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EM NOME DE UMA HIPER-ÉTICA

Entrevista concedida por Jacques Derrida a Evando Nascimento*

Jacques Derrida publicou mais de setenta livros e somente este ano três periódicos de
prestígio fizeram dossiês em sua homenagem: o “Magazine Littéraire”, a revista “Europe” e os
“Cahiers de l’Herne”. Em seu diálogo com a psicanalista Elizabeth Roudinesco (no livro “De que
amanhã...”, de 2001), esta diz que o pensamento de Derrida triunfou e que o mundo cada vez
mais se lhe assemelha. Porém, ele discorda sobretudo do uso da palavra triunfo, pois não se
pode dizer que a desconstrução é vitoriosa, levando-se em conta os enormes preconceitos e
resistências que encontra em toda parte. Todavia, com efeito, determinados fatores, tais como
o advento das novas tecnologias, o questionamento do etnocentrismo e do valor filosófico de
verdade, que haviam sido indiciados ainda em 1967 pela “Gramatologia” e “A Escritura e a
Diferença”, só fizeram se ampliar posteriormente.
A preocupação de Derrida em relação a questões contemporâneas, manifesta em livros como
“Papel-máquina”, fez com que se falasse cada vez mais numa virada política ou ética de
Derrida, a partir dos anos 1990. Isso é falso porque seus textos sempre envolveram uma
problemática política. Um dos ensaios mais questionadores das relações de poder no interior
da pólis é justamente “A Farmácia de Platão”, no qual as formas de dominação e exclusão do
outro encontram-se amplamente discutidas, através de uma interlocução ferrenha com os
diálogos platônicos.
Por esse motivo ele enfatiza cada vez mais a necessidade de uma “democracia por vir”, que
não seria a utopia de uma democracia futura. A democracia por vir é iminente e, de certo modo,
virtual e real. Não sendo uma idéia reguladora, no sentido kantiano, ela tende ao
aperfeiçoamento e à crítica de si própria, no limite do “auto-imunológico”, que é o processo
biológico em que o organismo tende a voltar o ataque de imunização contra si mesmo.
Relacionado à “democracia por vir”, o procedimento enfatiza a autocrítica sem
condescendência do valor democrático.
Não por acaso o tema da palestra de Derrida no Rio de Janeiro se desenvolverá em torno do
perdão. Para ele, a prova de fogo do perdão é perdoar o imperdoável. Mas perdoar não
significa esquecer, ao contrário, perdoa-se para se ter a viva memória do mal praticado, como
sinal permanente de advertência. O “perdão incondicional” é decerto o que há de mais difícil de
se aceitar na desconstrução dos dogmas ocidentais, mas é sem dúvida o legado mais profícuo
de um pensamento que não teme chegar aos limites da aporia. Segundo Derrida, só há
decisão ética (ou hiper-ética) ali onde parece não haver saída: se o caminho já foi previamente
trilhado, não há responsabilidade, porém somente o cumprimento de um programa pré-
estabelecido. O desafio do pensamento verdadeiramente ético é reinventar suas próprias
normas em face do desconhecido.

[E.N.] “Pensar a desconstrução” é o título geral do colóquio que se realizará no Rio de


Janeiro em torno de seus textos. Quais as relações entre pensamento e desconstrução,
em outras palavras, o que é um “pensamento desconstrutor”?

[J.D.] Gostaria primeiramente de esclarecer que nem toda filosofia é um pensamento e que
nem todo pensamento é de tipo filosófico. Sendo assim, pode-se pensar a filosofia sem pensá-
la de maneira filosófica. A desconstrução é um modo de pensar a filosofia, ou seja, a história da
filosofia no sentido ocidental estrito, e, conseqüentemente, de analisar sua genealogia, seus
conceitos, seus pressupostos, sua axiomática, além de naturalmente fazê-lo não apenas de
maneira teórica, mas também levando em conta as instituições, as práticas sociais e políticas,
a cultura política do Ocidente.
Não se trata de um gesto negativo, como a palavra desconstrução poderia dar a entender, mas
de um gesto de dessedimentação de genealogias, de análise num certo sentido, embora a
palavra análise tampouco seja adequada, pois sempre supõe um elemento simples como
último recurso, enquanto a desconstrução parte sempre de um lugar de complexidade e não de
simplicidade. Em todo caso, trata-se de um gesto afirmativo, mas que não é uma doutrina
filosófica e que diz respeito à filosofia ocidental, porém sem ser um elemento desta, não sendo
tampouco, por definição, ocidentalista. Daí seu vínculo atualmente cada vez mais preciso com
o movimento “altermundialista”, com os movimentos que tendem a transformar o Direito
internacional fundado em conceitos ocidentais ou na filosofia ocidental. Politicamente, é isso
que está em jogo na desconstrução.
[E.N.] Em sua opinião, o que na verdade se encontra implicado no terrorismo e no medo
que ele suscita, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, mas também em outros
países do mundo?

[J.D.] O cuidado prévio que se deve ter em relação a uma tal resposta é analisar o conceito de
terrorismo. Acho que se faz um uso um tanto confuso e abusivo desse conceito. Como se sabe,
muitas vezes chamou-se de terroristas movimentos que em seguida foram reconhecidos como
libertadores, emancipacionistas, como movimentos de independência. Foram chamados de
terroristas, por exemplo, os resistentes da França, ou os resistentes durante a guerra de
independência da Argélia. Há, portanto, um uso sempre orientado e ideologicamente
instrumentalizado da palavra terrorismo. E a palavra vem do terror da época revolucionária
francesa, ou seja, desse movimento que fundou os direitos do homem. Chamou-se também de
terrorista os movimentos violentos, organizados, de grupos que visavam à instituição ou à
restauração de um Estado-nação: os terroristas israelenses, por exemplo, visavam à
instauração do Estado de Israel, os terroristas palestinos fazem o mesmo pelo Estado da
Palestina, os terroristas argelinos, os terroristas irlandeses tinham sempre até aqui como
finalidade a constituição ou a reconstituição, ou ainda a liberação, de um Estado-nação
enquanto tal. Por conseguinte, eles tinham uma política.
Já atualmente o que se chama de terrorismo internacional, por exemplo, aquele que se designa
de maneira metonímica como Al Qaeda, não tem nenhuma pretensão política desse tipo, pois
não visa ao estabelecimento de nenhum Estado-nação. Não é, portanto, um terrorismo efetivo,
não é o que se pode chamar estritamente de terrorismo. O que favorece esse tipo de ação
violenta decorre do fato que, após a Guerra Fria – pois foi esta quem forneceu as premissas
desse movimento –, não houve mais o equilíbrio do terror entre os Estados Unidos e a União
Soviética, que de algum modo prevenia contra os movimentos de violência selvagem, de
utilização de destruição em massa, incontrolável, etc. Foi, portanto, o fim da Guerra Fria que
levou à proliferação das ações que se chama – em minha opinião, equivocadamente – de
terroristas.
Antes se fazia uma distinção, no direito europeu, entre a guerra propriamente dita, ou seja, uma
guerra declarada – de acordo com o Direito –, por um Estado a um outro Estado. Fazia-se,
portanto, uma distinção entre essa guerra internacional e a guerra civil. Distinguia-se ainda a
guerra civil do que Karl Schmidt chamava de guerra dos partidários, ou seja, justamente um
terrorismo de resistentes ou de resistência, interno, tentando derrubar um governo ou substituir
um governo por outro, mas não havia lugar para o terrorismo tal como hoje se utiliza essa
palavra de maneira um tanto confusa. Acredito que quando Bush fala de terrorismo
internacional, ou mesmo quando na ONU se fala de terrorismo internacional, abusa-se da
palavra.
Lembro-me muito bem de uma sessão da ONU – encontrava-me então em Nova York –, em
que Kofi Annan, quando se votava pela enésima vez a condenação do terrorismo internacional,
lembrava com muita honestidade que diversas vezes algumas pessoas tinham pedido uma
definição clara e rigorosa do terrorismo internacional, que ninguém era capaz de dar. Pode-se
chamar de terrorismo internacional um terrorismo de Estado, por exemplo. É óbvio que para os
iraquianos ou para os palestinos os Estados Unidos e Israel praticam um terrorismo de Estado.
Há uma análise muito prudente a ser feita dessa palavra e de suas instrumentalizações
ideológicas ou retóricas. Pessoalmente, nunca a utilizo por minha conta.

[E.N.] Como vê o papel da filosofia nos estabelecimentos de ensino e na sociedade do século


21? Existe um futuro para os filósofos?

[J.D.] Acredito que não somente há um futuro para os filósofos, mas também que apenas
haverá futuro se a filosofia continuar a ser praticada, ensinada, desenvolvida, E isso não
somente como história da filosofia, como memória de certo modo da filosofia grega, latina,
alemã ou européia em geral, porém como análise nova, tentativa de criação de novos conceitos
destinados a fundar um novo conceito do político e um novo direito internacional. Julgo que são
os filósofos, profissionais ou não, aliás, que se encontram em boa posição para pensar o que
acontece hoje com a crise da soberania, com a transformação do direito internacional (mais
necessária do que nunca), com a transformação da ONU (esta deveria inclusive ser deslocada
e não ter mais sua sede em Nova York), com a transformação de todos os órgãos mundiais
que regulam a ordem do mundo, como a OMC, o FMI, o G8 etc.
Para tudo isso, serão necessários novos conceitos jurídicos, que também são conceitos
filosóficos: por exemplo, a instauração de um tribunal penal internacional supõe um novo
direito, implicando um questionamento da soberania dos Estados – chefes de Estado
atualmente podem ser julgados, em princípio. E tudo isso supõe, portanto, uma transformação
do direito, ou seja, junto com o direito, a transformação de todos os conceitos que o constituem:
o conceito de responsabilidade, de personalidade, de sujeito, de norma jurídica. É nesse
sentido que se precisa mais do que nunca dos filósofos.
Acredito que um Estado que não forme filósofos livres – pois não há filosofia sem liberdade –
será um Estado condenado à regressão e ao totalitarismo. Acredito mais do que nunca na
necessidade de desenvolver a filosofia, mesmo que seja graças à desconstrução, quer dizer,
graças ao questionamento de um certo dogmatismo filosófico. E penso que, por exemplo, o
Brasil, que atualmente atravessa uma experiência a um só tempo apaixonante e arriscada,
difícil e temerária, imprevisível, precisa de reflexão filosófica. Acredito que os filósofos e o
discurso filosófico são mais do nunca necessários e que, se não se der a palavra aos filósofos
dignos desse nome, muito se perderá com isso.

Evando Nascimento é o Presidente da Comissão Organizadora do “Colóquio Internacional


Jacques Derrida 2004: Pensar a Desconstrução – Questões de Ética, Política e Estética”, que
se realizará no Teatro da Maison de France, nos dias 16, 17 e 18/08/04, no Rio de Janeiro.

* Esta é a versão completa da entrevista publicada no caderno Mais! da Folha de S. Paulo, em


15 de agosto de 2004, com o título de “Jacques sem Fatalismos”.

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