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CAROLINA CASARIN*
1. Apresentação da pesquisa
*
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ, bolsista da
Capes.
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Ao consultar a base de dados online da Pinacoteca do Estado de São Paulo, a pesquisa “Tarsila do Amaral”
oferece dez entradas referentes a objetos de vestuário. Entra elas estão o corpete desse vestido de noiva, feito de
tafetá chamalote e medindo 41x78,3 cm, com etiqueta de tecido no forro “Paul Poiret a Paris”; outro pedaço de
tecido do vestido de noiva, do mesmo tecido, com 101x30 cm; as mangas do vestido de noiva, sendo duas entradas
diferentes, uma medindo 38,7x22,5 cm e a outra 39,4x21,5 cm, ambas de tafetá chamalote; a capa desse vestido,
de veludo e tafetá chamalote com 135x172 cm.
eventos sociais; retratos e os autorretratos; cartas trocadas entres eles; caricaturas da época;
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crônicas e diários; depoimentos sobre o grupo.
Aqui, o termo guarda-roupa se refere ao conjunto dos trajes que pertenceram a esses
modernistas. Mas é importante notar que a expressão guarda-roupa modernista pode ser
entendida duplamente, já que significa tanto o guarda-roupa dos modernistas, que pertenceu
aos modernistas, como aquilo de moderno, os índices de modernismo que podemos analisar na
indumentária desses artistas, e é nessa confluência que empreendo a investigação.
Além do projeto cultural e político dos modernistas, atestado nos manifestos e nas
próprias obras, é notória a atenção redobrada que Tarsila, Oswald e Mário dedicaram ao
vestuário e à aparência, o que reforçaria o vínculo que talvez exista entre a estética modernista
– na conjunção de vanguarda e nacionalismo – e a indumentária usada pelo grupo.
Sabemos que o casal Tarsiwald – como Mário chamava os amigos – na década de
1920, em Paris, frequentou maisons de costureiros importantes da alta-costura francesa daquele
período, especialmente Paul Poiret que, como já foi dito, é autor do vestido que Tarsila usou
em seu casamento com Oswald, e cujo nome aparece no primeiro verso do poema “atelier”,
publicado em Pau Brasil, de 1925: “Caipirinha vestida por Poiret/ A preguiça paulista reside
nos teus olhos” (ANDRADE, 2017: p. 76).
No depoimento de Antonio Candido registrado no texto “Digressão sentimental sobre
Oswald de Andrade”, é interessante observar o incômodo que causa à sociedade paulistana –
pertencente ao “mundo burguês de uma cidade provinciana”, como define o próprio Candido –
uma luva usada por Oswald:
Mas esse Oswald lendário e anedótico tem razão de ser: a sua elaboração pelo
público manifesta o que o mundo burguês de uma cidade provinciana enxergava de
perigoso e negativo para os seus valores artísticos e sociais. Ele escandalizava pelo
fato de existir, porque a sua personalidade excepcionalmente poderosa atulhava o
meio com a simples presença. Conheci muito senhor bem posto que se irritava só de
vê-lo, como se andando pela rua Barão de Itapetininga ele pusesse em risco a
normalidade dos negócios ou o decoro do finado chá-das-cinco. “Esse sujeito não
tem pescoço, tem cachaço”, ouvi de um, que parecia simplesmente tomado pela
necessidade de dizer qualquer coisa desagradável. “Que luvas de palhaço!”, dizia
outro. Eram as que punha de vez em quando, penso que feitas para esporte de inverno,
de tricô, brancas com uns motivos pretos vistosos. “Foi Blaise Cendrars quem me
deu”, disse ele sorrindo certa vez, na Livraria Jaraguá, onde passava sempre.
(CANDIDO, 2004: p. 48.)
Já Mário de Andrade desenhava as próprias roupas2 e era meticuloso na composição de
sua
3 aparência. Vejamos o que nos diz sobre ele José Bento Faria Ferraz, “professor, escritor e
pesquisador, secretário de Mário de Andrade de 1939 a 1945” (LOPEZ, 2008: p. 63):
Eu chegava cedo na casa do Mário, às sete e meia. Ele já estava com aquele robe de
chambre de seda, azul, muito chique. Suas roupas todas eram assim, refinadas. O
sapato era sob medida, encomendado na casa Guarani, na rua XV de novembro.
Sapato bico fino. Ele guardava os sapatos com fôrmas de madeira dentro, para
manter sempre a forma certinha. Preocupava-se com a elegância e era metódico por
excelência. (LOPEZ, 2008: p. 65.)
2
Na fotobiografia A imagem de Mário, organizada por Telê Ancona Lopez, encontramos um croqui masculino
desenhado por Mário de Andrade e uma nota fiscal do alfaiate Francisco Lettière.
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O grifo é do original. Todos os grifos das citações são dos autores.
A aparência de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade
participaria da divulgação de uma estética moderna, de um “estilo nacional”, como disse Sérgio
4
Na introdução, chamada “Como é feito este livro”, Roland Barthes esclarece o lugar de
onde fala o sujeito amoroso: “oferece à leitura um lugar de palavra, o lugar de alguém que fala
em si mesmo, amorosamente, em face do outro (o objeto amado), que não fala” (BARTHES,
2003, p. XVII). Em seguida, o autor define de que são feitos os fragmentos: de figuras, no
sentido de “um gesto apanhado em ação, e não contemplado em repouso” (BARTHES, 2003:
5
p. XVIII). E Barthes continua:
4
Ulpiano Bezerra de Meneses cita, aqui, o artigo de David Chaney, “Contemporary socioscapes. Books on visual
culture”, Theory, Culture & Society, v. 6, no 17, 2000, p. 118.
Uma vez que o acesso às fontes está esclarecido, um método que distingue diferentes
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níveis de análise, da mais superficial, ou seja, daquela que parte da superfície da imagem, à
mais profunda, que pretende estabelecer sua biografia, é necessário refletir sobre a maneira
como as imagens nos afetam. Quem dá vida às imagens somos nós, com nossas narrativas. O
sujeito do discurso amoroso, está dito anteriormente, fala em face de um outro que não fala.
Mas, é a mudez do objeto amado que provoca o discurso amoroso. As imagens são agentes:
“quando vemos o que está diante de nós, por que uma outra coisa sempre nos olha, impondo
um em, um dentro?”, pergunta-se Georges Didi-Huberman (2010: p. 30).
Já Michael Baxandall afirmara em Padrões de intenção,5 sobre a explicação histórica
dos quadros – subtítulo do livro – “que uma descrição fala mais de uma representação do que
pensamos a respeito de um quadro do que de uma representação do quadro” (BAXANDALL,
2006: p. 37). Em consonância com o que afirma Didi-Huberman – “devemos fechar os olhos
para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em
certo sentido, nos constitui” (DIDI-HUBERMAN, 2010: p. 31) –, o pano de fundo aqui é o fato
de a imagem provocar uma fala motivada por um sentimento, mais do que por uma visão.
“A inelutável modalidade do visível”, continua Didi-Huberman, oferece
uma potência visual que nos olha na medida mesmo em que põe em ação o jogo
anadiômeno,6 rítmico, da superfície e do fundo, do fluxo e do refluxo, do avanço e do
recuo, do aparecimento e do desaparecimento. (DIDI-HUBERMAN, 2010: p. 33.)
O jornal Folha de São Paulo publicou em 16 de fevereiro de 1975, um ano após a morte
de Tarsila, o depoimento da artista ao Museu da Imagem e do Som, recolhido em sua residência
no dia 13 de maio de 1971. Sob o título “Saudades, caipirinha”, a transcrição é introduzida por
uma nota explicativa que diz o seguinte:
5
Publicado em 1985 pela Yale University Press.
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Vênus anadiômena significa “saída das águas”.
Quando Tarsila gravou este depoimento sua saúde já era débil. A doença que
8 acabaria por vitimá-la em janeiro de 74 avançava rápida e inexorável. Seu
depoimento é fragmentário, suas ideias frequentemente não se completam. O texto
apenas transcrito sofreu um processo de composição que respeitou, na medida do
possível, o vocabulário da artista. No entanto, as ideias espalhadas aqui e ali, ao
sabor de uma evocação livre e por vezes dispersa, foram grupadas de maneira
sistemática e ganham no texto uma forma que nos aproxima, espero, do seu sentido
original. O seu interesse reside muito mais no documento sonoro, no registro de uma
individualidade perecível, que no conteúdo das informações colhidas. Essas já fazem
parte do repertório corrente e da crônica que já se escreveu sobre Tarsila.
(AMARAL, 1975.)
Dimensão trágica de todo estudo sobre a indumentária, a moda, como afirma Gilda de
Mello e Souza, é “a mais humana das artes”, pois “o vestido que escolhemos atentamente na
modista ou no magasin bon marché não tem moldura alguma que o contenha e nós
completamos com o corpo, o colorido, os gestos, a obra que o artista nos confiou inacabada”
(SOUZA, 2005: p. 41). Mesmo que existisse um acervo de indumentária dos modernistas, para
sempre faltariam as pessoas vestidas, em movimento, momento de atuação plena do vestuário
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que se estabelece na relação íntima entre corpo e roupa.
De todo jeito, essa dimensão trágica da análise da indumentária não impede a
investigação. Os registros visuais e escritos do vestuário e da aparência dos modernistas são
capazes de fornecer vestígios, resíduos, um tipo de memória da relação que um dia se
estabeleceu entre aqueles corpos e as roupas que os vestiram. Certamente, parte dessa memória
está impressa nas imagens e nos discursos.
Referências:
AMARAL, Tarsila. Saudades, caipirinha. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 fev. 1975, Artes
Visuais.
ANDRADE, Carlos Drummond de. A caravana passa. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22
mai. 1968, Segundo Caderno, p. 1.
ANDRADE, Mário. A imagem de Mário: fotobiografia de Mário de Andrade. Introdução e
seleção de textos Telê Ancona Lopez. Texto crítico Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Edições
Alumbramento; Livroarte Editora, 1998.
ANDRADE, Oswald. Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução Márcia Valéria
Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. Tradução
Vera Maria Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4a edição reorganizada pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução Paulo Neves. 2a edição.
São Paulo: Editoria 34, 2010.
JARDIM, Eduardo. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Edição revista e
atualizada. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Ponteio, 2016.
LOPEZ, Telê Porto Ancona. (Org.). Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta: Mário de
Andrade visto por seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. “A fotografia como documento – Robert Capa e o miliciano
abatido na Espanha: sugestões para um estudo histórico”. Tempo [on-line], Rio de Janeiro, n
14, 2002, p. 131-151. Data de consulta: 22 de maio de 2017. Disponível em:
<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=167018094007> ISSN 1413-7704
NETO, Prudente de Moraes; HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Modernismo não é escola, é
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um estado de espírito. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 jun. 1925. Ideias de hoje, p. 5.
SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. 5a reimpressão.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.