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Aula 2

APRESENTAÇÃO
A psicomotricidade tem seu início no século XIX, notadamente fundada sob a tradição
médica e balizada a partir da dicotomia cartesiana que distinguia a mente e o corpo como
partes que poderiam pertencer ao mesmo corpo, mas que eram compostas de substâncias
diferenciadas.

O termo “psicomotricidade” é remontado ao discurso neurológico, quando da necessidade


de diferenciar e nomear as áreas do córtex que estão para além da função motora. Neste
sentido, a psicomotricidade vai se desenvolver como prática no século XX.

Pode-se destacar como contribuições da neurofisiologia do século XIX ao surgimento do


campo psicomotor:
1) Sherrington (1857-1952) com a explicação sobre a produção dos reflexos a partir dos
diferentes níveis do sistema nervoso; além disso, o autor distinguiu as sensações
exteroceptivas (externas), interoceptivas (internas) e proprioceptivas (dos movimentos do
corpo e fundamentais para o equilíbrio), a partir das quais relacionou a tonicidade e a
postura;
2) Broca e o início do período localizacionista (1861), onde era feita a correlação entre o
sintoma e o local da lesão no cérebro. Este momento marca o começo das localizações
cerebrais para distúrbios específicos como a afasia, as perturbações práxicas, agnosias,
dislexias. A partir da possibilidade da localização dos sitomas e as lesões é possível,
também distinguir os sintomas e distúrbios que não correspondem a nenhuma lesão no
cérebro.

Entretanto, a partir do momento em que o corpo é “falado” e elaborado simbolicamente,


podemos dizer que já existia o campo da psicomotricidade. Levin (2000, p. 22) destaca
que:

“A história da psicomotricidade é solidária a história do corpo. Ao longo desta história


foram sendo registradas perguntas tais como: de que modo decodificar?, como explicar as
emoções , as sensações do corpo?, qual a relação entre corpo e alma?, por que
diferenciá-los?...”

Descartes, no século XVII, lança a ideia de oposição (apesar da vinculação) entre mente e
corpo que será sustentada pelos séculos posteriores e que influenciará a visão das
ciências médicas. Segundo ele, É evidente que eu, minha alma, pela qual eu sou, é
completa e verdadeiramente diferente do meu corpo, e pode ser ou existir sem ele.
(DESCARTES apud LEVIN, 2000, p.22)

No século XIX, com o incremento da neurofisiologia, observa-se que existiam diferentes


disfunções sem uma localização específica no cérebro ou vinculação com uma lesão
cerebral de fato, como por exemplo os distúrbios da atividade gestual e da atividade
práxica. Esta falta de termos para nomear uma sintomatologia que, neste momento,
aparece como inadequada para o conhecimento anatomo-clínico da época, tem como
consequência o surgimento do termo psicomotricidade, em 1870.

Os primeiros estudos sobre o campo psicomotor são de natureza neurológica. É Dupré


que em 1909 (...) define a síndrome da debilidade motora, composta de sincinesias,
paratonias e inabilidades, sem que estas sejam atribuíveis a um dano extrapiramidal
(LEVIN, 2000, p. 24), ou seja, apresenta a independência da debilidade motora de seu
correspondente neurológico.
Em 1925, o psicólogo Henry Wallon argumenta que o movimento é de fundamental
importância para a origem do psiquismo. É a partir do movimento que a pessoa estabelece
uma relação com o ambiente, que os estímulos externos entram pelas vias dos sentidos e
são elaborados e simbolizados pelo cérebro.

A partir da teorização de Wallon, Edouard Guilmain, estabelece os parâmetros para o


exame psicomotor em 1935, dando início à prática psicomotora. Para ele, tal exame não
deve ser encarado como um simples diagnóstico, mas também como indicação terapêutica
e prognóstico.

Guilmain intorduz a reeducação psicomotora a partir da neuropsiquiatria infantil, que


institui uma série de exercícios para reeducar a tonicidade, atividade de relação e o
controle motor. Este procedimento utilizava-se de exercícios de mímica, equilíbrios,
movimentos rítmicos, de coordenação e habilidade motora.

Ajuriaguerra, a partir de 1947-48, conceitua os transtornos psicomotores como aqueles


que situam-se entre a neurologia e a psiquiatria, estabelecendo as bases para que a
psicomotricidade tenha a sua autonomia enquanto campo de saber e prática. No seu
Manual de psiquiatria infantil, Ajuriaguerra define a debilidade motora e os objetivos da
“terapêutica psicomotora” (LEVIN, 2000) onde, a partir destas delimitações, foi possível a
padronização de um exame psicomotor e a estipulação de terapêuticas adequadas para
cada transtorno encontrado.

Na década de 1970, tem início um movimento de “reconfiguração” da psicomotricidade,


diferenciando-a de uma prática reeducativa para uma prática pautada numa “motricidade
de relação” (LEVIN, 2000). A ênfase torna-se o corpo em sua globalidade, e a importância
da técnica reeducativa é suplantada pela importância da postura terapêutica. Ou seja, a
ênfase é transportada de uma técnica instrumental de exercícios corporais para uma
postura terapêutica que considera o afeto e as emoções e suas influências no movimento
e no corpo.

Neste momento, a psicanálise inicia sua contribuição à psicomotricidade, a partir das


teorias de diversos psicanalistas como Freud, Klein, Winnicott, Lacan, Dolto, Mannoni e
conceitos como ode inconsciente, transferência, imagem corporal entre outros (LEVIN,
2000). Esta contribuição será fundamental para o estabelecimento do campo na
psicomotricidade clínica, diferenciando-se da prática psicomotora educativa.

Levin (2000) aponta três cortes epistemológicos na história da psicomotricidade:


1) O primeiro centrado em práticas reeducativas a partir do paradigma mental-motor, com
forte influência da neuropsiquiatria e a consideração de um “corpo instrumento”, a ser
utilizado pelo profissional com a ideia de recuperá-lo;
2) O segundo momento está pautado nas contribuições psicológicas de PIAGET e
WALLON, onde há a confluência do movimento, corpo e inteligência. A partir desta visão o
foco sai da reeducação psicomotora para centrar-se numa terapia psicomotora que leva
em conta o corpo em movimento, como este constrói a realidade a partir das sensações e
das cognições e qual a relação destes com as emoções e afetos;
3) O terceiro momento é o da contribuição da teoria psicanalítica, onde a globalidade é
superada pelo sujeito dividido, cindido, pela construção de um corpo real, simbólico
(representação) e imaginário (inconsciente). Esta perspectiva subverte o paradigma
psicomotor, gerando alterações fundamentais na relação terapêutica e no entendimento
dos sintomas que são produzidos no corpo. Para Levin, neste momento, já não é mais
possível confundir o “corpo do sujeito com o sujeito do corpo”.

No Brasil, a evolução da psicomotricidade seguiu caminho semelhante à mundial. Na


década de 1950, documentos mencionam que atividades psicomotoras eram utilizadas
como processo terapêutico da criança excepcional pelo psiquiatra infantil Gruspun.
Ainda neste período, surgem o serviço de Educação Especial da Secretaria de Educação
do Estado, em Porto Alegre/ RS, e no Rio de Janeiro foi criado o primeiro curso de
formação para professor especializados em deficientes auditivos onde eram ensinados a
utilizar a educação física como estimulação através de danças, dramatizações, mímicas e
ritmos.

Na década de 1960, a psicomotricidade é introduzida como cadeira de diversos cursos,


como o de Logopedia, da UFRJ. Além disso, a psicomotricidade foi introduzida em escolas
especializadas em atendimento aos excepcionais como recurso com o objetivo de corrigir
distúrbios.

Na década de 1970, iniciam os cursos de formação em psicomotricidade, através do


enfoque Ramain-Thiers, a Teoria Relacional com André Lapierre e Desobeau a partir da
espontaneidade motora, trabalhava os níveis motor-psicomotor e tônico-emocional.do
desenvolvimento.

Na década de 1980, destaca-se a estruturação da Sociedade Brasileira de


Psicomotricidade, presidida pela Beatriz do Rego Saboya e a participação de Francoise
Desobeau. Em 1983 surge o primeiro curso de pós-graduação em psicomotricidade e em
1984, o primeiro curso de formação de psicomotricistas no IBMR.

Atualmente, coexistem como prática a reeducação psicomotora, a terapia psicomotora e a


clínica psicomotora.

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