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1º Edição – 2018
“...quando eu estiver pronta para ser corajosa e meus cortes curados com o tempo
O conforto irá descansar em meus ombros e vou enterrar meu futuro para trás
Eu sempre irei guardar comigo
Sempre estará em minha mente
Mas há um brilho nas sombras
Eu nunca saberei se não tenta”
gabrielle aplin, home
(..........)
"Coisas acontecem
Pessoas acontecem
A vida acontece
A única solução é se adaptar
Para o bem ou para o mal
O tempo não para
Quem para é você quando cansa de lutar"
nana simons
(..........)
(..........)
(..........)
(..........)
Quando girei e pulei com uma sequência, sabia que tinha um sorriso
no rosto.
Eu não queria que a música acabasse, mas ela já estava no fim. As
últimas notas, os últimos momentos nos quais um pouco do sol refletia em
mim, meu cabelo bagunçava com a dança e eu me movia como se fosse livre.
Ali eu era eu.
Dançando eu era eu.
Mas a música acabou. Era inevitável e ela sempre acabava. Não era
eterno e não era real.
Aquela felicidade, aquela sensação de estar realizada outra vez...
apenas passageira. E quando a música acabou e o silêncio me fez companhia,
voltei à realidade.
Meus pés descalços no chão, no piso do meu trabalho... da minha
vida. Abri os olhos e me fitei através do espelho. Eu ofegava, cansada,
tremendo e morrendo de sede. Isso era o que acontecia agora quando eu
ousava dançar como fazia. Mas não foi isso que chamou minha atenção, e
sim as duas pessoas paradas na porta da sala, olhando diretamente para mim.
Uma menina aparentemente da minha idade, usando meias, uma saia
de seda um pouco abaixo do joelho e uma regata. Uma bailarina. Se não fosse
o coque rígido em sua cabeça que me confirmasse isso, seria a sapatilha em
seus pés.
Ela sorria para mim, muito diferente do homem ao seu lado, e eu
fiquei abalada por um momento, diante dele. Revirei minha mente tentando
lembrar se era possível que o conhecesse, que fosse alguém que trabalhava no
Teatro, mas não. Eu certamente lembraria daquele rosto.
Um rosto quadrado, uma fina camada de barba se estendendo por sua
mandíbula e queixo, nada exagerado, exatamente combinando com a dureza
de seu olhar. Inclusive... os olhos verdes mais penetrantes que eu já tinha
visto.
Não que tivessem sido muitos, porque homens como aquele... não
eram o tipo que você encontrava a cada esquina.
Uma blusa manga longa puxada até os cotovelos faziam o contorno
de braços fortes evidentes e a calça jeans escura me deixava ver que ele era
magro, porém forte. Não tipo o Guilherme, como se ficasse constantemente
na academia, mas o corpo de alguém que se preocupava em estar bem. Com a
saúde e a aparência.
Ele passou a mão pelos espessos cabelos castanho escuros, que eram
compridos até um pouco abaixo da orelha, quase tocando seus ombros, lisos e
soltos, então me levantou uma sobrancelha.
— Você terminou?
Isso certamente não era o que eu esperava ouvir, principalmente
vindo com um tom de voz tão duro, como se estivesse irritado.
A garota ao lado dele mexia nervosamente nas mãos e tinha os olhos
levemente arregalados. Me questionei se ele estava perguntando se terminei
minha inspeção em sua aparência ou do show que provavelmente
presenciaram. Eu esperava que tivessem chegado no final, porque eu devia
ter sido um desastre e não precisava de ninguém presenciando isso.
— Eu... Desculpe-me, senhor, estava apenas...
— Se a senhorita terminou, existem pessoas que precisam usar essa
sala. É claro, se não se importar. —As últimas palavras foram recheadas de
ironia.
Com certeza a vergonha estava estampada em todo o meu rosto. Com
muito custo, avancei um pé na frente do outro para sair.
— O sapato, senhorita — ele cuspiu rudemente.
Eu queria estreitar meus olhos e gritar com ele que não precisava ser
tão grosso, mas voltei alguns passos e peguei meu tênis no canto da sala, em
silêncio. Afinal de contas... eu estava errada em estar ali.
Ele virou de lado quando me aproximei, dando-me um mínimo
espaço para sair. A garota ao seu lado foi educada o suficiente de voltar atrás,
então pude passar.
O Teatro tinha eco e um retorno de voz alto. Ele deveria saber disso e
não fez questão de esconder suas palavras quando falou com a menina.
— Chame os outros.
Sentei em um dos bancos de uma das salas que estava em
manutenção e coloquei meus tênis de volta. Aquele homem foi muito além de
horrível. Não havia necessidade nenhuma de falar comigo daquela forma. Eu
não era um cão que só ouvia ordens berrantes, e sabia muito bem que se
alguém chegasse, eu deveria sair. Na verdade... nem devia estar dançando lá
dentro, mas aconteceu. Só podia rezar e esperar que ele não resolvesse levar o
assunto à diretoria.
Por um momento, ele me fez esquecer meu corpo incapaz de fazer o
que eu mais amava na vida.
Mas também apagou a breve felicidade que senti ao dançar outra vez.
Capítulo 4
"...todos os sonhos do passado
São enfraquecidos tão rápido
Por fantasmas do passado
Quando o amor era para durar
Ela vai jurar 'por seu coração'
Que nunca mais vai sonhar..."
vaya con dios, what's a woman
(..........)
ü Calmo
ü Observador
ü Muito educado
ü Muito gentil
ü Supersocial
ü Amigável
ü Extrovertido
ü Divertido
ü Focado
ü Sonhador
ü Apaixonado pela vida
ü Quer ter uma família
ü Se preocupa, mas não invade meu espaço
ü Não é ciumento
ü Careca
ü Olhos castanhos
ü Altura mediana
ü Magro ou corpo normal (Ok se tiver uma
barriguinha de cerveja, só não pode ser
musculoso)
ü Odeia teatros
ü Um trabalho estável
ü Nada de empresários
ü Agente imobiliário está ótimo (talvez um
taxista)
Descrevi meu homem dos sonhos e quando li a lista percebi uma
coisa. Ele não tinha nada a ver com aquele grosseirão.
Ainda bem, porque um homem daqueles eu não queria nem para dar
bom dia.
Homem dos meus sonhos... jamais! Eu queria pura e simplesmente
muita distância de Cobain James.
Capítulo 7
"...cada suspiro que você der
Cada laço que você quebrar
Cada passo que você pisar
Cada sorriso que você fingir
Eu estarei te observando..."
the police, every breath you take
(..........)
(..........)
Eu limpei escondido a única lágrima que escorreu do meu rosto
quando uma mulher saiu do palco levando sua cadeira e eu entrei, sabendo
que era a minha vez.
Since I've Been Loving You, de Led Zeppelin, começou a tocar como
eu havia pedido e por um momento me apavorei, embora meus pés já
tivessem começado a se mover. Sempre escolhia músicas lentas para não
cansar muito rápido, para o meu corpo não falhar bem enquanto dançava para
todos verem. Eu estava ocupada olhando como de cima do palco a boate
parecia maior. Maior, luxuosa e refinada. Os clientes também eram de outro
nível. Engravatados e caras de camisa polo, calças caqui e sapatos com
aparência cara.
Meu olhar ainda vagava pelo lugar quando parou em um local
específico. Estreitei os olhos, tentando ver se era o que imaginava, e meu
coração chegou na garganta ao constatar que sim.
Em uma mesa pouco mais distante haviam três homens sentados, dois
deles conversavam e o outro tomava uma bebida, parecendo mais
concentrado no copo do que em qualquer outra coisa. Mas de repente seu
foco já não era mais o objeto nas mãos e sim eu.
Eu senti quando seus olhos passaram por mim e mesmo longe, sabia
que ele ainda me encarava.
Senhor Cobain James.
O homem de quem eu estava com tanta raiva encontrava-se ali, me
observando dançar quase nua, e havia uma gigante possibilidade de me
reconhecer e se isso acontecesse, eu podia dar adeus ao meu emprego no
teatro. É claro que ele contaria.
Mesmo que eu estivesse com a máscara e o cabelo solto para voar
sempre em volta do rosto, a paranoia me bateu fortemente e virei de costas.
Tentei tirar o senhor James da cabeça e me lembrar que Cody estava
em casa com uma babá esperando por mim e que era por ele que estava ali.
Para conseguir nos dar uma situação melhor.
Voltei a dançar com foco e concentração no poledance que ali em
cima, naquele momento pertencia a mim. Tropecei algumas vezes, mas
consegui disfarçar e dei graças a Deus quando acabou.
Corri para o camarim e me vesti, inventando uma desculpa qualquer
para Mali antes de sair, esperar um táxi junto com um dos seguranças do
fundo e ir embora.
Mas a percepção de que Cobain James havia me visto daquele jeito
me desestabilizava. E eu jamais admitiria... mas me perguntei se em algum
momento depois de tomar conhecimento que estava ali, não dancei para ele.
Capítulo 8
"...a sua sombra me cobre
As minhas lágrimas secam sozinhas
Gostaria de dizer que não me arrependo
E que não há dívidas emocionais
Mas, quando a gente se despede, o Sol se põe..."
amy winehouse, tears dry on their own
(..........)
— O que foi que te deu, hein, Dani? Suellen tinha ido fazer algo, mas
já ia voltar para continuarmos conversando. Eu saí do nada e ela vai me achar
a mal-educada do século!
Minha amiga fechou a porta de casa falando, mas eu não tinha nem
voz para respondê-la. Minha cabeça estava prestes a pifar. Uma tontura me
pegou e Mali percebeu, logo vindo me ajudar a sentar. Precisei ficar sentada
enquanto minha cabeça girava e minhas mãos começavam a tremer. Fechei os
olhos e me controlei para não chorar.
Ela segurava Cody em um braço e minha mão na outra, mas logo foi
colocando-o no chão e puxou sua caixa de brinquedos para perto.
— Aqui, bebê. Olha o carrinho. — Depois de distraí-lo, se voltou
para mim. — Dani, está se sentindo bem?
Eu assenti, angustiada.
— Tudo bem — sussurrei.
Ela franziu a testa.
— O que houve? Me conta logo, Danielle! Está me agoniando!
— Eu vou perder o emprego do Teatro. Serei demitida na segunda-
feira.
— Por que está dizendo isso?
— Aquele homem que estava falando comigo... ele tem meu emprego
nas mãos e eu o irritei o suficiente para que ele o tirasse de mim.
— Que homem? Droga, apareceu alguém lá? Eu estava tão animada
falando com Suellen e prestando atenção em Cody, que não reparei. Só vi
quando sumiu do salão e imaginei que tivesse ido ao banheiro. Desculpe,
Dani.
— Não é culpa sua... — Balancei a cabeça e foi inevitável, a primeira
lágrima de puro desespero deixou meus olhos. — Eu tenho tentado de todas
as formas fazer tudo certo. Para não faltar nada para você, nem para Cody,
nem aqui e em casa. Já falho nisso quase sempre e é você que repõe tudo!
Roupas para ele, as frutas e até meus remédios você já pagou quando não
consegui pegar pelo governo. E agora mais esse prejuízo. São novecentos
reais que vão fazer muita falta, Mali...
Ela segurou minhas mãos, sem entender nada.
— Dani, você precisa se acalmar e me dizer o que está havendo. Esse
cara... ele te machucou? E por que ele tiraria seu trabalho?
— Ele descobriu que eu trabalho no Borges. O vi lá dentro uma vez e
pensei que ele não tinha me reconhecido, mas agora acho que foi só um jogo
para me torturar e agir no momento certo. Ele é um esnobe riquinho, que
provavelmente se diverte destruindo vidas de pessoas inferiores a ele.
— Eu nem o conheço, mas já o odeio. Ele não pode fazer isso,
Danielle. Você tem um contrato, uma carteira assinada. Ele não pode te tirar
isso do nada.
Eu funguei.
— Pode, Mari Louise. Ele pode, porque conhece Carlos, que é um
dos caras mais influentes lá dentro. Ele quase me fez ser demitida uma vez
por causa de uma ligação, por que não seria agora se contasse que eu sou uma
stripper nas horas vagas?
— Isso não tem nada a ver, porra!
— Caso se tornasse de conhecimento público no Teatro que Raiana
trabalha na noite, o que aconteceria?
O rosto dela caiu na hora, entendendo o que eu queria dizer.
— Que merda. Demissão na certa. — Ela suspirou, ficou de pé e
caminhou de um lado para o outro com as duas mãos na cintura, então me
encarou seriamente. — Você acha que ele tem problemas mentais?
Eu soltei uma risadinha, porque sua pergunta era um eufemismo.
— Sim, acho que ele pode ser um pouco psicótico descontrolado.
Ela sorriu e sentou ao meu lado, me abraçando pelo ombro.
— Cody, vem cá. Sua mamãe precisa de um carinho do bebê
carinhoso — ela o chamou com a mão livre e ele nos encarou por alguns
segundos antes de deixar seus brinquedos e se aproximar, deixando a
cabecinha em meu joelho. — Isso aí, garoto.
Minha amiga beijou meu rosto e eu acariciei os cabelinhos do meu
filho.
— Obrigada, Mali. Mas ainda estou prestes a me tornar um encosto
falido por tempo indeterminado.
Ela deu de ombros.
— Nós vamos dar um jeito, sempre damos. Não é, Cody?
Ele olhou para cima e sorriu com seus poucos dentinhos solitários.
Eu quase me deixei ter esperanças de que ela estava certa.
Quase.
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ü ELE É SUPERSOCIAL
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Capítulo 15
"...o que mais eu deveria ser?
O que mais eu poderia dizer?
O que mais eu poderia escrever?
Todos os pedidos de desculpas"
nirvana, all apologie
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Era sexta.
Era sexta e Cobain me demitiu.
Era sexta, Cobain me demitiu e havia um valor absurdo de dinheiro
na minha conta.
Eu não trabalhei o suficiente para ganhar dez mil reais. Eu não
trabalhei nem uma semana. Deixei os livros todos no corredor do lado de fora
e a biblioteca dele ainda estava uma bagunça, e ainda assim ele havia me
dado o suficiente para cobrir muito mais do que as minhas despesas.
Dez mil reais antigamente seria o preço da minha compra no
shopping, hoje em dia... era uma barra de ouro.
Mas aquilo ali não era um programa do Silvio Santos no qual eu
sentava e o esperava atirar aviões de cem reais. Eu não queria aquele dinheiro
dado, não era justo.
Foi por isso que na manhã daquela sexta, o dia seguinte de ter saído
de sua casa, demitida, eu encarava a tela do Google no computador de Mari
Louise e o molho de chaves que ele havia me dado antes de me demitir. Por
que eu não devolvi? Nem eu sabia. Mas sabia que o que estava prestes a fazer
era algo terrivelmente invasor e o que eu faria depois, seria pior ainda.
Digitar Cobain James na barra de pesquisas foi fácil e os resultados
chegaram tão fácil quanto. Não haviam muitas informações. Em notícias não
tinha nada de imagens, apenas algumas tiradas com ele caminhando na rua.
Em apenas duas ele fitava a câmera. A primeira estava sozinho e encarava a
lente, sério como eu estava acostumada a vê-lo; e a segunda, estava com
Danilo Lobos, que sorria enquanto Cobain parecia nada feliz em ser o foco.
Eu ia ver os vídeos, mas de repente me coloquei no lugar dele, me
sentindo como se fosse eu a estar sendo investigada. Ele tinha dinheiro
suficiente para contratar o melhor detetive e descobrir o que quisesse sobre
mim, mas se eu soubesse, não gostaria nada. Então por que estava ali
bisbilhotando?
Com esse pensamento, fechei a janela da internet e levantei, não sem
antes pegar o molho de chaves.
Me detive por um passo, porque tinha acabado de dizer que não
queria bisbilhotar a vida dele, mas estava prestes a voltar naquela casa e
terminar o trabalho que ele pagou para que eu fizesse.
Mas isso era diferente. Eu convenci a mim mesma com esse
pensamento e voltei ao meu quarto. Peguei minha bolsa e conferi se estava
tudo dentro. Meu plano era correr para a casa dele logo depois de sair do
Teatro.
Cody dormia tranquilamente em seu berço e eu sai sem bater a porta.
Gabi ficava de levá-lo em uma sexta-feira do mês, porque ele entrava uma
hora mais tarde e precisava levar um brinquedo, coisa que eu não podia
esperar para fazer, se não chegaria atrasada no trabalho.
Encontrei Mari Louise na cozinha e a abracei com um beijo estalado
na bochecha.
— Bom dia, japonesa.
— Bom dia, bibliotecária.
O notebook dela estava aberto no youtube, tocando Pulsos, da Pitty, e
ela já começava a pegar ingredientes do armário.
— Amo essa música. O que você vai fazer?
Ela sorriu.
— A vizinha do 43 B encomendou um bolo para o aniversário da
afilhada.
— Minnie, Frozen, Moana, o que vai ser?
— Abelhas com lacinho rosa. Eu já desenhei e vai ficar muito fofo.
— É claro que vai ficar, você é incrível nisso. Já te disse que deveria
abrir um negócio de confeitaria.
Ela bufou.
— Precisa de dinheiro para fazer isso.
— Você tem dinheiro, Mari Louise, só o está gastando com as coisas
erradas.
Minha amiga deu de ombros, quebrando três ovos na bacia redonda.
— Pode ser.
Me aproximei e dei-lhe um beliscão na bunda, a fazendo pular e rir.
— Você é muito talentosa, dona japonesa. Deveria investir em seus
dons culinários.
— Nós duas sabemos qual o meu dom, dona bibliotecária.
Tristeza inundou minha voz.
— Não fale assim de si mesma, Mari Louise.
Ela deixou a colher de lado e desligou a batedeira, limpando as mãos
no avental antes de tirá-lo.
— Eu preciso ir no mercado comprar alguns ingredientes. Você e
Cody já vão sair?
Em momento nenhum ela me olhou nos olhos. Mas aquela era sua
típica reação para quando o assunto ficava mais sério. Mali fugia de qualquer
sentimentalismo.
— Hoje é aquela sexta. Gabi vai levá-lo mais tarde.
Mali me olhou.
— Mas hoje não é a reunião de classe dele?
— Não.
— Você disse que já tinha até avisado no Teatro e que Andreza ia te
cobrir.
Eu franzi a testa.
— Não, isso é só na última semana do mês.
Mali riu.
— Hoje é dia vinte e oito.
Eu fui até a folhinha do calendário pendurada para conferir e ali
estava. Merda. Meus olhos arregalaram e minha boca abriu em choque.
— Meu Deus do céu, Mali! Esqueci! Fiquei tão estressada com a
coisa toda do Cobain que nem prestei atenção nisso!
— Compreensível. Eu nem conheço o cara e fiquei nervosa só de vê-
lo aqui naquele dia.
— Estou rindo, mas isso é trágico — falei enquanto voltava ao quarto
para acordar Cody. — Que homem do caramba, até de longe me confunde!
..........
(..........)
— Cody, não coloque isso na boca! — Corri até onde ele estava
sentado e tirei o livro de suas mãos.
Abri a boca dele, conferindo se não havia comido nenhuma folha, e
suspirei. Eu estava tão ferrada.
Meu corpo já protestava do esforço que eu o estava submetendo, sem
depois dar um descanso para compensar e, além de tudo, precisei levar Cody
junto comigo. Por um lado era bom. Se Cobain chegasse e visse que invadi
sua casa, não me mataria ao ver meu filho.
Eu toquei a campainha, bati na porta e esperei. Andei por todo aquele
jardim o procurando e bisbilhotei por cada janela que tinha a cortina aberta.
Ele não estava em casa. A chave foi muito útil naquele momento e caso ele
chegasse antes de eu ir embora, eu poderia dizer que ele mesmo me deu a
chave, então não era invasão.
É claro que eu não queria devolver o dinheiro, porque me ajudaria
demais. Mas também não ficaria com ele de graça, então, com ou sem
protestos de Cobain, eu ia terminar o que me comprometi a fazer.
Cody bateu suas mãos nas pernas, as sobrancelhas se unindo em um
protesto irritado quando ele foi até outra pilha de livros. Eu senti que se
pudesse falar, ele diria: “Não vai me dar? Eu pego outro”.
Eu me deixei parar o trabalho por um momento e o observei perto o
suficiente para correr até ele caso precisasse.
— Você não tem idade para me desafiar, garoto.
Ele resmungou e olhou para os livros, um em cima do outro,
decidindo qual pegar. Ele decidiu pela do meio, onde só tinham aqueles de
capa dura e mais pesados do que seu próprio corpinho. Com toda a garra e
força que um bebê pensa que tem, Cody envolveu os dedinhos em um deles e
tentou pegar. Eu me dobrei, rindo de seus esforços, e ele me olhou com uma
cara de choro tão fofa que só me fez rir mais ainda.
Céus, eu era uma péssima mãe! Mas aquilo era tão divertido. Me
lembrava quando ele nasceu e eu e Mali ficávamos tirando fotos de suas
caretas e rindo, colocando filtros de bichinhos nele. Era tão, tão engraçado.
Seus pés gordinhos bateram no chão de madeira quando ele desistiu,
e ele parecia gostar do som, porque se distraiu dos livros para bater uma e
outra vez, rindo com a nova descoberta.
Eu quis correr até ele e beijá-lo pelo o resto do dia, mas aproveitei
seu momento calmo e longe de artes para voltar a estante onde estava e
continuar levando os livros para fora.
Eu estava na sessão de "Ciências e Economia" e não conhecia
nenhum livro e nenhum autor. O que tornou a tarefa um pouco tediosa, já que
eu não podia fuçar nos assuntos. Não ia entender nada.
Mas em meio a eles, um livro de tom azul claro, bem diferente dos
demais escuros, chamou minha atenção. Eu o puxei e li o título “Matheus, o
duende e a bruxinha boa”, de Esther Cohen.
A capa parecia tão fofa e eu o separei para mostrar para Cody. Queria
que ele começasse a conhecer os livros, para que os amasse assim como eu
fazia. Eu sempre achei que não existia influência melhor para formar o
caráter de uma criança para a adolescência e a vida do que os livros.
— DANIELLE!
Eu travei no lugar onde estava. Qualquer pensamento coerente
deixando minha cabeça e larguei o livro, correndo ao final da estante até onde
havia deixado Cody.
Cobain estava parado em frente a porta, com uma expressão de quem
me assassinaria naquele exato momento.
— Cobain...
— O que é isso? — ele rosnou e eu dei um passo atrás. Ele parecia
tão irritado, tão confuso e tão indignado.
— Um... bebê?
— Por que tem uma criança vestindo os meus sapatos? Ou melhor,
por que tem uma criança vestindo os meus sapatos, na minha biblioteca e na
minha casa?
Eu olhei para onde seu dedo apontou e quis rir. Eu não tinha nenhum
juízo.
Cody estava sentado em cima de dois livros, com uma mão no joelho
e a outra na boca e nos pés, onde antes seus pés estavam descalços, agora
estavam enfiados em duas botas enormes.
Ele me olhou e sua voz vibrou em uma gargalhada, então seus olhos
desviaram de mim para o homem a sua frente, então ele fez algo que nem eu
e muito menos Cobain esperávamos.
Meu filho levantou, e meio cambaleando dentro dos enormes sapatos, ele se
arrastou até estar na frente do meu chefe, ergueu suas mãozinhas, chamando
Cobain com os dedos.
E eu só pude arregalar meus olhos com o que veio a seguir.
— Papa?
Capítulo 17
"....você vê um céu azul agora?
Você pode ter uma jornada melhor agora
Abra os seus olhos pois ninguém aqui pode nos impedir
Nossas esperanças e sonhos estão em algum lugar por aí
Talvez eu e você possamos fazer as malas e dizer adeus
E voar para longe daqui"
aerosmith, fly away from here
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Haviam dias em especial, que deveria ser avisado assim que abrimos
os olhos algo como “se prepare”.
Acordei com aquela sensação estranha e familiar, um pouco do que
senti a primeira vez que tive meu coração partido, quando Renato Vilanova,
meu primeiro namorado aos quinze, resolveu que minha virgindade não o
interessava se eu não pretendia o deixar tirá-la de mim e beijou Gisele
Moreto em frente ao colégio todo, inclusive eu.
Ou quando caí na primeira apresentação de ballet. Todos que me
conheciam e que não conheciam, mas estavam simplesmente para agradar aos
meus pais, esperavam que eu fosse perfeita. Eu era Cinderela pela primeira
vez, com a orquestra da cidade tocando de fundo e meu namorado na época,
assistindo na primeira fileira ao lado de meus pais e seus amigos.
No primeiro ato eu fui saltitante e fiz o que ensaiei para fazer,
aplaudida de pé. Mas no segundo... em um momento eu girava e no próximo
meu queixo estava no chão. Diretamente na direção de papai. A expressão em
seus rostos jamais sairia da minha memória.
É claro que na época eu culpei meu parceiro de dança. Gritei e
esperneei que ele deveria ter me segurado. Meu colega, amigo e parceiro que
ensaiou incansavelmente ao meu lado durante meses. Eu o visitei duas
semanas depois e me desculpei. Pelo menos com ele não foi tarde para ajeitar
o estrago.
Parecia como quando descobri minha gravidez, também. A
consciência de que todos os planos estavam arruinados, porque na minha
rotina e na minha estrada calculadamente definida, não havia espaço para um
bebê. Uma bailarina que deseja sair da pequena cidade e brilhar no mundo
não deve engravidar antes da hora, isso quebra qualquer protocolo. Havia
sido meu pensamento na época, mas com o tempo a gente aprende que na
vida não há protocolos.
Não há certezas, garantias e nem promessas que poderiam ser
cumpridas para sempre.
E quando fui embora de Minas Gerais, deixando toda a minha
história para trás. Poucas roupas, dinheiro contado, nenhuma garantia, apenas
o medo. Junto com o que ainda sobrava de mim, e claro, meu bebê. Meu
coração que batia fora do corpo.
Mas é engraçado como a vida funciona, como o destino trabalha.
Como algumas pessoas estão simplesmente fadadas a sofrer. Eu acreditava
firmemente que um raio atingia o mesmo lugar uma, duas ou cinquenta
vezes.
Eles vinham me acertando desde muito tempo. Eu só não aprendi a
me acostumar.
Pesquisei Cobain James no YouTube.
Não haviam muitos vídeos. Ele tinha um canal VEVO, mas seu rosto
não estava em nenhum lugar. Todos os vídeos eram com fundos escuros,
fumaças ou efeitos diversos que combinavam com o som. Um pianista. Era o
que Cobain fazia. Ele tocava piano com uma maestria tão impressionante que
eu ouvi a playlist em sequência, repetindo três vezes, e só parei porque
haviam lágrimas em meus olhos.
A cada nota atormentada no instrumento, eu fechava os olhos e o
imaginava tocando. Me perguntava qual história cada uma daquelas
composições trazia.
Eu tinha um motivo para ter fugido. Quatro motivos. Se parasse para
contar com mais atenção, talvez até encontrasse mais.
Mas e Cobain? Do que ele fugia?
O que fazia com que o homem que se derramava diante de um objeto,
se escondesse em sua caverna, sozinho e monstruoso? O que aqueles olhos
verdes viram, que o fez se tornar constantemente sombrio e fechado?
Segredos eram como bichos sanguessugas que atormentam sua alma
e além de te torturar, fazem com que você se torture. Faz com que você
acredite que merece caminhar pela escuridão. Eu entendia disso. Sabia qual
era a sensação. E mesmo que nunca fosse descobrir quais eram os segredos
que faziam Cobain torturar a si mesmo, dei play na música outra vez.
Perguntei à imagem de seus dedos tocando piano naquela gravação,
se aqueles olhos verdes tempestuosos algum dia já foram calmos como a
grama em um dia de verão.
(..........)
(..........)
(..........)
COBAIN JAMES
Uma merda.
Uma merda de dia.
Uma merda de mês.
De ano.
De vida.
Um carro passou pela rua deserta daquela casa gigante e eu cogitei
apenas por um momento me jogar na frente dele, só para testar. Mas me
condenei por aquele pensamento logo depois. E também, com o azar que eu
tinha, talvez o carro voasse, não me acertando, como em O Quinto Elemento,
então o esperei passar e atravessei.
O portão velho rangeu, como sempre, irritando-me. Abri a porta
depois de passar por todo aquele mato seco, tirei um que ficou pendurado em
minha calça e entrei. O silêncio era bem-vindo. Mas também parecia mais
barulhento do que uma avenida lotada.
Toda aquela filosofia barata de que no silêncio nós podemos ouvir
nosso pensamento, era verdade. Eu odiava isso, mas odiava mais ainda as
conversas intermináveis de lugares não vazios. Então aprendi a lidar com
minha mente. Ela não falava tanta merda, apenas me irritava.
Então pensando nisso, eu percebi que odiava as vozes e meus
pensamentos também. E a ideia do suicídio pareceu tentadora outra vez,
mesmo que eu jamais fosse concretizá-la.
Fui até a cozinha sem nenhuma vontade de comer algo, olhei para os
móveis, para o teto, para o chão, e saí. Então voltei de novo e peguei o pote
de biscoitos de chocolate. Abri a cortina da janela da sala, me sentei e
coloquei o pote ao meu lado. Não estava mais tão sozinho.
Meu olhar viajou para o piano, onde ela havia se sentado e tocado
como se estivesse em casa, e por Deus, ela tocando era o som de cinquenta
gatos morrendo. Aquele vidro de biscoitos, já pela metade, me fazia lembrar
do garoto balançando na varanda dos fundos, olhando para mim como se eu
fosse a coisa mais legal que ele havia encontrado aquele dia. Os pés enfiados
na minha bota, o sorriso que me deu e o trabalho que tive para tirar os farelos
da barba. Sim, me fez sentir menos sozinho.
Tirando o fato de que eu a mandei ir embora e aquilo nunca mais
aconteceria.
Levantei em um rompante, jogando o pote longe de mim. Os biscoitos
espalharam no chão junto com os cacos de vidro. Eu estava irritado, muito,
como sempre ficava.
Me arrependia profundamente de ter levado Danielle para dentro
daquela casa, de ter a perseguido, entrado na vida dela sem pedir licença,
porque eu sabia no fundo da minha alma, que aquilo iria acontecer. Olhos
como aqueles não veem alguém como eu e se conforma. Ela esperava me
consertar, colocar minhas peças no lugar e me fazer o quê? Ver a vida com
alegria?
Tirei o telefone do bolso e o deixei no sofá, me permitindo ter uma
rara folga por apenas um momento enquanto acabava de vez com a última
parte dela naquela casa. Tinha que acabar de vez com aquela biblioteca. Toda
a merda dos livros e o cheiro dela impregnado naquele lugar não me deixaria
dormir em paz.
Se colocar fogo ali não fosse incendiar a casa inteira, eu faria isso.
Por Deus... eu faria.
Subi a primeira escada e atravessei o corredor cuspindo fogo. Que
porra eu estava pensando? Nem eu sabia. Minha cabeça era uma confusão,
principalmente depois da noite anterior, depois de tudo o que aconteceu,
depois dela.
Mas assim que cruzei a esquina para a segunda escada, meus pés
travaram no chão um segundo antes de eu correr degraus acima. Meus
joelhos bateram no chão, minhas mãos voaram para ela e meu coração batia
tão rápido, que por um momento pensei que teria um ataque ali mesmo.
— Danielle!
Ela tinha os olhos abertos, parecia olhar para mim, mas eu não tinha
ideia se me entendia, se me via.
— Está me ouvindo? Você caiu? — Ela permanecia em silêncio, o
rosto mal se movia. Nenhuma palavra, nenhum esforço para levantar. —
Diga alguma coisa, pelo amor de Deus!
Verifiquei por cima se havia algo de errado, se estava sangrando,
qualquer coisa!
Tirei as mechas de seu cabelo que cobriam uma parte do rosto e o
segurei virado para mim.
— Você precisa me dizer o que houve — sussurrei, mas minha
resposta foi uma lágrima silenciosa que escorreu de seu olho. Engolindo em
seco, tentando controlar o tremor de minhas próprias pernas, a levantei.
Seu corpo não pesava em meus braços e por um momento, algo
inexplicável passou por mim. Como um déjà vu. Era terrível olhar para o
rosto paralisado, que até um dia atrás sorria e não parava de falar.
Me arrependi naquele momento de todas às vezes que reclamei das
palavras dela. Não disse em voz alta, mas prometi ali, silenciosamente, que
nunca mais reclamaria. Ela podia falar o quanto quisesse, eu aguentaria.
Tranquei a porta e joguei a chave no jardim, preocupando-me em
levar só a chave do carro. Coloquei Danielle no banco traseiro, deitada,
observando que as lágrimas caíam cada vez mais. A pulsação estava normal,
ela respirava, então por que diabos não falava?
Me preparei para dar partida, mas de repente parei. Eu deixei o
celular em cima do sofá. Perto dos biscoitos caídos e os cacos de vidro.
Minha mão voou para a maçaneta, mas um suspiro veio do banco de trás e eu
fechei os olhos respirando profundamente, e escolhi.
Naquele momento, eu tinha que escolher.
E precisava ser a mulher no banco de trás do meu carro.
(..........)
Eu não era parente dela, não sabia nada sobre seu estado, então não
me deixaram entrar.
Tinha que ligar para sua amiga, tinha que tentar encontrar algum
familiar, entender o que havia acontecido. Ela teve um ataque de pânico?
Uma crise nervosa? Não sabia.
E ninguém naquela porra de lugar queria me dizer.
(..........)
(..........)
(..........)
— Está pronta?
Eu segurei firme a mão de Mari Louise e agradeci mentalmente por
Raiana me apoiar no outro braço.
— Vamos.
— É claro que ela está pronta — Raiana elogiou com uma animação na voz
que eu até acreditaria se não a conhecesse bem. — Quando tudo voltar ao
normal, estaremos recriando essa cena, você vai ver só.
Eu tentei sorrir para não a deixar sem graça, mas apenas tentei, sem
sucesso. Cody estava lá em cima com Gabi e eu só conseguia pensar nele
desde que saí do hospital. Eu esperava realmente que quando ele corresse em
minha direção, alguém me avisasse, porque derrubar meu filho ou tropeçar
nele não era algo que eu queria fazer.
Mari Louise estava sendo o anjo que costumava ser, e Raiana pediu
folga no trabalho para lidar comigo naquele momento. Eu odiava a volta para
casa depois de um surto. Pior ainda por saber que devido ao tratamento, eu
ficaria tão cansada, que às vezes até mesmo ir da cama até a cozinha beber
algo seria terrível.
E quando Cody quisesse brincar, e para levá-lo na escola, e para dar a
ele seu café da manhã. Eu nem conseguia andar sozinha.
— Dani. Podemos?
Eu respirei profundamente e assenti. Havia esquecido por um
momento que as duas continuavam ali, me segurando de cada lado, só
esperando que eu desse o primeiro passo. Um passo tão difícil, porque eu
sabia que depois dele não poderia parar. Teria que passar pelo caminho
inteiro para chegar até a minha nova condição: uma completa dependente.
Queria conseguir me soltar das duas e caminhar por mim mesma,
guiando-me pelas paredes e com um pé na frente para evitar possíveis
tropeços, mas parecia que elas sabiam que se me soltassem, eu desabaria ali
mesmo. Não apenas por cansaço, mas por desistência.
Porque eu era fraca quando se tratava da minha doença, e ela se
tornava forte, porque sabia que era uma luta ganha.
Muitas vezes eu me perguntei se aquilo não era um teste psicológico,
ou Deus me perguntando quanto eu podia aguentar. Como se a minha cabeça
brincasse comigo mesma, testando meus limites e me desafiando a parar. E
por todas as forças do universo, eu não aguentaria nem chegar à segunda fase.
Tornava-me incapaz de jogar o jogo. Me esquecia de Cody, de Mari Louise,
de Raiana, e só queria esperar pela próxima passada de perna que a vida me
daria.
Eu ouvi o sinal do elevador, andei com elas e entrei, ouvindo as
portas fecharem logo depois.
Alguém fungou ao meu lado e eu deveria ficar chateada por saber que
nem minhas amigas conseguiam lidar empolgadas com aquilo, mas fiquei
satisfeita. Porque eu não era a única sabendo que tudo ficaria uma droga.
Queria saber o que Cody pensava.
Arrastei um pé atrás do outro quando chegamos ao nosso andar. As
portas abriram e elas caminharam lentamente comigo. Ouvi a porta. Ouvi
Gabi. Ouvi até mesmo os passarinhos cantando do lado de fora, alheios ao
meu drama. Mas ouvir Cody foi como pegar toda a pressão e o medo que eu
tentava manter escondido e jogar direto em meu rosto.
Eu queria sumir.
Sumir para um lugar onde fôssemos apenas eu e ele, e não existisse a
esclerose para ficar entre nós. Onde ela não levaria minha visão e me
impediria de ver minha alegria.
— Ma-ma!
Ouvi seus pezinhos batendo no chão de madeira, e os de outra pessoa
logo atrás dele. Gabi, sua fiel babá que não fazia ideia do porque eu fiquei
cega em poucas horas, pelo menos não sabia, mas talvez agora já estivesse
até se preparando para dizer que não poderia mais cuidar dele.
— Calma, rapazinho. Mamãe já vai pegar você — tentou tranquilizar.
Eu ouvi seu grito e os lamentos que ele fazia por não poder se aproximar.
Engoli em seco.
— Me leve até o sofá e o coloque no meu colo, por favor.
Elas fizeram o que pedi e eu encostei, preparada para receber meu
filho.
— Vou colocá-lo em seu colo, Dani.
Segundos depois senti suas perninhas geladas em cima da minha, as
mãos agarraram minha blusa e as minhas automaticamente foram para
segurá-lo. O cheirinho dele ainda era como no dia anterior pela manhã. O
abracei, envolvendo uma mão protetora em sua cintura enquanto ele
resmungava, e a outra subi em seu cabelo, ainda como antes.
— Fiquem perto, por favor.
— Estamos aqui, Dani.
Mesmo que eu estivesse sentada e ele também, minha mão direita
ainda estava fraca e meus dedos não aceitavam meus comandos. No
momento, eles eram donos de si.
— Ma-ma?
— Oi, bebê. — Mal percebi quando as lágrimas começaram a cair, só
senti a mão de alguém em meu ombro.
— Para onde ele está olhando? — sussurrei.
— Para você — Raiana respondeu com a voz embargada, tão baixa
quanto a minha.
— Ele só tem olhos para você, Dani — Mali completou e eu soube
que a mão que me consolava era dela. — Ele está sorrindo.
— Está feliz que a mamãe voltou para casa — Gabi falou.
— Abra os olhos, Dani. Deixe que ele veja que você está aqui.
— Eu não posso, Mali. Não posso vê-lo.
— Mas ele pode te ver. Eu não sei das suas dores e não faço ideia de
como é estar no seu lugar. Mas ouça-me. Você deixou que essa doença tirasse
os seus sonhos, o seu sorriso e sua vontade de lutar. Não a deixe tirar você do
seu filho também.
Como se entendesse e concordasse com cada palavra de Mali, Cody
deitou a cabeça em meu peito e sua mão minúscula tocou a minha. Palma
com palma, como nós sempre fazíamos.
E ali estava ele, meu ponto de realidade, meu equilíbrio. Tocando-me
como eu o toquei diversas vezes para acalmá-lo. Quando ele chorava e eu
segurava sua mão daquele mesmo jeito, o tranquilizando de que ainda estava
ali, que não importava o dia de amanhã, naquele momento eu ainda estava
com ele, e faria de tudo para estar no dia seguinte também.
Ele ergueu a outra mão livre e tocou meus olhos, tentando abrir com
seus dedinhos pequenos, e eu abri. Mesmo que a minha frente fosse apenas
uma escuridão aterrorizante, ela se tornou calma e inofensiva por alguns
momentos.
Ouvi a gargalhada de Cody, feliz de pensar que eu olhava para ele, e
eu tentei fazer isso. Me lembrei de como ele estava da última vez que o
peguei, de seu sorriso, dos pequenos dentinhos e a covinha na bochecha; do
cabelo que caía em sua testa e balançava com seus movimentos. E o vi.
Mesmo que em minha imaginação.
A coisa mais bonita que eu fiz na vida, a pessoa mais especial do
mundo para mim, estava bem a minha frente. Eu sentia seu cheiro e podia vê-
lo também.
Sorri um pouco, verdadeiramente, como só ele me fazia sorrir nas
horas impossíveis.
Meu pequeno homenzinho, forte como eu não podia ser.
O único motivo para eu ainda querer tentar lutar.
Capítulo 24
"...deste momento em diante
Se você se sentir que está partindo, não vou deixar você cair
Vou te segurar até a dor passar
Você nunca vai estar sozinha"
nickelback, never gonna be alone
Um.
Dois.
Três.
Três.
Dois.
Um.
Eu precisava trabalhar equilíbrio e força.
— Tem certeza que pode fazer isso, Dani?
Não, eu não tinha. Mas precisava.
Meu filho voltaria da escola em poucas horas e ficar sentada o dia
inteiro não me ajudaria a recuperar o que foi perdido.
Então nas duas mãos eu apertava duas bolinhas improvisadas que
havia na caixa de Cody, e fazia um exercício que vi na internet, em um canal
do Youtube, que consistia em levantar e sentar.
Respirava alguns segundos em pé e sentava, respirava e levantava. E
assim por diante. Minhas pernas protestavam.
— Não devemos esperar o fisioterapeuta ou algo do tipo?
— Eu não vou ficar sentada o dia inteiro enquanto você trabalha,
cuida do meu filho e da casa. Se existe algo que posso fazer para pelo menos
conseguir andar direito e pegar as coisas decentemente com as mãos, farei.
A pulsoterapia era uma droga. Por Deus, eu estava inchada. Ela age
de uma forma diferente em cada pessoa, é administrada de diversos modos,
durações, e tem efeitos pós diferentes. Eu estava morta, como era comum na
grande maioria que passava por ela, mas queria tentar antes de simplesmente
cair na cama e dormir.
Mari Louise nunca falou, mas eu imaginava que ela devia me achar
exagerada e preguiçosa, porque na maioria das vezes, eu só queria ficar
deitada ou dormindo. O cansaço era tanto que explicar se tornava impossível,
e não importava quantas horas da noite eu dormia, ainda assim dormia de dia
também.
— Tudo bem, Dani, mas forçar a barra também não vai ajudar. Deixa
o seu corpo descansar.
Eu bufei e não respondi. Descansar não era muito a palavra.
Descansar era o ato de repousar para se sentir disposto depois. No meu caso,
descanso não se encaixava, porque eu quase nunca estava disposta depois da
pulso.
— Não estou forçando nada.
— Está morrendo, Danielle. Por Deus, olha você cambaleando. Está
até vermelha! Se sua intenção é ficar melhor para quando Cody chegar, se
continuar assim vai desmaiar na frente do seu filho.
Ela era minha melhor amiga, muitas vezes me conhecia em níveis
que nem eu podia me conhecer, mas naquele momento me dividi entre a
raiva, revolta e mágoa. Não com ela, não com suas palavras que eu sabia que
eram a verdade, mas por toda a situação.
— Já passei por isso antes, Mari Louise. Você não é médica para
ficar me dizendo o que fazer.
— Tem razão, não sou mesmo. Mas sou eu quem estou aqui
acompanhando tudo!
— Mali, você é minha amiga e eu te respeito demais, tanto pelos anos
juntas quanto por tudo o que faz por mim, mas você não vai controlar a
minha vida.
— Não quero controlar, Dani! Só acho que existem coisas que você
faz, que não são saudáveis. Tipo achar que um cara na internet sabe de tudo.
— Você está com dó e acha que eu vou quebrar, mas eu já enfrentei
essa maldita doença outras vezes e sei como lidar com ela. Você não precisa
me dizer que eu estou fraca até para ficar com o meu filho! Me apoie, pelo
amor de Deus. Me diga que eu consigo ao invés de me incentivar a ficar
deitada o dia todo, vendo os dias passarem!
— Você já enfrentou isso antes, mas eu não. Essa é a primeira vez
que eu tenho que ficar aqui e ver a minha amiga tentando parecer firme,
quando está desmoronando! Por que está querendo provar algo para mim,
Danielle? Eu sei o quão forte você é, mas precisa me ouvir de vez em
quando!
Nós ficamos ali, em silêncio por vários minutos. Eu suada, quase
caindo para trás sem conseguir me manter firme de pé, as bolinhas presas em
meus punhos e os olhos quase fechando de exaustão. E ela, mesmo sem poder
vê-la, sabia só por sua voz, que o humor não era melhor que o meu.
Mas não tive chance de responder, pois a campainha tocou naquele
instante.
Ela respirou profundamente e ouvi seus pés batendo com força no
chão. Aproveitei a deixa, soltei as bolinhas no chão e tateei as costas da
cadeira, usando-a para chegar até o sofá ao lado. Sentei mesmo suada e ouvi
Mari Louise destrancando a porta. Dessa vez, o barulho foi de pegadas ainda
mais altas no chão de madeira, então Mali se exaltou.
— O que vo...
— Onde ela está?
Aquela voz.
Eu a conhecia de longe. Mesmo sem poder vê-lo sabia que era ele ali.
Na verdade, mesmo antes que dissesse qualquer coisa, apenas pela invasão
abrupta, a forma como entrou já o denunciava.
Cobain James.
A quase briga com Mari Louise foi esquecida imediatamente, assim
como todo o resto. Ele estava ali e eu não fazia ideia do porquê, mas dias
depois de ter saído daquele hospital, Cobain finalmente apareceu. Pelo menos
o tremor que iniciou em minhas pernas, daquela vez eu sabia que não era um
sintoma, mas sim um reflexo do que a presença dele me causava.
— Você não pode entrar aqui dessa forma. Eu vou chamar a polícia!
— Mari Louise o enfrentou.
Eu queria fazer o mesmo, mas o choque só me permitiu continuar
sentada ali esperando que ele desse o primeiro passo e começasse a explicar o
motivo de sua visita.
— O que vocês duas têm com a polícia, hein?
— Nada — ela falou —, mas teremos um Boletim de Ocorrência
contra invasão daqui a poucas horas se você não sair!
— Então vá providenciar seu boletim, porque eu preciso falar com
Danielle.
— Meu Deus, você é tão absurdo! Olha só, Dani está cansada e
precisa descansar agora, então porque você, só... vá embora.
— Eu vou assim que ajeitarmos tudo para ela ir comigo.
— O QUÊ?! — O grito da minha amiga me fez dar um pequeno pulo.
Eu quis gritar junto por não poder literalmente ver o que estava acontecendo.
— Parem de discutir como se eu não estivesse aqui. Estou cega, não
surda! E que história é essa de ir com você?
Passaram-se alguns segundos em silêncio, então começaram
novamente.
— Temos um acordo. — A voz de Cobain era baixa e afiada.
— Eu não quero que você a leve!
— Não tenho como instalar uma enfermeira aqui, Mari Louise,
portanto ela irá comigo.
— Nós não precisamos de uma enfermeira!
— Ah, não? E como vai manter a casa? Vai trabalhar por três?
— Sim, posso fazer isso.
— E como cuidará do garoto e dela? Vai deixá-los sozinhos para
sair?
— Gabi está aqui para isso e...
— Então é mais uma despesa.
— Eu dou conta, nós sempre nos viramos!
— Que acordo é esse que ele está dizendo, Mali?
Nenhum dos dois me respondeu, e um silêncio pesado encheu a sala.
Era angustiante não saber o que estava acontecendo. Se eles se encaravam, se
me olhavam com pena ou revoltados comigo por ser um problema.
— Estou me aproximando, Danielle — Cobain falou, então segundos
depois o sofá afundou ao meu lado.
Eu me recostei, buscando alguma distância entre nós.
— Dani, não tem que se sentir obrigada a fazer nada que ele diga, nós
vamos dar um jeito em tudo.
— Vão mesmo, Mari Louise? Então qual a necessidade do
empréstimo que me pediu se dará um jeito em tudo?
A informação me chocou por meio segundo, então explodiu como
uma bomba no meu colo. Se eu pudesse ver, Mali me veria atirando flechas
incendiárias em sua direção.
— Mari Louise!
— Seu filho de uma mãe! Ela não precisava saber disso!
— Claro que precisava, Mali! Por que escondeu isso de mim? E
pior... por que fez isso?
— Porque o tratamento público é uma droga, Dani. Eu pensei que se
fizéssemos com tudo pago você poderia se recuperar mais rápido, eu não sei,
não pensei direito. Estava nervosa, você está triste o tempo todo e ele era a
única saída.
Eu queria não estar brava com ela, entendia seu desespero, mas pedir
dinheiro a Cobain a ponto de fazê-lo ir até ali ditar regras não me agradou. Eu
já me sentia culpada pelos dez mil na minha conta que não tiveram o trabalho
terminado, e agora essa!
— Não precisamos do dinheiro, Cobain, esqueça que ela lhe propôs
isso. Pode voltar para a sua vida, está tudo bem.
— Eu não estou aqui só pelo pedido dela.
— Então por quê? Por dó? Eu não preciso dela, então apenas vá!
Eu estava tão brava, tão chateada e decepcionada. Além de estar tudo
isso com ele, estava comigo, também. Porque aqueles sentimentos surgiram
de uma expectativa, e essa expectativa é uma droga. Te faz esperar demais de
quem nunca te prometeu nada. Eu passei uma semana inteira esperando que
ele fosse aparecer e pelo menos perguntar como eu estava. Mas... ele não me
devia isso, então porque em algum momento eu cheguei a esperar?
Agora ele estava ali, com pena de uma mulher pobre e dependente,
com uma criança pequena.
Seu dinheiro ajudaria em muita coisa, sim, mas meu orgulho falava
mais alto.
No início meu tratamento era feito com os melhores médicos,
remédios que não importava o preço e as despesas nunca chegavam a minha
mesa para ver a conta. Mas isso foi quando um surto impediu os movimentos
das minhas pernas e meus pais viram que querendo ou não, eu precisava me
tratar. Por aquele lado, viver em Minas Gerais, com Regina cuidando de mim
o dia todo e a segurança financeira que minha família tinha era muito mais
fácil. Mas só quando envolvia o dinheiro.
Uma das coisas que eu li sobre a EM logo que recebi o diagnóstico,
foi que meu estado emocional era muito influenciável no meu físico.
A negação, o choque, a confusão completa e a raiva estavam sempre
presentes nos primeiros dias, meses. Depois disso, eu passei a viver meio
depressiva, sempre ansiosa e estressada, e essa instabilidade emocional era
um dos gatilhos perfeitos para me deixar ainda mais à beira de um surto.
Emoções que viviam presentes enquanto eu vivi debaixo do teto dos
Castro D'Avilla.
Mesmo que ter mudado para o Rio depois que tudo aconteceu tivesse
me deixado exposta e frágil àquela instabilidade, também, ainda assim era
mais calmo do que lá. Uma tempestade longe dos meus pais, era melhor do
que a calmaria perto deles.
Os remédios pelo governo eram difíceis, muitas vezes faltava, e quem
precisava até mesmo sofria com dificuldade de pegar, mas era de graça, a
única forma que eu tinha de me tratar. Até porque o custo de tudo era caro,
uma despesa que, dependendo do que era preciso para o tratamento, chegava
até a dez mil reais, isso se não fosse mais.
Eu não tinha aquele dinheiro.
— Não tenho dó de você, nem pena, e nem estou aqui por obrigação.
Me perguntei se meus olhos abertos deveriam mostrar a ele toda a
angústia, medo e tristeza que sentia.
— Então por quê?
— Porque... porque você é minha funcionária. Estava trabalhando na
minha casa e se posso fazer algo para ajudar, farei.
Um balde de água fria.
— Eu não era sua funcionária desde quando você gritou comigo me
mandando sair daquela casa.
Ouvi um suspiro frustrado vindo dele e abaixei a cabeça,
entrelaçando meus dedos em nervosismo.
— Você não me dá escolhas, Danielle. Nunca dá. Sempre tenho que
ir pelo pior caminho com você.
Engoli em seco.
— Que caminho?
— Peça para sua amiga nos deixar sozinhos, ela acha que eu vou
estrangular você a qualquer momento caso saia daqui.
— Acho mesmo — Mari Louise falou.
No começo eu poderia concordar com Mari Louise, mas agora pelo
pouco que quase conheci de Cobain, sabia que ele não me machucaria.
Esperava que não e tinha quase certeza disso.
— Tudo bem, Mali. Eu vou conversar com ele.
— Eu não acho uma boa ideia, Dani. Esse cara só te faz passar
nervoso e você não pode ficar nesse estado ago...
— Mari Louise — chamei uma única vez, a interrompendo.
Ela ia me enlouquecer.
— Tudo bem. Certo. Mas eu estarei logo ali, bem do lado. — Os
passos dela foram ouvidos, lentamente se afastando.
— Ela foi o caminho todo estreitando os olhos para mim. Alguém
tem que avisá-la que nem se quisesse ela seria assustadora fazendo essa cara.
Ignorei seu estranho espírito irônico e suspirei.
— O que você quer, Cobain?
— Quero ajudá-la a passar por isso. Quanto mais cedo estiver
recuperada, mais rápido pode voltar a fazer suas coisas.
— Isso ainda não é da sua conta.
— É da minha conta que quando tudo aconteceu você estava na
minha casa e mesmo sem nenhum contrato assinado, você trabalhava para
mim.
— Mas...
— Tem noção de como será para Mari Louise, cuidar de você e do
garoto, pagar as contas dessa casa, e a babá para ficar com ele enquanto ela
estiver fora?
— Tenho o dinheiro que você me pagou e o auxílio doença também.
— O dinheiro que eu te paguei não vai durar para sempre e o auxílio
doença é uma mixaria. Sem contar que o afastamento não é para sempre. Se
quiser se aposentar, será um longo processo para reivindicar seus direitos.
Até lá vai fazer o quê?
Eu sabia daquilo. Cada uma das palavras fazia sentido, mas admitir
era difícil, e aceitar ajuda pior ainda.
— Eu... eu vou dar um jeito.
— Pelo amor de Deus, você é teimosa demais! Veja pelo lado
profissional. Eu estou lhe oferecendo uma forma de melhorar. Será um
empréstimo.
— Empréstimo? Eu nunca teria dinheiro para te devolver.
— Eu sei, mas pode me pagar com o término do serviço que
começou. Minha biblioteca não será arrumada sozinha e eu não confio em
ninguém para colocar lá dentro, você sabe disso.
Me deixei refletir em suas palavras por alguns momentos, e ele ficou
em silêncio, me esperando considerar.
— Mas eu posso ficar aqui. Aceito sua ajuda, mas fico aqui.
Realmente não tem cabimento ir com você para qualquer lugar.
— Você não está pensando por todos os ângulos, Danielle. Quando
Mari Louise não estiver aqui, o que você vai fazer? A babá do garoto não vai
abrir mão da vida dela para ficar de olho em você.
— Deficientes visuais ficam sozinhos em casa o tempo todo.
— Sim, deficientes visuais que tiveram um tempo para se acostumar,
para lidar com a vida nova. Tenho certeza absoluta que nenhuma pessoa que
perca qualquer função do corpo fica sozinha nos primeiros dias. Na minha
casa, pelo menos, eu estarei em meu escritório e tudo o que você tem que
fazer é chamar.
— Você não trabalha fora?
— Eu preciso sair às vezes, mas estou lá na maioria do tempo. Eu
posso pagar alguém para levar o garoto na escola e buscá-lo também. Posso
pagar os melhores médicos, o melhor tratamento e a melhor recuperação.
Posso fazer qualquer coisa. Então me diga, por que você não aceita de uma
vez?
— Porque seria como dever a você.
Fora meu argumento já gasto de “eu não quero ir”, eu não tinha
nenhuma outra resposta para debater com ele. É claro que podia mandá-lo
sumir e não voltar mais, dizer a ele para parar com a mania de se meter na
vida alheia, mas... tudo o que ele me oferecia era benéfico para mim.
Mari Louise não morreria de trabalhar, e tudo o que eu teria que fazer
depois seria terminar a biblioteca.
E realmente... por que não?
— Cobain? — Minha voz era baixa. Tão fraca como a minha
segurança em perguntar algo tão cru a ele.
— O quê?
— Por quê?
Eu não precisava explicar a pergunta.
Por que ele estava ali? Por que insistiu tanto? Por que queria me
ajudar? Apenas o apelo de Mari Louise fez com que aparecesse depois de
dias longe e só informasse que eu estava indo com ele?
Ouvi sua respiração ficar mais pesada e podia até ser coisa da minha
cabeça, mas o ouvi engolir antes de me responder.
— Eu não sei, Danielle. Eu realmente não sei.
Capítulo 25
“...você acha que consegue distinguir o paraíso do inferno?
Céus azuis da dor?
Um sorriso de uma máscara?
Nós somos apenas duas almas perdidas, correndo sobre o mesmo velho chão
O que nós encontramos?
Os mesmos velhos medos
Eu queria que você estivesse aqui"
avenged sevenfold, wish you were here
ü ELE É UM SONHADOR
COBAIN JAMES
Eu havia dito sim para Cobain, para sua ajuda e seus argumentos.
Sabia que ele estava certo em todos os ângulos. Queria minha melhora para
que eu terminasse a biblioteca e eu queria melhorar. Então era isso.
Mari Louise queria ir junto, entrar e garantir que não havia nenhum
perigo para mim. Mas a alertei de que estava sendo paranoica, afinal, Cobain
nunca tinha representado nenhum risco para mim. Mesmo que por vezes
parecesse um louco e fosse ranzinza ao extremo, nunca me senti ameaçada
perto dele. Nunca houve aquele sentimento de dúvida.
“Será que ele faria algo?”
“E se ele fizer?”
Não, nunca. Apenas segurança e irritação. Sim, ele tinha o dom de
me tirar do sério, mas até aí, eu também o deixava impaciente diversas vezes.
Sendo assim, naquela manhã de domingo eu acordei cedo e fiz
minhas malas com a ajuda de Mali, enquanto Gabi olhava Cody na sala para
sermos rápidas. Eu não queria que Mari Louise fizesse tudo, então ela
separou primeiro as roupas de Cody, deixando em uma pilha que eu
alcançasse sem ver, e as guardei dobradas na mala que levaria para ele,
depois foram as minhas. Ela perguntou no mínimo cinquenta vezes se eu
tinha certeza, se não queria que fosse junto, que nós podíamos fazer dar certo
apenas nós em casa. Mas eu sabia a verdade e minha amiga também.
Por isso ela ligou para o telefone fixo que Cobain havia deixado e o
avisou de que eu estava pronta para ir. Ele subiu e pegou nossas malas sem
falar muito, como sempre, e desceu para nos deixar sozinhas. Gabi foi junto
com Cody também, para nos dar privacidade por alguns minutos.
Mari Louise me abraçou tão forte, tão apertado, que me fez recordar
da época em que Cody nasceu. Quando eu estava desesperada na sala de
parto e ela chegou, correndo em seus saltos e o vestido curto, o cabelo com o
brilho da maquiagem e a maquiagem borrada. Era por volta das quatro da
manhã, e eu sabia no momento que a vi que ela estava trabalhando na boate e
saiu apenas para ir ficar comigo.
E mesmo com todos a olhando torto por claramente deduzir o que ela
fazia, ela permaneceu ao meu lado, sorrindo e chorando comigo enquanto
Cody chegava ao mundo.
Eu me dei conta enquanto descíamos do nosso apartamento até o
térreo, de que desde que me conheceu, Mali abriu mão de parte da sua vida
para cuidar de mim.
Em várias conversas com Raiana, ela já havia confidenciado que
Mali era uma baladeira de primeira, vivia viajando e nunca parava em casa.
Que nem precisava pagar um aluguel, porque os homens com quem saia
faziam de tudo por ela. Eu me lembrava de ter ficado surpresa que ela parou
com tudo aquilo só porque eu e Cody estávamos lá e a perguntei, disse que
estava tudo bem continuar fazendo suas próprias coisas.
E as palavras dela nunca sairiam da minha mente.
“Eu saía para não ficar sozinha aqui. Um quarto do hotel mais caro
dessa cidade não impede as lágrimas que caem enquanto eu estou deitada
nas camas luxuosas. Mas ficar aqui comendo brigadeiro de panela com você
e Cody me faz esquecer que tenho motivos para chorar.”
De uma forma ou de outra, Mali e eu salvamos uma a outra.
Nós continuávamos fazendo isso dia após dia.
Quando chegamos no térreo e depois para fora, Mali me guiou até
que ouvi a porta de um carro sendo aberta.
— Pronta para ir?
Eu senti quando as mãos de Mali se foram e as grandes de Cobain
seguraram a minha, ajudando-me a entrar. Mas eu parei por um segundo.
— Onde está Cody?
— Em sua cadeirinha, com seu Buzz Lightyear bem ali atrás.
— Ele não tem uma cadeirinha e nem um Buzz Lightyear.
— Ele não tinha. Agora tem.
Eu engoli o caroço na garganta e segurei sua mão, finalmente
sentando no banco.
Queria olhar para trás e verificar seu rosto, se sorria, se estaria com
medo, assustado. Mas logo eu pude ouvi-lo.
Cody nunca teve uma cadeirinha. Foram poucas às vezes que andou
de carro, apenas quando nós pegamos táxi. E agora eu o ouvia batendo as
mãos e animado com o brinquedo, fazendo barulhos com a boca,
entusiasmado para fazer mais aquela grande descoberta.
Mais uma vez... graças a Cobain James.
Ouvi a porta do outro lado batendo, então Mali e Gabi me deram os
últimos abraços antes de fecharem a minha.
— Respire fundo, Danielle. Respire — ele murmurou com o carro
ainda parado. Me perguntei se podia ver como eu tremia, ou apenas supôs
que eu estava a ponto de começar a chorar, toda confusa, ali mesmo.
Mas engoli as palavras antes que começasse a tagarelar, e respirei,
mas foi pior. Porque só consegui sentir seu cheiro.
(..........)
— Vou segurar seu braço para ajudá-la a não tropeçar nas pedras.
— Tudo bem.
Eu segurava Cody no colo, e nisso, senti o leve toque da sua mão no
meu braço esquerdo. Ele estava próximo. Muito próximo. Próximo o
suficiente para que eu sentisse as pontas de seu cabelo passando pelo meu
ombro.
— Você quer que eu o leve?
— Não, tudo bem.
— Ele é pesado — argumentou.
— Eu estou acostumada.
— Certo. — Nós seguimos lentamente e em silêncio. Ele me guiava e
eu agradeci por Cody estar sonolento, porém tive que concordar sobre seu
peso.
Ainda mais agora que meu braço ainda tinha aquela fraqueza e minha
perna arrastava um pouco, nem perto de cem por cento recuperada.
— Danielle, eu posso levá-lo, você está abrindo e cerrando os
punhos.
Engolindo seco, eu parei e assenti, virando-me de lado e entregando
meu bebê.
— Obrigada.
— Nada para agradecer — resmungou.
Segundos depois, ouvi a chave na porta e tropecei para dentro sem
esperá-lo. Literalmente tropecei, mas seus dedos estavam segurando meu
cotovelo no mesmo segundo.
— Cuidado! — rosnou. Eu estremeci, encolhendo as mãos junto ao
meu corpo para evitar quebrar qualquer coisa, e esperei por ele. Logo ouvi
seu suspiro. — Venha, fique sentada no sofá com ele enquanto eu pego as
malas.
Eu fiz isso, apertando meu filho em meus braços e respirando
profundamente. Estava tudo tão silencioso e eu desejei acordar Cody para
que ele falasse, evitando aquela sensação de estar completamente sozinha.
A porta bateu e os passos soaram pelo corredor.
— Cobain? — perguntei, trêmula. Mesmo sabendo que era ele, foi
uma reação automática querer confirmar. Só me tranquilizei quando o ouvi
respondendo.
Se fosse qualquer outra pessoa, eu nunca poderia proteger Cody de
quem quer que fosse.
Aquelas ideias começaram a me assombrar no momento em que eu
percebi que não via nada e agora um monte dos mesmos pensamentos
rodeavam minha mente.
— Você parece cansada, então vamos apenas estabelecer algumas
coisas antes de ir para a cama um pouco.
— Tudo bem, só... pode chegar mais próximo? Eu odeio não saber
qual vai ser seu próximo passo.
Era verdade. Podia ouvi-lo, mas não sabia onde ele estava ou fazendo
o quê.
— E antes você sabia?
— Não, mas quando podia vê-lo era mais fácil. Apenas sente-se
perto, por favor.
Houve um momento de silêncio, então o sofá ao meu lado o
denunciou ali.
— Próximo o suficiente?
Eu assenti e me virei na direção dele.
— Certo, e agora?
— Eu trabalho em casa na maioria das vezes, então tudo o que tem
que fazer caso precise, é me gritar, embora a enfermeira vá estar sempre
perto.
— As escadas...
— Coloquei grade em todas elas e nas portas também. Mesmo que
ele abra a porta do seu quarto, por exemplo, embora eu não o veja alcançando
a maçaneta, ficará preso pela grade lá dentro. Tirei todas as coisas que
pudesse machucá-lo do alcance. Está tudo no alto agora.
Sentia meus olhos arregalarem a cada nova descoberta, e mesmo sem
vê-lo ou me ver, a surpresa estava estampada em meu rosto, eu sabia disso.
— Aqui no primeiro andar tem um carpete no chão da sala, corredor
e o quarto. Assim, quando ele quiser andar pela casa ou até cair, não irá se
machucar.
— Cobain...
— Se bem que, ele não vai cair.
— Bebês caem o tempo todo.
— Ele não vai.
Cerrei meus lábios e suspeitei que caso tentasse falar, as lágrimas
começariam a correr livres por meu rosto.
— Eu não acho bom que você saia, também. Se precisar sair ou de
qualquer coisa, me diga e eu vou cuidar disso. Para ficar aqui dentro, sei que
talvez você não goste, mas eu tomei a liberdade de lhe conseguir uma
bengala. Parece extremo vendo que logo sua visão voltará, mas para evitar
que caia ou tropece quando eu ou Solange não estivermos perto, vai ser muito
útil.
Não, não era extremo. Era exatamente o que eu precisava, e ele
estava ali dando sem eu nem precisar pedir.
Quanto mais aquele homem faria por mim?
Eu soltei um riso nervoso, tentando disfarçar a vontade de abraçá-lo e
gritar mil agradecimentos.
— Isso é um monte de ordens, e eu discutiria à tarde toda se não
estivesse morrendo de sono. Vou aproveitar que Cody dormiu e tirar um
cochilo. Mais alguma coisa para proibir, chefe?
Minha pergunta foi cheia de sarcasmo. A última coisa que queria era
que Cobain percebesse como me desestabilizou com sua prontidão para tudo
que se tratava de nossos cuidados. Mas ele me surpreendeu ao responder:
— Sim.
— E o que é?
— Não toque o piano.
Franzi a testa.
— Isso é algum trauma de infância? Tipo Cristian Grey?
— Quem?
— Cinquenta Tons de Cinza.
— Não faço ideia do que seja isso.
— É um filme baseado em uma trilogia incrível de uma autora
internacional.
— Não, nada a ver com isso. Haverá um trauma se você o tocar.
Estou proibindo pela segurança dos meus tímpanos.
Eu deveria estar ofendida, mas a maior gargalhada de choque
explodiu para fora.
— Eu não sou ruim!
— Não, é péssima.
— Mas... eu sempre achei que tocava bem!
— Não sei quem ou o que te fez pensar assim, mas eu juro que depois
de ouvi-la tocar eu desejei ser surdo.
Ouvia algo diferente em sua voz, como se ele estivesse brincando e ri
mais ainda. Tudo bem, eu sabia que não era exatamente boa com
instrumentos, meu talento estava concentrado todo na dança e isso estava
bem para mim. E era melhor ainda que eu não ligasse para a sinceridade
grosseira de Cobain, porque começar a viver com ele seria um longo tempo
aturando aquilo.
Ainda mais se eu fosse rir de cada maldita coisa que ele dissesse.
Seria pelo menos um pouco de humor nas horas vagas.
— Cobain, se vamos ficar aqui, então seremos como... amigos?
— Não.
— Então...
— Eu não sei a denominação para duas pessoas morando juntas e
uma criança no meio. Quer dizer, eu vou estar a dois andares de distância,
não é como se fôssemos nos ver toda hora.
— Ok — concordei após alguns segundos, com o lábio preso entre os
dentes e a cabeça girando mil voltas na nossa atual situação. — Colegas de
quarto, eu acho.
— Me faz lembrar da faculdade, quando eu dividi um apartamento
durante um ano com três caras.
— Você não podia ter o seu próprio?
Ele demorou a responder, até pensei que não fosse, mas enfim falou:
— Sim, podia. Mas eu queria ter a experiência real da coisa. Sentir na
pele o que era estar na faculdade, não só ir e passar por essa etapa sabendo
que se tudo desse errado eu tinha o nome da minha família para conseguir
algo depois.
Minhas sobrancelhas ergueram em surpresa e eu troquei o braço que
segurava o peso de Cody. Ele estava muito gordinho.
— Eu não teria imaginado isso.
Mais uma coisa que nos fazia diferentes. Quando eu tinha dinheiro e
um nome, nunca me importei de usá-los. Meus pais estavam sempre lá para
fazer o que eu queria, material e financeiramente falando. Enquanto Cobain
escolhia lutar suas próprias batalhas e seguia seu próprio caminho. Embora
minha curiosidade fosse enorme e quisesse enchê-lo de perguntas, eu sabia
por experiência própria que quando ele começava a ser muito questionado, já
se afastava.
Falar não era muito sua praia, falar de si mesmo pior ainda.
— Certo, então... chefe e funcionária vivendo sobre o mesmo teto?
— perguntei. — Não, espere. Chefe, funcionária e um bebê.
— Não vamos rotular, é apenas por um tempo.
Sua voz era baixa, e o reforço de que seria temporário caiu em meu
estômago causando um incômodo que eu não entendia. Mas mantive o
sorriso no rosto quando me ergui com dificuldade, ainda carregando Cody.
— Então... amigos não rotulados por tempo definido.
— Sem conversar sobre merdas profundas e sem se intrometer.
— Estranho, já que você é o único que sempre se intromete.
— Estamos empatados, já que você é aquela que gosta de falar de
merdas profundas.
Eu teria revirado os olhos para ele.
— Ah, e Cobain? Pare de falar “merda”, porque se essa for a próxima
palavra que meu filho aprender, vou tocar piano para você o resto das nossas
vidas.
Dei risada, porque era para ser uma piada, mas ele ficou
completamente silencioso e me acompanhou até meu quarto temporário,
apenas resmungando sobre a enfermeira que chegaria em breve. Eu não
entendi nada. Tateei a parede até chegar a cama, coloquei Cody nela e o
abracei deitando também.
Mas então, pensando um pouco, me toquei sobre o exato momento
em que ferrei a leveza das coisas.
Eu disse que faria algo pelo resto da vida, quando ele já havia
deixado claro que era temporário.
Capítulo 27
"...eu acho que estou caindo
Segurando em tudo que eu acho que é seguro
e eu estou tentando escapar
Eu gritei quando ouvi o trovão
Mas o que me restou foi um último suspiro
E com ele, me deixe dizer
Olhos tristes me seguem
Mas eu ainda acredito que tenha restado algo para mim
Então, por favor, venha ficar comigo
Porque eu ainda acredito que tenha algo para mim e para você"
creed, one last breath
(..........)
— Bom dia.
Minhas costas tencionaram ao ouvir Cobain, e logo depois, um banco
arrastou pela cozinha.
— Bom dia — respondi sem muita animação, ainda um pouco
envergonhada pelos acontecimentos da tarde anterior.
Cobain se manteve em silêncio, mas eu podia ouvi-lo se mexendo
pela cozinha e depois comendo de frente para nós. Cody estava ocupado com
seu cereal, vez ou outra ele ria e eu me perguntei se Cobain se aproveitava
que eu não podia ver para fazer gracinhas. Não parei para pensar sobre os
prós e contras de nós três convivendo juntos, e a proximidade que ele
começaria a criar com Cody.
— Não, garoto. Eu não quero. Coma sua comida.
Cody parou de bater sua colher e voltou a resmungar e comer.
Solange havia nos ajudado a preparar o café da manhã, na verdade
ela praticamente fez tudo. Eu acreditava que ela ainda estava um pouco
chocada tanto por minha reação, quanto pela de seu chefe. Me desculpei e
disse a ela que não estava acostumada a não acordar com meu filho ao meu
lado, ela garantiu que entendia, mas eu ainda me senti uma doida prestes a
pirar novamente a qualquer outro momento.
— O que pretende fazer hoje? — perguntou, fazendo-me bufar.
— Bem, eu não sei. Preciso checar minha agenda movimentada
primeiro.
— Sua mãe está bem-humorada nessa manhã, garoto. Talvez ela não
se importe se eu me sentar do seu lado e alimentá-lo, já que tem mais cereal
na bancada da sua cadeirinha do que em sua boca.
Céus.
— Não me importo, ele sempre faz uma bagunça. Geralmente eu
posso olhar e controlar, mas bem... você sabe. Hoje isso não é possível.
— Sem problemas, farei isso.
Uma cadeira arrastou, então Cody bateu palmas. Eu sorri.
— É terrível não saber se ele está se divertindo ou pedindo socorro.
— Ora, não me ofenda, Danielle. Esse cara está sorrindo como se eu
fosse uma árvore de Natal exclusivamente dele.
— Isso seria um bom motivo para ele sorrir, já que nunca viu uma.
— Como?
— Mari Louise e eu não comemoramos o Natal. — Dei de ombros.
— Quer dizer, nada contra. Só ficamos nós três juntos e jantamos. É um dia
comum como qualquer outro.
— Sem enfeites, sem árvore e os presentes?
Sua voz tinha um tom desacreditado.
— Nops, nada disso. Você comemora?
— Estou com a minha família quando isso acontece, então
basicamente toda a tradição está presente.
Eu assenti e tateei a bancada atrás do copo, terminando meu suco.
Cobain não parecia bem alguém que comemoraria o Natal, mas ele sempre
tinha uma surpresa sobre si mesmo que me chocava, aquela foi só mais uma.
O Natal, mesmo em Minas Gerais, sempre foi algo bem distante.
Meus pais faziam um jantar em casa, que era preenchido por assuntos de
negócios e convidados de alto padrão. Todos chatos, tediosos e com toda a
certeza nunca compareciam para comemorar realmente a data. Eu invejava as
ceias em família, nas quais tinha realmente o amor que aquela festividade
pedia. O Natal perdeu o brilho, principalmente com a memória do último em
que estive na minha cidade.
Eu queria que Cody conhecesse o verdadeiro sentido do Natal, mas
temia nunca poder proporcionar um incrível para ele. Se pudesse, queria que
ficasse para sempre em sua memória. Que sempre quando pensasse no dia, o
incluísse em sua lista de dias preferidos.
— Você não precisa trabalhar? — perguntei, afim de mudar de
assunto.
— Eu trabalho aqui.
— Mamama!
— O que foi, bebê? Mama está aqui. O que houve, Cobain?
— Nada. Ele só está sendo um espertinho. Calma, amigo. Não
queremos manchar sua honra derrubando leite por toda a roupa, não é?
— Da-da-da-da-da.
Meu coração pulou um pouco mais rápido e eu decidi que sim,
definitivamente aquele homem ficando próximo de Cody era um problema.
Não que eu fosse evitar, porque meu filho merecia ser coberto de pessoas que
o amassem, mas precisava me proteger de focar demais em como aquele
grosseirão se tornava um fofo perto do meu bebê. Cobain estava me dando
um espaço, onde o máximo que cresceria seria uma possível amizade. Eu
tinha que entender isso e continuar tirando dos pensamentos qualquer outra
esperança.
Perder outra pessoa próxima não era meu objetivo.
— Então, você trabalha aqui. Como?
— Hum, sim. No escritório.
Compondo?
Cuidando da Conelly?
Como você cuida de uma companhia de dança gigante à distância?
O que te fez comprar a companhia?
Você dança?
Todas as questões me passaram pela cabeça. Queria perguntar, mas
tinha a sensação de que com Cobain era necessário ir devagar. Bombardeá-lo
de perguntas sempre o fazia se afastar, e no momento, eu queria que se
sentisse confortável de falar comigo, e não pressionado.
— Legal. Tipo um CEO, hein? — brinquei, mas só quando ouvi
minhas palavras percebi como pareci sem noção.
— Algo assim — resmungou. — Seu fisioterapeuta começa hoje.
A mudança bruta de assunto quase me fez rir. Aquilo era Cobain
James decidindo o rumo de nossas conversas. Mas eu não podia reclamar, já
que em comparação a antes, ele estava milagrosamente muito mais paciente.
Se tratando de Cobain, era um monte de paciência.
— Sério?
— Sim. Ele esteve com a última seleção feminina de vôlei, então
acredito que vai dar tudo certo.
— O que disse?
— Ele é bem profissional, sabe o que está fazendo. Vai ficar tudo
bem.
— Não duvido disso, só não estou raciocinando quem você contratou
para me ajudar com exercícios em casa.
— Não é nada demais. Ele é um conhecido.
Jesus.
O fisioterapeuta da seleção de vôlei?! Cobain definitivamente não
entrava em campo para brincar.
— É demais, sim!
— Você vai reclamar sobre isso?
— Não vim para ser um incômodo, Cobain. Você já fez tanto e...
Ele suspirou.
— Apenas deixe o cara fazer o serviço dele.
— Mas...
— Sem “mas”. Cody precisa da mãe firme e forte. Eu não vou poupar
nada para que esse garoto a tenha.
Meus olhos molharam com lágrimas.
Sentados na mesa daquela casa enorme, Cobain James me fez
suspirar.
Ele nem percebeu, mas naquele momento um pedaço do meu coração
foi arrancado.
E estava bem ali, nas mãos dele.
(..........)
Igor Telles.
Eu olhava para ele e me lembrava de todas às vezes que assisti aos
jogos.
Deus, eu queria pedir um autógrafo, uma foto e até mesmo o número
de algumas das jogadoras que arrasaram meu coração me fazendo torcer.
Mas me controlei, e logo depois de Cobain ter nos apresentado e
começarmos a sessão, meu coração de fã se acalmou um pouco. Eu já tinha
passado por duas fisioterapeutas, então o processo não era estranho para mim.
Eu já sabia a maioria das perguntas que Igor faria, tinha as respostas na ponta
da língua e também já imaginava quais exercícios nós faríamos. O que me
surpreendeu, na verdade, foi a forma como ele trabalhou.
Para mim era difícil confiar, principalmente sem a visão. Não saber o
que ele estava fazendo e qual seu próximo passo e confiar que quando ficasse
sozinha com ele, seria totalmente profissional.
Minhas duas outras fisioterapeutas foram éticas, responsáveis e
profissionais. Tinham o toque de sensibilidade para lidar comigo, mas talvez
pelo desgaste do trabalho e todos os pacientes que vieram antes, e que ainda
viriam depois de mim, a relação não crescia além do esperado.
Mas Igor foi meio surreal. Desde o primeiro momento me fez sentir
confortável. Ele deu um boa-tarde e fez uma piada que apenas eu ri, e quando
ficamos apenas nós dois me confessou que Cobain era sempre mal-
humorado.
Nós começamos com os exercícios no chão, com um daqueles
colchonetes. Primeiro, Igor ajudou a levantar uma perna e um braço, testando
as flexões e a amplitude dos movimentos, fazendo pausas de alguns segundos
entre os lados do meu corpo. Eu percebia que meu movimento direito era
quase completo, enquanto o esquerdo estava comprometido. Em diversas
partes da sessão, tive a mesma impressão e ele também.
O segundo foi a fita nos calcanhares. Ele segurava meus braços na
frente, e eu esticava uma perna, depois a outra, tendo as mesmas dificuldades
de quando deitada.
Mal chegamos ao terceiro e eu já estava cansada.
— Vamos trabalhar sua coordenação motora, Dani. Posso chamá-la
assim?
— Claro.
— Ótimo, vamos lá. Quero ver se consegue colocar o calcanhar
direito no joelho esquerdo.
Uma coisa tão absurdamente simples levou várias tentativas.
Eu me desequilibrava e voltava o pé no chão, e tremendo, depois de
vários minutos consegui alcançar a meta. Porém meu pé não permaneceu no
alto por muito tempo. Diferente de quando fui colocar o calcanhar esquerdo
no joelho direito. O máximo que meu pé alcançou foi a canela.
— Certo, vamos trabalhar seu lado esquerdo em breve. Criaremos
uma rotina, ok? Será intensa, mas vamos respeitar todos os limites do seu
corpo em busca da recuperação.
Eu não respondi. Era desanimador não conseguir fazer algo tão fácil.
— Agora abra seus braços. Em linha reta, dobre o cotovelo e leve o
dedo indicador até a ponta do nariz.
Aos abrir os braços, vacilei para o lado, por conta da falta de
equilíbrio e Igor me manteve firme outra vez.
Braço direito, ok.
Braço esquerdo, abaixando e levantando, totalmente instável para
chegar até o nariz. O braço caía como uma geleia impossibilitada de ficar
firme e só consegui tocar o nariz quando Igor segurou meu antebraço e
ajudou.
— Vamos testar seu desequilíbrio estático. — Ele caminhou alguns
passos comigo. — Bem aqui. Agora estique os braços para a frente e fique
parada.
— Eu vou cair.
— Estou bem aqui, não se preocupe.
Eu fiz como pediu e balancei em meus pés menos de dez segundos
depois.
— Certo, agora dinâmico. Estique os braços e tente caminhar, estou
bem aqui.
Eu avancei um passo à frente e desequilibrei para o lado. Igor me
segurou.
— Calma, Dani. Vamos devagar, passos lentos. Um pé depois do
outro.
Dei dois passos antes de sair da linha outra vez.
— Vamos fazer isso quando sua visão voltar e ver o que acontece.
— Você acha que ela volta?
Ele segurou meu braço e andamos antes dos meus joelhos encostarem
em algum lugar.
— É uma cadeira, sente-se.
— Acabamos?
— Apenas mais dois e sim, por hoje acabamos.
— Ok. Igor, e minha visão, o que você acha?
— Se há uma coisa que sabemos sobre a esclerose, é que não
sabemos nada. Um sim ou um não, não depende de nós, apenas dela. Não
existe nenhuma certeza. Mas é claro que devemos torcer e esperar pela
melhora. Vamos fazer o tratamento como se deve, e acreditar. Mais do que eu
ou Cobain acreditando em sua recuperação, você tem que crer.
Eu suspirei, sabia que na questão de não existir certezas, ele estava
certo.
— Ok.
— Agora, aqui. Diga-me caso sinta algo.
— Sinto algo na canela.
— Qual?
— Na direita.
— Certo, e agora?
— Não, nada.
— Passei um algodão pela direita, depois na esquerda. Na esquerda
você não sentiu.
— O que é isso?
— Vamos ver como está sua sensibilidade. Sente algo?
—Sim, hum, bem leve na esquerda.
— É uma caneta. E agora?
— Sinto mais na direita agora.
— Muito bem.
O ouvi mexendo em alguma coisa e recostei na cadeira.
— Se eu disser que desisto, você me apoia a parar?
— Te apoio a tomar uma água e termos alguns minutos de descanso.
Eu gemi.
— Meu Deus... eu sinto que vou morrer aqui mesmo, nesse momento.
Ele riu.
— Eu sinto que vou morrer quando exijo demais do meu corpo,
também, mas sei que é só aquele sentimento que quer me derrubar. É
psicológico.
— Você é fisioterapeuta e essa foi a coisa mais contraditória que
disse. Você não deveria me incentivar a me exercitar o dia todo?
— O corpo tem 206 ossos, 650 músculos e mais de 50 bilhões de
células. Levantar tudo isso da cama de uma só vez é complicado.
Minha risada o fez rir mais ainda.
— Péssima hora para piadas da profissão.
— Eu sei. Mas vi essa passando pelo Facebook ontem e não via a
hora de encaixá-la em alguma conversa.
Quando meu riso acalmou, ele segurou minhas costas enquanto eu
segurei seus ombros e me ajudou a ficar de pé, levando-me para o sofá.
— Você foi muito bem, Danielle. Estou impressionado.
Eu bufei.
— Não se sinta obrigado a ficar me dizendo essas coisas. Acredite
em mim, já aceitei que a condenação chegou para mim.
Fui surpreendida quando suas mãos seguraram as minhas, e a voz
dele se tornou mais leve.
— Você é uma paciente, ok. Mas precisa compreender que a doença
não é o centro da sua vida. Tem seu emprego, seus amigos, seu filho e uma
vida inteira pela frente. Você é maior que a EM. Ter fé nisso é fundamental
para que o tratamento dê resultado.
Eu funguei, sensibilizada com suas palavras, e assenti.
— Obrigada.
— Acho que já terminaram por hoje. — Pulei no lugar ao ouvir a voz
de Cobain e Igor soltou minhas mãos, se afastando, enquanto outros passos
ficaram mais próximos. De Cobain.
— Obrigada, Telles. Vou conversar com Danielle e ligo para você.
Vamos ao meu escritório acertar os detalhes de hoje.
— Não se preocupe, James. A de hoje é por minha conta. Até mais,
amigo. E Dani... fique bem. Lembre-se do que eu disse.
Eu sorri.
— Vou me lembrar. Até mais.
Depois de ouvi-lo ir para longe, abri a boca para agradecer, mas
Cobain falou primeiro.
— O que você vai lembrar?
— De ter esperança — sussurrei. — De... começar a acreditar.
Ele não disse nada por vários minutos.
— Cobain? — Nenhuma resposta. — Cobain?
Suspirei, balançando a cabeça ao perceber que ele deve ter saído
enquanto eu divagava, sem se dar ao trabalho de me responder.
Mas logo o sorriso voltou aos meus lábios novamente.
Grata por perceber que não, minha doença não era o centro da minha vida.
Capítulo 29
"...me pergunto como podemos sobreviver a isso
Mas se no final estiver com você
Eu aceitarei a chance, vou correr o risco
Ainda que machuque meu coração
Estarei bem aqui esperando por você"
richard marx, right here waiting
(..........)
(..........)
(..........)
— Fazem poucos dias que você está aqui e já te vi repetir esse filme
no mínimo 5 vezes.
— Seis — rebati, fungando e jogando mais pipoca na boca.
Eu assisti muitos filmes durante minha vida inteira. Constantemente.
Todo o tempo. Estava no meu top coisas favoritas junto com livros, músicas,
meu filho e o pão de queijo que só Minas Gerais sabia fazer. Eu carregava
comigo uma filosofia de que, se algum dia algum grande diretor decidisse
criar um filme que unisse tudo isso em um só, seria meu filme preferido. Mas
enquanto nenhum grande cineasta apostava naquela ideia, eu continuava
firme de que o melhor filme era O Diário de Uma Paixão.
Tudo bem, havia um grande empate com Amor Além da Vida e
Titanic. Mas O Diário de Uma Paixão... ele arrebatava meu coração em cada
uma das vezes.
— Muitas vezes para repetir um único filme.
Eu queria revirar os olhos para Cobain a ponto de eles grudarem no
teto.
— Bem, eu gosto dele. — Parei de comer e virei na direção de sua
voz. — E você me disse que não tinha TV a cabo.
— Eu não tinha.
— Mas você tem. Estou vendo no canal a cabo.
— Eu assinei antes de você vir. Não são todas as pessoas que estão
acostumados a não assistir TV, eu não sabia bem do que você gostava, então
pedi todo pacote. Mas se soubesse, teria comprado apenas o DVD desse
filme.
— Você pode sempre perguntar.
— Perguntar o quê?
— Sobre os meus gostos. — Dei de ombros.
— Por que você acha que eu quero saber dos seus gostos?
E o ogro estava de volta.
— Porque é uma forma de nos conhecermos.
— Eu já conheço o suficiente. Seu nome é Danielle, você é uma
jovem cuidando do seu filho pequeno, tem um péssimo gosto para leitura e
aparentemente para filmes também.
— Não sei porque, mas imaginei que você diria algo como isso.
Muito previsível, Cobain. Eu poderia ficar aqui debatendo os mil motivos
para repetir esse filme, mas dado ao fato de que não posso realmente vê-lo,
estou apenas escutando.
Ele se aproximou. Com o tempo e a falta de visão, comecei a
conseguir perceber as coisas muito melhor através dos sons. E os pés dele
batiam descalços no carpete.
— Sendo assim, não seria mais fácil ir no YouTube ouvir as
músicas?
— Não. Eu gosto da companhia das vozes, do instrumental que toca
cada cena, do farfalhar de cada simples movimento dos personagens. Eu
gosto de tudo o que envolve esse filme. Satisfeito?
— Não, estou começando a me preocupar com sua sanidade.
Entretanto, vou admitir uma coisa, mas vou esquecer que disse isso no
minuto seguinte e qualquer coisa que você disser sobre isso, vou te
desmentir.
— Ok, o que é?
— As composições do piano são incrivelmente boas. — Suspirou.
Eu dei risada com sua confissão, o pegando no flagra mesmo sem
querer.
— Você estava aqui ouvindo o tempo todo, não estava?
— Talvez. Mas... novamente, isso é algo que nunca admitirei.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. Diário de Uma Paixão era
um dos filmes que bem no começo da minha admiração por livros, roubou
meu coração e agora o pensamento de não o assistir pelo menos uma vez na
semana me deixava em pânico.
Lembrava-me do quão sensível eu podia ser.
As lágrimas do final era um alívio como a chuva em meio à seca.
— Diga-me — pedi a ele. — Qual seu filme favorito?
— Eu não tenho. Filmes são uma perda de tempo.
— Essa é uma das maiores bobagens que eu já ouvi na vida.
— A lista é grande?
Eu bufei.
— Enorme, e grande parte dela contém palavras de um pensador
chamado Cobain James.
— Muito engraçado, Daniele. Muito madura.
— Obrigada. Você sabe como dizem... Mantenha sempre acordada a
criança dentro de si. Não posso evitar, às vezes ela escapa e supera o “eu”
adulta.
A parte final do filme chegou, quando finalmente a pessoa que está
assistindo o filme pela primeira vez consegue perceber que o casal da
história, na verdade, também são os velhinhos.
Noah e Allie.
— Meu Deus, Danielle. Você vai alagar a casa.
Eu funguei.
— Cale a boca. É perfeito!
— Ela tem alzheimer?
— Como percebeu?
— Ela não se lembra da história deles, fica bem claro.
— Sim. — Chorei mais um pouco. — Como você é insensível! Como
pode não estar chorando?
— O Curioso Caso de Benjamin Button.
— O quê?
— Meu filme favorito. O Curioso Caso de Benjamin Button.
— Por quê?
— Porque me fez pensar em como a vida é curta. Você entende? Nós
estamos aqui sentados, e o relógio não para. Ele nunca para. Há um monte de
coisas que nós podemos querer fazer e não fazemos. Há pessoas que entram e
saem dos nossos caminhos e o relógio continua andando. Até que tudo o que
sobra é... nada.
— Isso não é verdade.
— É claro que é. Benjamin Button perde pessoas durante toda a sua
vida. Ele sabe que sua existência está fadada à perda.
— Sim, Cobain. Mas é inspirador que ainda assim ele insista em
amar mesmo sabendo que vai perder mais tarde.
— Inspirador? É trágico. É como nesse filme que você repete
incontáveis vezes. Não importa o que esse cara faça, a esposa dele nunca vai
se lembrar. Ele pode ler para ela quantas vezes quiser, mas ela nunca vai
saber quem ele foi, quem ele é.
— No coração ela se lembra.
— O coração dela não é o mais importante nessa situação. Não é o
coração que a faz lembrar, é o cérebro. Esse amor deles? Acabou no
momento em que ela ficou doente.
Filho. Da. Puta.
Ele realmente disse aquilo?
Eu coloquei a pipoca de lado e levantei, irritada. Tateei atrás da
bengala, mas não encontrei.
Eu realmente me apaixonei por esse cara?
— Onde você vai?
— Para o meu quarto.
— Não quer mais falar sobre o filme?
— Não, Cobain. Eu não quero!
— Tudo bem, ajudo você.
“Esse amor deles? Acabou no momento em que ela ficou doente.”
— Não quero sua ajuda! Quer saber? Eu cansei de falar com você.
Cansei de você e vou dormir mais cedo hoje.
— É sábado à tarde.
— Quem se importa? Eu estou com sono!
Cobain riu sem nenhum humor.
— Quando finalmente conseguimos conversar, você explode. O que
te deu?
— Conversar? Se você não fosse um ogro grosseiro, essa conversa
teria durado!
— Eu sou um ogro grosseiro?
“Não é o coração que a faz lembrar, é o cérebro.”
— Sim! E quer saber? Eu realmente não sei como consigo viver na
mesma casa que você. Por alguns momentos, você tem um lapso de calma e
eu esqueço como é estúpido, mas em um minuto você abre a boca e me faz
lembrar.
— E eu tinha esquecido como você me dá dor de cabeça.
— Eu não sou a errada aqui, você é! Eu duvido que haja uma mulher
no mundo que tenha paciência de ficar no mesmo ambiente que você por uma
hora, sem começar a criar planos de homicídio.
Nós ficamos em silêncio.
Eu bufando.
Ele totalmente quieto.
Eu gritando e ele nem sequer levantou a voz.
Por que ele estava tão calmo?
— Por isso você está sozinho, é um rabugento. Nenhuma mulher
aguenta por muito tempo. É isso!
— Você sabe muito bem das coisas, não é?
— Sobre você e sua incapacidade de ser social? Sei!
— Muito bem, Danielle. Vamos ver se nenhuma mulher me aguenta
ou se o problema é você!
Ele andou pela sala e o ouvi pegando o telefone, depois praticamente
amassando os números com tamanha fúria.
— Sheila? Sim, é James.
Eu dei um passo à frente. Meus olhos arregalaram, mesmo que eu não
enxergasse nada.
— É o telefone da minha casa. Sim, anote o número. Ouça, você quer
ir jantar? Ótimo, estou passando aí. Sairei de casa agora. Tudo bem. Até.
O telefone bateu na base, fazendo-me pular, então em passos rápidos,
ele se aproximou.
— Vou chamar Solange, porque o ogro, grosseiro e rabugento tem
um jantar para ir agora, porra —rosnou.
Eu abri a boca para falar, mas fechei.
Meu coração batia como se eu tivesse acabado de correr uma
maratona, e assim que ele se afastou, eu quis pegar todas as minhas palavras
de volta.
— SOLANGE!
Seu grito foi a última coisa que ouvi antes de a porta bater fechada.
Realmente bater.
Ele estava irritado.
Quer merda eu fiz?
Capítulo 32
"...querida, você é tudo que eu quero
Quase não consigo acreditar
Que estamos no paraíso"
bryan adams, heaven
(..........)
(..........)
Solange me abraçou, tão chorosa quanto eu, e não saiu do meu lado
depois de eu tomar um banho.
— Você precisa parar de chorar, Solange. Se não eu não paro,
também.
— Eu me sinto como se estivesse cuidando de você e o seu bebê há
anos, e você finalmente tivesse crescido. Não é estranho? Porque só nos
conhecemos há algumas semanas.
Eu a abracei.
— Não é estranho. Alguns corações se encontram por aí e
simplesmente se reconhecem. É tão bom finalmente poder ver seu rosto, quer
dizer, quase.
— Logo você verá, Dani. Vamos continuar tendo fé. Como diz minha
filha Rafaela, Deus é pai, não é padrasto. Ele sabe tudo o que faz.
— Eu sei.
Calcei o chinelo e abri a porta, lhe dando um sorriso antes de sair.
— Eles estão no jardim! — A ouvi gritar e fui direto para lá.
Foi um sopro de ar puro quando pude ver o azul do céu e a grama
verde no chão. E um pouco mais distante, duas figuras de pé.
— Ato! — Cody gritou com as mãos no ar.
— Pombo.
— Ato!
— Não, garoto. Não é um pato.
— Ato! — Cody repetiu, batendo os pés no chão.
— Teimoso como a sua mãe. São pombos — Cobain corrigiu, então
segurou a mão de Cody e os dois correram na direção dos pombos, fazendo-
os voar para longe.
Ouvi a gargalhada do meu filho e ele deu pequenos pulos de
animação, depois fez uma dança engraçada que eu precisei dar risada, o que
atraiu a atenção de ambos. Cobain soltou Cody, que correu em minha
direção. Me ajoelhei, abraçando meu pequeno homem, e segurei seu rosto
logo depois, observando o que podia ver.
— Mama?
— Ei você, meu bem. — Acariciei seus cabelos que estavam grandes
agora, mantendo-o junto a mim em um abraço apertado.
Ouvi Cobain se aproximar, mas não olhei para cima.
— Parece que ele cresceu tanto.
— É normal você pensar assim, mas foram só algumas semanas. A
única coisa que cresceu foi o cabelo. Nós podemos cortar quando você
quiser.
Nós.
Nós podemos.
Se ele soubesse o que aquela simples junção de palavras me fazia
sentir...
— Você está nos vendo. — Ele agachou atrás de Cody, e eu vi sua
boca se formar em um sorriso. Seu cabelo estava um pouco maior, assim
como a barba, que devia estar escondendo boa parte de suas sardas agora.
Mas os olhos verdes continuavam ali. Eu não via a hora de voltar a admirar
perfeitamente bem aquelas íris bonitas.
— Sim. É tudo um borrão, mas eu já chorei tanto apenas essa manhã
quando percebi minha visão infinitamente melhor, que só posso agradecer,
mesmo sem ver cem por cento.
Ele segurou minha mão e a levou até seus lábios, beijando levemente.
— Não posso dizer como estou feliz por você, Danielle.
— Eu sei que está. Obrigada.
— Mã!
— Sim, meu amor? O que foi?
Cody apontou para o céu.
— Ato!
Cobain suspirou.
— Pombos.
— Você realmente acha que um bebê vai te entender?
— Garoto, olhe para mim. Pombos. Diga isso. Pombos.
Cody ficou em silêncio. Eu revirei os olhos.
— Ombus — meu filho repetiu e Cobain o pegou, girando-o em volta
de si mesmo.
— Isso, garoto. Eu sabia que a convivência traria algo de incrível a
você.
— Convencido.
Ele me devolveu Cody.
— Espere, espere aqui. Tenho algo que você precisa ver.
Ele entrou para a casa e eu me sentei na grama para esperar. Voltando
pouco depois, Cobain colocou a mochila de Cody ao seu lado e tirou a
agenda de dentro, me entregando uma folha.
Eu peguei e trouxe para perto do rosto, tentando ver algo.
— Não consigo ver, Cobain. Só vejo riscos coloridos.
— Sim, é isso. É um desenho que veio da escola.
— Oh, meu Deus! Você trouxe seu primeiro trabalho escolar para a
casa, bebê?
Ele riu, se soltou do meu abraço e correu pelo jardim, voltando a
brincar com seus carrinhos e legos que o esperavam.
— Ele deve pensar o tempo todo “minha mãe me sufoca”.
— Ah, cale a boca. Ele ama ser beijado e abraçado.
— Todos os bebês amam. Até que fazem quinze e amam mais ainda,
mas não pelas mães.
— Ai, que horror! Pare. Eu não quero pensar sobre o meu bebê sendo
beijado por garotas.
— Ele beijará muitas garotas, eu garanto.
— Eu vou garantir que ele beije apenas uma e ela será a mulher com
quem ele ficará a vida inteira.
Cobain bufou.
Eu sabia que isso era impossível, eu estava sendo absurda, mas meu
coração de mãe não queria pensar no meu bebezinho se aventurando por aí
quando isso ainda estava tão longe de acontecer.
— E como ele encontrará essa garota, sem beijar algumas para fazer
o teste?
— Ele vai sentir.
Cobain riu. Eu sorri.
— Estou ansioso para ver a adolescência desse garoto.
Meu sorriso escorregou um pouco, conforme a ansiedade e o presente
medo do futuro se instalaram.
— Talvez você nem o veja nessa idade.
Depois de alguns segundos de silêncio, Cobain falou novamente.
— Mesmo se eu não estivesse na sua vida, eu estaria na dele,
Danielle.
Eu engoli em seco.
— Você promete? Promete que não importa o que aconteça, não vai
abandoná-lo?
— Claro que sim. Quem mais ensinaria a ele quais são os bons livros
e as boas músicas?
— A mãe dele.
— Se depender da mãe dele, ele terá pôsteres de One Direction em
seu quarto.
Dei um leve empurrão em seu peito.
— One Direction tem músicas incríveis, pare de ser um velho
preconceituoso.
Sua cabeça inclinou para o lado.
— Eles não têm alguma música sobre beijos?
— Algumas — sussurrei.
Cobain passou uma mexa do meu cabelo em volta de seu dedo
indicador e a usou como uma corda, puxando minha cabeça para perto da
dele. Quando sua mão segurou meu queixo...
— Oh! Vejo que atrapalhei!
Ele se afastou, levantando-se e estendendo a mão para me ajudar.
— Posso ajudá-la? — Cobain perguntou à mulher que acabara de
entrar.
— Solange me deixou entrar, ela já me conhece. Estive aqui uns dias
atrás, lembra-se, Danielle?
— Marilyn?
— Isso! Eu vim conversar e trouxe também um chá.
— Espere — ele continuou, segurando meu cotovelo. — Por que
Solange lhe deixou entrar? Eu não a conheço.
— Sou uma amiga de Danielle, vamos tomar um chá.
— Eu não me lembro de ter convidado a senhora para a minha casa.
— Ah, rapaz, você não precisa fazer isso. Eu viria ver minha vizinha
de qualquer jeito.
Ela segurou minha mão e bateu sua bengala no joelho dele, soltando
um pedido de desculpas risonho depois.
Eu ri, porque Marilyn não se importou nem um pouco com sua
grosseria, e porque percebi que sua veia gentil era toda para mim, quando o
resto do mundo tinha o acesso que eu tinha quando tudo começou: o
grosseirão insensível.
Me sentando na mesa do jardim com Marilyn, observei Cobain entrar
na casa com meu filho no colo e respirei.
Absorvi o falatório atropelado da velha mulher. Vi seu rosto
desfocado, ainda sem conseguir enxergá-la como era realmente.
Principalmente porque usava um chapéu e um óculos escuro grande demais.
E senti meu coração cheio. Imersa em Cobain James.
Ele era um salto no escuro. A única escuridão onde me senti segura
para mergulhar. E nem me importei se me afogaria no final.
Capítulo 34
"...eu sinto falta de metade de mim quando estamos separados
Agora você me conhece
Apenas para seus olhos
Eu tenho cicatrizes mesmo que nem sempre possam ser vistas
E a dor fica difícil, mas agora você está aqui e eu não sinto nada
Preste atenção, espero que você ouça porque eu abaixei minha guarda
Agora estou completamente indefeso
Apenas para seus olhos eu mostrarei meu coração
Para quando estiver sozinho e esquecer quem você é"
one direction, if i could fly
(..........)
(..........)
(..........)
(..........)
(..........)
(..........)
O teto do meu quarto naquela tarde parecia propício para eu deitar ali
para sempre e assisti-lo. Era vazio e totalmente neutro. Tudo o que eu
precisava. Detalhes complicavam tudo, coisas demais ferravam tudo, e por
isso, eu queria o neutro.
Comecei a pensar na minha vida antes de Cobain.
Antes dos meus dias começarem a girar em torno do meu filho e dele.
Em como eu me deixei dominar por um sentimento estranho e que nem
conhecia. Em como nos envolvemos. As lágrimas teimosas queriam sair, mas
eu as segurava com tudo de mim. Meu coração estava partido em mil
pedaços, mas eu os segurava nas mãos, tentando colocá-los juntos de volta.
Impossível.
Eu queria ser egoísta e pensar apenas em mim, mas a imagem de
Cobain ajoelhado chorando por sua... esposa... dominava meus pensamentos.
Se fechasse os olhos ainda conseguiria ouvir o grito. Poderia ver como se
estivesse lá, como ele se expos como nunca. Nem mesmo quando estávamos
na mesma sala eu o vi tão bem quanto hoje. E vi o pior lado.
O que sofre e que chora em silêncio. Que mente.
E eu estava entre querer cravar uma espada em seu coração e ao
mesmo tempo curar sua dor.
O amor é uma droga. E como todas, havia sempre os efeitos
colaterais. Cobain era uma maldita overdose, e eu nem sabia se existia
reabilitação quando se tratava dele.
Uma batida na minha porta fez minha cabeça levantar, ao mesmo
tempo que a voz desesperada de Mari Louise me chamou. Levantei e virei a
chave, dando de cara com o rosto pálido da minha melhor amiga.
— A porta — ela sussurrou, segurando meu braço. — Ele está na
porta.
Eu a puxei, levando-a para a sala para ter certeza que não tinha aberto
ainda.
— É Cobain. Não abra em hipótese alguma.
Os olhos pequenos da minha melhor amiga estavam arregalados
quando apertou mais meu braço.
— Não é ele — ela sussurrou, parecendo apavorada.
— E quem é?
Ela engoliu em seco e lançou um olhar quando a maçaneta girou, a
pessoa do outro lado forçando-a.
— Mali, o que foi?
Um murro seguido de várias batidas na madeira grossa nos fez pular.
— Vamos! Abra a merda da porta!
Robert.
Eu jamais confundiria ou esqueceria aquela voz.
E eu nunca estive tão aliviada em toda a minha vida por Cody estar
na escola.
— Não abra — sussurrei. — Fique quieta, Mali. Não diga nada.
— É o Felipe. Que droga — sussurrou de volta. — Me desculpe não
ter te ouvido, Dani. Se eu tivesse ido à polícia, ele não estaria aqui agora.
A fitei confusa.
— Felipe? Não, esse é o...
Nós duas pulamos para trás quando um estrondo veio da porta.
— Ele vai arrombar!
— Eu vou entrar de qualquer jeito, porra! Esse trabalho todo só está
me irritando mais! — ele gritou.
Mari Louise correu e pegou o interfone, chamando a portaria.
— Droga! Só chama. Aquele porteiro estúpido nunca fica lá quando a
gente precisa.
Eu estava travada no chão, meus pés parecendo estar grudados e
meus olhos nem piscando do movimento da porta.
— Dani. — Mali entrou na minha frente. — Corre para o quarto e se
esconde, eu vou tentar acalmá-lo enquanto você chama a polícia!
— Ele não vai te ouvir.
Por que ela estava se colocando em risco? Ela sabia o que ele tinha
feito comigo anos atrás, por que queria ficar e provar do mesmo?
— Eu o conheço bem, Dani, por favor, eu...
Ele se jogou contra a porta mais uma vez.
— Vagabunda! Abra a maldita porta, porra!
Mais uma vez.
— Dani! — Mari Louise gritou e eu vi em câmera lenta o rosto do
qual fugi e planejei nunca olhar novamente.
Os olhos me assombravam e os punhos cerrados que me davam
pesadelos.
Reagi.
Corri cegamente até a cozinha e abri a gaveta. Ouvi Mari Louise
gritando, e logo depois um barulho. Tateei entre os talheres e segurei o cabo
da faca, e quando me virei para frente, foi tarde. Sua mão segurou meu braço
e o bateu na parede, fazendo-me ofegar de dor e a faca cair no chão. Robert
inclinou a cabeça para o lado e analisou cada centímetro do meu rosto.
— Eu gostava mais quando você se comportava, querida.
Ele segurou meu rosto, apertando com força e me olhando
profundamente. Os olhos azuis brilhavam com uma fúria que eu presenciei
apenas uma vez e não queria estar perto nunca mais.
— Não pensei que te encontraria morando com uma prostituta. Você
era melhor que isso.
— Não fale assim dela.
Ele riu. O rosto perfeitamente esculpido se iluminou. Ele tinha uma
covinha na bochecha esquerda, exatamente a mesma no rosto de Cody. A
beleza enganava. Enganou a mim e a Mali. Eu lamentava cada uma das
mulheres que ele ainda ia machucar nessa vida.
— Você fugiu com meus filhos. Onde eles estão?
— Vai pro inferno.
Robert sorriu e encostou a testa na minha. Segurando meu rosto, ele
me bateu contra a parede, fazendo minhas costas arder em todos os cantos.
— Eu vi o menino. Ele é exatamente como o papai. Vamos, Dani, me
diga. Estão na escola? Onde você esconde a minha menininha?
A primeira lágrima caiu. Eu nem sabia se era de ódio ou tristeza.
Provavelmente os dois.
— Por que você usou Mari Louise?
— Porque ela é uma vadia fácil e você sabe que eu gosto de satisfazer
minhas necessidades antes de voltar pra você. Sempre foi assim.
— E eu ainda sou culpada por ir embora?
— Querida... — As mãos grandes e lisas, bem cuidadas, alisaram
meu rosto. Os olhos eram suaves naquele momento. Ele tinha uma
capacidade doentia de mudar em segundos. — Você foi embora porque eu
perdi um pouquinho o controle. Não foi culpa minha. Você fugiu, você me
privou dos nossos filhos e...
Robert olhou para cima e um sorriso torto cresceu em seu lábio.
Subitamente ele virou e segurou o braço de Mari Louise no alto. Tirando o
vaso de vidro da mão dela e rindo. Sua mão enrolou no meu pescoço e depois
no dela, a encostando na parede ao meu lado. Ele olhou para nós duas e
passou a língua pelos lábios.
— Ah, Mari Louise... embora você seja uma vadia, as portas da nossa
casa em Minas Gerais estarão sempre abertas. Tenho certeza que Dani não se
importaria de dividir o espaço. São melhores amigas, certo?
— Você é nojento — murmurei entredentes. — Eu te odeio.
— E eu te amo. Amo as duas.
Ele se aproximou e beijou minha boca, depois a de Mali, e nos soltou.
Robert arrumou o terno, ajeitando a gravata, então sorriu.
— Eu vim apenas para dar o ar da minha presença e deixar um
recado. Vou resolver as últimas pendências antes de voltarmos para Minas
Gerais. Tenho uma eleição para vencer e preciso da minha noiva recém
encontrada e dos meus filhos ao lado. Ah... e Danielle — O sorriso falso
sumiu, dando lugar a um rosto ameaçador —, é melhor que nenhuma das
coisas que você fez aqui cheguem até os ouvidos e olhos da nossa cidade.
Quando ele saiu, batendo a porta, um quadro pendurado na parede
caiu no chão, quebrando o vidro em vários pedaços.
Mari Louise veio lentamente em minha direção, os olhos tomados de
pavor.
— Eu nunca ia imaginar, Dani. Oh, meu Deus! Me perdoe!
Eu a puxei para um abraço e afaguei seus cabelos.
— Era exatamente o que ele queria. Nos desestabilizar, fazer com
que nós briguemos, mas isso não vai acontecer. A única coisa pela qual eu
estou com raiva em saber que vocês estiveram juntos é que ele te usou e
machucou. Você não merecia isso, Mali. Me perdoe.
Ela me olhou, parecia sem palavras.
— O que vamos fazer? Eu devia ter feito algo aqui dias atrás. Se eu
soubesse que foi ele quem fez aquilo com você, juro que...
— Mali, isso não é a questão. A gente ficar aqui debatendo o passado
não resolve nada.
— E o que vai resolver?
Meu instinto me dizia para arrumar minhas malas e fugir, msó que eu
não podia fazer isso. Estava com medo, mas fugir outra vez seria dizer a
Robert e aos meus pais que tinham controle sobre mim.
Eu fugi deles uma vez, mas não podia correr sempre que se
aproximassem a começassem a me ameaçar. Eu tinha um filho para cuidar, e
Cody dependia totalmente de mim. Ele já tinha uma vida ali e fazê-lo viver
nessa montanha russa tortuosa não era a saída.
Suspirei e fitei Mari Louise.
— Você fugiu do seu pai e eu dos meus. Mas nós não podemos fugir
para sempre.
Ela fungou, limpando os olhos.
— Então?
— Nós vamos ficar. E vamos lutar. Porque nenhum deles tem poder
sobre nós.
Capítulo 43
"...é como se as paredes estivessem desmoronando
Às vezes, sinto vontade de desistir
Mas eu não posso
Não está no meu sangue"
shawn mendes, in my blood
(..........)
(..........)
COBAIN JAMES
*"Cody vai ter a última apresentação escolar desse ano. A senhora está
superconvidada.”
(..........)
COBAIN JAMES
(..........)
(..........)
— Eu não sei cozinhar nada, isso aqui não vai dar certo — ele
reclamou, deixando a caixa de leite de lado.
— Você nem tentou!
— É a terceira tentativa.
— Mas a primeira saiu errado porque eu não coloquei a quantidade
certa de leite.
— E a segunda?
— O fogão estava com a temperatura errada.
Cobain riu.
— A temperatura é uma só, amor. Você vira o botão e ele funciona.
Quem faz a comida naquela casa?
— Na maioria das vezes, eu. Mari Louise gosta de fazer doces e a
parte chata da comida diária é comigo. Mas panqueca não é comida diária,
então... estou no meu direito de errar antes de acertar.
Ele me encarou como se eu não fizesse nenhum sentido e pegou meu
celular, olhando a receita que eu ditava para ele. Peguei as laranjas e sentei no
balcão, descascando para fazer o suco enquanto o observava tentar preparar
nossa refeição.
— Óleo ou manteiga... tanto faz, certo?
— Claro que não, siga a receita.
A testa dele estava franzida em concentração. Os braços fortes e os
músculos das costas contraíam a cada movimento, o cabelo solto acima dos
ombros largos e as sardas tão charmosas... O impedi propositalmente de
colocar uma camisa. Já que eu tinha acesso livre a todo o material, não tinha
porque me poupar da bela visão que ele era. Eu era tão sortuda.
— A babá vai ficar com o garoto?
— Ela pode ficar até às seis.
— Quer ir pegá-lo antes?
— Hm... não. Ela estava planejando levá-lo para um parque junto
com a afilhada.
— Certo. — Cobain fez uma careta de repente, fechando os olhos e
segurando as mãos juntas.
— Ei, está tudo bem?
— Sim, está. Lembra-se da lesão que eu comentei um tempo atrás?
Me levantei na hora, chegando mais perto para ver se algo tinha acontecido.
— Lembro, o que foi?
— Às vezes dói.
— A mão inteira? Tipo, as duas? Dói como?
Ele sorriu e beijou minha testa, mesmo com suas dores, me olhando
com todo o carinho.
— Às vezes do antebraço até a ponta dos dedos, outras apenas no
pulso. Imagine uma cãibra, só que um pouco pior, e pode durar só alguns
minutos, o dia inteiro, ou ser só uma fisgada de poucos segundos.
— Você disse que foi apenas em uma mão quando me contou.
— Você estava sofrendo, eu não tinha porque piorar as coisas
jogando os meus problemas em você. Não se preocupe, daqui a pouco vai
passar.
Apaguei o fogo e lavei minhas mãos, tirando o suco da laranja. Puxei
um banco para perto e sentei em sua frente.
— Me conte como aconteceu.
— Drama demais, Danielle.
— Bem — Dei de ombros —, você está falando com a pessoa que
pode cair a qualquer momento e ficar travada em uma cama, então acho que
sei lidar com seu drama.
O sorriso sumiu do rosto dele, dando lugar a um olhar profundo,
sério, e me fez perceber que nunca tínhamos falado sobre aquilo, porque
nunca houve motivo. Por uma noite eu havia esquecido totalmente minha
doença e me senti normal, sem medo de que a qualquer momento algo crucial
poderia me acontecer.
— Não. — Ele segurou meu queixo, fazendo-me o encarar.
— Não o quê?
— Não comece a pensar demais.
— Pensar em coisas que você deveria pensar.
— Não é necessário falar disso agora, ma rose.
— Ontem estávamos dizendo livremente que nos amamos, fazendo
promessas e... vivendo. Mas você percebe que estar comigo é colocar mil
incertezas no seu futuro?
— Danielle.
— A qualquer momento eu posso mudar.
— Eu vou amá-la ainda assim.
— Eu poderia esquecer de você. Poderia esquecer Cody. Eu ainda
sou jovem, então não me desespero por isso, porque sei que meu filho estará
bem e com alguém que eu confio. Mas não é justo que você se prenda a mim
sabendo que pode estar trocando fraldas e dando comida na minha boca daqui
a cinco ou dez anos. Ou até antes... amanhã!
Ele segurou meu pescoço com uma mão, e a outra tampou minha
boca, só então percebi que estava quase gritando.
— Pare. Não sabote a sua felicidade, eu sei de tudo isso e eu estou
aqui. Você tem uma doença, eu sei. E tudo seria mais fácil se você lutasse
com ela, não contra ela. Faça seus tratamentos, tome os remédios, cuide-se
cem por cento. Eu posso sair de casa amanhã e ser atropelado, ou sei lá...
morrer em um assalto. Ou até mesmo ter um AVC. — Livrando meus lábios,
ele segurou minhas mãos. — O fato é que... ter a Esclerose não te condena à
morte, a menos que você se deixe cair. E acredite em mim, ma rose, eu nunca
vou deixá-la desistir.
— Não fale sobre ser atropelado ou morto de novo.
— Então não fale sobre si mesma como se não tivesse direito a ser
feliz só porque tem medo do que vai acontecer amanhã, ou daqui anos. ok?
— Ok — sussurrei.
— Ok? — ele perguntou de novo, sorrindo.
— Ok.
— Ótimo. — Cobain me beijou, abraçando-me antes de levantar. —
Agora, esse café não vai sair. Desisto. Vamos nos vestir e ir comer em algum
lugar.
Eu gemi de preguiça, quase batendo os pés e correndo de volta para a
cama.
— Não podemos pedir para entregar?
— Poderíamos, mas... se ficarmos em casa... — Puxando-me contra
seu peito, ele distribuiu beijos em meu pescoço — não vou querer saber de
comer mais nada além de...
— Shi! Não termine essa frase.
Ele gargalhou.
— Você está vermelha, ma rose. Fica tímida quando eu falo sobre
se... — Tampei sua boca assim como ele havia feito comigo, e seus olhos
brilharam com humor.
— Pare de ser tão...
— Tão? — perguntou com a boca ainda tapada.
— Safado — sussurrei.
Ele riu mais ainda e tirou minha mão, encostando-me no balcão e me
arrancando um beijo.
— Porra, você é absolutamente adorável. Agora é que nós vamos lá
pra cima mesmo.
Um grito de surpresa me escapou quando ele abaixou e me tomou nos
braços. Me agarrei em seu pescoço, gargalhando da cozinha e passando pelo
corredor até a sala, e quando chegamos na ponta da escada vi o piano, então
lembrei.
— Espera! Me desce.
— Dani, eu preciso resolver uma situação nas regiões baixas, depois
você encrenca com o que for.
Segurei seu cabelo pela nuca, puxando só o bastante para fazê-lo
parar no segundo degrau.
— Para baixo.
Ele estreitou os olhos, mas me desceu, ainda mantendo as mãos em
minha cintura.
— Puxe meu cabelo de novo e isso só vai me dar mais gás para subir
esses degraus.
— Você desviou do assunto. Agora que estamos aqui e claramente
sua dor passou, caso contrário não estaria me carregando.
— Me fez parar pra voltar nisso?
— Você sabe do que uma relação é feita? Conversas, principalmente.
Eu quero saber o que houve, o que causou a lesão e você desviou do assunto
na cozinha, me distraindo para fugir de falar sobre isso.
Ele suspirou, cruzando os braços e encostando no corrimão.
— Eu criava trilhas sonoras, compunha para peças, filmes, e qualquer
projeto que me encantasse. Mas nas horas vagas eu gostava de fugir do
clássico e pegar um pouco mais pesado.
— Pesado como?
— Sair da leveza. Tocar com tanta fúria que quebrava as teclas.
Ligava em algumas enormes caixas de som e deixava a música transbordar
até me dar dor de cabeça. Então veio a lesão. Eu estava tocando um dia e
parecia que havia quebrado todos os dedos. Isso aconteceu dois meses depois
de Lumia ter entrado em coma.
Eu segurei a mão direita e passei o polegar pela palma.
— Dói?
— Não.
— Mas você ainda consegue tocar, certo?
— Não em dias frios.
— E em dias como hoje?
— Não com a mesma fúria de antes, agora tenho que ser... contido.
Clássico.
Eu assenti e o beijei levemente antes de caminhar até o piano e
levantar a tampa.
— Toque para mim — pedi e minha voz era apenas um fio. Um
pedido de algo que eu queria há muito tempo.
Desde quando soube que ele era um pianista tão brilhante, queria ser
embalada pelo som que suas mãos podiam produzir. Aqueles olhos verdes me
observaram com curiosidade, passando para incerteza e logo depois... algo
mais.
— Se você dançar.
O espaço entre nós era pequeno, mas em alguns momentos, como
naquele, eu queria que todo o resto sumisse, e pudéssemos ser apenas nós.
Envolvi meus braços ao redor de seu pescoço, puxando-o para baixo e
beijando-o lentamente.
— Toque.
Cobain assentou e tomou seu lugar. Ele passou os dedos pelas teclas,
as observando, como se as estudasse.
— Quando descobri a EM, comecei a fazer crochê, fiz yoga, embora
não alcançasse muitos exercícios. Escolhia um tema por semana e fazia
maratonas de séries ou filmes que tinham a ver com os assuntos escolhidos.
Mas nenhuma dessas distrações me faziam sentir tão bem quanto dançar
fazia. Não posso mais dançar como antes, mas ainda danço. Assim como
você não pode tocar como antes, mas ainda toca.
Ele me deu a primeira nota. Segundos depois veio a segunda.
Assisti nos primeiros minutos sua mão esquerda movendo-se pelo
teclado como se dançassem naturalmente, e os dele estavam pregados em
mim, que usava apenas sua camiseta e minha calcinha, parada no meio da
enorme sala.
Ele parou de tocar e abriu os lábios, onde sem som formou as
palavras “eu te amo” e voltou à música, mas com as duas mãos dessa vez.
Como se a coreografia fosse ensaiada, ergui meus braços e girei, fazendo
movimentos que havia aprendido desde pequena.
Meu coração batia tão acelerado, mas calmo. Meus olhos estavam
bem abertos, observando-o com total atenção quando a dança me levava a
olhá-lo. O sorriso que enfeitava meu rosto e o vento que meus cabelos
faziam, como voavam ao meu redor... Eu me sentia uma flor desabrochando
diante de seu olhar. Uma flor bonita, mesmo em meio aos espinhos.
Uma rosa.
Dancei enquanto ele tocou e sorri o tempo inteiro, sendo embalada
pela melodia que o homem dos meus sonhos criava para mim.
Capítulo 49
“...existe uma música dentro da minha alma
É aquela que eu tentei escrever uma e outra vez
Eu te dou o meu destino
Estou te dando tudo de mim
Eu quero sua sinfonia
Cantando tudo o que eu sou
Com todo o meu fôlego
Estou devolvendo"
mandy moore, only hope
(..........)
3 ANOS DEPOIS
— Listas?
— Eu encontrei a lista que você fez em uma das caixas de mudança.
A lista do homem dos sonhos.
Eu dei risada e fechei o livro. Me aproximei o bastante para encostar
nossos lábios.
— Eu te amo.
Abri o livro novamente e não havia mais nenhuma dúvida. Ele
escreveu nossa história. Assim como Noah havia feito para Allie.
— Sim — sussurrei e me joguei em seus braços.
E eu nunca tive tanta certeza de uma palavra como tinha naquele
momento.
De onde surgiu nosso amor? Às vezes me pegava pensando nisso,
refletindo e tentando me lembrar de quando nasceu, de quando me apaixonei
por ele.
Mas tinham tantas vezes que poderiam ser a razão. Desde o começo,
quando ele me fez sua prioridade. Quando fez do meu filho o seu filho,
mesmo sem saber. E quando me escolheu, dividiu sua dor comigo e pegou
um pouco da minha, tornando mais fácil para nós dois caminharmos juntos.
Eu não sabia em que exato momento tinha me apaixonado por Cobain James.
Talvez quando criei aquela lista já estivesse definido que ficaríamos juntos,
mas a verdade é que eu não mudaria nada. E seria eternamente grata por
termos caído um no caminho do outro.
Capítulo 52
“...estamos destinados a mais
Porque você sempre se sentiu tão pequeno, mas saiba que você não é
E espero que você se sinta inspirado
miley cyrus, inspired
2 ANOS DEPOIS
ANOS DEPOIS
(..........)
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Obrigada e até a próxima!