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Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto


Henriette Tognetti Penha Morato
Marcus Tulio Caldas
(Organizadores)

Editora da Juruá Psicologia: Ana Carolina Bittencourt


Prática Psicológica
na Perspectiva
ISBN: 978-85-362-4055-8
Fenomenológica
Av. Munhoz da Rocha, 143 - Encave - Fone: (41) 4009-3900
Fax: (41)3252-1311 - CEP: 80.030-475 - Curitiba Paraná -Brasil Autores:
EDITORA Europa - Escritório: Av. da República, 47 - Da?- 1050-188 -Lisboa -Portugal Ana Lúcia Francisco Luciana Oliveira Lopes
Ana Maria de Santana Luciana Oushiro
Loja: Rua General Torres, 1.220 - Lojas 15 e 16 - Centro Comercial Ana Paula Nodko Cimino Luciana Szymanski
ErOuro - 4400-096 - Vila Nova de Gaia/Porto - Portugal
Manda Kenney da Cunha Nascimento Marcus Tulio Caidas
André Prado Nunes Maria Eugénia Calheiros de Lima
Editor: José Emani de Carvalho Pacheco
André Roshwirowski Maria Luisa Sandoval Schmidt
Mdrea Cristina Tavelin Biselli Manha Hiromi Takeshita
Barreto, Carrilem Lúcia Brito Tavares. Angela Nobre de Andrade Nilson Gomes V. Filho
13261 Prática psicológica na perspectiva fenomenológicai Carmen). Barbara Eleonora Bezerra Cabral Rafael Auler de Almeida Prado
Bruna Luiza Ferreira Regina Coeli Araujo da Silva
Lúcia Brito Tavares Barreto, Henriette Tognetti Penha Morato, Cantem Lúcia Brito Tavares Barreto Rodrigo da Silva Rodrigues Lermos
Marcus Tulio Caldas./ Curitiba: Juruã 2013. Danielle de Fatima da C. C. de Siqueira Leite Sashenka Meia Mosqueira
560p. Ellen Fernanda Gomes da Silva Shidey Macédo Vieira de Melo
Franciane Seco Delavia Silvia Raquel Santos de Morais
L Psicologia fenomenologiea. 2. Psicologia — prática. 3. Heloisa Szymanski Suely Emitia de sarros Santos
Psicologia existencial. 1. Morato, Henriette Tognetti Penha. Henriette Tognetti Penha Morato Tatiana Benevides Magalhães Braga
II. Caldas, Mateus Tulio. III. Titulo. Joga Cristina de Oliveira Rezende VVedna Galindo
Laiz Maria Silva Chohfi
CDD 150.192 (22.ed.)
000322 CDIJ 159.9
Curitiba
Visite nossos rires na intemeç www.juruapsicologia.corn.hr e www.editorialjuraa.com Juruá Editora
e-mail: psicologia©jurca.combr 2013
REFLEXÕES PARA PENSAR A AÇÃO
CLINICA A PARTIR DO PENSAMENTO
DE HEID GGER: DA ONTOLOGIA
FUNDAMENTAL À QUESTÃO
DA TÉCNICA
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

"A condição terrena do homem atual está ameaçada


em seu âmago. Mais ainda: a perda da condição
terrena não é causada apenas pelas circunstâncias
externas e fatídicas, nem tampouco consiste apenas
na negligência e superficialidade do modo de vida
dos homens. A perda da condição terrena provém do
espírito da época em que nascemos. (..) O propria-
mente assustador não é o fato de que o mundo se
torne cada ve:: mais técnica Muito mais assustador
é o fato de que o homem não esteja preparado para
esta modificação do mundo, que nós não tenhamos
condições de, numa confrontação adequada, meditar
ponderadamente sobre aquilo que ocorre, sobre
aquilo que propriamente acontece nessa época -.
Martin Heidegger

Sumário: 1. Introdução. 2. A Constituição da Psicologia como Ciência.


3. A Fenomenologia Existencial de Heidegger. 4. A Ação Cli-
nica e as Pressupostos Fettomenolágicas Existenciais. 5_ A
Determinação da Esséncia da Técnica Moderna e a Ação Cli-
nica. 6. Considerações Finais. 7. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Não é unânime o modo como as teorias psicológicas definem a


compreensão de ação clínica. Observa-se uma diversidade de concepções

firdESW
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28 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
pela intensificação da violência cotidiana, pela desertificação da natureza.
teóricas e técnicas e de propostas de intervenção. Essa multiplicidade aponta Tal horizonte parte da hipótese de que a vida humana está exposta a toda
para a necessidade de revisitação à teoria psicológica e à concepção de sina- sorte de riscos na modernidade técnico-cientifica e assinala a dinâmica de
jetividade que sustentam a proposta de intervenção clinica e, desse modo, valorização da vida acompanhada por uma atitude de depreciação e descarte
reconhecer o modo como tematizam o ser do homem. No caso da Psicologia dessa mesma vida (Duarte, 2010).
clínica, tais teorias apresentam respostas findadas e mapeadas pela episteme Na tentativa de compreender o contemporâneo, retoma-se o cami-
dominante da modernidade ocidental, representada pela tradição metafísica nho percorrido por Agamben (2010) ao Indicar que "a contemporaneidade,
em que o sujeito humano é instituído como o centro das Crenças, das normas portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e,
e valores e, da própria realidade. Tal tradição, ao identificar ser e ente, con- ao mesmo tempo, dele toma distâncias" (p. 59). Ainda segundo o autor, essa
cebe este último como objeto a ser apropriado, controlado, dominado. A relação implica uma aderência ao tempo através de uma dissociação e um
Psicologia, na busca de constituir-se ciência, não-fügiu dessa tradição. Afas- anacronismo. Portanto, implica manter o olhar fixo no seu tempo, numa ati-
tou-se do acesso ao simples que "encaminha o caminhar" e mantém a digni- tude de não se deixar cegar pelas luzes que emanam deste tempo, mantendo
dade daquilo que "merece ser interrogado" e buscou a plena posse do ente, a busca de perceber e interpelar o escuro como algo que lhe conceme. Nessa
não considerando a condição ontológica do existir humano fecundado pelo direção, ser contemporâneo é manter-se no seu tempo, percebendo a luz que
mistério do tempo e da finitude. procura nos alcançar e não consegue fazê-lo no escuro do presente, mas que
Nessa direção, ao assumir a herança do pensamento moderno, a permanece em viagem até nós. E por isso que para Agamben, ser contempo-
Psicologia, ao operar com modelos teórico-explicativos, propõe protocolos râneo é uma questão de coragem, já que significa "... ser capaz não apenas
técnicos na tentativa de prever e controlar o comportamento humano e de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse
garantir o retomo ao "equilíbrio mental" com promessas de felicidade e escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós"
liberdade relacionadas às descobertas científicas e tecnológicas. Apresen- (2010, p. 65).
ta-se assim circundada pela técnica que, por vezes, se transforma em sua Considerando tais reflexões, é possível pensar que o desafio atual
segunda natureza, determinando a relação que estabelece com os fenôme- da Psicologia Clínica é pensar a ação clínica a partir da percepção dos pontos
nos existenciais, reduzindo sua dimensão plural e multifacetada a um de falha ou de quebra de um fazer que não mais acolhe as demandas de so-
conjunto de causas, princípios e leis que vão orientar a compreensão do frimento' manifesto no tempo atual e conseguir fazer dessa fratura o lugar de
sofrimento que aflige o cliente, como também o modo como a ação clínica compromisso e de encontro entre os tempos e as gerações de psicólogos com
é exercida. suas teorias e suas práticas.
Diante de tal contexto surge a inquietação sobre o exercício de uma Tal tarefa não é fácil, já que implica perceber as dificuldades e in-
clínica psicológica decorrente de uma proposta pensada na modernidade, suficiências da Psicologia clínica atual compreendida, no presente texto,
Anna histórica instituída quando as relações do homem com os demais entes como o "escuro do presente". Nessa direção, pensar em uma ação clínica
se dão por meio de exigências e imperativos da ciência e da técnica. Técnica contemporânea implica abrir-se para a percepção da luz projetada por esse
pensada por Heidegger em sua essência, o que possibilita ressaltar a-diferen- "escuro" no passado, habitado por fazeres vinculados às teorias e às técnicas
ça entre o desocultar como pro-dução — por adiante — e o desocultar, que psicológicas tradicionais, e poder_ acolher a afetação desse passado como
disponibiliza a natureza como fundo de reserva e o homem como o ente que Capacidade de consumir respostas para as trevas/demandas atuais. Desse
assume o papei de explorador desse fundo. Partindo dessa perspectiva, torna- môdo. a Psicologia clínica ao ser questionada no "escuro" que apresenta para
-se necessáriu pensar aquilo que a ciência e a técnica não conseguem pensar, acolher as demandas do sofrimento cio homem atual, precisa, inicialmente,
de modo a abrir brechas para outro modo de pensar que questione as conse- perceber a falha/insuficiência desveladas pelo seu tempo.
quências destrutivas do fazer tecnocientifico e suas repercussões no esque-
cimento do ser, colocando em risco a existência do ser humano. Sofrimento humano, no contexto do presente texto, é compreendido como limitação inter-
Mc!, iietação ampliada quando se pensa o momento atual, que se pretativa da abertura de sentido do ser humano compreendido como Deis- ein, e que se
apresenta como manutenção de uma percepção de si cristalizada e restritiva, diante das di-
pode chamar de contemporâneo. Contemporaneidade que assinala para um versas possibilidades de existir no mundo.
futuro caracf Lialo pelo controle tecnológico da vida biológica e social,
30 Carmern Lúcia Brito Tavares Barreto Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica 31
Insuficiência que pode ser associada ao modo como o ser do ente é sentações, levando a urna centralização na razão, provocando a cisão do ho-
compreendido pelo pensamento metafísico, dando origem a teorias psicoló- mem moderno. Tem como pressuposto metateórico .a ideia de ordem e de
gicas que visavam à eficiência das práticas clínicas, voltadas para a busca do estabiliado mundo, com uma visão de tempo reversível, defendendo
autoconhecimento ou para a descoberta do verdadeiro eu ou da verdadeira como hipótese fundamental o determinismo mecanicista. Em tal contexto, a
identidade. Nessa direção, privilegiam o modelo explicativo e adaptativo e ideia de sujeito na modernidade é consolidada pela emergência do método,
reafirmam a configuração de uma subjetividade e de um psiquismo previa- para que, dessa forma, possa manipular, controlar e explorar o mundo, ge-
mente constituídos, confluindo para considerar a vida humana como resulta- rando uma cultura voltada para as questões do conhecimento, visando à pro-
do de estratégias e cálculos operatórios oriundos de uma sociedade em que a dução e a validação das crenças (Barreto, 1999).
perspectiva tecnocientifica assume a posição de critério exclusivo de avalia-
ção e validação, não considerando os pressupostos ontológicos/metafisicos É nesse contexto que emerge o espaço Psicológico, dentro de uma
que fundamentam seus procedimentos metodológicos, os quais se apresen- tradição na qual o método das ciências naturais era aplicado às ciências sociais.
tam perigosos para o Ser do ser humano (Duarte, 2010). Essa situação metodológica exigia operar uma cisão na experiência do sujeito,
separando o conhecedor ideal, que deveria apresentar-se com Urna subjetivida-
Por esse caminho, configura-se o objetivo do presente trabalho. Ao de ascética e expurgada, do sujeito encarnado, constituído pelo singular, afetà-
configurar a desconstrução da metafisica empreendida por Heidegger em Ser
e tempo (1989), principalmente no que concerne à identificação de ser e ente vel e finito. O verdadeiramente "real' é, na modernidade, o que se dá na forma
de_representações claras e distintas de um sujeito purifiCado do conhecimento.
_
e o subsequente esquecimento do ser, busca delinear novas possibilidades de
pensar a ação clínica, apontando para outros modos desse fazer. Em tal per- O caráter histórico das teorias psicológicas, ao apoiar-se na tradi-
curso, considera, ainda, no Heidegger tardio, o ultrapassamento da ciência ção metafísica, reafirma a positividade de um psiquismo, ápresentado como
por meio do pensamento meditativo, não metafísico e não cientifico, abrindo propriedade de um "eu" dotado de urna essência e que se apresenta interiori-
brechas para modos de pensar que podem favorecer a constituição "existen- zado, voluntarista e racional. Essa situação, no entanto, gera divergências
cial" de urna Psicologia clínica que, ao escapar do modelo de pesquisa cienti- que refletem as contradições do próprio projeto da constituição da Psicolo-
fica tradicional, possa apontar para novas possibilidades de tematização dos gia, que, enquanto ciência independente, procura reconstruir as relações do
fenômenos psicológicos e da ação clínica. homem consigo mesmo, com os outros homens e com o mundo a partir das
mais diversas teorias "explicativas" que ainda se encontram presentes no
momento contemporâneo.
2 A CONSTITUIÇÃO DA PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA
Importa ainda ressaltar a influência das filosofias da subjetividade
Na tentativa de questionar as insuficiências que as práticas psicoló- e sua ênfase no sujeito como fundamento autofundante do mundo e das re-
gicas tradicionais apresentam, no tempo atual, para acolher tanto o sofri- presentações que, ao apresentarem um sujeito que pensa a si mesmo e que
mento humano como as exigências de inserção do psicólogo em outros espa- posiciona os objetos,. estabelecem a base para a dicotomia sujeito e objeto.
ços que fogem da caracterização tradicional de clínica psicológica, torna-se As teorias psicológicas constituíram-se nessa direção, pressupondo urna inte-
necessário fazer um breve resgate dos pressupostos subjacentes à constitui- rioridade e a constituição de um "eu" substancializado, localizado no tempo
ção da Psicologia clinica. e no espaço, dotado de determinações e sentidos prévios, com privilégio do
Para constituir-se ciência, a Psicologia teve como pressuposto modelo explicativo, próprio das ciências da natureza (Feijoo, 2011).
epistemológico o conhecimento científico moderno norteado por um saber No entanto, com o reconhecimento da Fenomenologia como outra
que defendia a construção de uma ordem do mundo no plano do saber. A possibilidade de interpretação do real, o modelo teórico explicativo assumido
constituição da ciência moderna apresenta-se no contexto da racionalidade pela Psicologia passa, qradativamente, a ser substituído por um modelo des-
operativa, desenvolvendo-se no seio das ciências naturais do século XVII. critivo e compreensivo-. A partir desse período, reconhece-se a necessidade
Esse paradigma científico apresenta uma visão do mundo e da vida especifi-
cas, onde o racional passa a ser considerado a nova essência humana, apre- 2
sentando, sob a influência de Descartes, um mundo matemático, uniforme e A Psicologia, nessa passagem, foi influenciada pela crise vivida pela filosofia no final do
geométrico. É o momento áureo da afirmação da consciência e de suas repre- século XIX. priricipa I (tente pelas propostas formuladas por Dilthey. as quais não serão
trabalhadas no presciii c texto, considerando os objetivos propostos.
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de superar a cisão sujeito e objeto, assume-se a intencionalidade da consciên-
cia e o método de descrição como via de acesso ao conhecimento. A pro- Diante de tal contexto, pergunta-se como pensar a Psicologia na
posta de uma Psicologia Fenomenológica a partir de Husserl confirma a fe- atualidade, que atravessamentos precisa fazer para se desvincular do modelo
nomenologia como orientação metodológica para as ciências humanas, entre das ciências naturais fundado em determinações essenciais e poder acolher o
elas, a Psicologia, que se configuram COIRO "ciências estranho e a alteridade com a produção da diferença emergente? Como mm-
compreensivas".
per com a prática psicológica circunscrita pela técnica e proveniente de teo-
Essa diferença tão significativa possibilita reconhecer que as ciên-
cias compreensivas são influenciadas pelas descrições fenomenológicas da tiú psicológicas fundadas no positivismo e na metafísica, e poder acolher a
possibilidade de uma ação clínica mediada pelo "mistério"3 e pela busca da
estrutura da consciência e ressaltam os conceitos de intencionalidade, tempo-
ralidade e horizonte da consciência. Tais estruturas gerais da consciência verdade como "desocultamento", profundamente imbricada com a ética e a
deram origem ao esboço de diversas fenomenologias referentes a diversas estética da tragédia? Apesar de se reconhecer hoje a dispersão do pensa-
regiões do ser - fenomenologias regionais, como a fenomenologia da per- mento psicológico e a falência da "era das escolas", ainda se tem dificulda-
cepção de Merleau-Ponty. Entretanto, todas elas indicam formas próprias de des de, no campo da ação clinica, atravessar as fronteiras definidas que de-
configuração da temporalidade e das experiências, constituindo a fenoine- marcam os diagnósticos e as intervenções clínicas por territórios teóricos e
limitações de domínio.
nologia, nãoL como método com procedimentos definidos, mas diluída na
obra de seus pensado-resf-Husserl, Merleau-Ponty, Heidegger e Lévinas, en- Dai a necessidade de revisitar o território psicológico tendo por tarefa
tre outros.
questionar seus pressupostos ontológicos e analisar a possibilidade de adotar
Tal movimento filosófico é caracterizado pela superação da hege- novos pontos de partida mais originários, capazes de orientar a aproximação da
monia do pensamento representacional e da noção de verdade por adequação Psicologia aos fenômenos clínicos de modo mais radical, respeitoso e aderente
e correspondência vinculada à produção do conhecimento sustentado sobre a às suas manifestações existenciais imediatas no nosso tempo e no nosso con-
precisão metodológica do conceito. A linguagem deixa de ser concebida texto de globalização da objetificação e reiteração técnicas.
como mero instrumento para a representação da realidade e passa a ser con-
siderada como constitutiva da própria condição humana de existir. Enquanto
3 A FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL DE HEIDEGGER
a metafisica instaura o conhecimento sobre a segurança da precisão meto-
dológica e da representação/conceito fundada na relação entre sujeito epis-
têmico e seu objeto, a ruptura provocada pelos pensadores acima referidos É nesse contexto que se ressalta a importância do diálogo com o
vai apontar para a possibilidade do conhecimento fundado na própria pensamento de Heidegger, já que delineia uma compreensão filosófica crítica
gia ontolo-
humana, condição em que a vida é dada ao homem (Critelli, 2006). e desconstrutiva da modernidade, expondo os riscos que apresenta para a vida
O resultado moderno e contemporâneo da necessidade de vincular humana, submetida a um destino tecnocientifico. Epoca histórica instituída
o pensamento e o conhecimento ao controle de sua representação vai desem- quando as relações do homem com o homem e com os demais entes se dão a
bocar no modo técnico como o homem ocidental habita o mundo, com a partir das exigências e imperativos da ciência moderna. A proposta metafisica,
desvalorização ética do homem e a supremacia dos modelos técnicos e cal- transmitida historicamente, recai no esquecimento do ser, situação que se foi
culantes de controle do mundo e do próprio homem. Tal modelo fundamenta agravando até chegar ao tempo atual e institui relações do homem com os
uma diversidade de compreensões e concepções de - outros homens e demais entes consolidadas pelas exigências e imperativos da
lógicas culminando na -era das escolas- terias e práticas psico- ciência e da técnica. Portanto, não é de estranhar que na modernidade a ques-
com suas oposições paradigmáticas tão do ser tome-se absurda e sem sentido, destinada ao esquecimento.
e amarras dogmáticas No entanto, pode-se dizer, parafraseando Figueiredo
(2009), que a "era das escolas" entrou em crise desde a década de oitenta, Nessa direção convém frisar que, seguindo o pensamento de
dando lugar a "inrt "atravessamento de paradigmas" onde velas oposições Heidegger, o esquecimento moderno da questão do ser não é UM aconteci-
teóricas são desfeitas e novas perspectivas emergem na mento isolado, traz implicações éticas e políticas para a existência humana
tentativa de abrigar
as "novas patologias" como também outras possibilidades de inserção do apresentando um diagnóstico filosófico da modernidade, que vai ter suas
psicólogo em espaços de atuação fora dos enquadres tradicionais da psicote-
rapia clássica de consultório.
Mistério aqui, considerado a partir de uma compreensão heideggeriana, e a condição em
que reside o vigor que possibilita o desvelamento daquilo que chamamos conhecimento.
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repercussões, entre outras dimensões, na constituição das ciências humanas,


em especial na Psicologia. Essa situação demarca a necessidade constante de são, conforme expressos pelo pensamento grego inaugural. Q ente tudo o
posicionamento crítico e investigativo diante das teorias psicológicas' e de que apreendemos pelos sentidos e seu modelo de representação está subordi-
suas propostas de ação clínica. nado a relação- de-causa e efeito ,0 ser "se da como abertura originária,
lugar onde a invisibilidade do ser torna-se visível. "bid entanto, só o homem,
Nessa direção, uma reviravolta nas teorias psicológicas é provoca- o único_ ente capaz, pela linguagem, de colocar a questão do ser.
da pelo questionamento, feito por Heidegger, aos conceitos filosóficos mo-
demos _— subjetividade, objetividade, representação, verdade, humanismo — Para Heidegger, o homem é compreendido como Dasein "ser-o-
considerados como sintomas de uma determinada (in)compreensão do ser. ente que habita o hi, na abertura (Da), onde compreende o ser das
No que concerne ao humanismo„ Heidegger em Sobre o Humanismo (1995) coisas (sem) e estabelece condições de possibilidade para o homem ser pro-
ao responder a uma das perguntas de Jean Beaufret, aponta que todo huma- priamente o que "é". As demais denominações — Sujeito, individ,uo, Self
nismo se funda na interpretação metafísica do homem e "articulado no bi- alma, consciência histórica — são perspectivas iinticas forjadas na interpreta-
nómio de essência e existência, determina o ser do homem como a realiza- cão metafísica' da essência do homem apreendida como simples presença,
ção (existência) das possibilidades (essência) de animalidade e racionalida- corno ente simplesmente dado (Heidegger, 2001b).
de, quer confira o primado à essência quer faça prevalecer a existência em Importa ressaltar que, apesar de fazer parte da totalidade do ente, o
suas várias dimensões" (Carneiro Leão, 1995, p. 12). Ao ressaltar tal articula- homem tem relação peculiar com o ser, porque este'Lé revelado através do
ção, Heidegger chama atenção para uma fundamentação da determinação do sentido prévio que as coisas têm para ele. Essa préT compreensão é ontológi-
ser que não é questionada pela metafísica, remetendo o "Sentido do Ser" ca, ou seja, é compreensão dada de forma imediata, pré-reflexiva, implícita,
para o esquecimento. desligada de qualquer estrutura maior de compreensão. Assim, a compreen-
Em tal compreensão, fundada na objetificação e conceituação do são não se identifica mais com a representação, pois não se refere a nenhum
ser do homem, predomina a interpretação técnica do pensamento típica das objeto em particular estando, agora, vinculada a possibilidades, ao projeto de
ciências da natureza, mas como indica Heidegger, "diferente das ciências, o um horizonte onde algo pode acontecer. Essa distinção representa um marco
rigor do pensamento não reside apenas a exatidão artificial, isto é, técnico- no rompimento com a perspectiva metafísica, na qual o conceito de repre-
-teórica dos conceitos. O rigor do pensamento se edifica na medida em que sentação, corno correspondente do objeto que pretende definir, ocupa um
seu dizer permanece, exclusivamente, no elemento do Ser e deixa vigorar a limar de relevância. Compreender, numa dimensão heideggeriana, refere-se a
simplicidade de suas múltiplas dimensões" (1995, p. 27). ser esse poder-ser, estando o homem exposto à tarefa de ser sendo. Desse
modo, o mundo apresenta-sé- como projeto compreensivo originário, que
Tal afirmação ressalta o risco do pensar se transformar em técnica abre a Possibilidade para a constituição de si mesmo, a partir de um hori-
na busca da explicitação das causas últimas e aponta para a necessidade de zonte hermenêutico existencial onde tudo o que "é" pode-ser.
superar a metafísica, repensando a "Essência do Ser" a paitir da eXperiência
fundamental do esquecimento do ser. Nessa direção, a metafísica exige ser Sendo assim, o,"ser-o-ai" existe compreendendo e como abertura
repensada no fundamento de sua possibilidade e assim ser superada era seu para o encontrar-se, inconfigurável por uma forma de compreensão vincula-
esquecimento, o que suscita a atitude de arrancar o ser do homem da inter- da à explivairáló. Tal Eamtpiccitbãu, ao iluminar mundos — Cbpc15.0 do projetar-
pretação metafísica, repensando-o em relação ao ser. -se —, possibilita seu configurar e aparecer como o lugar em que o homem,
enquanto Dasein, habita. De acordo com Vazquez, "o homem é como se
Para tanto, importa retomar a crítica heideggeria na ao modo de compreende e se compreende sempre como 'bem ou mal' disposto. Não há
pensar metafísico, caracterizado pela apreensão' conceituai das coisas media- neutralidade efetiva na pré-compreensão, que é a própria presença". (1999,
da por pressuposto teórico que viabiliza conclusões válidas e definitivas e, p. 148, grifos do autor). A disposição afetiva é um existencial, corresponde
assim, considerar a sua proposta de resgatar a compreensão do ser que outro- onticamente aos humores cotidianos, manifestando-se compreensivamente.
ra se revelou para os pensadores pré-so.cráticos, buscando seu sentido, es- Daí, a disposição afetiva e a compreensão constituírem o modo de ser do
quecido pelo pensamento metafísico_ Esse outro modo originário de pensar homem, já que é sendo que ele se abre para si mesmo.
finda-se na diferença ontológica fundamental entre o ser (das Sein) e o ente
(das Seiende), pensados não como dualidade, mas em sua recíproca remis- No entanto, o Dasein não tem, na maioria das vezes, a experiên-
cia de ser si mesmo, pôde ser reflexo de atitudes irrefletidas, um ponto
37
36 Carrnem Lúcia Brito Tavares Barreto Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenolágica

onde as prescrições do comportamento impessoal e público se entrecruzam, representável, mag que possibilita a rnostração do ser. No mundo, nem tudo
não sendo especificamente ninguém. Assim, a existência humana se cons- pode ser representado e explicado, é necessário respeitar áreas que devem
titui na ambiguidade profunda_ de seu ser: ontologicamente ser possível e, permanecer em penumbra, pois são elas que guardam as possibilidades do
por isso, entregue a onticidade imprópria de seu existir, atado e enredado
nas formas públicas de compreensão. Seu ponto de partida apresenta-se no novo. O ser humano pode aprender a viver projetando-se na direção do
decaimento, isto é, "nada" ou agarrando-se a entes/verdades que parecem sólidos, estáveis, e
que possibilitam uma ilusória experiência do não vazio, de fugir do "nada".
na tendência constitutiva do homem a entender-se desde a sua inserção Experiência que remete à negatividade ontológica originária do homem,
impessoal no "mundo" das ocupações; tendência a entender-se "como apontando para a ausência de determinações prévias e para a indetermina-
todo o mundo", à lu: das coisas com que nos ocupamos, no modo do pa- ção constitutiva do ente humano, lançado no mundo como possibilidade de
lavreado, da curiosidade, da ambiguidade Essa tendência a mergulhar
poder-ser. No entanto, continuar vivo como humano supõe a possibilidade
na "publicidade" revela que o homem foge de ser si mesmo como de seu
poder-ser propriamente, que se desvia de si mesmo. (Vazguez, 1999, p. 149,
de ser arrancado dessa indetenninação para poder-ser, implicando na cons-
grifos do autor) trução do novo e na descoberta- deste "estranho-em-nós" que nos habita e
só. é desvelado, do silêncio do barulhai do cotidiano em momentos de reco-
Na decadência, o homem se desvia e se retira de si mesmo, sentin- lhimento do ser.
do-se ameaçado péla própria presença, angustiando-se por seu próprio ser- Tal compreensão coloca em cheque a noção de verdade vinculada à
no-mundo.» que o ameaça não é _algo concreto e determinado; a angústia o perspectiva metafísica, que é compreendida como adequação, conveniência
remete, na decadência, à sua singularidade, a seu próprio poder-ser-no- ou correspondência. A fenomenologia existencial assume, a partir de Reide-
inundo. Essa é a função libertadora da angústia: arrastara presença para a compreendida como desocultação, como
gger, a verdade como ale- theia,
propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que já "é", reti- abertura do ser-ai que permite o mostrar-se dos entes. Nessa dimensão, os
rando 6homem da aparente segurança de sua fuga decadente. Na realidade o entes podem figurar-se, desfigurar-se e refigurar-se, implicando a desoculta-
homem foge da estranheza inerente à presença enquanto ser-no-mundo lan- ção do fenômeno, o que permite nomeá-lo, instituindo um lugar para que
çado, descentrado, como projeto projetante, desde o seu ser situado numa - exista e possa ser reconhecido. Desvinculada do ideal metafísico a verdade
; tradição, numa cultura, numa época. Mas, exatamente porque é possibilida- está associada à possibilidade de revelação e transfiguração. Supõe vela-
de, pode extraviar-se e desconhecer-se. Se estivesse enclausurado em uma Mento, désvelamento, simulação; está associada — ao caminhar do ser no mun-
subjetividade reguladora, as circunstâncias se acomodariam à consciência; do, suportando a impotência e a incidência, assumindo a angústia como par-
,i no entanto, como está entregue ao mundo, projetando-se, -pode extraviar-se, teira do movimento em caminho ao "nada", recolhendo-se nos momentos de
desconhecer-se e também encontrar-se de novo com sua responsabilidade silêncio que antecedem ao nascimento, à abertura para a vida, à descoberta
para experienciar a "si mesmo", descobrindo-se como tarefa de poder-ser. do mundo e das possibilidades de existir (Barreto, 2006).
É principalmente diante da impossibilidade de qualquer possibili- Esse percurso ressalta a necessidade de repensar a "Essência do
dade — o morrer — que o Dasein procura refúgio na superficialidade do coti- Ser" a partir da experiência fundamental do esqu - ecimento do ser, operada
diano, buscando, assim, escapar da angústia diante da finitude que o paralisa, Pela metafísica. Tal esquecimento possibilita pensar certos acontecimentos
apesar de ser por meio dela que apreende o sentido de sua singularidade, do mundo contemporâneo como: a exploração técnica e a econômica do
podendo ser reconduzido ao encontro de 51.12 totalidade enquanto ser, afas- mundo, a transformação do tempo em rapidez instantânea e simultânea, o
tando-se da superficialidade objetivante do cotidiano. desaparecimento do tempo como história e a desvalorização da hierarquia
Nessa direção, o existir humano nunca se reduz a uma simples entre os acontecimentos históricos. Acontecimentos não radicados exclusi-
presença, pois esse existir supõe uni ser também ausente, já que é um-ser- vamente no homem, mas na história (Geschichte) do ser enquanto tnetafisi-
para-a-morte, que acontece independente de todos os aspectos e de todas as ca, e que realçam a força da ciência e da técnica moderna com seu interesse
razões, revelada na angúsfia diante da impossibilidade, isto é, do "nada". O voltado para os entes em sua possibilidade de cálculo, organização e previsi-
"nada" é a possibilidade de vir-a-ser algo, é o fundo sem fundo que não é bilidade, relegando o ser ao estatuto de um nada, destinado ao esquecimento.
38 Carmen Lúcia Brito Tavares Barreto Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica
Tal diagnóstico filosófico da modernidade, empreendido por Heidegger, de
Partindo da compreensão do homem como "ser-o-ai", desprovido
modo crítico e desconstrutivo, permite a abertura de novas brechas para o
de -essencialidades e estruturas psíquicas construídas previamente, é possível
pensamento e para a ação presente (Duarte, 2010).
apontar para a possibilidade de pensar a ação clínica desvinculada da com-
Nessa direção, o estatuto hermenêutico ontológico da Analítica preensão do ser do homem co-i-no mera presentidade, mero jogo de forças
Existencial, apresentada em Ser e tempo, possibilita avanço importantíssimo deteniinado pelo princípio da causalidade. Essa desconstrução inclui a ten-
na tentativa de desvencilhar a história do pensamento ocidental de suas ori- tativa -de desfazer- as metáforas explicativas subjacentes ao material clinico
gens metafisicas. Nesse contexto, ao descerrar os fundamentos da moderni- interpretado, o qual deve ser repensado em termos do poder-ser constitutivo
dade e abrir o paradigma da existência, tal estatuto não poderia levar a outra do estar-aí.
compreensão da ação clínica constituída em debate com o espirito da época
que a configurou? Tal posicionamento remete à necessidade de pensar a clínica não
mais vinculada a uma ação clínica restrita à hegemonia da técnica e dos li-
É nessa direção que novas possibilidades de pensar a ação clínica mites traçados pela dicotomia operada pelo pensamento ocidental e mantida
podem ser apresentadas e discutidas, acolhendo e deixando-se afetar pela pela Psicologia. Clínica, no presente contexto, é pensada a partir do.termo
dimensão ontológica existencial do acontecer humano, ao modo de Heide- grego Kline; assim estaria vinculada ao inclinar-se para acolher aquele que
gger. Aponta, talvez, para a necessidade de desconstrução fenomenológica pfédisa-de cuidado.
da ciência psicológica, remetendo seus componentes metafísicos à origem
Ao pensar g clínica como cuidado, a ação clínica desloca-se do âm-
comum não metafísica; encaminha-se, então, para outra compreensão do
bito das temias e técnicas psicológicas para aquela da existência, compreendi-
modo de 8er do ser humano, compreendido como pura possibilidade, fragili-
dade permanente, como pura abertura e tarefa de ser-no-mundo. da como abertura originária ao ser doi entes enquanto pré-compreensão e à
condição de estar lançado em uma facticidade temporal. Também possibilita
uma fundamentação ontológica ao cuidado clínico, desvinculando-o da teori-
4 Á AÇÃO CLÍNICA E OS PRESSUPOSTOS zação científica e das "escolas de psicologia" que defendem uma concepção
FEN O NI E NOLÓGIDOS EXISTENCIAIS humanista, subjetivista, técnica e emocional.
Cuidado, ao modo de Heidegger, remete à configuração da existência
Antes de qualquer tentativa de pensar a ação clínica numa perspec- humana qüi ie apresenta como "estrutura de cuidar", dimensão ontológica do
tiva fenomenológica existencial, importa reconhecer o perigo de aplicar o modo de ser do Dasein constitutivamente compreendido como temporalidade.
pensamento filosófico para propor mais mita teoria com propostas de inter- Importa ressaltar que Heidegger (1989), ao compreender o cuidado (Sorge)
venções definidas e prescritivas. Apesar de se reconhecer que não é esse o como ocupação (Besorgen) e preocupação/solicitude (Fürsorgen), possibilita
caminho que pretendemos seguir. Ao retomar a construção da Psicologia mediar a compreensão da ação clínica como "ação preocupada", atenta ao
como ciência e ao reconhecer suas origens na ciência moderna, questiona-se modo como o cliente vive o seu cuidar, a sua existência, a sua história.
a possibilidade de uma ação clínica não mais submetida às perspectivas fun-
Tal compreensão de cuidado aponta para outra compreensão da
dadas nasubjetividade moderna e aponta-se para a possibilidade de uma
Clínica co-m pressupostOs fenomenológicos existenciais. ação clínica do psicólogo que, ao assumir a clínica como modo próprio de
cuidar, afirma a importância de dar sentido às vicissitudes da existência
Nessa direção, retoma-se a compreensão de Dasein e suas "estrutu- como também à implicação/afetação da presença do psicólogo clinico que
ras existenciais" no intuito de encaminhar o Pensar para uma clínica psicoló- cuida das diversas funções do cuidar. Assim, a ação clínica converge para
gica aberta aos questionamentos dos diversos modos de ser do homem, com- intervenções implicadas no movimento de experienciaçã.o do cliente, acom-
preendido como incompletude e indeterminação, como abertura e tarefa de panhando-o na tarefa de apropriar-se do que já sabe pré-reflexivamente, te-
ter. Daí importa chamar atenção para a noção de "estruturas existenciais" matizando as experiências que vão desvelando-se no existir(
fine, ao modo de Heidegger, emergem com o acontecimento do existir. Tais
estruturas não estão atreladas-a- uma propriedade individualizada anterior à Essa ação exige uma conversão epistemológica, evitando qualquer
existência e, do mesmo modo que o ser-o-aí, não aparecem como algo sim- objetivação e determinismo da experiência narrada, que funcionaria como
plesmente dado. paradigma prévio, eficaz mas incapaz de manter-se na abertura à acontecên-
cia, portanto, cego para o fenômeno na sua singularidade.

ti
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenologica 41
40 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
umente, numa dinâmica totalmente diferente do tempo linear, cujo passar
Nessa direção a ação do psicólogo clínico estaria comprometida em
"(..) por em claro a possibilidade de estabelecer outras formas de relação e pode ser acompanhado pelo relógio ou -calendário. Tempo que suporta e abre
habitar outros mundo, abrindo para o, outro a possibilidade de liberdade a possibilidade do Dasein, cuja fundamento é não ser, se entregue à tarefa de
onde o outro é deixado entregue ao seu poder-ser. Atitude que afirma o cui- vir-a-ser no horizonte clã temporalidade.
dado como constituição ontológica do ser humano, já que o homem não tem A clinica como cuidado é consequência direta da desconstrução
cuidado, é cuidado" (Almeida, 1999, p. 46, grifas do autor). empreendida pelo pensamento heideggeriano em Ser e tempo, ao enfatizar
os riscos e perigos decorrentes do processo de objetificação operado pelas
Atento à narrativa4 do cliente, o psicólogo clinico abre a possibili-
dade para o cliente se comprometer com a narrativa de sua própria história ciências e que lançaria o "Dasein nos sofrimentos de sua a-patridade, isto—
é, exila o homem do aí (Da) de sua pátria essencial, empurrando-o na der-
de vida, assumindo-se como cuidado, na tentativa de vislumbrar um modo
relição e no 'abandono, longe do ser" (Michelazzo, 2000, p. 110, grifos
outro de estar no mundo, diferente das cristalizações aprisionantes, o que do autor). Nesse contexto, a ação clinica não estaria mais vinculada a pro-
implica criar um sentido possível, respondendo ao destino. Assim, o cliente cedimentos técnicos, já que a ciência perdeu sua originalidade, exclusivi-
terna sob seu cuidado a sua existência, respondendo, propriamente, ao modo dade e força para pensar o existir humano. As ciências são consideradas
como é "afetado" pelas coisas ou pelos outros que estão aí, no mundo.
por Heidegger, em Ser e tempo, como "necessariamente insuficientes" em
O ser humano existe lançado no mundo, na facticidade do cotidia- sua própria estrutura científica para acolher o ser do ente. Ao se ocuparem
no, enredado nas circunstâncias estruturais já interpeladas pelo público. A dos entes, buscando resultados verificáveis, as ciências não tematizam a
interpretação pública do mundo circunscreve o sentido do existir humano compreensão a priori de ser já que não têm acesso à constituição ontológi-
como projeto e tarefa. No entanto, é nesse mundo, a partir dele e contra ele ca dos entes que investigam (Duarte, 2010).
que o homem, se possível, pode se "desmisturar", resgatando seu ser próprio.
Assim, tem corno tarefa cuidar da própria existência que se apresenta como
pura possibilidade e abertura ao ser. Desse modo, é livre para o mais peculiar 5 A DETERMINAÇÃO DA ESSÊNCIA DA TÉCNICA
poder-ser: modalizar, impropriamente, suas possibilidades cotidianamente MODERNA E A AÇÃO CLÍNICA
como a-fim-dos-outros ou acolher criativamente, desde o mundo, seu próprio
destinar-se, suspenso em suas possibilidades, existindo a-fun-de-si-mesmo Caminhando na tentativa de pensar a ação clínica desvinculada
(Barreto, 2006). do domínio da técnica, fenômeno essencial da ciência moderna, envere-
damos pelos escritos de Heidegger dos anos 40 e 50, nos quais o procedi-
Para Medard Boss, a ação clínica pode ser compreendida como:
mento desconstrutivo se tornaria mais radical, passando a exigir o ultra-
"... o fato dela mesma ser livre e permitir aos homens tornarem-se livres
dentro dela. Como psicoterapezitas queremos. no findo, libertar nossos pa- passamento (Übersvindung) da ciência e da própria filosofia pelo pensa-
mento não metafísico e que poderia favorecer "a constituição de discipli-
cientes para si mesmos Com a libertação psicotercipica queremos levar
nas científicas existencialmente fundadas, as quais escapassem dos dile-
nossos pacientes 'apenas' a aceitar suas possibilidades de vida e dispor mas e perigos em que a pesquisa científica tradicional se enreda sem sabê-
delas livremente e com responsabilidade" (1977, p. 61, grifas do autor).
-lo" (Duarte, 2010, p. 142).
Desse modo, a clinica como cuidado remete a um "aguardar" pa- Tal mudança paradigmática só é possível orientando os passos da
ciente e solícito, acompanhando o cliente no "desvelamento's das inúmeras pensamento em direção ao caminho que conduza à superação da metafísica.
possibilidades e modos-de-ser no mundo, na procura pela 'verdade" de sua Mas, como adverte Michela= (2000), superar a metafísica não pode ser um
história, da qual fazem parte o vigor de ter sido (o passado) e o que está por simples projeto de nossa vontade consciente, já que se trata de um "destina"
vir (o futw-o). Ser temporal é constitutivo do Dasein, e é no aí do ser-o-ai que aqui compreendido como aquilo que o âmbito da verdade do ser noS dispen-
o tempo se dá, tempo em que futuro, passado e presente se alcançam recipro-
sa. E, diante disso que o destino nos envia, "podemos tomar três atitudes:
resignarmo-nos, revoltarmo-nos ou nzeditar. Somente a ter eira é a que pode
4
Narrativa compreendida no sentido explicitado por Walter Benjamin ao assinalar a falên- traler transformações, pois é a única que verdacleirament2 é capaz de entrar
cia dás narrativas tradicionais. na modernidade, que poderiam proporcionar aos membros em diálogo com o que o destino nos remete" (Michelazzo, 2002, p. 11).
de unia comunidade uma experiência que possa ser dita e significada.
42 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
Prática Psicológica na Perspectiva Eenomenológica
No entanto, importa ressaltar que, ao propor a superação da metafí-
gger chama atenção para a diferença entre a técnica e sua essência, já que a
sica identificada à época da técnica, Heidegger não está propondo o abando-
essência não é algo propriamente técnico. A técnica seria um conjunto de
no ingênuo da técnica e da metafísica, nem jamais investiu contra a técnica,
meios para alcançar um fim, cabendo ao homem articular e julgar os meios
mas procurou considerar criticamente a falta de réfleião a seu respeito, ope-
necessários para o alcance dos fins — técnica instrumental. Já com relação à
rada pela época moderna. Como esquecimento do ser, a metafísica não é essenciaLla técnica, Heidegger interroga a definição da técnica como instru-
substituída por outra concepção do ser ou visão do mundo, mas é superada mento, coniidérando-a como ponto de partida para o pensamento voltado
no esquecimento do ser pelo reconhecimento da diferença ontológica entre para a compreensão da verdadeira essência dítécnica, pois "somente o ver-
ser e ente. Tal superação se dá no pensamento que medita o domínio incon- dadeiro nos leva a uma livre relação com o que nos toca a partir de sua
dicional da técnica e abre a possibilidade de assumir esse domínio como essência" (Heidegger, 2001a, p. 45).
claiirtação, ao marcar outra relação pensante para o modo de descobrimento
técnico do ser dos entes. Possibilidade que se apresenta pela redescoberta de Nessa direção, Heidegger recorre ao_pensamento_grego, no qual a
modos mais originários do desvelamento do ser dos entes via pensamento causalidade é pensada na sua dimensão original como deixar surgir e vir à _
meditativo. presença, como trazer à luz o que se apresenta, como,poiésis — produzir
.como deixar trazer o que foi produzido, retirando-o do velamento (Verbor-
Essa outra atitude, desprovida de qualquer certeza quanto à sua rea- genheit) para o desvelamento (Unverborgenheit). Assim a poiesis é um tra-
lização, foi denominada por Heidegger de "serenidade (Gelasseneheit) para
com as coisas". Assim, "A serenidade em relação às coisas e a abertura ao zer à luz o que se encontrava velado e estaria vinculada à concepção de ver-
dade como crletheia — a verdade em seu sentido originário como desvela-
segredo são inseparáveis. Concedem-nos a possibilidade de estarmos no
mento —, diferente da concepção da verdade como ventas — compreendida
mundo de um modo completamente diferente. Prometem-nos um novo solo
como adequação entre a coisa e a ideia — mas que impediria compreender a
sobre o qual nos possamos manter e subsistir (atehen und bestehen), e sem
perigo, no seio do mundo técnico" (Heidegger, 1959, p. 25). essência originária da técnica. Nessa direção, haveria uma distinção entre o
desocultar como "pro-duzir"(Her-stellen), um pôr-se adiante à luz, e o deso-
Mas, este modo novo de pensar não pode ser tomado visível, nem cultar que desafia e põe a natureza conto fonte de recursos disponíveis.
pode predicar e emitir valorações morais. Para Heidegger, na entrevista que
concedeu à revista Der Spiegel em 19665, "talvez se possa aventurar o se- Ao lado dessa reflexão, Heidegger (2001a) considera que o ente
guinte: ao mistério da superpotência planetária da essência impensada da desocultado pela tecnologia moderna, colocado e demandado para seu em-
técnica moderna responde a provisoriedade e a insignificância do pensar, que prego continuo, assume a posição ontológica que denominou por "subsistên-
procura refletir sobre esse impensado" (Heidegger, 1994, p. 225). Nessa cia", disponível para qualquer agenciamento tecnológico. Assim, "a palavra
mesma entrevista, esclarece que esse novo modo de pensar se encaminha 'subsistência' eleva-se agora à categoria de um título. Ela significa nada
para pensar de antemão os tempos que virão a partir das dimensões atuais e menos que o modo pelo qual tudo o que é tocado pelo desocithanzento desa-
impensadas da era atual, sem •pretensões de profecia, contribuindo fiante se essencializa" (Heidegger, 2001a, p. 61).
para que o
homem estabeleça outra relação, suficientemente rica e verdadeira, com a Além da natureza, o próprio homem como ente também estaria dis-
essência da técnica. Este outro modo de pensar a peculiaridade da técnica ponível para o agenciamento tecnológico de sua produção, conservação, des-
moderna "pode abrir a possibilidade de que o homem da era da técnica expe- truição e reprodução. Esse é o ponto extremo a que chega o diagnóstico heide-
rimente a vinculação a um apelo, que ele esta capacitado para ouvir, e ao ggeriano sobre o perigo implícito na técnica moderna denominada como "dis-
qual, sobretudo, ele mesmo pertence" (Heidegger, 2009, p. 39). positivo" (Gestell). Dispositivo que demarca o modo como o nosso presente
Mas corno escutar esse apelo e adotar outra postura com relação assume sua dirnensão "historial", seu caráter ontológico enquanto época histó-
àquilo que na técnica é essencial? Ao pensar a essência da técnica, Heide- rica determinada, diferente de outras épocas. Cada época histórica, compreen-
dida não como sucessão de momentos cronológicos, mas como modalidades
distintas de "abertura" na qual os entes vêm a ser o que são, se constitui como
Entrevista que. segundo o desejo de Heidegger, só foi publicada após seu falecimento em resposta humana a um determinado modo de desocultamento dos entes em seu
maio de 1976. Para consulta, recorreu-se à publicação de 1994. composta por um conjunto
de textos. denominada de "Escritos Políticos". Nessa publicação utilizou-se a tradução de ser. Assim, o dispositivo seria o modo como hoje nos relacionamos conosco,
Jean Launay publicada no `Mercure de France em Paris. 1977. com os demais homens e com tudo o que há na modernidade.
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenolágica 45
44 Carrilem Lúcia Brito Tavares Barreto
Assumindo a inspiração do poeta, é possível pensar que o perigo
No entanto, adverte-nos Heidegger (2001a), o perigo supremo não e a salvação se dão escondidas, era silêncio e no seu tempo. Daí decorre a
consiste na moderna tecnologia, mas sim em que o dispositivo da_ técnica m—- ortáncia de questionar a essência da técnica já que nela repousam as
ip
moderna, considerado como único modo de desoctiltar, pode ofuscar todos raízes da força salvadora — apenas onde surge o perigo, é possível pensar o
õs—cnitiós—m—odos de -desocultamento, inclusive aquele que possibilita levar o próprio perigo em sua essência e assim instaurar uma relação livre com o
Se à presença como acontecimento no sentido originário de poiésis e a próprio ser, um deixar-ser que não tenha como fim calcular e planejar tudo
concepção de verdade como o "acontecer do desocultar". Nessa direção ne- que é.
nhuma ação humana, considerada na sua dimensão instrumental, pode trans- Pensar a essência da técnica em seu caráter historial é pensá-la
formar a essência da técnica. Só outra relação entre homem e ser, que só como um envioque suscita a participação dó homem, enquanto aquele que
poderia ser esperada e preparada na ausência de qualquer certeza quanto à aceita resguardar e proteger a essêncirda verdade, consentindo em enviar o
sua realização, pode transformar a essência da técnica moderna, visto que a
áàontecimentodo desocultar, portanto aquilo que salva.
técnica moderna se configura como "abertura ontológica na qual os entes
fazem sua aparição no nosso tempo". (Duarte, 2010) Desse modo a nossa relação com o mando técnico pode se tomar
mais livre com relação ás determinações essenciais de nossa época, suscitan-
Nesse ponto, retomamos a "serenidade para com as coisas", associa- do (nitros sentidos possíveis Rara a existência do homem moderno, acossado
da por Heidegger (1959) ao pensamento meditativo como outro modo de gela técnica e pela ciência. E, portanto, possível pensar uma relação mais
preparar o acontecimento de outra relação com o ser — pensar o ser em sua
tranquila com o mundo da técnica se,
verdade, em seu acontecimento historial. O pensamento que medita aponta
para a necessidade de não permanecer vinculado a um único modo de repre- Deixamos os objetos técnicos entrar no nosso mundo quotidiano e ao
sentação (dispositivo), exige que nos ocupemos com o que parece inconciliá- mesmo tempo deixamo-los fora, isto ê, deixamos repousar em si mesmo
vel, à primeira vista. Ag reconhecer diferentes modos de pensar, Heidegger, como coisas que não são algo de absoluto, mas que dependem elas pró-
em Serenidade (1959), aponta para a simultaneidade da atitude de dizer sim prias de algo superior. [..] Nessa atitude já não vemos as coisas apenas
— pensamento que calcula — e não — pensamento que reflete — em relação ao do ponto de vista da técnica. Tornamo-nos clarividentes e verificamos
que o fabrico e a utilização de máquinas erigenz de nós, na realidade,
mundo técnico. Tal atitude aponta para o fato do homem não poder exercer uma outra relação com as coisas que, não obstante, não é sem sentido.
um controle voluntário do uso da técnica moderna nem deter o curso do desen- (Hcidegger, 1959, p. 24)
volvimento cientifico-tecnológico. No entanto, tal situação não significa
ficar resignado diante do avanço científico e técnico, mas exercer a atividade Ao reconhecer essa outra possibilidade de relacionar-se com o
de pensar o destino moderno em que todos se encontram. mundo da técnica, Heidegger ressalta a profunda modificação que está
Para tanto é necessário estabelecer uma relação livre .com a essên- acontecendo na relação do homem com a natureza e o mundo, alertando que
cia da técnica, via pensamento meditativo, na busca do mistério de toda ati- sentido que rege essa transformação permanece obscuro. sentido do
tude de desocultamento. Importa ressaltar que, na perspectiva heideggeriana, mundo técnico oculta-se — é algo que se oculta de nós e se oculta exatamente
homem só se toma livre ria medida em que "pertence ao ámbito do desti- por vir ao nosso encontro, como bem diz Aganbem (2010), ao tentar com-
no" (Heidegger, 2001a). Tal liberdade é distinta da noção moderna de livre preender o contemporâneo. Assim, o mistério, intrínseco ao sentido do mun-
determinação do querer humano via razão, presente na perspectiva huma- do técnico, demanda uma atitude de "abertura ao mistério" que junto à "se
nista. É pensada na sua dimensão ontológica como atenção solícita ao envio renidade em relação às coisas", são inseparáveis e;
historial que o homem contemporâneo foi lançado.
Assim, a essência da técnica mostra-se profundamente ambígua e Concedem-nos a possibilidade de estarmos no mundo de tun modo com-
pletamente diferente. Prometem-nos um novo solo sobre o qual possamos
misteriosa, arrastando consigo a possibilidade ameaçadora de poder vetar ao manter o subsistir (stehen und bestehen), e sem perigo, no seio do mundo
homem voltar-se para o descohnimento mais originário e fazer assim a expe- técnico. A serenidade em relação às coisas e a abertura ao mistério dão-
riência de uma verdade mais inaugural. Nesse momento de sua reflexão, -nos a perspectiva de um novo enraizamento, que agora se desvanece ra-
Heidegger intervém com a iluminação poética de Fitilderlin —"Ora, onde mora pidamente. (Heidegger, 1959, p. 25, grifos do autor)
perigo é lá que também cresce o que salva" (Heidegger 2001a, p. 31).
46
Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica 47
Com muito cuidado, ousa-se tentar uma compreensão da clínica
como a possibilidade de criar um espaço de reflexão e tematização deste No período da ontologia fundamental, a análise da linguagem esta-
modo histórico de desvelamento, ou seja, um espaço para meditar, uma va vinculada à analítica existencial e voltava-se para desvelar o caráter de
abertura a outros modos de pensar. Pensar que pode permitir a apropriação abertura do ser-o-ai em seu comportar-se para com o próprio ser. O Heide-
do jogo histórico que nos constitui e que pode revelar o modo instrumental gger tardio deslocou a ênfase da existência enquanto abertura manifesta no
modo de comportar-se do ser-o-aí com o pr&prio ser, para ek-ststência (Ek-
como nos relacionamos com os outros, com as coisas e com o mundo. sistenz), compreendida como correspondência para o aberto do ser enquanto
Tal modo de pensar exige esforço e carece de cuidado atento e si- tal. Na Kihre, Heidegger não mais afirma a linguagem como modo de ser do
lencioso, na escuta daquilo que está próximo e que diz respeito a cada ser-o-aí, mas indica que pensar a essência da linguagem é remeter o homem
um de
nós neste mundo dominado pela técnica, com transformaçêies em todas as ao lugar da sua 'essência', ao "recolhimento do acontecimento-apropriador".
representações dominantes, inclusive no modo como o homem se relaciona Nesse momento é possível articular a relação entre ser, linguagem e pensa-
com os outros homens, as coisas e o mundo. mento meditativo. Isto é, é pelo pensamento meditativo que o ser vem à lin-
O espaço da clinica pode apresentar-se como possibilidade de re- guagem que passa a ser compreendida como a casa do ser.
fletir sobre estas relações na busca de uni novo enraizamento e, desse modo, Nessa direção, pensar a ação clinica, inspirada no Heidegger tardio,
pôr-se a caminho via reflexão. Para isso é preciso reconhecer o aprisiona- remete a pensar a linguagem de maneira meditativa que supõe um expor-se à
mento operado pelo pensamento que calcula, experiência ao estranho. Assim, -a ação clinica não estaria voltada para res-
ao indicar um sentido único na
direção de urna representação ou de modo de ser no mundo, consigo mesmo Ponder a um conhecimento cientifico (teorias psicológicas), vinculado à lin-
e com os outros. O pensamento que medita aponta para o mistério e o que é guagem enquanto veículo da transmissão de informações sobre os sofrimen-
aparentemente inconciliável, permitindo correr riscos de soltar Os objetos, de tos humanos, que tentaria encontrar e explicar a causa de determinados 'dis-
questionar as relações e os modos como nos ocupamos das coisas. Desse túrbios da existência'. A ação clínica implicaria sófrer uma experiência com
modo, pode-se utilizar os objetos tal como podem ser utilizados e, simulta- a linguagem que se abre à experiência do pensamento que interroga e não
neamente, pode-se deixá-los repousar em si mesmos, impedindo que nos explica o ser da linguagem.
absolvam e que nos aprisionem.
Assim, apenas outro pensamento e outra linguagem poderiam aju-
Corno a ação clinica acontece via linguagem, importa refletir a dar ao homem a situar-se e buscar esclarecimento sobre o nosso momento
possibilidade de pensar a linguagem não como veículo da comunicação de contemporâneo de desenraizamento — de ausência de pensamento e de lin-
algo que acontece no interior do homem, nem como adequação entre con- guagem. Tal virada é necessária pois "somos muitas vezes pobres-em-
ceito e ideia. Em todo pensamento heideggeriano, a linguagem é pensada -pensamento; ficamos sem-pensamentos com demasiada facilidade. A au-
ontologicamente a partir da consideração da abertura — o modo no qual se sência-de-pensanzentos é uni hóspede sinistro que, no mundo actual, entra e
manifesta o próprio existir humano —, constituída pela compreensão, dispo- sai em toda parte" (Heidegger, 1959, p. II).
sição e discurso. Diferentemente de Ser e tempo,
sada como abertura (Erschlossenheit) onde a linguagem é pen- Nessa direção, pode-se questionar: poderia a ação clínica "propi-
propiciada pela apropriação de si cia?' ao homem assumir a sua capacidade de pensar, capacidade que lhe é
mesmo, no Heidegger tardio, a linguagem é pensada como abertura
nheit), nã- (Offe- inerente, apesar de estar numa época em que é comum a fuga de pensamen-
cliMensão de clareira do ser, cujo dizer revela o que diz na sua
tos? Tenta-se refletir esse questionarnento tendo como suporte o texto "Sere-
correspondência silenciosa com o ser que pertence à linguagem. Importa nidade" de Heidegger.
realçar que o discurso, em conexão com a compreensão e a compreensibili-
dade, se dá a partir das possibilidades existenciais da escuta e do silêncio, Como o homem está "destinado a pensar", a fuga de pensamentos é
_enraizados no existencial do discurso. O ouvir está fundado no escutar si- compreendida como fenômeno epocal, "e deriva do facto de o Homem não
lencioso e em sua compreensão, supondo um calar que possibilita tanto o querer ver nem reconhecer essa mesma fuga" (Heidegger, 1959, p. 12). Nes-
escutar a si mesmo e ao outro, como escutar o Chamado silencioso do ser se mesmo texto Heidegger afirma que
em seus envios epocais. Já o falar não é o mesmo que dizer, dizer significa
mostrar, deixar aparecer, deixar ver e ouvir. O Homem actual negará mesmo, redondamente, está em fitga de pensa-
mento". amará a contrario. Dirá — e com pleno direito— que em época
49
Prática Psicológica na Perspectiva Fenomenológica
- 48 Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
alguma se realizaram planos tão avançados, se realizaram tantas pesqui-
sas, se praticaram tantas investigações de forma tão apaixonada como
Como já foi dito, não é pretensão, da presente reflexão, aplicar o
actualmente. Com toda a certeza. Esse dispêndio de sagacidade e refle-
xão foi de extrema utilidade. Um tal pensamento será sempre indispensá- pensamento de Heidegger para criar uma nova corrente psicológica, mas
vel Mas convém precisar que será sempre um pensamento de uni tipo es- encontrar subsídios, no seu modo de pensar, para refletir novas possibilida-
pecial. (Heidegger, 1959, p. 13) des para a Psicologia e, em especial, para a ação clínica.
Assim, pode-se ousar dizer que a Psicologia, enquanto ciência, se for
Com essa colocação Heidegger explicita o pensamento calculante, pensada na sua radicalidade, não pode prescindir das estruturas ontológicas da
que, por não ser um pensamento que medita, não é um pensamento que re- poiésis e
fenomenologia existencial e da compreensão da técnica enquanto
flete sobre o sentido que atravessa tudo o que existe. Como o homem é o ser Desse modo, afasta-se do modelo de pensar metafisico que originou o
aletheia.
que pensa e medita, ele pode seguir o caminho da reflexão considerando seus pensamento do ocidente e a construção da ciência e da técnica moderna, como
limites. Mas, tal modo de pensar exige esforço, carece de cuidados e tem que também fundamentou a construção da Psicologia como ciência moderna.
saber aguardar o desvelar do fenômeno, na busca de um novo enraizamento, Ainda que haja poucas referências, no pensamento de Heidegger,
perdido no espírito do tempo da época em que estamos vivendo. sobre uma possível relação da analítica existencial e as ciências humanas e,
Diante de tal situação, Heidegger (1959) interroga a possibilidade em especial, com a Psicologia, seu modo de pensar a condição humana como
possibilita refletir sobre a constituição de uma Psicologia intemporal
do: "Homem ou a obra humana medrar do solo da terra do natal e crescer em
céu e do espíri-
Dasein
e uma análise existencial do psiquismo humano (Stein, 1988). Ainda segun-
r, ou seja. em direção à extensão (Weite)
direção ao Éte "não vê, portanto, na análise das estruturas
to? Ou cairá tudo nas tenazes do planejamento e do cálculo, da organização do o autor citado, Heidegger
invariantes sob o ponto de vista temporal do estar-ai uma necessária colisão
e da automatização?" (p. 17).
com as interpretações que se apresentam como empresa das diversas ciên-
Ao proferir tal questão. Heidegger indica, na celebração comemo- cias humanas ocupadas com as interpretações de questões existenciais no
rativa da morte de Conradin Kireutzer, a possibilidade de refletir sobre a per- (Stein, 1988, p. 92).
nivel empírico"
da de enraizamento de nossa época, alertando para o perigo do domínio do Para além da analítica existencial, a partir do Heidegger da segunda
modo de pensar calculante que poderia passar a ser exercido como o 'único'
metade dos anos 40, vai-se consolidando a limitação da atitude científica em
pensamento admitido no momento atual. Caso isso aconteça, o homem teria termos dos procedimentos metódicos de objetivação do ente, já que o inte-
rejeitado o que lhe é mais próprio, o fato de ser um ser que reflete. Alerta resse técnico-cientifico está voltado para assegurar, de maneira planejada e
para a importância de "salvar essa essência do homem. Por isso o impor- dalculada, as possibilidades de produção, reprodução e até destruição, visto
tante é manter desperta a reflexão" (Heidegger, 1959, p. 26). que a ciência e a técnica moderna se tomaram cada vez mais intervencionis
-
Seria muita ousadia pensar a situação clinica como um espaço que tas. Tal atitude, ao implicar uma nova determinação ontológica de tudo o que
possa aguardar, de modo respeitoso e silencioso, a reflexão meditante sobre há corno subsistência, considera o próprio homem como agenciamento tec-
modo como o cliente está vivendo a sua vida e como está compreendendo nológico de sua produção.
momento atual? A ação clínica poderia possibilitar o alvorecer do estranho Este perigo, alertado por Heidegger (1959), pode também se apre-
e a possibilidade da emergência de sentido que resulte da reflexão decorrente sentar na configuração da ação clínica, perfazendo urna Psicologia mediada
do pensamento meditativo? A própria ação clínica não deveria estar atraves- pelas representações diagnósticos e por intervenções prescritivas e técnicas
sada pelo pensamento meditativo, não mais ancorada em dimensões metal"- como, procedimentos destinados a atingir um determinado fim — a cura dos
sicas e prescritivas na busca da remissão dos sintomas e na retomada da se- sintomas. Desse modo, é possível, manipular, controlar, tamponar e objetivar
gurança ocasionada pela fuga de pensamentos?
sofrimento humano.
Com essas questões, apresentam-se reflexões/interrogações sobre a Diante de tal possibilidade, encaminha-se, ainda que de modo incon-
ação clinica mediada pela questão da técnica moderna, alertando que se en- cluso, reflexões no sentido de pensar a ação . clínica como um modo de estar
contram em trânsito aquecidas pelas situações clínicas e pelo pensamento _ . manter-nos despertos, no aguardar, silencioso
com o outro/cliente, que
heideggeriano.

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Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto

e atento, o pensamento que medita, já que "a serenidade para com as coisas e
a abertura ao mistério nunca nos caem do céu. Não seio frutos do acaso
(nichts• Zu-ffiliges). Ambas medram apenas de um pensamento determinado e
ininterrupto". (1-leidegger, 1959, p. 26).

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