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Els Lagrou
Orientações Pedagógicas
Editor
Fernando Pedro da Silva
Coordenação Editorial
Fernando Pedro da Silva
Marília Andrés Ribeiro
Conselho Editorial
Eliana Regina de Freitas Dutra
João Diniz
Lígia Maria Leite Pereira
Lucia Gouvêa Pimentel
Maria Auxiliadora de Faria
Marília Andrés Ribeiro
Marília Novaes da Mata Machado
Otávio Soares Dulci
Vera Casa Nova
Orientações Pedagógicas
Lucia Gouvêa Pimentel e William Resende Quintal
Assistente de Produção
Alessandra Andrade
Revisão
Consuelo Salomé
Imagem da capa
Pintura em guache. Arlindo Daureano Kaxinawa (Alto Rio Purus). Coleção
particular da autora.
Introdução 9
Conclusão 104
Glossário 115
Referências 120
[p. 10] Menina ashaninka com pintura facial de urucum com o motivo de kempiro
(foto Sonja Ferson).
Desta maneira, a importância dada à busca da beleza pode va-
riar enormemente e pode não adquirir a aura de ‘veneração qua-
se religiosa’ que adquiriu no Ocidente pós-iluminista1. Visto que
as razões que levaram a tal culto são historicamente específicas,
fica difícil saber onde está o perigo do etno- ou eurocentrismo:
na posição que defende a universalidade da sensibilidade estéti-
ca como apanágio da humanidade, ou na posição contrária que
denuncia o ‘esteticismo’ como atitude etnocêntrica por ser es-
sencialmente valorativa, apreciadora e, portanto, discriminató-
ria; é impossível gostar sem desgostar2.
É também sabido que, há várias décadas, a parcela mais sig-
nificativa da produção artística nos centros metropolitanos e legiti-
madores do mercado de arte erudita pouco tem a ver com a procu-
ra e apreciação do ‘Belo’ que marcou a origem da filosofia moderna
sobre arte e estética no século XVIII. Muito do que é produzido na
vertente, hoje em dia dominante, da arte conceitual tem mais a ver
com o questionamento de tal definição do que com sua afirmação.
O que estes artistas visam com sua obra é provocar um processo
cognitivo no espectador que se torna, desta maneira, participante
ativo na construção da obra, à procura de possíveis chaves de lei-
tura. Quanto mais complexas e menos evidentes as alusões pre-
sentes na obra, mais esta será conceituada.
A obra de arte, portanto, não serve somente para ser con-
templada na pura beleza e harmonia das suas formas, ela age
sobre as pessoas, produzindo reações cognitivas diversas. Se
fossemos comparar as artes produzidas pelos indígenas com
1
GELL, 1998; BOURDIEU, 1979; OVERING, 1991, 1996.
2
Com relação à definição da arte em termos estéticos Gell afirma: “Acredito que o de-
sejo de ver a arte de outras culturas esteticamente nos diz mais sobre nossa própria
ideologia e sua veneração quase religiosa de objetos de arte como talismãs estéticos,
do que diz sobre estas outras culturas. O projeto de ‘estética indígena’ é essencialmente
equipado para refinar e expandir as sensibilidades estéticas do público de arte ocidental
produzindo um contexto cultural no qual artes de outras culturas podem ser incorpora-
das”. (GELL, 1998, p. 3). Severi, por outro lado, considera etnocêntrica a atribuição res-
tritiva do conceito ao mundo ocidental moderno: “O ponto de vista etnocêntrico reserva
o termo “arte” somente para a tradição ocidental e nega que as produções plásticas e
figurativas das chamadas sociedades primitivas possam refletir uma atitude compará-
vel a do artista europeu” (SEVERI, 1992: 82) e Murphy afirma: “Assim como arte podia
ser usada no século dezenove para distanciar ‘outros’ povos dos Europeus civilizados,
ela pode hoje também ser usada como instrumento retórico para incluí-los numa cultu-
ra mundial de povos igualmente civilizados.” (MURPHY, 1997, p. 648).
12 · Els Lagrou
as obras conceituais dos artistas contemporâneos, encontrarí-
amos muito mais semelhanças do que à primeira vista suspei-
taríamos3. Pois muitos artefatos e grafismos que marcam o es-
tilo de diferentes grupos indígenas são materializações densas
de complexas redes de interações que supõem conjuntos de
significados, ou, como diria Gell, que levam a abduções, infe-
rências com relação a intenções e ações de outros agentes4.
São objetos que condensam ações, relações, emoções e senti-
dos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem, se
relacionam, se produzem e existem no mundo5.
Se objetos indígenas cristalizam ações, valores e ideias,
como na arte conceitual, ou provocam apreciações valorativas
da categoria dos tradicionais conceitos de beleza e perfeição for-
mal como entre nós, por que sustentar que conceitualmente es-
ses povos desconhecem o que nós conhecemos como ‘arte’? É
preciso enfatizar este ponto para melhor entender o que exata-
mente as produções artísticas provindas de contextos original-
mente autônomos de produção têm a nos oferecer e por que
sua tradução para o contexto metropolitano tem provocado
3
GELL, 1996.
4
GELL, 1998, p. 13-16.
5
A inferência abductiva de Gell, ou, em outras palavras, a abdução da agência de al-
guém a partir de um índice, refere a muitos tipos de processos cognitivos que podem
fazer com que o objeto aja sobre a pessoa. Os índices são artefatos, objetos, ou obras
de arte que estão inseridos numa cadeia interativa que alterna a posição de agente-pa-
ciente. O art nexus, o nó canônico de relações na vizinhança de objetos de arte, prevê
quatro posições:a do artista, a do índice, a do protótipo e a do recipiente. Cada um
destes pode se encontrar em posição de agente ou paciente. Da combinação destas
relações surgem todas as situações possíveis de se pensar relações em que coisas me-
deiam relações entre pessoas. A semiótica de Peirce (1977) prevê três tipos de relações
entre o signo e o objeto ao qual o signo se refere: a relação entre o referente e o símbo-
lo é da ordem da convenção; assim a relação entre o símbolo linguístico e o objeto
significado é totalmente arbitrário. A relação entre o referente e o ícone supõe alguma
relação de semelhança; já a relação entre o objeto e seu índice é uma relação de conti-
guidade em que o índice participa da natureza do objeto ao qual se refere. Gell decide
na sua abordagem agentiva eliminar os dois outros termos do sistema, o ícone e o sím-
bolo, para ficar somente com o índice. Na verdade o que o autor quer enfatizar é que na
relação pragmática e interacionista do seu modelo, não é preciso distinguir índice de
ícone. Todo ícone já é na verdade um índice. Tendo em vista que a imagem age sobre a
pessoa, ela partilha nas qualidades daquilo de que é imagem. Aqui Gell segue Taussig
em Mimesis and Alterity (1993) que mostra como o envolvimento sensorial com o per-
cebido estabelece um contato entre o percepto e aquele que percebe, uma copresença,
por esta razão ver e tocar são experiências muito próximas.
6
Uma polêmica surgida em torno de uma das instalações do Arte-Cidade em São Paulo (1994-
2002) ajuda a esclarecer a questão. O artista estrangeiro Acconci construiu um confortável
abrigo para os moradores de rua. Quando a exposição terminou a prefeitura retirou o abrigo
do lugar sob intensos protestos dos moradores e simpatizantes (DICKSTEIN, 2006, p. 127). Ou
seja, caso tivesse sido permitido à obra concretizar de forma permanente sua utilidade para
os moradores, ela deixaria de ser obra de arte e se tornaria projeto urbanístico.
7
OVERING, 1991.
14 · Els Lagrou
autonomia pessoal juntas com a vida em sociedade. Em nossa
tradição pós-iluminista o artista assume a imagem do indivíduo
desprendido, livre das limitações do “senso comum” sociocên-
trico. O pensamento ocidental associa coletividade com coerção
e se vê desta maneira obrigado a projetar o poder de criativida-
de para fora da sociedade.
Segundo Lévi-Strauss, um resultado deste estatuto solitário
de gênio é que o artista moderno teria perdido, através de um uso
idiossincrático de signos e símbolos, sua capacidade de comunica-
ção: não há linguagem fora da sociedade. Em entrevista cedida a
Charbonnier no começo dos anos sessenta8, Lévi-Strauss propõe
uma interpretação antropológica da diferença entre arte moderna e
“primitiva”. Nossa tradição intelectual ocidental seria responsável
por três diferenças entre arte “acadêmica” e arte “primitiva”; dife-
renças que a arte moderna tenta superar desde o começo do sécu-
lo vinte. A primeira diferença diz respeito à individualização da arte
ocidental, especialmente no que diz respeito a sua clientela, o que
provoca e reflete uma ruptura entre o indivíduo e a sociedade em
nossa cultura - um problema inexistente para o pensamento indí-
gena sobre socialidade. A segunda se refere ao fato de a arte oci-
dental ser representativa e possessiva, enquanto a arte “primitiva”
somente pretenderia significar. A terceira reside na tendência na
arte ocidental de se fechar sobre si mesma: “peindre après les
maîtres” (pintar seguindo os mestres). Os impressionistas ataca-
ram o terceiro problema através da “pesquisa de campo” e os
cubistas o segundo, recriando e significando em vez de tentar imi-
tar de maneira realista – aprenderam das soluções estruturais ofe-
recidas pela arte africana. Mas a primeira e crucial diferença, a da
arte divorciada do seu público, não pôde ser superada e resultou
segundo Lévi-Strauss num “academicismo de linguagens”: cada
artista inventando seus próprios estilos e linguagens ininteligíveis.
Nos anos oitenta, a situação do estudo da arte de outros po-
vos ainda enfrentava sérios entraves teóricos, como podemos
constatar na afirmação de Overing: “a visão contrastante da estéti-
ca como domínio autônomo (mais um, ao lado da religião, ciência,
economia e política) tende a ser nossa herança nas ciências so-
8
CHARBONNIER,1989, p. 63-91.
9
OVERING, 1989, p. 159.
16 · Els Lagrou
de. Um exemplo da arte como reflexão sobre em vez de reflexo
da sociedade pode ser encontrado na análise de Lévi-Strauss da
“representação desdobrada” nas pinturas faciais kadiwéu10 que
será retomada adiante. Em vez de refletir uma estrutura social
de metades, este estilo imaginaria uma possibilidade cognitiva
de organização social não realizada na vida cotidiana. O estilo
desdobrado nos informaria sobre o desejo dos Kadiwéu de su-
perar a tensão social inerente ao seu sistema de três castas, uma
tensão temporariamente dissolvida pela imaginação artística.
Na maior parte das sociedades indígenas brasileiras o pa-
pel de artesão/artista não constitui uma especialização. Se a
técnica em questão compete às pessoas de seu gênero, cada
membro da sociedade pode se tornar um especialista na sua
realização. Porém, sempre há os que se sobressaem, estes são
considerados ‘mestres’. Assim, entre os Kaxinawa (grupo pano,
Acre), a mestre na arte da tecelagem é chamada de ainbu keneya,
‘mulher com desenho’ ou ainda de txana ibu ainbu, ‘dona dos ja-
pins’, ou seja, liderança ritual feminina da aldeia, responsável pela
organização do trabalho coletivo do preparo do algodão. Este
10
LEVÍ-STRAUSS, 1973.
11
Ao chegar ao fim de um longo processo de aprendizado, o aspirante ao status de
dono de canto captura um japim, come seu miolo cru e leva o crânio com o bico para a
aldeia. Ao chegar na aldeia, o mestre pega o bico do pássaro e o molha com pimenta
malagueta, depois toca repetidamente a língua de seu discípulo com o bico. Enquanto
procede deste modo, o líder canta para seu discípulo, cuja língua saliva abundantemen-
te. O mestre e o japim fortalecem a saliva e a voz do novo líder de canto, transferindo
para este seu próprio conhecimento e memória.
18 · Els Lagrou
Figura 3(a) – Augusto Feitosa Kaxinawa, txana ibu de Moema, com esposa e
netos,ouvindo sua própria gravação (foto Els Lagrou).
Figura 3(b) – Augusto Feitosa Kaxinawa, iniciando o canto (foto Els Lagrou).
12
VAN VELTHEM, 2009, p. 213-236.
13
DORTA, 1986; CAUBY NOVAES, 2006.
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Figura 5 – Enfeite cabelo bororo (foto Els La- Figura 6 - Brinco bororo
grou). Fonte – Acervo do Museu do Índio. (foto Els Lagrou). Fonte –
Acervo do Museu do Índio.
22 · Els Lagrou
de criação artística e performance do xamã entre os Araweté é
descrito por Viveiros de Castro nos seguintes termos:
O xamã é como um rádio’, dizem. Com isto querem dizer que ele é um
veículo, e que o corpo-sujeito da voz está alhures, que não está dentro do
xamã. O xamã não incorpora as divindades e os mortos, ele conta-canta
o que vê e ouve: os deuses não estão “dentro de sua carne”, nem ocu-
pam o seu hiro (corpo). Excorporado pelo sonho, o xamã ou seu “ex-
corpo” (hiro pe) fica na rede, enquanto sua i~ – aquela que será do céu –
sai e viaja. Mas é quando ele volta que o xamã canta. E, quando os deuses
descem à terra com ele – que é quem “faz descer” (...) os deuses -, des-
cem em corpo, não em seu corpo... Um xamã encena ou representa os
deuses e mortos, ele torna visíveis e audíveis suas ações, mas não os
encarna em sentido ontológico.14
14
VIVEIROS DE CASTRO, 1986, p. 543.
Figura 11 – Cesto wayana com motivo palapi “espécie de andorinha” (foto Els
Lagrou). Fonte – Coleção Museu do Índio, identificação de peça em: Van Vel-
them, 1995: 248.
24 · Els Lagrou
entre os Wayana existe o risco de a
tradução do ser em artefato ser tão
completa que ele ganhe agência e
vida próprias.15
Também entre os Ashaninka
(grupo de língua arawak, Acre e
Peru) retorna a mesma ideia:
19
GONÇALVES, 2001, p. 33.
26 · Els Lagrou
A partir de diferentes experimentos que produzem efeitos
sempre novos de seres que se parecem, mas nunca são iguais, os
Pirahã constroem uma imagética altamente estética, precisa e de-
talhada dos diferentes corpos de seres que habitam os vários pa-
tamares que compõem seu cosmos. A importância do ato e do
evento é responsável pelo fato de o mundo nunca estar acabado,
estando em constante processo de fabricação e transformação
por causa dos atos que produzem efeitos e novos seres. Elemen-
to especialmente marcante desta cosmologia é o fato de serem
os acidentes que acontecem com os seres humanos os responsá-
veis pelo surgimento dos deuses imperfeitos que povoam o cos-
mos e vivem a lamentar suas imperfeições nos cantos xamanísti-
cos. Se os Pirahã tendem a enfatizar a imperfeição tanto da criação
quanto da imitação, entre os Wayana:
A ênfase wayana é,
portanto, na reprodução
fiel de um conhecimento
ancestral, tanto no que diz
respeito às técnicas de
produção de artefatos e
pessoas, quanto aos mi-
tos que são compreendi-
dos como pertencentes
aos demiurgos e que ex-
plicam as afinidades exis-
tentes entre determinados Figura 15 – Panela wayana, motivo do cen-
tro: matawat atanta, larva de borboleta /
artefatos e animais ou se- serpente sobrenatural (foto Lucia Van Vel-
them). Fonte – Coleção Museu do Índio.
20
VAN VELTHEM, 2009, p. 213-236.
21
Ibidem.
22
BARCELOS, 1999.
28 · Els Lagrou
uma cultura visual específica, foi procurar a arte dos outros em lu-
gares que apresentavam características afins aos objetos de arte
conhecidos no Ocidente ou descobertos pelos arqueólogos nas
‘altas culturas’ antigas. Essas culturas arqueológicas, produtores
do que eram consideradas produções artísticas ‘mais sofisticadas’,
eram na sua maior parte marcadas pelo desenvolvimento de apa-
ratos estatais mais ou menos absolutistas como a China, Índia,
Mesopotâmia, e, nas Américas, o Império incaico e asteca.
Dessa forma, os colecionadores de arte ‘primitiva’ muitas ve-
zes só reconheciam peças incomuns, ‘espetaculares’ e de uso não
cotidiano como candidatas a serem incluídas nas coleções de arte
não ocidental, desconhecendo o fato de a maior parte da produção
artística indígena se encontrar no campo da chamada ‘arte decora-
tiva’ de uso cotidiano,23 assim como desconsiderando a realidade
da avaliação nativa da qualidade das peças, que nem sempre se-
gue a lógica da valorização do incomum.24
Assim, por exemplo,
o que caracteriza a pintura
corporal e facial ritualmen-
te mais eficaz e, portanto,
mais apreciada no ritual de
passagem de meninos e
meninas kaxinawa é sua
qualidade de ser mal em
vez de bem feita: as linhas
grossas aplicadas com os
dedos ou sabugos de mi-
lho, com rapidez e pouca
precisão, permitem uma
permeabilidade maior da
pele à ação ritual quando
comparadas com as pintu- Figura 17 – Menino com “desenho grosso”
ras delicadas aplicadas (huku kene) ou “desenho mal feito” (tube kene)
de uso ritual, motivo nawan kene, desenho do
com finos palitos enrola- estrangeiro/inimigo (foto Els Lagrou).
dos em algodão, pinturas
23
GELL, 1998, p. 73.
24
OVERING, 1996; LAGROU, 1998, 2007.
30 · Els Lagrou
Figura 19 (b) – Recém-nascido sendo tingido por Augusto, dauya, especia-
lista ritual, com jenipapo para “fechar o corpo”, torná-lo invisível aos yuxin
(espíritos) e protegê-lo dos insetos (foto Els Lagrou)
25
GELL, 1998.
26
DANTO, 1989, p.18-32.
32 · Els Lagrou
Um dos povos, o povo cesteiro, teria uma relação privilegia-
da com seus cestos que seriam considerados como possuindo
um significado e poder especial. Segundo os sábios da tribo o
próprio mundo é (como) um cesto, tecido de grama, ar e água
pela deusa criadora do povo, uma tecelã. As pessoas ao produzi-
rem cestos “estariam imitando a criatividade divina, assim como
escultores e pintores imitam Deus na Sua Criatividade, segundo
Giorgio Vasari” (Danto, 1989: 23). Para o povo oleiro, as panelas é
que são “densas em significados”. “Os sábios do povo oleiro di-
zem que deus é oleiro, por ele ter moldado o universo a partir do
barro informe, e os oleiros, que são artistas, são agentes inspira-
dos que re-encenam na sua arte o processo primevo através do
qual a simples desordem de mera sujeira recebe graça, significa-
do, beleza e até uso”.27 Deste modo, “encontrando-se na encruzi-
lhada entre arte, filosofia e religião, as panelas do povo oleiro
pertencem ao Espírito Absoluto. Seus cestos, bem tecidos para
garantir utilidade duradoura, são insípidos componentes na prosa
do mundo” (ibid.). Com o povo cesteiro acontece o contrário. En-
tre eles são os cestos que ganham em valor, enquanto as panelas
são meros objetos utilitários. Vemos neste exemplo que Danto
permite que os artefatos tenham utilidade, mas esta utilidade nada
tem a ver com o valor e o significado do objeto.
Gell critica de forma contundente a definição interpretativa
da arte defendida por Danto.28 O que produziu a reflexão, tanto de
Danto quanto de Gell, foi uma exposição onde Suzan Vogel, his-
toriadora de arte e curadora de uma exposição chamada Art/Arti-
fact no Center for African Art em Nova Iorque, expunha uma rede
de caça amarrada dos Zande como se fosse uma obra de arte
conceitual. A curadora plantou, desta maneira, uma verdadeira
armadilha para o público, que se equivocou totalmente acerca do
que viu, sem saber se o exposto era para ser visto como uma
obra de arte conceitual ou não. Defendendo a distinção conceitu-
al entre arte e artefato, Danto argumenta que a rede não pode ser
uma obra de arte porque ela foi feita meramente para um uso
instrumental, não possuindo o poder de invocar um significado
27
DANTO, 1989, p. 23-24.
28
GELL: 2001.
29
Ibidem.
34 · Els Lagrou
africanas, oceânicas e amazônicas se aproximariam mais da arte
conceitual contemporânea do que as máscaras ou esculturas por
causa da complexidade cognitiva envolvida na montagem das ar-
madilhas; por causa da maneira como agem sobre a mente do
receptor, sugerindo uma complexa rede de intencionalidades,
onde o caçador mostra conhecer bem os hábitos da sua presa
através da própria estrutura da armadilha.30
É exatamente esta distinção entre arte e artefato que a maioria
das etnografias sobre a produção de artefatos e artes indígenas
vem negando há mais de dez anos: não há distinção entre a beleza
produtiva de uma panela para cozinhar alimentos, uma criança
bem cuidada e decorada e um banco esculpido com esmero. Como
afirmam os Piaroa (Venezuela) todos estes itens, desde pessoas a
objetos, são frutos dos pensamentos (a’kwa) do seu produtor, além
de terem capacidades agentivas próprias: são belas porque funcio-
nam, não porque comunicam, mas porque agem.31
30
GELL, 2001.
31
OVERING, 1991.
32
OVERING, 1986, p. 148-149.
36 · Els Lagrou
A imagem tem sentido porque funciona, e não apesar do
fato de ter utilidade. A imagem sintetiza os elementos mínimos
que caracterizam o modo como o modelo opera e é por esta ra-
zão que uma imagem é um índice e não um símbolo ou um ícone
do seu modelo. Deste modo, entre os Wayana o tipiti, prensa de
mandioca, é uma cobra constritora, pois constringe que nem a
cobra. Ela não possui cabeça nem rabo no entanto, para não se
tornar o ser independente que devora humanos. O tipiti é um ar-
tefato que compartilha com a cobra a capacidade agentiva de
constringir e é isto que se quer fazer com a mandioca.33 O tipiti
wayana evoca deste modo a lógica da armadilha de enguia invo-
cada por Gell. O que os artefatos imitam é muito mais a capacida-
de dos ancestrais ou outros seres de produzir efeitos no mundo
do que sua imagem. Podemos entender, deste modo, porque a
separação entre capacidade produtiva e reflexão, proposta por
Danto para salvar a noção de arte e protegê-la da contaminação
pelo conceito de artefato, não procede no mundo indígena.
Figura 21 – Tipiti wayana (foto Els Lagrou). Fonte – Acervo do Museu do Índio.
33
VAN VELTHEM, 2003, p. 130.
[p. 38] Jovem kayapó-gorotire com colar de miçanga vermelho (foto Els Lagrou).
indivíduos e bens manufaturados compartilham de mesmos referentes
primordiais, o que permite articulá-los num mesmo quadro simbólico
de “fabricação” (...) Um mesmo verbo, tihé, “fazer” ou “produzir” des-
creve como a ação humana, ao ser exercida sobre materiais corporais
como sangue e sêmen, vai produzir filhos e atuando sobre matérias
naturais como penas, pêlos, caniços, folhas, cipós, argila, madeiras, vai
resultar em objetos. Especificamente, a procriação humana é associada
simbolicamente à tecnologia da arte plumária, a qual, por ser paradig-
mática é igualmente referida como tïhé. Consequentemente, as crianças
são “feitas” de forma semelhante à produção de uma fieira de penas,
pois a concepção é descrita como uma justaposição de partículas de
sêmen que, pouco a pouco, através de múltiplas relações sexuais, se
amalgamam e tecem a pele do recém-nascido, assim como na arte plu-
mária, uma pena é acostada à outra para conformar a fieira.1
1
VAN VELTHEM, 2003, p.119-120.
40 · Els Lagrou
O corpo wayana não é, no entanto, concebido como tendo
sido fabricado segundo uma só técnica. “Os Wayana se dizem
wama ïhem, “possuindo arumã”, pois, como descendem da mu-
lher primordial, compartilham com ela de atributos físicos, tais
como a estrutura da pele, que vem a ser o resultado do entran-
çamento de tiras de arumã” (ibid.). O mito de origem da criação
da primeira mulher narra como tentativas anteriores de fabricar a
mulher em cera ou em barro não tinham dado certo. A primeira
derreteu ao sol quando foi buscar mandioca, a segunda era pesa-
da demais para se locomover. A terceira, feita de arumã com den-
tes de amendoim, é que deu certo: sabia tanto carregar a mandio-
ca quanto macerá-la com os dentes para produzir a bebida de
mandioca fermentada (cachiri), ingrediente indispensável na vida
ritual dos Wayana como de grande parte dos povos da região.2
Interessante notar aqui que o que importa na produção da primei-
ra mulher é sua capacidade agentiva, o corpo carregando na sua
constituição a potencialidade de desenvolver as atividades pro-
dutivas que caracterizam o papel feminino na sociedade waya-
na: o de produzir o alimento, item de troca e de socialização por
excelência, a partir da mandioca brava.
Na decoração do corpo são utilizadas as mesmas técnicas
que as usadas para decorar os artefatos.
2
Idem, p. 397.
3
Idem, p. 243.
4
Idem, p. 245
42 · Els Lagrou
gravura, os grafismos sobressaindo-se em baixo-relevo numa
superfície”.5 Os homens usam esta técnica na decoração de ban-
cos, flechas, bordunas e flautas. As mulheres entalham cuias,
tortuais de fuso e vasos cerâmicos. Os beijus são igualmente
‘entalhados’, através da “impressão digital de motivos durante o
cozimento da massa de mandioca”.6
5
VAN VELTHEM, 2003, p. 245.
6
Ibidem.
7
Idem, p. 246.
8
Idem, p. 124.
9
Idem, p. 125.
44 · Els Lagrou
contato; ao terem relações com mulheres grávidas, eles podem
induzir alterações na forma desejada. Este exemplo demonstra
claramente o poder das imagens entre os Kaxinawa e a impor-
tância de uma técnica artesanal do controle e fixação da forma
em um corpo sólido e saudável.
O mito e o ritual situam a origem dos primeiros humanos
no tronco oco de uma árvore. O imaginário da árvore como pro-
tótipo para o corpo humano é recuperado pela ontologia kaxina-
wa de múltiplas maneiras. Primeiramente, durante o rito de pas-
sagem, um banco é esculpido, pelos pais, das raízes tubulares
da samaúma à imagem da criança: “duas pernas com um bura-
co no meio”, como diz o canto. Vida é insuflada no banco atra-
vés de um canto ritual e um banho no rio, onde os homens
tingem o banco de vermelho, levando-o para casa onde as
mães o pintam com o xunu kene, o motivo da samaúma. O
desenho da samaúma é redon-
do e bem-feito e visa a passar
para a criança o conhecimento
da samaúma. O banco é chama-
do de: árvore do japim (o txana
dos donos do canto, vide aci-
ma), árvore de Yube (a boa/ana-
conda/lua), árvore do pensa-
mento, árvore do desenho e
árvore do trabalho.
O canto se dirige ao banco
como a uma criança, para que
passe suas qualidades para a
criança: a vida longa de uma sa-
maúma com raízes firmemente
plantadas (“que não anda por
todo canto”), um “coração forte”,
que não sente medo à toa, e um
conhecimento sobre os segre-
dos da vida e da morte atribuídos
em mito a essa árvore. O banco,
usado pelas crianças para des-
cansar durante as intervenções
46 · Els Lagrou
cestaria e cerâmica, enquanto os homens – em visões xamanís-
ticas - controlam a experiência de imagens em movimento,
dami, a transformação da forma controlada pelo canto. Esta ex-
periência de dami é na maior parte dos casos tridimensional.
Os ossos por sua vez foram feitos do sêmen paterno e conti-
nuarão sendo produzidos pelo leite materno. Leite e sêmen são o
que sobrou da caiçuma, tipo de sopa de milho oferecida pelas
mulheres aos homens e entre si. O que fica na barriga do homem,
depois de tomar caiçuma,
são as ‘sementes’, o sê-
men do milho. Estes ficam
lá “porque o milho quer se
tornar pessoa”. Como ou-
tros objetos rituais, as es-
pigas de milho enfeixadas
não podem tocar a terra e
são penduradas no traves-
são da casa. O mesmo cui-
dado é tomado no armaze-
namento de amendoim,
algodão, tabaco e penas,
assim como do banco ritu-
al antes de este ser usado
pelos iniciandos. No seu
lugar de armazenamento,
o amendoim e o milho são
Figura 33 – O cesto cargueiro kankan é a ca-
vistos como vivendo em beça da cobra e porta o dunu kene, motivo
famílias, e os diferentes ti- da cobra (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção
Schultz, MAE.
pos de milho e amendoim
são como pessoas diferen-
tes com nomes pertencendo a metades. Quando um feixe de
amendoim é pendurado no travessão, entoa-se um canto que diz
“Inkan tsauxun” (o Inka está sentado).
Entre os Wayana um tratamento similar é dado aos artefatos:
Van Velthem descreve como os artefatos têm um tempo e um
ritmo de vida igual ao de uma pessoa, com direito a descanso nas
vigas das casas durante a vida, e com a morte anunciada quando
perdem a sua funcionalidade e razão de ser, e são abandonados no
10
VAN VELTHEM, 2003.
48 · Els Lagrou
constituem a própria estrutura que sustenta o corpo, assim como
o decoram. O tema da miçanga na decoração do corpo, no canto
ritual e na teoria da constituição do corpo kaxinawa ilustra clara-
mente o credo ameríndio de que a identidade é constituída a par-
tir da tradução e incorporação estética da alteridade, das forças e
características do Outro, que é muitas vezes o inimigo.
No caso dos Kaxinawa a agência desta alteridade não é con-
trolada ou domesticada, mas capturada através da sedução esté-
tica. Os donos de todas as substâncias usadas no ritual são cha-
mados por seu canto, nome e desenho, são convidados para a
festa e a recepção visa a alegrá-los (benimai) para que tornem
presente sua agência yuxin nas substâncias que produziram: tin-
tas, comidas, penas, perfumes etc. É yuxin que dá forma e consis-
tência à matéria e que faz com que seres vivos cresçam. A tinta,
usada para enegrecer os dentes das crianças durante o rito de
passagem, produzirá apenas uma leve coloração cinza se os can-
tos não foram fortes o suficiente para chamar seu dono e o poder
agentivo da tinta nixpu. E uma pena de um pássaro caçado, se
cair no chão, perderá sua vitalidade e se tornará quebradiça.
50 · Els Lagrou
O rito de passagem ocorre depois da troca dos dentes de
leite por dentes permanentes que são tingidos de preto com nix-
pu para torná-los fortes. O fortalecer dos dentes é o motivo prin-
cipal do ritual, o nome do ritual é nixpupima: “fazê-los comer nix-
pu”. O canto compara os dentes ao milho, que endurece
rapidamente, e se torna resistente como uma miçanga. Muitos
povos indígenas consideram os dentes a sede da força vital. É por
esta razão que dentes são frequentemente usados como orna-
mento. Os Yagua usavam os dentes de inimigos mortos na guerra
ao redor do pescoço, e possuem um mito sobre a primeira huma-
nidade que era frágil e mole por não possuir dentes11. Os Kaxina-
wa costumavam se adornar com adereços ricamente decorados
com dentes de macaco. Em uma coleção produzida no começo
dos anos cinquenta entre os Kaxinawa do rio Curanja, então re-
cém-(re)contatados, encontra-se grande quantidade de cintos e
colares decorados com dentes de macaco (MAE - Museu de Ar-
queologia e Antropologia da Universidade de São Paulo).
11
CHAUMEIL, 1983, p. 215; 2002.
12
Ver BELAUNDE (2005 e 2006) para um estudo comparativo da ‘hematologia ameríndia’,
ou seja, das concepções ameríndias sobre o papel do sangue no transporte dos pensamen-
tos. A compreensão de que o pensamento é transportado pelo sangue explica muitas prá-
ticas particulares largamente difundidas entre os Ameríndios como o resguardo e dieta de
pessoas próximas a pessoas doentes ou recém-nascidos como a couvade (o resguardo) do
pai. O sangue continua ligado às pessoas de onde provém e tanto o que as pessoas inge-
rem quanto o que fazem atinge pessoas ligadas pelo sangue, não somente por nascimento
mas também através da convivência, pela partilha de substâncias. A afirmação que o san-
gue transporta pensamentos e emoções ajuda igualmente a entender frases como as dos
Kaxinawa que sustentam que ‘é o corpo que pensa’ e que um ‘coração forte’ caracteriza
uma pessoa que sabe controlar suas emoções e seus pensamentos.
52 · Els Lagrou
Essas contas do Inka são contas do inimigo; as mesmas ou
similares às miçangas obtidas dos brancos, nawa. Essa incorpo-
ração de substâncias e suas qualidades agentivas associadas ao
Outro poderoso, o inimigo, aponta para o bem conhecido modelo
ameríndio da predação em que o Eu se constitui a partir de capa-
cidades agentivas conquistadas sobre as forças exteriores de pro-
dução. Para os Kaxinawa a quase totalidade do conhecimento das
técnicas e substâncias produtivas da vida cotidiana, pessoas, cor-
pos e artefatos foram em tempos míticos conquistados dos imi-
migos, apesar de alguns terem sido dados voluntariamente, como
aqueles relacionados ao complexo da jiboia e relacionados à fa-
bricação da pele e ao controle do fluxo do sangue. Até mesmo as
contas e o desenho do Inka foram doados, pelo menos em uma
das versões do mito que apresentaremos a seguir.
A importância da sistemática sobreposição de discursos re-
lacionados à produção de artefatos e à produção de corpos não
pode ser subestimada e explica muito da peculiaridade do fazer
artístico ameríndio. Do mesmo modo que a pintura corporal e a
roupa, a decoração do corpo com miçangas, dentes e sementes
aponta para o mesmo entrelaçamento de artefato e corpo, da
fabricação interior de um corpo vivo e pensante e sua decoração
exterior. Quem primeiro estabeleceu a ligação entre decoração
interna e externa, por um lado, e entre decoração corporal e ca-
pacidades agentivas e de pensamento, por outro, foi Joanna
Overing para os Piaroa (1991). Uma crescente evidência etnográ-
fica vem recentemente confirmar esta relação entre a constituição
interna do corpo e sua aparência exterior, tanto com relação à
maneira como artefatos e corpos são fabricados,13 quanto no
modo de decorá-los para os Shipibo e Piro do Peru, e os Maru-
bo, Nambikwara e Kaxinawa no Brasil14. No caso dos três primei-
ros exemplos esta ideia se refere à presença de desenhos tanto
dentro quanto fora do corpo da pessoa, assim como à possibili-
dade do xamã visualizar desenhos invisíveis na pessoa, que re-
metem a sua situação de saúde. No último caso o xamã é capaz
de visualizar enfeites internos, vistos por ele como colares de
SAYER, 1986; para os Piro, GOW, 2001; para os Nambikwara, MILLER, 2007.
15
MILLER, 2007.
54 · Els Lagrou
da de belas miçangas coloridas. Esta árvore tinha sido plantada
pelo Inka, que a guardava zelosamente. Interessante notar a asso-
ciação sistemática entre contas e sementes. Em outro mito, os de-
sejos conflitantes de um casal, o dele por dentes e o dela por con-
tas de vidro, provoca sua separação. Ao andar pela floresta, ela na
frente, ele atrás, ela sobe o barranco com a ajuda de um pau com-
prido. O marido ao tentar segui-la, não consegue. Em outra versão
ele escolhe outro caminho e, ao se dar conta de que perdeu a mu-
lher, põe-se a chorar desesperadamente. O caminho escolhido pela
mulher é o ‘caminho da miçanga’ (manendabanã), o caminho se-
guido pelo marido é o ‘caminho dos dentes’ (xetadabanã).
A mulher, ao chegar à terra dos Inka, encontra grande quan-
tidade de contas. A chegada é descrita nos seguintes termos:
16
Leôncio Kaxinawa, Rio, 2008. (Tradução da Autora)
17
Este é o caso para os Piaroa (OVERING, 1985). A estética Piaroa parece ser uma afir-
mação explícita sobre os perigos do poder cultural não controlado. Poder, quando fora
do controle, se torna repulsivo em comportamento e forma. A beleza é associada com
o moralmente correto e socialmente domesticado. O poderoso nunca é bonito em si;
para tornar-se bonito, precisa ser constantemente limpo no luar pelos cantos do xamã.
Este entendimento, de uma estética ligada de perto a uma ética e à vida social, é elabo-
rado na mitologia Piaroa. Assim, seu Deus mais criativo e poderoso Kuemoi, era tam-
bém o mais repulsivo de todos. (Ver LAGROU, 1997)
56 · Els Lagrou
Figura 39 – Tanga de miçanga carib, provavelmente tiriyó (foto Els Lagrou).
Fonte – Coleção particular da Autora (coletada por Galvão nos anos 40).
58 · Els Lagrou
Esse tratamento pode ser lido, desta forma, como uma mani-
festação específica da estética de pacificação do inimigo. Como
disse Taussig,18 uma das maneiras de se obter poder sobre o inimi-
go opera-se através da mimese da sua imagem. A incorporação da
miçanga, matéria preciosa, não perecível e com cores vibrantes
que nunca perdem seu brilho, e que representa capacidades técni-
cas de produção que os indígenas não dominavam, pode seguir
lógica similar. Adquire-se poder sobre o outro ao incorporar e do-
mesticar esteticamente a matéria-prima por ele produzida.
Podemos dividir o tratamento da miçanga pelos indígenas
ameríndios em duas categorias. Temos por um lado os grupos que
incorporaram a miçanga de tal maneira na sua mitologia, ritual e
arte, que ela, que precisa ser obtida através da troca com estrangei-
ros, vem a significar o que existe de mais interior e mais valioso em
uma sociedade: como a força vital, a percepção aguda, a durabilida-
de dos ossos etc. Estes exemplos de qualidades atribuídas à miçan-
ga, especialmente as de cor branca, podem ser encontrados ente os
Kaxinawa, assim como entre os Huichol do México.19 As contas pro-
tegem. Os poderes dos brancos encapsulados nos objetos que pro-
duzem não são considerados patogênicos em si mesmos. Ganha-
se poder sobre o outro ao imitá-lo, incorporando seus poderes.
Os grupos que incorporam a miçanga ao ritual e a sua esté-
tica cotidiana, submetem esta matéria-prima a algum tipo de
transformação. Em vez da transformação ritual, como acontece
no Candomblé, onde a miçanga precisa ser ritualmente prepara-
da, lavada e banhada (em sangue) para ser utilizada,20 vemos ope-
rar entre os ameríndios uma pacificação estética: Usa-se a miçan-
ga para tecer motivos próprios dos grupos em questão, como o
fazem os Kaxinawa, Yawanawa e Ashaninka do Acre e os Shipibo
do Peru, os Tirijó da região das Guianas, os Krahó do Pará e os
Huichol do México. Em outros contextos, a miçanga é usada em
grandes quantidades de acordo com a lógica cromática valoriza-
da para o contexto. Exemplos são o uso em abundância de pesa-
dos colares monocromáticos no ritual xinguano, azuis, vermelhos
ou amarelos pelos Kayapó, vermelhos pelos Waiãpi.
18
TAUSSIG, 1993.
19
KINDL, 2005.
20
GOLDMAN, 2008.
Figura 46 – Moça wauja com colar de miçanga azul (foto Aristoteles Barcelos).
60 · Els Lagrou
A outra possibilidade é a de
associar os objetos do branco ao
próprio poder de contágio do bran-
co. Assim Dominique Buchillet21
analisa, entre os Desana, os mitos
de origem da varíola e do sarampo
como sendo a manifestação exte-
rior das miçangas que, ao terem
sido dadas às mulheres indígenas
por mulheres brancas, penetraram
sua pele e se exteriorizaram na for-
ma de bolhas vermelhas na pele. O
poder contagioso do branco acom-
panha deste modo os objetos que
emanam da sua ação.
Outro exemplo que trabalha o Figura 47 – Jovem kayapó-gorotire
com colar de miçanga vermelho
sentido da relação de contiguidade (foto Els Lagrou).
entre o branco e seus objetos, atra-
vés do exemplo da miçanga, são
os Wayana que representam, nos
objetos feitos com miçanga, os
próprios donos da matéria-prima
usada: os predadores e inimigos,
figuras que remetem ao mundo
dos brancos. Deste modo os cintos
dos homens, feitos com miçanga,
representam um motivo listrado
que remete tanto à sobrenatural
cobra-arco-iris, quanto à bandeira
do Suriname. Van Velthem fala de
‘objetos cativos’ e da necessidade
de domesticação dos objetos in-
dustriais. A miçanga, por outro
lado, seria o único objeto de ori-
gem ocidental que recebeu um Figura 48 – Wauja com cinto de mi-
çanga (foto Aristoteles Barcelos).
mito de origem entre os Wayana.
21
BUCHILLET, 2000, p. 113-142.
22
VAN VELTHEM, 2000.
62 · Els Lagrou
Figura 50 – Cinto kayapó-gorotire com bandeira do Brasil e cocar kayapó (foto
Els Lagrou). Fonte – Acervo do Museu do Índio.
1
VAN VELTHEM, 2003, p. 181.
[p. 64] Flechas kaxinawa com desenho (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção
Schultz, MAE.
terão a sua performance ritual realizada apenas uma única vez, en-
quanto que as performances das flautas Kawoká e/ou dos clarinetes
Tankwara de um “dono” específico poderão ser várias vezes repetidas
até o fim da sua vida, ou ainda seguir sob os cuidados de seu(sua)
herdeiro(a), caso este seja o seu desejo. A ideia de durabilidade repre-
sentada pelas flautas Kawoká é de fato profunda. O caso dos buracos
subaquáticos (memulu) feitos para guardar as Kawoká e máscaras de
madeira (Yakui), por períodos de luto ou outra razão de suspensão
temporária do ritual, é um exemplo interessante. O uso desses bura-
cos vigorou até antes da segunda grande epidemia de sarampo, ocor-
rida em meados da década de 1950. Meus informantes dizem que há
muitas Kawoká e Yakui abandonadas em memulu, porém esses obje-
tos rituais não podem mais ser resgatados, pois eles se tornaram “ob-
jetos” perigosíssimos, capazes de matar quem os tocar. Sua letalidade
surgiu em virtude do longo tempo em que permaneceram sem alimen-
tos e cuidados. Eles se transformaram definitivamente em apapaatai-
iyajo (monstros). Assim, o traço de familiaridade que havia neles foi
inevitavelmente suplantado pelo retorno desses apapaatai à sua antiga
alimentação de carnes e vegetais crus e/ou de sangue. Se um “dono”
não quer mais alimentar os seus apapaatai, ele deve destruir seus ob-
jetos rituais, sobretudo se estes forem flautas. Muitas vezes, quando
alguém herda do pai ou da mãe um trio de Kawoká, preocupa-se ime-
diatamente em consolidar as condições de alimentar os seus kawoká-
mona. Caso o herdeiro pressinta que não terá sucesso em satisfazer as
demandas alimentares de Kawoká, ele decidirá pela queima das flau-
tas, oferecendo um último ritual, no qual receberá o último pagamento
de seus kawoká-mona, sinal da dissolução completa da sua relação
produtiva com esses mesmos kawoká-mona.2
2
BARCELOS NETO, 2005, p. 220.
66 · Els Lagrou
da Grécia antiga? A construção da pessoa do artista é tão espe-
cífica quanto a própria estética que produz.
Vários autores enfatizam a valorização indígena da manu-
tenção sobre a acumulação como estando na base de uma filo-
sofia política específica. Assim Clastres defende, em A Socieda-
de contra o Estado, que a introdução da história e da mudança
como valor, anda de mãos dadas com a produção de exceden-
tes que visam à acumulação que, por sua vez, supõe uma divi-
são de trabalho onde poucos se apropriam do trabalho de mui-
tos.3 A produção de excedentes, além do necessário para
consumo próprio da comunidade, é considerada consequência
da introdução do Estado como instituição monopolizadora do
exercício legítimo do poder e o fim da autonomia da sociedade
indígena (comunidades por definição de pequena escala).
Na mesma linha de raciocínio, Overing mostra como a mito-
logia Piaroa, com seus deuses criadores envenenados e enlou-
quecidos pelo excesso de conhecimento e poder, constitui um
discurso político que defende a manutenção de uma história não
cumulativa entre os humanos, para garantir a harmonia social e
impedir a volta da tirania dos tempos míticos, caracterizados por
uma história cumulativa de grandes invenções e caos social. Esta
valorização de uma história da conservação e da continuidade,
em contraste com nossa valorização de uma história da ruptura e
da descontinuidade com o passado, pode ser responsável por
uma correspondente valorização de uma arte não cumulativa,
uma arte da continuidade, a serviço de um determinado estilo de
vida. Daí a recorrente resposta à pergunta sobre o significado de
determinado motivo ou forma: ‘assim é nosso costume’.
A reflexão filosófica sobre a possibilidade de existirem so-
ciedades que lutam contra o surgimento do Estado (assim como
contra a razão econômica e contra a estética como locus privile-
giado do surgimento do indivíduo) se insere numa tradição euro-
peia de valorização da diferença. Na Europa, o debate sobre a
aplicabilidade dos conceitos de arte e estética gira em torno da
questão conceitual e diz respeito a nossa capacidade de conhecer
o ‘outro’ e suas produções, chegando-se a defender inclusive o
3
CLASTRES, 2003.
4
INGOLD, 1996; GELL, 1996, 1998; BOURDIEU, 1979.
5
OVERING, 1991; 1996.
68 · Els Lagrou
técnicas que o pensamento usa para re-
presentar a realidade e agir sobre ela.6
E, seguindo Boas,7 poderíamos dizer
que todo controle de uma técnica traz
consigo a fruição do aperfeiçoamento
da forma, em termos funcionais, orna-
mentais ou expressivos.
Podemos valorizar a elegância da
forma que seduz pela economia e so-
briedade com que assinala a função a
ser desempenhada pelo objeto, dispen-
sando qualquer detalhe supérfluo, como
no design modernista. Como podemos,
pelo contrário, achar que um objeto sem Figura 51 – Flechas kaxina-
wa com desenho (foto Els
decoração não é um objeto completo e Lagrou). Fonte – Coleção
que é o desenho que o transformará em Schultz, MAE.
artefato capaz de agir com eficácia:
como a flecha para matar um inimigo entre os Kaxinawa ou o
banco do xamã para estabelecer contato com os seres sobrena-
turais entre os Tukano.
6
SEVERI, C. 1991.
7
BOAS, 1955.
8
SEEGER; DA MATTA; e VIVEIROS DE CASTRO, 1979.
9
Publicado depois em formato integral em Vidal, 1992, p. 143-189.
70 · Els Lagrou
todos os dias. Aqui também
parece valer a regra de que as
pinturas mais elaboradas são
as de uso cotidiano, não as que
marcam fases de liminaridade
ou transição. As mulheres xi-
krin passam horas por dia pin-
tando seus filhos, parentes e
amigos de ambos os sexos, le-
vando a marca indelével de
sua condição de artista na ‘mão
palheta’ que está sempre pre-
ta, tingida de jenipapo (maté-
ria-prima usada na pintura cor-
poral pela maior parte dos
grupos indígenas brasileiros e
ameríndios em geral).
72 · Els Lagrou
com jenipapo. Essas manchas remetem à pele dos animais da
floresta ligados à metade das pessoas em questão. Folhas de pal-
meira e máscaras de cuia para disfarçar as pessoas também são
usadas. Aqui a pintura e os adornos servem para mascarar e
transformar, não para adornar e embelezar. No Xingu, por outro
lado, a pintura corporal somente é empregada em contexto ritual
e representa, em contraste com os Xikrin e Kaxinawa, uma arte
masculina em vez de feminina (veja fotos acima).
10
CLIFFORD, 1988; MARCUS; MYERS, 1995.
11
LAGROU, 2008.
74 · Els Lagrou
em questão, que não necessariamente seguem os critérios dos
críticos de arte para avaliar suas peças12.
Como vimos, o lugar que os objetos poderiam ocupar na
escala valorativa instaurada pelo mercado das artes e pelos mu-
seus não, necessariamente, pertence ao universo das intenções
e valores nativos que podem visar a objetivos muito diferentes
dos ligados à conquista de visibilidade ou afirmação de identida-
de e ‘autenticidade’. Assim, a fonte de inspiração criadora ou a
legitimidade de motivos e formas estilísticas costuma, no pensa-
mento ameríndio, ser visto como originalmente exterior ao mun-
do humano ou étnico, remetendo a conquistas sobre o mundo
desconhecido, de vizinhos inimigos a seres naturais e sobrena-
turais hostis e ameaçadores. Ao acompanhar a produção de
uma coleção de máscaras para serem usadas em uma perfor-
mance fora da aldeia e depois vendidas para uma coleção de
museu, Barcelos Neto observa, no entanto, que a lógica das
máscaras que funcionam como máquinas ou extensões do po-
der de agência dos apapaatai, seus donos sobrenaturais, não é
em nada afetada. O sentido da transação cosmológica, política e
econômica presente nos rituais xinguanos, tanto com relação ao
mundo político intra- quanto extraxinguano, não é abandonado,
somente renegociado, e envolve o mesmo processo de paga-
mento e de “desubjectivação” das máscaras depois do uso. Se
depois do uso as máscaras seriam queimadas na aldeia, aqui
elas serão guardadas em seu estado semimorto. Assim as más-
caras ao chegarem à exposição não mais tinham seus dentes, e
uma chegava até sem olhos. A máscara tinha, portanto, perdido
grande parte do seu poder de agência.
12
Veja por exemplo os textos dos curadores Nelson Aguilar e José Antônio Braga Fer-
nandes Dias no catálogo da Mostra do Redescobrimento, Artes indígenas, 2000.
1
Kaxinawa (LAGROU 1991, 1996, 1997, 1998, 2007); Wayana-Apalai (VAN VELTHEM, 1998,
2003); Waiãpi (GALLOIS 1988, e 2002); Waurá (BARCELOS, 1999, p. 61); Desana (Tukano)
(REICHEL-DOLMATOFF, 1978); Shipibo (ROE, 1982 e ILLIUS, 1987); Piro (GOW, 1988) etc.
[p. 76] Desenho do cosmos: os caminhos são rios que rodeiam e ligam mun-
dos ou ilhas diferentes (Arlindo Daureano Kaxinawa, 10/06/1991).
Podemos contar, como
exemplo, o mito de Tulupe-
rê dos Wayana.2 Para os
Wayana, Tuluperê – a cobra-
grande – é o paradigma da
predação. Em tempos pri-
mordiais este ‘bicho’ sobre-
natural impedia que os
Wayana fossem visitar seus
Figura 57 – Panela wauja com motivos de parentes, os Aparai que
sucuri e dente de piranha (foto Aristoteles moravam do outro lado do
Barcelos). rio. Cada vez que uma ca-
noa ia visitar o pessoal do
outro lado, a cobra-grande vinha para virar a canoa. Quando mata-
ram o inimigo tiveram tempo para observar os belos motivos em
sua pele, que imitaram na manufatura do trançado em arumã. O
Tuluperê na verdade tem uma dupla identidade, uma aquática,
onde é a cobra-grande, e outra terrestre onde é a larva de borbole-
ta, animal voraz que estraga os roçados e que representa a essên-
cia predatória com igual virulência que a da cobra (veja figuras 15 e
23). Devoradores, predado-
res, depois da transforma-
ção, essas larvas assumem
belas cores e voam. Beleza
e perigo andam juntos, para
os Wayana, e quanto mais
monstruoso o ser mais este
será decorado e belo. A arte
é a reprodução controlada
da imagem desses seres
cujo poder de transforma-
ção se captura através da
sua imagem.
Figura 58 - Cesto wayana com motivo da Entre os Wauja, por
serpente sobrenatural dew duas cabeças
(foto Márcio Ferreira). Fonte – Acervo do sua vez, a cobra-grande
Museu do Índio. aparece na forma de cobra-
2
VAN VELTHEM, 1998, p. 119-127.
78 · Els Lagrou
canoa carregando panelas cantantes.3 Estas panelas tinham todos
os motivos possíveis, que por sua vez foram derivados da pele da
anaconda. O aspecto monstruoso da cobra está nas panelas, pois
esses seres são os mais temidos monstros devoradores. Seu pe-
rigo reside na transformação irreversível que impõem ao corpo.
Uma vez devorado por um monstro-panela o ser não poderá ter
vida post-mortem, visto que sua imagem também foi aniquilada.
3
BARCELOS, 1999, p. 59.
4
VERNANT, 1991.
5
RODRIGUES, 1979.
6
GELL, 1998; CARPENTER, 1978; WITHERSPOON, 1977.
80 · Els Lagrou
com o rico imaginário que surge nas narrações míticas e espe-
cialmente nos cantos rituais. A performance ritual dos Kaxinawa
não é marcada pela exuberância visual dos adornos que carac-
terizam muitos grupos indígenas do Brasil Central como os
Kayapó ou os povos xinguanos, mas pela exuberância imagéti-
ca, não representável, mas sistematicamente invocada nos poe-
mas cantados em diversos contextos rituais. A realização estéti-
ca kaxinawa não termina no lento cantar de um grupinho de
pessoas num final de tarde observado pelo visitante, mas se re-
vela nas imagens que surgem das palavras cantadas sobre um
mundo habitado por seres imagéticos, ‘deuses’ ou ‘donos’ que
povoam um mundo aquático e celeste, onde todos os seres são
pintados e belamente ornamentados, onde todos são ‘gente de
verdade’, ou seja, seres humanos perfeitos, belamente enfeita-
dos. Estes mundos são celebrados em rituais coletivos e visita-
dos em sonho ou em visões, não somente pelos xamãs, mas
por todas as pessoas em potencial.
Um ritual específico, que implica a ingestão em grupo do alu-
cinógeno chamado “cipó” ou nixi pae (cipó forte, ayahuasca) por
homens e jovens adultos (raramente por mulheres por causa da
sua susceptibilidade na idade reprodutiva), visa ao treinamento da
visão que prescinde dos olhos e da luz do dia. Novamente, para o
7
SCHWEDER, 1991, p. 37.
82 · Els Lagrou
Alguns argumentam, por exemplo, que a imaginação é oposta à per-
cepção… Outros sustentam que percepção é uma forma de imagina-
ção (como a afirmação de que a percepção visual é uma “construção”),
enquanto outros argumentam que imaginação é uma forma de per-
cepção (por ex., que o sonho é o testemunho de outro nível de realida-
de). Outros ainda argumentam em ambas as direções, e de forma dia-
lética, a favor da percepção imaginativa e da imaginação perceptiva.8
Um exemplo da relação
entre percepção imaginativa
e imaginação perceptiva
pode ser encontrado em
uma das características esti-
lísticas mais marcantes do
tecido desenhado, feito pe-
las Kaxinawa: considerando
que os padrões são inter-
rompidos imediatamente
depois de terem começado
a ser reconhecíveis no pano
tecido, precisa-se da capaci-
dade imaginativa para per-
ceber a continuação do pa-
drão através de uma visão
mental. A técnica sugere
que a beleza a ser percebida
no exterior está tanto, ou até Figura 61 – Saia kaxinawa (foto Els La-
grou). Fonte – Coleção Schultz, MAE.
mais presente no mundo in-
visível ou no mundo das
imagens a serem visualizadas pela criatividade perceptiva, do
que na beleza externalizada pela produção artística.
A qualidade do desenho, através de um recorte arbitrário, su-
gerir sua continuação ilimitada além do suporte foi notada também
por Müller (1990: 232) na pintura corporal dos Asurini (grupo tupi
do Pará). A autora usa o conceito “efeito-janela” (também usado
por Dawson)9 para designar a impressão de um recorte em um
desenho infinito. O estilo de pintura corporal dos Asurini lembra as
8
As traduções das citações são minhas. Ver Lagrou, 1998.
9
DAWSON, 1975, p. 142-145.
10
MÜLLER, 1990, p. 250.
84 · Els Lagrou
Figura 63, 64, 65, 66 – Quatro estampas, com motivo tayngava, desenhadas
com jenipapo no papel. Fonte – Acervo do Museu do Índio.
Figuras 67, 68 – Duas panelas com desenhos tayngava. Fonte – Coleção Regina
Müller. Acervo do Museu do Índio.
11
CAMARGO, 1995, p. 109.
86 · Els Lagrou
estética e a origem do
desenho se encontram
na relação com a alteri-
dade (ver ilustrações
acima). Um mito conta
como ao namorar uma
mulher Inka e vencer o
marido desta numa
luta, o herói foi pintado
pela amante com belos
desenhos em jenipapo.
O mito de origem da
bebida alucinógena nixi
pae assinala novamen-
te a fonte do desenho e
da beleza no mundo de Figura 69 (b) – Panela kaxinawa com o moti-
vo xamanti kene (foto Els Lagrou). Fonte –
relações amorosas com Coleção Schultz, MAE.
estrangeiras. Desta vez
o caçador se apaixona
pela mulher-anaconda ao vê-la fazer amor com uma anta. O ho-
mem, no entanto, não vê uma cobra, mas a percebe na forma de
uma bela mulher toda desenhada com belos desenhos em jenipa-
po. O mito de origem do desenho, por outro lado, conta como foi
que uma velha ensinou à primeira mulher os desenhos da tecela-
gem. Uma outra versão do mesmo mito, no entanto, invoca nova-
mente a imagem do namoro com um belo estrangeiro todo pinta-
do, para dar início ao aprendizado de uma arte que vai constituir
o traço mais marcante do estilo kaxinawa.
O que vale frisar na arte gráfica dos Asurini e dos Kaxinawa
é que ela serve para assinalar uma ligação e continuidade com o
mundo de seres não humanos: o mesmo desenho cobre seres
humanos e ‘espíritos’. Assim como acontece entre os Wayana-
Apalai e os Waiãpi, a arte gráfica destes povos fala mais sobre a
cosmologia que sobre as diferenças internas à comunidade en-
tre diferentes grupos rituais. Se a pintura corporal e a utilização
dos adornos dos grupos Jê12 funciona como um código de leitu-
12
Como os Bororo, Xikrin e Xavante; VIDAL, 1992.
13
GORDON, 2006.
14
LEVI-STRAUSS, 1955, p. 205-227.
88 · Els Lagrou
de casamento entre os grupos produzia uma clivagem na socie-
dade hierárquica dos Kadiwéu. Assim a arte criaria uma solução
imaginária, desempenhando uma função social compensadora. A
composição complexa do desenho com seus arabescos desi-
guais, por outro lado, refletiria a característica essencialmente
aristocrata da sociedade. Refletiria, em outras palavras, a maneira
como os Kadiwéu sentiam e percebiam seu mundo.
15
LEVI-STRAUSS, 1955; RIBEIRO, D. 1980.
90 · Els Lagrou
Figura 75 – Padrão de pintura corporal kadiwéu na cerâmica (foto Már-
cio Ferreira). Fonte – Acervo do Museu do Índio.
16
MURRAY VINCENT, 1986.
92 · Els Lagrou
poral – e, entre os Kaxinawa, na tecelagem – nota-se uma dinâmica
relação entre figura e fundo, uma qualidade cinética da imagem
que não permite ao olho decidir sobre qual perspectiva adotar. A
troca de perspectiva entre fundo e figura, ao se observarem os pa-
drões labirínticos típicos da cestaria de muitas sociedades amazô-
nicas, foi percebida na análise da “arte abstrata” shipibo (grupo
pano, Peru) por Roe, e entre os Yekuana (grupo Karib, Venezuela,
região das Guianas) por Guss. Peter Roe chamou atenção para a
correspondência entre este estilo artístico e um estilo de pensa-
mento.17 Para Roe a significação da ambiguidade perspectiva na
arte indígena “abstrata” repousa no que ela nos fala sobre a atitude
cognitiva do artista e do público pretendido. Para os ameríndios o
universo é transformativo. Isso significa que a visão pode, repenti-
namente, mudar diante de nossos olhos. O mundo é composto por
muitas camadas, os diversos mundos são pensados enquanto si-
multâneos, presentes e em contato, embora nem sempre perceptí-
veis. O papel da arte é o de comunicar uma percepção sintética
desta simultaneidade das diferentes realidades.
Figura 77 – Cesto kaxinawa com desenho em relevo (foto Els Lagrou). Fonte
- Acervo da Autora.
17
ROE 1987, p. 5-6.
94 · Els Lagrou
constatações sobre o esta-
tuto da imagem entre os
Kaxinawa. O quadro de re-
ferência conceitual kaxina-
wa gira em torno de três
categorias diferentes de
imagem: o grafismo (kene),
concebido como um traça-
do de caminhos; a figura
(dami), essencialmente tri-
dimensional, e a imagem/
espírito da coisa (yuxin),
uma foto, uma sombra ou
uma aparição. Estes três Figura 80 – Vaso shipibo (foto Els Lagrou).
termos podem se transfor- Fonte - Acervo da Autora.
mar uns nos outros, e man-
têm relações específicas com artefatos e pessoas, ressaltando
mais uma vez a importância da transformabilidade do mundo
nesta cosmologia ameríndia.
96 · Els Lagrou
Figura 85 – Siã Osair Kaxinawa filmando (a filmadora é chamada de yuxinbiti, cap-
turador de yuxin) Pancho, liderança de Cana Recreio, que se prepara para cobrir o
kene kuin (desenho verdadeiro) com pintas de urucum (aplicando o padrão da
onça, dami) no ritual do katxanawa (foto Els Lagrou, 1989). Note-se a presença si-
multânea de três tipos de imagem: kene, dami e yuxin.
18
GOW, 1988, p. 19.
19
BOAS, 1955.
20
Wayana (grupo Karib, VAN VELTHEM, 1998: 119); Waiãpi (grupo tupi, GALLOIS,
2002); Asurini (grupo tupi, MÜLLER, 1990).
21
GUSS, 1989.
98 · Els Lagrou
gem eram trançados, proferidos e cantados pelos velhos todos
dias, no crepúsculo, quando sentavam juntos num círculo. Por cau-
sa de sua estreita ligação com a mitologia, os motivos trançados
nos cestos pelos homens wayana-apalai (Pará), contêm muitos ele-
mentos figurativos, representando seres sobrenaturais, animais e
seus alimentos, permitindo assim uma leitura iconográfica rica e
precisa. Assim, por exemplo, se representa a larva de borboleta/
serpente sobrenatural através da duplicação da sua cabeça, en-
quanto a diferença entre o quatipuru sobrenatural e a onça pintada
sobrenatural é assinalada pela inversão da posição da cauda.22
22
VAN VELTHEM, 1998, p. 142-143.
Figura 90 – Cesto wayana com padrão merí, quatipuru sobrenatural (foto Márcio
Ferreira). Fonte – Acervo do Museu do Índio.
23
VAN VELTHEM, 1995, p. 63.
24
Idem, 1998, p. 121.
25
VAN VELTHEM, 1995, p. 108.
26
Veja também KEIFENHEIM, 1998.
27
GEBHARD-SAYER, 1986
28
VIDAL, 1992; MÜLLER, 1991.
29
BASTOS, 1989.
30
MALINOWSKI, 1976; GELL, 1998.
31
Referência clássica nesta discussão é Os mortos e os Outros, de Carneiro da Cunha,
M. (1978). Muitos outros trabalhos seguiram que confirmam o mesmo padrão para ou-
tros povos ameríndios.
32
Minhas observações sobre as flautas pareci derivam de curta exploração de campo
(na aldeia e durante a visita dos Pareci a minha casa), à comunicação pessoal de Marco
Antonio Gonçalves, que trabalhou com os Pareci, e ao trabalho de Romana Costa. Com
relação à durabilidade da flauta, lemos em Costa que “Quando os instrumentos enve-
lhecem devem ser trocados, isto é, seus donos deverão ir até um local, designado “ta-
quaral sagrado”, situado nas proximidades do Rio Juruena e do paralelo 14, para coletar
novas taquaras. Antes de retirá-las, deverão fazer uma oferenda para “acalmar” os guar-
diões” (Costa,1985, p.117; apud Aroni, Bruno, 2009, ms ).
1
http://www.socioambiental.org/pib/portugues/quonqua/quantossao/indexqua.shtm
Acesso em 11 de agosto de 2008.
2
DE DUVE, Thierry: Kant after Duchamp. NY, October Books, 1995, p.5.
3
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma do selvagem. São Paulo,
CosacNaify, 2002.
1) Arte é conhecimento
4) Mitos fundadores
5) Relações
1
KOSUTH, Joseph. Arte depois da filosofia. In: Malasartes, Rio de Janeiro, n.1, set./out./
nov. 1975, p.11.