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ECOLOGIA COSMOCENA: a redefinição do espaço humano no cosmos 1ª edição

Book · May 2016

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1 author:

Vilmar Pereira
National Council for Scientific and Technological Development, Brazil
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Vilmar Alves Pereira

ECOLOGIA
COSMOCENA
a redefinição do espaço humano no cosmos

1ª edição
ECOLOGIA COSMOCENA:
A REDEFINIÇÃO DO ESPAÇO HUMANO NO COSMOS
© 2019 Vilmar Alves Pereira
Todos os direitos reservados

1ª Edição – Editora GARCIA


Brasil – Junho de 2019
ISBN 978-65-80264-33-9

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


_____________________________________________________
Pereira, Vilmar Alves
Ecologia Cosmocena / Pereira, Vilmar Alv es -- 1ª ed. -- Juiz de Fora,
MG : Editora GARCIA, 2019.
ISBN 978-65-80264-33-9

1. Educação. 2. Educação ambiental. 3. Ecologia cosmocena. I Titulo.

CDD – 372.357
________________________________________________________

Design Gráfico: Editora GARCIA


Revisão: Helen Bampi
Editado por: Editora GARCIA
Site: www.editoragarcia.com.br
E-mail: info@editoragarcia.com.br
Para Luciane Oliveira Lemos,
esposa amada, em agradeci-
mento pelo seu amor cosmoceno
em minha dimensão do mundo
da vida!

Gratidão sempre!
VILMAR ALVES
Filho de Pequenos agricultores do
interior de Santa Catarina. Doutor em
Filosofia da Educação pela
Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS); Líder do Grupo de
Estudos em Fundamentos da
ucação Ambiental e Popular
(GEFEAP); Professor das disciplinas
Teorias da Educação e Hermenêutica
e Educação Ambiental no Instituto de
Educação e nos Programas de Pós­
graduação PPGEA (na Linha de
Pesquisa Fundamentos da Educação
Ambiental), PPGEDU da Universidade
Federal do Rio Grande; Editor Chefe da
Revista REMEA; Desenvolve ativida­
des no campo da Educação Popular
nas Políticas de Acesso ao Ensino
Superior no contexto dos Pré­
Universitários Populares no PAIETS.
Foi Pró-Reitor de Assuntos Estudantis
- FURG onde atuou nas políticas de
permanência dos filhos (as) de
trabalhadores na Universidade. é pai
de Bibiana, Clara e Francisco, esposo
de Luciane Lemos e também atua
como trabalhador do movimento
espírita Kardecista em Rio Grande e
Região.
SUMÁRIO

PREFÁCIO (Michéle Sato)................................................9


APRESENTAÇÃO...........................................................13
1 DO HORIZONTE DA DISCUSSÃO............................18
2 DA RACIONALIDADE AMBIENTAL PÓS-META-
FÍSICA.............................................................................22
2.1 A dimensão plural da Educação Ambiental............22
2.2 A relevância dos contextos e da linguagem............25
2.3 Da mudança na relação sujeito-objeto....................28
2.4 Mudança na relação entre teoria e prática..............31
2.5 Da dimensão epistemológica para a ontológica da
Educação Ambiental.....................................................34
3. DA CONCEPÇÃO DE Ecologia Cosmocena..............41
3.1 Da Ecologia Cosmocena: uma intuição hermenêu-
tica................................................................................42
3.1.1 Da nova relação Natureza-Humanidade.....44
3.1. 2 Da desaceleração do tempo como garantia
da vida.................................................................46
3.1.3 Da sintonia com novas sabedorias.............51
3.1.4 Do cuidado como reaprendizagem vs. consu-
mo desenfreado...................................................56
3.1.5 Da descolonização do mundo da vida........59
3.1.6 Por um mundo diverso e sem preconceitos. .64
3.1.7 Da condição de incompletude....................65
3.1.8 Do lugar da Educação Ambiental na Ecolo-
gia Cosmocena....................................................68
3.1.8.1 Para quem deve ser pensada a
EA?.......................................................69
3.1.8.2 Onde deve ser praticada?..........69
3.2. Movimentos compreensivos.................................70
4. POR UMA PEDAGOGIA COSMOCENA..................72
4.1 Aprendizagem humanista relacional.....................73
4.2 Aprendizagem como processo de valorização da
vida.............................................................................74
4.3 Aprendizagem enquanto hermenêutica dos saberes
não reconhecidos........................................................76
4.4 Aprendizagem do cuidado....................................78
4.5 Aprendizagem dos saberes Primevos....................80
4.6 Aprendizagem com as diferenças.........................82
4.7 Aprendizagem transcendental...............................84
4.8 Aprendizagem do ambiente inteiro.......................86
5. DA INCONCLUSÃO COSMOCENA: carta às amigas
e amigos cosmocenos.......................................................89
REFERÊNCIAS...............................................................93
PREFÁCIO

Fortes esperanças foram depositadas para este sécu-


lo 21, com propostas de agendas, guinadas conceituais,
vivências exitosas ou a busca da luz do fim do túnel, já
que, para muitos, havíamos atingido o fim do poço e o
esgotamento dos paradigmas da Modernidade. Contudo,
vivemos um período conturbado, com discórdias entre ju-
deus e palestinos, discórdias na Síria, a primavera árabe e
os conflitos na Grécia. Com atentados na França, que,
após tanta política de colonização e controle sobre os
grupos vulneráveis, pareciam ser inevitáveis a qualquer
hora. Mesmo alguns argumentando “Je ne suis pas Char-
lie”, em protesto à política de migração da Europa, como
um todo, não era possível negar a violência que consumia
toda a humanidade e a sua liberdade de expressão.
De golpe em golpe, assistimos recentemente a cerca
de dois milhões de pessoas nas ruas brasileiras (março de
2016), que, sob a metáfora da corrupção, reivindicavam a
“ordem e o progresso” sob a égide do militarismo. Não se
pode negar a força do movimento, ainda que seja bastante
difícil compreendê-la, muito menos defendê-la. Neste
mesmo ano de 2016, testemunhamos o pior prejuízo soci-

9
oambiental no cenário brasileiro, quando a barragem da
Samarco arrebentou não só os estados de Minas Gerais e
Espírito Santo, mas todas as bordas e não bordas de um
dramático dilema socioambiental sem fronteiras.
Neste momento de esgotamento dos paradigmas e de
catástrofes socioambientais na humanidade, necessitamos
de reflexão que consiga subsidiar nossos pensamentos,
ações e sensações. Não se trata de remeter ao positivismo
e à resolução de problemas, mas essencialmente de com-
preender o momento que nos absorve. Assim, Vilmar Pe-
reira busca transcender o conceito da Era Antropocena,
reivindicando o ser no tempo do cuidado. O zelo com o
outro humano, com os não humanos, com os elementos
da natureza e a construção de sociedades sustentáveis que
consigam construir uma Ecologia Cosmocena.
Clamando por uma hermenêutica pós-metafísica,
Vilmar permite que a linguagem filosófica seja também
poética. Aqui não há controle da natureza na suprema
hierarquia da superioridade humana, mas uma rede tecida
em múltiplas dimensões que conecta a pulsação
planetária. Se a racionalidade for mesmo inteligente,
obviamente ela acolherá a emoção na fecundidade da
linguagem à construção do vir a ser ontológico. E já não
basta o essencialismo grego, de dimensões metafísicas e
transcendentais, mas também da reinvenção de uma
educação ambiental pós-metafísica, desde sua existência
ao devir de esperanças.
A pedagogia cosmocena cunhada por Vilmar se an-
cora na concepção de um humano integral, capaz de aliar

10
razão e sentimento; corpo e espírito; ser e vir a ser e ou-
tras condições ontológicas consubstanciadas pelas dife-
rentes dimensões da epistemologia, ramificadas em di-
versos saberes sem hierarquia. E, por isso, elimina-se a
primazia que possa existir entre aqueles que sabem, os
que fazem ou aqueles que sentem. A linguagem não obe-
dece à rigidez linguística de regras e elitismo, nem se re-
sume em sublinhar somente o texto, mas incorpora outras
linguagens à travessia adiante. Por meio da subjetividade,
a Ecologia Cosmocena reconhece os diferentes olhares
que interpretam o mundo.
No pensamento cosmoceno, há uma exigência cons-
tante de visitar e revisitar de que maneira construímos
nossas relações com o mundo natural, ampliando os sen-
tidos para o abandono de uma filosofia antropocêntrica e
fragmentada para um pensamento mais biocêntrico e in-
tegral. Vilmar é eloquente em enfatizar a palavra “cuida-
do” — olhar o mundo não significa somente observá-lo,
mas é necessário estabelecer novas relações com o outro,
situados no mundo.
Enfim, são propostas importantes e urgentes à edu-
cação ambiental, que carece de debates epistemológicos
mais fecundos frente a este século. A formação e os estu-
dos filosóficos conseguiram delinear o Vilmar com ousa-
dia a construir a Ecologia Cosmocena. E seus argumentos
talentosos já conseguiram conquistar aquilo que conside-
ro importante na educação ambiental: a aliança de cam-
pos conceituais densos (episteme), na fecundidade da vi-
vência da educação ambiental (práxis), que jamais se des-

11
pedem de nossos valores, coragem e ética (axioma) de
valorizar a vida.
Não é sem tempo que esta obra surge com vital im-
portância para compreender o que estamos vivenciando,
refletindo as ações de mudanças para que a ética consiga
ser vitoriosa sobre os destinos da vida e dos elementos da
natureza que consagram um esperançoso devir.

12
APRESENTAÇÃO

Nos últimos 25 anos desde o meu ingresso na Filo-


sofia, ao estudar os pré-socráticos, sempre tive uma preo-
cupação em compreender a humanidade a partir de suas
múltiplas dimensões. De certo modo, eram leituras inci-
pientes, ainda que demonstrassem, dentro de um horizon-
te metafísico1, o esforço de compreensão desses pensado-
res buscando traduzir em significados as múltiplas rela-
ções humanidade-natureza.
O contato com esses pensadores foi de modo especi-
al muito profícuo e permitiu na sequência alargar o hori-

1 Caracteriza-se como “metafísico” o pensamento de um idealismo


filosófico que se origina em Platão, passando por Plotino e o neo-
platonismo, Agostinho e Tomás, Cusano e Pico de Mirandola,
Descartes, Spinoza e Leibniz, chegando até Kant, Schelling e He-
gel. É, conforme já apontamos, o modelo que prima pelo pensa-
mento da identidade, da busca de explicar a origem e a essência
em cada ser; da restrição do múltiplo ao uno, das bases idealistas
que pretendem explicar o ser desde Platão; da ordem fundadora da
unidade que subjaz como essência dos fenômenos e da ideia de hi-
erarquização dos conceitos de Platão. Esse modelo atribui um lu-
gar privilegiado à filosofia e à teoria, que, transcendendo a práti-
ca, pretendem explicar esses saberes transcendentais
(HABERMAS, 1990, p. 38-40).

13
zonte compreensivo com Sócrates, Platão e Aristóteles.
Como minha formação se deu no contexto da vida ecli-
ástica num seminário de estudos preparatórios ao sacer-
dócio, muito relevante foi essa relação Platão-Santo
Agostinho, Aristóteles e Santo Tomaz de Aquino.
A culminância da graduação (1992-1996) se deu no
horizonte de uma nova metafísica em que estudei a Moral
Kantiana como superação do relativismo de David Hume.
Ali já havia encontrado a grande referência moderna para
pensar a concepção de sujeito e os possíveis horizontes
da humanidade que, pela razão, é adulta e emancipada.
O Projeto de ingresso no mestrado (1998-2000) co-
meça com Kant, mas ganha relevância na perspectiva de
Jean-Jacques Rousseau, em que, além de descobrir a gê-
nese da infância moderna, defendi a tese de que existe no
conjunto de três obras de Rousseau (Emílio ou da Educa-
ção; do Contrato Social e Emílio e Sophia, Os Solitários)
uma unidade pedagógica em que a educação ocupa papel
preponderante nesse horizonte. No entanto, ainda perma-
necia com o olhar a partir do paradigma metafísico.
No ano de 2001, na condição de aluno especial da
Disciplina A Crítica do Sujeito, no Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, comecei a ter contato, através da profes-
sora Nadja Hermann, com leituras que colocavam sob
suspeita o referido paradigma. Essas leituras eram sobre
Nietzsche, Freud, Heidegger, Michel Foucault, Adorno e
Horkeimmer, Habermas e Gadamer. Confesso que tive
inúmeras crises epistemológicas e ontológicas, principal-

14
mente no que se refere a leituras que sugerem de modo
geral maior abertura compreensiva em nosso modo de
ser. E esse foi meu grande crescimento no estudo do dou-
torado (2003-2008), no qual discuti, nessa epistemologia
de fronteira, Infância e Sujeito no contexto do Pensamen-
to Pós-Metafísico.
A partir de 2009, na condição de Professor, Pesqui-
sador, Extensionista e Pró-Reitor de Assuntos Estudantis
aqui na Universidade Federal do Rio Grande - FURG, ve-
nho buscando pelo horizonte dos Fundamentos da Educa-
ção Ambiental Popular alargar a compreensão sobre nos-
sas relações socioambientais. Dessa maneira, os estudos
que venho realizando começam discutindo em 2010 a te-
mática da Subjetividade e Racionalidade, buscando de-
monstrar a estreiteza dessas categorias de corte metafísi-
co e apontar para a fecundidade dos estudos Habermas e
Gadamer a partir da Hermenêutica Filosófica. Essas re-
flexões, associadas a inúmeras outras vivências do mun-
do da vida, me permitiram perceber um espaço de possi-
bilidades compreensivas sobre o campo dos Fundamentos
da Educação Ambiental (EA), onde, a partir de um olhar
hermenêutico, é possível compreender a crise ambiental e
pensá-la no contexto do pensamento pós-metafísico.
Dessa maneira, os estudos mais recentes que realizei
acenam para a tese que defendemos, que parte do reco-
nhecimento de que há vestígios de um profundo desloca-
mento no campo dos Fundamentos da Educação Ambien-
tal. Esse deslocamento aponta mais para uma compreen-
são ontológica do que epistemológica. A EA deve com-

15
preender esse deslocamento a partir da crise da metafísi-
ca e perceber possíveis decorrências para as epistemolo-
gias que orientam os seus debates.
Buscando ainda compreender a humanidade com
suas múltiplas dimensões, a crise socioambiental, civili-
zatória e fundamentalmente a crise de sentido, a partir do
contexto do Pensamento Pós-Metafísico, é que esta obra
tem a pretensão de propor ao campo dos Fundamentos da
Educação Ambiental uma nova compreensão sobre as
discussões no que se refere à relação humanidade-nature-
za. Reconhecendo o horizonte da era Antropocena, em
que se avalia o impacto das atividades humanas como de-
terminantes na alteração ecológica do planeta, sugerimos
uma Ecologia que denominamos Cosmocena — não en-
quanto uma era, mas enquanto uma necessidade herme-
nêutica de reposicionarmos a referida relação. Trata-se de
um estudo de inspiração em leituras da Hermenêutica
(Gadamer, 2002); Física Quântica e Ecologia (Capra,
2006; 2011); Pensamento Pós-Metafísico (Habermas,
2002; Leff, 2006); Astrofísica e Filosofia — Inteligência
Espiritual (Zohar; Marshall, 2012); Ecologia e Ética
(Boff, 2012); Ambientalismo e Medicina (Lovelock,
2010) e Biodiversidade (Wilson, 2008). Esses referenci-
ais nos indicam a possibilidade de uma ecologia com
maior sintonia entre a natureza e a humanidade, redefi-
nindo olhares, vivências e aprendizagens com o cosmos.
Organizei esta obra em quatro capítulos, sendo que o
primeiro apresenta o horizonte epistemológico e ontoló-
gico da discussão a partir dos Fundamentos da Educação

16
Ambiental; o segundo tem a pretensão de definir o con-
ceito de Racionalidade Ambiental Pós-Metafísica, tendo
como referência primeira Leff e Habermas; no terceiro,
apresento a Teoria Ecologia Cosmocena e no quarto, a
reivindicação de alguns apontamentos de uma Pedagogia
Cosmocena.

17
1
DO HORIZONTE DA DISCUSSÃO

Estudando a história de algumas civilizações ociden-


tais que demarcaram com sua presença suas identidades,
temos nelas um traço comum no que concerne a questões
ecológicas: uma profunda sintonia natureza-humanidade.
Nesse sentido, vemos que as civilizações: grega pré-
socrática (Europa), maia (América do Sul e Central), as-
teca (América Central), inca (América do Sul), guarani
(América do Sul — Brasil), caingangue (América do Sul
— Brasil), com sua pluralidade cultural e suas amplas di-
mensões transcendentais expressas em suas crenças, não
apenas habitaram ou ocuparam lugares no cosmos, mas
viveram em profunda sintonia com ele: seus valores, sa-
beres culturais, suas magias, suas formas de relação hu-
manidade-mundo, expressam cosmovisões que necessi-
tam ser estudadas, aprendidas e praticadas. Nessa sinto-
nia, há inúmeros registros de uma Ecologia Cosmocena.
Nela, é a humanidade que aprende com a natureza.
No momento em que a era antropocena denuncia
talvez a forma mais selvagem de relação humanidade-
natureza, com vestígios absurdos, demonstrando o esgo-

18
tamento dos paradigmas clássicos fundados numa pers-
pectiva antropocêntrica; de desastre ecológico como o
imensurável evento Mariana (MG); de denúncia do esta-
do de exceção no Mato Grosso do Sul (MS) para o geno-
cídio indígena em favor dos donos do agronegócio; tem-
pos em que os conflitos socioambientais tomam propor-
ções inimagináveis, com aparecimento de crianças mor-
tas na praia em consequência do horror do radicalismo do
estado islâmico, das guerras políticas e econômicas no
Oriente e em outras partes do planeta; período em que a
racionalidade estratégica mostra sem disfarces todas as
suas faces em busca do lucro e do poder. Cabe a nós ou-
tros pensarmos fundamentos de outra Educação Ambien-
tal e, se me permitem, aqui proponho tratar de uma outra
ecologia.
Ao estabelecermos discussões sobre a já constatada
crise civilizatória (LEFF, 2006), crise de sentido (ZO-
HAR; MARSHALL, 2012), crise entre ciência e religião
(WILSON, 2008) e, por decorrência, crise socioambien-
tal (LOVELOCK, 2010; BOFF, 2012; LOUREIRO,
2004), vemos que o diagnóstico feito pelos autores reco-
nhece tratar-se de uma crise de paradigma, em que o pa-
radigma metafísico, que acreditou ser portador de sentido
na busca dos fins últimos do homem, encontra-se agora
desencantado, porque as essências por ele indicadas
como verdades podem ser, e são, no contexto atual, rela-
tivizadas. Consideram tais autores que, não havendo mais
esse berço de verdades e teleologias seguras, todos os
conceitos pensados, que serviram de base para a metafísi-

19
ca, ao serem reavaliados, apresentam-nos diversas fragili-
dades, como pode ser visto, por exemplo, nas leituras de
Nietzsche e Adorno.
No entendimento de Habermas (1990, p. 43), essas
fragilidades começam a ser percebidas já no interior da
modernidade. Para o filósofo, o pensamento metafísico
vigente até Hegel está coadunado com esse pensamento
da identidade, consumado por uma filosofia da consciên-
cia. No entanto, para Habermas, esse pensamento já é
posto em questão pelo novo tipo de racionalidade metódi-
ca e pelas formas de experimentação que se impõem ain-
da no século XVII. Entende que outras fragilidades mani-
festam-se com a emergência das ciências histórico-her-
menêuticas, que trazem em seu bojo novas reivindica-
ções, principalmente a de que uma consciência histórica
não admite mais aquelas dimensões de finitude tão bem
desenvolvidas e apontadas pelo idealismo; outro fator im-
portante, apontado por Habermas, é que, a partir das
práticas e dos processos de objetivação que se inserem
inclusive nas formas de relacionamento, há o apareci-
mento e a necessidade de um deslocamento da filosofia
da consciência para a filosofia da linguagem. E, por fim,
Habermas destaca mais uma necessidade: a do agir co-
municativo a partir dos contextos cotidianos negados
pelo modelo metafísico.
Os fundamentos que se desestabilizam dizem respei-
to aos princípios logocêntricos, pedagógicos, econômi-
cos, culturais, políticos e ambientais que coroaram a mo-
dernidade como “novos tempos”, a partir dos quais seri-

20
am alcançados os grandes anseios da humanidade. É, na
verdade, a crise de uma crença profunda em valores
emancipatórios.
A partir dessa constatação, Habermas retoma as mo-
tivações da emergência do pensamento pós-metafísico,
considerando o esgotamento do paradigma da filosofia da
consciência e a emergência da filosofia da linguagem
como possibilidade de uma nova hermenêutica e de no-
vos entendimentos sobre as temáticas postas em questão.
De acordo com Habermas, na racionalidade ociden-
tal quatro grandes movimentos sobreviveram: o platonis-
mo, o aristotelismo, o racionalismo e o empirismo. Esses
movimentos tangenciam a história da filosofia ocidental.
Também entende que, na atualidade, presenciamos a in-
fluência de outros cinco grandes movimentos que fazem
parte do debate filosófico com grandes contribuições: a
fenomenologia e principalmente a filosofia analítica; a fi-
losofia da ciência pós-empirista; o estruturalismo e o
marxismo ocidental.
Em estudo recente no campo de Fundamentos da
Educação Ambiental, defendendo a tese de que “há vestí-
gios de um profundo deslocamento no campo da Educa-
ção Ambiental e que esse deslocamento aponta muito
mais para uma compreensão ontológica do que epistemo-
lógica na maneira como pensamos e sentimos a EA”, pro-
pomos apresentar o horizonte de uma Racionalidade Am-
biental Pós-Metafísica. A importância dessa discussão
contribui no sentido de situarmos as vertentes das discus-
sões que culminam na Ecologia Cosmocena.

21
2
DA RACIONALIDADE AMBIENTAL
PÓS-METAFÍSICA

Procurando demonstrar que o conceito de racionali-


dade que orienta a ciência moderna apresenta algumas li-
mitações para o debate no campo dos Fundamentos da
Educação Ambiental e, consequentemente, para buscar-
mos alternativas para a já referida crise, partimos do con-
ceito de Racionalidade Ambiental de Leff e pelo viés da
filosofia procuramos uma definição de racionalidade no
horizonte Pós-Metafísico. Entre tantos aspectos que ca-
racterizam essa racionalidade, destacamos os seguintes
contornos que a identificam:

2.1 A dimensão plural da Educação Ambiental

Um dos pontos de clivagem do pensamento meta-


físico foi a capacidade de buscar a unidade e a identidade
a partir de estratégias que visavam reunir em si todas as
condições para apreensão da realidade. Buscava-se com
isso a unidade do todo, oriundo das ideias monoteístas

22
que negavam qualquer forma de multiplicidade. As leitu-
ras que temos de Fundamentos em EA apontam para con-
cepções de natureza como um campo em que esse ele-
mento unificador é comum. Os estudos que fizemos até
apontam para a necessidade de ruptura de um fundamen-
to absoluto. Podemos afirmar que, no contexto do pensa-
mento pós-metafísico, a EA assume outras interpretações.
Ou seja, já não é mais possível atualmente, nas múltiplas
formas de vida, falarmos em EA a partir de concepções
prévias que, pelos processos de subjetivação, pretende-
ram dizer, definir ou engessar a pluralidade da EA dentro
de uma única roupagem.
Ao apontar para o reconhecimento das diferentes
perspectivas e para o esfacelamento dessa unidade, o
pensamento pós-metafísico pode trazer à leitura da de di-
versas tentativas metafísicas EA outros significados, que
sejam sensíveis a dimensões desse vir a ser, na medida
em que não aponta para acepções monistas e engessadas
de EA. No entanto, é aqui que pode residir um perigo.
Trata-se do risco de cairmos num profundo relativismo.
O referido relativismo pode ser resultado, justamente, das
insuficiências que pretenderam apresentar soluções e fór-
mulas prontas aos conceitos investigados, ao demonstrar-
mos que elas não dão mais conta de promover uma expli-
cação sintonizada com os novos contextos.
Pode parecer, num primeiro momento, paradoxal,
mas é nesse ponto que a noção de consenso 2 habermasia-

2 “A ideia de consenso em Habermas está associada diretamente à


sua teoria da verdade. Ou seja, o significado de verdade define-se

23
no pode contribuir como horizonte para novas leituras de
EA. A ideia de consenso pode se tornar efetiva para com-
preendermos que a educação necessita de um conjunto de
categorias orientadoras da ação pedagógica. Justamente
nesta perspectiva é que uma filosofia que pretenda articu-
lar unidade e pluralidade pode iluminar nossa compreen-
são do momento em que se desestabilizam os conceitos
originários da tradição metafísica. Nesse sentido, não ha-
vendo a busca de consensos mínimos, ficam indefinidos
os critérios para estabelecer um núcleo comum de orien-
tações normativas para discutirmos qual é a educação

no seu interior como consenso. Mas como se chega a ele? Na ação


comunicativa diária, pressupomos pretensões de validade que são
dadas por aceitas, isto é, não são questionadas. É só quando uma
pretensão de validade torna-se problemática que se pedem as ra-
zões pelas quais ela deve ser aceita. Senão estas razões ficam
como ocultas, mas a disposição, caso se exija sua representação.
Quando as razões devem ser apresentadas, passa-se, então, para o
que Habermas chama de discurso. No discurso, distinguimos entre
questões de gênese (constituição da experiência) e questões de
justificação (verdade) — trata-se desta última. No discurso, o úni-
co móvel que deve determinar o seu desenrolar é o ‘desejo’ sério
de chegar a um entendimento, a um acordo. Não um acordo fati-
camente estabelecido pelos participantes efetivos naquele discur-
so, mas um acordo em que devem ser consideradas as razões de
todos os participantes potenciais do discurso. A partir disso, esta-
belece-se um consenso válido para todos os seres racionais. [...] O
que gera o consenso é a própria cadeia dos atos de fala que apare-
cem como justificados. O consenso não é um método de obtenção
da verdade, mas caracteriza a natureza da própria pretensão de va-
lidade que está na dimensão pragmática [...] Tal consenso só tem
validade se for obtido sem qualquer tipo de coação. Não é o con-
senso fático que determina a natureza dessa pretensão de validade,
mas a possibilidade de, em qualquer momento, apresentar-se
como justificada.” (DUTRA, 2005, p. 125-131)

24
ambiental que almejamos.
Não se trata aqui de um discurso retrógado entre
aqueles que reconhecem a pluralidade e aqueles que são
contrários. No entanto, temos que refletir que, ao reco-
nhecer a pluralidade de formas de vida, somos lançados
para fora daquela concepção romântica com natureza que
implica diretamente a forma como compreendemos a EA.
A grande contribuição da pluralidade em relação à
EA consiste na reivindicação de, além da busca de con-
sensos mínimos, percebermos um profundo alargamento
das possibilidades de sentirmos e compreendermos o seu
campo. É compreender que existe multiplicidade de for-
ma e de sentidos nas relações socioambientais. Conceber
a EA a partir desse horizonte exige de nós inúmeros des-
vencilhamentos.

2.2 A relevância dos contextos e da linguagem

A guinada linguística colocou o filosofar


sobre base metódica mais segura e o liber-
tou das aporias das teorias da consciência.
Neste processo, configurou-se, além dis-
so, uma compreensão ontológica da lin-
guagem que torna sua função hermenêuti-
ca, enquanto intérprete do mundo inde-
pende em relação aos processos intramun-
danos de aprendizagem e que transfigura
a evolução dos símbolos linguísticos inse-
rindo-os num evento poético originário
(HABERMAS, 2002, p. 16).

Outras dimensões que passam a ser muito reivindi-

25
cadas no contexto da racionalidade pós-metafísica ambi-
ental são as do contexto e da linguagem. De certa manei -
ra, mesmo sem nos darmos conta da densidade dessa
compreensão, estamos percebendo nos últimos tempos o
quanto as pesquisas e práticas em EA vêm considerando
e reivindicando tanto nas epistemologias quanto nos mé-
todos a importância dos contextos e da linguagem como
pano de fundo que nos propicia compreender a EA a par-
tir das dimensões do mundo prático.
Ao reconhecer que a realidade é plural, considera-
mos que essa compreensão traz em seu bojo algumas exi-
gências. Essas exigências estão indicadas pelo contextua-
lismo por um lado e pela força que a linguagem exerce
nesses contextos por outro. O contextualismo indica e su-
gere leituras de EA com especificidades, necessidades e
sentidos próprios, tendo por referência seus arranjos soci-
oambientais. Não há mais como reprimir essa pluralidade
de formas. A linguagem está dada desde já e permite no-
vas expressões da EA. Não se trata de criarmos novas ca -
tegorias, mas de permitirmos que a EA se expresse a par-
tir de cada contexto.
As faces que a EA assume estão associadas com a
relevância dos contextos cotidianos enraizados nas expe-
riências do mundo prático. É sabido que nesse novo con-
texto, como consequência da filosofia da linguagem em
oposição à filosofia da consciência e ao modo objetiva-
dor da ciência e da técnica, a relação homem-natureza
conquista novas garantias: maior expressividade e intera-
ção, e rompe, também, com a relação sujeito-objeto.

26
Ao pluralizarmos a EA, ocorre um alargamento da
compreensão desse campo e, ao mesmo tempo, são cria-
dos novos desafios aos múltiplos contextos que com ela
se relacionam. Não se trata mais agora de retroceder a
uma definição apriorística de natureza que embasa a EA,
mas de autorizar que ela se possa expressar em suas sin-
gularidades. Aqui talvez estejamos falando de Educações
Ambientais.
Abre-se com isso o questionamento: em que medida
estamos em condições de reconhecer no campo da educa-
ção esses movimentos? Temos condições de enfrentar pe-
dagogicamente essas novas exigências? Vale lembrar que
essas exigências não foram inventadas, mas já estavam,
desde há muito, em nossos contextos, apenas não as per-
cebíamos.
Significa que temos que redefinir as nossas formas
de compreender EA. A dificuldade que tivemos vem des-
de a busca do primeiro princípio que os gregos tanto al-
mejavam, visando superar as múltiplas formas de expli-
car a realidade através dos enredos e explicações míticas.
A razão como identificam os autores da Dialética do Es-
clarecimento já nasce debilitada. Ela traz em si a ideia de
domínio da natureza. Essa mesma racionalidade, quando
empenhada em descrever a relação homem-natureza, res-
tringe-a de forma violenta, sufocando as potencialidades
e sua fecundidade.
Vale lembrar também que, no contexto do pensa-
mento pós-metafísico, a linguagem não deve ser vista
como instrumento ou como meio, mas como dimensão

27
fundacional. Somos intérpretes do mundo, como nos en-
sina a hermenêutica. Os homens existem na e pela lingua-
gem. Somos humanos porque possuímos linguagem,
como afirma Heidegger.

2.3 Da mudança na relação sujeito-objeto

A relação sujeito-objeto tem ocupado inúmeras pági-


nas desse famoso enredo denominado Racionalidade Oci-
dental Metafísica. Nessa relação, segundo Adorno e
Horkeimmer, há uma necessidade do homem, ao se reco-
nhecer portador do logos, de manter uma preponderância
sobre os demais seres, considerando-se inclusive superi-
or. Isso aparece no contexto grego, descrito na Odisseia,
onde o homem utiliza da razão para ludibriar as forças
míticas e para sufocar sua própria natureza. Essa relação
ganha preponderância também no cenário bíblico, que no
contexto medieval retoma o mito da criação e nele o ho-
mem é também um ser de destaque, quando, após Deus
ter tudo criado, ordena: “E dominai sobre os peixes do
mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo animal que se
move sobre a terra” (Gênesis, 1:28). Mas essa relação ga-
nha maior relevância na concepção epistemológica mo-
derna que confere ao sujeito um significado profundo. O
sujeito é talvez a grande categoria metafísica moderna,
pois é ele que ao seu redor reúne todas as condições de
dar sentido à realidade. Essa configuração ocorre em to-
das as múltiplas formas de expressão dos novos tempos

28
ou da modernidade. Ganha especial destaque nas episte-
mologias de Galileu a Kant, nas concepções de ciência,
política, econômica e de educação e fundamentalmente
na nova relação homem-natureza. Na modernidade, o su-
jeito deixa de ser um contemplador da natureza para um
ser definidor de sentido. Inclusive quando para isso ne-
cessita de lucro e aumento de poder.
De todas as relações sujeito-objeto, a moderna é a
mais selvagem. A relação com a natureza dos pré-socráti-
cos reconhecia dimensões míticas e mágicas dos deuses e
o homem era apenas mais um elemento. No cenário me-
dieval, a relação conferia ao homem o poder de domínio,
mas o colocava na condição de criatura que deveria con-
templar o criador, a quem era submisso. Na modernidade,
livre dessa transcendência e orientada pelo lucro oriundo
das relações econômicas e produtivas, há uma profunda
mudança. Adorno descreve essa relação num texto bri-
lhante, Sobre sujeito e objeto. Já escrevemos sobre isso
num texto denominado Aporias da subjetividade (2010).
Demonstrado que esse sujeito, ao pautar uma relação
muito objetivista, não se dá conta de que ele mesmo cai
no esquecimento, tornando-se um objeto, cabe, então,
perguntar: que reivindicação temos no contexto do pensa-
mento pós-metafísico?
O pensamento pós-metafísico reivindica para a Edu-
cação Ambiental uma relação de intersubjetividade pauta-
da no reconhecimento da dimensão sujeito-sujeito. Mas o
que isso significa? Significa destituir o sujeito do seu pe -
destal hierárquico e reconhecer a natureza no sentido

29
mais amplo como ativa como também sujeito. Nessa
perspectiva, reforçamos ainda mais a premissa de Reigota
(1994) bem anteriormente anunciada, de que já não faz
mais sentido conceber o homem como um ser à parte da
natureza. Nessa perspectiva, da hermenêutica ambiental,
desde já participamos e coexistimos como integrantes
dela. Se a relação deve ser intersubjetiva, temos de mudar
a forma como nos relacionamos com o mundo. Desafio
os pesquisadores em EA a pensar e sentir como ainda tra-
balhamos e tratamos os nossos “objetos” de pesquisa. No
campo das ciências socioambientais, ainda presenciamos
muitas relações subjetivadoras. Isso vai desde a forma
como nos comportamos com o mundo amplamente até a
relação que mantemos com o meio nas diferentes mani-
festações, inclusive na relação professor-aluno. Há ainda
muitas pesquisas ambientais sobre o outro a partir de um
olhar distanciado oriundo de uma forma de se fazer ciên -
cia que hierarquizou pela epistemologia os espaços nessa
relação sujeito-objeto. Após estudar hermenêutica, tenho
aprendido muito com os poetas, quase mais do que com
os filósofos. Transcrevo a seguir como o poeta percebe
essa relação intersubjetiva homem-natureza:

Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?


E eu, que não sou mais do que eles, que
sei disso?
[...]
Não é bastante não ser cego para ver as
árvores e as flores.
(Fernando Pessoa)

30
O primeiro passo para que ocorra essa relação inter-
subjetiva é a necessidade urgente de reconhecimento.
Essa reivindicação é mais um dos vestígios da emergên-
cia de pensamento pós-metafísico.

2.4 Mudança na relação entre teoria e prática

Integra de forma impactante o campo dos Funda-


mentos da Educação a lista de inúmeros pensadores que
discutem com muita propriedade a relação entre teoria e
prática, dando primazia para a teoria. Não é nosso objeti-
vo aqui recuperá-los, porque compreendemos não termos
condição para isso. Em linhas gerais, podemos recuperar
aqui a ampla dimensão que essa relação possui. Estamos
lembrando o leitor de que em educação ocidental temos
uma história de construção que vai de Platão a Heideg-
ger. Suchodolski (1992), em seu livro A pedagogia e as
grandes correntes filosóficas, identifica duas grandes
correntes orientadoras das epistemologias clássicas na re-
lação teoria-prática. Uma primeira de roupagem essenci-
alista, que vai desde o idealismo grego, passando por
Santo Agostinho, Descartes, Kant e Hegel. Em linhas ge-
rais, esses autores têm como ponto de partida e de chega-
da o campo das teorias. Seus estágios de transcendência
não se realizam no campo prático do mundo da vida, mas
numa dimensão metafísica e transcendental. Uma segun-
da corrente, que teve um primeiro e tímido início com

31
Aristóteles e Tomás de Aquino, mas que vai se consolidar
no mundo prático apenas com Rousseau, apontando para
uma educação que toma a existência como ponto de par-
tida, desenvolvendo a partir daí uma pedagogia a partir
da criança como ela é.
Os estudos no campo da dialética, com Hegel e pos-
teriormente com Marx, avançam no sentido de aproximar
e potencializar essa relação. Mas, mesmo avançando nas
duas perspectivas, continua essa querela entre o ideal e o
real, o mundo prático da vida e o mundo do campo das
projeções idealistas. É inegável que, com o adensamento
da perspectiva materialista histórica no Brasil, tivemos
muitos avanços e transformações que nos permitiram o
enfrentamento de problemas concretos que necessitavam
de um esforço epistemológico-político com vistas a no-
vas formas de pensar a sociedade. Ganham relevância
aqui os grandes avanços dessa perspectiva crítica no ter-
reno da educação ambiental, com inúmeras mudanças
significativas encharcadas de sangue e vida dos movi-
mentos sociais de inúmeros episódios de luta pela trans-
formação socioambiental. Associados ao materialismo,
há estudos significativos da fenomenologia de Husserl
(com o mundo vivido), após Heidegger, que se propõe a
pensar o sentido do ser a partir da sua própria existência;
contribuições da hermenêutica de Gadamer, que acenam
para a relevância dos contextos, e de Habermas, que
apontam para as potencialidades do agir comunicativo a
partir das estruturas do mundo da vida. Mas o que muda
nessa relação teoria-prática no contexto do pensamento

32
pós-metafísico, então?
Com o pensamento pós-metafísico, se reconhece a
grande contribuição da linguagem, em que, já na palavra,
conforme Habermas, se pressupõe uma ação e isso muda
amplamente os sentidos de teoria e prática. No horizonte
da linguagem, já não se concebe teoria e prática de forma
dualista e muito menos hierárquica. Falar e agir são dois
membros do mesmo corpo. O meu pensamento reflete
meu modo de agir, bem como minha ação traduz minha
forma de pensar. Também há outro aspecto a partir dos
jogos de linguagem que deve ser considerado: uma mes-
ma palavra ou ação pode assumir diferentes sentidos.
Fico a me perguntar: qual é a ação de um filósofo? Pen-
sar. Mas pensar é ação? No horizonte hermenêutico, sim.
No entanto, no paradigma da filosofia da consciência,
não, pois este se mostra limitado de compreender que na
perspectiva da linguagem não é mais possível explicar-
mos acontecimentos fora de seus contextos. O que temos
percebido na leitura atual é que, em vez desse distancia-
mento clássico reforçado com seu primado da teoria, in-
clusive, o que vemos é cada vez mais a relação de inter-
dependência de ambas e a necessidade de reconhecimen-
to das dimensões do mundo prático. Nesse sentido, nos-
sas falas nunca são produzidas num vazio, mas emergem
dos acontecimentos vivenciados em nosso cotidiano.
A partir dessa fusão de horizontes entre teoria e
prática, se renovam de sentido os fundamentos da EA,
possibilitando maior fecundidade em nossos estudos a
partir de olhares mais integradores. Muda a compreensão

33
também de nossas ações no campo da EA, reconfiguran-
do a forma de pensar e sentir, não importando se somos
ativistas ou intelectuais, pois essa polarização já não tem
grande relevância. A importância maior está nos aconte-
cimentos e nos sentidos que eles configuram para nós.

2.5 Da dimensão epistemológica para a ontológica da


Educação Ambiental

A crise de recursos deslocou a natureza


do campo da reflexão e da contemplação
estética para reintegrá-la ao processo
econômico (LEFF, 2006, p. 224).

O paradigma econômico, o mesmo que orienta o


mundo do sistema, oferece alternativas de resistência à
dimensão epistemológica na relação com a natureza e no-
vamente restringe à natureza a matéria-prima que alimen-
ta os processos produtivos. Com falsos discursos bem or-
ganizados, fala em nome da geopolítica e do desenvolvi-
mento sustentável, criando um discurso de equilíbrio al-
tamente falacioso, da mesma forma como nos vende a
noção de equilíbrio financeiro. Essa racionalidade econô-
mica é a mesma que contribui para os processos de colo-
nização do mundo da vida a partir de uma epistemologia
cuja perspectiva sempre apontou para a ideia de domínio,
tendo como horizonte a objetificação da natureza. Nessa
epistemologia, a dimensão ética e ontológica não integra
os princípios de orientação sobre a condição ambiental

34
possível. O que temos é uma profunda perda de sentido
da vida.
Em nosso alcance, uma ontologia ambiental de hori-
zonte hermenêutico deve contribuir no desenvolvimento
de uma epistemologia compreensiva, na qual todos os
elementos de nossa ampla experiência estejam entrelaça-
dos, reconhecendo os múltiplos espaços ontológicos e
psicológico-culturais. É nessa perspectiva que há uma
forte reivindicação de uma compreensão das questões
ambientais a partir de uma concepção de homem integral
apontando para sua condição ontológica mais abrangente.
De alguma maneira, o pensamento hermenêutico é
visto como uma outridade do pensamento científico, por
isso ele serve sempre como um espaço para refletir sobre
as epistemologias que orientam os fundamentos episte-
mológicos da Educação Ambiental. E sabemos que a ma-
triz que orienta a epistemologia ocidental desde os pré-
socráticos coloca num segundo plano a dimensão ontoló-
gica. No entanto, se olharmos para a história do pensa-
mento filosófico ocidental, vemos a ontologia como uma
filosofia primeira pré-socrática com natureza hermenêuti-
ca, buscando entender ou encontrar um princípio que jus-
tifique a existência do mundo. Ela está presente na base
das questões metafísicas e nas experiências dualistas, na
busca de sentido do ser. Em outro momento aparece
como intuição gnosiológica e experiência cognitiva que
consiste na consciência teológica das revoluções emer-
gentes, mas sempre fundamentada cientificamente para
dimensões que na maioria das vezes transcendiam o pró-

35
prio ser, sem pensar o ser na sua condição existencial.
No horizonte do pensamento pós-metafísico, a di-
mensão ontológica ambiental permite a compreensão do
ser em sua integralidade. E para que o ser possa assim se
mostrar, consideramos que a linguagem reúne em si a di-
mensão ontológica, pois é pela linguagem que o ser se
expressa. Uma ontologia hermenêutica reconhece que
nós, os humanos, somos impensáveis sem a linguagem.
Desse modo, reconhecemos essa dimensão substantiva da
linguagem na experiência e na constituição humana. É
pela e na linguagem que nos constituímos.
Nesse sentido, é possível pensarmos o ambiente
sempre como fenomenológico, enquanto acontecimento;
existencial, enquanto mundo; dialógico, enquanto condi-
ção permanente, pois estamos imersos na linguagem, e
hermenêutico-compreensivo enquanto possibilidades de
ser dito de vários modos.
Nesse sentido, se pensamos e sentimos o ambiente
pela ontologia hermenêutica, pressupõe-se que a
epistemologia também seja hermenêutica, e,
consequentemente, a ética segue o mesmo horizonte.
Assim, a ontologia que compreendemos deve ser vista
como possibilidade de acontecimentos, e não
possibilidades já realizadas. Reconhecendo a abertura
dessas possibilidades, vemos a ontologia hermenêutica
como um modo natural de conhecimento integral,
holístico, estético e libertário. Nessa perspectiva são
reconhecidas e acolhidas também as manifestações
culturais de múltiplas crendices. Há nela um campo

36
renovado de acolhida e de possibilidade de dimensões
ontológicas da poética, estética como elemento de
reintegração da relação cindida da velha e obsoleta
relação homem-natureza. Há uma possibilidade efetiva
de superação dos dualismos clássicos desde a mitologia e
do reconhecimento inclusive da dimensão espiritual,
numa profunda conexão com energias múltiplas não
reconhecidas pelas epistemologias que fundamentaram as
acepções de ciência na tradição ocidental, mas que desde
sempre estiveram aí. Você pode até ser cético e não
querer acreditar. No entanto, como homem ou mulher de
ciência, não pode negar que essa dimensão ocupa espaços
e sentidos na vida de milhares de seres humanos assim
como nas demais.
Em nossa compreensão, a ontologia hermenêutica na
EA pode abarcar maior abrangência na busca de
compreensões do sentido do ser do que a epistemologia.
Elas devem ser pensadas muito imbricadas em tempos de
pensamento pós-metafísico. Um exemplo disso é o caso
de que tradicionalmente se utilizou o termo logos para
justificar que o homem é um ser racional. Hoje sabemos
que a referida terminologia não conseguiu expressar os
sentidos do homem. A simples tradução do termo para o
português restringe seu sentido e a melhor tradução seria,
por exemplo, o homem é um ser de múltiplas linguagens
e determinações. Para além do logos da epistemologia, a
ontologia hermenêutica revigora o sentido do ser e
retoma outros sentidos colonizados pela racionalidade
instrumental.

37
Embebida na linguagem, essa ontologia reconhece e
alarga o sentido de racionalidade e permite à EA outra ra -
cionalidade, que Leff concebe como Racionalidade Am-
biental. Em resumo: que desafios essa ontologia e racio-
nalidade propõem ainda para o campo dos fundamentos
da EA? Inúmeros:
– Concepção integral de EA;
– Reconhecimento das outridades negadas e margi-
nalizadas pelas epistemologias clássicas que orientaram a
ciência;
– Visão menos hierárquica de conhecimentos e mai-
ores compartilhamentos de saberes;
– Reconhecimento de que o ser se expressa de múlti-
plas dimensões;
– Relevância e destaque que os contextos do mundo
prático assumem sem a primazia conferida à teoria em
seu detrimento;
– A compreensão de que nos constituímos na e pela
linguagem, ampliando os significados e sentidos para
além da perspectiva linguística, na qual a linguagem se
restringe a um conjunto de regras e símbolos gramaticais;
– A dimensão intersubjetiva e a busca de consensos
e novos acordos pautados pelo reconhecimento e respeito
às diferenças;
– Finalmente, a constatação de uma ontologia her-
menêutica associada a uma epistemologia hermenêutica,
configurado o sentido de hermenêutica enquanto proces-
so permanente de interpretar e compreender o mundo,

38
não como um exercício teórico, mas como um modo de
ser, como vida.
Como afirmamos neste estudo, está ocorrendo um
profundo deslocamento no campo dos Fundamentos da
EA. Procuramos apresentar neste texto alguns vestígios
desse deslocamento. Não nos detivemos aqui em ficar
apontando a crise. Isso já foi feito com melhor proprieda-
de por grandes pensadores. Nosso intuito é acenar para a
fecundidade desses movimentos epistemológicos que rei-
vindicam no contexto do pensamento pós-metafísico no-
vas ações sugeridas pelas novas formas de compreensão
que uma ontologia hermenêutica propõe. O que propo-
mos consiste numa mudança de olhar sobre a crise, um
olhar mais aberto e mais fecundo. O que temos herme-
neuticamente é mudança de horizonte.
Acreditamos que quem ganha com esta reflexão é a
Educação Ambiental, que, mais alargada, reconhece um
mundo muito mais configurado de sentidos. Assim, suge-
rimos a leitura de Habermas por considerar os tempos do
pós-metafísico não como um diagnóstico niilista, mas, ao
contrário, a EA pode ganhar um novo fôlego, com indica-
tivos de outra racionalidade, que supera essa, restritiva e
economicista, e que aponta para um novo modelo de so-
ciedade muito mais participativa e integradora das dife-
renças. Como intérpretes do mundo, nos cabe a tarefa de
perceber e encontrar sentidos outros, que desde sempre
estiveram aí. Isso promove a EA além do pensar, implica
sentimentos e exercícios intensos e densos, pois, como
considera Morin, somos humanos não apenas porque

39
pensamos, mas fundamentalmente porque sentimos.
Considero que o que estamos propondo como Eco-
logia Cosmocena amplia ainda mais os elementos de uma
perspectiva que antes vínhamos apresentando. Nesse sen-
tido, a perspectiva ecológica enquanto estudo com nossa
morada, nossa casa e suas múltiplas relações com todos
os ecossistemas e com todas as espécies, pode contribuir
no sentido de nos indicar, associada à Educação Ambien-
tal, a mudança de paradigmas como necessidade para a
garantia da vida digna no planeta.

40
3
DA CONCEPÇÃO DE ECOLOGIA
COSMOCENA

Vejo a Ecologia Cosmocena como uma alternativa


viável para pensarmos as relações entre seres vivos e
não vivos no sentido de podermos garantir melhor quali-
dade de vida no planeta e, quem sabe, no universo. Ela
nasce em meio a este cenário de desesperança e medo
reforçado pela Era Antropocena e pelas consequentes
crises: dos fundamentos da EA, do paradigma filosófico
metafísico, da racionalidade ocidental e do sujeito, do
esgotamento do sistema capitalista, da lógica do lucro e,
consequentemente, da crise financeira, crise política, so-
cioambiental e, fundamentalmente, da crise de sentido
existencial-ontológico sobre o espaço e sentido humano
no cosmos. Emerge também de uma profunda intuição
hermenêutica de que é necessário um reposicionamento
humano no cosmos no amplo conjunto das relações que
estabelecemos cotidianamente com o universo com o
qual nos encontramos conectados. Dessa forma, pode ser
vista como ecologia também de ampliação dos sentidos,

41
com a pretensão de alargar a nossa visão cósmica.
Relembro que esse pensamento é resultado de 25
anos de estudos desde meu ingresso na filosofia clássica
grega, passando por Rousseau, Kant e posteriormente
pela Teoria Crítica. Nos últimos quinze anos, realizamos
leituras de Nietzsche, Freud, Rorty, Heidegger, Habermas
e Gadamer, e nos últimos seis anos aproximamos esses
pensadores das leituras sobre os fundamentos da EA as-
sociadas à física quântica, biologia e muita leitura sobre a
ciência espírita.
Em aspectos amplos, estamos acenando para uma
perspectiva mais integralizada de ser humano e mais sin-
tonizada com amplos elementos que integram a nossa na-
tureza cósmica. Desse modo, passo agora a sugerir esses
aspectos que, para mim, hermeneuticamente integram ou-
tro horizonte de compreensão para pensarmos as relações
socioambientais:

3.1 Da Ecologia Cosmocena: uma intuição hermenêutica

Como já afirmamos, a perspectiva da proposição de


uma Ecologia Cosmocena emerge da necessidade de um
contraponto à lógica da proclamada era Antropocena. A
ideia da era Antropocena foi oficialmente lançada pelo
vencedor do Prêmio Nobel Paul Crutzen, em 2002, na re-
vista Nature. Nesse sentido, os cientistas, quando assu-
mem essa terminologia, admitem que é resultado dos vi-
síveis níveis de intervenção do humano no cosmos, em

42
especial na Terra. “Estou falando sobre sinais que mar-
cam claramente a era Antropocena como um intervalo se-
parado no tempo geológico. Assim, precisamos mostrar
que o termo é geologicamente justificável” (ZALASI-
EWICZ, 2011).
Os cientistas que vêm estudando essa temática, ao
reconhecer que estamos passando da era Elocena para a
Antropocena, reconhecem três grandes períodos na histó-
ria da Antropocena (VALLE; ANDRADE, 2011): 1. For-
mação da Era Industrial, de 1800 a 1945; 2. A grande
aceleração de 1945 a 2000 (que ainda continua); 3. O An-
tropoceno 3.0, em que o movimento desperta para a cons-
ciência de si mesmo que emerge mediante a chamada
modernidade reflexiva e dos dilemas da sustentabilidade.
É consenso entre eles que estamos num período de perdas
irreversíveis com mudanças catastróficas, deixando visí-
veis, cada vez mais, os sinais de mudanças globais alte-
rando tanto a conjuntura biofísica e socioeconômica
quanto as dimensões estruturais no que diz respeito ao
funcionamento da Terra como um sistema.
A partir dessa conjuntura, procurei desenvolver a
concepção de uma Ecologia Cosmocena que, em minha
compreensão, pode ser definida a partir das seguintes te-
ses:

43
3.1.1 Da nova relação Natureza-Humanidade

Tradicionalmente, quando procuramos discutir essa


relação, consideramos a herança ocidental de uma relação
de domínio da natureza pela humanidade. Nesta nova
ecologia, sugerimos que os homens e mulheres possam
reconhecer que existem saberes que desde sempre estão
aí e que são oriundos do cosmos para os humanos, e não
ao contrário. Nessa perspectiva ecológica, a natureza é
vista como uma outridade — sujeito: natureza rica, plu-
ral, diversa, colorida, fértil, bela, poética, estética, com
suas magias e divindades imensuráveis; cabe à humani-
dade reconhecer-se apenas como mais uma parte inte-
grante dela, e não a sua dona. A reivindicação principal
aqui consiste num reposicionamento humano: mais hu-
milde, sintonizado, aberto a tudo que a realidade biodi-
versa nos apresenta cotidianamente.
Um exemplo disso seria apenas nos reconhecermos
como mais uma espécie viva no universo imensurável da
quantidade de espécies vivas na Gaia para manter tudo
em equilíbrio. Por exemplo, a ciência reconhece 60 mil
espécies vivas na Terra, no entanto estima-se que existem
1,5 milhão apenas de fungos contribuindo para o referido
equilíbrio. Se tomarmos o horizonte das espécies invisí-
veis e indo mais além, vemos que, numa tonelada de solo
fértil, podemos alcançar quatro milhões de espécies de
bactérias. De fato, são pequenas coisas, muitas não reco-
nhecidas até 1988, mas que compõem o fundamento do
nosso ecossistema. Isso tudo aponta para nossa ignorân-

44
cia sobre a vida no planeta no que concerne ao nosso al-
cance em relação à existência da vida. O mais importante
ainda é que a garantia da nossa vida depende dessas cria-
turas. E, ainda mais, conforme Wilson (2008), a grande
maioria dos organismos da terra permanece desconhecida
da ciência.
Às vezes, empoderados pelos malogros da perspecti-
va antropocêntrica, ignoramos o fato de que quem toma a
decisão final é a natureza, e não nós. Nós somos parte de
um universo cósmico que movimenta um imensurável
conjunto de energias. No entanto, sabemos que a decisão
final é da natureza. Podemos pautar nossas atitudes na
busca de uma relação que nos aproxime mais do que nos
distancie da nossa condição biopsicossocioambienespiri-
tual, nos reconhecendo como essa outridade parte inte-
grante do cosmos.
Ainda nesse olhar mais alargado propiciado rasgo
herpelo hermenêutico motivado pela Cosmocena, há um
outro aprendizado significativo que contribui em nossa
transvaloração. Trata-se do fato que aprendemos apenas
há 40 anos com a física e a biologia que são as assimetri-
as que são fundamentais no mundo. Até então a humani-
dade sempre pautava suas relações e descobertas na bus-
ca da perfeição e pela simetria.
A Ecologia Cosmocena nos mostra que a vida tem
uma assimetria fundamental e que é imperfeita. E reforça
a descoberta dos cientistas de que todos os sistemas vivos
não são lineares e que funcionam em redes. Apenas essa
informação já deve mudar radicalmente a nossa forma de

45
compreender e de agir no mundo, exigindo novas manei-
ras de nos relacionarmos com os saberes, por exemplo.
Exige da humanidade reflexões profundas sobre os nos-
sos endereçamentos motivados pelos nossos pontos de
partida. Daí a importância de discutirmos essa relação na-
tureza-humanidade até como uma provocação não no
sentido de inversão de posturas, mas de busca de amplia-
ção de sentidos sobre como agimos e fundamentalmente
por que agimos dessa e não de outra maneira. Sugere,
sim, que possamos refletir sobre nossos referenciais sem
essa perspectiva de culpa, de erro e de verdade, mas na
busca de compreendermos melhor a forma como reco-
nhecemos e valorizamos a vida.

3.1.2 Da desaceleração do tempo como garantia da


vida

O conceito de tempo é talvez um dos conceitos mais


caros para uma época em que nos múltiplos cotidianos
ouvimos frequentemente a manifestação de uma geração
que reclama não ter tempo. Desse modo, a Ecologia Cos-
mocena considera que é “urgente” que possamos redefi-
nir o conceito de tempo e fundamentalmente a forma
como que ele se processa em nossas agendas materiais de
consumo. Somos herdeiros da concepção de tempo mo-
derna. Nesse horizonte, o tempo se manifestava clara-
mente em três etapas: passado, presente e futuro. Ou seja,
eu estava no presente, olhava para o passado e projetava

46
o futuro. Nessa perspectiva, os projetos modernos tradu-
zem em seu bojo uma visão altamente otimista em rela-
ção ao futuro. Assim, os endereçamentos apontavam
sempre para valores e garantias universais em busca de
uma melhor sociedade com escala valorativa visando ao
bem-estar da humanidade. O futuro é o ainda não, o vir a
ser possível. Infindáveis são as obras que têm como indi-
cativo o alcance de um telos, uma finalidade promissora.
Diferentemente desse horizonte, os tempos atuais es-
tão marcados por outros endereçamentos que em geral se
apontam para a vivência intensa do tempo presente. É o
que alguns autores denominam de presenteísmo. O que
vemos nessa nova noção de tempo é certa rejeição do
passado por considerá-lo piegas e obsoleto e ao mesmo
tempo uma visão um tanto pessimista em relação ao futu-
ro pelo indicativo do não atingimento das garantias já há
muito proclamadas. Basta apenas lembrar aqui a forte
crítica da Escola Francesa de alguns pensadores pós-
modernos que apontavam para a teoria do fim da história.
Aqui no Brasil esse estudo chega através do estado-uni-
dense Francis Fukuyama em 1989. Para defender essa
tese, partem da Hegel e posteriormente aproximam essa
discussão ao campo da historiografia e da crise das ciên-
cias em geral. É importante ressaltar que a história que
apontam para o seu fim é aquela dos enredos e metanar-
rativas modernas com seus pontos de chegada. Sem esta-
belecer juízo de valor, o que no conjunto desses estudos
aparece são fortes desconfianças em relação ao futuro.
Desconfianças essas baseadas em experiências pretéritas.

47
Por outro lado, atualmente a ênfase no presente as-
sociada à noção de efemeridade promove no campo das
relações e na forma como vivenciamos nossos projetos
algumas mudanças. Afirmo isso porque, se o passado não
serve como aquela referência tradicional e se o futuro não
pode ser vislumbrado com otimismo, cabe ao sujeito um
olhar intensificado pela necessidade de vivenciar o pre-
sente.
Considero que isso pode trazer algumas implicân-
cias no terreno da ética, na mudança de valores e na for-
ma como nos relacionamos com o cosmos. Um simples
exemplo disso são as diferenças entre um tempo em que
se namorava alterando para “ficar” e atualmente, “pegar”.
Ocorre uma profunda mudança cujo referencial é maior
ou menor conhecimento, envolvimento e, por decorrên-
cia, comprometimento.
Outra implicância é apresentada por Santos (2000)
quando discute o diagnóstico dessa aceleração intensifi-
cada, denominada de vertigem da aceleração e do conse-
quente bloqueamento da criatividade e da realização de
demais experiências estéticas, cognitivas e místicas. So-
mos uma geração acelerada, ansiosa, angustiada e pouco
criativa.
O tempo da Ecologia Cosmocena dá tempo ao tem-
po. Ele reconhece, como o poeta gaúcho Mario Quintana,
que “o passado não reconhece seu lugar... está sempre
presente”. Nessa esteira, também lembra o poeta argenti-
no Martin Fierro que “o tempo é a tardança daquilo que
se espera”.

48
Reconhecendo a importância de noções de tempo
mais abrangentes e que deem conta de sentidos mais am-
plos para nossa existência, o tempo cosmocena nos ensi-
na, por exemplo, o quanto o universo tem paciência co-
nosco; mesmo vendo a forma como agimos, não extingue
num golpe só a vida do planeta. A redefinição desse tem-
po pressupõe sintonia e reflexão profunda sobre a valida-
de dessas nossas práticas intensas e aceleradas.
As comunidades tradicionais, com seus saberes, nos
ensinam uma relação que não é aligeirada como atual-
mente é o sistema produtivo em todas as escalas até de-
monstrar seus impactos no chamado produtivismo acadê-
mico. Preocupamo-nos com o produto e nos esquecemos
de nós.
A Ecologia Cosmocena reivindica tempo para cuidar
— de nós, da mãe-terra, das nossas místicas; para amar,
para cultivar as amizades, para silenciar, para conversar,
tempo para escutar. Somos uma civilização que escuta
muito pouco, com muitos ruídos de comunicação. Preci-
samos de tempo para desacelerar. Quando perguntamos a
alguém: “Como está?”, ele responde: “Estou bem (...) na
correria!”. Estamos correndo para onde? Produzindo para
quem? A favor de quem?
Quanto aos sintomas de ansiedade, estão tomando
proporções inimagináveis, além de criar novas patologi-
as. Ficamos ansiosos se acaba a bateria do celular, ansio-
sos no trânsito pelas agendas muito apertadas. Também
nos permitimos inclusive agendar até o nosso tempo de
final de semana e das férias porque perdemos a calma

49
para fugir da rotina. Ficamos muito ansiosos e angustia-
dos por uma queda de energia elétrica por alguns instan-
tes. Ansiosos e automatizados, que não clicamos no botão
do elevador apenas uma vez, mas várias vezes. Isso tam-
bém ocorre quando abrimos as páginas de navegação na
internet. Para não perder tempo — e sim ganhar —, são
desenvolvidos aplicativos de acesso instantâneo, facili-
tando maior e melhor acesso em tempo real. E, quando
isso não acontece, reclamamos sobre a lentidão da opera-
dora e solicitamos que aumente em megabits a velocida-
de da rede. A decorrência desse fenômeno, quando chega
ao extremo, tem levado pais e educadores de modo geral
a se questionar sobre locais que frequentam, se tem ou
não wi-fi, as férias de seus filhos e alunos que no planeja-
mento tem que considerar o acesso à rede como condição
sine qua non. Até o transporte ao local deve possuir sinal
de acesso à rede. A reflexão que trazemos não é sobre o
acesso, mas sim sobre a dificuldade que temos em tirar
tempo para nos desconectar da rede.
O tempo cosmoceno nos sugere uma reavaliação so-
bre as múltiplas formas em que o tempo se manifesta. Su -
gere que resgatemos das culturas das comunidades tradi-
cionais os saberes e as aprendizagens de uma relação de
longevidade no sentido de aproveitarmos melhor o tem-
po, vivermos melhor a vida. Não adianta termos expecta-
tiva de vida longa se não soubermos viver bem, em me-
lhor sintonia com o cosmos.

50
3.1.3 Da sintonia com novas sabedorias

A sabedoria da Gaia respeita os ciclos e as dinâmi-


cas particulares de diferentes fenômenos das sociedades e
civilizações no mundo. Os calendários humanos que tra-
tam das idades do mundo são divididos em ciclos de as-
censão, estabilidade e queda (ouro, prata, bronze e pedra)
e reconhecem que existe infância, juventude, maturidade
e velhice das civilizações. São as chamadas civilizações-
raízes, que tinham referenciais muito diferentes dos nos-
sos há cinco mil anos.
Ampliando o horizonte, sabemos que o cosmos é
tudo o que é, foi e será. Talvez seja por isso que ele guar -
da tantos mistérios que deixamos de perceber para nos
dedicarmos a pesquisas, por exemplo, sobre novos arma-
mentos. A Ecologia Cosmocena considera que o entendi-
mento humano ainda é muito limitado para explicar a
vastidão cósmica. Com isso, não está fazendo uma crítica
niilista ao ser humano. Ao contrário, entende que daí re-
sulta que temos ainda muito que aprender com esse vasto
universo. A finitude humana se reconhece através do cos-
mos. Ele é ilimitado de inter-relacionamentos no incrível
mecanismo da natureza. A amplitude cósmica nos traz a
sabedoria de nos reconhecermos como um pequeníssimo
ponto nesse universo. Talvez aqui a aprendizagem da hu-
mildade em relação ao lugar que ocupamos. Um simples
exercício seria imaginarmos o reino das galáxias a oito
bilhões de anos-luz de casa. No reino das galáxias, as
medidas comuns de distância são insuficientes para dar

51
sentido à realidade.
Outro dado relevante pelo olhar das novas sabedori-
as consiste em reconhecer que a vida aparece na terra a
quatro milhões de anos e o ser humano a duzentos mil
anos. Olhando com um pouco mais de atenção, veremos
que por milhares de anos pouco intervimos no cosmos.
Os registros apontam que uma das primeiras intervenções
com maior impacto se deu pela agricultura, mesmo que
ainda em pequena escala, apenas para subsistência. Mas
mesmo assim a agricultura foi a primeira grande revolu-
ção, pois mudou radicalmente a relação humanidade-
natureza. Ela transformou o futuro da espécie humana
que antes não passava de animal selvagem em busca de
alimento. Dele emergem as demais invenções e surgi-
mentos: cidades, conquistas, há cerca de oito a dez mil
anos, acabaram com a incerteza da caça. Pela agricultura,
os humanos desenvolveram aprendizagens e sabedorias
do controle de energias múltiplas.
Usando de sua sabedoria, os humanos moldaram a
terra no domínio de outras práticas com a ajuda do petró-
leo. Ainda hoje no mundo metade da humanidade cultiva
o solo, mas agora com uso dos recursos da tecnologia. Há
pouco sacrifício no cultivo da terra com o petróleo. Isso
tudo nos últimos sessenta anos, quando a população da
terra quase triplicou. Mais da metade da população mun-
dial vive em cidades. Passamos a habitar espaços inima-
gináveis nas cidades e produzir muito no campo. No en-
tanto, essa produção não é em sua maioria para alimenta-
ção dos humanos.

52
Em todo o mundo, a maior parte dos cereais produ-
zidos é transformada em ração para gado ou em biocom-
bustível. Nossa agricultura está cada vez mais dependen-
te do petróleo. Temos, então, uma relação em que o hu-
mano desenvolve suas aprendizagens numa relação de
domínio, chegando cada vez mais a uma espécie de “beco
sem saída”. É uma forte relação de dependência. Isso sem
contar 900 milhões de veículos que existem hoje no pla-
neta. A consequência imediata é o esgotamento das reser-
vas do planeta.
Em um dias desses me deparei com alguns dados
que me fizeram refletir sobre o quanto nos damos conta
das relações mais amplas que ocorrem no cosmos. Há
cem anos, havia 1,5 bilhão de pessoas na terra. Atual-
mente, passamos dos seis bilhões. Mesmo assim, ainda
existem lugares, praticamente intocados pelo ser humano,
ainda selvagens, que muitas vezes nem em pensamentos
chegamos próximo deles. Não conseguimos facilmente
imaginar nosso mundo sem o sol. Esse é o caso da An-
tártica, onde, com uma temperatura de setenta graus ne-
gativos, vivem os pinguins. Nesse lugar não há comida
nem água e, de certa forma, há uma escuridão contínua.
Semelhante desafio ocorre com o urso polar. Quan-
do o sol deixa a Antártica, elimina o céu no extremo nor-
te. É necessário um esforço para sobreviver no hemisfé-
rio norte. No norte do Canadá, por exemplo, ocorre anu-
almente migração forçada de três milhões de renas, que
migram através da tundra ártica, chegando a viajar até
três mil quilômetros atrás de pasto fresco, enfrentando o

53
risco de os lobos lhes devorarem. Todo esse movimento
atrás do sol em busca da vida.
Quando o encontram, no alto verão da tundra, o sol
não se põe e ali temos uma floresta que não sustenta mui-
ta vida animal, com sua vegetação que é a taiga. No en-
tanto, ela contém 1/3 de todas as árvores do planeta, cir-
cula toda a terra e produz tanto oxigênio, que pode mudar
a composição da atmosfera. Quando atinge cinquenta
graus, a floresta tem vida e os animais podem aproveitar
a energia do sol. Isso ocorre na direção sul. Chega o in-
verno e os animais precisam migrar para sobreviver.
Por que eu trouxe esses dados? Para demonstrar o
quanto não nos damos conta de nossa dependência da
energia solar e para lembrar que em todas as partes o
planeta promove espetáculos inimagináveis nessa viagem
das quatro estações ao seu redor. Conforme o sol faz esse
giro, inúmeras florestas começam a morrer, populações
inteiras são forçadas a viajar grandes distâncias atrás de
comida e de calor. Raros são os casos em que em
algumas partes do mundo não há estação e cuja
temperatura é constante o ano todo. Nela são abrigados
mais de 50% de todos os animais. É o caso da biodiversa
ilha de Nova Guiné, com variedade de pássaros e fartura
de alimentos; e do mar do cabo na África do Sul, que é
fértil em nutrientes.
Em vez de buscar redefinir nosso olhar no cosmos
enquanto processo de aprendizagem, nos encontramos, ao
contrário, imersos no Cosmocyber, como alerta E. O. Wil-
son: “Estamos nos afogando em informações e, ao mes-

54
mo tempo, famintos de sabedoria”. O paradigma da infor-
mação acelerada não se traduziu num processo de apren-
dizagem e de construção de conhecimento e muito menos
de sabedoria. Assim, ocupamos o mundo irracionalmente,
mas não o habitamos poeticamente.
Nesse sentido, questiono: quanto tempo da minha
existência eu tiro ou dedico para conexões com esses
campos de saberes mais profundos que sempre estiveram
aí? Quanto tempo eu tiro para ressintonia com as forças
ricas pulsantes transcendentais que desde sempre pulsa-
ram no cosmoceno, mas de que nossa arrogância episte-
mológica nos distanciou? Compreendo que o horizonte
do Antropoceno avalia tardiamente sua intervenção.
Quanto tempo eu tiro para desenvolver essa sabedoria bi-
odiversa sobre a multiplicidade de infinitas possibilida-
des de aprendizagens com o cosmo? Quanto tempo eu
tiro para reconhecer a importância da existência dos orga-
nismos vivos entre si e com o ecossistema, que assegu-
ram a sobrevivência das espécies, bem como a preserva-
ção dos recursos naturais, gerando um estado de equilí-
brio conhecido como sinergia ambiental? Há muita sabe-
doria ainda não percebida no universo infinito. Quanto
mais nos ocupamos com essa reflexão, mais mistérios e
possibilidades de aprendizagem se descortinam.

55
3.1.4 Do cuidado como reaprendizagem vs. consumo
desenfreado

A Ecologia Cosmocena reconhece que o cosmos nos


cuida mais do que nos afeta; ele nos protege, serve de
morada, ensina valores de acolhida de amorosidade, de
elevação e de encantamento. Diferente disso, a perspecti-
va antropocena demonstra atitudes humanas desenfreadas
que nos agridem, nos violentam, nos tornam competido-
res por espaços que não são nossos, mas emprestados
pelo curto tempo que aqui ficamos como ocupantes e por
vezes invasores.
A lógica capitalista do consumo não nos cuida. Ela
estimula concorrência desenfreada entre nós, terráqueos
marchando às pressas atrás de recompensas pré-fabrica-
das. Na busca do ter mais, esvaziamos o sentido ontológi-
co da existência humana. O amor-próprio de propriedade
e de orgulho substitui o amor de si já reivindicado por
Rousseau em pleno século XVIII. Para ele, amar-se é cui-
dar-se. Nesse vazio de descuido e sentido existencial, es-
quecemos outra escala axiológica que nos indica como
válido o bom uso da inteligência, o bom uso do conheci-
mento e, fundamentalmente, da moral.
O estudo de Boff no início do século corrente reco-
nhece o cuidado como força originária que continuamen-
te faz surgir o ser humano. No entanto, conforme ele, o
cuidado é “uma priori ontológica” e se manifesta nesse
sentimento que nos torna pessoas. Se pudéssemos esco-

56
lher entre as múltiplas formas de cuidado — cuidado com
o nosso único planeta; cuidado com o próprio nicho eco-
lógico; cuidado com a sociedade sustentável; cuidado
com o outro, animus e anima; cuidado com os pobres,
oprimidos e excluídos; cuidado com nosso corpo na saú-
de e na doença; cuidado com a cura integral do ser huma-
no; cuidado com a nossa alma, os anjos e os demônios in-
teriores; cuidado com o nosso espírito, os grandes sonhos
e Deus; cuidado com a grande travessia, a morte —, prio-
rizaríamos o cuidado com a Terra e com os pobres e ex -
cluídos de todo o planeta. A Terra, por ser a nossa mora-
da, nossa casa, nosso covil; os pobres e excluídos, por re-
conhecermos que, num planeta tão rico, plural e abundan-
te, não podemos mais suportar a existência e convivência
miseráveis de toda espécie que não conta na economia do
país.
A Ecologia Cosmocena denuncia os excessos da
lógica consumista e nos conclama a desenvolver,
enquanto humanos, múltiplas formas de sensibilização,
poética, estética, afetiva, ecológica e espiritual, de
cuidarmos uns dos outros. A natureza nos cuida. Somente
emite o alerta como grito de socorro. Da falta de cuidado
decorrem as enchentes, as catástrofes ambientais, novos
eventos biofísicos que alteram os painéis geográficos em
todo o planeta. Fruto da ganância motivada pela lógica
do capital, nos descuidamos tanto, que acabamos ferindo
uns aos outros.
E uma das trágicas decorrências desse horizonte são
as diferentes guerras em todo o planeta: econômica, soci-

57
al, política, ambiental, racial e religiosa. Tornamo-nos in-
tolerantes e perdemos a sintonia com a sabedoria do cos-
mos que nos convida a uma cultura de resistência dessa
lógica na direção da paz.
Quando vemos, em pleno século XXI, a fuga da Sí-
ria para a Turquia, Grécia e posteriormente para toda a
Europa como única alternativa de sobrevivência, o cres-
cimento alarmante dos casos de suicídio, considerado um
dos maiores problemas de saúde pública pela OMS, le-
vando uma pessoa a óbito a cada 35 segundos no mundo;
quando vemos aumentar os fenômenos migratórios de
haitianos, nigerianos e senegaleses para a América do
Sul, fica reforçada ainda mais a necessidade de maior
cuidado pelos humanos como condição para uma convi-
vência e respeito pelas outridades na perspectiva ecológi-
ca cosmocena.
Reconhecidas alternativas emergem na perspectiva
da ética do cuidado e da cultura da paz por grandes líde-
res mundiais (as relações Cuba-Estados Unidos demons-
tram essas tentativas). Outro marco relevante é o caso da
Encíclica Papal Laudato si sobre o cuidado com a nossa
casa comum. Nela, partindo da expressão “louvado se-
jas”, de Francisco de Assis, o papa Francisco, realiza o
novo Cântico das Criaturas que se apresenta tão inspira-
dor quanto o original e nos convida que sejamos, portan-
to, aliados da “mãe-terra”, integrando-nos à maravilhosa
comunidade dos seres viventes. Desse modo, realiza uma
crítica muito forte ao sistema capitalista e a todas as for-
mas e estratégias de aniquilamento da vida e de restrição

58
de possibilidades de desenvolvimento humano e, portan-
to, ambiental. Demonstra uma forte preocupação com o
futuro comum da humanidade pelo descuido com a casa
comum pela lógica do consumo. E chama essa responsa-
bilidade para a esfera e compromisso individual e comum
a partir do uso racional das coisas, da necessidade de nos
liberarmos da escravidão do consumismo. A partir de
uma perspectiva ecológica cosmocena integral, essa é
uma pauta universal que transcende a dimensão das reli-
giões, mas que a Ecologia Cosmocena reconhece todos
os esforços em favor da garantia da vida digna no planeta.

3.1.5 Da descolonização do mundo da vida

Essa categoria não é nossa. Foi inicialmente pensada


por Husserl e posteriormente por Habermas quando con-
sidera em sua Teoria da Ação Comunicativa o mundo da
vida como:
Um acervo de padrões de interpretação
transmitidos culturalmente e organizados
linguisticamente. As estruturas do mundo
da vida fixam as normas da intersubjeti-
vidade do entendimento possível. “O
mundo da vida é, por assim dizer, o lugar
transcendental em que falante e ouvinte
se encontram; [...] os agentes comunica-
tivos se movem sempre dentro do hori-
zonte que é seu mundo da vida; dele não
podem sair”3.

3 HABERMAS, op. cit., 2001, pp. 176-179.

59
A compreensão do mundo da vida refere-se a esse
espaço no qual ainda mantemos nossas reservas das di-
mensões subjetivas, individuais, afetivas e culturais que
se reforçam nas relações primeiras a partir das nossas es-
truturas comunicativas com o mundo.
Para Habermas, o mundo da vida sofre as decorrên-
cias da racionalidade moderna instrumental capitalista
voltada para fins econômicos. Essa racionalidade penetra
nas estruturas comunicativas do mundo da vida e provoca
perturbações na reprodução simbólica do mundo da vida,
criando novos padrões morais e estéticos. O resultado
desse engessamento é definido por Habermas de coloni-
zação do mundo da vida. Ele entende que vivemos, as-
sim, um cotidiano sujeito a toda forma de burocratização
sistêmica. Nela, para Habermas, são utilizados inclusive
aparatos jurídicos, burocráticos para o controle. Essa for-
ma de controle interfere diretamente nas relações entre
pessoas, na família, na cultura, na organização de nosso
tempo livre e na escola.
O diagnóstico de Habermas aponta para a já reco-
nhecida colonização do mundo da vida pela racionalidade
estratégica voltada a fins que predomina no mundo do
sistema.
O reconhecimento da necessidade da referida desco-
lonização no horizonte da Ecologia Cosmocena situa-se
em especial a partir do já referido que somos uma socie -
dade de consumidores, do predomínio do mundo do siste-
ma sobre o mundo da vida, mas fundamentalmente pela
intensificação e pelo espaço que as redes sociais ocupam

60
cotidianamente em nossa vida. Antes que emitam julga-
mentos prévios, já me antecipo afirmando que não estou
de modo algum aqui reivindicando um mundo sem redes
sociais. Ao contrário, a Ecologia Cosmocena quer contri-
buir na reflexão sobre as mudanças proporcionadas no
horizonte dessas novas relações.
O diagnóstico realizado pelo Sociólogo Polonês
Zygmunt Bauman sobre a sociedade de consumidores
traz alguns indicativos com implicâncias diretas na colo-
nização de nosso mundo da vida. Reconhecendo que es-
tamos vivenciando atualmente uma nova organização so-
cial com mudanças profundas de uma sociedade moderna
de produtores para uma sociedade de consumidores, Bau-
man nos leva a pensar algo semelhante àquilo que Ador-
no descreve em seu texto sujeito-objeto, em que, no final
dessa relação, sem se dar conta, o próprio sujeito se
transforma em objeto. Pelo olhar de Bauman, nesse novo
arranjo social de consumidores nos transformamos atual-
mente também em mercadoria, num horizonte de infinitas
possibilidades de consumir e ser consumido. Daí o título
de sua Vida Para Consumo, que analisa entre tantos as-
pectos essa mudança de relação e as novas necessidades
de, assim como as mercadorias, estarmos o tempo todo
sendo flexibilizados em perfis, novidades, visando ser-
mos atraentes e felizes para que não nos tornemos obso-
letos. E tudo isso em tempo real. Na sociedade de consu-
midores, nossas vidas podem estar se transformando em
mercadorias.
A Ecologia Cosmocena, atenta a esses movimentos,

61
se permite questionar sobre o quanto essas relações ocu-
pam novos espaços em nossas vidas, promovendo e
abrindo campos de novas conexões de saberes por um
lado, novos intercâmbios, aprendizados, novos relaciona-
mentos e informações que descobrimos e acompanhamos
em tempo real; por outro lado, nos questiona sobre a di-
minuição gradativa das vivências primeiras, afetivas e
comunicativas em nosso mundo da vida. A Ecologia Cos-
mocena denuncia essa lógica do encolhimento das di-
mensões que nos constituem como pessoas a partir dessas
relações primeiras. Nesse sentido, atualmente chegamos
ao momento em que uma família pode estar na beira da
praia e cada integrante com um celular na mão, não con-
versando entre si, mas concomitantemente fazendo seus
registros fotográficos para atualizar o seu perfil no Face-
book. Eu, visualizando a cena, fiquei a me questionar so -
bre a forma como estamos aproveitando o nosso tempo
juntos. Estamos juntos ou estamos próximos? Quanto te-
mos privilegiado para conversarmos? Como já afirma-
mos, somos uma sociedade com profundos ruídos de co-
municação pessoa-pessoa pela fala, no entanto com am-
plas conexões pelas redes sociais.
Em casa, cada vez menos falamos com nossos fi-
lhos. Mas nossos filhos falam com o mundo e através das
redes são muitas vezes mais escutados do que em nossas
casas. Um dia desses vi no rosto de uma mãe uma expres-
são de espanto quando alguém de fora do relacionamento
familiar elogiou sua filha: “Como sua filha é educada!”.
Você tem acompanhado as mudanças de perfil de seu fi-

62
lho (a) nas redes sociais?
Bauman nos alerta que, na sociedade onde nos trans-
formamos em mercadoria para que seja aprazível para o
consumo, uma das relações que mais reivindicamos é a
de felicidade. Por isso, nos Self as fotos dos perfis são
sempre de pessoas sorridentes e felizes. Criamos estraté-
gias para ludibriar o cotidiano. Nele sentimos de fato a
necessidade da conversa, da escuta, de enfrentar as frus-
trações, de busca da resiliência mediante as perdas e difi-
culdades que fazem parte das dimensões do mundo da
vida.
Ao sugerir a descolonização do mundo da vida com
esse olhar ecológico, também chamamos atenção para a
valorização da nossa dimensão de gentetude; do respeito
pelas outridades que integram nossa casa comum; do re-
conhecimento e da necessidade de desenvolvermos rela-
ções afetivas não fetichizadas pela lógica da racionalida-
de instrumental estratégica. Procure fazer um exercício.
Você consegue manter seu celular com todas as conexões
possíveis desligadas por dois dias? Recentemente, nosso
país teve uma crise de abstinência pela suspensão de um
aplicativo por 48 horas. Pessoas tiveram dificuldades
porque necessitaram utilizar outras formas de comunica-
ção, inclusive conversar.
No entanto, nos sentimos felizes pelo número de
amigos na rede social, de seguidores no Twiter, de curti-
das em nossas postagens e número de acessos e de visua-
lizações no YouTube. Conforme o aumento desse núme-
ro, às vezes um vídeo em esfera íntima e pessoal pode se

63
transformar num produto vendável nas redes sociais. As-
sim, estimula-se a criatividade por algo que chame muita
atenção, e em certas situações vemos cenas que beiram a
banalização da esfera privada em busca da fama. E, as-
sim, agimos como se isso garantisse segurança e conquis-
ta de relações de reconhecimento, mas que no fundo esta-
mos apontando, sem nos darmos conta do estabelecimen-
to de relações frágeis. Buscando alertar para essa fragili-
dade e para a não garantia dessa pretensa segurança e re-
conhecimento, a Ecologia Cosmocena lhe convida à des-
colonização dessas pretensas práticas e sugere, sim, o uso
das tecnologias, mas sem a perda e restrição de sentido
de dimensões fundamentais para a garantia e preservação
de nosso mundo da vida.

3.1.6 Da necessidade de reconhecimento de um mundo


diverso e sem preconceitos

A pluralidade de formas não é uma categoria filo-


sófica e muito menos humana; ela é oriunda do cosmos.
O universo é tão plural, que a razão humana não conse-
gue expressar essa vastidão de formas. Nossa razão é li-
mitada. Na diversidade cosmocena, convivem infinitas
espécies e formas. É tanta diversidade, que aumentam
cada vez mais as suspeitas sobre se haveria ou há um au-
tor de tudo isso. Se há, como afirmava Tomás de Aquino,
deve ser perfeito para conviver com tanta diversidade e
equilíbrio. E pensar que existem humanos que têm pre-

64
conceito de raça, cor, gênero, religião, classe social, pre-
conceitos epistemológicos, apenas porque neste cosmos
tão diverso pensamos de modos diferentes.
A Ecologia Cosmocena nos conclama à transvalora-
ção de pensamentos, ações e sentimentos que pauperizam
a condição existencial humana. Nesse sentido, indica
como atitude hermenêutica a abertura de olhar, de cora-
ção, de crenças, de culturas, visando à superação dessas
epistemologias de fronteiras e da negação da condição
ontológica do ser humano. Este, mais aberto e conectado
com o cosmos, se reconhece agora como ser plural e múl-
tiplo. Apenas mais um neste universo de infinitas possibi-
lidades. Considera que não há mais espaços para apeque-
namentos, olhares estreitos e provincianos. Superando
preconceitos, aponta para a diversidade de formas, ideias,
sentimentos, cores, espécies, sabores, raças, gêneros e
culturas.

3.1.7 Da condição de incompletude

Aprendemos com a filosofia que somos do tamanho


do que pensamos e, mais recentemente, com a psicologia
e com a física que somos do tamanho do que sentimos.
Aprendemos com a Ecologia Cosmocena que somos se-
res cósmicos e ao mesmo tempo finitos e limitados. A
Ecologia Cosmocena nos reivindica reavaliarmos nossa
condição existencial. Quem sou eu? volta como pergunta
fundamental em tempos em que perdemos o endereço de

65
nós mesmos.
Superando a lógica do conhecimento fatiado, somos
convocados a nos compreendermos como seres inconclu-
sos com multideterminações. Assim, por exemplo, pode-
mos nos encerrar num abraço, mas ao mesmo tempo nos
abrirmos para o mundo. Essa abertura de olhares e senti-
dos é habitada pela nossa condição ontológica de ser
mais. É o humano que se revisita, reconfigurando senti-
dos e valores numa ampla conexão com diferentes formas
de vida que brotam, vertem e habitam diferentes espaços.
Nesse horizonte, vejo com boa compreensão esfor-
ços atuais no sentido de sugerir uma nova aliança entre
ciência e religião, como defende Wilson (2012); mas,
fundamentalmente, na Ecologia Cosmocena considera-
mos os elementos da inteligência espiritual, que, confor-
me Zohar e Marshall, não devem ser entendidos como in-
teligência religiosa, mas como “capacidade interna, inata
do cérebro e da psique humana, extraindo seus recursos
mais profundos do âmago do próprio universo” (2012, p.
22-23).
Nesse sentido, o QS (coeficiente espiritual) busca
contribuir na perspectiva cosmocena com alternativas
para a crise de sentido existencial que não pode ser resol-
vida pela ciência, pela inteligência e pelas emoções, mas
pelo espaço não colonizado do QS. É uma espécie de
bússola moral que contribui significativamente na com-
preensão sobre quem somos.
Associada ainda à nossa incompletude, temos outra

66
significativa informação do anestesista americano Stuart
Hameroff, do Centro de Estudos da Consciência do Ari-
zona, e de Roger Penrose, físico de Oxford, que afirmam
em seus estudos que a alma existiria, sim, como um con-
junto de relações quânticas entre partículas dispersas no
Universo. Ela é resultado da descoberta de que dentro de
cada neurônio existiriam cem milhões de microtúbulos:
tubinhos feitos de uma proteína chamada tubulina. Eles
descobriram que, quando o cérebro morre, a informação
quântica (gerada nos microtúbulos) não fica presa. Ela se
dissipa no espaço-tempo. Pela mesma lógica, quando al-
guém nasce, essa informação espalhada no Universo en-
traria nos microtúbulos.
Nessa abertura da nova ecologia, reconfiguramos
sentido de colonização de espaços e de fronteiras que,
com visões limitadas de um ser humano fragmentado em
diferentes partes, gera uma perspectiva estreita do espaço
humano no cosmos. A Ecologia Cosmocena reconhece
essas outras dimensões como pertencentes às forças do
universo e sugere o reconhecimento tanto dessa inteligên-
cia, que é acessada de múltiplas formas desde as civiliza-
ções mais antigas até mais recentes, como a existência da
alma. Em todas há um traço em comum: a busca de um
sentido maior para a vida. Por isso, contribuindo para a
superação da crise de sentido, permite um alargamento
compreensivo sobre nosso papel no universo, numa pers-
pectiva mais cooperativa, humilde e menos competitiva.
Quanto mais nos lançarmos na dimensão cósmica de nos-
sa incompletude, maior sentido ontológico estaremos al-

67
cançando.

3.1.8 Do lugar da Educação Ambiental na Ecologia


Cosmocena

Considero que a EA será sempre o espaço da refle-


xão crítica. De denúncias e anúncios. De reposiciona-
mento das perguntas sobre o sentido dos humanos dema-
siadamente humanos. Do alargamento da consciência e
dos sentidos sobre a indústria dos endereçamentos que
buscam pauperizar a existência humana. São homens e
mulheres que, pela racionalidade estratégica, contribuem
para o extermínio e o encolhimento da vida no planeta.
A EA parece um ponto pequeno nesse universo, mas
que assume o papel preponderante no sentido de nos res-
situar sobre os caminhos que traçamos. Essa ampla dis-
cussão não se encontra desconexa das intervenções políti-
cas e principalmente econômicas, economia essa que li-
mita as formas de vida no planeta. Entendo que a EA
deve e pode contribuir com o fortalecimento de redes
globais de resistência à lógica antropocêntrica industrial e
financeira que ainda sustenta e alimenta a guerra por re-
cursos naturais. Ela pode servir de alternativa para pen-
sarmos um desenvolvimento mais amplo do ser humano
do que apenas a estreiteza da lógica financeira. Estou fa-
lando do desenvolvimento cultural, intelectual, espiritual,
das pessoas em suas múltiplas dimensões que possa ga-
rantir a qualidade de vida digna. É o que Capra denomina

68
de crescimento qualitativo.

3.1.8.1 Para quem deve ser pensada a EA?

Para todos, inclusive para abrirmos os olhos sobre a


condição de finitude daqueles que se consideram eternos
pela doença e malogro do poder político reforçado pela
lógica financeira, mas fundamentalmente para milhares
de humanos que não possuem vida digna no planeta.
Aqui estou falando de uma Ecologia Cosmocena afirma-
tiva em favor dos excluídos pelos humanos, reconhecen-
do que o cosmos nos acolhe sempre.

3.1.8.2 Onde?

Em todos os espaços possíveis; se não existe meio


ambiente, mas inteiro ambiente, não existe meio humano.
Logo, nos colocarmos com inteireza onde estivermos
pode talvez contribuir para o estabelecimento de uma
nova relação nos espaços marginalizados pelo próprio an-
tropoceno. Meu sonho particular é que a EA possa contri-
buir para que essa ecologia que vislumbramos chegue às
escolas, por compreender que a escola é ainda um local
privilegiado de formação socioambiental.
O desafio maior da EA consiste nessa profunda in-
versão axiológica, ampliando ainda mais os horizontes
educativos e alargando o sentido e a busca pela com-
preensão da condição humana no universo: compreensão

69
cósmica. Ela, fundamentalmente, pode contribuir para a
efetivação de um novo acordo natureza-homem, para
que, quem sabe, possamos salvar a vida no planeta.

3.2 Movimentos compreensivos

Os argumentos e sentimentos até aqui expostos rei-


vindicam pelo horizonte da Ecologia Cosmocena a rede-
finição e o reposicionamento dos humanos no cosmos.
Ao mesmo tempo, acenam ontologicamente para horizon-
tes compreensivos de maior abertura, sensibilidade, capa-
cidade de aprendizagem e sintonia com nosso eu múlti-
plo.
Não se trata de uma nova metafísica e muito menos
de uma visão harmônica e debilitada. Trata-se de uma
postura de muita humildade e reconhecimento de que
nossos ancestrais, através das comunidades tradicionais,
nos ensinaram uma relação de maior sintonia e respeito
com o universo. A lógica do consumo nos distanciou da
nossa dimensão cósmica. Desse modo, habitamos o uni-
verso de forma estranha e desconexa. Para enfrentar esse
quadro de amplas crises e fundamentalmente a crise de
sentido é que a Ecologia Cosmocena se coloca como uma
alternativa viável na luta pela vida digna, pela ampliação
de sentidos e pela melhoria da convivência na relação do
cosmos com os humanos. Essa ecologia é aberta, menos
intolerante, menos egoica, cooperativa, é pacífica, sábia,
sensível, cuidadosa, humilde, amorosa em seus vínculos,

70
dá tempo ao tempo e recoloca o humano como apenas
mais uma possibilidade de garantia da vida neste univer-
so de múltiplas possibilidades. Esse foi o convite que
pretendo ter feito a você, estimado leitor. Convido-lhe a
construir conosco esse novo paradigma, contribuindo
para além dos Fundamentos da Educação Ambiental com
a construção de um futuro melhor em nosso planeta.
Quando apresentei a Ecologia Cosmocena no VII
Encontro e Diálogos com a Educação Ambiental no PP-
GEA- FURG, fui questionado sobre a dimensão de prati-
cidade da referida teoria. Na ocasião, argumentei que,
conforme o horizonte do Pensamento Pós-Metafísico, já
não fazem mais sentido as velhas segregações entre pen-
sar e agir. Conforme o horizonte hermenêutico e lin-
guístico, na palavra já existe uma ação. É a famosa tese
da ação ou do agir comunicativo que aqui não irei discu-
tir. No entanto, a referida indagação também me levou,
alguns meses após, a pensar em possíveis desdobramen-
tos da Ecologia Cosmocena e, como valorizo muito a di-
mensão intuitiva, estou sendo intuído a pensar e sentir a
possibilidade de uma Pedagogia Cosmocena. Esse é o es-
forço que procuro realizar a seguir.

71
4
POR UMA PEDAGOGIA COSMOCENA

Ao vislumbrarmos esse desdobramento primeiro da


Ecologia Cosmocena a partir de uma Pedagogia, salienta-
mos que cada princípio educativo que aqui emerge re-
fere-se a uma decorrência de uma das oito teses que sus-
tentam a Ecologia Cosmocena, como vemos:
1) Da nova relação Natureza-Humanidade — apren-
dizagem humanista relacional;
2) Da desaceleração do tempo como garantia de
vida — aprendizagem como processo de valorização da
vida;
3) Da sintonia com novas sabedorias — aprendiza-
gem hermenêutica dos saberes não reconhecidos;
4) Do cuidado como reaprendizagem vs. consumo
desenfreado — aprendizagem do cuidado.
5) Da descolonização do mundo da vida — aprendi-
zagem dos saberes primevos;
6) Por um mundo diverso e sem preconceitos —
aprendizagem com as diferenças;

72
7) Da condição de incompletude — aprendizagem
transcendental.
8) Do lugar da Educação Ambiental na Ecologia
Cosmocena — aprendizagem do ambiente inteiro.

4.1 Aprendizagem humanista relacional

A condição humana é uma condição que necessita


ser educada. Oriunda da Ecologia Cosmocena e Pedago-
gia Cosmocena, reivindica um processo de reaprendiza-
gem na relação clássica humanidade-natureza. Nesse sen-
tido, diferentemente de algumas interpretações que ouvi-
mos, de que estaríamos negando com nossa ecologia o
papel humano, sugerimos esse esforço de reaprendiza-
gem que contribuirá significativamente no reposiciona-
mento da perspectiva antropocêntrica na direção de um
olhar mais abrangente sobre o cosmos. Cabe a tarefa do
educador de discutir, problematizar e apresentar sempre o
ser humano em sua condição de partícipe e que ao mes-
mo tempo é relacional. Assim, os diferentes espaços edu-
cativos, desde o lar, podem, sim, orientar suas práticas
sem dar esse papel exclusivista à humanidade, e sim indi-
cando possibilidade de maior integração, e por que não
dizer de sensibilidade tão negada nas pedagogias clássi-
cas que concebem o ato educativo como oriundo de uma
relação de domínio de saberes, de pessoas e, consequen-
temente, da natureza?
Assim, como apenas mais uma outridade nesse uni-

73
verso infinito, aprendemos a ser mais humildes e, por de-
corrência, mais abertos aos novos sentidos. O humanismo
se destaca aqui como capacidade de reaprender e de se
reposicionar. Nesse horizonte, aprendemos sempre coleti-
vamente, com o mundo e com as pessoas.

4.2 Aprendizagem como processo de valorização da


vida

Vivemos atualmente períodos marcados por intensi-


dade de agendas e escassez de vivências com sentido pro-
fundo. A denúncia a esses processos intensificados já foi
feita pela Ecologia Cosmocena. Quando sugerimos rela-
ção de aprendizagem que valorize a vida, estamos consi-
derando uma pedagogia voltada para o respeito dos pro-
cessos cognitivos, afetivos, espirituais, estéticos, biológi-
cos, que não são reconhecidos numa ordem do tempo e
por vezes até violentados. Reivindicamos com essa pers-
pectiva a possibilidade de uma vida que deve ser aprendi-
da considerando o nosso desenvolvimento integral, res-
peitando cada etapa e cada situação de aprendizagem.
Uma pedagogia que qualifique a aprendizagem com
tempos necessários em cada sujeito. Talvez aqui possa
ser significativa a introdução de debates em sala de aula
sobre como nossos educandos lidam e concebem o tempo
em suas agendas e como se relacionam com o cosmos.
Também podem ser explorados estudos e narrativas que
se aproveitem de discussões sobre memória, focando em

74
alguns eventos históricos mais recentes e mais longín-
quos. Pode ser aprendido como algumas culturas, princi-
palmente indígenas, valorizavam o tempo no sentido de
viver bem. Aprendizagens que possibilitem o reconheci-
mento das múltiplas formas vivas responsáveis pelo equi-
líbrio no planeta e os movimentos que ocorrem em todo
universo que não são muitas vezes percebidos pelos hu-
manos.
Exemplo disso são os imensuráveis fenômenos mi-
gratórios em todo o planeta de um polo a outro conforme
mudam as estações. Há muita espécie lutando pela manu-
tenção de sua vida o tempo todo. Essa migração está en-
volvendo os humanos e não humanos numa luta desenfre-
ada pela sobrevivência, dos pinguins da Antártica às re-
nas no norte do Canadá. Há migração humana em todo o
globo dos países africanos e mais recentemente a migra-
ção forçada do oriente do Afeganistão para qualquer lu-
gar do mundo na luta pela vida.
Em minha compreensão, uma pedagogia que valori-
ze a vida deve reconhecer e considerar esses fenômenos
mais amplos até os eventos mais próximos, como as for-
mas de violência que extinguem cotidianamente a vida.
Li recentemente mais uma matéria sobre o horror do de-
sastre em Mariana e fiquei em estado de choque, perple-
xo com o impacto imensurável que esse mundo do barro
proporcionou para a vida no planeta. Mas mais preocu-
pante é que, em tempos de tantas denúncias, os responsá-
veis por tudo isso ainda continuam impunes. Mariana é o
exemplo mais contundente de que a lógica financeira pre-

75
domina sobre as demais dimensões de nossa vida.
Para não me estender, sugiro, então, que a pauta da
valorização da vida deve ser apreendida e ensinada em
todos os espaços formativos.

4.3. Aprendizagem enquanto hermenêutica dos sabe-


res não reconhecidos

Aprendemos com o campo da filosofia da linguagem


e dos estudos hermenêuticos que não somos inventores
privilegiados que encontramos e revelamos o mundo aos
demais. Na compreensão hermenêutica, o mundo e os hu-
manos só podem ser reconhecidos na e pela linguagem.
Esse olhar permite reconhecer que aquilo que constata-
mos sempre esteve aí, no entanto nós é que não possuía-
mos abertura para perceber em virtude das concepções
prévias e da forma como fomos educados a partir de lei-
turas homogeneizadoras e monistas.
Partindo desse horizonte, ao estarmos desde já em
relação com o cosmos, por vezes encolhemos e restringi-
mos o sentido sobre a multiplicidade de formas como ele
pode ser expresso e compreendido. Há muita sabedoria
ainda não percebida no universo infinito. Sugerimos uma
pedagogia que possa propiciar vivências epistemológicas
e ontológicas de abertura compreensiva. E, nesse esforço
de abertura, talvez permitir novos acontecimentos, novos
papéis nas relações educativas e, fundamentalmente, no-
vas aprendizagens, que, por consequência, permitirão que

76
em nossas práticas educativas possamos expressar novos
modos de ser.
Aqui o que se busca não é a inedicidade, mas o re-
conhecimento. Na esfera ambiental, por exemplo, durante
muito tempo restringimos o olhar para as questões ambi-
entais com práticas por vezes estreitas, conservacionistas,
dizendo que estávamos com isso realizando Educação
Ambiental na escola. Nessas práticas, por vezes priorizá-
vamos uma horta, mas esquecíamos que a EA pressupõe,
num primeiro momento, as relações e interações socio-
ambientais.
A Pedagogia Cosmocena reivindica essa abertura de
possibilidades a muitas sabedorias que ainda não inte-
gram nossos currículos escolares e espaços de decisões
políticas, porque não reconhecemos ou temos dificulda-
des de reconhecer. Exemplo disso foi, em 2015, a grande
dificuldade de discutir Diversidade e Gênero nos Currí-
culos Escolares Brasileiros nas aprovações dos Planos
Municipais da Educação. Uma grande onda de neocon-
servadorismo com intolerância religiosa revelou toda sua
força e capacidade de resistência em muitos municípios.
A pedagogia hermenêutica deve contribuir para essa
abertura compreensiva sobre esses fenômenos das ruas
no Brasil sobre a conjuntura política nacional. No mo-
mento em que escrevo esta obra, vejo com muita preocu-
pação algumas garantias que há anos almejamos com
muita luta sendo violentamente ameaçadas. Clima de in-
segurança e de incertezas. Não temos mais nos currículos
escolares OSPB (Organização Social e Política Brasilei-

77
ra) e nem EMC (Educação Moral e Cívica), mas a sua ló-
gica ainda não se extinguiu a movimentos neoconserva-
dores que ressurgem com muita veemência. Uma peda-
gogia cosmocena deve colocar tudo isso sob discussão e
compreensão porque isso tem muito a ver com garantias
vitais.

4.4. Aprendizagem do cuidado

Ao apresentarmos na Ecologia Cosmocena como o


Sistema Capitalista opera a partir de uma lógica de exclu-
são e de descuido, procuramos, além da denúncia, pro-
mover a reflexão sobre as múltiplas formas de descuido
desde questões que envolvem catástrofes ambientais, sui-
cídios, migração forçada como única alternativa no orien-
te e em diferentes países do globo e a principal, que são
as guerras por empodeiramento econômico e político.
Nessa perspectiva, as formas de descuido tomam propor-
ções imensuráveis. Em todas elas, percebemos práticas
de encolhimento da garantia da vida.
Uma Pedagogia Cosmocena aponta para a possibili-
dade de práticas educativas que reconheçam que o ser hu-
mano necessita de cuidado como condição primeira. É o
que Boff chama de a priori ontológico. Ou seja, é o cui-
dado que nos torna pessoas. O que estamos sugerindo
aqui não se trata de uma disciplina curricular, mas de
uma proposta de vida que em diferentes espaços educati-
vos valorize e exercite essa dimensão precedente do ser

78
humano. Não como uma questão de essência, mas como
uma questão de necessidade.
Dessa forma, vemos que a Educação Ambiental
deve, sim, ser uma das instâncias indicadoras desse deba-
te. Assume aqui o papel de crítica contundente às formas
de descuido e de olhares que vão desde a percepção mais
alargada sobre como nas comunidades tradicionais havia
práticas de cuidados inclusive coletivos até o estabeleci-
mento do debate sobre cultura da paz.
Uma pedagogia que tenha a humildade de reconhe-
cer que o ato educativo é uma forma de cuidado. Também
avaliar que muitas vezes permitimos que a lógica do des-
cuido interfira diretamente no campo das nossas relações
biopsicossocioambiespiritual 4.
Assim, o cuidado pode parecer algo tão simples,
mas fundamental para garantirmos vida digna, como de-
fende a Ecologia Cosmocena. O horizonte do Pensamen-
to Pós-Metafísico reconhece a necessidade desse olhar
que promove de forma não violenta o desenvolvimento
das potencialidades humanísticas pela reaprendizagem do
cuidado. Busque refletir sobre quanto cuidado há em sua

4 Utilizarei a partir de agora a palavra biopsicossocioambiespiritu-


al, ainda não registrada nos dicionários, considerando que expres-
sa uma compreensão cosmocena daquilo que constitui a humani-
dade. Por isso, ela procura numa única terminologia agregar as di-
mensões biológicas, psicológicas, sociológicas, ambientais e espi-
rituais. Cabe salientar que a compreensão já existe, no entanto, ao
descrevê-la, na maioria das vezes é traduzida por biopsicossocial-
ambiental e espiritual. A alteração que faço aqui se dá no sentido
semântico de realmente reforçar que essa compreensão no hori-
zonte cosmoceno é indissociável.

79
prática educativa. E, aqui, entenda-se prática educativa
enquanto modo de ser no e com o mundo.

4.5 Aprendizagem dos saberes primevos

A Ecologia Cosmocena faz uma forte denúncia a


partir dos estudos da chamada Teoria Crítica, em especial
de Habermas, de que a racionalidade instrumental voltada
a fins, como empoderamento e pelo lucro, interfere de
modo tão contundente, que o mundo do sistema coloniza
as relações do mundo da vida. Isso, além de causar inú-
meras patologias, também acena para perda de sentido no
campo das relações e dos saberes primevos que são, de
certo modo, o pano de fundo de nossa dimensão ontológica.
Já apontamos esse debate quando na Racionalidade
Ambiental Pós-Metafísica afirmamos que no horizonte
hermenêutico há um reconhecimento desses saberes pri-
mevos e da força dos contextos como fundamentais para
a compreensão de nossos estudos e principalmente de
nossa vida. De certo modo, ao acenarmos para esse as-
pecto, sugerimos uma Pedagogia Cosmocena que tenha o
reconhecimento daquilo que Paulo Freire tão bem desta-
cou, que a leitura de mundo precede a leitura da palavra.
De certa forma, reforçamos aqui que a nossa forma de
agir e de pensar nunca ocorre num vazio e é, em sua mai-
oria, encharcada dos contextos.
Indo um pouco além, o horizonte hermenêutico
compreende que é na dimensão do mundo da vida que

80
manifestamos nossas primeiras estruturas comunicativas.
Essas, em geral, estão vinculadas à busca de nossos en-
tendimentos, mas também às estruturas afetivas, emocio-
nais, nossas crendices, estética, nossa escala valorativa,
que compõem nosso arranjo existencial. Constatar que o
mundo do sistema pode colonizar essa dimensão é preo-
cupante, pois isso impede o desenvolvimento da vida.
Dessa maneira, não estamos propondo um retroces-
so, mas, ao contrário, a valorização dessa dimensão pri-
meva no sentido de não permitir a referida colonização. A
perspectiva pedagógica que aqui se vislumbra se refere à
possibilidade de que, nos diferentes contextos educativos
da vida, nossas raízes socioculturais sejam colocadas
como dimensão primeira. Outra reivindicação é que os
espaços educativos atentem para as estratégias que a raci-
onalidade do malogro e do disfarce vem criando e que in-
terfere no bloqueamento da capacidade comunicativa.
Quando levanto a discussão do forte impacto que as
redes sociais vêm tendo sobre nosso modo de ser, não es-
tou de modo algum apontando para o retrocesso. Ao con-
trário, estou sugerindo uma pedagogia que aproveite as
condições tecnológicas e estimule a ampliação da comu-
nicação, sem se esquecer da fala, do olhar, do riso e da
escuta. Baumann nos alerta para o risco da mudança mais
radical que ocorre na sociedade de consumidores, em que
o produtor também se torna mercadoria.
Uma pedagogia que reconheça as dimensões autóc-
tones do mundo da vida com toda a sua estrutura poderá,
além de fazer enfrentamento à lógica do isolamento e do

81
bloqueamento da dimensão comunicativa, ser promotora
e integradora das novas formas, sem, no entanto, violen-
tar esses saberes pano de fundo que são integrantes de
nossa constituição primeira. O desafio aos educadores é
sempre partir das questões fundantes: quem somos? De
onde viemos? Quais são as nossas referências primeiras?
Como é a vida que levamos? Quais são nossas crendices?
Se temos ou não? O que buscamos? Qual é o sentido de
estarmos aqui? Para que estudamos? O que nossos pais
falam sobre a escola?
Cabe aos educadores desenvolver estratégias de con-
versar com seus educandos no sentido de acessar seu
mundo vivido com suas leituras prévias. Isso não consiste
em nenhuma novidade, mas pode ser definitivo no pro-
cesso de ensinamento.

4.6 Aprendizagem com as diferenças

Quando, na Ecologia Cosmocena, discorremos sobre


a possibilidade de pensarmos e vivenciarmos um mundo
diverso e sem preconceitos, não estávamos propondo um
horizonte metafísico inatingível. Estávamos, sim, questi-
onando como num mundo tão plural e diverso ainda pos-
sam existir pensamentos tão apequenados e engessados
que manifestam de múltiplas formas os seus preconceitos.
Não somos especialistas nesse campo de estudo, no
entanto temos tido inúmeras vivências na universidade e
fora dela no campo das ações afirmativas que a cada dia

82
reforçam a necessidade de um olhar mais alargado e plu-
ral no que concerne ao reconhecimento das diferenças em
todos os espaços educativos.
Quando reivindicamos uma pedagogia das diferen-
ças, fundamentalmente estamos sugerindo uma pedago-
gia que transcenda as velhas formas de ensinar. Uma pe-
dagogia aberta para o reconhecimento de que a realidade
é biodiversa. O reconhecimento de que, no contexto atu-
al, os modos homogeneizadores não conseguem mais dar
conta e sentido da pluralidade que promove coloridos em
todas as dimensões que envolve o cosmos.
Há pouco conheci uma escola que tem uma estudan-
te transexual e que a família sabe e não assume e a escola
sabe e busca encobrir. Questionei esse espaço educativo
sobre qual está sendo o alcance dessa formação para vida
dessa criança. Várias vezes sou cobrado em espaços deci-
sórios para justificar a política para estudantes indígenas
e quilombolas que muitas vezes possuem coeficiente
igual ou superior aos demais, no entanto dos demais não
são solicitadas tais justificativas. E quantas vezes tenho
que justificar com dados estatísticos, comprovando resul-
tados sobre a política de cotas a partir da adesão da lei de
reservas de vagas 12.711. A política de cotas enriqueceu
a universidade pública brasileira. Como é bom ver as ca-
madas populares tendo acesso e permanência na universi-
dade! No entanto, ainda ouço frases como: “Baixou o ní -
vel da universidade”.
E aqui traria ainda inúmeros relatos. No entanto, o
que propomos pela Pedagogia Cosmocena é aquilo que

83
Richart Rorty chama de redescrição, capacidade de am-
pliação de horizontes no sentido de superarmos concep-
ções prévias ainda tão deficitárias, redescrevendo de ou-
tra forma esse mundo de essências predefinidas. Já exis-
tem muitas boas práticas nesse sentido, com projetos que
merecem todo o nosso reconhecimento e respeito e que já
estão inclusive no contexto da Educação Básica. No en-
tanto, é necessário que a Educação Ambiental possa sem-
pre contribuir na crítica e na busca desse alargamento
compreensivo. Educar para o reconhecimento das dife-
renças pressupõe um grande esforço e inúmeros desven-
cilhamentos, porque a maioria teve em sua nossa forma-
ção as mesmas compreensões e entendimentos. É funda-
mental aqui a aprendizagem da abertura hermenêutica.

4.7 Aprendizagem transcendental

Alguns amigos me aconselharam a não escrever so-


bre isso. Apenas para recordar, na Ecologia Cosmocena.
Quando apresentei a tese que fala da dimensão de incom-
pletude, defendi e reforcei a importância da existência do
QS, Coeficiente Espiritual, e da existência da alma, re-
sultado de estudos em experiência de quase morte no mo-
mento em que o cérebro morre. O que na verdade estou
propondo é que, sendo homem e mulher de ciência, pode-
mos até não concordar com isso e com todas as outras
questões que nos vinculem a alguma transcendência. No
entanto, temos que respeitar que para algumas pessoas,

84
ou melhor, para milhares de seres humanos, as questões
espirituais ocupam e mantêm grande relevância em seu
modo de ver e viver a vida.
Uma das grandes “piadas” que ouço com frequência
nos espaços institucionalizados é afirmarem que escola
ou universidade são espaços laicos. Até busco desenvol-
ver um esforço compreensivo sobre tal manifestação.
Mas, no fundo, sabemos que os espaços não são laicos,
porque as pessoas que constituem esses espaços formati-
vos não são laicas. A grande maioria, de maneira diversa,
tem alguma relação com algo transcendental.
Mas como a Pedagogia Cosmocena pode contribuir
com isso? Primeiro, assumindo que já superamos há mui-
to a perspectiva pedagógica que confundia educação com
instrução. Nessa perspectiva, o ato educativo era um ato
externo muito próximo de adestramento. Estudos de
Rousseau, Pestalozzi e Hippolyte Léon Denizard Rivail
apontaram entre os séculos XVIII e XIX que ato educati-
vo não mobiliza apenas as habilidades externas, mas tam-
bém as internas. É por isso que Rousseau fala em sensibi-
lidade e Pestalozzi defendia a pedagogia do amor, que
acessasse o coração. Mais tarde, Hippolyte Léon Deni-
zard Rivail, a partir de seus estudos, vai concluir que o
ser educante e educado possuem, além do corpo, a neces-
sidade de educação da sua alma, em processo de contínuo
aprendizado.
Tendo esses entre tantos referenciais, a Pedagogia
Cosmocena, reconhecendo também que uma das crises
dos tempos atuais é a crise de sentido, procura compreen-

85
der o homem como um ser biopsicossocioambiespiritual.
Isso não significa de modo algum o retorno às práticas de
doutrinação através de ensino religioso castrador em mui-
tos casos e limitador das potencialidades humanas. Signi-
fica, a partir de constatações científicas e experiências vi-
vidas, colocar essa dimensão em pauta não como uma
nova religião, mas como o debate na busca sentido. Já
existem estudos avançados hoje no Brasil, nas faculdades
de Medicina, entre outras, reconhecendo, na relação com
pacientes, que perceber em seu histórico essa dimensão
pode contribuir inclusive para melhor qualidade de vida.
Devido às nossas concepções prévias e dificuldade em
acolhermos as diferenças, a escola ainda é um dos luga-
res que não promove esse debate na transversalidade te-
mática em seus currículos. É claro que isso pressupõe
também formação, mas, fundamentalmente, acolhida do
diverso na busca de sentido.

4.8 Aprendizagem do ambiente inteiro

Sem negar as especificidades de campos de investi-


gação e o respeito profundo pelas dimensões, considero
que existe atualmente, fruto da racionalidade científica
moderna, certa tendência em fatiarmos a Educação Ambi-
ental. Isso é tão contundente, que, em alguns debates, fi-
cam no esforço de definir se esta ou aquela prática é ou
não Educação Ambiental. Desse modo, essa tensão per-
manece como reveladora de sentido. Já apontei na Ecolo-

86
gia Cosmocena como concebo a EA e que lugar em mi-
nha compreensão ela ocupa em seu horizonte.
Gostaria de reforçar, no entanto, que uma Pedago-
gia Cosmocena deve contribuir para que possamos pen-
sar o ambiente inteiro. E não utilizo isso enquanto cha-
vão, mas enquanto esforço compreensivo de percebermos
as relações socioambientais como integrantes de ciclos
vivos e não vivos nesse universo infinito. Educar assume
o sentido a partir do nosso mundo da vida de nos reco-
nhecermos também como seres cósmicos abertos para o
mundo. Isso não é uma tarefa fácil, pela dificuldade que
temos em pensar o ambiente inteiro. Por vezes nos senti-
mos desconectados desses múltiplos movimentos que
transcendem o nosso cotidiano na direção de múltiplas
outras possibilidades.
Às vezes, não conseguimos dar conta do nosso coti-
diano pelo impacto que as agendas materiais ditadas pela
lógica do consumo e da sobrevivência causam sobre nos-
sas vidas. Com muita preocupação, ouvi algum dia al-
guém dizer que “meditação é algo para quem tem pregui-
ça de trabalhar”. Fiquei pensando sobre o quanto perde-
mos a sintonia cósmica. Os povos orientais tiveram gran-
de desenvolvimento em sua sociedade por possuírem em
sua cultura duas grandes dimensões: alta consciência co-
letiva e um grande respeito e práticas voltadas para o de-
senvolvimento místico.
O que estou aqui querendo não é colocar de forma
alguma receituários. Ao contrário, procuro considerar
que, pela Pedagogia Cosmocena, esse paradigma do ca-

87
pitalismo imperialista não dá conta de pensarmos o ambi-
ente inteiro. Por isso, é necessário que estudemos outras
civilizações orientais e latino-americanas, inclusive brasi-
leira, que ainda mantêm ou preservaram algumas reservas
que apontam para ampliação de sentido e de garantia da
vida. Vejo isso com muita frequência quando visito qui-
lombos e aldeias. É a educação integral que permite reco-
nhecer como educativas todas as relações que mantemos
no e com o mundo.

88
5
DA INCONCLUSÃO COSMOCENA:
CARTA ÀS AMIGAS E AMIGOS
COSMOCENOS

Queridos amigos e amigas!


Esta obra é, sem dúvida, aquela em que mais me
mostrei. Fiz esses movimentos movidos pela busca de
sentido, pela intuição hermenêutica que venho tendo nos
contatos com pessoas maravilhosas nos Movimentos So-
ciais, nos Projetos de Formação de Professores nas Es-
colas Públicas, em Grupo de Estudos com meus orien-
tandos(as), no Grupo de Estudos sobre Fundamentos da
Educação Ambiental e Popular (GEFEAP), no Programa
de Extensão PAIETS, com seus inúmeros Cursos de Pré-
Universitários Populares da FURG, e em diferentes es-
paços de atuação no Instituto de Educação, nos Progra-
mas de Pós-Graduação em Educação e em Educação
Ambiental, na experiência de Gestão na Pró-Reitoria de
Assuntos Estudantis da FURG, onde aprendo cotidiana-
mente com minhas amigas cosmocenas.
É também motivada pela convivência que tenho com

89
minha família, esposa Luciane, filhos Bibiana, Pablo,
Clara, Juliana e Francisco. Eles constituem o meu mun-
do da vida. Não poderia me esquecer de ressaltar tam-
bém que é fruto de intuições espirituais que tenho nas
atividades com os irmãos e irmãs do Movimento Espírita
de Rio Grande e Região.
Vejo o horizonte cosmoceno como um modo de ser
que, para além da teoria, pode inspirar novas práticas.
Trata-se de uma Ecologia com forte dose de humanismo
e de valorização da vida.
Para além de raciocínios lógicos, quero utilizar as
próximas linhas para expressar minha gratidão. Aliás,
num próximo texto estarei escrevendo sobre a gratidão
como um valor Cosmoceno. Como este paradigma com-
preensivo é resultado das múltiplas relações que mante-
nho, gostaria de agradecer a todos e a todas pelas con-
tribuições recebidas. Em geral, elas renovam em mim o
desejo de ser mais, no sentido freiriano. Vocês todos fo-
ram fundamentais na constituição desta humilde obra. É
ainda um paradigma em construção e sempre aberto a
sugestões. Entre todos, um especial agradecimento à
amiga e pesquisadora Michèle Sato, que, com toda a
sensibilidade fenomenológica, estética, poética e com-
preensiva, prefaciou em 2016 duas de minhas obras:
“Hermenêutica e Educação ambiental no contexto do
Pensamento Pós-Metafísico”, obra coletiva sobre minha
organização, e “Ecologia Cosmocena”, que está sendo
lida por você neste momento, na qual todas as nossas
garantias estão sendo colocadas sob suspeita.

90
Compartilho da convicção de que somos seres
cósmicos abertos para o mundo e que necessitamos com
urgência desenvolvermos processos formativos que con-
tribuam para a nossa ampliação de sentido da vida. Meu
desejo é que essa perspectiva biopsicossocioambiespiri-
tual transcenda os espaços escolares e possa contribuir
em novos acordos a fim de que possamos viver melhor.
Em resumo, posso dizer, para além de uma escrita
no campo dos Fundamentos da Educação Ambiental, que
ela consiste numa tentativa de síntese de algumas com-
preensões que venho elaborando nos últimos 25 anos e
que contribuíram para a busca de sentido enquanto ser
em relação com o cosmos.
Desejo que sua leitura tenha sido prazerosa!
Gratidão sempre!
Um abraço Cosmoceno
Rio Grande, 02 de fevereiro
Balneário Cassino – Litoral Sul do Brasil

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