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O guarda-roupa modernista: premissas teórico-metodológicas

CAROLINA CASARIN*

Há dois anos, desenvolvo minha pesquisa de doutorado sobre a aparência e a


indumentária dos modernistas de São Paulo. O que desejo apresentar é parte da abordagem
teórico-metodológica adotada como suporte para a pesquisa e a tese. Falarei, então, de três
perspectivas: o método que define meu discurso, ou seja, de que lugar eu enuncio a pesquisa; o
método de acesso às fontes; e a teoria de análise das fontes.

1. Apresentação da pesquisa

Para que a questão teórico-metodológica fique clara, é necessário apresentar a pesquisa.


Chama-se O guarda-roupa modernista: a indumentária de Tarsila do Amaral, Oswald de
Andrade e Mário de Andrade. Uso como objeto a aparência de três dos principais artistas da
primeira geração do modernismo de São Paulo e investigo as relações que podem ser
estabelecidas entre a visualidade desses artistas e a estética do movimento modernista,
engajado, sobretudo a partir de 1924, num projeto de brasilidade que consistiu, também, na
construção de uma imagem de Brasil (conforme JARDIM, 2016).
Nossas fontes de pesquisa são objetos, imagens e textos – poucas peças de vestuário
foram preservadas, como, por exemplo, o vestido de noiva usado por Tarsila em seu casamento
com Oswald, feito por Paul Poiret, guardado em pedaços na Pinacoteca de São Paulo.1 A
maioria das fontes são representações visuais e escritas dos trajes desses modernistas.
Fotografias, desenhos, obras de arte, cartas, crônicas, poemas, diários, enfim, os diversos tipos
de registro dos trajes usados por Tarsila, Oswald e Mário. Fotografias que retratam as
temporadas no campo e as viagens, internacionais e pelo Brasil; periódicos que cobriam os

*
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ, bolsista da
Capes.
1
Ao consultar a base de dados online da Pinacoteca do Estado de São Paulo, a pesquisa “Tarsila do Amaral”
oferece dez entradas referentes a objetos de vestuário. Entra elas estão o corpete desse vestido de noiva, feito de
tafetá chamalote e medindo 41x78,3 cm, com etiqueta de tecido no forro “Paul Poiret a Paris”; outro pedaço de
tecido do vestido de noiva, do mesmo tecido, com 101x30 cm; as mangas do vestido de noiva, sendo duas entradas
diferentes, uma medindo 38,7x22,5 cm e a outra 39,4x21,5 cm, ambas de tafetá chamalote; a capa desse vestido,
de veludo e tafetá chamalote com 135x172 cm.
eventos sociais; retratos e os autorretratos; cartas trocadas entres eles; caricaturas da época;
2
crônicas e diários; depoimentos sobre o grupo.
Aqui, o termo guarda-roupa se refere ao conjunto dos trajes que pertenceram a esses
modernistas. Mas é importante notar que a expressão guarda-roupa modernista pode ser
entendida duplamente, já que significa tanto o guarda-roupa dos modernistas, que pertenceu
aos modernistas, como aquilo de moderno, os índices de modernismo que podemos analisar na
indumentária desses artistas, e é nessa confluência que empreendo a investigação.
Além do projeto cultural e político dos modernistas, atestado nos manifestos e nas
próprias obras, é notória a atenção redobrada que Tarsila, Oswald e Mário dedicaram ao
vestuário e à aparência, o que reforçaria o vínculo que talvez exista entre a estética modernista
– na conjunção de vanguarda e nacionalismo – e a indumentária usada pelo grupo.
Sabemos que o casal Tarsiwald – como Mário chamava os amigos – na década de
1920, em Paris, frequentou maisons de costureiros importantes da alta-costura francesa daquele
período, especialmente Paul Poiret que, como já foi dito, é autor do vestido que Tarsila usou
em seu casamento com Oswald, e cujo nome aparece no primeiro verso do poema “atelier”,
publicado em Pau Brasil, de 1925: “Caipirinha vestida por Poiret/ A preguiça paulista reside
nos teus olhos” (ANDRADE, 2017: p. 76).
No depoimento de Antonio Candido registrado no texto “Digressão sentimental sobre
Oswald de Andrade”, é interessante observar o incômodo que causa à sociedade paulistana –
pertencente ao “mundo burguês de uma cidade provinciana”, como define o próprio Candido –
uma luva usada por Oswald:

Mas esse Oswald lendário e anedótico tem razão de ser: a sua elaboração pelo
público manifesta o que o mundo burguês de uma cidade provinciana enxergava de
perigoso e negativo para os seus valores artísticos e sociais. Ele escandalizava pelo
fato de existir, porque a sua personalidade excepcionalmente poderosa atulhava o
meio com a simples presença. Conheci muito senhor bem posto que se irritava só de
vê-lo, como se andando pela rua Barão de Itapetininga ele pusesse em risco a
normalidade dos negócios ou o decoro do finado chá-das-cinco. “Esse sujeito não
tem pescoço, tem cachaço”, ouvi de um, que parecia simplesmente tomado pela
necessidade de dizer qualquer coisa desagradável. “Que luvas de palhaço!”, dizia
outro. Eram as que punha de vez em quando, penso que feitas para esporte de inverno,
de tricô, brancas com uns motivos pretos vistosos. “Foi Blaise Cendrars quem me
deu”, disse ele sorrindo certa vez, na Livraria Jaraguá, onde passava sempre.
(CANDIDO, 2004: p. 48.)
Já Mário de Andrade desenhava as próprias roupas2 e era meticuloso na composição de
sua
3 aparência. Vejamos o que nos diz sobre ele José Bento Faria Ferraz, “professor, escritor e
pesquisador, secretário de Mário de Andrade de 1939 a 1945” (LOPEZ, 2008: p. 63):

Eu chegava cedo na casa do Mário, às sete e meia. Ele já estava com aquele robe de
chambre de seda, azul, muito chique. Suas roupas todas eram assim, refinadas. O
sapato era sob medida, encomendado na casa Guarani, na rua XV de novembro.
Sapato bico fino. Ele guardava os sapatos com fôrmas de madeira dentro, para
manter sempre a forma certinha. Preocupava-se com a elegância e era metódico por
excelência. (LOPEZ, 2008: p. 65.)

Sendo o vestuário uma forma privilegiada de expressão, a construção de uma imagem


de Brasil passaria pela elaboração de uma imagem de si, de uma aparência, e o objetivo é captar
as relações que podem existir entre o resultado estético do modernismo – na literatura e nas
artes plásticas – e a aparência dos seus artistas.
Nesse sentido, é bastante enriquecedora a entrevista com Prudente de Moraes, neto e
Sérgio Buarque de Hollanda publicada no Correio da Manhã do dia 19 de junho de 1925. “Os
jovens diretores de ‘Estética’, revista que representa o pensamento modernista3 no Brasil”,
esclarecem, como diz o jornal, “o ponto de vista dos espíritos moços da literatura brasileira”
(NETO; HOLLANDA, 1925: p. 5). É especialmente importante, para o argumento da tese, esta
fala de Sérgio Buarque de Hollanda e o final da entrevista, arrematada por Prudente de Moraes,
neto:

“Todos os que antes de nós encararam o problema de uma arte brasileira,


seguiram dois processos que hoje nos parecem, senão negativos pelo menos
ineficazes. (...) Trata-se, pois, neste momento, de transpor integralmente para o plano
da criação artística o nosso ‘estilo’ nacional, o nosso sistema de duração, sem
esquecer que os claros e sombras devem merecer os mesmos direitos. (...)”
Já ia longe a palestra e o sr. Prudente terminou.
“Uma das críticas mais absurdas que nos têm sido feitas, é a que unidade de
vistas, de regras, e de nos censura por falta de coesão, de um fim comum que se possa
reconhecer imediatamente. Querem que o ‘modernismo seja uma escola quando é um
estado de espírito...’”. (NETO; HOLLANDA: 1925, p. 5.)

2
Na fotobiografia A imagem de Mário, organizada por Telê Ancona Lopez, encontramos um croqui masculino
desenhado por Mário de Andrade e uma nota fiscal do alfaiate Francisco Lettière.
3
O grifo é do original. Todos os grifos das citações são dos autores.
A aparência de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade
participaria da divulgação de uma estética moderna, de um “estilo nacional”, como disse Sérgio
4

Buarque de Hollanda, que os integrantes do grupo queriam construir e transmitir? O vestuário


é uma linguagem que participa ativamente da construção da identidade. Sendo o modernismo
um “estado de espírito”, qual terá sido o papel da indumentária usada pelo grupo no
desenvolvimento da questão da brasilidade defendida pelos artistas?
O guarda-roupa modernista não está dado, não existe previamente, está sendo
construído na medida em que reúno as imagens e os discursos que revelam as práticas
vestimentares dos três artistas escolhidos, sistematizando-as. A análise da indumentária de
Tarsila, Oswald e Mário pressupõe, antes, a elaboração de seus guarda-roupas. Uma vez
estabelecidos os guarda-roupas de cada artista, o vestuário modernista pode ser analisado como
um grupo.
Em última instância, o guarda-roupa modernista é um conjunto de representações,
organizado e analisado por intermédio de um corpus diverso, localizado na interseção entre a
cultura material e a visual. Por meio da indumentária desses modernistas, é possível entrever
questões que atravessam a história do modernismo brasileiro. A hipótese central da tese é que
nos diversos espaços que frequentaram, Tarsila, Oswald e Mário procuraram estratégias de
representação de si que acabam por relacioná-los à tensão entre cultura nacional e
cosmopolitismo.
A aparência pode ser compreendida como o resultado da relação entre corpo e vestuário.
O estilo seria, então, menos o que se veste, mas, sobretudo, a maneira como se veste. Interessa
analisar o estilo de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, as construções
individuais de uma estética de vestuário que estariam relacionadas ao estilo modernista que,
por sua vez, esteve engajado na construção do estilo nacional. Entretanto, é difícil analisar o
estilo de corpos que já não existem mais. E é ainda mais embaraçoso ter como objeto de
pesquisa não propriamente obras, mas, enfim, pessoas. Por isso recorro ao método de discurso
proposto por Roland Barthes no livro Fragmentos de um discurso amoroso.

2. O método do discurso amoroso

Na introdução, chamada “Como é feito este livro”, Roland Barthes esclarece o lugar de
onde fala o sujeito amoroso: “oferece à leitura um lugar de palavra, o lugar de alguém que fala
em si mesmo, amorosamente, em face do outro (o objeto amado), que não fala” (BARTHES,
2003, p. XVII). Em seguida, o autor define de que são feitos os fragmentos: de figuras, no
sentido de “um gesto apanhado em ação, e não contemplado em repouso” (BARTHES, 2003:
5
p. XVIII). E Barthes continua:

As figuras se destacam segundo possamos reconhecer, no discurso que está passando,


alguma coisa que foi lida, ouvida, experimentada. A figura é delineada (como um
signo) e memorável (como uma imagem ou um conto). Uma figura é fundada se ao
menos alguém puder dizer: “Como isso é verdade! Reconheço esta cena de
linguagem.” Para certas operações de sua arte, os lingüistas recorrem a uma coisa
vaga: o sentimento lingüístico; para constituir figuras, é preciso nem mais nem menos
do que este guia: o sentimento amoroso. (BARTHES, 2003: p. XVIII.)

Mantidos os devidos cuidados metodológicos, o fundamento das figuras proposto por


Roland Barthes define aquilo que desejo construir com a tese. A composição de figuras,
delineadas e memoráveis. Fica também ressaltada a importância do olhar do outro, do
reconhecimento do outro no processo de constituição das figuras que procuro reunir, organizar,
analisar e, enfim, por que não, criar, na investigação da indumentária de Tarsila, Oswald e
Mário.
Para que fique claro, o método do discurso amoroso, tal como o apresenta Roland
Barthes, é aquele que engendra uma fala ensimesmada porque parte de um outro que não fala.
A fala do discurso amoroso cria figuras, que têm a consistência de um signo e a força de uma
imagem. A criação das figuras pressupõe o reconhecimento do outro, quer dizer, pressupõe que
exista uma visualidade que seja minimamente reconhecível pela sociedade.
Toda essa teorização é importante porque a pesquisa apontou para a necessidade de um
mediador teórico entre as fontes e a narrativa que está sendo construída por meio da análise das
fontes. Passemos, então, à abordagem metodológica das fontes visuais.

3. Acesso às fontes visuais

No artigo “A fotografia como documento – Robert Capa e o miliciano abatido na


Espanha” o historiador Ulpiano Bezerra de Meneses afirma que o estudo da cultura visual deve
privilegiar não a “História produzida a partir de documentos visuais (...), mas de qualquer tipo
de documento e objetivando examinar a dimensão visual da sociedade” (MENESES, 2002: p.
150). O autor elege a definição de visualidade de David Chaney: “concebida como ‘um
conjunto de discursos de práticas que constituem distintas formas de experiência visual em
circunstâncias
6 historicamente específicas’” (MENESES, 2002: p. 151). 4
De modo a elucidar um método de acesso às fontes visuais, Ulpiano Bezerra de Meneses
propõe dois níveis de leitura da imagem fotográfica – já que o historiador neste artigo usa como
fonte uma fotografia de Robert Capa: a leitura morfológica e a iconização da imagem. O
primeiro nível, a leitura morfológica, consiste em analisar três aspectos da imagem fotográfica:
o caráter instantâneo ou posado da fotografia, as figuras presentes e o espaço.
O segundo nível de análise sugerido pelo historiador diz respeito à averiguação dos
processos de iconização da imagem, ou seja, à “ampla circulação que teve esta imagem e a
notoriedade que adquiriu” (MENESES, 2002: p. 137). O método de “traçar uma biografia da
imagem” (MENESES, 2002: p. 138) pressupõe que não se perca de vista a dimensão material
da imagem. Ulpiano deixa claro, portanto, “a necessidade de tratar as fotografias também como
objetos e não só como puros conteúdos” (MENESES, 2002: p. 145). A fotografia é “um
artefato, antes de mais nada” (MENESES, 2002: p. 146), diz o autor. Nessa perspectiva,
privilegia a sistemática de produção, circulação, consumo e ação da imagem.
O autor chama atenção ainda para o fato de que as imagens devem constituir “vetores
para a investigação de aspectos relevantes na organização, no funcionamento e na
transformação de uma sociedade” (MENESES, 2002: p. 150). Sendo o objeto de pesquisa, não
as imagens, mas a sociedade, “não há como dispensar, aqui, também, a formulação de
problemas históricos, para serem encaminhados e resolvidos por intermédio de fontes visuais,
associadas a quaisquer outras fontes pertinentes” (MENESES, 2002: p. 150).
Ao propor sugestões para um estudo histórico da imagem fotográfica, e das fontes
visuais de modo geral, Ulpiano Bezerra de Meneses sinaliza as tramas discursivas que
geralmente envolvem as imagens no processo de iconização. Não são as imagens que falam,
somos nós que falamos por elas, em nome delas, e isso imbui de grande responsabilidade e
cautela qualquer coisa que eu diga sobre as figuras de minha tese. “O destino do referente e o
de sua imagem raramente coincidem” (MENESES, 2002: p. 142), afirma, em dado momento,
Ulpiano. E essa me parece uma frase que se aplicaria às imagens de Tarsila, Oswald e Mário.

4. Teoria de análise das fontes

4
Ulpiano Bezerra de Meneses cita, aqui, o artigo de David Chaney, “Contemporary socioscapes. Books on visual
culture”, Theory, Culture & Society, v. 6, no 17, 2000, p. 118.
Uma vez que o acesso às fontes está esclarecido, um método que distingue diferentes
7
níveis de análise, da mais superficial, ou seja, daquela que parte da superfície da imagem, à
mais profunda, que pretende estabelecer sua biografia, é necessário refletir sobre a maneira
como as imagens nos afetam. Quem dá vida às imagens somos nós, com nossas narrativas. O
sujeito do discurso amoroso, está dito anteriormente, fala em face de um outro que não fala.
Mas, é a mudez do objeto amado que provoca o discurso amoroso. As imagens são agentes:
“quando vemos o que está diante de nós, por que uma outra coisa sempre nos olha, impondo
um em, um dentro?”, pergunta-se Georges Didi-Huberman (2010: p. 30).
Já Michael Baxandall afirmara em Padrões de intenção,5 sobre a explicação histórica
dos quadros – subtítulo do livro – “que uma descrição fala mais de uma representação do que
pensamos a respeito de um quadro do que de uma representação do quadro” (BAXANDALL,
2006: p. 37). Em consonância com o que afirma Didi-Huberman – “devemos fechar os olhos
para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em
certo sentido, nos constitui” (DIDI-HUBERMAN, 2010: p. 31) –, o pano de fundo aqui é o fato
de a imagem provocar uma fala motivada por um sentimento, mais do que por uma visão.
“A inelutável modalidade do visível”, continua Didi-Huberman, oferece

uma potência visual que nos olha na medida mesmo em que põe em ação o jogo
anadiômeno,6 rítmico, da superfície e do fundo, do fluxo e do refluxo, do avanço e do
recuo, do aparecimento e do desaparecimento. (DIDI-HUBERMAN, 2010: p. 33.)

O visível, assim como o reconhecível da figura, se dá em ondas, se forma e se dissipa na mesma


medida, pressupõe a abertura para a instabilidade. “Ver é sentir que algo inelutavelmente nos
escapa, isto é: ver é perder” (DIDI-HUBERMAN, 2010: p. 34).

O jornal Folha de São Paulo publicou em 16 de fevereiro de 1975, um ano após a morte
de Tarsila, o depoimento da artista ao Museu da Imagem e do Som, recolhido em sua residência
no dia 13 de maio de 1971. Sob o título “Saudades, caipirinha”, a transcrição é introduzida por
uma nota explicativa que diz o seguinte:

5
Publicado em 1985 pela Yale University Press.
6
Vênus anadiômena significa “saída das águas”.
Quando Tarsila gravou este depoimento sua saúde já era débil. A doença que
8 acabaria por vitimá-la em janeiro de 74 avançava rápida e inexorável. Seu
depoimento é fragmentário, suas ideias frequentemente não se completam. O texto
apenas transcrito sofreu um processo de composição que respeitou, na medida do
possível, o vocabulário da artista. No entanto, as ideias espalhadas aqui e ali, ao
sabor de uma evocação livre e por vezes dispersa, foram grupadas de maneira
sistemática e ganham no texto uma forma que nos aproxima, espero, do seu sentido
original. O seu interesse reside muito mais no documento sonoro, no registro de uma
individualidade perecível, que no conteúdo das informações colhidas. Essas já fazem
parte do repertório corrente e da crônica que já se escreveu sobre Tarsila.
(AMARAL, 1975.)

Apesar da publicação no jornal, a nota explicativa reconhece que o valor do depoimento


ao Museu da Imagem e do Som está na tentativa de trazer de volta a presença corporal, o
“registro de uma individualidade perecível”. É também a presença do corpo que evoca Carlos
Drummond de Andrade na crônica “A caravana passa”, publicada na edição de 22 de maio de
1968 do Correio da Manhã.
Ao relembrar o encontro com a caravana modernista, o poeta mineiro descreve a
sensação de conhecer Mário de Andrade pessoalmente:

Já não lembro do que falamos: de tudo. As respostas de Mário às nossas inquietações


eram ruas que se abriam, perspectivas, ideias, tudo novo, provocante. Uma coisa é a
ideia literária no papel, abstração mais ou menos atraente; outra é o movimento
corporal, a ideia que agita os braços, ri, careteia súbito fica séria, crava sua lâmina
na gente, pela voz e pelo gesto. Dessa viagem a Minas saíram os poemas pau-brasil
de Oswald, o “Noturno de Belo Horizonte”, de Mário, as cores coloniais, tão
subversivas para o tempo, de Tarsila, alguns poemas de Cendrars. Para nós – para
mim – seria a descoberta de Mário de Andrade, logo explorada em profundidade nas
cartas que lhe mandávamos, e que ele respondia com a extensão e a força de um rio
ordenado... (ANDRADE, 1968: p. 1.)

Dimensão trágica de todo estudo sobre a indumentária, a moda, como afirma Gilda de
Mello e Souza, é “a mais humana das artes”, pois “o vestido que escolhemos atentamente na
modista ou no magasin bon marché não tem moldura alguma que o contenha e nós
completamos com o corpo, o colorido, os gestos, a obra que o artista nos confiou inacabada”
(SOUZA, 2005: p. 41). Mesmo que existisse um acervo de indumentária dos modernistas, para
sempre faltariam as pessoas vestidas, em movimento, momento de atuação plena do vestuário
9
que se estabelece na relação íntima entre corpo e roupa.
De todo jeito, essa dimensão trágica da análise da indumentária não impede a
investigação. Os registros visuais e escritos do vestuário e da aparência dos modernistas são
capazes de fornecer vestígios, resíduos, um tipo de memória da relação que um dia se
estabeleceu entre aqueles corpos e as roupas que os vestiram. Certamente, parte dessa memória
está impressa nas imagens e nos discursos.

Referências:

AMARAL, Tarsila. Saudades, caipirinha. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 fev. 1975, Artes
Visuais.
ANDRADE, Carlos Drummond de. A caravana passa. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 22
mai. 1968, Segundo Caderno, p. 1.
ANDRADE, Mário. A imagem de Mário: fotobiografia de Mário de Andrade. Introdução e
seleção de textos Telê Ancona Lopez. Texto crítico Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Edições
Alumbramento; Livroarte Editora, 1998.
ANDRADE, Oswald. Poesias reunidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução Márcia Valéria
Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. Tradução
Vera Maria Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4a edição reorganizada pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução Paulo Neves. 2a edição.
São Paulo: Editoria 34, 2010.
JARDIM, Eduardo. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Edição revista e
atualizada. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Ponteio, 2016.
LOPEZ, Telê Porto Ancona. (Org.). Eu sou trezentos, eu sou trezentos e cincoenta: Mário de
Andrade visto por seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. “A fotografia como documento – Robert Capa e o miliciano
abatido na Espanha: sugestões para um estudo histórico”. Tempo [on-line], Rio de Janeiro, n
14, 2002, p. 131-151. Data de consulta: 22 de maio de 2017. Disponível em:
<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=167018094007> ISSN 1413-7704
NETO, Prudente de Moraes; HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Modernismo não é escola, é
10
um estado de espírito. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 jun. 1925. Ideias de hoje, p. 5.
SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. 5a reimpressão.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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