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“UMA GALINHA”: ANÁLISE EXPANSIVA DA NARRATIVA, A PARTIR DE

OPERADORES ANALÍTICOS

Felipe de Souza Costa1

A partir dos estudos e discussões realizados nas aulas do curso de


especialização em Estudos da Linguagem, disciplina Discurso Literário: Prosa,
ministrada pelo Prof. Dr. José Maria Rodrigues Filho, propomos, nesta análise,
ampliar a leitura feita em sala de aula, bem como as possíveis construções de
sentidos que se dão a partir dela, do conto “Uma galinha”, de Clarice Lispector. Para
tanto, relacionaremos a materialidade linguística proposta a operadores analíticos,
oriundos da teoria literária.

Partiremos, portanto, de um método muito utilizado no exame de textos


literários: a divisão do corredor isotópico. Numeramos os parágrafos do conto e
obtemos a sequência de 1 a 16. Trata-se de um procedimento usual, o qual objetiva
guiar a leitura de maneira didática. A partir de então, trataremos dos assuntos nos
demais parágrafos seguindo a referida ordem.

Antes, porém, falaremos em linhas gerais de alguns elementos que se


coadunam com a proposição desta. Iniciaremos com a análise actancial, cuja
finalidade é descrever a funcionalidade dos elementos das narrativas. O eixo axial,
conhecido também como eixo das ações, no qual encontramos um arrolamento
circunstancial entre sujeito e objeto, tem procedência na teoria proxêmica. O ovo, no
conto de Clarice, surge como uma provocação e passa a ser um arquiactante,
aquele que é mais importante no eixo axial. Ele é o transformador. Constatamos tal
afirmação ao observarmos que, após separar os corredores isotópicos, o ovo surge
exatamente no meio, ou seja, no parágrafo 8. A grande maioria dos parágrafos
costuma utilizar, com maior recorrência, os recursos narrativos narração, descrição e
dissertação.

No tocante à organização sintática e gráfica, Clarice optou por períodos de


coordenadas assindéticas, sendo que a disposição do texto impõe certa velocimetria

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Licenciado em Letras e especialista em Estudos da Linguagem pela Universidade de Mogi das Cruzes.

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ao conto. Ela inicia com o famoso “era uma [...vez...]”, situando o leitor no cronotopo,
é o que a teoria literária chama de forma fabular. O contributo deste início já
pressupõe que a autora, na seleção paradigmática, não mede esforços em se
aproximar de seu interlocutor. O título, também, nos aponta que, embora seja
utilizado um animal, a aproximação com o ser humano é inevitável, uma vez que nas
ideias Aristotélicas, temos uma imbricação muito pujante entre zoé (animais,
escravos e mulheres) e biós (homem). Falaremos, do mesmo modo, do corte
epistemológico machista no conto, que hoje é feito pela crítica feminista.

A leitura completa, antecedente à análise detalhada, de “Uma galinha”


propicia-nos uma abertura para que possamos, a partir da semiótica da narrativa,
fazer uma divisão do enredo em partes, episódios, cenas ou quadros, apontamos
abaixo uma sequência semiológica, dividida em escaletas, útil e abrangente:

A
Domingo Vida na Matam- Passaram-
L
Fuga Perseguição Captura Ovo Afetividade família na se os
I Abate
Choca anos
N Membro Comem-
Comida
H na

Esta cena divide


o antes e o
Nascimento, vida e depois.
Aspecto cíclico
morte = Começo, meio – Ligado à vida
e fim

O valor sêmico de um esquema como esse descrito acima ajuda-nos a


compreender de maneira ilustrada o caminho que o enredo constrói, a partir das
materialidades linguísticas do texto. Conseguimos observar, de maneira sintética,

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que a galinha após protagonizar diversas ações repete o ciclo normal da vida, a
saber: nasce, vive e morre. Há, de igual modo, a visualização da cena que divide a
intriga, a qual está localizada exatamente no meio do eixo axial.

Dando continuidade à ordem isotópica, testemunhamos que no primeiro


parágrafo, conseguimos perceber que, além da seleção lexical, a qual lembra a
forma fabular, há alguns indícios que nos permitem supor o fim da galinha, como por
exemplo, os termos “ainda vivia” pressupõe que morrerá e “não passava de nove
horas da manhã” conjetura que esse horário antecede o almoço e indica que essa
precedência aponta para o preparo.

No segundo, começamos a identificar certa zoomorfização da galinha, ela


passa a receber atributos dos seres humanos. Tem-se uma oração curta, porém
com uma unidade de significação muito intensa: “Parecia calma.”, o adjetivo sugere
que a galinha não é tão animalesca assim.

O terceiro parágrafo arresta-se em descrever com riqueza de detalhes a


perseguição. Destacamos, neste momento, uma análise morfológica do substantivo
perseguição que aparece numa passagem densa desta parte do texto: “A
perseguição tornou-se mais intensa”. A palavra destacada alude a outras classes
gramaticais que estão atreladas aos sentidos criados na narração:
PerseguiçãoPerseguirPerseguidaPerseguidor. A rede semântica criada por um
simples substantivo mostra que a seleção do eixo paradigmático é crucial na
construção de um discurso literário.

Na sequência, o quarto e o quinto parágrafos constituem uma dissertação


filosofante, cuja tônica acentua-se num trecho em que os ideais machistas se
destacam de maneira sutil e, ao mesmo tempo, extremamente duro para uma
sociedade como a nossa: “Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria uma
galo em fuga.” Entendemos, pela própria materialidade linguística manifesta no
texto, que o discurso da machidão subjaz a consciência filosófica do narrador e abre
espaço para enormes discussões acerca desta questão, uma vez que a galinha
jamais se igualaria à superioridade imposta do galo. O sexto, no entanto, retoma a

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narrativa e se instaura como um retorno ao equilíbrio, de modo que ele encerra a
micronarrativa da fuga.

O sétimo manifesta-se como um divisor de águas, uma vez que faz um


prenúncio de uma das cenas mais importantes do enredo: a aparição do ovo. Temos
no trecho “De pura afobação a galinha pôs um ovo” um momento que chamamos de
fulcral. A verdade epifânica ou reveladora desta frase sugere uma causalidade, cujo
fundo filosófico e biológico a coloca no mundo do real. Por fim, o parágrafo encerra
abrindo espaço para o outro entrar em cena, a marcação dos dois pontos introduz a
fala do outro e nos faz entender que, neste instante, o narrador sai de cena. Em
tempo, podemos perfazer uma analogia com a teoria do discurso, em que o viés da
polifonia remete a oralidade e esta, por sua vez, recorre à gênese do conto. O texto
passa a ser, partir deste ponto, um diálogo entre múltiplas vozes.

O oitavo parágrafo é uma representação do discurso direto, pois fazendo um


estudo morfológico podemos perceber que, anteriormente a ele, temos um
substantivo que se aproxima de um verbo de elocução e que introduz a fala: “saiu
aos gritos”. Temos na fala da menina uma clássica aproximação da oralidade: “-
Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!”.
O vocativo, bem como a repetição dele, expresso pelo substantivo “mamãe” e os
pontos de exclamação ilustram bem essa questão.

O nono traz uma descrição carregada de tímia e o destaque se dá no trecho


“Esquentando seu filho”, uma vez que o gerúndio do verbo esquentar indica um
imbricamento entre os recursos descritivo e narrativo. Em contrapartida, a
humanização do episódio com a frase “seu filho” faz-nos ratificar que esta
metaforização é própria do discurso literário. Há, também, a frase “nem alegre, nem
triste”, a qual, ligando intertextos, podemos concluir que pode se tratar de uma
apropriação de Cecília Meireles em um de seus célebres poemas. O décimo, décimo
primeiro e décimo segundo seguem os mesmos moldes do oitavo parágrafo.

O décimo terceiro, décimo quarto e décimo quinto apropriam-se da narração


analéptica (no passado) imbricada com a dissertação, a fim de que se possa

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instaurar um narrador sintetizador, cujo objetivo é avaliar o ocorrido para chegar à
conclusiva.

Por fim, abordamos o último parágrafo. Em semiótica podemos dizer que a


conclusão é terminativa e que se constitui de um final que visa à síntese cognitiva
(do autor) com relação à obra. Percebemos, claramente, que o final, embora
inovador, já era esperado desde o primeiro parágrafo quando foi sentenciado: “ainda
vivia”. Faz-nos, também, entender que o tempo da memória historiográfica sempre
se instaura como determinante para agir sobre o passado, presente e, quem sabe, o
futuro. E que o ciclo de vida, inerente a todo ser vivo, é inevitável, cedo ou tarde ele
se encerrará.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRANCO JUNIOR, Arnaldo. Operadores de Leitura da Narrativa. In BONNICI,


Thomas; ZOLIN, Lucia Osana (orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e
tendências contemporâneas. Maringá: EDUEM, 2003.

LISPECTOR, Clarice. Uma galinha. In Laços de Família. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1983.

RODRIGUES FILHO, José Maria. “Uma galinha”: um conto modelar de Clarice


Lispector. In Forma breve 1: O conto. Universidade de Aveiro: 2003, nº 1.

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