o seu nome.
Como sempre, ele era capaz de me deixar feliz com uma única
sentença. Minha doença era destruidora para algumas pessoas e calmas para
outras. Eu costumava dizer que ela se tornou compreensiva comigo, com o
passar do tempo.
Minhas pernas só ficaram comprometidas a ponto de eu não
conseguir andar muito, ou correr, poucos anos atrás, e meus braços eram
fracos, mas ainda me permitiam fazer as coisas por mim mesma. Minha fala
era perfeita. A memória falhava algumas vezes, mas isso juntava tanto a
idade quanto a EM. Eu estava cansada, como sempre, porque a esclerose me
mantinha assim, mas minha família incrível fazia de tudo para me deixar
confortável e manter-me distraída o quanto podia nos piores dias. Tipo
quando a dor atacava e eu chorava baixinho, não querendo preocupá-los.
Minha visão era algo que eu sempre soube que aconteceria, mas foi
apenas sete meses atrás que ela começou realmente a me deixar na mão. Não
havia óculos ou cirurgia que consertasse, mas eu não podia reclamar.
Houveram dias durante os anos, que eu acordava sem conseguir me
mover, sequer levantar, e gritava, chorando desesperada. Xingava a vida,
Deus e a doença por ter me escolhido. Mas então Cobain vinha, me dava
meus remédios e ficava deitado comigo até que minhas lágrimas secassem e
eu conseguisse levantar.
Eu era firme em dizer que sem ele, talvez não tivesse passado por
isso. Sabe Deus quanto tempo aquela menina de vinte e um anos daria conta
das coisas, antes que um alicerce chamado Cobain James fosse colocado
praticamente em baixo dela, como uma coluna a segurando.
Ele pegou minha mão e levou até sua boca, dando um beijo, me
lembrando que estava ali comigo. Mas ele não precisava me lembrar, porque
eu sabia que estava, sempre.
Eu via amor em cada um de seus gestos. Quando acordava mal e ele
cuidava de nossos filhos sozinhos, sem nunca me dizer nada além de palavras
bonitas; quando eu me amargava e dizia que não o merecia, que na velhice,
ele deixaria de ser meu marido, para ser meu enfermeiro; ou quando eu estava
desmoronando e ele sorria para mim como se eu fosse seu mundo todo.
Havia amor em seus olhos cada uma das vezes que eles bateram em
mim. Em todos os beijos, nos apertos sufocantes que eram seus abraços e em
cada rara briga, que não importava se eu ficava emburrada e ameaçava
dormir no quarto de hóspedes, ele me fazia chá e levava onde quer que eu
estivesse na casa, beijava minha cabeça e dizia que me amava.
Aquele lindo homem que não me viu como mais uma no mundo, mas
como aquela que era a pessoa dele, no mundo todo.
Meu marido suspirou.
— É isso, esposa.
— É isso, esposo.
Senti um beijo em minha cabeça.
— O que aconteceu com eles? Eu pisquei e cresceram tanto?
Eu sorri.
— Nah. Apenas estamos velhos.
— Karine chegou quase me dando um ataque cardíaco, falando sobre
um namoradinho na escola. Cody não tem olhado como essa menina cresce
mais bonita a cada dia?
Eu sorri.
— Ele vê, mas eu não acho que ela fale sobre namorados com ele.
Ele resmungou alguma coisa em seu idioma natal que me fez rir.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, e eu me perguntava se ele estava
pensando na nossa maravilhosa vida, assim como eu fazia.
— Você se lembra a primeira vez que me beijou? — perguntei. Meus
olhos estavam fixos no céu azul iluminado, os gritos das crianças brincando
na piscina era a trilha sonora perfeita.
— Como poderia esquecer?
— Você era tão metido, meu querido marido. Se intrometendo na
minha vida e chegou querendo mandar em tudo, esperando que eu fosse
apenas sentar e vê-lo me dar ordens como se eu fosse um cão.
— Você sempre foi teimosa, ma rose. Um cão seria mais fácil de
lidar.
— No entanto... você nunca desistiu de mim.
— Divido os créditos, amor. Você nunca me deixou para trás
também.
Era verdade. Eu era uma garota perdida com uma bagagem enorme.
Doente, com um filho pequeno, falida e uma história que era um filme de
terror. E ele... tinha sido tão feliz, mas recebeu uma pancada do destino, viu
sua felicidade ter sido arrancada de suas mãos e se fechou, demonstrando ao
mundo apenas a casca do homem que tinha sido um dia. Eu mesma pensei
que não tivesse salvação, mas ele me surpreendeu a cada dia naquela época,
como ainda continuava fazendo.
— Por muitos anos você me agradeceu pela nossa vida.
— Você me salvou, ma rose. Isso é o que é, certo como nada nunca
foi antes. Seu amor e seus olhos puros me salvaram.
Meus lábios tremeram e eu sorri quando de repente, uma brisa de
vento passou por nós, e eu pude sentir outra vez aquela sensação de
formigamento bom que era estar perto dele, rodeada por ele.
— Obrigada. Eu lutei por anos da minha vida e você apenas chegou
e... tornou tudo fácil.
— Faria tudo de novo por você, Danielle. A garota mais bonita que
eu já vi, e a mulher mais corajosa que tive a honra de envelhecer ao lado,
ainda tão linda como quando era jovem.
Minha mão direita tocou seu peito, diretamente onde seu coração
batia, e senti o meu pulsar mais forte, também. Ele estava tão errado. Porque
diante de nossas lutas, do amor incondicional que sentíamos um pelo o
outro... eu sabia que não teria sido forte para lutar sozinha, mas ele... ele me
fez voar.
Eu era uma borboleta, e a vida foi aquela que quebrou minhas asas.
Mas ele chegou e curou minhas feridas. Com amor, lealdade, bondade e um
coração tão ferido quanto o meu.
Nossa jornada ainda seria longa e não importava quais outros
desafios seriam postos em nossa frente, nós passaríamos por eles como
fizemos milhões de vezes antes.
Ele lutando por mim e eu por ele.
Dois corações que se ligaram e aprenderem a bater juntos.
E duas almas que jamais se separariam.
Era assim que os amores perfeitos deveriam ser.
Exatamente como o nosso.
— Está errado, mas ainda assim eu amo você.
Ele riu suavemente e seu peito vibrou em minhas costas.
— Também amo você, ma rose. Mas onde estou errado?
Ouvi alguns gritos, as vozes dos meus filhos e suas esposas, e as
crianças correndo, sabendo que nossa família toda estava aqui lá. Continuei
antes que chegassem e começassem a festa de beijos e abraços.
— Nunca foi sobre mim. Você era aquele que precisava de alguém
para livrá-lo da escuridão, mas mesmo com todas as suas lutas, você pegou as
minhas para si e guerreou todas elas. Eu fui forte, mas nunca foi apenas por
mim e Cody. Foi por aquele que me amou da forma mais bela, sem cobrar
nada, sem esperar nada em troca, e me deu a vida mais incrível que alguém
poderia desejar.
Os olhos dele brilhavam quando finalmente fitei seu rosto e beijei sua
bochecha enrugada.
— Querida... — sussurrou, enchendo meu coração de amor mais uma
vez, como apenas ele conseguia fazer todos os dias, a cada minuto.
Ele ainda era tão belo como na primeira vez que o vi sob as luzes do
teatro.
— Foi por você — sussurrei. — Sempre por você, Cobain James.
AGRADECIMENTOS
Monstrinhas, obrigada por serem as mais incríveis leitoras e me deixarem contar histórias.
Obrigada por se apaixonarem e se envolverem na vida desses personagens tanto quanto eu. Eu sei que
vocês sofreram esperando 32 capítulos pelo primeiro beijo, sinto muito. Prometo que o próximo livro
as farei esperar até o 40. É gratificante o fato de que vocês confiam em mim para ler cada pequena
coisa que eu decidir escrever.
Polli Pocket, eu poderia colocar você na dedicatória, nas notas, e aqui também. As pessoas que
estão lendo esse livro, precisam saber que ele nunca teria ido para a frente se não fosse você. Você sabe
do medo que me dominava de ser um fracasso total e das vezes que eu chorei, porque se tem alguém
que não acredita em si mesmo, esse alguém sou eu. Mas então, você estava comigo todas as vezes e me
fez acordar para ver que nunca ia saber se não tentasse. Obrigada por ser um dos pontinhos de luz na
minha vida. Obrigada por me colocar no equilíbrio quando eu estou pirando. Eu sempre digo que você
é o meu segundo cérebro, só que fora da cabeça. E isso não poderia ser mais verdadeiro.
Zoe e Anny, obrigada pela amizade e por serem meus dois presentes.
Jheni Barroca, Cobain te trouxe para mim e sou tão grata por isso. Obrigada pelas incontáveis
coisas que você fez por mim e por essa história.
E por último, tem a Mel. E eu preciso me controlar para não escrever uma página inteira sobre
minha gratidão a ela. Ainda não sei como agradecer a você. Quando comecei o processo desse livro,
sabia que pesquisas pela internet não bastariam, que tinha que ir além. Procurei alguém que fosse
portador da EM e encontrei a Mel do nada, conversa vai e conversa vem, ela aceitou fazer parte disso e
me contar como era sua rotina e sua vida com a doença. Eu só posso dizer que todas as coisas boas são
poucas para você, e que honra conhecer um coração tão bondoso e generoso. Obrigada por ter
embarcado nessa comigo!

(..........)

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