Você está na página 1de 175

MICHELOTTO & ANOUILH

Dept.Teoria da Arte &Expressões Artísticas


CAC
MICHELOTTO & ANOUILH

PROBLEMAS DE APROPRIAÇÃO DOS TEXTOS:


A TRADUÇÃO

1. Traduzir

Referências Teóricas

01.1 Definindo Tra+ducere 5

01.2 Toda tradução é impossível 5/7

01.3 Discurso de Poder em Foucault 7/8

01.4 Contextos de Tradução 8

2. Traduzir Anouilh

Referências em Anouilh

02.1 Referência à visibilidade 9/11


02.2 Logocentrismo X deconstrução 11/19
02.3 O parâmetro Borges 17/19
02.4 A (in)visibilidade no contexto cultural,econômico e social.. 19/ 23
02.5. Transpor significados (in)stáveis 23/24
02.5. 1 Transpor qual vida 25
02.5. 2 Transpor quais textos 26
02.5. 3 Transpor quais obras 26/27
02.5. 4 Transpor que trabalho 28/30

3. Ler

03.1 Referência Geral 34/35


03.2 Referências à Hermenêutica & Teoria da Tradução 36/38
MICHELOTTO & ANOUILH

1. ANTÍGONE 37/88
2. MEDEIA 89/112
3. ÉDIPO QUE MANCA 113/150

"traduzir deixa de ser uma atividade inútil ou invisível, que deve passar despercebida, e
se assume como uma inevitável forma de conquista ou de tomada de poder, que
necessariamente reescreve o passado e se apropria de outras culturas e linguagens"(Arrojo)
MICHELOTTO & ANOUILH

01 Definindo: Tra+ducere
Como definição parcial,estabeleçamos que traduzir é transferir os jogos de
linguagem de uma língua para os jogos equivalentes” de uma outra língua.
·Existe equivalência?
· Não-equivalência entre línguas
· Tendências pós-estruturalistas - Desconstrução
· Jacques Derrida, Rosemary Arrojo
· Ilusão Logocêntrica
· Desconstruindo a desconstrução
· Conceitos desconstruídos
o Originalidade
o Fidelidade da tradução
o Sentido do texto dado, no próprio texto
o Tradução literal
o Tradução técnica/tradução literária

02 Toda tradução é impossível

Segundo HUMBOLDT (1936), os sistemas lingüísticos são parte intrínseca de uma dada
cultura, e a necessidade que há de se expressar conceitos em uma dada língua é determinada
pela própria cultura. Humboldt dizia que não há qualquer relação intrínseca entre as culturas
do mundo, as formalidades “universais”, como: agradecer, saudar, pedir desculpas etc. são
meras convenções. No entanto, o que estabelece a visão que um sujeito tem do mundo é sua
cultura - socialmente compartilhada, mas única, singular - comum à seu grupo social, e ao
mesmo tempo idiossincrática. A rigor, não existem relações entre conceitos culturalmente
determinados de uma cultura x e outra y. Se x não tem qualquer contato físico com y, os
conceitos de y pouca ou nenhuma importância têm para x. A isso equivale dizer que x, sendo
uma cultura independente e auto-subsistente, assim como y, são mundos fechados, feudos
MICHELOTTO & ANOUILH

culturais sem nenhuma sinapse com outros feudos. Se tal teoria for levada a fim e a cabo, fica-
se estabelecido que não há qualquer relação entre a língua de x e a de y. As palavras destas
línguas representam mundos diferentes, mesmo se consideradas equivalentes pelos
dicionários. Ao se pensar por exemplo na palavra floresta, é possível imaginar que um
brasileiro pensasse em um agrupado gigantesco de árvores tropicais, relativamente espaçadas
umas das outras, cuja fauna é composta por onças-pintadas e macacos, com clima
permanentemente quente e úmido - uma visão da Floresta Amazônica. É possível que para um
alemão, no entanto, a palavra Wald (tida como “equivalente” em qualquer dicionário bilíngüe
português-alemão) tenha como referência um símbolo completamente diferente - árvores
coníferas, que formam um tecido de vegetação fechado, escuro, frio, habitado por ursos,
veados e esquilos - uma visão da Floresta Negra. De que equivalência poder-se-ia falar aqui?
A medida em que os mundos culturais são diferentes, estes precisam denotar símbolos
diferentes, que não necessariamente correspondem a qualquer outro símbolo de qualquer outra
cultura.
A desconstrução tem por objetivo desfazer as crenças na relação um a um entre palavra e
sentido, entre palavras de uma língua e de outra, entre equivalências diretas e claras. Segundo
ARROJO (1993), tudo não passa de ilusão logocêntrica, uma vez que só o que podemos fazer
com o discurso é utilizá-lo para produzir mais discurso - que não passa de linguagem, não
verificável, “desconstruível”.
A rigor, se levarmos as teorias humboldtianas e desconstrutivistas ao radicalismo, pode-se
chegar à conclusão de que toda a tradução é impossível. O grande precursor da desconstrução
na França, Jacques DERRIDA (1967:123 et seq.), chega mesmo a negar, em seu rigor teórico
(e pouco prático), a possibilidade de toda e qualquer comunicação.
Tendo como porto-seguro a concepção de verificabilidade dos resultados, podemos dizer que a
teoria desconstrutivista não é verdadeira, pelo menos parcialmente, já que o mundo vive e
depende dos milhões de palavras traduzidas a cada hora, da comunicação de informações de
maneira rápida e permanente entre as nações, da interpretação “correta” e “verificável” dessas
informações.
Tem-se portanto, é impossível negar, algum “fenômeno” de equivalência que permite que
traduções sejam realizadas pragmaticamente. Este fenômeno é justamente o consenso da
concepção judaica, o convencionalismo lingüístico, adotado pelos povos através do fluxo da
História. É, pois, a equivalência intra e/ou interlingüística utilizada como ferramenta na
tradução, meramente consensual.
É evidente que não se trata aqui de uma percepção simplista do acordo social explicitado. Não
se trata de uma reunião de cúpula da ONU, com representantes de entidades lingüísticas de
diversas nações, para decidirem que palavras de suas línguas serão consideradas equivalentes a
que palavras em outras línguas. Todo acordo lingüístico é fruto do desdobramento dos séculos
e do deslocamento do Homem na História. Fala-se em História ao se mencionar toda trajetória
orgânica, social, intelectual, ética, moral e, por fim, cultural do ser humano, desde sua aparição
consciente no mundo.
Stanley Fish, pragmatista americano da Universidade de Harvard, tece, em seus textos, sua
própria teoria pragmatista (cf. FISH, 1980). Stanley Fish coloca sobre os ombros de uma
MICHELOTTO & ANOUILH

denominada “Comunidade Interpretativa” o papel de uma espécie de juíza de valores. Os que


discordam das determinações desta, estão “teologicamente errados” (FISH 1980:189).
O texto passa a significar, portanto, tudo aquilo, e não mais que isso, que a Comunidade
Interpretativa quer que ele signifique. O significado de um texto é, portanto, dissociado do
texto por completo e atribuído à Comunidade Interpretativa. Por Comunidade Interpretativa
(doravante CI) entende-se um grupo de pessoas (no caso de Fish, de acadêmicos), que
expressam uma mesma leitura de um texto, interpretando-o de maneira equivalente.
Assim, ao observar-se o mundo com os olhos de Fish, é possível estabelecer (coerentes)
relações entre todo significado - de um texto, de uma proposição filosófica, de uma
equivalência tradutória - e a interpretação canônica que se faz dele. O Tudo significa somente
aquilo que os detentores do poder de coerção social querem que ele signifique. O motivo que
leva à eclosão de tal fenômeno só pode ser encontrado nas relações ideologizadores de
Althusser. Para ALTHUSSER (1984), sendo o fator social ideológico e ideologizador
inescapável, inevitável, perdem-se as concepções de estranhamento em relação aos fenômenos
e estabelece-se o canônico, segundo o princípio da naturalização. Não se questiona o porquê
de tal palavra ser “considerada” equivalente a uma outra, pois “é esta a ordem das coisas”. O
fenômeno ideologizador leva à alienação. A concepção consensualista transforma-se num
arquétipo de proposta onomatopaica. Isto é aquilo, diz-se. Perde-se a noção da origem,
arbitrária e convencional - e ganha-se a (equivocada) impressão de Verdade absoluta,
universal e imutável.
03 Discurso de Poder em Foucault
Antígone tem também isso de extraordinário: o personagem principal não é o que dá o título,
mas é o discurso do poder, formulado por Creonte e pelo Segundo Coro.
Essa conotação leva-nos diretamente à investigação do discurso de Michel Foucault
Francês, filósofo e historiador do pensamento, desenvolveu, entre muitas outras, sua “teoria
genealógica” tentando explicar mudanças nos sistemas de discurso através das conexões destes
às práticas não discursivas de exercício do poder social. Assim como as genealogias de
Nietzsche, as de Foucault refutaram qualquer esquema explanatório, como os de Marx ou
Freud. Ao invés disso, ele encarava os sistemas de pensamento como produtos contingentes de
muitas causas pequenas e não-relacionadas. Essencialmente, os estudos genealógicos de
Foucault enfatizam a conexão real entre o conhecimento e o poder. Instâncias de
conhecimento não são estruturas intelectuais autônomas que podem ser utilizadas como
instrumentos baconianos de poder, mas estão essencialmente ligadas a um sistema de controle
social.
Os escritos genealógicos de FOUCAULT (1975), que fazem parte de sua terceira e mais
duradoura fase filosófica, começam com uma apologia de Nietzsche e suas teorias
genealógicas originais. O filósofo francês propõe uma complementação da teoria original de
Nietzsche e afirma que “...todo e qualquer discurso é uma clara tentativa de exercício de poder
social” (FOUCAULT, 1975). Esta conexão essencial foucaultiana entre conhecimento
(discurso) e poder reflete a visão do autor francês de que o poder não é meramente repressivo,
mas uma fonte de valores positivos, criativos, e sempre perigosos. Apesar de os sistemas de
conhecimento expressarem uma verdade objetiva per se, estes estão sempre ligados aos
MICHELOTTO & ANOUILH

regimes de poder correntes. Por outro lado, todo e qualquer regime de poder necessariamente
dá vida a um sistema de conhecimento sobre os objetos que pretende controlar. Este
conhecimento pode, no entanto, em sua objetividade, ir além do projeto de dominação a partir
do qual foi criado.
04 Contextos de Tradução
Podemos elencar provisoriamente como elementos envolvidos no processo tradutório: o texto
original, o autor, o contexto, o texto traduzido e o tradutor. Dentro deste vasto contexto,
enfrentamos Antígone, Medeia e Édipo o rei que manca.

Édipo que manca, é uma peça de Anouilh, exemplar no aspecto das camadas de
transferência necessárias para uma tradução de dramaturgia.
Possivelmente a mais difícil das nossa tríade grega, uma vez que, tanto o tradutor
quanto o leitor, o diretor, o ator, o cenógrafo, nos confrontamos com um Édipo freudiano,
além do Édipo original. Acresce que o centro da peça é exatamente a invisibilidade.
Medeia Anouilh vestiu admiravelmente bem de uma dessas ciganas que giram pela
Europa. Elas lêem em nossas mãos um destino amor, dinheiro, poder. Trindade de desejos da
qual elas mesmas se sentem excluídas tantas vezes.
Medéia de Anouilh é a cigana que lê/vê constantemente a própria mão.
Quando a traduzimos não nos preocupamos demais com nossa visibilidade ou não, com a
cultura para a qual ela era transposta ou não. Uma vez que Anouilh já nos dá isso de bandeja.
Para a presente tradução de Édipo, o rei que manca, não poderíamos encontrar material
melhor de introdução que o do tema da (in)visibilidade do tradutor, expresso inclusive a partir
do próprio sub-título anexado (boiteux), o capenga, que anda mal. É uma peça em que a
(in)visibilidade dos passos do personagem é marcada no título como num exórdio.
MICHELOTTO & ANOUILH

É uma peça em que a visibilidade do personagem confunde-se no ocidente com a


(in)visibilidade de um outro, talvez dentro de nós complexamente estabelecido pela tradução
de Freud para uma das facetas do inconsciente.
Édipo é o personagem que fura os olhos, centro de toda problemática posterior entre teorias da
visibilidade/invisibilidade. Seja dos desejos. Seja da ciência.Seja da tradução.
O tema da (in)visibilidade do tradutor, a partir dos estudos de Venutti., é um dos que
criaram mais controvérsias entre os teóricos da tradução. Para alguns críticos e teóricos
logocêntricos, a tradução é vista como uma atividade mecânica, cabendo ao tradutor
transportar significados supostamente estáveis do texto de partida para o de chegada,
tornando-se possível a neutralidade do mesmo na tradução fluente de textos literários,
possibilitando o aparecimento da voz do autor do original. Neste trabalho busca-se contestar
tais colocações, seguindo de perto as formulações de Venutti sobre a estreita relação entre
tradução literária e tradução de elementos culturais considerando-se que:

1. A impossibilidade de invisibilidade do tradutor, dentro dos limites do


logocentrismo que se baseia na semiologia clássica de Saussure e que parte do
pressuposto de que há, por trás de todo signo, um referente externo ao sistema
lingüístico, é uma ilusão;

2. O escritor não é o autor soberano do texto que escreve. Cada leitor/tradutor faz
uma leitura, uma interpretação, fruto de suas inter-relações com outros textos,
contrariando o conceito logocêntrico de processo tradutório como uma
substituição ou transferência ingênua de significados estáveis de um texto para
outro e de uma língua para outra, isto é, cada tradutor tem uma experiência de
vida e conseqüentemente, uma visão de mundo, um conjunto de valores e
ideologias que influenciará, inevitavelmente os resultados das suas traduções;

3. Aceitar o pressuposto apregoado pelo logocentrismo implica na


marginalização e apagamento do tradutor e, conseqüentemente, na produção de
traduções de segunda categoria, pois sendo invisível o tradutor, suas
responsabilidades autorais serão menores.
MICHELOTTO & ANOUILH

Apesar de haver várias teorias com relação ao uso ou funcionamento da linguagem, toda
teoria lingüística, que está ligada ao logocentrismo, compartilha do pressuposto de que a
origem dos significados se encontra fora do receptor ou leitor. Assim, a teoria logocêntrica
crê que está no significante (no texto, na palavra) e/ou nas intenções do emissor/autor, a
origem do significado; a palavra está presa num invólucro duradouro e resistente que
aprisiona, através dos tempos, as intenções do autor. Arrojo compara as atribuições conferidas
ao autor, pela tradição logocêntrica, como lembrando a "figura paterna autoritária e
controladora que tem o direito indiscutível de determinar os destinos e os contornos de sua
prole" e ao leitor cabendo apenas "o papel filial e passivo, um papel essencialmente
respeitador e protetor dos desejos autorais intencionalmente inseridos no texto".(1992a: 36).
Esse conceito embasa a possibilidade de um significado subordinado à letra, plasmado no
texto, que não sofre influência de qualquer contexto e é imune à leitura, sendo o ler ou
compreender somente o resgate do que o autor quis realmente dizer, das suas reais intenções.
Desde Aristóteles e Platão, a base de grande parte das teorias, das filosofias e das visões
de mundo da civilização ocidental foi a crença nesse conceito de significados estáveis, de
adequação entre verdade e realidade, e na possibilidade de algum nível de conhecimento em
estado puro que se possa instalar nas palavras, na fala ou na escrita, e que pode ser retirado e
adequadamente resgatado das palavras, dos textos, das circunstâncias - por não estar fundido a
eles. Através de todos esses séculos, a tradição logocêntrica tem feito inúmeras e incansáveis
tentativas de produzir uma leitura de um texto que resistisse ao tempo e às mudanças de
contexto, porém todas elas infrutíferas.
Se levarmos às últimas conseqüências e pensarmos na tradução dentro dos pressupostos
logocêntricos, como um transporte de significados estáveis e determinados de um texto para
outro, de uma língua para outra, de uma cultura para outra e de uma época e lugar para outros,
toda tradução deverá ser também capaz de realizar o milagre de transformar a diferença em
MICHELOTTO & ANOUILH

igualdade, além da possibilidade de encontrar significantes que encaixem nos significados


transportados sem danos e perdas.
Paulo Rónai, conhecido tradutor, ao comentar sobre as interpretações da palavra
tradução, tenta justificar a não adequação da tradução às regras logocêntricas:

Conduzir uma obra estrangeira para outro ambiente lingüístico significa


querer adaptá-la ao máximo aos costumes do novo meio, retirar-lhe as
características exóticas, fazer esquecer que reflete uma realidade longínqua,
essencialmente diversa. Conduzir o leitor para o país da obra que lê,
significa, ao contrário, manter cuidadosamente o que essa tem de estranho,
de genuíno e acentuar a cada instante a sua origem alienígena (1981: 20).
Eugene Nida (1975: 190), escrevendo sobre o processo de tradução, compara as palavras
de uma sentença a uma fileira de vagões de carga. Há vagões que carregam uma grande carga,
tão grande que terá que ser dividida entre vários vagões e outros uma carga pequena. Desta
mesma forma, algumas palavras "carregam" vários significados e outras, só juntas terão algum
significado. Para Nida, o importante no transporte de uma carga (processo tradutório) não é
em quais vagões estão as cargas ou qualquer outra informação, mas que cheguem ao seu
destino.
A crítica ao conceito logocêntrico, parte do pressuposto de que todo sujeito está
interligado com o objeto numa relação que sofre influência e é determinada pelas
circunstâncias contextuais. Esta crítica abala a crença na possibilidade da existência de
significados estáveis, supostamente presentes e resgatáveis de um sujeito, e faz com que as
questões teóricas da tradução deixem de ser marginalizadas pelos estudos da linguagem,
passando a ser objeto de estudo dos intercâmbios lingüísticos que acontecem dentro de uma
mesma língua, de um mesmo original.
Um aliado desta crítica é Nietzsche (apud Arrojo, 1992b: 421), ao eliminar o mito de se
encontrar "verdades" que estejam além da perspectiva e do contexto em que ocorrem. Arrojo
afirma que "a busca de conhecimentos e de verdades que motiva a filosofia e a ciência é, para
Nietzsche, apenas um sintoma do impulso à formação de metáforas, que distingue os humanos
das outras espécies animais" e o "conhecimento" deixa de ser apenas um invólucro de
significados estáveis, e passa a ser um instrumento produtor de "verdades". Desta forma, para
os três autores citados, não existe um significado fixo na origem de qualquer manifestação
lingüística, não há um original, um nível de conhecimento que anteceda à linguagem e que
simplesmente se deixe envolver ou macular por ela.
MICHELOTTO & ANOUILH

Em Nietzsche, no início de tudo há apenas a formação de uma metáfora; "um estímulo


nervoso que se transforma em percepção", a qual segundo a autora está acoplada a um som:

Quando falamos de árvores, cores, neves e flores, acreditamos saber algo a


respeito das coisas em si, mas somente possuímos metáforas dessas coisas, e
essas metáforas não correspondem de maneira alguma à essência do original.
Da mesma forma que o som se manifesta como máscara efêmera, o
enigmático X da coisa-em-si tem sua origem num estímulo nervoso, depois
se manifesta como percepção e, finalmente, como som (p. 422).
Nietzsche parece estar eliminando qualquer tentativa de se estabelecer uma relação
própria ou uma tradução literal entre quaisquer esferas ao questionar a crença na possibilidade
de uma origem, ao sugerir que os significados se formam a partir de uma série de
metamorfoses apagadas de uma esfera para outra - "do estímulo nervoso para a percepção,
desta para o sonoro, do sonoro para o literal, do literal para o figurado e assim por diante" .
A discussão até aqui tem girado em torno da arbitrariedade da linguagem. E é Ferdinand
de Saussure o grande teórico que vai levá-la para o interior mesmo do signo: "o signo
lingüístico é arbitrário”. Assim a idéia de mar não está ligada por relação alguma interior à
seqüência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente
bem por outra seqüência, não importa qual" (1971: 24).
Com base no conceito saussuriano do signo arbitrário, Derrida (1987: 26) propõe que se
negue a qualquer pretensão de presença ou de plenitude em qualquer manifestação lingüística:

Esse jogo de diferenças supõe, na verdade, sínteses e referências que proíbem


em qualquer dado momento, ou em qualquer sentido, que um simples
elemento esteja presente nele próprio, e que se refira apenas a si mesmo.
Quer na ordem do discurso oral ou escrito, nenhum elemento pode funcionar
como um signo sem se referir a um outro elemento, este também não
simplesmente presente.
Todo e qualquer texto só pode ser formado a partir do entrelaçamento de signos,
produzido a partir da transformação de outros textos, num processo de adiamento infinito da
origem do significado. Parafraseando o autor, toda presença, como toda origem, será sempre
reconstruída, ou seja, produto e resultado de um processo de interpretação, que implica a
transformação, a produção e não, simplesmente, o resgate de significados plenos e alojados no
interior do significante ou do texto.
Todo e qualquer projeto logocêntrico se embasa na semiologia clássica para afirmar que
por trás de todo signo/sinal há um referente externo ao sistema lingüístico, assim como existe
MICHELOTTO & ANOUILH

uma presença real e resgatável por trás de toda reprodução ou cópia. O signo, e em especial, a
escritura ou a reprodução representa algo que deveria estar presente, ora adiado, e que
pretendemos resgatar. Comentando ainda sobre o signo, Derrida discute a impossibilidade de
se tomar ou mostrar a coisa, e de declarar o presente, o estar-presente, quando o presente não
pode ser apresentado e assim é que se recorre ao desvio fornecido pelo signo. Por esta razão, o
filósofo ratifica a questão de que, na verdade, o signo é uma presença diferida, adiada sempre.
O signo ou a escritura, em Derrida, é concebível somente "como agente do adiamento da
presença", ou seja, é uma presença adiada que pretendemos resgatar; conseqüentemente, a
substituição da coisa-em-si pelo signo se torna tanto secundária quanto provisória:
“secundária em relação a uma presença original e perdida a partir da qual se deriva o signo;
provisória em relação a essa presença definitiva e ausente em cuja direção o signo, nesse
sentido, constitui um movimento de mediação” (1982: 09).
A problemática da tradução e dos chamados textos "originais" pode também ser aqui
enfocada. Podemos classificar na relação signo/referente, o primeiro como adiamento,
substituto daquilo a que se refere, enquanto que na relação original(signo)/tradução, o signo já
ocupa a posição da coisa-em-si e a tradução passa a ocupar a posição incômoda e inadequada
de representante do original, secundária e provisória.
O logocentrismo posiciona no processo tradutório, todo "original" como a coisa-em-si e
condena qualquer tradução como um adiamento incômodo da coisa-em-si, representante do
"original" do qual não temos acesso, em outra língua, em outro tempo e em outra cultura.
Se na relação signo/referente, o signo ocupa uma posição secundária de adiamento, na relação
"original"/tradução, os signos que constituem o texto a ser traduzido perdem sua posição de
inferioridade e se posicionam como estáveis e "originais". E assim voltamos a reconhecer “a
formulação da velha oposição entre conteúdo e forma que sobrevive, inclusive, nas reflexões
que a lingüística, a teoria literária, a semiótica e a filosofia - todas de vocação logocêntrica -
ainda tecem em torno da distinção de Saussure entre significante e significado" (1992c: 59).
Derrida propõe a desconstrução do logocentrismo tentando demonstrar "que não há saída
possível do labirinto inescapável de signos que se referem sempre e tão-somente a outros
signos, num processo de adiamento infinito que proíbe qualquer encontro com uma suposta
presença externa a esse labirinto”.
MICHELOTTO & ANOUILH

Não há nesse jogo arbitrário de diferenças nenhum significado que pudesse estar
presente em si e referir-se apenas a si próprio e, por isso mesmo, ocupar um lugar privilegiado
fora das regras do jogo.
Para referir-se a isto, Derrida usará um neologismo - différance do verbo francês différer
- para se referir a esse jogo de adiamento infinito. O verbo francês différer, como o verbo
diferir no português, pode significar: adiar, procrastinar, retardar, como também divergir,
discordar, ser diferente, ser outro. A palavra différance expressa dessa forma tanto a diferença
como o adiamento e se refere a uma diferença tanto temporal como espacial. Da mesma forma
que a diferença entre as palavras différence e différance não é perceptível audivelmente, sendo
notada somente na escritura, Derrida pretende que o "a" de différance marque "a diferença da
escritura dentro e antes da própria fala, subvertendo a distinção tradicionalmente estabelecida
entre a fala e escritura, além da própria tradição que sempre atribuiu à primeira a prioridade e
a maior intimidade com o verdadeiro" (1992c: 60). A tradição logocêntrica sempre precisou
reprimir essa relação de "mútua différance" entre original e tradução, através da "sacralização
do original" e da "marginalização do tradutor e de seu ofício" (1992c: 60), para que suas
concepções tivessem fundamento.
À luz das teorias pós-modernas de tradução, o lugar do tradutor é o de um impasse.
De um lado, há a cobrança de uma invisibilidade absoluta, coisa que de antemão,
sabemos ser uma ilusão. De outro, há, na atualidade campanhas, incentivos para que o tradutor
mostre seu trabalho, apareça através da sua atividade tradutória. A questão é: Será que o
tradutor, tem escolha? Mesmo quando a tradição logocêntrica exigiu dele toda uma
“fidelidade” ao dito “original”, foi ele assim tão fiel? A quem o foi? A ele mesmo? À
comunidade de chegada? Ao autor do texto de partida? Como avaliar algo como “fiel” ou
“infiel” em se tratando de linguagem, de différence/différance? A (in)visibilidade de quem
traduz é algo consciente, planejado? A fluidez da linguagem e das várias possibilidades de
leitura, principalmente em relação aos textos literários permite toda essa consciência que tanto
é exigida pelas teorias de tradução mais tradicionais?
Arrojo, (1992b: 412) visualiza o que sempre foi privilegiado ao longo da história de
tradução e nos ajuda a compreender melhor o porquê do ideal logocêntrico, justificando toda
a idealização como o "culto ao logos - à razão, à lógica, à verdade (dos textos literários) como
palavra divina, livre de qualquer subjetividade" e atribui-lhe "a crença na possibilidade, não
MICHELOTTO & ANOUILH

apenas de se separar de forma objetiva os dois lados de qualquer dicotomia mas, também, de
privilegiar um deles como primordial, essencial ou superior”.
Por outro lado, a partir da reflexão desconstrutivista de Derrida (1982), estratégia de
leitura que aponta para inevitável aceitação de que a tradução falha quando tenta reproduzir
um original na sua totalidade. Exatamente porque não existe "essa totalidade como uma
presença plasmada no texto e imune à leitura e à mudança de contexto, mesmo dentro do que
chamamos de uma única língua", é que a problemática da tradução passou a ocupar um lugar
de destaque no pensamento contemporâneo, desequilibrando "a concepção logocêntrica de
origem e plenitude e, conseqüentemente, a crença na possibilidade de significados estáveis e
independentes do jogo lingüístico”. E é a partir dessa nova forma de ver a questão textual que
parece ser possível defender o tradutor e seu ofício, buscando tirar-lhe a culpa, quando, por
alguma razão a crítica o denomina de infiel ou traidor.

Segundo o conceito logocêntrico, o processo tradutório é uma substituição ou


transferência de significados estáveis de um texto para outro, de uma língua para outra, de uma
cultura para outra e de uma época(tempo) para outra. Esse conceito permeia, naturalmente,
todas as nossas concepções clássicas de linguagem, sendo aceito pela grande maioria do
conhecimento produzido pelo homem ocidental e por tradutores de qualquer língua ou de
qualquer época.
Por exemplo, Laplanche (1989), coordenador da primeira tradução francesa das Obras
Completas de Freud, declarou ter como objetivo traduzir Freud como se fosse o próprio Freud,
empregando não um francês germânico mas um francês freudiano, utilizando todos os
recursos do francês da mesma forma em que Freud utilizou os do alemão.
Outro exemplo é J. Dryden (apud Milton, 1998), que viveu no fim do século XVII. Em
seu Preface to Ovid's epistles, translated by several hands, cita alguns pré-requisitos para se
fazer uma boa tradução de textos poéticos e entre eles estão idéias como o fato de que não é
possível traduzir poesia sem ser poeta, ou que os significados de um autor são sagrados e
invioláveis, entre outros.
Entretanto, aceitar os pressupostos logocêntricos implica questões, na área de teoria da
tradução, que são particularmente problemáticas. Implica, na possibilidade do tradutor
MICHELOTTO & ANOUILH

encontrar significantes que substituam os significados, sem perdas nem danos e na crença de
se poder resgatar as reais intenções do autor estrangeiro; uma utopia, um milagre, pois quem
poderá saber o que o autor queria dizer quando escreveu o seu texto há anos ou séculos atrás?
Stephen Mackenna (apud Steiner, 1975), tradutor de Enneades de Plotino, entre 1917 e
1930, referindo-se ao seu trabalho definiu-o como um "milagre": "o que fiz com Plotino é um
milagre, o milagre de persistentemente recuperar uma mente que afunda e se agita e
desaparece como uma rolha nas ondas" (p. 269). A pergunta é, conseguiu o tradutor o milagre
que diz ter alcançado? Esta recuperação, “busca de algo que se pressupõe já existir”, realmente
aconteceu, ou trata-se do ideal ilusório de todo tradutor, numa tentativa de auto-apagamento
para reproduzir a tradição de que o autor “original” contém as regras absolutas de verdade
sobre "seu texto"?
Jorge Luís Borges (1989), ao escrever vários contos e ensaios sobre a linguagem,
literatura e a tradução, exemplifica com o conto que integra a coletânea Ficciones - Pierre
Menard, autor del Quijote, essa busca ilusória, pelo tradutor, dos significados estáveis e
plenos no processo tradutório. Diante da impossibilidade de alcançar a verdade absoluta, de
não se poder repetir a identidade do texto "original", toda escritura é transformada em
tradução, do mesmo modo que toda tradução é também escritura.
Pierre Menard (poeta, tradutor e crítico) é um personagem criado por Borges que
consumiu sua vida na tentativa de realizar uma "obra invisível" - a reprodução dos capítulos
IX e XXXVIII da primeira parte do livro Dom Quixote de Miguel de Cervantes e parte do
capítulo XXII. Menard assume a tarefa de se transformar na própria origem dos significados,
recriar o verdadeiro Quixote, recuperando o mesmo texto escrito por Cervantes no século
XVII, ao invés de somente trazer os significados de Cervantes para seu tempo e lugar. Para
alcançar tal objetivo, a primeira estratégia usada é transformar-se literalmente em Cervantes,
isto é, "conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra
os turcos, esquecer a história da Europa entre os anos 1602 e de 1918, ser Miguel de
Cervantes" .
O intento de Menard, desse modo, parece-nos ridículo e impossível, e permite-nos
questionar àqueles que querem ser extremamente fiéis à tradução com um certo ar cético e
irônico. Esta estratégia parece-lhe pouco estimulante, por isso abandona-a e passa, então, a
outra estratégia - continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote através das experiências
MICHELOTTO & ANOUILH

de Menard, impondo-se o "misterioso dever de reconstituir literalmente a obra espontânea de


Cervantes".
Esse é o sonho de todo tradutor formado na tradição logocêntrica. Também para o
narrador de Borges, a "obra invisível" de Menard, por este tida como um milagre e como
"reprodução total" do texto de Cervantes, é considerada como "diferente", apesar da identidade
verbal com a obra que foi traduzida, da repetição de palavra por palavra.
Ao se fazer a leitura de um texto, a interpretação não é exclusiva daquele leitor, assim
como nenhum escritor é o autor soberano do texto que escreve. Da mesma forma, a
interpretação que o narrador propõe do Quixote de Menard é um produto de suas leituras de
outros textos, assim como a interpretação que Dom Quixote faz da realidade não é
exclusivamente sua, mas produto de sua própria biblioteca, ou do que M. Foucault chama de
"arquivo", isto é, aquilo que possibilita a produção de uma leitura e torna-a aceitável.
Ao tentar compreender e desvendar os mistérios borgianos, o narrador encontra ecos de
Menard e Shakespeare em Dom Quixote somente depois de ter sido informado de que Menard
havia tentado recriar o texto de Cervantes. Nossa própria leitura de Borges e de Cervantes
também é produto de nossa biblioteca, o arquivo de nosso tempo, que nos permite ler a teoria
textual de Borges como precursora de teorias lingüísticas e literárias contemporâneas.
Toda tradução possui, inevitavelmente, marcas do tradutor que se trai e se revela:

Toda tradução, por mais simples e breve que seja, trai sua procedência, revela
as opções, as circunstâncias, o tempo e a história de seu realizador. Toda
tradução, por mais simples e breve que seja, revela ser produto de uma
perspectiva, de um sujeito interpretante e, não, meramente, uma compreensão
neutra e desinteressada ou um resgate comprovadamente correto ou incorreto
dos significados supostamente estáveis do texto de partida. Arrojo (1992a:
68):


MICHELOTTO & ANOUILH

O logocentrismo traz ao tradutor sérias conseqüências sociais, culturais e econômicas,


conforme observamos até aqui. Na tradução idealizada pelo logocentrismo, o tradutor não
interfere, mas apenas limita-se a transferir, supostamente, significados de uma língua para
outra e a reproduzir as intenções do autor, sem aparecer ou misturar-se a eles. De acordo com
esta visão tradicional, o texto traduzido deve ser transparente, no sentido de não conter marcas
do processo tradutório. Shapiro (apud Venutti, 1995: 01), exemplificando tal idéia, declara:

Eu vejo a tradução como uma tentativa de produzir um texto tão transparente


que não pareça traduzido. Uma boa tradução é como um painel de vidro.
Você apenas percebe que está lá quando há pequenas imperfeições -
arranhões, bolhas. Idealmente, não deveriam existir. Nunca deveria chamar
atenção para si mesma.
Esta transparência proposta, por sua vez, se reflete no ideal exigido de fluência na leitura
pelo qual a maioria dos leitores, incluindo críticos e editores, avaliam as traduções. Esta
avaliação é feita com base na presença ou ausência de construções não idiomáticas e frases
desajeitadas com significados confusos. A maioria deles lê ou pelo menos quer ler os textos
traduzidos como se estivesse lendo na sua própria língua, como se não fossem originalmente
escritos em outra língua. Quando tal fato ocorre, este é atribuído à falta de competência
lingüística do tradutor, como afirma Francis Aubert (1994: 59):

(...) uma sensível discrepância de competência lingüística do tradutor (...)


pode levar este a incorporar em si estruturas e idiomatismos do código de
partida, resultando, no geral, em um produto tido por qualitativamente
insatisfatório deste ponto de vista ("com cara de texto traduzido").

Por outro lado, Lawrence Venutti (1995: 286-287) atribui à fluência cobrada pelos
críticos, autores e leitores, a causa da invisibilidade do tradutor. Para Venutti, a fluência torna
a tradução transparente e, conseqüentemente, provoca a invisibilidade do tradutor, pois ela
acontece somente quando a tradução é lida fluentemente, quando não há fraseados estranhas,
construções não-idiomáticas ou significados confusos, quando conexões sintáticas claras e
pronomes consistentes criam inteligibilidade para o leitor. Partindo deste pressuposto, Venutti
(1986: 190), propõe uma prática tradutória que resista à fluência, a visibilidade intencional,
afirmando:
MICHELOTTO & ANOUILH

A tradução deve ser vista como um tertium datum que "soe estrangeiro" ao
leitor e que apresente uma opacidade que o impeça de parecer uma janela
transparente aberta para o autor ou para o texto original: é essa opacidade -
um uso da linguagem que resiste à leitura fácil de acordo com os padrões
contemporâneos - que tornará visível a intervenção do tradutor, seu confronto
com a natureza alienígena de um texto estrangeiro.
Contrárias às crenças logocêntricas, temos concepções que estão ligadas à desconstrução
e ao pós-estruturalismo. A desconstrução, proposta por Derrida, questiona as bases do
pensamento tradicional e desconstrói a noção logocêntrica de que a origem dos significados se
encontra fora do sujeito/leitor ou receptor, revisando-a e redimensionando-a. O leitor não é
meramente um simples receptor passivo que decodifica os significados contidos no texto que
lê, mas passa a se conscientizar de sua interferência autoral.
Arrojo (1993:81) difere de Venutti quanto à visibilidade intencional do tradutor. Para
ela, que segue a linha desconstrutivista, é impossível o tradutor não deixar suas marcas e não
se fazer presente mesmo quando pensa estar ou pretende ser invisível: "o tradutor, implícita ou
explicitamente, impõe ao texto que traduz os significados inevitavelmente forjados a partir de
seus próprios interesses e circunstâncias". Há também relação de concordância entre a teoria
de tradução defendida por Arrojo e a de Derrida, cujos teóricos defendem o pressuposto de
que é impossível se fazer uma tradução, na qual não se deixe rastros, "vestígios"; uma
tradução "silenciosa". Arrojo continua, dizendo que:

Qualquer tradução, por mais simples e despretensiosa que seja, traz consigo
as marcas de sua realização: o tempo, a história, as circunstâncias, os
objetivos e a perspectiva de seu realizador. Qualquer tradução denuncia sua
origem numa interpretação, ainda que seu realizador não a assuma como tal.
Nenhuma tradução será, portanto, neutra ou literal; será, sempre e
inescapavelmente, uma leitura (1992a: 78).
Com relação à proposta de Venutti de resistência intencional à fluência, Arrojo (idem)
também se posiciona, até certo ponto, questionando a proposta do autor da (in)visibilidade,
argumentando que além de pressupor que o tradutor possa, ou não, aparecer no texto traduzido
caso opte pela "resistência" ou pela "fluência", Venutti, em sua reflexão não considera que,
mesmo que o tradutor faça uma dessa opções, sua "intenção consciente" não poderá se fixar no
texto como uma origem estável e, portanto, passível de ser resgatada por seu leitor. Nesse
sentido, além de amparar uma contradição básica, tal argumentação parece ingênua, caindo na
própria armadilha que pretende montar ao desalojar do processo de tradução a figura do autor
como origem controladora dos significados.
MICHELOTTO & ANOUILH

A sugestão da teórica pós-moderna ao criticar Venutti é uma proposição de aceitação da


presença de um outro autor no texto traduzido e a conscientização de que o leitor/tradutor
participa e interfere duplamente no processo autoral; partindo deste reconhecimento de que há,
pelo menos, um "outro" autor a habitar o texto traduzido, há a possibilidade de realmente se
aceitar que nenhum tradutor é inocente diante do texto que traduz e nem está diretamente
empenhado numa busca cega por fidelidade ao texto de partida. Arrojo (1992b: 70), referindo-
se à atitude que o tradutor deve assumir, acrescenta :

Uma das implicações fundamentais da aceitação da presença do outro autor


no texto traduzido é a possibilidade de que tradutores e tradutoras deixem de
fingir uma neutralidade e uma ausência impossíveis e, conseqüentemente,
uma inocência e uma fidelidade também impossíveis, abrindo caminho para o
início de uma nova tradição instalada fora dos limites da invisibilidade e da
culpa milenares que têm constituído o cenário e o enredo de seu trabalho.
Quanto mais visível se tornar a presença do tradutor no texto traduzido,
quanto maior sua visão acerca do processo do qual é agente e promotor,
menores serão as chances de que seja ignorado, marginalizado e
indignamente remunerado.
A crença na possibilidade e invisibilidade do tradutor, apregoada pelo logocentrismo,
marginaliza e influi na visão que a sociedade tem do tradutor, ocasionando e justificando a
exploração econômica do ofício tradutório, políticas trabalhistas injustas, bem como falta de
espaço nas instituições de ensino e de pesquisa da tradução como objeto de reflexão. Segundo
Arrojo (p. 64), força os tradutores a abrirem mão de quaisquer direitos autorais e a aceitarem
uma remuneração baseada no número de palavras ou no número de laudas traduzidas,
separando-os do produto de seu trabalho e assemelhando-o ao produto de indústrias
manufatureiras e de serviços. Separa o autor do tradutor, posicionando o autor como aquele
que detém o controle - em mais de um sentido - de seus direitos autorais, reverenciado como
criador, ocupando lugar de destaque nas capas de livros e bibliografias, e ao tradutor atribui-
lhe uma função mecânica e coadjuvante, a de alguém que está sempre se escondendo, se
desculpando pela inadequação que a tradição lhe impõe, e sendo assim, digno apenas de um
reconhecimento e remuneração secundários.


MICHELOTTO & ANOUILH

Essa discussão toda leva a uma consequência curiosa para o tradutor : "ao lhe atribuir o
papel de mero transportador invisível de significados, que deve ignorar-se e a seu tempo e
lugar ao realizar sempre desajeitadamente as operações desse transporte de risco, a sociedade
humilha e aliena o tradutor e seu ofício”. Arrojo (1992b: 419)
Quando se atribui caráter de deidade ao chamado "original", pressupondo-o capaz de se
manter o mesmo apesar das diferenças inevitáveis, da passagem do tempo, das mudanças
ideológicas e contextuais, o logocentrismo necessariamente espera de toda tradução uma
eficiência sobre-humana, capaz de interromper o fluxo do tempo e de neutralizar quaisquer
diferenças.
No entanto, esse "milagre" nunca ocorre, e permanece uma fantasia, por mais que se
esforcem os tradutores comprometidos com a fidelidade total ao "original"; e aí toda tradução
passa a ser sempre "menor", sempre "insatisfatória", sempre apenas uma derivação desajeitada
de um original idealizado e inatingível. Esse destino de fracasso e de impossibilidade faz do
tradutor um Quixote empobrecido, um cavaleiro de triste figura, dono de um mísero nome que
merece ser apagado, escondido, da mesma forma que seu trabalho, vagamente indecente, tem
que passar despercebido, tem que ser invisível.
John Florio, destacado tradutor inglês de Montaigne, desculpava-se por suas incursões
nessa atividade degradada, já que todas as traduções são sempre defeituosas e, portanto,
aparentadas com o sexo feminino. O preconceito com a profissão de tradutor também é visto
em anedotas populares como a que é expressa através do trocadilho italiano "traduttore-
traditore", que devido às semelhanças sonoras entre os dois vocábulos, usam-no para associar
a tradução à traição. Outro exemplo é visto na comparação machista e depreciativa que
relaciona as traduções com as mulheres: quando fiéis, não podem ser bonitas, e quando
bonitas, não podem ser fiéis.
Ao aceitar o papel que a tradição logocêntrica lhe impõe como mero transportador de
significados estáveis, o tradutor não se reconhece como intérprete do texto que traduz,
portanto, pode tornar-se assim visível? Conseqüentemente, não necessita de uma formação
acadêmica, mas somente do conhecimento das línguas envolvidas. Também não há a
necessidade de que assuma a responsabilidade autoral que lhe cabe e por isso não terá direito a
MICHELOTTO & ANOUILH

reivindicar qualquer reconhecimento. Mas quando o tradutor se torna visível no texto


traduzido, reconhecido e remunerado dignamente por seu ofício, suas responsabilidades
autorais serão maiores, bem como maior será a probabilidade de que realize um trabalho mais
meticuloso e bem-feito. A visibilidade chama o tradutor à realização de um trabalho mais
apurado tendo em vista a avaliação de seu trabalho por aqueles que estarão se utilizando dele.
E aqui que tocamos em um ponto talvez o mais interessante e “escondido” sob toda
essa discussão acadêmica: o da propriedade autoral. Pois é apenas disso que se trata quando se
fala em tradução. Arrojo, Foucauld, Derrida e tantos deixaram de lado esse pequeno
aspectozinho. Mas possivelmente o único interessante em tudo isso: tradução NÂO é um
problema de linguística. É um problema social, cultural. É um problema de apropriação dos
meios de produção intelectual.
O que fizemos até agora foi revizar os passos dos que nos precederam diante dos
problemas da tradução. Borges , escritor, evidentemente é quem nos dá a melhor dica: fazendo
de Menard um copiador exato. Que declara ser esse texto agora SEU texto. Coloca pois o
problema central da aprppriação dos meios de produção cultural, no caso escrita, no caso
texto.
Não cabe, nos limites do presente trabalho a defesa de nossa tese. Mas cabe-nos enunciá-
la, a partir de Borges ( e alguns outros autores): Toda propriedade privada é roubo, dizia
Proudhom. Não precisamos ir tão longe. Quando nos confrontamos com traduções vemos que
todo texto é um tecido (Barthes), cujas linhas e nós já estão prédeterminados. Isso é : retirados
de um acervo vcultural que permitiu sua existência. Então, cada um que se apropriar disso
estará se apropriando meramente do “texto cultural” que o permite. Não há, parece-nos
possibilidade de apropriação individual de um bem cultural. E o texto o é.
Isso simplifica enormemente a tradução, colocando-a do lado de um modo especial de
re- produção de textos. Sem necessidade alguma de nos preocupar mos com a construção ou
deconstrução do logos ocidental. A apropriação individual de bens coletivos , chamada por aí
de produção cultural” é o ponto final do logocentrismo. Deconstrui-lo é se apoderar. Para
devolver ao povo o que é do povo, claro!
O tempo e as circunstâncias influenciam a leitura e a escritura, a tradução não é
responsável pela morte do original mas é apenas um novo original, dessa vez de todos. W.
Benjamim, dizia que a tradução é a própria sobrevivência do original, ou seja, é através da
tradução que o original sobrevive e se expande. Esqueceu apenas de acrescentar: se expande
MICHELOTTO & ANOUILH

como bem cultural, de todos E portanto livre para alterações. E portanto sem preço de
mercado. Tal reconhecimento libertará a tradução do complexo de inferioridade e do desejo
compulsivo de pedir desculpas pelos "remendos" feitos por ela. A partir daí, a tradução perde
também a sua inocência e passa a ser feita de forma mais consciente das intervenções
realizadas nos textos traduzidos:
"traduzir deixa de ser uma atividade inútil ou
invisível, que deve passar despercebida, e se assume como
uma inevitável forma de conquista ou de tomada de poder,
que necessariamente reescreve o passado e se apropria de
outras culturas e linguagens".

Como aplicar toda essa discussão teórica à nossa tradução?


Em verdade não foi essa nossa intenção. E cremos que teorias e discussões teóricas não visam
essa aplicabilidade imediata. Nós a apresentamos para que todo tempo que lêssemos Anouilh
ela ficasse como um pano de fundo de nossa intervenção tradutória. Nos guiando mais
inconscientemente que mecanicamente. Nós estaremos necessariamente reescrevendo um
passado e nos apropriando de Anouilh.
As perguntas que nos guiam agora são:
De que passado, de que linguagens, de que textos nos apropriaremos? Que adequações,
equivalências, correspondências produziremos nós? (TURK, Horst (1987)
O que é que estaremos transpondo?
Que vida? Que textos? Que obras? Que trabalho?

�HYPERLINK "http://www.jesuismort.com/biographie_celebrite_chercher/biographie-
jean_anouilh-261.php

Nasceu em 23 de junho de 1910 em Bordeaux (França}, morreu de ataque cardíaco na Suíça


em 3 de outubro de 1987. Filho de François Anouilh (alfaiate) e Marie-Magdeleine Soulue ( música,
MICHELOTTO & ANOUILH

professora de piano). Casou-se com Monelle Valentin (a triz divorciada) mãe de Catherine. Casou-se
com Nicole Lancon, tendo como filhos Catherine, Caroline, Nicolas e Marie-Colombe.
Tentou fazer Direito, mas largou quando descobriu em 1928, Giraudoux e seu Siegfried e Cocteau
com seu (O Casamento da Torre Eiffel, trad. de Michelotto, 1978) Les Mariés de la tour Eiffel.
Com 22 anos, é o secretário de Louis Jouvet no Théâtre des Champs-Élysées; depois trabalha dois anos
numa agência de publicidade (com, entre outros, Jacques Prévert e Jean Aurenche).
Peter Brook disse dele: ” Ele escreve peças antes para ser encenadas que lidas. Suas peças são
improvisações gravadas...é um poeta, mas não de palavras, mas de palavras-atuadas, de cenas de palco,
de performances de atores.” Anel em torno da Lua ( trad. de L'Invitation au chateau/ Convite para
ir ao castelo.)
Em 1929 representa sua primeira peça, um desastre, Humulus le muet.
Em 1932 escreve sua primeira peça “de verdade”: L'Hermine.
Decide viver de sua escrita, mas seu início é duro. Vai conhecer seu primeiro grande sucesso em 37,
com O Viajante sem bagagens noThéâtre des Mathurins. Os atores principais são Sacha e Ludmilla
Pitoëff; Darius Milhaud escreveu uma música estranha, em forma de suite para violão, clarinette e
piano, (op 157b).
Em 1938, obteve um novo sucesso de crítica e público com Bal des Voleurs, e começa um período de
colaboração com André Barsacq. Ele será seu principal interlocutor e diretor durante os próximos 15
anos.
Sua peça mais célebre, Antigone, de 1942, será representada pela primeira vez sob a ocupação
alemã em 1944, com direção, figurino e cenários de André Barsacq, no Théâtre de l'Atelier.
Como inúmeros outros acontecimentos, Antigone será muito mal recebida. Quando estreou:
ninguém aplaudiu. E no final, ambos lamentaram terem escrito e encenado a peça e estavam
certos de que ela era uma verdadeira catástrofe. A crítica se dividiu, a peça tinha uma
ressonância estranha, ambígua, pelo fato da figura trágica de Antígone se parecer com as
heroinas da Resistência. Numa das noites chegou-se até a distribuir panfletos a favor da
Resistência, com a anuência de Anouilh e Barsacq. Antígone iniciou sua carreira como uma
dos pontos altos da dramaturgia de Anouilh.
Ele nos serviu o melhor vinho primeiro, não é normal?
Quando chegar a Liberação, Anouilh se levantará contra os expurgos. Tentando salvar a vida
de Robert Brasillach. Escreveu na época (1945): “Confesso ter uma certa compaixão pelos
vencidos e temo os excessos cometidos nos expurgos ”. Vários escritos posteriores retomarão
esta mesma linha de conduta. O problema é que Brasillach colaborou com os alemães sendo
responsável pela deportação e morte de um sem número de cidadãos franceses (fossem judeus
ou...). Certamente esses mereceriam mais pena que Brasillach, não?
Mas uma coisa é certa: nós não estávamos lá, entendeu?!
Para azar de Anouilh, ele estava... e essa foi a mancha negra de sua vida.

Através de textos aparentemente ingênuos, Anouilh desenvolverá uma visão profundamente


pessimista da existência.Como escreveu Kleber Haedens ” Anouilh nos toca por seus apelos
ao sonho,sua nostalgia de um mundo puro e perdido.”
MICHELOTTO & ANOUILH

Em 1946, Romeu e Jeannette, foram encenados por André Barsacq ; trata- se da primeira peça
interpretada por Michel Bouquet,e por Jean Vilar e Maria Casarès. Depois disso a fecundidade
de Anouilh como autor não mais cessou. Sua carreira será de inumeráveis sucessos durante
quase duas décadas. Entre os insucessos não se pode esquecer o da representação de A gruta,
em 1961. Os tempos estavam mudando... Muitas de suas peças foram adaptadas ou para
filmes ou TV. Romeo e Jeannette foi adaptado e produzido como Monsoon (United Artists,
1953); A Valsa dos toreadores (Continental Distributing, 1962); e em 1963 o filme da
Paramount Becket baseou-se ma tradução de Lucienne Hil de Becket, ou L'Honneur de
Dieu. Produções de TV incluem "The Lark" 1956-57, e "Time Remembered," baseado na
tradução de Patricia Moyes de Leocadia, 1961, ambas no Hallmark Hall of Fame, CBS;
"Traveler without Luggage," na NET Playhouse, PBS, 1971; "Antigone,"Playhouse New
York, PBS, 1972; e The Young Man and the Lion, PBS, 1976.

Jean Anouilh classificou sua própria obra em:


Peças Negras, Peças Rosas, Peças Brilhantes, Peças Que Rangem,
Peças de Costumes, Peças Barrocas, Peças Secretas e Farsas.

Ele sempre trata do mesmo tema: a revolta contra a riqueza e contra o privilégio de
nascimento, a recusa do mundo baseado na hipocrisia e na mentira, o desejo absoluto, a
nostalgia do paraíso perdido da infância, a impossibilidade do amor, a conclusão de tudo
com a morte.Anouilh não cai na peça de tese, mas diversifica suas criações desde o afresco até
à sátira, passando pela tragédia. Antes de tudo ele coloca a encenação.

Peças Negras

No universo de Anouilh há dois tipos de homem que se afrontam” as pessoas para todos os
dias” e os “heróis”. A raça numerosa das pessoas para todos os dias, compreende duas
categorias distintas. Primeiro os fantoches, egoístas, mesquinhos, vazios e vulgares, viciosos e
maus, contentes consigo mesmo e com a vida.Esses são na maior parte dos casos, os pais , as
mães dos heróis.
Em seguida vem o grupo das pessoas dignas e inteligentes, mas incapazes de grandes
aspirações, feitos para uma vida tranqüila e sem complicações. Os “heróis” , jovens na
maioria, se opõem igualmente a esses dois grupos numerosos, rejeitando a felicidade comum
em que eles se comprazem. Mas eles não se constituem em uma categoria única. Dois tipos
podem se distinguir: os que têm um passado pesado, do qual eles tentam escapar e os que
identificam seu passado com o mundo puro da infância e se esforçam por conservá-lo intato.
Os heróis de Anouilh são incapazes de se livrar de seu passado.
São amaldiçoados, pois pertencem a este passado. Prisioneiros de seu passado , de sua posição
social, de sua pobreza, eles não encontram outra saída senão a fuga da morte ou a morte.
As Peças Negras: Eurídice, Antigone e Média são retomadas de mitos conhecidos, mas
Anouilh faz delas obras modernas onde a história não tem mais o papel principal.
Essas peças nos espantam desde o início pela familiaridade do ton e do estilo falado, algumas
vezes vulgar,muito afastado do estilo nobre e rebuscado próprio da tragédia clássica. Ao
MICHELOTTO & ANOUILH

mesmo tempo, como seu mestre Giraudoux, Anouilh usa abundantemente de anacronismos :
aí se falam de cartões postais, de cafés, de bares, cigarros, fuzis, filmes, carros, corridas etc.
E ainda por cima os personagens vestem roupas do século XX. De outra parte, como no caso
de Antígone, Anouilh emprega pela primeira vez a técnica da “mise em abîme”, do "teatro
dentro do teatro" que ele pega de empréstimo a Pirandello. Ao subir a cortina todos os
personagens estão em cena, isolados ou em grupos, calados ou batendo papo. O Prólogo se
adianta em direção ao público e se põe a apresentá-los indicando brevemente sue caráter e seu
papel. O espectador é informado logo desde o início sobre o que vai se passar e não vai mais
ficar se perguntando se Antígone vai morrer, mas porque e como.

Peça. Rosas
A partir de 1937, Anouilh inicia a série de Obras Rosas que ele alterna com as Obras Negras.
São comédias divertidas em que ele solta completamente sua fantasia (Le Bal des Voleurs,
Le Rendez-vous de Senlis, Léocadia).
No universo rosa de Anouilh, há duas categorias de personagens: "os marionetes", que são em
geral velhos ridículos e inconsistentes e os amorosos, jovens sinceros que acreditam no amor..

Peças Brilhantes
Um lugar especial entre elas cabe a Colombe (1951), pois Anouilh retoma nela sua técnica
preferida: a do “teatro dentro do teatro”!

Peças de Costumes
A raça dos heróis reaparece em duas dessas peças após a Liberação: A andorinha e Becket,
depois em Thomas More ou o homem livre, sua ultima peça. Mas ai não encontramos mais
o universo angustiante das primeiras peças negras. Joana d'Arc, Thomas Becket e Thomas
More são figuras luminosas que aceitam se sacrificar não por razões existenciais, mas em
nome do dever: para com a pátria (Joana) ou para com Deus (Becket et More).
Então um dia esses seus valores não mais foram reconhecidos. (1)
E isso se anunciou com o fracasso de A Caverna.
Depois ele se volta para a direção. Será um dos primeiros a saudar o talento de Beckett quando
da criação de Esperando Godot. Ele apoiará também Ionesco, Dubillard, Vitrac... Escreverá
ainda peças nos anos 70 e passará a ser classificado como "auto de teatro de diversão” .
Anouilh assume então perfeitamente este papel e reinvindica para si o título de “velho de vida
a toa” ( que perambula pelos boulevards...). Chegando mesmo a se apresentar como um
simples “fabricante de peças”.

Peças Que Rangem (2)


Após a Liberação, a produção dramática de Anouilh é marcada por peças que rangem (desde
Ardèle ou a Margarida até Umbigo). Sua predileção é a comédia satírica , onde se move
sobretudo a raça mais ou menos vulgar das pessoas comuns em seu dia a dia.

Fábulas
A obra literária de Jean Anouilh compreende igualmente um conjunto de fábulas, algumas
narrativas e numerosos roteiros e adaptações para cinema ou televisão.
MICHELOTTO & ANOUILH

Diretor, Le Voyageur sans bagage, 1943, nos EEUU: Identity Unknown (Identidade desconhecida), Republic
Pictures, 1945.
Deux sous de violettes, France, 1951.

(Com Jean Aurenche) Humulus le muet, Editions Francaises Nouvelles, c. 1929.

L'Hermine, Theâtre de l'Oeuvre, Paris, France, 1932, Les Oeuvres libres, No. 151, 1934, Trad. Inglesa de
Miriam John : The Ermine, in Plays of the Year, Vol. 13, Ungar, 1956. (Η ερμίνα)

Mandarine, Theatre de l'Athenee, Paris, 1933.

Y'avait un prisonnier ("There Was a Prisoner"), Theatre des Ambassadeurs, Paris, 1935, La Petite illustration,
May 18, 1935.

Le Voyageur sans bagage, Theatre des Mathurins, Paris, 1937, La Petite illustration, 10/o4/ 1937, Trad.: John
Whiting , publicada como Traveller without Luggage, Methuen, 1959, encenado no Arts Theatre, London, U.K.,
1959, trad. de Lucienne Hill produzido pela American National Theatre Academy (ANTA) Playhouse, New York
City, 1964. (Ταξιδιώτης χωρίς αποσκευές)

La Sauvage, Theatre des Mathurins, 1938, Les Oeuvres libres, No. 201, 1938, trad. de Lucienne Hill : Restless
Heart, Methuen, 1957, encenado no St. James Theatre, London, 1957.

Le Bal des Voleurs, Theatre des Arts, Paris, 1938, Theatre des Quatre Saisons, New York City, 1938, Les
Oeuvres libres, No.209, 1938, e por Editions Francaises Nouvelles, 1945, trad. de Lucienne Hill : Thieves'
Carnival, Methuen, 1952, e by Samuel French, Inc., 1952, encenado no Cherry Lane Theatre, New York City,
1955.

Rendez-vous de Senlis, Theatre de l'Atelier, Paris, 1938, Editions de la Table Ronde, 1958, encenado no Edwin
O. Marsh : Dinner with the Family, Methuen, 1958, encenado no New Theatre, London, 1957, Gramercy Arts
Theatre, New York City, 1961.

Leocadia, Theatre de l'Atelier, 1939, trad. de Patricia Moyes : Time Remembered, Methuen, 1955, e Coward,
1958, encenado no MoroscoTheatre, New York City, 1957. ( Λεοκάντια)

Eurydice, Theatre de l'Atelier, 1941, trad. por Mel Ferrer encenado no the Coronet Theatre, Los Angeles, CA,
1948, trad. por Kitty Black : Point of Departure, Samuel French, Inc., 1951, encenado no Lyric Hammersmith
Theatre, London, 1950, Mannhard't Theatre Foundation, New York City, 1967, Legend of Lovers, Coward, 1952,
encenado no Plymouth Theatre, New York City, 1951.

Antigone, Theatre de l'Atelier, 1944, Editions de la Table Ronde, 1946, trad.de Lewis Galantiere, Random
House, 1946, encenado no the Court Theatre, New York City, 1946. (Αντιγόνη)

Romeo et Jeannette, Theatre de l'Atelier, 1946, adaptação de Donagh MacDonagh encenado como Fading
Mansion, Duchess Theatre, London, 1949, trad. Miriam John, produzido como Jeannette, Maidman Playhouse,
New York City, 1960.

L'Invitation au chateau, Theatre de l'Atelier, 1947, Editions de la Table Ronde, 1948, e Cambridge University
Press, 1962, trad. Christopher Fry : Ring Around the Moon, Oxford University Press, 1950, encenado no Martin
Beck Theatre, New York City, 1950, adaptação de Clifford Bax, The Pleasure of Your Company , London
MICHELOTTO & ANOUILH

Ardele, ou La Marguerite, Commédie des Champs-Elysees, Paris, 1948, adapt. Cecil Robson prod. como Cry of
the Peacock, Mansfield Theatre, New York City, 1950, trad. Lucienne Hill: Ardele, Methuen, 1951, encenado no
Cricket Theatre, New York City, 1958.

Episode de la vie d'un auteur, Commédie des Champs-Elysees, 1948, Cahiers de la compagnie Madeleine
Renaud--Jean-Louis Barrault, Julliard,1959, trad. encenada como Episode in the Life of an Author, Studio
Arena, Buffalo, NY, 1969, mais tarde Off- Broadway.

Cecile, ou L'Ecole des pères, Commédie des Champs-Elysees, 1949, Editions de la Table Ronde, 1954, trad.
Luce Klein e Arthur Klein : Cecile, or the School for Fathers, in From the Modern Repertoire, 3rd series,
Indiana University Press, 1958.

La Repetition, ou L'Amour puni, Theatre Marigny, Paris, 1950, e Ziegfeld Theatre, New York City, 1952, trad.
Pamela Hansford Johnson e Kitty Black: The Rehearsal, Coward, 1961, encenado no Royale Theatre, New York
City, 1963.

Colombe, Théâtre de l'Atelier, 1951, Livres de Poche, 1963,adapt. de Denis Cannan , ed. Coward, 1954,
encenado no the Longacre Theatre, New York City, 1954. (Κολόμπ)

Monsieur Vincent, Bayerisch Scheulbuch-Verlag, 1951.

La Valse des Toreadors, Editions de la Table Ronde, 1952, trad. de Lucienne Hill : The Waltz of the Toreadors,
Elek, 1956, and Coward, 1957, encenado no Coronet Theatre, New York City, 1957. (Το βαλς των
ταυρομάχων)

L'Alouette, Theatre Montparnasse, Paris, 1953, Editions de la Table Ronde, 1953, Methuen, 1956, and Appleton,
1957, trad. de Christopher Fry: The Lark, Methuen, 1955, e Oxford University Press,1956, trad. de Lucienne
Hill: "Joan", publicado como TheLark, Random House, 1956, adapt. de Lillian Hellman, encenado como The
Lark, Longacre Theatre, New York City, 1955. (Ο κορυδαλλός)

Medeía, Theatre de l'Atelier, 1953, Editions de la Table Ronde, 1953, trad. de Lothian Small : Medea, in Plays
of the Year, 1956, Vol. 15, Ungar, 1957. (Μήδεια)

Ornifle, ou Le Courant d'air, Commédie des Champs-Elysees, 1955, Editions de la Table Ronde, 1955, trad. de
Lucienne Hill: Ornifle: A Play, Hill & Wang, 1970.

Pauvre Bitos, ou Le Diner de têtes, Theatre Montparnasse, 1956, Editions de la Table Ronde, 1958, Harrap,
1958, trad. de Lucienne Hill : Poor Bitos, Coward, 1964, encenado no Classic Stage Company, New York City,
1969.

Hurluberlu, ou Le Reactionnaire amoureux, Commédie des Champs- Elysees, 1959, Editions de la Table
Ronde, 1959, adapt. de Lucienne Hill: The Fighting Cock, Coward, encenado no ANTA Playhouse, New York
City, 1959.

Madame De ..., trad. de John Whiting, Samuel French, Inc., c. 1959, encenado no mesmo programa de Traveller
without Luggage, ArtsTheatre, London, 1959.

Becket, ou L'Honneur de Dieu, Theatre Montparnasse, 1959, Editions de la Table Ronde, 1959, trad. de
Lucienne Hill : Becket, or the Honor of God, Coward, 1960, encenado como Becket, St. James Theatre, New
York City, 1960. (Μπέκετ ή Η τιμή του Θεού)

(with Roland Laudenback), La Petite Moliere, Theatre Festival of Bordeaux, France, 1960, in L'Avant Scene,
December 15, 1959.

La Grotte, Theatre Montparnasse, 1961, Editions de la Table Ronde, 1961, trad de Lucienne Hill : The Cavern,
Hill &Wang, 1966, encenado no Playhouse in the Park, Cincinnati, OH, 1967, e no Classic Stage Company,
New York City, 1968.

La Songe du critique, Lensing (Dortmund, Germany), 1963.


MICHELOTTO & ANOUILH

La Foire d' Empoigne, Paris, 1962, Editions de la Table Ronde, 1961.

L'Orchestre, 1962, in L'Avant Scene, November 15, 1962, trad. Encenada como Orchestra, Studio Arena
Buffalo, NY,1969, and Off-Broadway.

tradutor de Richard III, Theatre Montparnasse, 1964.

Cher Antoine, ou l'Amour rate, Commédie des Champs-Elysees, 1969, Editions de la Table Ronde, 1969, trad
de Lucienne Hill : Dear Antoine, or The Love That Failed, by Hill & Wang, 1971, encenado no Chichester
Festival Theatre, Chichester, U.K., 1971,e no Loeb Drama Center, Harvard University, 1973.

Le Boulanger, la boulangere et le petit mitron, Commédie des Champs- Elysees, 1968, Editions de la Table
Ronde, 1969, trad de Lucienne Hill , encenado como The Baker, the Baker's Wife, and the Baker's Boy,
University Theatre, Newcastle, U.K., 1972.

Le Theatre, ou La Vie comme elle est ("Theatre, or Life as It Is"), Commédie des Champs-Elysees, 1970.

Ne reveillez pas Madame ("Don't Wake Up Madame"), Commédie desChamps-Elysees, 1970, Editions de la
Table Ronde, 1970.

Les Poissons rouges, ou Mon Père, ce héros, ("The Goldfish" ou "The Red Fish"), Theatre de l'Oeuvre, 1970.

Tu etais si gentil quand tu etais petit, ("You Were So Nice When You Were Little"), Theatre Antoine, Paris,
1972, Editions de la Table Ronde, 1972.

Le Directeur de l'Opera, Editions de la Table Ronde, 1972.

The Navel, 1981

�HYPERLINK "http://www.jesuismort.com/biographie_celebrite_chercher/biographie-
jean_anouilh-261.php" Coleções em francês, todas publicadas pelas Ed.de La Table Ronde a menos que seja
indicado.

Peças Rosas contém O Baile dos Ladrões( Le Bal des voleurs,) O encontro em Senlis( Le Rendez-vous de Senlis)
e Leocadia, Editions Balzac, 1942, second edition. (Húmulus o mudo) Humulus le muet, Editions de la Table
Ronde, 1958.

Peças Negras contem ( A Hermínia) L'Hermine,(O Selvagem) La Sauvage,(O Viajante sem bagagem) Le
Voyageur sans bagage, e (Eurídice) Eurídice, Editions Balzac, 1942.

Novas peças negras contém Jezebel, Antigone, Romeo e Jeannette, e Medea, 1946.

Peças brilhantes contém (Convite ao castelo) L'Invitation au chateau, (Pomba )Colombe, (O ensaio

ou o amor punido)La Repetition ou L'Amour puni,(Cecília, ou a Escola dos Pais) Cecile, ou L'Ecole des pères,
1951.

Peças sem óleo,incluem Ardele, ou La Marguerite, La Valse des toreadors, (Ornifle ou a corrente

de ar)Ornifle, ou Le Courant d'air, (Pobre Bitos , ou a almoço de cabeças)Pauvre Bitos, ou Le Diner de tetes,
1956.

Peças de costume: L'Alouette, (B. ou a honra de deus)Becket, ou L'Honneur de Dieu, La Foire d'Empoigne,
1960.
MICHELOTTO & ANOUILH

Peças sem óleo,incluem (O abestalhado ou o recionário amoroso)L'Hurluberlu, ou Le Reactionnaire amoureux,


(A caverna)La Grotte,() A orquestra L'Orchestre,(O padeiro, a mulher do padeiro e o filhinho do padeiro)) Le
Boulanger, la Boulangere, et le petit mitron, (Peixzinhos dourados / ou vermelhos, ou meu pai, este herói)Les
Poissons rouges, our Mon Pere, ce heros, 1970.

�HYPERLINK "http://www.jesuismort.com/biographie_celebrite_chercher/biographie-
jean_anouilh-261.php" Inglês

Collected plays in three volumes published by Hill &Wang: Vol.I published as Five Plays, contains Antigone,
Eurydice, The Ermine, The Rehearsal, and Romeo and Jeannette, 1958, Vol. II published as Five Plays, contains
Restless Heart, Time Remembered, Ardele, Mademoiselle Colombe, and The Lark, 1959, Vol. III published as
Seven Plays, contains Thieves' Carnival, Medea, Cecile, or the School for Fathers, Traveler without Luggage,
TheOrchestra, Episode in the Life of an Author, and Catch as Catch Can, 1967.

The Collected Plays, Methuen, Vol. I contains The Ermine, Thieves' Carnival, Restless Heart, Traveller without
Luggage, and Dinner with the Family, 1966, Vol. II contains Time Remembered, Point of Departure, Antigone,
Romeo andJeanette, and Medea, 1967.

�HYPERLINK "http://www.jesuismort.com/biographie_celebrite_chercher/biographie-
jean_anouilh-261.php" Outros escritos de Anouilh

(Editor e tradutor) Trois Comedies: As You Like It, The Winter's Tale, Twelfth Night, Editions de la Table
Ronde, 1952.

(com Pierre Imbourg e Andre Warnod) Michel-Marie Poulain, Braun, 1953.

(com Nicole Anouilh) (O amante complacente )L'Amant complaisant,trad. de Graham Greene: The
Complaisant Lover, Laffont, 1962.

(ADAPTADOR) Victor de Roger Vitrac, in L'Avant Scene, November 15, 1962.

(tradutor) Il est important d'etre aime, Oscar Wilde's The Importance of Being Earnest, in L'Avant-Scene, No.
101.

CO- AUTOR com Leon Thoorens, Le Dossier Moliere, 1964; Tradutor e adaptador de (Desejo debaixo dos
Elmos) Desire Under the Elms; escreveu (Átila, o magnífico) Attile le magnifique,1930; (A pequena
felicidade)Le Petit bonheur, 1935;(A incerteza) L'Incertain, 1938.

�HYPERLINK "http://www.jesuismort.com/biographie_celebrite_chercher/biographie-
jean_anouilh-261.php" Escritos para teatro

(Autor de dialogues, com Jean Aurenche) Les Degourdis de la onzieme, 1936.

(Autor de dialogues, com Jean Aurenche) Vous n'avez rien a declarer, 1937.

(Autor de dialogues, com Aurenche) Les Otages, 1939.


MICHELOTTO & ANOUILH

(cenarista e autor de dialogues, com Aurenche) Le Voyageur sans bagage, 1943, Identity Unknown, Republic
Pictures,1945.

(adaptador e autor de dialogues,com J; Duvivier e G; Morgan) Anna Karenina, 1947.

(roteirista e autor dos diálogos com J; Bernard-Luc), Monsieur Vincent, Lopert, 1949.

(roteirista, adaptador e autor dos diálogos com, with Bernard-Luc) Pattes Blanches, 1948.

(adaptador e autor dos diálogos) Un Caprice de Caroline cherie, 1950.

(adaptador e autor dos diálogos com sua mulher Monelle Valentin) Deux sous de violettes, 1951.

(adaptador, roteirista e autor dos diálogos) Le Rideau rouge (ce soir joue Macbeth), 1952.

(adaptador e autor dos diálogos) Le Chevalier de la nuit, 1953.

(adaptador e autor dos diálogos) The End of Belle, filmado como The Passion of Slow Fire, Trans-Lux
Distributing, 1962.

(adaptador e autor dos diálogos) La Ronde, 1964.

(adaptador e autor dos diálogos) La Grain de beaute, 1969.

(adaptador e autor dos diálogos) Waterloo, Paramount, 1971.

(adaptador e autor dos diálogos) Time for Loving, 1972.

(adaptador e autor dos diálogos) A Room in Paris.

Também autor de: A Viscondessa de Eristal ainda não recebeu seu tapete mecânico(Carpet Sweeper
(autobiografia)), 1987; e scripts para os ballets Les Demoiselles de la nuit e Le Loup.

http://www.filmreference.com/film/81/Jean-Anouilh.html#ixzz0lCErNaqr

NOTAS

(1) Mas aqui cabe dizer.


É meio doloroso, mas é estranho como o mundo muda e por vezes alguns luminares não o percebem.
Como dissemos acima: nos anos 60 algo havia se removido definitvamente do lugar. Todo esse
“sentimento” de vazio ou de grandeza , inspirados por deus, pátria, família, foi de uma vez por todas
MICHELOTTO & ANOUILH

colocados sob a etiqueta de “conservadorismo”ou “reacionarismo” e deixados para os mais velhos


que um dia iriam se acabar, deixando o mundo um pouco mais leve e limpo, sem dúvida. E olha que
gosto de Anouilh!
Anouilh os matou de vez em suas Peças Negras, não é estranho? Mas foi exatamente o que foi
matando Anouilh, Nelson e toda a geração que ainda escrevia até os anos 50, agora agarrada em seu
passado. Ficaram cotidianos demais. Então um dia seus dias não mais foram reconhecidos. Para
dizer a verdade, ninguém sabe porque. Pois eles mesmos em seus textos não mais reconheciam esse
passado, esse dia a dia, esse recurso ôco ( deus, pátria, família) essa grandeza inútil. Nelson
sobretudo que o diga! Certamente seus procedimentos não envelheceram.
Então um dia seus dias não mais foram reconhecidos. E isso se anunciou com o fracasso de A
Caverna. Depois ele se volta para a direção. O curioso deste autor é que enquanto se prendia em
sua obra, não deixou de saudar (será um dos primeiros!) o talento de Beckett quando da
criação de Esperando Godot. Ou Ionesco, Dubillard, Vitrac... Escreverá ainda peças nos
anos 70 e passará a ser classificado como "autor de teatro de diversão” . Anouilh assume então
perfeitamente este papel e reinvindica para si o título de “velho de vida a toa” ( que
perambula pelos boulevards...). Chegando mesmo a se apresentar como um simples
“fabricante de peças”.

(2) O título possivelmente vem de uma frase de Anouilh no famoso e admirável segundo
Coro de Antígone, quando fala da caraterísticas da tragédia em oposição aos melodramas etc.
“The machine is in perfect order; it has been oiled since time began, and it runs without
friction”
Essas peças seriam o contrário das tragédias, creio eu!

ALTHUSSER, L. Essays on Ideology. Londres: Verso, 1984.

ARROJO, Rosemary (org.). O Signo Desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e


o ensino. Campinas, SP: Pontes, 1992a.

ARROJO, Rosemary. “Tradução”. In JOBIM, José Luís (org.), Palavras da Crítica. Rio de
Janeiro: Imago, 1992b.
MICHELOTTO & ANOUILH

__________________. “A tradução passada a limpo e a visibilidade do tradutor”. In TLA, 19,


pp. 57-73, 1992c.

___________________. Tradução, Desconstrução e Psicanálise. Biblioteca Pierre Menard.


Rio de Janeiro: Imago, 1993.

AUBERT, F. H. As (In)Fidelidades da Tradução: servidões e autonomia do tradutor.


Campinas: Editora da Unicamp, 1994.

BENJAMIN, Walter. “A Tarefa do tradutor” In: Iluminations. New York: Schocken Books,
1969.

BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard, autor do Quixote”. In Ficções. São Paulo: Globo,
1989.

CARDOSO, André. Alguns apontamentos sobre a estética da recepção, o pós-estruturalismo e


a tradução. In: PaLavra, n. 2. Rio de Janeiro: Departamento de Letras da PUC-Rio, [s/d.].
DERRIDA, J. L’Écriture et la différence. Chicago, IL: Univ.of Chicago Press, 1978

DERRIDA, J. “Differance”. In Margins of Philosophy (trad. de Alan Bass). Chicago: The


Universtity of Chicago Press, 1982.

ECO, Umberto. Os Limites da Interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2000.


------ (org.). Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
EVEN-ZOHAR, Itamar. The Making of Culture Repertoire and the Role of Transfer. In:
Target 9:2 pgs 335-363. Tel-Aviv: Tel-Aviv University Press, 1997.
FISH, Stanley. Is there a text in this class? The authority of interpretive communities.
Cambridge, Massachussets & London: Harvard University Press, 1980.
FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: naissance de la prison, Paris: Gallimard, 1975.
------. Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir, Paris: Gallimard, 1976.
HUMBOLDT, W. Gesammelte Schriften. ed. Prussian Academy of Sciences. Berlim: Behrs
Verlag. In: Routledge Encyclopedia of Philosophy, Version 1.0. Londres: Routledge (CD-
Rom), [1996?].

LAPLANCHE, J. Traduire Freud. Paris: Presses Universitaires de France, 1989

LEFEVRE, A. (Ed.) Translation/History/Culture - A Sourcebook. London: Routledge, [s/d.].

MILTON, John.Tradução: Teoria e Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1998

NIDA, Eugene. Language Structure and Translation. Califórnia: Standford University Press,
1975.
MICHELOTTO & ANOUILH

NIETZSCHE, F. “On the Truth and Falsity in their Ultramoral Sense”. In Early Greek
Philosophy & Other Essays. London: T. W. Foulis, 1911.

PAGANO, Adriana; MAGALHÃES, Célia & ALVES, Fábio. Traduzir com Autonomia -
estratégias para o tradutor em formação. São Paulo: Contexto, 2000.
SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de Linguistique Générale. Ed. C. Bally e A. Sechehaye.
Glasgow: Fontana Collins, 1977.

RÓNAI, Paulo. A Tradução Vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. 3ª Edição. São Paulo: Editora Cultrix, 1971.

STEINER, G. After Babel. Oxford: Oxford University Press, 1975.

TOURY, Gideon. Descriptive Translation Studies and Beyond. Amsterdam-Philadelphia: John Benjamins, 1995.

VENUTI, L. “The Translator’s Invisibility”. In Criticism, vol. XXVIII, nº 2, Spring, 1986, pp.
179-212.

VENUTI, L.. A History of Translation. London: Routledge, 1995.

VIEIRA, Else R. P. (Org.). Teorizando e contextualizando a Tradução. Belo Horizonte:


UFMG, 1996.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Londres: Routledge, 1953.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (ed. G.E.M. Anscombe and R.
Rhees). Oxford: Blackwell, 1953.

ASAD, Tala/DIXON, John (1985): «Translating Europe's Others». In: Francis BAUER et al.,
Europe and its Others. Vol. I. Colchester: University of Essex (pp. 170-177) [= Proceedings of
the Essex Conference on the Sociology of Literature].
BARRENTO, João (1996): «O poeta é um devedor: da tradução literária e da história da
literatura» in: Margarida L. LOSA et al. (Orgs.), Literatura Comparada: Os Novos
Paradigmas. Porto 1996 (pp. 189-195).
BARRENTO, João (2002): O Poço de Babel. Para uma poética da tradução literária. Lisboa:
Relógio d'Água.
BASSNETT, Susan (1991): Translation Studies. Revised edition, London/New York 1991.
MICHELOTTO & ANOUILH

BASSNETT, Susan (1993a): Comparative Literature. A Critical Introduction. Oxford


UK/Cambridge USA [Rec. crítica: Margarida L. LOSA in: Dedalus. Revista Portuguesa de
Literatura Comparada. Nº 3/4, 1993-1994. Lisboa (pp. 285-287)].
BASSNETT, Susan (1993b): «Taking the Cultural Turn in Translation Studies». In: Dedalus.
Revista Portuguesa de Literatura Comparada. Nº 3/4, 1993-1994. Lisboa (pp. 171-179).
BASSNETT, Susan/LEFEVERE, Andre (Eds.) (1995): Translation, History & Culture.
London/New York [1ª ed.: 1990].
BENJAMIN, Walter (1977): «Die Aufgabe des Übersetzers». In: _____, Illuminationen.
Frankfurt am Main (pp. 50-62) [1ª ed.: 1923].
BUESCU, Helena/DUARTE, J.F./GUSMÃO, M. (Orgs.) (2001): Floresta Encantada. Novos
Caminhos da Literatura Comparada. Lisboa: Pub. Dom Quixote.
BUZZONI, Marco (1993): «Sprachphilosophische und methodologische Probleme der
Übersetzung aus personalistischer Sicht». In: Armin Paul FRANK et al. (Hg.), Übersetzen,
verstehen, Brücke bauen: geisteswissenschaftliches und literarisches Übersetzen im
internationalen Kulturaustausch. Teil 1, Berlin (pp. 22-57) [= Göttinger Beiträge zur
internationalen Über-setzungsforschung, Bd. 8.1].
CALLON, Michel (1997): «Four Models for the Dynamics of Science». In: Alfred I.
TAUBER (Ed.), Science and the Quest for Reality. London: Macmillan (pp. 249-292).
CORREIA, Renato (1996): «Translatologia - uma ciência alemã?» in: Rita IRIARTE (Org.),
Ensaios de Literatura e Cultura Alemã. Coimbra (pp. 317-324).

COSERIU, Eugenio (1976): «Falsche und richtige Fragestellungen in der


Übersetzungstheorie». In: Wolfram WILSS (Hg.), Übersetzungswissenschaft. Darmstadt
(pp. 27-47) [publicado originalmente em L. GRÄHS et al. (Eds.), Theory and Practice of
Translation. Nobel Symposium 39, Stockholm, September 6-10, 1976. Bern/Frankfurt am
Main/Las Vegas 1978 (pp. 17-32)].
DE MAN, Paul (1989): A Resistência à Teoria. Trad. Teresa Louro Pérez, Lisboa 1989.
DELILLE, Karl Heinz (1996): «'Authentisch und autark': Übersetzung als kreativer Prozeß.
Anmerkungen zu Celans Pessoa-Übertragungen». In: Runa. Revista portuguesa de estudos
germanísticos. 26/1996, Coimbra (pp. 711-719) [= Actas do I Congresso Internacional da
Associação Portuguesa de Estudos Germanísticos, Vol. II].
DELILLE, Karl Heinz et al. (1976): Problemas da Tradução Literária. Coimbra.
DUARTE, João Ferreira (2001): «Tradução e expropriação discursiva: The Lusiad de W.J.
Minckle». In: Helena BUESCU et al. (Orgs.), Floresta Encantada. Novos Caminhos da
Literatura Comparada. Lisboa: Pub. Dom Quixote (pp. 519-532).
MICHELOTTO & ANOUILH

FRANK, Armin Paul et al. (Hg.) (1993): Übersetzen, verstehen, Brücke bauen: geisteswissen-
schaftliches und literarisches Übersetzen im internationalen Kulturaustausch. Berlin (2 vols.)
[= Göttinger Beiträge zur internationalen Übersetzungsforschung, Bd. 8 (1,2)].
GADAMER, Hans-Georg (1986): Gesammelte Werke. Bd. 1 [= Hermeneutik I. Wahrheit und
Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik], Tübingen [1ª ed.: 1960].
HUMBOLDT, Wilhelm von (1981): «Einleitung zum Agamemnon». In: _____, Werke. Bd. V
[= Kleine Schriften. Autobiographisches. Dichtungen, Briefe], Darmstadt: Wissenschaftliche
Buchgesellschaft (pp. 137-145) [1ª ed.: 1816].
ISER, Wolfgang (1994): «On Translatability». In: Surfaces. Revue électronique publiée par
Les Presses de l'Université de Montréal. Dir. Jean-Claude Guédon. Vol IV [on-line: Set/2003;
URL: ‹http://pum12.pum.umontreal.ca/revues/surfaces/vol4/iser.html›].
KOLLER, Werner (1972): Grundprobleme der Übersetzungstheorie. Bern/München: Francke
Verlag.
KOLLER, Werner (1992): Einführung in die Übersetzungswissenschaft. 4., völlig neu
bearbeitete Auflage, Heidelberg/Wiesbaden [1ª ed.: 1979].
LADMIRAL, Jean-René (1994): Traduire: théorèmes pour la traduction. Paris [11979].
LUTHER, Martin (1962): «Sendbrief vom Dolmetschen». In: An den christlichen Adel
deutscher Nation. Von der Freiheit eines Christenmenschen. Sendbrief vom Dolmetschen.
Hrsg. v. Ernst Kähler, Stuttgart (pp. 151-173) [1ª ed.: 1530] [versão on-line: Set/2003; URL:
‹http://www.sochorek.cz/archiv/werke/luther.htm›].

MACHEINER, Judith (1995): Überstezen. Ein Vademecum. Frankfurt am Main 1995.


NIDA, Eugene A. (1975): «Das Wesen des Übersetzens». In: WILSS, Wolfram (Hg.):
Übersetzungswissenschaft. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft (pp. 123-149)
[publicado originalmente sob o título «Science of Translation» in: Answar D. DIL (Ed.),
Language Structure and Translation. Essays by Eugene A. Nida, Stanford (pp. 79-101).
Traduzido por Wolfram Wilss].
ORTEGA Y GASSET, José (1984): «Miseria y esplendor de la traducción». In: _____, El
Libro de las Misiones. Madrid (pp. 125-162) [1ª ed.: 1937].
PAZ, Octavio (1990): Traducción: literatura y literalidad. Barcelona [1ª ed.: 1971].
PIMENTA, Alberto (1990): «Lição de Despedida ao Curso de Tradutores de Português da
Universidade de Heidelberg». In: _____, Obra Quase Incompleta. Lisboa (pp. 195-201).
QUINE, Willard van Orman (1960): Word & Object. Cambrigde/Massachusetts.
SCHLEIERMACHER, Friedrich (1973): «Ueber die verschiedenen Methoden des
Uebersetzens». In: Hans-Joachim STÖRIG (Hg.), Das Problem des Übersetzens. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft (pp. 39-70) [1ª ed.: 1813] [fac-simile do original on-line:
MICHELOTTO & ANOUILH

Set/2003; URL: ‹http://www.bbaw.de/bibliothek/digital/struktur/07-abh/18121813/jpg-0600/


00000746.htm›].
STEINER, George (1992): After Babel. Aspects of language and translation. Second edition,
Oxford/New York.
STOLZE, Radegundis (1994): Übersetzungstheorien: Eine Einführung. Tübingen.
TURK, Horst (1987): «Adäquatheit, Äquivalenz, Korrespondenz. Der kategoriale Rahmen der
Übersetzungsanalyse». In: Reiner ARNTZ (Hg.), Textlinguistik und Fachsprache: Akten des
Internationalen übersetzungswissenschaftlichen AILA-Symposions. Hildesheim/Zürich/New
York 1987 (pp. 87-100).
WANDRUSZKA, Mario (1981): «Unsere Sprachen: instrumentale Strukturen, mentale
Strukturen». In: WILSS, Wolfram (Hg.): Übersetzungswissenschaft. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft (pp. 323-335) [publicado originalmente sob o título «Nos
langues: structures instrumentales, structures mentales» in: Meta 16/1971 (pp. 7-14).
Traduzido por Gisela Thiel].
WANDRUSZKA, Mario (1990): Die europäische Sprachengemeinschaft: Deutsch-
Französisch-Englisch-Italienisch-Spanisch im Vergleich. Tübingen [=UTB 1588].
WILSS, Wolfram (1988): Kognition und Übersetzen. Zu Theorie und Praxis der menschlichen
und der maschinellen Übersetzung. Tübingen [= Konzepte der Sprach- und
Literaturwissenschaft, 41].
WILSS, Wolfram (Hg.) (1981): Übersetzungswissenschaft. Darmstadt: Wissenschaftliche
Buchgesellschaft.

Parte II

ANTIGONE
MICHELOTTO & ANOUILH
MICHELOTTO & ANOUILH

1942

Creonte
Hemon
Ismênia
Eurídice
A Babá
Pajem
Guardas

Mensageiro
Coro
Prólogo (1)

A peça inicia com o Prólogo, mas ele não é mencionado entre os personagens.
É possível que seja feito pelo Mensageiro, ou alguém do Coro.
MICHELOTTO & ANOUILH

Observaçãm que muyto importa leer:

Nossas notas de tradução ou palavras acrescentadas, que julgarmos necessárias à fluência


específica da língua brasileira, serão escritas em azul, cor diferente da do texto original de
Anouilh. As rubricas do autor, em vermelho, já que rubricas.
E com tabulação à esquerda, conforme o texto francês.
Pela mesma razão, nomes de personagens são tabulados no centro, em maiúsculas

Cenário neutro. Três portas iguais. Ao abrir a cortina todos personagens estão em cena. Batem
papo, tricotam, jogam baralho. O Prólogo se afasta deles e vai para a frente do palco.

O PRÓLOGO

Eis aí. Esses personagens vão representar para vocês a história de Antígone. Antígone é
a magrelinha que está sentada lá mais ao fundo e que não fala nada. Ela apenas olha reto em
frente.Ela pensa. Ela pensa que daqui a pouco ela será Antígone, que ela surgirá da moça magra
e meio negra e trancada que ninguém na família levava a sério e irá se erguer sozinha diante do
mundo, sozinha diante de Creonte, seu tio, que é o rei. Ela pensa que irá morrer, que ela é jovem
e que, também ela, gostaria muito de continuar vivendo.Mas não há nada que se possa fazer
para isso.Ela se chama Antígone e será necessário que ela represente seu papel até o fim... E,
desde que essa cortina se abriu, ela sente que se afasta, em vertiginosa velocidade, de sua irmã
Ismênia, que bate papo e ri com um jovem; ela sente que se afasta de todos nós, que aqui
estamos bem tranqüilos a olhá-la, de nós que não iremos morrer esta noite.
O jovem com o qual conversa a loura, a bela, a feliz Ismênia, é Hemon, o filho de
Creonte. Ele é o noivo de Antígone. Tudo o levava rumo a Ismênia: seu gosto pela dança e os
jogos, seu gosto pela felicidade e o sucesso e também sua sensualidade, pois Ismênia é bem
mais bonita que Antígone, mas aí, uma bela noite de baile em que ele havia dançado o tempo
todo apenas com Ismênia, uma noite em que Ismênia tinha se apresentado esplêndida com seu
vestido novo, ele foi se encontrar com Antígone que sonhava em um canto qualquer, como
agora, seus braços envolvendo os joelhos, e ele pediu que ela fosse sua mulher. Ninguém jamais
compreendeu o porquê. Antígone levantou seus olhos sérios para ele, sem nenhuma surpresa e
ela lhe disse “sim”, um sim acompanhado de um pequeno sorriso triste... A orquestra tocava
para uma outra dança; Ismênia ria desabridamente. Lá ao longe, por entre outros jovens e,
pronto, eis que ele iria ser o marido de Antígone. Ele não sabia que não deveria jamais existir
marido algum de Antígone por sobre esta terra e que esse título principesco lhe dava apenas o
direito de morrer.
Este homem robusto, de cabelos brancos, que está a meditar ali perto de seu pajem, é
Creonte. E é o rei. Ele tem rugas, ele está cansado. Ele representa o difícil jogo de guiar
MICHELOTTO & ANOUILH

homens. Antes do tempo de Édipo, quando ele não era o primeiro personagem da côrte. Ele
amava a música, os livros bem encadernados, os longos passeios sem finalidade por entre os
pequeno antiquários de Tebas. Mas Édipo e seus filhos estão mortos.Ele abandonou seus livros,
seus objetos, ele arregaçou suas mangas e tomou seu lugar.
Algumas vezes, ao anoitecer, ele está fatigado e se pergunta se não é uma perda de
tempo o conduzir homens. Se isso não é um ofício sórdido que se deveria deixar para outros
mais frustrados...Bem, mas ao amanhecer problemas precisos são postos, os quais é preciso
resolver, e ele se levanta tranqüilo, como um operário no meio de sua jornada.
A velha senhora que tricota, ao lado da babá que educou as duas meninas, é Eurídice, a
mulher de Creonte. Ela tricotará durante toda a tragédia até que chegue seu momento de se
levantar e morrer. Ela é boa, digna, amorosa; ela não lhe serve de nada. Creonte está só, só com
seu pequeno pajem que é muito pequeno e também não pode fazer nada para ajudá-lo.
Esse rapaz, lá bem mais no fundo, que sonha, encostado à parede, solitário, é o
Mensageiro.É ele quem virá daqui a pouco anunciar a morte de Hemon. É é por isso que ele
não tem vontade de papear nem de se misturar com os outros. Ele já sabe...
E finalmente , os três gajos avermelhados que jogam baralho, de chapéu à nuca, são os
guardas. Não são uns cães degenerados assim: eles têm mulheres, eles têm filhos e pequenas
chateações na vida, como todo mundo, mas daqui a pouco eles pegarão os acusados com a
maior tranqüilidade do mundo. Eles fedem a alho, a couro e vinho tinto e são completamente
desprovidos de imaginação. São os auxiliares da justiça, sempre inocentes e sempre satisfeitos
com eles mesmos. Nesse momento, até que um novo chefe de Tebas devidamente empossado
lhes dê ordens por sua vez para prendê-lo, eles são os auxiliares da justiça de Creonte.
E agora que vocês os conhecem a todos, eles poderão apresentar para vocês a sua
história. Ela começa no instante em que os dois filhos de Édipo, Etéocle e Polinice, que
deveriam reinar em Tebas , alternando-se a cada ano, lutaram um com o outro e se mataram aos
pés das muralhas da cidade, depois que Etéocle, o mais velho, se recusou de dar a vez a seu
irmão. Sete grandes príncipes estrangeiros que Polinice havia conseguido para defender sua
causa, foram vencidos diante das sete portas de Tebas. Agora a cidade está a salvo; os dois
irmãos inimigos, mortos, e Creonte , o rei, ordenou que para Etéocle, o bom irmão, seriam feitos
imponentes funerais; e ordenou que Polinice, aquele vagabundo, um revoltado e ladrão, seria
exposto, sem choros nem sepultura, como presa de corvos e chacais. Qualquer um que ouse lhe
fazer as honras fúnebres será impiedosamente punido com a morte.

BABÁ
Estás vindo de onde?
ANTÍGONE
De meu passeio, babá. Foi bonito. Tudo estava cinzento. Agora, você nem imagina como tudo
anda rosa, auriverde. Virou um cartão postal. Tens que te levantar mais cêdo, minha babá, se
suportas ver um mundo sem cores.
Tenta passar pela Babá.
BABÁ
Eu me levantei e ainda era noite, fui a teu quarto para ver se não te tinhas descoberto enquanto
dormias e não te encontrei na cama!
ANTÍGONE
O jardim ainda estava dormindo. Eu o surpreendi, babá. Eu o vi sem que ele percebesse. É
belo um jardim que ainda não pensa nos homens.
MICHELOTTO & ANOUILH

BABÁ
Tu saíste. Eu passei pela porta do fundo que deixaste entreaberta.

ANTÍGONE
Nos campos tudo estava molhado e era espera. Tudo esperava. Eu fazia um barulho enorme pela
estrada e estava chateada, pois sabia que não era a mim que esperavam. Então tirei minhas
sandálias e escorreguei pela relva sem que ela se apercebesse.
BABÁ
Vais ter que lavar esses pés antes de voltar para a cama.
ANTÍGONE
Eu não voltarei para a cama esta manhã.
BABÁ
Às quatro! Nem eram quatro horas!Eu me levanto e vou ver se estás descoberta. E encontro um
leito frio sem ninguém nele.
ANTÍGONE
Não achas que se me levantasse todos os dias bem cedinho, não seria belo todas as
manhãs ser a primeira moça fora de casa?
BABÁ
De noite! Estava bem de noite!E tás me querendo fazer crer que foste passear, sua
mentirosa! De onde é que estás vindo?
ANTÍGONE
Tem um estranho sorriso
É verdade, ainda estava de noite.E apenas eu, em todo o campo, pensava que já era de manhã. É
maravilhoso, babá. Fui a primeira hoje que acreditou no dia.
BABÁ
E banca a maluca! Vais bancando a maluca, vais.Eu conheço bem essa canção. Eu já fui moça
antes de ti. E nunca fui boazinha também, mas cabeçuda que nem és, isso nunca fui. De onde é
que estavas vindo, sua mentirosa?
ANTÍGONE
Repentinamente séria
Não. Não sou má.
BABÁ
Tinhas um encontro, né não? Diga que não, ué....
ANTÍGONE
Com doçura
Sim. Eu tinha marcado um encontro.
BABÁ
Arranjaste um namorado?

ANTÍGONE
Com estranheza, após um silêncio
Sim, babá, sim, coitado. Eu tenho uma paixão.
BABÁ
MICHELOTTO & ANOUILH

Ah, mas que bom! Que gracinha! Tu, a filha de um rei! Vai você se cansar, vai se cansar para
educá-los! É tudo igual! Mas tu, tu não eras como os outros, vê lá se ias viver em frente ao
espelho, a passar batom, a fazer tudo para que olhassem para ti! Quantas vezes eu me disse:
“Meu deus, essa menina, ela não é nada charmosa! Sempre com o mesmo vestido e sempre toda
despenteada. Os rapazes só olharão para Ismênia e seus cachinhos e seus laçarotes e vão deixar
Antígone para que eu crie!” Pois é, e não é que acabaste pior que tua irmã, sua fingida!Quem
é?! Um bandidinho né, quem sabe!Um cara que nem podes anunciar à família: ‘É esse aí com
quem vou me casar “.. É isso aí, né não, vá diga sua trapalhona!”.
ANTÍGONE

Ainda com um sorriso imperceptível


É isso aí, minha babá.
BABÁ
E ela ainda diz que é! mí-sericórdia! Eu a peguei pequenininha, eu prometi à sua pobre mãe que
faria dela uma menina decente e veja o que ma dá! Ah mas isso não vai ficar assim não, minha
tolinha. Eu sou tua babá e me tratas como uma velhota imbecil, tá bom, mas teu tio Creonte vai
ficar sabendo de tudo. A isso eu te prometo!
ANTÍGONE

Repentinamente um tanto cansada


Tá bom, tio Creonte saberá. Agora podes ir, tá?
BABÁ
E vais ver o que ele dirá ao souber que andas saindo à noite. E Hemon, como fica teu noivo?!
Ah ela está noiva, imagine! Uma noiva e sai às 4 horas da matina para se encontrar com outro!
E esse troço ai ainda quer que a gente saia, que não se fale nada sobre isso! Sabes o que eu
deveria fazer, minha menina, é isso ai, uma boa surra daquelas quando eras pequena.
ANTÍGONE
Oh babucha, não deverias (1) gritar tanto. Não deverias ficar tão braba hoje.
BABÁ
gritando
Não gritar!! E eu lá estou gritando?! Ah eu não deveria gritar por uma coisinha dessas não é?!!
Logo eu que fiz uma promessa à tua mamãe! Queéque ela diria , hein, se ela estivesse aqui!
“Velha abestalhada! Isso mesmo sua abestalhada, que nem soube guardar pura a minha filhota.
Sempre gritando, sempre bancando o cão de guarda, sempre a rodeá-las com lãs e peles para
que elas não sintam nunca frio, dando canjinha de galinha para que fiquem fortes: mas às 4 da
manhã tu roncas, velha estúpida, tu dormes, quando nem poderias fechar um olho só, e acabas
deixando-as cair fora, molenga, e quando consegues ir lá e dar uma olhada(2), a cama já está até
fria!” É por aí que tua mãe irá abrir a boca, lá em cima, quando eu subir para vê-la e eu vou
morrer de vergonha, morrer viu, se eu já não estiver bem morta antes e só vou mesmo é baixar
a cabeça e responder ”A senhora tem toda razão, Madame Jocasta”
ANTÍGONE
Não, babá. Não chore mais. Vais poder olhar mamãe bem no olho quando fores te encontrar
com ela. E eis o que ela te dirá: ”Bons dias, babucha, obrigado por cuidar de minha pequena
Antígone, muito obrigado!”. E ela sabe porque eu saí hoje de manhãzinha.
BABÁ
Não estavas namorando?
ANTÍGONE
MICHELOTTO & ANOUILH

De jeito nenhum, babucha.

BABÁ

Tas zombando de mim, né não? Me respeita que eu já estou velha!. Sempre foste minha
preferida , apesar de teres um caráter bem ruim. Tua irmã era mais meiga, mas sempre cri que
eras tu quem me amava. Se me amavas deverias ter me dito a verdade. Por quê tua cama já
estava fria quando vim cuidar de ti?
ANTÍGONE
Não chore mais, por favor, babazinha.

Beija-a
Ei minha maçã fofinha, deixa disso. Lembras quando eu te esfregava para que ficasses
brilhando? Minha maçã murchinha! Não deixe rolar lágrimas à toa, por besteirinhas como essa.
Nem por nada. Eu sou pura, eu não tenho outra paixão que Hemon, meu noivo, eu te juro. Posso
até mesmo jurar, se quiseres, que nunca mais haverá um outro que eu ame... Poupa tuas
lágrimas, poupa tuas lágrimas, pois talvez ainda precisarás delas de novo, minha babucha.
Quando choras assim eu volto a ser pequenina..E hoje, nesta manhã, eu não posso ser pequena.

Entra Ismênia
ISMÉNIA
Já estás em pé?! Passei em teu quarto...
ANTIGONE
Sim,me levantei cedo.
BABÁ
As duas então!... As duas vão acabar malucas, que negócio é esse de se levantar antes das
criadas?Estão pensando que é coisa boa estar de pé cedinho em jejum e que isso convém a
princesas?!E ainda estão desabrigadas!Vão ver que vão acabar doentes!
ANTÍGONE
Não te preocupes, Babá. Não está fazendo frio, te garanto, já estamos no verão.Vá fazer um café
para a gente, vá.
Senta-se atacada repentinamente de cansaço.
Eu gostaria bem de um bom café agora, por favor, babucha. Vai me fazer bem.
BABÁ
Oh minha pombinha! Está com tonteira por causa da barriga vazia e eu fico aqui como uma
idiota em vez de ir preparar alguma coisa bem quente.
Sai rapidamente.
ISMËNIA
Estás doente?
ANTÍGONE
Nada grave. Só um pouco cansada.
Sorri.
É que me levantei cedo.
ISMÉNIA
Eu também não consegui dormir
MICHELOTTO & ANOUILH

ANTÍGONE
Sorri de novo.
Precisas dormir outra vez. Senão amanhã estarás menos bela.
ISMÉNIA
Não zomba, vá.
ANTÍGONE
Não estou zombando.Te garanto que nessa manhã eu fico mais segura sabendo que estás bela.
Quando eu era menor, lembras, eu era tão infeliz!Eu te borrava toda de terra e botava minhocas
em teu pescoço. Um dia eu te amarei numa árvore e cortei teus cabelos, teus belos cabelos...
Acariciando os cabelos de Ismênia.
Mas como é fácil não se pensar em fazer besteiras quando se tem umas mechas lisas e bem
ordenadas ao redor da cabeça, como as tuas!

ISMÉNIA
De chofre.
Por quê estás falando dessas coisas?
ANTÍGONE
Docemente, sem parar de acariciar-lhe os cabelos.
Eu não estou falando de outras coisas...
ISMÉNIA
Sabes, Antígone, eu pensei bastante...
ANTÍGONE
Em quê?

ISMÉNIA
Passei a noite pensando. Estás maluca.
ANTÍGONE
Tou.
ISMÉNIA
Não podemos.
ANTÍGONE

Após um silêncio, com sua voz baixa


E por quê?
ISMÉNIA
Ele nos mataria.
ANTÍGONE
Mas claro. Cada um tem um papel. Ele, deve nos fazer morrer; e nós, nós devemos ir enterrar
nosso irmão.É assim que as coisas foram distribuídas. Que é que queres que façamos?
ISMÉNIA
Eu não quero morrer!
ANTÍGONE
Eu também gostaria muito de não morrer.
ISMÉNIA
MICHELOTTO & ANOUILH

Escuta, eu pensei bastante toda à noite. E sou a mais velha. Eu penso mais que tu. Contigo é o
que passar pela cabeça na hora, e dane-se se for uma besteira. Mas eu sou mais ponderada. Eu
reflito.
ANTÍGONE
Há vezes em que não se pode ficar refletindo.
ISMÉNIA
Certo, Antígone, é horrível, mas claro que é, e eu também tenho pena de meu irmão, mas eu
posso entender um pouco meu tio também.
ANTÍGONE
Mas eu não quero entender nem um pouquinho.
ISMÉNIA
Ele é Rei, é preciso que ele dê o exemplo.
ANTÍGONE
Eu não sou o Rei. Não preciso dar exemplo algum. É o que lhe dá na telha da pequena
Antígone, dessa besta suja, cabeçuda, má e aí a gente a tranca num canto ou num buraco. E
bem feito para ela. Bastava ter obedecido!
ISMÉNIA
Vamos, deixa disso! Tuas sobrancelhas juntas, esse teu olhar fixo numa reta à tua frente, e já
vais partindo na toda sem escutar ninguém. Mas me escuta. Em geral eu tenho mais razão que
tu.
ANTÍGONE
Eu não quero ter razão.
ISMÉNIA
Tenta compreender, pelo menos.

ANTÍGONE
Compreender... Todos vocês só ficam usando essa palavra desde que eu era menor. Era preciso
compreender que não se podia tocar na água, na bela água fugidia e fria, por que isso iria
molhar os ladrilhos; nem na terra, por que vai manchar o vestido. Era preciso compreender que
não se deve botar toda a comida de uma só vez na boca, nem dar tudo o que se tem nos bolsos
para o mendigo que encontramos, nem correr, correr ao vento até tropeçar e cair no chão, nem
beber quando se está com muito calor, nem tomar banho quando é ainda muito cedo ou
quando já é muito tarde, sobretudo nunca quando se tem vontade! Compreender. Sempre
compreender. Eu não quero compreender nada. Deixa chegar minha velhice e ai será minha
vez de compreender.
Ela termina com doçura.
Se é que vou envelhecer um dia. Mas agora, não.
ISMÉNIA
Ele é mais forte que nós, Antígone. Ele é o Rei. E todo mundo pensa como ele na cidade. São
milhares e milhares ao nosso redor, formigando em todas ruas de Tebas.
ANTÍGONE
Eu não estou te escutando.
ISMÉNIA
Eles vão nos vaiar . Nos tomarão em seus mil braços, em seus milhares de rostos de um só
olhar. Cuspirão em nossa cara. E teremos que ir adiante, por entre o ódio deles, sobre a
carroça, no meio do cheiro e das risadas deles, até o suplício. E lá haverá guardas de cabeças
imbecis, congestionadas por sobre pescoços duros, com as mãos grossas mal lavadas, de
MICHELOTTO & ANOUILH

olhares bovinos – que até se pensa que dá para gritar, dá para tentar fazê-los compreender que
eles estão bancando os escravos que fazem escrupulosamente tudo o que se lhes diz de fazer,
sem nem pensar se é bom ou mal... E sofrer?! Será preciso sofrer, sentir a dor que aumenta e
que ela está chegando ao ponto em que não dá mais para suportar; que vai se precisar de pará-
la, mas ela irá continuar assim mesmo a aumentar cada vez mais, como uma voz aguda... Oh
eu não posso, eu não posso...
ANTÍGONE
Pensaste em tudinho, hein!.
ISMÉNIA
A noite inteira. E tu não?
ANTÍGONE
Sim, claro que sim.
ISMÉNIA
Bem, eu, já sabes, não sou lá muito corajosa
ANTÍGONE
Com doçura.
Eu também não. Mas o que se pode fazer?
Há um silêncio. Ismênia retoma bruscamente.
ISMÉNIA
Não tens, então, nenhuma vontade de viver?
ANTÍGONE

Murmurando
Vontade nenhuma de viver...
( E mais docemente ainda se for possível )
Quem se levantava primeiro de manhã, nem que fosse só para sentir o frio na pele nua? Quem
se deitava por último e só quando não se agüentava mais de cansaço, para poder viver ainda um
pouco mais à noite? Quem chorava dês de pequenininha ao pensar que havia tantos
animaizinhos, tantas plantinhas nos campos e que não se conseguia tê-los todos?
ISMÉNIA
Com inesperada pena dela.
Minha irmãzinha...

ANTÍGONE

Retomando a situação e gritando


Ah não! Deixe-me. Não me acaricie! Não vamos agora choramingar juntas! Refletiste bem,
disseste? Pensas que toda a cidade aos berros contra ti, pensas que a dor e o medo de morrer é
bastante?
ISMÉNIA
Abaixando a cabeça.
Sim.

ANTÍGONE
MICHELOTTO & ANOUILH

Podes te servir desses pretextos.


ISMÉNIA

Agarrando-se a ela.
Antígone! Eu te suplico! Crer em idéias e morrer por elas é coisa boa para homens. E tu és uma
moça.
ANTÍGONE

Por entre dentes cerrados.


Sim, uma mulher. E já chorei o bastante por ser mulher.
ISMÉNIA
Tua felicidade está bem aí em tua frente e podes alcançá-la. És noiva, és bela, és jovem...
ANTÍGONE
Com dureza.
Não, eu não sou bela.
ISMÉNIA
Não bela como nós, mas de maneira diferente. Sabes bem que é para ti que se voltam a olhar os
pequenos ladrões das ruas; que é para ti que as gurias olham ao passar, e se calam de repente
sem poder deixar de despregar os olhos de ti até que tenhas desaparecido na esquina.
ANTÍGONE
Com um sorriso imperceptível.
Bandidinhos, garotinhas...
ISMÉNIA
Após um tempo.
E Hemon, Antígone?!
ANTÍGONE
Daqui a pouco eu falarei com Hemon. Daqui a pouco Hemon será mais um caso encerrado.
ISMÉNIA
Tu é é doida!
ANTÍGONE
Ri.
Sempre me disseste isso, que eu era maluca, por qualquer coisa e sempre. Volta para a cama,
volta. que teu mal é sono! O dia já está clareando, tas vendo, e de todo jeito eu não posso fazer
mais nada mesmo. Meu irmão morto e a essa hora está rodeado por uma guarda, exatamente
como aconteceria caso tivesse conseguido se tornar um Rei. Vá para a cama. Tás pálida de tanto
sono.
ISMÉNIA
E tu?
ANTÍGONE
Eu não consigo mais dormir... Mas te prometo que não arredarei os pés daqui até que acordes de
novo. A babá vai
me trazer algo para comer. Não deixe de dormir. O sol já levantou. Teus olhos estão se
fechando de tanto sono, maninha,vá!
ISMÉNIA
Eu te convenci, não foi? Eu te convencerei? Vais me deixar falar disso ainda contigo, não
vais?
MICHELOTTO & ANOUILH

ANTÍGONE
Um tanto cansada.
Eu deixarei sim, maninha. Eu deixarei todos vocês falarem comigo. Agora, vá descansar, eu te
peço. Se não vais acabar menos bela amanhã.
Ela acompanha sua saída com um ligeiro sorriso triste,
e então deixa-se cair fatigada numa cadeira.
Pobre Ismênia!
BABA
Entrando.
Obaaa, lá vem um bom café completo minha pombinha! Coma.
ANTÍGONE
Não tou com tanta fome assim, babá...
BABA
Eu mesma amanteiguei os pãezinhos e os esquentei na chapa, como gostas.
ANTÍGONE
És tão gentil, babucha! Mas eu vou só beber um pouquinho e nada mais.
BABA
Estás te sentindo mal?
ANTÍGONE
Não, não é nada, babá. Mas de todo jeito, me esquenta como fazia quando eu caia doente...
Babucha mais forte que a febre, babucha mais forte que o pesadelo, mais forte que a sombra
do armário que dá gargalhadas e se transforma de hora em hora sobre a parede, mais forte que
os mil insetos do silêncio que roem não importa o quê, em algum lugar da noite, mais forte
que a própria noite seus urros de louca que não se ouvem – babucha mais forte que a morte.
Dá-me tua mão como quando ficavas lá na beira de minha cama.
BABA
Que é que está te acontecendo, minha pombinha?
ANTÍGONE
Nada, babucha. Eu apenas ainda sou um pouco pequenina para tudo isso. Mas só tu deves
sabê-lo.
BABA
Muito pequena para quê, minha sabiá?
ANTÍGONE
Para nada, para nada. E ainda por cima, estás aqui comigo. Eu seguro tua mão rugosa que me
salva de tudo, sempre, eu sei bem disso. Talvez ela irá me salvar mais uma vez. És tão poderosa
,minha babucha!
BABA
Que queres que eu faça por ti, meu biquinho de lacre?
ANTÍGONE
Nadinha, babucha. Só tua mão assim sobre meu rosto.
Fica um tempo com os olhos fechados.
Pronto, não tenho mais medo. Nem do Ogro malvado, nem do Sogro, nem do vendedor de
vassouras, nem do Papafigo que passa e papa o figo dos meninos...
Um novo silêncio e ela continua em tom diferente.
Babucha, sabes a Docinha, a minha cadela?
BABA
Mas claro, que foi!?
MICHELOTTO & ANOUILH

ANTÍGONE
Vais me prometer que não gritarás mais com ela. Nunca mais.
BABA
Um bicho que suja tudo com as patas! Essas coisas deveriam nunca entrar dentro de casa!
ANTÍGONE
Mesmo se ela sujar tudo, promete?
BABA
Bom, e eu vou ter que deixá-la destruir tudo sem dizer nada?

ANTÍGONE
É assim mesmo.
BABA
Ah isso vai ser um pouco difícil!
ANTÍGONE
Por favor, babucha! Tu gostas muito de Docinha e daquela cabeçorra. E depois, gostas também
de te coçar. E ficarias muito infeliz se tudo ficasse sempre bem limpinho.Então, eu te peço, não
ralha mais com ela, ta?
BABA
E se ela mijar nos meus tapetes?
ANTÍGONE
Promete que não farás nada com ela mesmo assim!Eu te peço, babucha, eu te peço...
BABA
Estás te aproveitando de mim ( de ce que tu cälines)... Tá bem! Vou tentar ficar sem fazer nada.
Tas me transformando em burro de carga.
ANTÍGONE
E agora me promete que vais conversar com ela, que vais conversar muitas vezes com ela,
promete!?
BABA

Dando de ombros

Mas aonde já se viu ! Eu, papeando com um pulguento de um cachorro!


ANTÍGONE
Ah não, não é como se falasse a um animal, não! Tens que falar como se fala com uma pessoa
de verdade, como se estivesse falando comigo, promete!
BABA
Ah ai ta demais! Na minha idade, bancar a idiota! Mas por que diabos queres que toda a casa
fale com esse animal do jeito que falas?
ANTÍGONE
Com doçura.
Só no caso de - por uma razão qualquer - eu não puder falar mais com ela...
BABA
Que não está entendendo.
Não lhe falar mais, não lhe falar mais! Por quê?
ANTÍGONE
Vira a cabeça um pouco de lado e depois acrescenta, com a voz dura.
MICHELOTTO & ANOUILH

E também se ela ficar muito triste, se ela ficar com aquela cara de que está me esperando – com
o focinho debaixo da porta como quando eu saio - será melhor matá-la, babucha, sem que ela
sofra.
BABA
Matá-la , minha fofinha!? Matar a cadela? Mas você está completamente maluca essa manhã.

Estou não, babucha.


Hemon aparece.
Hemon está vindo aí. Deixa-nos agora, minha babá. Mas não se esqueça que você me fez um
juramento.
Antígone corre em direção a Hemon.
Desculpa-me, Hemon, pela briga de ontem à noite e por todo o resto.. Eu é que estava errada.
Eu te peço: perdoa-me!

A BABA sai
HEMON
Sabes que te perdoei e nem tinhas ainda batido a porta e saído. Teu perfume ainda estava no ar
e eu já te havia perdoado.
Ele a segura nos braços, sorri, a olha.
De quem você roubou esse perfume?
ANTÍGONE
De Ismênia.
HEMON
E o batom, (o rouge)a sombra, o belo vestido?
ANTÍGONE
Também.
HEMON
E em honra de quem te embelezaste tanto?
ANTIGONE
Eu te direi.
Ela se acocha fortemente a ele.
Oh meu querido, como fui idiota! Toda uma noite perdida. Uma bela noite.
HEMON
Teremos outras noites, Antígone.
ANTÍGONE
Talvez não.
HEMON
E outras brigas também. Uma felicidade é feita com muitas brigas.
ANTÍGONE
Uma felicidade, sim... Escuta Hemon.
HEMON
Sim.
ANTIGONE
Não ria essa manhã. Fique sério.
HEMON
Eu estou sério.
ANTÍGONE
MICHELOTTO & ANOUILH

E me aperta contra ti. Mais forte que todas as outras vezes. Que toda tua força fique impressa
em mim.
HEMON
Assim. Com toda minha força.
ANTÍGONE
Num suspiro.
É tão bom.
Ficam um instante sem nada dizer, depois ela começa devagarzinho.
Escuta, Hemon.
HEMON
Eu escuto.
ANTIGONE
Sabes que eu o defenderia contra tudo.
HEMON
Eu sei Antígone.
ANTÍGONE
Oh eu o apertaria em meus braços tão fortemente que ele nunca teria medo, eu te juro. Nem da
noite que se aproxima, nem da agonia do sol forte imóvel, nem das sombras... Nosso menino,
Hemon! Ele teria uma mamãe bem pequena e meio despenteada – mas mais mãe que todas as
verdadeiras mães do mundo, com seus peitos verdadeiros e seus grandes aventais. Tu crês em
mim, não crês?
HEMON
Claro, meu amor.
ANTÍGONE
E acreditas também que terias uma verdadeira mulher, não é?
HEMON
Apertando-a nos braços.
Eu tenho uma mulher de verdade.
ANTIGONE
Oh! Tu me amavas, Hemon, naquela noite, tens certeza de que me amavas?
HEMON
Balança-a nos braços com doçura.
Que noite?
ANTÍGONE
Estás bem certo de que naquele baile em que vieste me tirar de meu canto,não te enganaste de
mulher? Estás certo de que nunca te arrependeste disso depois, nunca pensaste, nem ao menos
uma só vez, que teria sido melhor ficares com Ismênia?
HEMON
Tolinha.
ANTÍGONE
Tu me amas, não amas?Tu me amas como uma mulher?Teus braços que me apertam, estariam
mentindo? Essas tuas mãos grandes postas sobre minhas costas, esse teu cheiro, esse teu calor
essa grande confiança que me inunda quando ponho a cabeça no vão de teu pescoço ...
HEMON
Ora, Antígone, eu te amo como mulher!
ANTÍGONE
Eu sou magra e negra. Ismênia é rosada e dourada como uma fruta.
MICHELOTTO & ANOUILH

HEMON
Antígone...
ANTIGONE
Oh estou toda vermelha de vergonha. Mas eu preciso saber, esta manhã eu preciso saber.Diga a
verdade, te suplico.Quando sabes que serei tua, sentes no teu interior algo como um grande
buraco que se cava, como alguma coisa que morre.
HEMON
Sim , Antígone.
ANTÍGONE
Numa só respiração, após um tempo.
Eu, eu sinto assim. E quero te dizer que eu teria ficado muito orgulhosa de ser tua mulher, tua
verdadeira mulher, certa de que, ao cair da noite, ao te assentar, sem pensar, terias pousado tua
mão sobre mim como sobre uma coisa bem tua.
Ela se afastou dele e toma um outro tom.
É isso. Agora vou ainda te dizer duas coisas.E quando eu as tiver dito, deverás ir- te embora
sem me fazer perguntas. Mesmo que elas te apareçam extraordinárias, mesmo se elas te fizerem
sofrer. Jura-me.
HEMON
O que tens ainda para me dizer?!
ANTÍGONE
Jura-me, antes, que sairás sem me dizer nada. Sem mesmo me olhar. Se me amas, jura- me isso.
Ele a olha com seu pobre olhar assustado.
Tás vendo como eu te peço, então, Hemon, jura.é a última loucura que me verás fazer.
HEMON
Após uma hesitação.
Eu juro. Eu te juro.
ANTIGONE
Obrigada. Então, vejamos. Primeiro, ontem. Tu me perguntavas ainda agora porque eu havia
vindo com o vestido de Ismênia e esse perfume e esse batom. Foi besteira minha. Eu não estava
muito segura de que me desejavas de verdade e fiz tudo aquilo para parecer um pouco mais com
as outras moças , para te despertar desejo por mim.
HEMON
Foi para isso?

ANTÍGONE
Foi. E riste e brigamos e meu gênio ruim foi mais forte e então eu caí fora.
Ela acrescenta mais baixo ainda.
Mas voltei, ontem à noite, lá para tua casa para que me tomasses, para que me fizesses tua
mulher.
Ele recua, tenta falar, ela grita.
Juraste, me juraste que não ias pedir razões. Juraste Hemon!
Ela retoma o tom baixo, humildemente.
Eu te suplico...
E acrescenta,virando-se, com dureza.
E vou te dizer,mais.Eu queria ser tua mulher também por que te amo muito, eu , eu te amo
muito e – oh meu deus eu vou te fazer sofrer, perdoa-me meu querido!
– é que jamais, jamais, jamais poderei casar-me contigo.
MICHELOTTO & ANOUILH

Ele se mantém mudo de espanto, ela corre à janela e grita.


Hemon, tu juraste! Sai.Sai logo e não dize nada.Se falares, se fizeres um só passo em minha
direção eu me jogo pela janela., eu te juro Hemon! Eu te juro pela alma do filho que todos dois
tivemos em sonho, pelo único filho que eu jamais terei. Amanhã ficarás ciente de tudo. Daqui a
pouco. Daqui a pouco saberás tudo.

Ela termina num tal desespero que Hemon obedece

e vai se afastando, saindo de cena..


Por favor , Hemon. É tudo o que ainda podes fazer por mim se me amas.
Ele sai.
Ela fica sem se mexer, de costas para a platéia,
depois fecha a janela, vem se assentar numa pequena cadeira no centro da cena
e diz devagarzinho, como estranhamente acalmada.
Pronto. Acabou para Hemon, Antígone.
ÌSMËNIA
Chama fora de cena e entra procurando.
Antígone!. Ainda bem que estás aí...
ANTÍGONE
Sem se mexer.
Sim, estou bem aqui.
ISMËNIA
Não consigo dormir. Estava com medo que saísses e que tentasses enterrá-lo apesar de ser já
dia claro. Antígone, minha irmãzinha, estamos todos juntos contigo, Hemon, babucha, eu...e
Docinho, tua cadela! Nós te amamos e estamos vivos, nós, nós precisamos de ti. Polinice
morreu e não te ama mais. Ele sempre foi um estranho conosco, um mau irmão. Esqueça-o,
Antígone, como ele nos esqueceu. Deixe sua sombra vagar eternamente sem sepultura, pois
esta é a lei de Creonte.Não tente realizar o que está acima de tuas forças. Sempre enfrentas
tudo com coragem, mas és tão pequenininha, minha Antígone! Fica conosco, não vá lá esta
noite, eu estou te suplicando.
ANTIGONE
Levantou-se, está com um estranho e leve sorriso nos lábios,
dirige-se à porta e já debaixo dela diz com toda calma.
Agora é muito tarde.Hoje de manhã, quando me encontraste, eu estava justo chegando de lá.
Sai.

ISMËNIA
Ismênia a acompanha com um grito.
Não! Antígone!
CREONTE
Logo que Ismênia sai,
Creonte entra por uma outra porta com seu pajem.
Um guarda, disseste? Um dos dois que guardam o cadáver? Faça-o entrar.

GUARDA
O guarda entra. É um abrutalhado.
MICHELOTTO & ANOUILH

No momento está amarelo (3)de medo


Apresenta-se.
Guarda Juãu Denis, da Segunda Companhia, senhor.
CREONTE
Afinal, o que é que queres!?
GUARDA
Bem é isso aí , chefe, a gente tiramos a sorte para saber quem ficaria né e - que sorte!- caiu
comigo, então é isso aí chefe eu vim por que alguém tem que se explicar né e também é mais
que lógico não dava para os três abandonar o posto, então... é somos três, os três do piquete de
guarda , chefe, ali tomando conta de cadáver.(4)
CREONTE
Quê é que estás dizendo aí?
GUARDA
Que somos três, chefe! Não sou o único não. Os outros é o Mikelotro e o Guarda de Primeira
Classe, o Bidji. (5)
CREONTE
E por quê não foi o Guarda de Primeira Classe quem veio?
GUARDA
E num é mesmo,chefe?! Eu, eu disse logo para ele. É a Primeira Classe que deve ir. Quando
não tem nenhum outro graduado é a Primeira Classe que é responsável. Mas os outros, sabe,
disseram que nada vamos é tirar no palitinho...Vou lá buscar o Primeira Classe, chefe?
CREONTE
Mas não, fale você mesmo já que já está ai.
GUARDA
Eu tenho 17 anos de serviço, chefe. Me engajei como voluntário, já peguei medalha e duas
citações. Sou gente bem, chefe. Sou todo “serviço”. A única coisa que conheço são as ordens,
chefe. Meus superiores dizem sempre? “Com Jonas a gente fica tranqüilo!”
CREONTE
Está bem, está bem, Fala. De que é que está com medo?
GUARDA
Bem, pelo regulamento, isso é coisa do Primeira Classe. Eu... eu só fui indicado Primeira
Classe. Mas promoção , ainda nenhuma. Eu deveria ter sido promovido em junho
CREONTE
Mas, finalmente, vai falar ou não? Se acontecer alguma coisa vocês três são os responsáveis.
Não precisa ficar aí dizendo que deveria estar lá
GUARDA
Tá bom, tá bom, é isso aí mesmo, chefe: o cadáver... Mas a gente montou guarda, como é que
pode! A gente pegava o turno às duas horas, o pior, você sabe como é que é isso, chefe, bem
ali na horinha em que a noite bota pra se acabar, né mole não aquele chumbo nas pestanas,a
nuca ali se estirando toda e as sombras, sei lá sombras se mexendo pra lá e pra cá tudo por
causa das névoas da manhãzinha quando se levanta... Ah escolheram direitinho a hora!... Pois
a gente estávamos lá, a gente se conversava, batia um pé pra lá e pra cá, num dormia não,
chefe, isso a gente podemos até jurar todos os três, todos os três, que ninguém puxava
nenhum pau de ronco não, chefe, e alguém consegue lá dormir com um frio desses! Ai eu vou
lá e dou uma olhada no cadáver..só para certificar se ele estava bem quieto mesmo lá... A
gente estávamos ali, dois passinhos ali do lado, sabe como é, na guarda de cadáver, só para
MICHELOTTO & ANOUILH

certificar né..eu sou assim chefe, coisa de meticuloso, tá vendo, é por isso que meus superiores
sempre dizem? “Com Jonas...
Um gesto de Creonte de que já sabe o pára,
imediatamente grita.
Fui eu o o primeiro, quem viu primeiro, viu chefe! os outros vão dizer o mesmo, eu , eu é
quem dei o alarme geral.
CREONTE
O alarme? Por quê um alarme?!
GUARDA
O cadáver, chefe. Tava coberto. Alguém deve ter feito isso, chefe..oh não era assim lá grande
coisa não, não dava tempo, sabe, conosco ali na vigia ai foi só um punhadinho de terra... mas
um punhadinho que dava até para esconder dos urubus.
CREONTE
Avança em sua direção.
Tem certeza que não foi nenhum bicho esgaratujando por ali?
GUARDA
Ah isso não chefe. De cara a gente pensamos também por ai, sabe como é. Mas a terra tava
muito bem jogadinha por sobre ele , bem segundo os ritos sabe.Bicho nada, foi um alguém que
sabe muito bem o que tá fazeno.
CREONTE
Quem ousou!? Quem foi tão doido assim de desrespeitar minha lei? Reparou nas pegadas?
GUARDA
Nada, chefe. Nada além de uns passos mais leves que os de pássaros. Depois, procurando
melhor o Guarda MickelotTo encontrou um pouco mais afastada, uma pazinha, uma dessas
pás para crianças, toda velha, toda carcomida de ferrugem. A gente então pensamos também
que não podia ser uma criança que havia feito um negócio desses. De todo jeito o Primeira
Classe Bidji achou melhor guardá-la para o inquérito.
CREONTE
Sonha por um tempo.
Uma criança.... É coisa da oposição destruída , mas que já vem minar por todos os lados. Os
amigos de Polinice com seu ouro bloqueado em Tebas, os chefes da plebe fedendo a alho,
aliados de repente dos príncipes, e padres tentando pescar algo para eles no meio de toda essa
confusão... Uma criança! Devem ter pensado que isso seria bem mais comovente. Parece que
estou vendo a criança deles com sua goela de matador experimentado e sua pequena pá
cuidadosamente envolta em papel sob sua roupa. A menos que eles tenham amestrado uma
criança de verdade com frases bonitas... Um garotinho de verdade, pálido, que cuspirá sobre
meus fuzis. Um precioso sangue fresco a banhar minhas mãos, em dupla oferta.
Vai até o homem.
Mas eles têm cúmplices , e quem sabe, até na minha guarda.Me escuta bem, você aí...
GUARDA
Chef, nós fizemos tudo o que se tinha que fazer! Mikelotro deu uma sentada opor meia hora
mas é por que estava com os pés doendo, mas eu,chefe,fique o tempo todo de pé. O primeira
Classe vi contar isso direitinho.
CREONTE
A quem já contaram essa história?

GUARDA
MICHELOTTO & ANOUILH

A ninguém, chefe. Iramos a sorte logo e logo eu vim.


CREONTE
Escuta bem aqui. Vocês vão ficar de guarda mais um turno. Mandem embora os substitutos.
Isso é uma ordem.Eu quero só vocês perto do cadáver. E nem uma palavra sobre isso. Vocês
são culpados de negligência e serão de toda maneira punidos, mas se falas, se correr o boato na
cidade que recobriram o cadáver der Polinice, vocês morrem todos três, está entendido?
GUARDA
Reclama.
Ninguém falou nada, chefe, eu te juro! Mas eu estava aqui, e talvez os outros, talvez já tenham
falado com os substitutos...
Sua aos borbotões.
Chefe, tenho dois filhos! Um ainda é bem pequenininho. No conselho de guerra, chefe, você
bem que podia testemunhar por mim, dizendo que eu estava aqui. Mas eu estava bem aqui,
com você, chefe! Tenho uma testemunha. Se alguém falou, isso é lá coisa dos outros, eu não
tenho nada com isso.Eu tenho testemunha...
CREONTE
Vai correndo. Se ninguém souber de nada, ficarás com vida.
O guarda sai correndo. Creonte fica um momento mudo.
Logo ele murmura.
Uma criança.
Coloca o pequeno pajem sobre seus ombros.
Venha, pequeno.é preciso que a gente vá contar tudo isso agora... E aí a desgraça toda vai
começar. Você morreria por mim, morreria? Você acha que viria com sua pequena pá?
O pequeno o olha.
Sai com ele, lhe acariciando a cabeça.
Ora, claro, você iria bem rapidinho, você também...
Ainda dá para se ouvi-lo suspirando ao sair.
Uma criança....
Saem,..
Entra o Coro
CORO
Pronto. Agora a mola está bem esticada. As coisas vão se desenrolar sozinhas.É isso que é
cômodo na tragédia, dá-se um empurrãozinho para que as coisas desandem, um nadinha, um
olhada durante um segundo para a moça que passa e levanta seus braços na rua
Um desejo de honra numa manhã qualquer, ao se despertar, como o desejo de algo que se
possa comer, uma questão a mais que se enfrenta numa tarde...ë tudo. Após só nos resta
deixar as coisas correrem por si.É minucioso e de engrenagens bem oleadas desde sempre. A
morte, a traição, o desespero estão aí, prontos à espera e raios e tempestades e silêncios...
Todos os silêncios: o silêncio quando o braço carrasco finalmente se levanta; o silêncio dos
inícios, quando os dois amantes se colocam nus um em frente ao outro pela primeira vez, num
quarto escurecido,sem ousarem se tocar ao primeiro desejo; o silêncio quando gritos de
multidão irrompem ao redor de um vencedor – quase como um filme cujo som se arranhou em
todas essas bocas abertas das quais nada sai, só esse clamor que é imagem pura, e esse
vencedor, já também vencido, só rodeado de seu próprio silêncio...
É tudo limpo, é a tragédia. ----------
É repousante, é segura.... ----------
MICHELOTTO & ANOUILH

No drama, recheado de traidores, de maus geneticamente maus, de inocência perseguida, de


vingadores, de cães selvagens, de pálidos raios de esperança, de uma morte que se torna
pavorosa para se morrer, como num acidente. Poder-se-ia talvez se salvar, o bom jovem teria
podido chegar a tempo com os policiais.
Na tragédia se está tranqüilo.
Primeiro, porque estamos em casa. Na verdade, em casa, todos somos inocentes! E não
acontece porque é um o que mata e o outro é o que morre. Isso é só uma questão de
distribuição. Mas uma tragédia é repousante, sobretudo, porque já sabemos que não há
esperanças, essa porcaria da esperança. Já se sabe que se foi pego, pego enfim, como um rato,
com todo o céu por sobre os próprios ombros e com uma única chance: a de gritar - não, nada
de gemer, nada de choraminholas,nada desta história de ficar reclamando – mas berrar a
plenos pulmões tudo o que se tem para dizer, que jamais dissemos e talvez mesmo que nem
soubéssemos ainda. E para nada. Só para si mesmo, para poder se dizer a si mesmo essas
coisas todas aí.
No drama a gente se debate e luta porque espera sair dessa. É ignóbil, é utilitário.
Aqui, tudo é gratuito.
Coisa para reis.
Porque, na verdade, não se tem muita coisa para se fazer.

Antígone entrou, empurrada pelos guardas


O CÖRO
Bem aqui estamos. E dessa vez vamos começar. A pequena Antígone foi pega. A pequena
Antígone vai poder, finalmente ser ela mesma.
O Coro desaparece,
enquanto os guardas vão empurrando Antígone para o palco
O GUARDA Juão Denis
Que retomou sua pose.
Vamos, lá, vamos lá, nada de histórias. Trate de se explicar para o Chefe. Eu, a única coisa
que conheço é a ordem. O que você tava fazeno lá eu num quero nem saber. Todomundo tem
suas desculpas, todo mundo tem sempre qualquer coisa para reclamar. Se a gente fôssemos
escutar as pessoas se tivesse que se entender as pessoas, aí, bom, a gente estávamos ferrados.
Vai ino vai ino Ei, segurem ela aí vocês outros e nada de histórias! Eu, aqui ó , o que ela tá
quereno dizer eu num tô nem aí, visse!
ANTÍGONE
Dize-lhes para tirar as mãos imundas de cima de mim. Eles estão me machucando.
O GUARDA Juão Denis
Mãos sujas, ah é!! Tu pudia ir sendo um bucado mais pulida ai viu guria...Eu por mim, eu
estou sendo delicado.
ANTÍGONE
Dize-lhes que me larguem. Eu sou a filha de Édipo, eu sou Antígone. Eu não irei fugir.
O GUARDA Juão Denis
Ah a filha de Édipo, mas que gracinha... Pois saiba que todas as putas que catamos na guarda
da noite, nos ameaçam do mesmo jeito e advinha de quem elas dizem que são filhas, hein,
hein, hein??!!!
Caem na gargalhada
ANTÍGONE
Eu não estou nem aí para morrer, mas que eles não encostem mais em mim!
MICHELOTTO & ANOUILH

O GUARDA Juão Denis


E os cadáveres, vai , e a terra, aí tu num tava com medinho de sujar as mãozinhas não né?! E
ainda vem dizendo :”as mãos sujas deles!”.. Pô, dá uma olhada aí nas tuas vai, guria!
Antígone olha para suas mãos presas com algemas com um risinho.

Estão toda sujas de terras


O GUARDA Juão Denis
Tomaram, tua pá foi? Aí tu vai e faz o mesmo pela segunda vez, direto ali, com as unhas. A
bichinha audaciosa! Eu viro as costas um pouquinho pela segunda vez, tempo de pedir um
para enrolar, e vai , o tempo de dar uma tragada, o tempo de dizer um muito obrigado e já tava
lá ela escavando que nem uma hiena no cio. E em plena luz do dia! E como me chutava essa
vagabunda prostituta quando eu tentei prendê-la! E tava querendo me furar os olhos, vejam
vocês todos! E lá ficava lá esganiçando que ela tinha que terminar o que começou, que ela
tinha que terminar, e tinha que terminar, ora! É uma doida, essa maluca!
MIKELOTtO ( 20 Guarda)
Pois. Eu prendi uma, uma toda doidona, noutro dia, né não? Pois tava mostrando o cú prá
todo mundo!
O GUARDA Juão Denis
Diz aí, MickelotTo, o queéque nós os três não vamos nos encharcar a goela para comemorar
essazinha aqui hein, hein?!
MIKELOTtO ( 20 Guarda)
( gargarejando)
No Bar do Bigode! A pior branquinha de toda a cidade, né não brother!.

BIDJI ( Terceiro Guarda)


Vamos fazer o seguinte: tem folga nesse domingo... e se a gente carregasse umas mulheres,
que tal?
O GUARDA Juão Denis
Quê isso, quê isso, só entre nós, é pra gente rir um bocado... Com as mulé, tem sempre uma
histórias escabrosas, e depois vem os motoqueiros e vão querer mijar e vão ter que respeitar
as mulé, cacêta...Vai, diz aí Mikelotro, a gente nem estávamos pensando ainda agorinha no
inicio quando começou que a gente ia se divertir esse montão todo né mermo, né mermo?

MIKELOTtO ( 20 Guarda)
Pô meu, acho que quem sabe talvez assim de repente eles podem até nos dar uma recompensa,
né não?
O GUARDA Juão Denis
Até pode ser, de repente, se a coisa toma rumo de importante, sabe!
BIDJ ( 30 Guarda)
Ah é poraí que o Guarda Denis, é o João, esse aí, noutro dia pois ele não botou as mãos sobre
um incendiário??!! Prendeu, claro!E ganhou soldo dobrado, tá!
MIKELOTtO ( 20 Guarda)
peraí, Bidji, se a gente ganhar em dobro ai eu nem quero mais ir pro Bigode, que tal se a gente
fôssemos para a DAUNTÄUM?!!!
O GUARDA Juão Denis
MICHELOTTO & ANOUILH

Só prá beber? Tás maluco tu tamém , home! A talagada lá custa o dobro do Bigode. Pra
comer, tá certo. Ramo fazer assim o seguinte, uma passada no Bigode pra dar uns bons
gargarejos e depois a gente se arranca pro Dauntaun, certo? Diz lá Mikelotro, por falar em
comida, lembra da gordona lá do Dauntaun?
MIKELOTtO ( 20 Guarda)
Pô tavas mais bêbo que um gambá naquele dia foi não?!
BIDJI ( 30 Guarda)
Ëitcha, cacêta, nossas mulheres vão acabar sabendo se a gente ganha em dobro!E é capaz
mermo é da gente sermos felicitados publicamente com festa e tudo, num dá para esconder...
O GUARDA Juão Denis
Bem a gente vai ver no que vai dar. A farra é que é o bom. Agora, se há uma cerimônia no
pátio da caserna e essas coisas todas como quando é para as condecorações, aí as mulheres
virão tamém e os meninos tamém, enfim, todo mundo tamém, aí, aí nesse caso a gente se ferra
e vamos só para o Bigode, certo?!
MIKELOTtO ( 20 Guarda)
Tá bom, então o melhor é a gente irmos logo encomendando o menu, né não, né não??
ANTÍGONE
Pedindo com uma voz fraquinha.
Eu queria me assentar um pouco, por favor!
O GUARDA Juão Denis
Após um momento de reflexão.
Tá bom, que ela se assente. Mas nem pensem em arredar um dedinho de perto dela, viram?
Creonte entra e imediatamente o Guarda Berra.
Sentido!
CREONTE

Pára, surpreso
Soltem essa moça! Que é que está acontecendo aqui?
O GUARDA Juão Denis
É o piquete da Guarda, Chefe! A gente viemos com os camaradas todos dessa vez.
CREONTE
E quem ficou de guarda do corpo?
O GUARDA Juão Denis
Chamamos a turma do rodízio, chefe.
CREONTE
Mas eu te disse para suspendê-la. Eu te disse para não dizer nada para ninguém.
O GUARDA Juão Denis
Mas a gente não dissemos nadinha, Chefe! E como a gente pegamos essazinha aí, a gente no
lógico pensamos que , claro era bom trazê-la para cá. Dessa vez ninguém nem quis tirar a
sorte, sabia Chefe?! A gente preferimos vir logo todos os três.

CREONTE
Bando de imbecis!

Para Antígone
Onde é que te prenderam?
MICHELOTTO & ANOUILH

O GUARDA Juão Denis


Pertinho do cadáver, Chefe.
CREONTE
Que ias fazer perto do cadáver de teu irmão? Tu sabias que eu proibi que se chegasse perto
dele.
O GUARDA Juão Denis
O que ela fazia, o que ela fazia?! Ora chefe E não é porissinho que a gente estamos trazeno
ela? Ela tava lá era cavoucando a terra com as mãos. Tava é tentando cobrir o morto lá outra
vez, sabe!
CREONTE
Sabes bem o que estás a me dizer, soldado?
O GUARDA Juão Denis
Mas Chefe você pode perguntar a todo mundo. Tínhamos limpado o corpo quando eu
retornei, mas com um solão desses, o próprio começava já a soltar um cheiro daqueles então a
gente fomos para uma colina um pouco mais alta, mas nada longe,coisa assim só para se estar
do lado do vento, sabe, pois a gente se dizíamos: afinal, quem vai se arriscar de dia, né mermo
chefe?! E ainda, só por razões de segurança máxima, decidimos que sempre ficaríamos um de
nós três com as butuca dos olhos fixos no próprio, mas é lógico tamém né Chefe, que em
pleno meio-dia com o sol fritando a gente ali no cucuruto dos elmos e aquela catinga subindo
morro acima, pois é lógico que não tem vento levando ela para lugar algum longe numa hora
dessas, aí há de compreender que era uma porrada ficar por ali. Olha que eu segurava assim os
olhos , mas todas as coisas estremelicaam como uma gelatina e eu nem tava veno mais nada
direito essa é que é a verdade aí fui pedir um fumo pros colegas para dar uma mascada, coisa
justa para dar uma aliviada na tensão e passar essa coisa ruim. Mas, veja, foi o tempo de
enrolar, apertar e juro que não fumei, sabe o Chefe Biu Chefe? Tamém nun teve foi tempo,
pois nem eu: tava ela lá já a escarafunchar a terra e jogar pra todo lado, com as próprias
mãos ... em plena luz do dia!Devia tar pensando , né não, que a gente nem conseguiria vê ela
ali.. E tá pensano que ela parou quando em viu correndo atrás dela, que ela meditou um
bocadinho e se disse ta na hora de se mandar? Foi nada! Ela continuou a cavucar com todas as
forças, o mais rápido que ela podia, como se nem me visse vir chegano prá cima e quano meti
as patas nela, ele se esborrodou de tanto me chutar como uma diaba que queira continuar
ainda mais e ficava me gritando para largá-la, porque o corpo não tava todo recoberto ainda aí
me mordeu. Aqui ó, bem aqui, me mordeu sim! ai eu perdi a delicadeza né chefe e catapuf
imobilizei ela de vez na porrada, eca! (6)
CREONTE
Para Antígone
Foi assim mesmo?
ANTÏGONE
Ë, foi isso mesmo.
O GUARDA Juão Denis
A gente sabe limpou aquilo tudo, como era justo,e ai chefe passamos a vez para a troca da
guarda do turno, e nem falamos nadinha viu, viemos direto para trazê-la. Pronto é isso aí ,
tenho dito, Chefe..
CREONTE
E nessa noite, na primeira vez, foste tu também?
ANTÍGONE
MICHELOTTO & ANOUILH

Sim. Também fui eu. Com uma pazinha de ferro que nos servia para construir castelos de areia
na praia durante as férias. Era justamente a de Polinice. Ele havia gravado seu nome com uma
faca no cabo dela. É por isso que eu a deixei perto dele. Mas eles a pegaram. Ai, na segunda
vez eu tive que recomeçar com minhas próprias mãos.
O GUARDA Juão Denis
Parecia um animalzinho que arranhava alguma coisa. Ta que no primeiro golpe de vista, com
aquele ar quente todo que fazia tudo tremer, o camarada aí disse: “Mas que nada! é só um
bicho!” E eu”Vai pensando nessa, pois ta que é muito cuidadoso para ser um bicho. Isso deve
ser é uma menina , isso sim!”
CREONTE
Muito bem. Acho que vamos pedir que façam um relatório daqui a pouco. Agora, tratem de
me deixar sozinho com ela. Conduze esses homens para um canto aí, meu pequeno. E que
eles fiquem guardados em segredo até que eu volte para vê-los
O GUARDA
Precisa botar de novo as algemas nela Chefe?
CREONTE
Não.
Os Guardas saem, precedidos pelo pequeno pajem.
Creonte e Antígone ficam sós, face a face.
Falaste de teu projeto para alguém mais?
ANTÍGONE
Não.
CREONTE
Te encontraste com alguém no caminho para cá?
ANTÍGONE
Não . Ninguém.
CREONTE
Estás bem certa disso?
ANTÍGONE
Claro.
CREONTE
Então me escuta. Vais voltar para casa, te deitar e dizer que estás doente e que não saíste desde
ontem. Tua Babá repetirá o que disseres. Eu farei desaparecer aqueles três homens.
ANTÍGONE
Por quê? Sabes bem que eu recomeçarei tudo de novo.
CREONTE
Por quê tentaste enterrar teu irmão?
ANTÍGONE
Eu devia fazê-lo.
CREONTE
Eu o tinha proibido.
ANTÍGONE
Mesmo assim eu deveria. Os que não integram só vagueiam eternamente sem jamais
encontrar descanso Se meu irmão, cansado, tivesse voltado de uma longa caçada, eu lhe teria
tirado os sapatos, eu lhe tria feito um jantar, eu teria arrumado sua cama..Polinice hoje
terminou sua caça. Voltou para a casa onde minha mãe , meu pai e Etéocle o esperam. Ele tem
direito ao repouso.
MICHELOTTO & ANOUILH

CREONTE
Era um revoltado e um traidor, sabias bem.
ANTÍGONE
Era meu irmão.
CREONTE
Não ouviste proclamar os editos aos quatro cantos, não viste o cartaz em todos muros da
cidade?
ANTÍGONE
Sim.
CREONTE
Sabias o destino daquele que tentasse render homenagens fúnebres a ele, fosse quem fosse
que o fizesse, não?
ANTÍGONE
Sim, sabia.
CREONTE
Acreditaste contudo, talvez, que por seres filha de Édipo, filha do orgulho de Édipo, isso seria
o suficiente para estares acima das leis?
ANTÍGONE
Não, eu jamais acreditei nisso.
CREONTE
A lei é feita antes de tudo para ti, Antígone, a lei é feita antes de tudo para as filhas dos reis,
Antígone!
ANTÍGONE
Se eu fosse uma criada que estivesse a lavar pratos, após ouvir o teu Edito eu teria enxugado a
água gordurosa de meus braços e teria saído, de avental mesmo, para ir enterrar meu irmão.
CREONTE
Não é verdade. Se fosses uma criada, não terias a menor dúvida de que irias morrer e ficarias
chorando teu irmão lá dentro de casa. O caso foi que pensaste que eras da raça real, minha
sobrinha e noiva de meu filho e que- acontecesse o que acontecesse- eu não ousaria te
condenar à morte.
ANTÍGONE
Estás te enganando. Em ao contrário, eu estava certa de que me farias morrer.
CREONTE
Olha-a e murmura imediatamente.
O orgulho de Édipo. És,sim, o orgulho de Édipo. Agora que eu o reencontrei no fundo de teus
olhos eu acredito em ti. Deves ter pensado mesmo que eu te mandaria à morte. E isso te
pareceria um desenrolar perfeitamente natural, ó orgulhosa! Para teu pai também seria – não
falo da felicidade, pois não era disso que se tratava – a infelicidade humana lhe seria sempre
muito pequena. O humano atrapalha imensamente a todos da família. Precisais de um cara a
cara com o destino e a morte.(7)
ANTÍGONE
Sim, precisamos.
CREONTE
Precisais matar vosso pai, ir para a cama com vossa mãe e saber disso após, avidamente,
palavra por palavra. Que poção mágica, hein , essa das palavras que vos condenam! E como se
as bebem gulosamente, gota por gota se vos chamais Édipo ou Antígone! E o mais simples
MICHELOTTO & ANOUILH

depois ainda é furar seus próprios olhos e ir mendigar com seus filhos pelas estradas
poeirentas...
Pois bem, não.
ANTÍGONE
Pois bem, sim.
CREONTE
Ah não! Esses tempos foram banidos de Tebas!
Tebas tem direito agora a um príncipe sem história.
ANTÍGONE
Tem.
CREONTE
Eu me chamo apenas Creonte, graças a deus. Tenho meus pés atolados no chão, minhas duas
mãos enfiadas em meus bolsos e, já que sou rei, eu resolvi, com bem menos ambição que teu
pai, empregar meu tempo simplesmente a botar em ordem esse mundo para que fique um
pouco menos absurdo, se for possível.
ANTÍGONE
Mas não é.
CREONTE
Mas não é uma aventura, é um trabalho para todos os dias e nem sempre muito interessante,
exatamente como todos os outros ofícios. Mas já que aqui estou para fazê-lo, eu vou fazê-lo....
ANTÍGONE
Então, faze-o
CREONTE
E amanhã se um mensageiro emporcalhado surgir do fundo das montanhas para me anunciar
que ele não tem muita certeza sobre meu nascimento, eu simplesmente lhe pedirei para
retornar para o fundo da grota de onde saiu e eu jamais iria, nem por um minutinho sequer,
olhar tua tia bem debaixo do nariz dela e me meter a confrontar datas. Os reis têm outra coisa
a fazer que coisas pessoais e patéticas, minha filhota.
ANTÍGONE
És patético!.
CREONTE
Avança para ela e a segura fortemente pelo braço.
Agora me escuta bem.
És Antígone, és a filha de Édipo, tudo bem, mas não tens mais que vinte anos
e há bem pouco tempo atrás tudo isso estaria regulado com pão seco
e uns bons tapas nessa cara.
ANTÍGONE
És meu tio!.
CREONTE
Ora te mandar à morte! Dá uma olhada em ti mesma, passarinho! És magra demais. Trata de
engordar um pouco, vais precisar, para fazeres um belo filho com Hemon. Tebas tem mais
necessidade disso que de tua morte, te garanto! Vais voltar para casa imediatamente para
fazer o que eu te disse e calar essa boca. Eu me encarrego do silêncio dos outros. Vá, vá logo!
E nem tente mais me fulminar com esse olhar. Estamos entendidos que me tomas por um
estúpido e que pensas que sou um conservador. Claro que sou. Mas de todo jeito eu te amo
MICHELOTTO & ANOUILH

muito ainda, apesar de seres um espírito de porco. E nem vem me esquecer que fui eu quem te
deu de presente tua primeira boneca, e que nem foi há tanto tempo assim....
Antígona não responde.. Vai sair. Ele a para.
Antígone! Não é por essa porta que se vai a teu quarto! Onde pensas que vais?

ANTÍGONE

Parou. Responde-lhe tranqüilamente sem fanfarronice


Você bem sabe...
Um Silêncio.
Eles se olham ainda, de pé ,
um de fronte do outro.
CREONTE
Murmura, como para si próprio.
Qual é finalmente teu jogo?
ANTÍGONE
Eu não jogo.
CREONTE
Não entendes que se qualquer um outro além desses 3 brutamontes souberem o que tentaste
fazer, eu serei obrigado de te condenar à morte? Se te calas agora, se renuncias a essa loucura
eu tenho uma chance de te salvar, mas daqui a cinco minutos te garanto que não terei mais.
Estás entendendo?
ANTÍGONE
Eu tenho que enterrar meu irmão que esses homens desenterraram.
CREONTE
Vais refazer esse gesto absurdo? Há uma nova guarda ao redor do corpo de Polinice e mesmo
que consigas recobri-lo, irão descobrir de novo o cadáver, tu o sabes muito bem. Que podes
então senão te ensangüentar ainda mais as unhas e te fazer enforcar?
ANTÍGONE
Nada mais que isso, eu o sei. Mas ao menos isso eu posso. E é preciso que se faça aquilo que
se pode fazer.
CREONTE
Crês tu verdadeiramente nisso, nesse enterro segundo as regras? Nessa sombra de teu irmão
condenado a vagar para sempre c=caso não se jogue sobre o cadáver um punhado de terra
segundo a fórmula do padre? Aos padres de Tebas, já os ouviste recitar a tal fórmula? Já viste
essas pobres cabeças de funcionários públicos cansados, encurtando os gestos, engolindo as
palavras, concluindo apressadamente a cerimônia desse morto para poder ainda pegar mais um
antes do almoço?
ANTÍGONE
Si, já os vi.

CREONTE
E nunca pensaste então que se fosse um ser que amasses verdadeiramente, que estivesse lá,
deitado nessa caixa, tu te meterias a urrar imediatamente? A gritar para que eles se calem, para
que vão embora?
ANTÍGONE
Sim, já pensei nisso.
MICHELOTTO & ANOUILH

CREONTE
E estás arriscando a morte agora só porque recusei a eu irmão esse passaporte ridículo, esse
blábláblá em série sobre seus despojos, essa pantomima da qual serias a primeira a te
envergonhar e a passar mal se alguém os realizasse? É um absurdo!
ANTÍGONE
Ë mesmo um absurdo.
CREONTE
Por quê fazes então um tal gesto? Pelos outros? Por aqueles que crêem nisso? Para em
enfrentar?
ANTÍGONE
Não.
CREONTE
Nem pelos outros, nem por teu irmão? Por quem então?
ANTÍGONE
Por ninguém. Por mim mesma.
CREONTE
Olha-a em silêncio.
Tens então toda essa vontade de morrer? Estás já com cara de uma caça que se deixou pegar.
ANTÍGONE
Não te enchas de ternura por mim. Faze como faço. Faze o que tens que fazer.
Mas se és um ser humano, faze-o de pressa. É isso tudo o que te peço.
Eu não vou conseguir ter coragem por toda eternidade, isso é verdade.
CREONTE

Aproximando-se
Eu quero te salvar, Antígone.
ANTÍGONE
És o rei, podes qualquer coisa,mas isso, isso não podes fazer.
CREONTE
Estás certa disso?
ANTÍGONE
Nem me salvar, nem me obrigar a nada.
CREONTE
Orgulhosa! Pequena Édipo!
ANTÍGONE
Tudo o que podes fazer é me fazer morrer.
CREONTE
E se te mando torturar?
ANTÍGONE
Para quê? Para que eu chore, peça perdão, para que eu te jure tudo o que queiras que eu jure e
depois recomece quando não estiveres mais me fazendo mal?
CREONTE
Apertando-lhe o braço.
Escuta bem aqui. Eu estou com o papel pior nessa história e tu estás com o bom, está certo? E
farejas isso. Mas não tente se aproveitar muito disso, sua pequena peste...Se eu fosse um bom,
ordinário e estúpido tirano já teria te arrancado a língua há muito tempo, esticado um por um
de teus membros com tenazes ou te jogado dentro de um buraco qualquer. Mas tu vês dentro
MICHELOTTO & ANOUILH

de meus olhos algo que hesita, vês que te deixo falar em vez de chamar meus soldados- e
então me desafias, me atacas o mais que podes. Aonde pretendes chegar, ó pequena fúria?!
ANTÍGONE
Larga-me. Estás me machucando o braço com essas mãos.

CREONTE
Que lhe aperta mais forte.
Não. Eu, eu sou o mais forte nessa modalidade, então eu também vou me aproveitar disso
ANTÍGONE
Dá um grito curto.
Ai!
CREONTE
Cujos olhos riem.
Ë talvez o que eu deveria fazer, afinal de contas, bem simplesmente, te torcer o punho, te
puxar os cabelos como se faz com as meninas nos jogos.

Ele a olha mais uma vez. Torna-se sério. Fala-lhe bem de perto
Eu sou teu tio, ta claro, mas nós não somos ternos uns com os outros em nossa família. Isso
de todo jeito não te parece divertido, esse rei zombado que te escuta, esse velho homem que
tudo pode e que já matou a tantos, te asseguro, e outros tão ternos quanto tu, e que está aqui a
se dar toda essa trabalheira para tentar te impedir de morrer?
ANTÍGONE
Após um tempo.
Estás me apertando demais agora.. E isso nem me machuca mais pois nem sinto mais meu
braço.
CREONTE
Olha-a e a larga com um sorriso curto. Murmura.
Deus sabe contudo que tenho muito o que fazer hoje, mas vou seja lá como for perder todo o
tempo do mundo para te salvar, pequena peste.
Fá-la se assentar numa cadeira no centro da sala.
Tira seu casaco e avança em sua direção, pesado, poderoso, só de camisa.
No dia seguinte de uma revolução que não deu certo, te asseguro, tem sempre alguma coisa
acontecendo. Mas os negócios urgentes podem esperar.u não vou te deixar morrer numa
história de política. Vales mais que isso. Porque teu Polinice, esta sombra desolada e este
corpo que se decompõe entres seus guardas e todo esse patético que te inflama, não passa de
uma história de política. Primeiro eu não sou terno, mas sou delicado: gosto de tudo o que é
limpo, claro, bem lavado. Crês que isso não me desgosta tanto quanto a ti, essa carne que
apodrece ao sol? À noite, quando o vento vem do mar, o cheiro já chega até ao palácio. Isso
me parte o coração. Contudo, não vou nem mesmo fechar a janela. É ignóbil, e posso disser
isso a ti, é estúpido, monstruosamente estúpido, mas é preciso que toda Tebas sinta isso
durante algum tempo. Não achas que eu deveria enterrar teu irmão nem que fosse por uma
questão de higiene?! Mas para que os brutos que eu governo possam compreender, é preciso
que o cadáver de Polinice feda a cidade inteira, durante um mês.
ANTÍGONE
És odioso!
MICHELOTTO & ANOUILH

CREONTE
Mas claro, minha guria. É o ofício que me obriga a sê-lo. O que se pode discutir, é o que se
precisa fazer ou não fazer. Mas se a gente se mete a fazer, é preciso fazê-lo desse jeito.
ANTÍGONE
Por quê o fazes tu?

CREONTE
Uma bela manhã eu açodei rei de Tebas. E deus sabe se algum dia amei na vida algo como
poder ser poderoso.

ANTÍGONE
Bastava dizer não então!
CREONTE
Bem que eu podia. Mas eu me senti de repente como um operário que recusava de fazer seu
trabalho. E isso não me pareceu lá muito honesto. Então disse sim.
ANTÍGONE
Ora, pior então para ti! Eu nunca disse esse “sim”. Como é que queres que me interesse pela
tua política, pela tua necessidade, por tuas pobres histórias? Eu, eu posso dizer ”não” ainda a
tudo o que não amo e sou o meu único juiz. Mas tu, com tua coroa, com teus guardas, com
teus apetrechos, tudo o que podes fazer é me fazer morrer, opor que disseste esse “sim”
CREONTE
Escuta aqui.
ANTÍGONE
Se eu quiser, posso até nem te escutar. Disseste “sim”. Não tenho mais nada a aprender
contigo. Mas tu não. Estás aí a beber minhas palavras.
E se não chamaste ainda os guardas é simplesmente para poder me escutar até o fim.
CREONTE
Tás brincando!
ANTÍGONE
Não. Eu te meto medo. É por isso que tentas me salvar. Seria bem mais cômodo guardar uma
pequena Antígone viva e muda neste palácio.És sensível demais para dares um bom
tirano,essa é que é a questão. Mas, de qualquer jeito, tu me farás morrer daqui a pouco, sabes
bem disso, e é por isso que tens medo. Ë é feio um homem que teme.
CREONTE

Surdamente
Pois bem, sim, eu tenho, medo de ser obrigado a te mandar matar se te obstinas. E eu não
gostaria de fazê-lo.
ANTÍGONE
Eu, eu não sou obrigada a fazer o que eu não gostaria de fazer. Não quererias também talvez
recusar um túmulo a meu irmão?! Dize que não quererias.
CREONTE
Eu já te o disse.
ANTÍGONE
E acabaste fazendo, apesar disso. E agora irás me mandar matar sem querer. E é isso a que
chamas ser rei!
CREONTE
MICHELOTTO & ANOUILH

Pois é exatamente isso!


ANTÍGONE
Pobre Creonte! Com minhas unhas quebradas e cheias de terra e cheia de ronxos que teus
guardas me fizeram nos braços, com meu medo que me retorce o ventre, eu, eu sou rainha.

CREONTE
Tem então piedade de mim!. ( 8) O cadáver de teu irmão que apodrece sob minha janela já é
suficiente para que a ordem reine em Tebas. Meu filho te ama. Não me obrigues a pagar
também contigo. Já paguei o suficiente.
ANTÍGONE
Não.
Disseste ”sim”. Não pararás jamais de pagar agora!
CREONTE

Sacode- a repentinamente, fora de si ( 9)


Mas, ó bom deus, tenta compreender, também tu,
por um minuto, pequena idiota!
Eu, eu bem que tentei te compreender também. (10)

É necessário contudo que existam alguns que digam sim .


É necessário que haja os que conduzam a barca.
Barcas (11) fazem água por todo lado, são cheias de crimes, estupidez, de miséria..
E lemes giram sem rumo.
Grumetes nem querem mais fazer nada,
pensam só em pilhar estivas (12), porões:
põem-se oficiais já a construir pequena e confortável jangada
em que não caiba mais que eles
levando toda provisão de água doce
para livrar sua carcaça e seus ossos.
E espatifa-se o mastro
e sopra o vento
e leva a vela
rasgada
e a leva de brutos
que vai morrer
que vai morrer (13)
por que pensa na própria pele e só
e tão somente nela, a preciosa
e em seus pequeninos prazeres (14).
Pensas, então, que temos tempo de bancar os chiques,
e de saber se se diz agora(15 )sim, ou agora não,
de se perguntar se o preço a pagar
não será algum dia muito muito alto,
E se se poderá ainda ser homem após?!
Pega-se um pedaço de pau ...o fuzil,(16)
Levanta-se alto diante da montanha d’água(17)
Esgoela-se uma ordem qualquer
MICHELOTTO & ANOUILH

E manda-se bala no bolo,(18)


Ou no primeiro que avance.
No bolo!
Esse troço não tem nome.
É como a onda que acaba de se abater sobre o convés à nossa frente.
O vento que te fustiga e a coisa corpo(19) que cai no meio de um grupo não têm nome.
Era talvez o cara que te deu fogo e sorria, no dia anterior.
Ele não tem mais nome.
E tu também não
não tens mais nome
quando estás agarrado à barra da saia (20),
ao teu timão.
Apenas navios e tempestades têm nomes.
Dá para entenderes isso?
ANTÍGONE

Balança a cabeça
Eu não quero compreender isso. É bom para ti. Eu não estou aqui para compreender nada. Eu
estou aqui para te dizer não e morrer
CREONTE
É fácil dizer não!
ANTÍGONE
Nem sempre.

CREONTE
Para se dizer um sim é preciso suar e dobrar as mangas,
empunhar a vida com as próprias mãos e se enfiar nela até os cotovelos.
É fácil dizer não, mesmo se se deve morrer. Basta não se mexer e esperar. Esperar que se viva
e mesmo esperar que se nos tire a vida. É ato de covardia.
Podes imaginarias um mundo em que as árvores dissessem não à seiva,
ou os animais dissessem não ao instinto da caça e do amor?
Os animais pelo menos são bons, simples e duros.
Eles seguem em frente, se empurrando uns aos outros, corajosamente,
por sobre o mesmo caminho.
E se uns tombam, os outros passam adiante
e pode-se perder tantos quantos se quiser
restará sempre ao menos um de cada espécie
para refazer filhotes e retomar o mesmo caminho com a mesma coragem,
iguaizinhos aos que passaram antes deles.
ANTÍGONE
Que sonho, hein, para um rei?!Animais!
Seria simples demais
CREONTE
Silêncio. Olhando para ela.
Tu me desprezas, não é?
Ela não lhe responde, ele continua como eu falando para si mesmo.
MICHELOTTO & ANOUILH

Que engraçado! Eu imaginei tantas vezes já esse diálogo com um pequenino homem pálido
que tivesse tentado me matar e contra o qual eu não poderia fazer nada, a não ser desprezar.
Mas jamais pensei que seria contigo e que fosse por uma coisa tão idiota...
Toma sua cabeça por entre as mãos.
Sente-se que ele está no fim de suas forças.
Escuta-me, seja lá como for, pela última vez.
Meu papel não é lá muito bom, mas é meu papel e eu vou te mandar matar.
Apenas eu gostaria antes de estar certo de que tu também estás do teu.
Sabes porque vais morrer, Antígone?
Sabes em baixo de que história sórdida estarás assinando , para sempre, o teu pequeno nome
sangrento?
ANTÍGONE
Que história?
CREONTE
A de Etéocle e Polinice, a de teus irmãos.
Não tu pensas que sabes, mas, não sabes de nada.
Ninguém o sabe em Tebas, a não ser eu.
Mas me pareceu, que esta manhã, tu também tinhas o direito de saber.
Ele sonha um pouco, com a cabeça entre as mãos,
cotovelos apoiados por sobre os joelhos.
Ouve-se-o murmurar.
Não é nada lá muito bonita, já vais ver.
E ele começa seriamente, sem olhar para Antígone.
Que é que tu te lembras de teus irmãos, para começar?
Dois colegas de jogos que te desprezavam, sem dúvida,
que quebravam tuas bonecas,
e sussurravam eternamente mistérios nos ouvidos um do outro
só para te fazer ficar enraivecida?
ANTÍGONE
Eram grandes...
CREONTE
Depois os admiraste por seus primeiros cigarros, suas primeiras calças compridas,
e aí eles começaram a sair à noite, a ter cheiro de homens e passaram a nem mais te olhar.
ANTÍGONE
Eu era uma menina...
CREONTE
Tu vias como tua mãe chorava, como teu pai se encolerizava,
ouvias bater as portas quando voltavam
e as risadas deles pelos corredores.
E eles passavam diante de ti, bêbados e molengas, fedendo a vinho.
ANTÍGONE
Uma vez eu me escondi atrás da porta,
era de manhã,
tínhamos acabado de nos levantar e eles acabavam de voltar.
Polinice me viu, ele estava todo pálido, com os olhos brilhando
e tão belo em seu traje de noite! Ele me disse: ” Ué, estás aí?”
E me deu uma enorme flor de papel que ele trouxera para mim da sua noitada.
MICHELOTTO & ANOUILH

CREONTE
E guardaste esta flor, não foi?
E ontem antes de sair, abriste tua gaveta do armário e destes uma olhada nela,
só para te dar coragem, não foi?
ANTÍGONE

Estremece
Quem te disse isso?
CREONTE
Pobre Antígone, com tua flor de pano
Delicada como as (22 e meia) flores de anáguas.
Sabes quem era teu irmão?
ANTÍGONE
Eu sabia que irias falar mal dele, fosse como fosse!
CREONTE
Um pequeno farrista imbecil, uma pequena ave de rapina dura e sem alma,
um pequeno bruto que só servia para correr mais que os outros em seu carro,
ou para gastar mais dinheiro nos bares. Uma vez eu estava lá, teu pai acabara de lhe recusar
uma quantia enorme que ele havia perdido no jogo.
Pois ele ficou pálido, levantou os punhos cerrados e gritou um palavrão.
ANTÍGONE
Não é verdade!
CREONTE
O punho do estúpido voou inteiro no rosto de teu pai. Dava dó.
Teu pai estava assentado à mesa, com a cabeça por entre as mãos.
Sangrava do nariz e chorava.
E num canto do escritório, Polinice, gargalhava enquanto acendia um cigarro.
ANTÍGONE
Quase suplicando dessa vez.
Não é verdade!
CREONTE
Dá para te lembrares, tinhas 12 anos. Ficaste sem vê-lo por um bom tempo, não foi?
ANTÍGONE
gravemente
É, é verdade.
CREONTE
Pois foi depois dessa briga. Teu pai não quis levá-lo a julgamento. Ele se engajou na armada
argiana. E desde que ele chegou entre os Argianos, foi iniciada a caça ao homem, a esse
homem que era teu pai , esse velho homem que não se decidia a morrer, a largar seu reino. Os
atentados se sucederam e os matadores que prendíamos acabavam sempre por confessar que
havia recebido dinheiro dele.Bem , não somente dele, aliás.
Pois é isso que eu quero que saibas, os bastidores desse drama onde estás doida para ter um
papel, só que será na cozinha.
Eu ordenei ontem funerais solenes para Etéocles.
Etéocles é um herói e um santo para Tebas agora.
Todo o povo lá estava.
As crianças das escolas deram para a Coroa todo o dinheiro que tinham em seus cofrinhos.
MICHELOTTO & ANOUILH

Os mais velhos, falsamente comovidos, fizeram elogios, com vozes trêmulas, para o bom
irmão, o filho fiel de Édipo, o príncipe leal.
Até eu fiz um discurso.
E todos os sacerdotes de Tebas, todo paramentados, com caras de compungidos.
E as honras militares...
Era preciso.
Sabes bem que eu não podia me dar ao luxo de ter dois crápulas do mesmo lado ao mesmo
tempo. Ma vou te dizer algo. Vou te dizer algo que só eu sei, algo horrível: Etéocle, esse poço
de virtude, valia tanto quanto Polinice, isso é: nada.
O bom filho havia tentado , também ele, assassinar seu pai,
O príncipe leal havia decidido, também ele, vender Tebas ao que desse mais.
Foi mesmo, achas que isso é engraçado?!
Essa traição pela qual o corpo de Polinice está lá ao sol apodrecendo, ficou mais que provado
que Etéocles - que agora dorme em sua tumba de mármore- estava se preparando, também
ele, para cometer. Foi mero acaso se Polinice conseguiu dar seu golpe antes dele.
Nós estávamos nas mãos de dois ladrõezinhos de feira que se enganavam um ao outro e a nós
todos e que se degolaram um ao outro - como dois pequenos bandidos que eram – num
regulamento de contas.
Apenas aconteceu que eu tive necessidade de fazer um herói de um deles
Fui então buscar seus cadáveres no meio dos outros.
E os encontramos abraçados, pela primeira vez na vida deles certamente.
Eles haviam se esfaqueado um ao outro e depois a carga da cavalaria argiana acabou passando
por cima deles. Eles estavam todo despedaçados, Antígone, irreconhecíveis.
Eu então mandei catar um dos corpos, o menos estragado dos dois, para meus funerais
nacionais e dei ordem de deixar que o outro apodrecesse aonde estava.
Nem tenho a menor idéia de qual dos dois era.
E te garanto que para mim dá na mesma.
Há um longo silêncio.
Eles não se movem, sem se olhar,
até que Antígone diz com doçura.
ANTÍGONE
Por que me contaste isso?

Creonte recoloca o casaco


CREONTE
Valeria a pena te deixar morrer numa história pobre dessas?
ANTÍGONE
Talvez. Eu, eu pensava que sim.
Há ainda um silêncio.
Creonte se aproxima dela
CREONTE
E o que é que vais fazer agora?
ANTÍGONE
Levanta-se como uma sonâmbula.
Vou para meu quarto.
CREONTE
Não fica muito sozinha.
MICHELOTTO & ANOUILH

Vá ver Hemon, hoje de manhã.


Casa-te logo.
ANTÍGONE

Ofegante
Sim.

CREONTE
Nada mais conta. E tu ias jogar fora isso!
Eu te entendo, eu faria como tu na tua idade.
É por isso que eu bebia tuas palavras.
Eu escutava vindo dos fins dos tempos, um pequeno Creonte magro e pálido como tu
e que só pensava em servir (22), também ele...
Casa-te, Antígone, sê feliz.
A vida não é o que pensas.
É uma água que os jovens deixam escorrer sem o saber por entre seus dedos
entreabertos.
Fecha tuas mãos, fecha tuas mãos rápido.
Segure- a
Verás, isso se tornará uma pequena coisa dura e simples que se roe,
como um pedaço de pão, sentada ao sol.
Eles te dirão todos o contrário porque eles têm necessidade de tua força e de te arrojo.
Não os escute,
Nem me escute quando eu fizer meu próximo discurso diante do túmulo de Etéocles.
Não será verdade.
A única verdade é aquilo que não se diz.
Aprenderás isso também tu, tarde demais: a vida é um livro que se ama,
é uma criança que brinca a teus pés,
um instrumento que se pode segurar com firmeza na mão
um banco para se repousar à noite diante de sua casa.
Vais me desprezar agora, mas descobrir isso, verás, é o consolo irrisório de envelhecer.
A vida talvez não seja mais que a felicidade!
ANTÍGONE
Murmura, o olhar perdido.
A felicidade...
CREONTE
Envergonha-se um pouco repentinamente.
Uma palavra pobre, não é?
ANTÍGONE
Devagarzinho.
Qual será minha felicidade?
Em que mulher feliz irá se tornar a pequena Antígone?
Que pobrezas ela precisará fazer, também ela, dia após dia,
para arrancar com os dentes seu pequeno naco de felicidade?
Dize, a quem deverá ela mentir, a quem sorrir, a quem se vender?
Quem ela deverá deixar morrer , retirando seu olhar?
CREONTE
MICHELOTTO & ANOUILH

Dando de ombros
Estás louca, cala-te!
ANTÍGONE
Não, não me calarei.
Eu quero saber como eu também vou poder fazer para ser feliz.
Imediatamente, pois é assim de repente que se precisa fazer uma escolha.
Disseste-me que a vida é bela. Eu quero saber como eu me agarrarei a isso para viver.

CREONTE
Amas Hemon?
ANTÍGONE
Sim, eu o amo. Amo um Hemon forte(23) e jovem, um Hemon exigente e fiel, como eu.
Mas se vossa(24) vida e vossa felicidade deverem passar por sobre ele com seu desgaste,
se Hemon não deve mais empalidecer quando eu empalideço,
se ele não deve mais pensar que estou morta quando me atraso por cinco minutos,
se ele não se sentir mais só no mundo e me detestar, quando eu rio sem que ele saiba porque,
se ele deve se tornar junto a mim o Senhor Hemon,
se ele deve aprender a dizer “sim” também ele,
então eu não amo mais Hemon!
CREONTE
Não sabes mais o que dizes. Cala-te
ANTÍGONE
Sim, eu sei o que digo, mas és tu que não me queres entender.
Eu te falo de muito longe agora, de um reino onde não podes entra com tuas rugas,
tua sabedoria, teu ventre.
Ela ri.
Ah eu estou rindo! Creonte, estou rindo! Por que de repente te vejo com 15 anos!
Estás com esse mesmo ar de impotência e ao mesmo tempo de quem crê que se pode tudo.
A vida somente te ajuntou essas pequenas dobras sobre o rosto e essa gordura ao redor do
corpo.
CREONTE

Sacode-a
Vais te calar, enfim?
ANTÍGONE
Por quê me queres fazer calar?
Porque sabes que tenho razão?
Pensas que não leio em teus olhos que o sabes?
Sabes que tenho razão, mas não o confessas jamais,
Porque estás tentando nesse momento é defender tua própria felicidade
como se fosse um osso.
CREONTE
A tua e a minha, isso sim, imbecil!
ANTÍGONE
Tu me dás nojo com tua felicidade!
Com tua vida que se precisa amar custe o que custe!
Perecem-se com dois cães que lambem tudo o que encontram.
MICHELOTTO & ANOUILH

E esta pequena sorte, para todos os dias, se não se é muito exigente.


Eu? eu quero tudo, e tudo logo – e que tudo seja inteiro-
Ou então eu recuso!
Não quero ser modesta, eu, e me contentar de um pedacinho se eu for obediente.
Quero estar segura de tudo hoje
e que isso seja tão belo como quando eu era pequenina.
Isso ou morrer.
CREONTE
Então começa, começa como teu pai.
ANTÍGONE
Como meu pai, sim! Nós somos daqueles que põem as questões até o seu fim.
Até que não reste mais a menor chances de esperança que sobreviva.
A menor chance de esperança que se possa estrangular.
Nós somos daqueles que pisoteamos a ela quando a encontramos,
Quando encontramos essa tua esperança, tua cara esperança, tua suja esperança!.
CREONTE
Fecha essa boca!
Precisavas te ver proferindo (25) tais palavras...
Ficas feia!
ANTÍGONE
Ora, eu sou feia!
É nojento, não é mesmo?!
gritarias, sobressaltos, essa luta de cenourinhas, de garis, lixeiros.(26).
Papai só se tornou belo após,
depois que ele ficou bem certo
de que havia matado seu pai,
e que era exatamente com sua mãe
que ele tinha ido para a cama.
E que nada, nem ninguém,
jamais poderia salva-lo.
Aí ele se acalmou de repente,
deu algo parecido com um sorriso,
e se tornou finalmente belo.
Estava acabado.
E não teve mais que fazer senão fechar seus olhos para não mas vos ver a todos(27)!
Ah vossas cabeças...que pobres cabeças de candidatos à felicidade!
Tendes todos algo de feio no canto do olho ou da boca.
Bem disseste ainda agora Creonte: “à cozinha!”
Tendes cabeças de cozinheiros.
CREONTE
Torce-lhe o braço.
Eu te ordeno que cales essa boca, estás me entendendo?
ANTÍGONE
Me dás ordens, mestre Cuca?!(28)
CREONTE
A sala de estar está cheia de gente! Queres mesmo te perder? Eles vão te ouvir!(29)
ANTÍGONE
MICHELOTTO & ANOUILH

Pois que ouçam,


abram-se as portas!
Que me ouçam( 30)!
CREONTE
Tenta fechar-lhe a boca à força.
Vais finalmente te calar, bom deus?!

ANTÍGONE
Debatendo-se.
Anda! Rápido, Cozinheiro! Chama teus guardas!

A porta se abre. Entra Ismênia


ISMËNIA
Gritando.
Antígone!
CREONTE
Que queres tu também?!
ANTÍGONE
Antígone, perdoa-me!
Antígone, vês , eu vim, eu tenho coragem.
Eu irei contigo.
ANTÍGONE
Aonde irás comigo, tu?
ISMËNIA
Se a fizerdes morrer, tereis que me matar com ela

ANTÍGONE
Ah não. Agora não. Não tu. Sou eu e apenas eu.
Nem vais pensar que poderás vir morrer comigo agora.
Seria bastante fácil.
ISMËNIA
Eu não quero viver se tu morres,
eu não quero ficar sem ti.
ANTÍGONE
Escolheste a vida e eu a morte.
Poupa-me agora tua choradeira ( jeremiadas .(31)
Tinha-se que ir hoje de manhã
Tinha-se que ir rastejando,
Tinha-se que ir de noite
Tinhas que arrancar a terra com tuas unhas(32)
enquanto eles vigiavam de perto.
Tinhas que te fazer ser pega por eles como uma ladra.

ISMËNIA
Tá bem, eu irei amanhã!
ANTÍGONE
Estás ouvindo isso, Creonte?
MICHELOTTO & ANOUILH

Até ela!
Quem sabe se isso não vai pegar em mais alguém ao me escutar?
Que esperas para me tapares a boca,
Que esperas para chamar teus guardas?
Vamos, Creonte, um pouco mais de coragem!
É apenas um momento mau a mais a se passar!
Vamos, cozinheiro, faze o que deve ser feito!

CREONTE

Grita de repente
Guardas!
Guardas aparecem imediatamente.
Levem-na!
ANTÍGONE
Dando um grande grito, aliviada.
Enfim, Creonte!
Os guardas se lançam sobre ela e a levam.
Ismênia sai gritando atrás dela.
ISMËNIA
Antígone!
Antígone!
Creonte ficou só. Entra o Coro e vai até ele.
CORO
És louco, Creonte!
O que fizeste?
CREONTE
Olhando ao longe à sua frente.
É preciso que ela morra.(33)
CORO
Não deixe Antígone morrer, Creonte!
Nós teremos que suportar essa ferida aberta
ao longo dos séculos.
CREONTE
É ela quem o queria.
Nenhum de nós não era bastante forte para fazê-la decidir viver.
Agora posso compreendê-la. Antígone foi feita para ser morta.
Ela mesma talvez não o soubesse, mas Polinice era mero pretexto.
Quando ela teve que renegá-lo, logo encontrou outra razão imediata.( 34)
O que importava para ela, era mesmo se recusar e morrer.
CORO
Era só uma criança, Creonte!
CREONTE
Que querem que eu faça por ela?
Condená-la a viver?
HEMON
MICHELOTTO & ANOUILH

Entra gritando
Pai!
CREONTE
Corre em sua direção e o abraça.
Esquece-a Hemon, esquece-a meu pequeno!
HEMON
Estás louco, pai.
Me deixa.
CREONTE
Segura-o mais forte ainda.
Tentei tudo para salvá-la, Hemon.
Tentei de tudo, te juro.
Ela não te ama.
Ele teria chance de viver.
Ela preferiu sua loucura e sua morte.
HEMON
Grita, tentando escapar de seu abraço.
Mas, pai, não estás vendo que eles a estão levando!
Pai, não deixe esses homens levá-la!
CREONTE
Agora ela falou.
Toda Tebas sabe o que ela fez.
Sou obrigado a mandar executá-la.
HEMON
Escapa de seus braços.
Deixa-me!
Um silêncio. Estão frente a frente. E se olham.

CORO
Aproxima-se.
Será que não se pode inventar qualquer coisa, dizer que ela está louca, interná-la?
CREONTE
Eles dirão que não é verdade.
Que eu a estarei salvando porque ela seria mulher de meu filho.
Não posso.
CORO
Será que não daria para se ganhar tempo e fazê-la fugir amanhã?
CREONTE
A multidão já o sabe e urra ao redor do palácio.(35)
Eu não posso.
HEMON
Pai, o povo não é nada!
Tu, sim, és o senhor!(36)
CREONTE
Eu sou o mestre antes a da lei.
Não após.
HEMON
MICHELOTTO & ANOUILH

Pai, sou teu filho, tu não podes deixar que a tomem de mim.
CREONTE
Sim, Hemon. Sim, meu pequeno.
Tem coragem.
Antígone não ode mais viver.
Antígone já se foi.
HEMON
E pensas que eu...que eu posso viver sem ela?(37)
Crês que eu aceitarei essa vossa vida?
E todo dia, da manhã à noite, sem ela?
E vossa agitação, vosso vazio, sem ela?
CREONTE
Será melhor que aceites, Hemon. (38).
Cada um de nos tem um dia, mais ou menos triste,
em que ele acaba aceitando ser um homem (39)
Teu dia é hoje.(40)
E eis que é pela última vez que assim ficas diante de mim,
com lágrimas nas bordas dos olhos
e um coração te magoando, meu pequeno rapaz.
Quando me tiveres dado as costas,
Quando tiveres atravessado esse limiar daqui a pouco,
tudo isso terá terminado.
HEMON
Recua um pouco e diz devagar.
Já acabou de terminar.(41)
CREONTE
Não me julgues, Hemon.
Não me julgues também tu..
HEMON
Olha-o e diz imediatamente.
Esta grande força e esta coragem,
esse deus gigante que me carregava em seus braços
e me salvava dos monstros e das sombras,
eras tu?
Este odor proibido
deste pão bom da ceia já iniciada (42)
e eu sob, a lamparina, ainda a ver livros que me mostravas em teu escritório,
eras tu, esse cheiro, eras tu?

CREONTE

Com humildade
Sim, Hemon.
HEMON
Todos esse cuidado,
todo esse orgulho,
todos esses livros cheios de herói,
MICHELOTTO & ANOUILH

era então para chegarmos até aqui?


E ser um homem, como o dizes, papai
E muito feliz em viver?
CREONTE
Sim, Hemon

HEMON
Grita de repente como uma criança,
Se jogando em seus braços.
Pai, não é verdade!
Não és tu.
Não é hoje.
Nós não estamos todos dois aos pés desse muro aonde somente se deve dizer sim.
És ainda poderoso,
tu, como quando eu era pequeno.
Ah te suplico, pai, que eu te admire, que eu ainda te admire!
Estarei muito sozinho e o mundo será excessivamente nu se eu não puder mais te admirar.
CREONTE
Afasta-se dele.
Estamos sós, Hemon.
O mundo é nu.
E tu me admiraste por tempo demais.
Olha para mim, isso é se tornar um homem,
frente a frente,
olhar no olho de seu pai um dia.
HEMON
Olha para ele e recua gritando.
Antígone! Antígone! Socorro!

Sai, correndo
CORO
Vai até Creonte.
Creonte, ele saiu como um louco.
CREONTE
Com o olhar ao longe, reto à sua frente.
Sim. Pobre pequeno.
Ela a ama.
CORO
Creonte, há que se fazer alguma coisa!
CREONTE
Não posso mais fazer nada.
CORO
Ele saiu, tocado até à morte.

CREONTE
Gravemente.
Mas nós fomos todos tocados até à morte
MICHELOTTO & ANOUILH

Antígone entra no palco, empurrada por guardas


que se curvam sobre a porta
como que impedindo a multidão
que se advinha urrar do outro lado
O GUARDA Juão Denis
Chefe, eles estão invadindo o palácio!

ANTÍGONE
Creonte, eu não quero mais ver vossos rostos,
eu não quero mais ouvir seus gritos,
eu não quero mais ver ninguém!.
Tens minha morte agora e basta.
Faze com que eu não veja mais ninguém até que tudo isso se acabe.
CREONTE

Sai gritando para os guardas


Guardas à porta!
Que se esvazie o palácio!
Fica aqui com ela, tu!
Os dois outros guardas saem, seguidos pelo Coro.
Antígone fica só, com o primeiro guarda.
Antígone olha para ele.
ANTÍGONE
De repente.
Então, és tu?

O GUARDA Juão Denis


Quem? Eu?
ANTIGONE
Meu último rosto de um homem.
O GUARDA Juão Denis
Não tem outro por aqui.
ANTÍGONE
Que eu te olhe...
O GUARDA Juão Denis

Afasta-se, envergonhado
Tá legal...
ANTIGONE
Foste tu quem me prendeu ainda agora?
O GUARDA Juão Denis
Sim, fui eu.
ANTÍGONE
Me machucaste.
Não tinhas necessidade de me machucar.
Eu tinha cara de quem iria fugir, tinha?
MICHELOTTO & ANOUILH

O GUARDA Juão Denis


Ei, ei, nada de histórias!
Se não fosse você, seria eu quem ia se ferrar.
ANTIGONE
Que idade tens?
O GUARDA Juão Denis
Trinta e nove.

ANTÍGONE
Tens filhos, tens?
O GUARDA Juão Denis
Sim, dois.
ANTIGONE
Tu os amas?
O GUARDA Juão Denis
Isso não é de sua conta!
Ele começa a andar nervoso pela sala.
Durante um momento não se ouvem a não ser seus passos.
ANTÍGONE

Pergunta com humildade


Há muito tempo que és guarda?
O GUARDA Juão Denis
Após a guerra.
Era sargento.
Me reengajei.
ANTIGONE
Ë preciso ser sargento para se ser da guarda?
O GUARDA Juão Denis
Em princípio, sim.
Ou sargento ou haver participado do pelotão especial.
Uma vez guarda, o sargento perde seu grau.
Por exemplo, se eu me encontro com um recruta do exército,
ele pode deixar de bater continência.
ANTÍGONE
É mesmo?
O GUARDA Juão Denis
É. Bem, observe que em geral ele o faz.
Um recruta sabe que um guarda é um oficial graduado.
Agora, em matéria de grana, tem-se o soldo ordinário da Guarda,
como o do pelotão especial, e , durante seis meses, a título de gratificação
um acréscimo como suplemento ao soldo de sargento.
Apenas que como Guarda, têm-se outras vantagens,
como casa própria, salário família,(43)
(Que Creonte quer incorporar todas ao salário, essa é a promessa dele...)(44)
Um guarda casado e com dois filhos pode ganhara mais dinheiro que um sargento da ativa, ao
final .
MICHELOTTO & ANOUILH

ANTIGONE
Mas é mesmo?!
GUARDA
Ah é. É isso que explica as rivalidades entre Guardas e Sargentos.
Você deve ter podido observar que um Sargento sempre faz de conta que despreza um
Guarda. O grande argumento deles é a ascensão funcional. Num certo sentido, estão certos.
A ascensão de um Guarda é mais lenta e mais difícil que no exército.

Mas não se deve esquecer que um brigadeiro da Guarda é bem diferente que um Sargento-
Chefe.

ANTÍGONE

Diz repentinamente para ele


Escuta...
O GUARDA Juão Denis
Diga lá.
ANTIGONE
Eu vou morrer daqui a pouco.
O Guarda não lhe responde. Um silêncio.
Ele recomeça a andar pelo salão.
Após um momento ele retoma a conversa anterior sobre Guardas e sargentos..

O GUARDA Juão Denis


Por um outro lado, tem-se mais consideração por um Guarda que por um Sargento da ativa.
O Guarda é um soldado, mas é quase um funcionário
ANTÍGONE
Achas que morrer dói?
O GUARDA Juão Denis
Não sei lhe responder. Durante a guerra os que eram feridos na barriga sofriam um bocado.
Mas eu nunca fui ferido. E num certo sentido, isso até que atrapalha minha ascensão funcional,
sabia?
ANTÍGONE
Como é que irão me matar?
O GUARDA Juão Denis
Nem sei ainda. Penso que ouvi dizer que para não sujar a cidade com seu sangue eles iriam te
emparedar num buraco.
ANTÍGONE
Viva?
O GUARDA Juão Denis
Sim, no início.
Um silêncio. O Guarda enrola um cigarro.(45)
ANTÍGONE
Ó túmulo!
Ó leito nupcial!
Ó minha habitação subterrânea!
MICHELOTTO & ANOUILH

Ela parece bem pequenina no meio da grande sala vazia.


Dir-se-ia que ela sente um pouco frio.
Ela se rodeia com seus braços.
Ela murmura.
Sozinha...
O GUARDA Juão Denis
Que joga fora o cigarro e o pisa.
Nas cavernas de Hades, às portas da cidade.
Em pleno sol.
E que trabalho danado de ruim, para os que estarão de serviço.
Tinha-se pensado no início de se chamar o exército.
Mas, pelas últimas notícias, vai ser mesmo a Guarda que irá fornecer o pessoal.
Tem costas largas, essa Guarda!
Vai você ainda se admirar que hajam ciúmes entre um Guarda e um Sargento da Ativa.

ANTÍGONE
De repente cansada.
Duas bêstas...(46)
O GUARDA Juão Denis
Como, duas bêstas?
ANTÍGONE
Bestas, animais, se juntariam uma à outra para se esquentar.
Eu , porém,estou só.
O GUARDA Juão Denis
Se você tiver necessidade de alguma coisa, aí é diferente.
Eu posso pedir...
ANTÍGONE
Não.
Eu gostaria somente que você entregasse uma carta a alguém depois que eu morrer.
O GUARDA Juão Denis
Que história é essa de carta?!
ANTÍGONE
Uma carta que eu vou escrever.
O GUARDA Juão Denis
Ah, isso nunca! Nada de histórias, viu?
Uma carta! Como vocês querem logo tudo, né?
Eu vou correr muito risco, ora, nessa brincadeirinha sua!

ANTÍGONE
Eu te darei esse anel, se o fizeres.
O GUARDA Juão Denis
É de ouro?
ANTÍGONE
Sim, é de ouro.
O GUARDA Juão Denis
Você entende, se me dão busca, eu vou parar no tribunal militar...
Tanto faz para você, não é mesmo?
Olha mais uma vez o anel.
MICHELOTTO & ANOUILH

O que posso fazer se você quiser é escrever no meu próprio bloco o que você tivesse querido
dizer. Depois, eu arranco a página. Com minha letra já não é mais a mesma coisa,certo?
ANTÍGONE
Com os olhos fechados. Ela murmura com um pobre rictus.
Com tua escritura...
Tem um pequeno arrepio.
É muito feio tudo isso,
tudo é muito feio.
O GUARDA Juão Denis
Chateado, faz menção de lhe devolver o anel.
Você sabe, se não quiser assim, eu...
ANTÍGONE

Rápida
Sim. Guarda o anel e escreve. Mas anda rápido....
Temo que não tenhamos mais tempo.
Escreve: “Meu querido....”
O GUARDA Juão Denis
Que pegou seu bloco e melhora sua cara.
É para seu namorado?.
ANTÍGONE
“Meu querido,
eu quis morrer e talvez tu não me amarás mais...”
O GUARDA Juão Denis
Repete lentamente com sua voz grave enquanto escreve
“Meu querido, eu quis morrer e talvez não me amarás mais...”
ANTÍGONE
E Creonte tinha razão, é terrível um momento como esse ao lado de um homem destes,
e eu nem sei porque morro.
Tenho medo.
O GUARDA Juão Denis
“Creonte tinha razão, é terrível...”
ANTÍGONE
Ö Hemon, nosso jovenzinho. Agora entendo como viver era tão simples...
O GUARDA Juão Denis
Parando.
Ei, pérai, tá indo muito rápido. Como é que quer que eu escreva?
Precisa-se de mais tempo...
ANTÍGONE
Onde estavas?
O GUARDA Juão Denis
“É terrível um momento como esse ao lado de um homem desses...”
ANTÍGONE
Eu nem sei mais porque eu vou morrer.
O GUARDA Juão Denis
Escreve aborrecido (47))
“Eu nem sei mais porque eu vou morrer”
MICHELOTTO & ANOUILH

ANTÍGONE

Continua
Eu tenho medo
Ela para. E imediatamente se levanta.
Não. Apaga tudo isso. É melhor que ninguém nunca saiba.
É como se eu estivesse nua e eles viessem tocar em mim depois de morta.
Bota aí somente: “Desculpe!”

O GUARDA Juão Denis


Então, eu apago o final e boto desculpa no lugar?
ANTÍGONE
Sim.
Perdão, meu querido.
Sem a pequena Antígone, todos vocês estariam bem mais tranqüilos...
Eu te amo...
O GUARDA Juão Denis
“Sem a pequena Antígone, todos vocês estariam bem mais tranqüilos.
Eu te amo...”
Só isso?!
ANTÍGONE
Só isso.
O GUARDA Juão Denis
É uma carta estranha.
ANTÍGONE
É, é uma carta engraçada.
O GUARDA Juão Denis
E para quem devo entregar?
Nesse momento a porta se abre.
Os outros guardas aparecem.
Antígone se levanta, olha para eles,
olha para o primeiro guarda que estava com ela,
ele bota o anel no bolso e ajeita o bloco no bolso,
com ar importante..
Ele vê o olhar de Antígone.
Ele grita para mostra que tem o controle da situação.

Ei, vamos lá, e sobretudo, nada de histórias!

Antígone tem um sorriso triste. Abaixa a cabeça.


E caminha sem dizer nada em direção dos outros guardas.
Saem todos.
CORO
Entrando imediatamente.
Que coisa! Acabou-se para Antígone!
Agora está chegando a vez de Creonte.
Todos deverão passar por isso.
MICHELOTTO & ANOUILH

MENSAGEIRO
Irrompe gritando.
A rainha? Onde está a Rainha?
CORO
Que queres dela?
Que tens a dizer-lhe?

MENSAGEIRO
Uma terrível notícia.
Acabava-se de jogar Antígone em seu buraco.
Não se havia ainda acabado de rodar as pedras por sobre a entrada,
quando Creonte e todos os que o rodeiam começaram a ouvir lamentações
que saiam de dentro do túmulo.
Cala-se um a um , pois não era a voz de Antígone.
É um novo lamento, que sai das profundezas do buraco.
Todos olham para Creonte, e ele que foi o primeiro a adivinhar,
ele que já sabe antes de todos os outros,
ele urra repentinamente como um louco?
“Retirem essas pedras! Retirem essas pedras!”
Os escravos se lançam por sobre os blocos de pedra amontoados
e, por entre eles o Rei, suado, com as mãos já sangrando.
As pedras se abrem enfim e o mais magrelo se esgueira por entre a abertura.
Antígone está no fundo do túmulo pendurada pelos fios de sua cintura,
por fios vermelhos,
fios verdes,
fios azuis
como se fossem um colar de criança
e Hemon, a seu lado ajoelhado
a segura sem seus braços e chora,
o rosto escondido na saia dela..
Move-se mais um bloco e Creonte pode enfim descer.
Vêem-se seus cabelos brancos na sombra, no fundo do buraco.
Ele tenta fazer com que Hemon se levante, ele lhe suplica,
Hemon não o escuta mais.
Até que de repente ele se levanta,
com olhos negros,
e ele nunca se assemelhou tanto ao pequeno menino de antigamente,
ele olha para seu pai,
sem nada dizer,
por um minuto,
repentinamente cospe-lhe no rosto
e puxa sua espada.
Creonte pula para longe de seu alcance.
Hemon, então, o mira com olhos de criança,
cheios de desprezo,
e Creonte não tem como evitar esse olhar como uma lâmina.
MICHELOTTO & ANOUILH

Hemon observa esse velho homem tremendo no outro canto da caverna e,


sem mais dizer, afunda a espada em seu próprio ventre
e se estende por sobre Antígone, (48)
abraçando-a numa imensa poça vermelha.

CREONTE

Entra com seu pajem


Eu os fiz dormir juntos, um ao lado do outro enfim!
Agora eles estão lavados e descansados.
Estão apenas um pouco pálidos,
porém tão calmos,
Dois amantes no alvorecer da primeira noite.
Esses, esses chegaram ao fim
CORO
Mas não tu, Creonte.
Falta ainda algo a saberes.
Eurídice, tua mulher...
CREONTE
Uma boa mulher que sempre está a falar de seu jardim,
de suas geléias,
de seus tricôs,
de seus eternos tricôs para os pobres.
Que engraçado como os pobres têm eterna necessidade de tricôs
.Parece até que eles não precisam de outra coisa que de tricô.
CORO
Os pobres de Tebas terão frio neste inverno, Creonte.
Ao saber da morte de seu filho,
a rainha guardou suas agulhas,
como uma boa menina,
após haver terminado sua fileira de pontos,
com toda a classe,
como em tudo o que ela sempre faz,
talvez até mesmo um pouco mais tranqüilamente que de costume.
Dirigiu-se depois a seu quarto,
seu quarto com odor de lavanda,
com suas pequenas toalhinhas bordadas
de fios de ouro afiados por sobre a pelúcia,
bons para se cortar a garganta neles, Creonte.(49)
Ela se estendeu agora por sobre uma das pequenas camas gêmeas e fora de moda,
No mesmo lugar em que viste uma jovenzinha uma certa (50) noite
e com o mesmo sorriso
apenas um pouco mais triste.
E se não houvesse essa larga mancha vermelha
por sobre os lençóis, ao redor de seu pescoço,
poder-se-ia dizer que ela ainda (51) está dormindo.
CREONTE
MICHELOTTO & ANOUILH

Ela também.
Eles todos foram dormir.
Tá bom.
O dia foi cansativo.

Um tempo. Ele fala gravemente


Dormir, isso deve ser bom.
CORO
E estás só agora, Creonte.
CREONTE
Bem sozinho. É isso.
Um Silêncio.
Ele pousa sua mão por sobre as espáduas de seu pajem.
Pequeno...
PAJEM
Senhor?
CREONTE
Vou te dizer uma coisa.
Os outros, eles não sabem de nada.
Estamos aqui, diante da obra, e contudo não podemos nunca cruzar os braços.
Eles dizem que isso é uma porcaria de serviço.
Mas se não o fazemos, quem o fará.
PAJEM
Não entendo disso, senhor.
CREONTE
Mas claro não compreendes.
Tens sorte!
O que seria necessário era jamais se entender isso.
Estás com pressa para crescer, estás?
PAJEM
Claro, senhor.
CREONTE
Tás louco, menino.
Que história é essa de crescer logo, nunca, rapaz, nunca! (52)
O relógio bate as horas na sala ao longe. Ele murmura.

Cinco horas! Mas o que é que temos para hoje às cinco horas?!
PAJEM
O conselho, senhor.
CREONTE
Bem, se temos o Conselho, menino, vamos lá!
Saem. Creonte se apoiando no pajem.
CORO
Adiantando-se.(53)

Ah enfim!
MICHELOTTO & ANOUILH

Sem a pequena Antígone, é verdade, todos eles teriam ficado bem tranqüilos.
Mas agora, acabou-se.
Eles estão, de uma maneira ou de outra, tranqüilos.
Todos que tinham que morrer, morreram.
Todos que acreditavam em algo e os que criam no contrário,
mesmo aqueles que não acreditavam em nada
e que se viram pegos na história sem nada compreender.
Mortos da mesma maneira.
Todos bem esticados,
bem inúteis,
bem apodrecidos.
E os que vivem ainda vão começar devagarzinho a esquecê-los
e a confundir seus nomes.
Acabou-se.
Antígone agora esfriou (54)
não saberemos jamais de que febre.
Seu dever foi cumprido.
Uma imensa tranqüilidade triste
pesa (55) sobre Tebas
e por sobre o palácio vazio
onde Creonte vai começar a esperar a morte...

Enquanto o Coro falava, guardas entraram.


Instalaram-se sobre um banco,
seu litro de vinho tinto ao lado deles,
seu chapéu sobre a nuca,
e começa uma partida de baralho.
CORO
Só restam guardas.
A eles, tudo isso não interessa.
Não é um troço deles.
Pois continuam a jogar cartas...
A cortina cai rapidamente
logo que os guardas baixam seus trunfos.

FIM DE ANTÍGONE

55 notas em azul,
como blues
MICHELOTTO & ANOUILH

(0) Bloodwedding , University of Califórnia .LA


(1) Devrais/devais: usamos o condicional pois o brasileiro não tem a sutileza do francês
nesse caso. Por polidez, lá, se usa o imperfeito no lugar do condicional...não se
condiciona o outro, por respeito...Ora para dar ao papo o calor brasileiro da relação
das duas, eu mantive o condicional, Antígone não falta ao respeito falando no
condicional, está sendo familiar. Essa a razão dos dois outros termos no verso:
Babucha por Nounou (não temos “Nounou”!), braba por brava/méchante; e, mais
acima: matina por manhã / matin
(2) A frase foi alongada para seguir a respiração brasileira num tipo de relação desse, bem
mais íntimo e familiar aqui e, portanto menos seco & dar tempo da cama esfriar! ”et
quand tu arrives le lit est froid”.
(3) Il est vert de peur... o medo infelizmente é colorido. Franceses ficam verdes, nós
amarelos, há os que ficam branco-pálidos como as Babás, azuis jamais ouvi dizer, mas
quase dava nosso pavilhão de horrores..
(4) Pelo estilo de Anouilh o cara deve falar assim.Pois ele é uma figura que faz
contraposição ao drama, como a Babá no início Acontece que um bronco lá em França
& Oropa fala bem mais certo que um bronco aqui na Bahia. Só isso.
(5) Durand / Boudousse... eu sempre gostei de assinar meus textos me colocando em
papéis vis quando o autor permite... Afinal os nomes deveriam ser gregos e ele
colocou, de brincadeira, nomes, provavelmente de gente conhecida. Bem, entre os três,
você é o mais graduado, hehehe!
Todo os texto do guarda seguirá assim. Não há problema pois é só recolocar em
português normal, caso fique fora das regras acordadas. Qualquer acréscimo ou
complemento de texto, dentro desse estilo eu mantive em azul. É só tirá-lo para se ter o
original francês.
(6) no original: “elle me criait de la laisser, “
(7) Todas interrupções de Antígone a seguir em azul, foram intercaladas por nós. Razões?
a- é um bife muito grande.
b- Creonte fala sozinho, para ninguém. Se falar com apenas assentimentos de
Antígone, essa sensação é aumentada. Se ele falar sem Antígone, pode-se ter a
impressão ( eu a tenho) de que ele fala demais, para exercer poder- o que não é
o caso. Ele fala para desgastar para si mesmo a coisa toda.Pois JÁ
CONDENOU ANTÍGONE. É NESSA FALA QUE ELE CONDENA
ANTÏGONE À MORTE!!! Tenta apenas se desculpar por ser condutor de
homens.

(8) “Alors, aie pitié de moi, vis”. Deu-me imensa vontade de traduzir por “Então tem
piedade de mim, visse!” É a primeira vez que vejo alguém chamar o outro de parafuso
, tarraxa. Mas a frase originalmente, se entendermos não a expressão francesa, mas o
estilo, dá algo como “Então larga de meu pé!” Eu por mim adoraria colocar o
intraduzível VISSE paraibano, como tradução desse “vis” .
MICHELOTTO & ANOUILH

No fundo a frase fica literalmente perfeita ( = Anouilh) de um modo ou de outro, mas


não consigo ver Creonte falando “visse”....

(9) hors de soi.


É bom prestar atenção nessa marca de Anouilh, que em geral , em outros
autores menos sutis, se toma como “tá na hora da gritaria!”.
Lá embaixo (nota 10) voltaremos ao tremendo erro que é o de se interpretar assim um
hors de soi refinado, raffiné em bom francês...É o próprio Anouilh que insiste, na fala
de Creonte : “É hora de se bancar o chique (= raffiné?)”
E apesar disso continua se mantendo elegante no estilo, hors de soi, sem berros e
histerias..
A isso chamamos ter classe

(10) Mas, ó bom deus, tenta compreender, também tu, por um minuto, pequena idiota!
Eu,eu bem que tentei te compreender também.
É necessário contudo que existam alguns que digam sim .
É necessário que existam os que conduzam a barca. Barcas fazem água por todo lado,
são cheias de crimes, estupidez, de miséria..
E lemes giram sem rumo.

( Visualização do jogo de repetições e sonâncias de Anouilh seguidos na


tradução.
Porque aumentei a exclamação Bom dieu! de um ó bom deus! e substituí o pronome
pessoal moi pela repetição do também?
Para o ritmo ficar perfeito, como o original)
Porque escrevi separando os parágrafos, dessa vez como um poema?
Porque só vejo poema em Anouilh.
Antígone é uma peça de tropos, que deslizam de um lugar a outro ( Palácio/ colina de
enterro de Polinice), por isso tão finamente trabalhada em figuras de retórica
(característica também chamadas tópica, de topoi, isso é de lugares Do texto,
claro.....).
Colocamos essa grafia aqui como modelo.
Julgamos que TODO o texto deva e mereça seguir essa separação/divisão/respiração
poética que Anouilh dá ao seu texto.
Deus! Ë bem diferente a inflexão, o tom, a veracidade de nossa leitura de Anouilh do
que se o lermos COMO está escrito na página 179
(=tudoemendadocomosefösseumCreont
foradesihorsdeluieDESCONTROLADOnumalinguagemdeseconömicaedeselegantelog
oelequeéumpoçodesabedoriapolíticaeque
mereceráumdosmaioreselogiosquejálisobreoexercíciohumildedopoder-
coisaqueNÃOsedábemcomcoléricosquegritamfrasesemendadascomoeupoderiafazerqua
ndoestoucomraiva.!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!)
É apenas a edição barata e econômica que nos (= autores & tradutores) leva a
desrespeitar essa grafia visual da concretude de poemas.
Na América Mamet, aqui Augusto e todos os Anjos nos ensinaram isso a long long
time ago. No?
MICHELOTTO & ANOUILH

(11)(...) qui menent la barque. Cela prend de l’eau (...) Et le gouvernail...


Anouilh usa um formidável e refinado recurso que é nos mostrar a construção de uma
imagem em metáfora , isso é, a metáfora não vem pronta, ela vem imagem e vai se
construindo.
Como isso pode ser perdido por um público menos afeito à literatura do texto ,
nós reforçamos essa construção figural com alternâncias entre a singularidade e a
generalidade- princípio que pode estar, estudamos nós, na base das possibilidades
metafóricas também.
Assim o Gouvernail virará LemeS bem como o Cela virará BarcaS, plural, em vez do
singular Isso - repetição do nome que permite, além, nos mantermos dentro do ritmo
do fraseado lítero-francês.

(12) il ne pense qu’à piler la cale


estivas, porões.
Colocamos a palavra mais simples após a mesma palavra mais complicada.
As pessoas que trabalham em portos no Brasil, são estivadores,
claro, porque seu trabalho refere-se aos porões dos navios.
Para evitar a confusão, repetimos como num dicionário, mantendo-nos fiéis ao
estilo de Anouilh de repetições- sobretudo nessa fala de Creonte.
Ele apenas se mostra inseguro do que está a dizer...E isso pode-se fazer por
repetições sucessivas....Mas, claro, numa tragédia, ele sabe que vai condenar
Antígone...não é o que diz Anouilh?

(13) et toutes ces brutes vont crever ensemble


´e todos esses brutos irão morrer juntos” .
substituí o juntos,significando “merecem todos a mesma morte “
pela repetição da condenação, apoiando mais a idéia de que merecem morrer e assim
será.
Um maktub fatídico. Também porque diz Anouilh, num admirável texto dessa mesma
peça, que essa é uma marca da tragédia.

(14) parce qu’elles né pensent qu’à leur peau


à leur précieuse peau
èt à leurs petites affaires
mantive a sonoridade das frases “na língua do P”.
Talvez seja exagerado colocar prazeres no lugar de negócios ( no original)
Para se manter Ps até o fim. Mas também me parece que o negócio desses brutos que
irão morrer todos juntos” é a própria pele, logo o próprio prazer.

(15) de savoir síl faut dire ‘oui”ou “non”


como o português ficou com uma cadeia longa de sons em SE (seguindo esse savoir s’íl..)
& a frase ficou difícil de ser dita em cena por um ator, interrompemos o fluxo com
esse agora, que não muda em nada o sentido, muito pelo contrário pois é bem
elegante..

(16) On prend le bout de bois... mas, mais adiante: on tire dans le tas...
Pode-se supor que esse pedaço de pau é o cabo de uma arma de fogo,
MICHELOTTO & ANOUILH

uma vez que se vai atirar com esse pedaço de pau....


Parece-me mais um argumento em favor da hipótese do estilo de Anouilh fazer um
recurso constante a processos figurais da Retórica Clássica ( é só se ler Fontannier para
se mergulhar nisso). Que são os que empregamos também quando necessitamos
passar não só a letra do texto, mas o espírito de Anouilh, o que chamamos também de
seu estilo.

(17) on redresse devant la montagne d’eau


se fosse o pau, ou o fuzil, seria on le redresse,
se fosse a própria pessoa seria on se redresse.
Mas no francês coloquial ( “nós estamos conversando!.”... é o que Creonte quer fazer
passar...) pode-se dizer on redresse, para si próprio.
Optamos porém por levantar o fuzil, que pode parecer uma opção justificada apenas
por uma maior obviedade.Por quê?
Bem, se é você que se levanta diante da montanha d’água que está a se abater sobre o
navio e que é ao mesmo tempo a montanha ( tas ) de amotinados que vêm em sua
direção, seu personagem ganha uma conotação mais heróica, penso eu.
Acontece que Anouilh nunca faz Creonte dizer que sua tarefa é de herói, pelo
contrário, insiste que o exercício do poder é coisa comum, de homem comum, é coisa
de DEVER e não heroísmo

(18) Em favor de nossa tese do trabalho poético de Anouilh se fazer nesse


trecho em cima de brincadeiras sonoras e repetições como reforço retórico- processos
a que chamamos também de poético – reparar a seqüência:
bout de bois ( ... ) tire dans le tas (...) Dans le tas!

(19) on tire dans le tas ....atira-se no bolo (de gente).


Mandar bala no bolo, porém, nos permite manter nosso texto brasileiro dentro da
sonância de que falamos na nota 17 acima e outras.

(20)et la chose qui tombe dans le groupe


“e a coisa, corpo que cai” por ” e a coisa que cai no grupo...”
Estamos pegando a mania de ajuntarmos a palavra que explica (corpo) depois da
palavra que é difícil de compreensão ou que pode causar dubiedade em brasileiro ou
que está sendo empregada dentro de um estilo (coisa)...
Exemplo daqui: coisa por corpo- aonde Anouilh se utiliza de uma expressão mais crua
que nós...
Em outros lugares estou certo que foi o melhor ( vide nota 12) .
Nesse exemplo aqui tenho realmente dúvidas, daí a nota.

(21) cramponné à la barre.


Barre é o timão.
Palavra que em português quer dizer: Corinthians.
Optei por brincar com esse medo ( cramponné), cuja velha expressão mundial é
estar agarrado à barra da saia da mãe, para, em seguida cair na palavra exata e
brasileiramente ambígua...
MICHELOTTO & ANOUILH

O processo aqui foi o inverso do usado nas notas 12 e 20.

(22) et qui né pensait qu’à tout donner lui aussi


o verbo dar tem conotação ruim em brasileiro,
seja pelo político”é dando que se recebe”
seja pelo sentido comum de entrega sexual.
Julgo mais prudente, num texto que tem um vocabulário mais rico e refinado- e quero
dizer estranho à cena nacional como um todo - não se arriscar aos pequenos idiotas que
às vezes povoam nossas platéias. O verbo posto exprime a mesma coisa e não deixa
chance ao riso.\

(22,5) Pobre Antígone, com tua flor de pano


Delicada como as das anáguas.

(23) idem para dur em ”Amo um Hemom duro e jovem”


Não fica bem aqui.
(24) Mais si votre vie etc. Ela trata Creonte por Vós em toda a peça..
Comum entre os franceses, incomum entre nós, mesmo sendo ele um Rei.
Uso o tu coloquial sempre, Menos aqui, pois o vós não se refere mais a Creonte, creio,
mas a todo uma concepção mais geral de vida, a uma filosofia-
“esse reino aonde não podemos entrar com nossas rugas, nossa sabedoria, nossa
pança.”
É sobre isso que Anouilh tenta conversar conosco, penso.
Então acho interessante que Antígone inclua nesse “vocês outros”,
tanto Creonte quanto o público.
Daí o Vós.

(25) Si tu te voyais criant ces mots, tu es laide.


Se tu te visses gritando essas palavras, tu és feia.
Fecha essa boca!
Precisavas te ver proferindo (25) tais palavras...
Ficas feia!
Optamos por seqüência de sons em F e P ( Já há cala-te suficientes)
O interessante é a construção aqui de Anouilh, dessa pequenina jóia de frase.
a- Inicialmente a rima interna preciosa de VOYAIT/LAIDE, cheia de problemas.
b- Os sons sibilantes- de uso freqüente nesse texto de víboras e condicionais-
apesar de abundantes (= 5/34), são na verdade restritos- na fala de uma atriz -
a apenas um,
o primeiro, o inaugural SI ( algo como:”si tu te voié crian ce mö, tu é léd”)
c- Processo parecido com 2 dos 5 sons de T ( tu/te/criant/ mots/tu)
d- Por quê me parei tanto aqui para traduzir essa pequenina frase? O que eu deduzo?
Que Anouilh também escrevia para ser LIDO, isso é visto, e não apenas ouvido.
Uma marca curiosa, pois não é exatamente do fazer teatral, mas do fazer literário,
não?
e- Creio que fica também explicada minha escolha do proferir pelo gritar, para que
mais calmos pudéssemos saborear bem a frase de Anouilh e para deixar no
hemistíquio, o sinal das minhas duas escolhas Pro+ Fé.... claro, rindo!
MICHELOTTO & ANOUILH

(26) Em Anouilh: chifonniers. Colocamos três designações da mesma coisa, uma comum,
(lixeiro) outra mais complicada ( gari) e outra popular ( cenourinha, modo pelo qual
são conhecidos em recife os empregados que trabalham à noite, da Empresa Municipal
de Limpeza Urbana, por causa da cor de suas vestes).
Não tenho preferência. E podem ficar os 3, fazendo um crescendo sonoro.

(27) A questão da entrada em cena do VÓS, já foi explicada na nota #24.


Um bom exemplo de que às vezes é TU às vezes VÓS- no próprio texto de Anouilh,
é porque ele faz recurso de um indicador extra para tal.Qual? Esse famoso todos ,
que acrescentamos nessa linha, mas que está nítido e inteiro três frases abaixo dessa:
“Vous avez TOUS quelque chose de laid au coin de la bouche “ etc...

(28) Tu m’ordonnes, cuisinier?


Me dás ordens, Mestre Cuca?
Creio que já há bastante cozinha e cozinheiro por perto. Além de que, ela está
zombando dele... Mestre por Rei e Cuca por cozinheiro, nos parecem as expressões
mais corretas para essa ironia de Antígone, daí o início da frase pelo pronome, em erro
gramatical, coisa que ela comete apenas uma vez em nosso texto, na hora que zomba..
Sim, claro.

(29) L’antichambre est pleine de monde.


Tu veux donc te perdre?
On va t’entendre
Beleza do estofo de um Corneille!
E ainda essa beleza de inversão de sons,
ao modelo de trabalho poético novo de sonâncias e rimas ,
que Joaquim Cardoso criou:
t(1)u ... v(2)eux .. . don(3)c
ßinverso em:
< O(3)n ...
< v(2)a ...
t’(1)en...

(30) Eh bien ouvre les portes.


Justement, ils vont m’entendre.
Tá bom, abre as portas. ‘’E isso aí, eles irão me ouvir.

Pois que ouçam,


Portas, se abram!
Que me ouçam!

No original : dois versos de sétima


Sem saber manter o ritmo da frase em sétima, e para não quebrar a estrutura ritmada de
Anouilh , coloquei 3 de terras em pé quebrado
( = 3+1 fraco, ou u u u - u , na notação latina ).

(31) Laisse-moi maintenant avec tes jeremiades.


Poupa-me agora tua choradeira .
MICHELOTTO & ANOUILH

Todos que conhecem Jeremias sabem que ele ficou sendo o profeta chorão,
O que é uma injustiça com tão belo profeta.
Acho que meu povo desconhece o que é uma jeremiada.
O problema é que se for de crentes o meu povo- dado a razoável onda de crentes atual
-ele não gostará de que chamem profecias de choradeira.
Então...que a palavra desapareça da fazer teatral.
Que pena..
(32) Repetimos os tinha para escandir o texto. Anouilh o escreve como um lamento., como
blues .É uma “complainte”.
(33) Mais um belo exemplo de imagem que lida é de admirável força, mas dita em palco, o
público teria que gastar meia hora só para pensar em sua beleza e creio que não teria
tempo de alcançá-la, a menos que houvesse um silêncio absoluto por 5 minutos após
essa fala de Hemon. Aí está escrito:
Cette odeur défendue et ce bom pain du soir, sous la lampe, quand tu me montrais
des livres dans ton bureau, c’était toi, tu crois?
LITERALMENTE:
Este odor proibido e este bom pão da noite, sob a lâmpada, quando tu me
mostravas livros em teu escritório, eras tu, tu o crês?
Por quê esse odor é proibido?
A leitura permite entender, pois nos dá tempo de repetir indefinidamente sem
passar à próxima maravilha. Textos de teatro como esse de Anouilh tem esse
problema de sobrecarga de beleza figural, bem superior à nossa capacidade de
retê-la auditivamente.
Insisto, ele escreve também para ser lido.
Vamos pois ao odor que é proibido por Creonte e que por isso mesmo o faz
merecer o respeito de Hemon. Respeito, pois é um pai que é capaz de fazer com
que um meninozinho prefira continuar a ver livros em sua biblioteca que descer
para saborear o bom pão da ceia, o pão da noite, cujo odor sobe pelas escadas e
invade o recinto.
A admiração do menino se situa entre o apetite aberto pelo odor e a proibição de
que ele seja satisfeito – já que ainda vai se demorar mais um pouco a ver livros.
Essa foi a sugestão de Creonte naquela noite que pode ter iluminado, mesmo que
com lamparina apenas, essa infância, mas certamente deve nossa velhice.

Ë bom ainda também se lembrar que Creonte afirma:


Nessa tragédia queres um lugar. Só que será na cozinha...
De onde vêm esse odor do bom pão de fim de noite em família.
Hemon jamais pensaria que entre o pão familiar e a lei, Creonte não pensaria
duas vezes em preferir a lei (la “defénse”).
Jamais pensaria que aquela “proibição” era apenas um retardamento de algo que
depois se cumpriria, o ritual familiar, como acontecia na infância.
Não consegue entender que Creonte insiste em que ele saia da infância.
A imagem é quase a da reconstrução da castração no processo edipiano,
como passo de acesso ao universo do simbólico e portanto de acesso ao Eu.
Lacan quem o disse em textos sobre O nome do Pai.
(34) Or.:Quando ela teve que renegá-lo, logo encontrou outra razão imediata.
MICHELOTTO & ANOUILH

(35) Or.: A multidão já sabe e urra ao redor do palácio.


(36) Or.: Pai, a multidão não é nada!
(37) Or.: E pensas que eu posso viver, eu, sem ela?
(38) Or.: Será necessário que aceites, Hemon.
(39) Or.: e ele acaba aceitando ser um homem
(40) Or.: Para ti, é hoje..(40)
(41) Or.: Já está acabado.
(42) Or.: Este odor proibido e esse bom pão da noite.
(43) Or.: Alojamento, aquecedor, alocações familiares .
Puxei para cá.
(44) (Que Creonte quer incorporar todas ao salário, essa é a promessa dele...)
nenhuma dessas palavras é de Anouilh, claro, e deverão sair fora.
Quem propõe incorporar vantagens ao salário é Fernando Henrique, credo!
Fique sossegado É AÚNICA FRASE EM TODO O TEXTO QUE FOI
ACRESCENTADA....)
(45) Or.: Um silêncio. O guarda corta o fumo de rolo para mascar.
Um silêncio. O Guarda enrola um cigarro.
Preferimos que ele fume a que masque...
aqui isso era comum , ou no interior ou com as velhas negras.
Tudo muito longe de nós hoje, penso.
(46) Claro que bête não é besta, mas animal.
Mas aqui, para o guarda achar que está xingando seus colegas, é mais exato bêstas.
Duas bêstas...
Oui.: Deux bêtes

(47) suçant sa mine.


Não achei a expressão. Traduzi aproximado.
Vou buscar o exato quando o texto for para edição.

(48) e se estende por sobre Antígone, no original: il s’étend contre Antígone

(49) “aux petits napperons brodés et aux cadres de peluche, pour s’y couper la gorge”
São as toalhinhas com que se cobre tudo na Europa, entupindo as casas de paninhos.
Não entendo bem de bordado para saber o que é um cadre de peluche.
Vou me informar.
Por enquanto fica assim.
De todo modo é o tipo da imagem se processando por antinomias
- coisa que faz parte de Anouilh –
aqui, pelúcia, de pêlos, por fios cortantes...Achei mais simples colocar fios de ouro
nesses bordados- o que aliás é comum – pois permitem a visualização mais fácil do
público dessa figura, Eurídice, tão cuidadosa com a casa e tão distraída com detalhes
que podem ferir seus filhos. É apenas com eles que Creonte andou se preocupado todos
esses anos e o Coro sabe disso.
(50) Nem sei porque essa nota. Achei simplesmente melhor essa noite ser certa noite e não
uma qualquer.
(51) Também não sei.
(52) Original: Tu es fou, petit. Il faudrait ne jamais devenir grand.
MICHELOTTO & ANOUILH

És louco, pequeno. Seria necessário não vir a ser nunca grande.


Preferimos:
Que história é essa de crescer logo, nunca, rapaz, nunca!
(53) Adiantando-se.....Para o proscênio, claro.
(54) Or.: Antígone s’est calmée maintenant, nous né saurons jamais de quel
fièvre
Antígone se acalmou agora, não saberemos jamais de qual febre.
Além de ser um termo para dizer que morreu (= esfriou)
julgamos mais de acordo com o final em febre:
Antígone agora esfriou.
(55) Um grand apaisement triste tombe sur Thebes
Uma grande tranqüilidade triste tomba sobre Tebas.
Preferimos:
Uma imensa tranqüilidade triste
pesa por sobre Tebas

fim das notas

PARTE I I
MICHELOTTO & ANOUILH
MICHELOTTO & ANOUILH

______________________________________

______________________________________

______________________________________

______________________________________

______________________________________

______________________________________

______________________________________

Em cena, ao abrir das cortinas, Medeia e a Babá


De cócoras, perto de uma carroça ( trailer).
Músicas, cantos vagos ao longe.
Elas escutam.

MEDÉIA
Tás ouvindo?
BABÁ
O quê?
MEDÉIA
MICHELOTTO & ANOUILH

A felicidade.
Ela ronda por perto.
BABÁ
Estão cantando na cidade.
Talvez seja uma festa para eles hoje.
MEDÉIA
Odeio as festas deles.
Eu odeio a alegria deles.
BABÁ
Não somos daqui.
Um silêncio.
Em nosso país é mais cedo, em junho, a festa.
As meninas botam flores nos cabelos
e os meninos se pintam os rostos com o próprio sangue,
e, de manhãzinha, após os primeiros sacrifícios,
começam-se os combates.
Como são belos os jovens da Cólquida quando lutam!

MEDËIA
Cala- te
BABÁ
E depois passam o dia a domar animais selvagens.
E ao cair da noite acendem grandes fogueiras diante do palácio de teu pai,
grandes fogueiras amarelas com madeiras que soltam um bom cheiro.
Tu esqueceste, minha pequena, o odor das ervas de nosso país?

MEDÉIA
Cala-te.
Cala-te, boa mulher!
BABÁ
Ah já tou velha e essa estrada é por demais longa.
Por quê? Por quê saímos de lá, Medeia?
MEDÉIA
Grita
Partimos porque eu amava Jasão
porque eu havia roubado meu pai para ele,
porque eu matei meu irmão para ele,
cala essa boca, boa mulher, cala essa boca,
Da onde tiraste que é bom ficar repetindo sempre as mesmas coisas?

BABÁ
Tinhas um palácio com paredes de ouro
e agora aqui estamos, de cócoras, como duas mendigas,
diante desse fogo que se apaga toda hora.
MEDÉIA
Vá buscar mais lenha.
A Babá se levanta gemendo e se afasta.
MICHELOTTO & ANOUILH

Medeia grita repentinamente


Escuta!
Ela se levanta.
São passos na estrada.
BABÁ
Escuta e depois diz.
Não. É o vento.
Medeia se agacha novamente.
Os cantos são retomados ao longe.
Não o espere, minha gata, ficas remoendo coisas.
Se realmente for uma festa , eles devem tê-lo convidado para ir.
Ele está dançando, teu Jasão, está dançando com as moças dos Pelágios
E nós duas estamos aqui, bestando(1).

MEDÉIA
Grave
Cala-te, velha.
BABÁ
Eu me calo.
Um silêncio.
Ela se põe de quatro para assoprar o fogo.
Ouve-se a música.

MEDÉIA
Imediatamente.
Sente!
BABÁ
O quê?
MEDÉIA
Esse troço de felicidade está fedendo até por sobre essa terra.
Ë olha que eles nos largaram bem longe da aldeia!
Estavam com medo que nós roubássemos as galinhas deles durante a noite!(2)
Ela se levanta e grita.
Mas o que é que eles têm tanto para cantar?
E eu tou dançando, tou? E eu estou cantando, tou?(3)

BABÁ
Eles estão em casa.
Seus trabalhos (4) por hoje findaram.

Um tempo. Ela sonha


Te lembras, hein?
O palácio era branco no final das filas de ciprestes
quando retornávamos de nossas longas caminhadas...
Davas teu cavalo ao escravo e caias por sobre as poltronas.
Aí eu chamava tuas filhas para que te lavassem e te vestissem.
MICHELOTTO & ANOUILH

Eras a dona e a filha do Rei e nada era bastante bonito para ti.
Tiravam-se os vestidos dos cofres e escolhias, calma e nua,
enquanto elas te esfregavam o óleo.
MEDÉIA
Cala de uma vez essa boca, mulher, és estúpida demais.
Tás pensando que eu sinto falta de palácio, de vestidos, de escravos?
BABÁ
Fugir, viver fugindo!
MEDÉIA
Eu poderia fugir sempre.
BABÁ
Caçadas, batidas, desprezadas, sem país, sem casa.

MEDÉIA
Desprezada, caçada, batida, sem país, sem casa, mas não sozinha.

BABÁ
E tu me arrastas por aí contigo, com a idade que tenho?!
E se eu morrer, aonde me deixarás?

MEDÉIA
Num buraco, nem interessa onde, à beira do caminho.

BABÁ
Ele ta te abandonando, Medéia.
MEDÉIA
Grita.
Não!
Ela para.
Escuta.
BABÁ
É o vento.
É a festa.
Ele também não voltará esta noite.
MEDÉIA
Mas que festa? Que felicidade que faz feder até aqui o suor deles, o vinho forte, as frituras?
Povo de Corinto, que tendes tanto a dançar e a cantar?
O que há de tão alegre nesta noite que me aperta,, a mim, que me sufoca?
Ah Babá, minha Babá, estou horrível (5) nessa noite.
Sinto dor e sinto medo como quando me ajudavas a tirar um pequeno de meu ventre....
Ajuda-me, Babá!
Há algo se mexendo dentro de mim como outrora e é algo que diz não a aqueles lá embaixo,
É algo que diz não à felicidade deles.
Ela se agarra mais forte com a velha, tremendo.
Babá, se eu gritar tu meterás teu punho pela minha boca a dentro,
se eu me debater, tu me agarrarás firme, não é?
Não me deixarás sofrer sozinha, não é mesmo?
MICHELOTTO & ANOUILH

Ah segura-me, Babá, segura-me com todas tuas forças.


Segura-me como quando eu era pequenina,
como na noite em que quase morri ao parir.
Eu tenho algo a por no mundo ainda essa noite,
algo de bem mais rude,
de mais vivo que eu mesma.
E nem sei se serei bastante forte para isso...

UM RAPAZ
Entra de repente e para.
É você Medéia?

MEDËIA
Gritando com ele.
Sim! Diz logo! Eu sei!

UM RAPAZ
É Jasão quem me envia.
MEDËIA
Ele não virá essa noite? Ele está ferido? Morto?

UM RAPAZ
Ele me manda dizer que você está salva.
MEDËIA
Ele não voltará, não é?
UM RAPAZ
Ele mandou dizer que voltará, que você precisa esperá-lo

MEDËIA
Não vai voltar para casa? Onde está ele?
UM RAPAZ
Na casa do Rei ,
Na casa de Creonte.
MEDÉIA
Prisioneiro?
UM RAPAZ
Não.

MEDËIA
Ainda gritando.
Sim!
É para ele essa festa?
Fala! Não vês que já sei?
É para ele?
UM RAPAZ

Sim.
MICHELOTTO & ANOUILH

MEDËIA
E estão bebendo?
UM RAPAZ
Seis tonéis abertos em frente ao palácio!
MEDËIA
E os jogos, os fogos e foguetes que partem todos juntos para o céu.
Depressa, depressa pequeno e terás terminado de representar teu papel, poderás voltar lá para
baixo e te divertir.Que te interessa o que vais me dizer?Por que meu rosto te dá medo?Queres
que eu sorria? Pronto, taí: estou sorrindo!...De todo jeito é um,a boa notícia que me dás, já que
todos estão dançando. Rápido, podes ir...eu já sei de tudo.

UM RAPAZ
Ele está casando com Creusas, filha de Creonte. A festa vai ser amanhã de manhã.

MEDÉIA
Obrigado, guri. Vá agora dançar com as meninas de Corinto, vá! Dance até não poder mais,
dance a noite toda.
E quando fores velho, lembra-te que foste tu quem veio dizer isso a Medéia.
UM RAPAZ
Dando um passo adiante em direção de Medéia
E o que é que eu digo para ele?
MEDÉIA
Ele quem?
UM RAPAZ
Jasão.
MEDÉIA
Diga-lhe que eu te agradeci.
RAPAZ sai
MEDÉIA
gritando repentinamente
Obrigado Jasão!Obrigado Creonte!Obrigado noite! Obrigado a todos! Como era tão simples:
estou livre, agora estou livre!
BABÁ
Aproximando se/carinhosamente
Minha águia orgulhosa, minha pequena ave de rapina!!!
MEDÉIA
Deixa estar, mulher!Não preciso mais de tuas mãos. Minha filha nasceu sozinha. E é uma filha
desta vez, ô ódio! Como és novinha...Como és doce, como cheiras bem! Pequena filha negra,
eu só tenho tu no mundo para amar.
BABÁ
Vem Medéia....
MEDÉIA
Deixe-me. Eu estou escutando.
BABÁ
Esqueça a música deles. Não vamos ficar aqui fora.
MEDÉIA
MICHELOTTO & ANOUILH

Eu não a ouço mais. Eu ouço meu ódio. Ó doçura! Ó força perdida! Que foi que ele fez
comigo, babá, com suas grandes mãos quentes? Bastou que ele entrasse no palácio de meu pai
e pousasse uma sobre mim.Dez anos se passaram e só agora sua mão me larga. E eu me
reencontro. Foi sonho? Sou eu. É Medéia! Não é mais esta mulher presa ao cheiro de um
homem, esta cadela deitada a seus pés à espera.Vergonha!Vergonha!Meu rosto está em
fogo,babá! Eu o esperava todos os dias, de pernas abertas, metade amputada de mim...
Humildemente eu era esse pedaço de mim que ele podia dar e tomar, este meio de meu ventre
que era dele. Era preciso que eu lhe obedecesse, que eu sorrisse para ele, que eu me enfeitasse
para ele, para lhe agradar, pois cada manhã ele saia, me levando com ele, a que ficava, ficava
esperando toda feliz que ele me devolvesse a mim mesma.Foi preciso que eu lhe desse esta
pele de carneiro de ouro se ele a quisesse, e lhe desse todos os segredos de meu pai e matasse
meu irmão por ele e o seguisse em sua fuga, criminosa e pobre,mas com ele. Fiz tudo o que
precisava fazer, é isso, e ainda poderia ter feito mais. Tu sabes de tudo isso, boa mulher, tu
também amaste um dia...

BABÁ
Sim, minha lobinha
MEDÉIA
Amputada! Ó sol, se é verdade que venho de ti, porque me fizeste amputada? Porque me
fizeste mulher? Para que estes seios, esta fraqueza,esta chaga aberta no meio de mim? Não
seria lindo um menino chamado Medéia? Não teria sido forte? Não teria o corpo duro como a
pedra, feito para tomar e ir embora depois, firme , intato, inteiro, ele!Ah ele poderia tentar vir
depois, ele Jasão, com suas mãos, tentar botá-las em mim! Uma faca em cada mão- isso!- e o
mais forte mata o outro e vai embora relaxado. Não esta luta em que eu só quero tocar suas
espáduas, esta ferida que me fazia implorar. Mulher!Mulher” Cadela! Carne feita de um pouco
de lama e de uma costela de homem! Pedaço de homem! Puta!

BABÁ
Beijando-a
Você não, Você não Medéia!
MEDÉIA
Eu sim, como todas as outras. Mais fraca e mais idiota que as outras.Dez anos,babá! Mas esta
noite acabou, eu voltei Medéia. Como é bom, babá! Como é bom!
BABÁ
Fique calma, Medéia!
MEDÉIA
Eu estou calma, eu estou doce. Estás vendo como estou doce, baba, como eu falo docemente?
Eu morro. Eu mato docemente dentro de mim, Eu estrangulo docemente.
BABÁ
Vamos. Estás me dando medo. Vamos entrar.
MEDÉIA
Eu também estou com medo

BABÁ
Que é que eles vão fazer conosco agora?
MEDÉIA
MICHELOTTO & ANOUILH

Que pergunta! O que precisamos perguntar é o que é que nós iremos fazer com eles, sua velha!
Eu tenho medo também, mas não é da música deles, dos gritos deles, do rei pulguento deles,
de suas ordens. É de mim, de mim, que tenho medo!Jasão tu a tinhas feito dormir, mas eis que
Medéia se acorda! Ódio! Grande onda de ódio, benfeitora tu me lavas e eu renasço!

BABÁ
Eles vão nos expulsar, Medéia!
MEDÉIA
Talvez.
BABÁ
E iremos para onde?
MEDÉIA
Haverá sempre um lugar para nós, boa mulher, seja deste lado da vida, seja do outro, um pais
onde Medéia será rainha.Ó meu reino negro, tu voltaste também!
BABÁ
Gemendo pela canseira
Vamos ter que empacotar tudo de novo!
MEDÉIA
Ô velha, empacotamos depois.
BABÁ
Depois de quê?
MEDÉIA
Ainda me perguntas?
BABÁ
Que é que, mas o que é que você vai fazer, Medéia?
MEDÉIA
O que eu fiz por ele quando trai meu pai e tive que matar meu irmão para fugir, o mesmo que
fiz ao velho Pélias quando tentei fazer de Jasão o rei de usa ilha, o que eu fiz dez vezes por ele,
mas desta vez o farei por mim.
BABÁ
Estás louca, não podes fazê-lo!
MEDÉIA
O que é mesmo que eu não posso?Eu sou Medéia, estou só, abandonada diante dessa carroça,
à beira deste mar estrangeiro, cassada, odiada, injuriada, então nada é demais para mim!
Música mais forte ao longe. Medéia grita mais forte ainda
Que cantem e que cantem depressa o canto do casamento deles!Que eles a enfeitem logo, a
noiva, em seu palácio. Há um bom caminho ainda até o casamento amanhã...Ah Jasão, tu me
conheces bem, sabes bem a virgem que tiraste da Cólquida!Que é que estás pensando?
Que eu iria começar a chorar? Eu te segui em sangue e crimes, será preciso sangue e crime
para que eu te abandone.
BABÁ
Agarrando-se a ela

Cala-te, cala-te te suplico! Afunda teus lamentos no fundo de teu coração, afoga aí teu ódio.
Aguenta firme. Esta noite eles estão mais fortes que nós.
MEDÉIA
Isso vai dar em que, minha babá?!
MICHELOTTO & ANOUILH

BABÁ
Você vai se vingar, minha lobinha, você vai se vingar! Você lhes fará mal um dia, fará mesmo.
Mas nós duas não somos ninguém aqui. Só duas estrangeiros em sua carroça com seu velho
cavalo, duas ladras de pouca coisa, apedrejadas aqui e ali pelos garotos de rua. Espera mais um
dia. Espera até mais um ano, já já serás a mais forte.
MEDÉIA
Mais forte que nesta noite?Nunca!

BABÁ
Mas o que pode fazer nesta ilha inimiga? Colcos está longe e de Colcos mesmo, nossa pátria,
você foi expulsa. Jasão nos abandonou agora, o que nos resta então?
MEDÉIA
Eu!
BABÁ
Pobrezinha! Creonte é o rei e ele nos toleraram sobre esta terra só porque ele quis.Basta que
ele diga uma só palavra, que ele dê licença, e eles aparecerão com suas facas e cacetes. E nos
matarão.
MEDÉIA
tranquilamente
Eles nos matarão. Mas já será um pouco tarde.
BABÁ
Medéia, eu sou velha, mas não pretendo morrer! Eu te acompanhei, deixei tudo por você. Mas
a terra ainda está cheia de coisas boas para se fazer, o sol ainda brilhará no céu, a sopa nos
esperará

quente ao meio dia, as pequenas peças que ganhamos estarão em nossas mãos, a gota que nos
esquenta o coração antes de dormir (6)
MEDÉIA
Empurrando-a para longe dela com os pés, com desprezo

Cacareco! Eu também ontem queria viver, mas agora não se trata mais de viver ou morrer
BABÁ
Agarrada em suas pernas
Eu quero viver, Medéia!
MEDÉIA
Sei bem,, todos só querem viver. E é por isso mesmo que Jasão está indo embora.
BABÁ
Repentinamente ignóbil
Tu não o amas mais. Tu não o desejas mais há muito e muito tempo.trancados nesta carroça a
gente acaba sabendo de tudo. Primeiro sinal: ele te disse uma noite que fazia muito calor e
que ele queria botar o colchão lá fora. Você permitiu e eu te ouvi suspirar feliz por ter a cama
só para você mesma. Mata-se por um homem que nos prende ainda a ele, não por um que a
gente deixa ir dormir lá fora.

MEDÉIA
MICHELOTTO & ANOUILH

Pega-a pelo pescoço e a levanta brutalmente até à altura de sua vista


Cuidado mulher!Tu sabe muito e tu fala demais. Eu bebi leite em teu peito, tá bom,mas já
tolerei demais todas tuas lamentações. E , sabes bem, não foi o leite a causa de eu ter crescido.
Eu não te devo mais do que à cabrita que poderia ter me dado leite também.Então, me escuta:
tu já falou demais dessa porcaria de tua carcaça, dessa tua gota e desse teu sol sobre a carne
podre de teu corpo... Vá limpar a cozinha vá! Vá varrer por aí com os outros descascadores de
batata de tua raça! Você não está à alturas desse jogo que nós jogamos agora. E se você se
ferrar nele, seja por descuido ou desconhecimento, é pena, mas que se dane!
Joga-a brutalmente ao chão.
BABÁ
Ela grita
Cuidado, Medéia, eles estão chegando!
MEDÉIA
Volta-se, Creonte está diante dela rodeado por 2 ou 3 homens
CREONTE
É você, Medéia?
MEDÉIA
Sou eu
CREONTE
Sou Creonte, o rei desta vila
MEDÉIA
Salve!
CREONTE
Contaram-me tua história. Teus crimes são conhecidos aqui. À noite, em todas as ilhas desta
costa, as mulheres as contam aos seus filhos para lhes dar medo.Eu te tolerei alguns dias em
nossas terras, mas agora deves partir.

MEDÉIA
Que mal fiz às pessoas de Corinto? Roubei dos pobres? O rebanho deles adoeceu? Envenenei
suas fontes ao buscar nelas a água de minha refeição?
CREONTE
Não, nada disso ainda. Mas tudo isso podes vir a fazer qualquer dia desses. Vai-te embora.
MEDÉIA
Creonte, meu pai também é rei.
CREONTE
Eu sei. Vá reclamar lá em Colcos...
MEDÉIA
Que seja, voltarei para lá.Não assustarei por mais tempo as matronas de tua cidadezinha, meu
cavalo não te roubará por mais tempo o capim raro em tua terra. Volto para Colcos se aquele
que me tirou de lá me levar de volta.
CREONTE
Que você quer dizer com isso?
MEDÉIA
Entregue-me Jasão.
CREONTE
Jasão é meu hóspede, filho de um rei que foi meu amigo e ele tem liberdade sobre seus atos
MEDÉIA
MICHELOTTO & ANOUILH

Por que cantam lá na cidade? Por que esses fogos de artifício, essas danças, esse vinho de
graça?Se esta é a última noite que me dão aqui, por que esses teus honestos corintianos me
impedem de dormir?
CREONTE
Vim te dizer isso também. Festejamos esta noite as bodas de minha filha. Jasão se casa com
ela amanhã.
MEDÉIA
Longa vida e eterna felicidade para os dois!
CREONTE
Eles não estão muito interessados em teus votos.
MEDÉIA
Por que recusá-los Creonte? Convide-me também para a festa. Apresente-me tua filha. Posso
lhe ser útil, sabias? Fui mulher de Jasão por dez anos. Tenho muito que ensinar à menina, já
que ela o conhece apenas há alguns dias.
CREONTE
É para que esta cena não aconteça que decidi que você deixe Corinto hoje mesmo à noite.
Atrela o cavalo, apronta as malas porque você tem uma hora para cruzar a fronteira.Estes
homens irão te fazer companhia.
MEDÉIA
E se eu me recusar a sair daqui?
CREONTE
Os filhos do velho Pélias, a quem você assassinou,pediram sua cabeça a todos os reis da
região. Se você ficar, eu te entrego a eles.
MEDÉIA
Eles são teus vizinhos. São fortes. Entre reis trocam-se tais favores.porque você não faz esse
favor a eles?
CREONTE
Jasão me pediu para te deixar ir embora.
MEDÉIA
Bom menino! Eu preciso lhe agradecer, não é mesmo? Dá para me ver torturada pelos
tessálios no dia mesmo de seu casamento? Dá para me ver no processo, há algumas léguas de
Corinto, declarando a razão pela qual eu matei Pélias? “Pelo genro, honestos juízes, pelo genro
honrado deste vosso bom vizinho com o qual vós mantendes as melhores relações possíveis!”
Fazes teu trabalho de rei muito, mas muito, irresponsavelmente, Creonte!
Eu tive tempo de aprender no palácio de meu pai que não é assim que se governa.É melhor me
matar o mais rápido possível, sabias?
CREONTE
Ameaçadoramente
É o que eu devia mesmo fazer. Mas prometi te deixar partir. Então, tens uma hora.
MEDÉIA
Plantando-se na frente dele
Está velho, Creonte! És rei já há muito tempo.. Viste uma multidão de homens escravos em
tua vida. Já fizeste do bom e sobretudo do pior. Olha-me bem dentro dos olhos e tenta me
reconhecer.Sou Medéia. A filha de Eates, que cortou a garganta de outras quando precisou e
eram bem mais inocentes que eu, eu te garanto. Eu sou de tua raça. Da raça dos que julgam e
decidem sem voltar atrás e sem remorsos. Não estás agindo como rei, Creonte!
MICHELOTTO & ANOUILH

Se queres que Jasão fique com tua filha, manda-me imediatamente à morte, eu, àquela velha ,
às crianças que estão dormindo lá embaixo. E mata também o cavalo. Queima tudo isso depois
com dois homens de tua confiança e dispersa as cinzas ao vento. Que não reste de Medéia
senão uma mancha negra delimitando este capim e um conto, que agora sim amedrontará as
crianças de Corinto à noite.
CREONTE
Por que queres morrer?
MEDÉIA
Por que queres que eu viva? Nem tu, nem eu, nem Jasão, nenhum de nós tem a menor vontade
de que eu ainda esteja viva daqui a uma hora, sabes bem disso.
CREONTE
Faz um gesto. Diz de repente em tom de ameaça
Eu não amo mais derramar sangue
MEDÉIA
Então, é o que digo: estás velho demais para continuar rei! Coloca teu filho em teu lugar, que
ele faça o trabalho que é preciso fazer enquanto vais cuidar dos vinhedos ao sol.
Pois só serves para isso agora!
CREONTE
Orgulhosa! Fúria! Estás pensando que vim aqui para te pedir conselho?

MEDÉIA
Não, não vistes para isso, Mas aproveita que eu estou te dando. É meu direito. E o teu é o de
me fazer calar a boca, se ainda tens alguma força. É simples assim.

CREONTE
Eu prometi a Jasão que irias embora sem que nada te acontecesse de mal.
MEDÉIA
Sem sofrimento?!!! E não partirei sem sofrimento, como tu dizes. Mas seria realmente bonito
se eu partisse numa boa, quem sabe numa muito boa...legal se eu sumisse assim puf! Uma
sombra apenas, uma lembrança, um erro lamentável essa tal de Medéia zanzando por ai
durante dez anos. Foi tudo apenas um sonho de Jasão! Pois ele pode me botar para escanteio,
pode se esconder atrás do saiote de teus guardas, atrás de teu palácio, atrás da inocência de tua
filha, acabar te sucedendo como rei de Corinto que mesmo assim ele saberá que seu nome e o
meu estarão unidos por todos os séculos dos séculos.Jasão-Medéia! Isso nunca mais poderá ser
separado. Expulse-me, mate-me, dá na mesma.
Com ele tua filha casa comigo também, queiras ou não, se o aceitas, me aceitas.
Grita com ele
Sê rei, Creonte! Faze o que tens que fazer! Expulsa Jasão. De meus crimes, a metade é dele, a
mão que irá tocar a clara pele de tua filha estão tingidas pelo mesmo sangue das minhas. Dê
uma hora, até menos, para nós dois. Nós já estamos habituados a fugir após cada um de nossos
golpes sujos. Aprontar as malas para nós é coisa rápida, te garanto.
CREONTE
Não. Parte sozinha.
MEDÉIA
De repente, mansa.
Creonte. Eu não quero te suplicar.Eu não posso. Meus joelhos não pode se dobrar, minha voz
não sabe se fazer humilde.Mas és humano ainda, pois não soubestes te decidir a favor de
MICHELOTTO & ANOUILH

minha morte. Não me deixes partir só. Devolva o navio à exilada, devolva-lhe seu
companheiro. Eu não estava só quando vim. Porque fazer distinção entre nós dois na hora de
partir? Foi para Jasão que matei Pélias, trai meu pai e massacrei meu irmão inocente quando
fugi. Eu sou dele, sou sua mulher e cada um de meus crimes é também e apenas um crime
dele.
CREONTE
Mentes. Eu examinei tudo com cuidado.Jasão é inocente se separado de ti, sua causa é
defensável, a sujeira é s[o tua.... Jasão é um dos nossos, filho de Carlos,(7) um de nossos Reis,
sua juventude, como a de outros talvez tenha sido louca, mas agora ele já é um homem e pensa
como nós. Só tu é que vens de longe, só tu és estrangeira aqui com teus malefícios e teu ódio.
Retorna a teu Cáucaso, encontra um homem entre os de tua raça, um bárbaro como tu e deixa-
nos sob este céu de razão, à borda deste mar sempre igual, que nada tem a ver com tuas
paixões desordenadas e teus gritos.
MEDÉIA
Tempo
Está bem, partirei. Mas meus filhos a que raça pertencem? A do crime ou a de Jasão?
CREONTE
Jasão pensou que eles só atrapalhariam tua fuga. Deixe-os conosco. Eles crescerão em meu
palácio. Eu te prometo minha proteção para eles.

MEDÉIA
mansa
Devo dizer muito obrigado mais uma vez, não é mesmo?Vocês são humanos. Tem mais: são
justos. Todos. E nadinha de ódio.
CREONTE
Guarda teus agradecimentos. Parte. O tempo já está se passando e quando a lua estiver no alto
do céu, nada mais te protegerá em Corinto.
MEDÉIA
Apesar de bárbara, apesar de estrangeira, apesar de caucasiana rude, no Cáucaso de onde
venho Creonte, as mães prezam sua prole e mantêm seus filhos agarradas a elas, como todas as
outras. Os animais das florestas também. Eles dormem uns perto dos outros.Esses gritos, essas
tochas no meio da noite, essas mãos desconhecidas que os agarram para tomá-los de mim,
talvez seja um pouco demais para que paguem pelos crimes de sua mãe. Dê-me até amanhã à
noite. Eu os acordarei pela manhã como todos os dias e os mandarei para o palácio. Creia-
me,Medéia, como um rei. Logo que eles dobrem na curva do caminho eu já estarei de partida.
CREONTE
Olha-a por um instante em silêncio e logo após diz
Que assim seja.
E acrescenta imediatamente, sem perdê-la de vista um instante

É como disseste: estou ficando velho. Uma noite por aqui é demais para ti.É tempo suficiente
para dez crimes. Eu deveria rechaçar teu pedido. Mas já matei demais também, Medéia. Eu
também. E nas cidades em que entrei conquistador, à frente de meus soldados bêbados, foram
muitas as crianças assassinadas. E é em troca disso que eu entregarei ao destino a noite
tranqüila daqueles teus dois filhos ali.Que ele se sirva disso, se quiser, para causar minha
perda.
MEDÉIA
MICHELOTTO & ANOUILH

Sai seguido dos homens.


Logo em seguida o rosto de Medéia se ilumina com toda sua força
e ela grita para Creonte, dando cusparadas em sua direção.
Se confiante Creonte! Confia em Medéia! Às vezes precisamos dar uma mãozinha ao destino.
Mas leões não tem mãos. Perdeste as garras e agora estás até a rezar, estás a tentar salvar
crianças da morte....Ah estás pensando em deixar aqueles dois lá dormir tranquilos, porque
alguma coisa começa a se remexer no fundo de teu peito quando estás só em teu palácio vazio,
após o almoço e aí começas a pensar em todos aqueles que mataste. É teu estômago, velha ave
de rapina (8) que está apodrecendo. Só isso. Come teus ensopados, passa teus pós no rosto e
não te enterneça mais contigo mesmo, que és tão bom, aquele velho Creonte que conheces tão
bem, mas que claro, também cumpriu sua cota de pescoços de inocentes, cortados quando
ainda tinhas dentes e membros sólidos e fortes.
Entre os animais, eles matam os velhos lobos para evitar que tenham esses acessos de
arrependimento póstumo, esses ataques de auto-terrnura.Nem espere que terás direito a eles.
Eu sou Medéia, seu velho crocodilo! Minha medida seria justa, casos os deuses quisessem
aceitá-la. O bem e o mal, ambos me conhecem. Eu sei que quando se paga se paga à vista, que
todos os golpes são bons e que é preciso se aproveitar deles o mais rápido possível..E já que
teu sangue esfriou e tuas glândulas mortas te deixaram covarde o bastante para me conceder
essa noite a mais, eu vou te fazer pagar por isso.
Grita para a Babá
Façamos as malas, velhota! Embarca tua marmita, dobra teus lençóis, atrela teu cavalo. Em
uma hora estaremos de partida.
JASÃO
Aparecendo
Aonde você vai?
MEDÉIA
Encarando-o
Estou fugindo,Jasão, estou fugindo! Não é novidade para mim mudar de endereço. Mas a
razão disso dessa vez é novidade, pois até agora foi por ti que eu fugi
JASÃO
Eu vim atrás deles. Esperei que se fossem para falar sozinho com você
MEDÉIA
Tens ainda alguma coisa a me dizer?
JASÃO
Você não acredita, sei. Em todo caso eu tenho que escutar o que você tem para me dizer antes
de partir
MEDÉIA
E não tens medo?
JASÃO
Claro.
MEDÉIA
Indo docemente até ele
Deixa eu te olhar....Eu te amei. Durante 10 anos eu dormi contigo. Envelheci como tu?

JASÃO
Sim.
MEDÉIA
MICHELOTTO & ANOUILH

Eu te revejo em pé, como tua primeira noite na Cólquida. Esse herói moreno, acabando de
descer de seu barco, essa criança mal criada que queria o ouro da Pele Dourada e que não se
podia deixar morrer, eras tu mesmo?
JASÃO
Era eu.
MEDÉIA
Eu deveria ter te deixado ir sozinho enfrentar os touros! Sozinho você deveria ter ido contra os
gigantes que surgiam armados de dentro da terra, sozinho contra o dragão guarda da Pele
Dourada.
JASÃO
Talvez devesse.
MEDÉIA
Estarias morto agora. E como teria sido bem mais fácil um mundo sem Jasão!
JASÃO
Um mundo sem Medéia também! Também eu sonhei com isso.
MEDÉIA
Mas este mundo só se entende com Jasão e Medéia, e é melhor que se o aceite como é. E
poderás pedir ajuda à vontade a teu sogro, colocar teus homens para me levar para a fronteira,
colocar um mar ou dois entre nós...Um mar ou dois entre nós não é o bastante, sabes bem. Por
que o impediste de me matar?
JASÃO
Porque você foi minha mulher por um longo tempo, Medéia. Porque eu te amei.
MEDÉIA
E não sou mais?
JASÃO
Não.
MEDÉIA
Feliz Jasão finalmente livre de Medéia! Foi por acaso teu amor repentino por essa guria de
Corinto, foi seu leve e acre cheiro de mijo, seus joelhos fechados de virgenzinha que te
livraram de mim?

JASÃO
Não.
MEDÉIA
Foi o quê então?
JASÃO
Você.
Tempo. Estão cara a cara.Olham-se. Ela de repente grita
MEDÉIA
Não ficarás jamais livre de mim, Jasão! Medéia será sempre tua mulher! Podes me exilar, me
estrangular daqui a pouco, e quando não puderes mais me ouvir gritar, nunca, nunca mais
Medéia sairá de tua memória! Olha bem para essa cara onde só podes ler ódio, olha-a com a
tua raiva. O rancor e o tempo podem deformá-la, o vício pode criar sulcos nela. Um dia ela
será o rosto de uma velha mulher ignóbil de quem todos terão horror, mas tu, Jasão, tu
continuaras a ler neste rosto, até o fim de teus dias, o rosto de Medéia!
JASÃO
Não. Eu o esquecerei.
MICHELOTTO & ANOUILH

MEDÉIA
Acreditas mesmo nisso? Vais beber em outros olhos, chupar a vida em outras bocas, tirar teu
pequeno prazer de homem onde puderes. Oh terás outras mulheres, fique sossegado,as terás
por milhares, logo tu que não aguentavas mais ficar apenas com uma. Nunca terás o bastante
para procurar esse reflexo em seus olhos, esse gosto entre seus lábios, esse cheiro de Medéia
entranhado nelas.
JASÃO
É tudo de que pretendo fugir.
MEDÉIA
Tua cabeça, a porra de tua cabeça de homem pode querer isso, mas tuas mãos derrotadas
buscarão no escuro, independente do que queiras, por sobre esses corpos estranhos a forma
perdida de Medéia!
Tua cabeça te dirá que elas são milhares de vezes mais jovens ou mais belas. Então não feche
os olhos Jasão, não deixe nada para depois. Tuas mãos obstinadas me buscariam no corpo de
tua mulher, mesmo que seja contra teu desejo. E acabarás por pegar, por fim, as que parecerão
comigo, as Medéias novas em teu leito de velhice. E quando em algum lugar da Terra a
verdadeira Medéia não for mais que um velho saco de peles cheio de ossos, irreconhecível,
bastará uma imperceptível largura das ancas, um músculo mais curto ou mais longo, para que
tuas mãos rejuvenescidas na ponta de teus velhos braços, se lembrem ainda e se espantem por
não encontrar o que procuram. Corta essas tuas mãos, Jasão, corta-as imediatamente. Troca de
mãos se queres um dia ainda amar alguém.
JASÃO
Você pensa que lhe deixo para poder encontrar um outro amor, é isso? Você pensa que é para
recomeçar de novo? Não é apenas você que eu odeio, é o amor, Medéia!
Tempo. Eles ainda se olham.
MEDÉIA
Para onde queres que eu vá? Para onde me mandas? Chegarei à Fásia, à Cólquida, ao reino de
meu pai de campos banhados com o sangue de meu irmão? Me expulsas. Quais terras me
ordenas ganhar sem ti? Quais mares ainda estão livres? Os detróitos do Ponto onde passei
atrás de ti, enganando, mentindo, roubando por ti? Lemos, onde ninguém nunca se esqueceria
de mim?A Tessália onde sou esperada para vingar um pai, assassinado por ti? Todos os
caminhos, à medida que os abria para ti, os fechava para mim. Sou Medéia, a carregada de
horror e crimes. Tu podes não me conhecer mais, mas eles, eles me reconhecerão sempre.
Situação embaraçante, heim, para um velho cúmplice! Você tinha mesmo era que me deixar
matar, não é mesmo?
JASÃO
Eu salvarei você.
MEDÉIA
Vais me salvar? Vais salvar o que? Esta pele usada e gasta, esta carcaça de Medéia, que só lhe
serve para arrastar por aí a fora sua chatice e seu ódio. Um pedaço de pão e uma casa em
algum lugar e que ela envelheça, não é mesmo, em silêncio e que. Enfim, não se ouça mais
falar dela! Por que és tão covarde Jasão? Por que não vais até o fim? Só há um lugar, uma
morada onde Medéia calar-se-á de vez.Podes me dar esta paz que quererás que eu tenha, para
poder viver. Vá dizer a Creonte que topas fazê-lo. Vai ser difícil, mas vai durar só um
minuto.Já mataste Medéia hoje, sabes bem disso. Medéia está morta. Qual o problema com um
pouquinho mais de sangue de Medéia? Uma poça na terra que será lavada depois, uma
MICHELOTTO & ANOUILH

caricatura travada num rictus de horror que será escondida em uma terra qualquer, dentro de
um buraco.Um nada. Mata, Jasão!Eu não aguento mais esperar. Vá dizer a Creonte.
JASÃO
Não.
MEDÉIA
Mais docemente
Por quê? Acreditas ser algo demais um músculo que se rasgue, uma pele que se rebente?
JASÃO
Não quero sua morte. Sua morte ainda será você. Eu quero esquecer. E a paz.
MEDÉIA
Não terás nenhum dos dois jamais, Jasão.Perdeste-os na Cólquida naquela noite, dentro da
floresta quando me tomaste em teus braços. Morta ou viva, Medéia estará lá, como guarda
diante de tua alegria e da tua paz.Este diálogo que começaste com ela, só poderá terminar com
a morte. Após as palavras de amor e ternura, devem vir os insultos e as cenas, é apenas ódio
agora, está bem, mas é sempre com Medéia que conversas. O mundo é Medéia para ti e para
sempre.
JASÃO
O mundo então para ti sempre foi Jasão?

MEDÉIA
É isso.
JASÃO
Mas você esquece rápido. Eu não vim me encontrar com você para uma última cena de casal.
Esta camada em que você pretende nos prender ambos para a eternidade, quem foi mesmo que
rompeu primeiro?Quem foi a primeira que aceitou outras mãos pousadas sobre sua pele, o
peso de um outro homem sobre seu ventre?

MEDÉIA
Eu!
JASÃO
Eu cheguei a pensar que você tivesse esquecido porque fugimos de Naxos
MEDÉIA
Tu já estavas caindo fora há muito tempo. Teu corpo repousava ao lado do meu cada noite,
mas em tua suja cabeça de homem, fechada, já estava sendo forjada outra felicidade sem mim.
Então, fui eu quem tentou fugir primeiro, tá certo!
JASÃO
É uma maneira cômoda essa de fugir
MEDÉIA
Nem tanto cômoda assim. Tás vendo: eu não posso mais fazê-lo! Essas mãos, esse cheiro, este
prazer que tu nem me davas mais, eu os odiei imediatamente. Eu te ajudei a matá-los, eu te
disse a hora de fazê-lo. Fui tua cúmplice contra eles. Eu os vendi para ti. Lembras ou
esqueceste daquela noite em que te disse”Vem, está ai, quer pegar?”
JASÃO
Não me fale nunca mais daquela noite.
MEDÉIA
Eu fui abjeta, não fui?Duas vezes. E me desprezavas e me odiavas com todas tuas forças e
tudo o que eu podia esperar de ti era apenas este olhar frio- mas, de todo jeito, foi a ti que pedi
MICHELOTTO & ANOUILH

para me levar. E olha que ele era bonito, Jasão, e como era bonito meu pastor de Naxos! E
ainda, ele era jovem e me amava.
JASÃO
Porque você não disse a ele para me matar? Hoje eu estaria dormindo longe de você, tudo
estaria acabado.
MEDÉIA
Não pude! Eu precisei me colar em teu ódio, como uma mosca para poder retomar meu
caminho contigo. Para que eu pudesse me deitar mais uma vez no dia seguinte ao lado de teu
corpo enraivecido para poder enfim dormir. Pensas que eu não fui mil vezes mais desprezada
por tua causa? Eu urrei sozinha diante de meu espelho e me rasguei com minhas unhas para
não ser essa cadela que voltava sempre para dormir de novo em sua toca.Os animais, esses se
esquecem e se abandonam pelo menos e o desejo morre. Contudo eu te conheço, herói de
meninas de Corinto. Eu te botei na balança e você pesou. Eu sei o que podes dar. Estou ainda
por aqui, estás vendo?
JASÃO
Creio que você fez seu pastor ser assassinado um pouco depressa demais!

MEDÉIA
Jogando na cara dele
Eu tentei Jasão, não soubeste?Eu tentei ainda com outros depois, não soubeste? Mas não pude.
Não pude, Jasão
JASÃO
Tempo. Mais calmo agora
Pobre Medéia!
MEDÉIA
Indo contra ele com extrema fúria
Eu te proíbo de ter pena de mim!
JASÃO
Desprezo, posso? Pobre Medéia abarrotada de Medéia! Pobre Medéia a quem o mundo não
reenvia a não ser a Medéia mesmo. Você não (9)pode impedir de se ter pena, pois ninguém
nunca terá pena de você. E eu menos ainda, caso eu conhecesse apenas hoje sua história. O
homem Jasão te julga como os outros homens. E seu caso será acertado para sempre. Medéia!
É um belo nome. E no entanto apenas você o terá em toda história dos homens. Orgulhosa!
Carrega essa informação aí lá para o pequeno canto sombrio onde você guarda suas alegrias:
não haverá nunca mais uma outra Medéia por sobre a Terra! As mães jamais chamarão suas
filhas com este nome. Estarás sozinha até o fim dos tempos, exatamente como neste presente
minuto.

MEDÉIA
Melhor para mim!
JASÃO
Melhor?! Vamos, fique de pé!Feche os punhos, cospe, se arraste!Quanto maior o número dos
que te odeiam melhor, não é isso?Quanto mais o círculo aumentar a seu redor, tanto mais você
se sentirá só, tanto mais você sofrerá para poder odiar mais e mais isso tudo será muito bom
para você. Bem, esta noite você não está tão sozinha, que azar! Pois bem,eu, que foi quem
mais sofreu por você e que você escolheu entre todos para devorar, eu tenho pena de você.
MEDÉIA
MICHELOTTO & ANOUILH

Não.
JASÃO
Tenho pena da Medéia que só conhece a ela mesma, que não sabe dar a não ser para tomar de
volta, agarrada sempre a si mesma, envolta num mundo visto apenas por você...
MEDÉIA
Guarda tua pena! Medéia ainda que ferida deve ser temida! É melhor te defenderes!
JASÃO
Você está com jeito de um pequeno animal estripado que se debate enrolada nas próprias
tripas, que ainda abaixa a cabeça para atacar.
MEDÉIA
Isso vai acabar mal para os caçadores, Jasão,se eles se permitirem crises de ternura que nem
esta tua em vez de recarregar as armas. Sabes bem de que eu ainda sou capaz, não é mesmo?
JASÃO
Eu estou sabendo.
MEDÉIA
Sabe que eu não me enternecerei com você, que não me porei a ter pena no último minuto, eu
não! Você me viu encarar as coisas e arriscar tudo outras vezes por bem menos, não foi?
JASÃO
Foi.
MEDÉIA
Então, estás querendo o quê?!Porque vens enrolar tudo com tua pena? Eu sou desprezível,
sabes disso. Eu te trai como os outros. Eu só sei fazer o mal. Tu não me aguentas mais e
pressentes bem o crime que preparo. Em guarda, vá! Recua! Chama os outros. Defenda-te em
vez de ficar me olhando assim.

JASÃO
Não.
MEDÉIA
Eu sou Medéia! Eu sou Medéia, não te enganes! Medéia que nunca te deu nada além de
vergonha. [Menti, trapaceei, roubei, sou uma porca...](10) É por minha causa que foges e que
a teu redor tudo se mancha de sangue. Sou tua infelicidade. Sou tuas feridas, as cascas de tuas
feridas. Sou tua juventude perdida, teu lar dispersado, tua vida errante, tua solidão, teu mal
vergonhoso. Sou todos teus gestos sórdidos , teus pensamentos mais sujos. Sou orgulho,
egoísmo,sacanagem, vicio, crime. Fedo! Eu fedo,Jasão! Todos tem medo de mim e se
afastam.Sabes que sou tudo isso e que em breve serei apenas a decadência de tudo isso, a
feiúra, a velhice odiosa. De tudo o que é ruim e feio por sobre a terra, fui eu que recebeu o
depósito . Então, já que sabes disso, porque não paras de me olhar assim? Não quero tua
ternura. Não quero teus olhos a me olhar doces.
Grita na cara dele
Para, para Jasão! Ou vou acabar te matando para que não me olhes mais assim!
JASÃO
Tranquilamente
Talvez seja o melhor, Medéia.
MEDÉIA
Olha para ele e diz com simplesmente
Não. Tu não
JASÃO(11)
MICHELOTTO & ANOUILH

Vai até ela e pega em seu braço


Então me escute. Não posso lhe impedir de ser quem você é. Não posso lhe impedir de fazer o
mal que você carrega consigo. Os dados estão lançados. Esse conflitos insolúveis se
desenrolam como os outros e alguém já sabe como tudo isso irá acabar. Não posso impedir
nada. No máximo representar o papel que me deram já há muito tempo. Mas posso ainda
voltar a dizer tudo. E se eu devo, nesta noite,estar entro o número dos mortos dessa histórias
eu quero morrer como se me tivessem lavado as minhas palavras.
Eu te amei, Medéia, primeiro como todo homem ama uma mulher. Você sem dúvida provou
apenas deste amor, mas eu te dei mais que um amor de homem, talvez sem que você o tenha
reconhecido.
Eu me perdi em você como a criança se perde na mulher que o colocou no mundo. Você foi
por muito tempo minha pátria, minha luz, o ar que eu respirava, a água que eu precisava beber
para viver e meu pão de todos os dias. Quando te encontrei em Colcos você era apenas a moça
mais bela e mais dura que as outras que conquistei com a Tosa Dourada(12). É este Jasão que
você lamenta? Eu te peguei como peguei o ouro de teu pai para te gastar rápido, para te usar
rapidamente como ele. E depois, deus meu, ainda tinha minha nau, meus fiéis companheiros e
outras aventuras a enfrentar. O mundo era Jasão,a alegria de Jasão, sua coragem ,sua força, sua
fome. E se ambos tínhamos dentes de predador, claro um dia iríamos ver quem devoraria o
outro...
Até que uma noite e uma noite igual a qualquer outra noite, você adormeceu à mesa como uma
menininha, a cabeça apoiada em mim. E nesta noite em que você talvez apenas estivesse
cansada demais de uma estrada por demais longa, eu senti de repente quer tinha que tomar
conta de você. Um minuto antes e eu ainda era Jasão, e ainda eu só tinha que buscar meu
próprio prazer neste mundo, fosse como fosse. Bastou que você se calasse, que sua cabeça
escorregasse cansada por sobre meu ombro para que tudo se acabasse. Todos continuaram a
rir e a falar a meu redor, mas eu havia acabado de abandoná-los. O jovem Jasão acabava de
morrer. E passei a ser seu pai e fui sua mãe, pois eu era aquele que carregava a cabeça de
Medéia adormecida. O que sonhava dentro deste pequeno cérebro de mulher, enquanto eu
cuidava de você? Levei você para nossa cama e não te amei, nem mesmo desejei naquela
noite. Apenas fiquei olhando você dormir. A noite estava calma, nós havíamos nos adiantado
de muito em relação aos perseguidores de seu pai, meus companheiros vigiavam armados ao
redor de nós e contudo eu não ousei fechar meus olhos naquela noite. Eu fiquei alerta para te
defender nesta noite se preciso fosse. Contra nada, foi o que aconteceu, mas eu fiquei alerta.
De manhã, retomamos a fuga e os dias foram se assemelhando uns aos outros e pouco pouco
todos esse garotos, os primeiros que me tinha seguido por mares desconhecidos, todos esses
guris de Iolcos, sempre prontos a atacar monstros com suas armas frágeis a apenas um sinal
meu, todos começaram a ter medo. Descobriram que que não era mais o chefe deles, que eu
não os levaria nunca mais a buscar lugar nenhum agora que eu te havia descoberto. Os olhos
deles se tornaram tristes, até mesmo de desprezo, mas não me culparam de nada. Dividimos o
ouro e nos separamos. Aí o mundo tomou esta forma. A forma que eu o via manter todo dia. O
mundo tornou-se Medéia...
Esqueceu –se desses dias em que nada fizemos, nada fizemos que não fosse juntos? Dois
cúmplices diante de uma vida dura, dois irmãos que carregavam seus fardos, lado a lado,
sempre iguais, seja na vida seja diante da morte, de mangas arregaçadas e sem papos furados,
cada um com sua metade das ferramentas, cada um com sua faca para os golpes violentos,
cada um ficando com sua metade de cansaço, sua metade da garrafa nas refeições. Eu te
envergonharia se te estendesse a mão quando a passagem era difícil, se eu tentasse te ajudar.
MICHELOTTO & ANOUILH

Jasão só comandava um pequeno argonauta. Meu pequeno exército frágil , com os cabelos
presos por um lenço, de olhos claros e fixos no caminho à frente, era você. Mas ainda assim eu
poderia conquistar o mundo com minha pequena tropa fiel!... Na primeira manhã após o
embarque na Argos com meus 30 marinheiros que tinham me dado a vida deles eu não tinha
me sentido tão forte. E à noite , soldado e capitão se desnudavam lado a lado, surpresos por
encontrar um homem e uma mulher por debaixo de suas duas roupas iguais, surpresos por
fazer amor.
Nós podemos ser infelizes agora, Medéia, podemos nos rasgar e sofrer. Esses dias nos foram
dados e jamais poderá haver vergonha ou sangue que os sujem.

Silêncio. Sonha. Medéia esta agachada,


braços em torno de suas pernas,
a cabeça escondida.
Jasão se abaixa para olhá- la no rosto

Ai depois o pequeno soldado retomou seu rosto de mulher e o capitão teve que voltar a ser
homem e começamos a nos maltratar. Outras mulheres passaram pelas ruas e eu não podia me
impedir de olhar. Pela primeira vez eu ouvi tuas risadas fundindo-se com as de outros homens
e e no meio delas tuas mentiras começaram a aparecer. Primeiro uma que nos seguiu como um
animal venenoso , cujo olhar não conseguíamos fixar ao tentar sair do caminho, depois outras
e outras e quando à noite nós nos agarrávamos em silêncio envergonhado ainda de nossos
corpos ainda cúmplices, toda a tropa das mentiras fervilhava e respirava a nosso redor. Nosso
ódio deve ter nascido numa dessas lutas sans ternura em que éramos três agora a fugir, você
eu e a mentira. Mas para que redizer o que está morto? Meu ódio também já está morto.
Ele para. Medéia retoma com doçura
MEDÉIA
Se nós só cuidamos de coisas mortas, porque sofremos tanto nós dois?
JASÃO
Porque todas coisas neste mundo são difíceis para nascer e também difíceis para morrer.
MEDÉIA
Sofreste?
JASÃO
Mas claro.
MEDÉIA
Fazendo o que fiz eu não estava mais feliz que tu
JASÃO
Eu sei
MEDÉIA
Tempo. Medeía pergunta, rude.
Por que ficaste tanto tempo?
JASÃO
Reagindo
Eu ter amei, Medéia! Amei nossa vida de prisioneiros. Amei o crime e a aventura com você.
E nossos amassos e nossas lutas sujas de lixeiros e aquela cumplicidade que nos encontrava à
noite, por sobre as palhas, nu m canto de nossa carroça, após nossos golpes. Eu amei seu
mundo negro, sua audácia, sua revolta, sua conivência com o horror e a morte, sua fúria para
MICHELOTTO & ANOUILH

tudo destruir. Aprendi a acreditar com você que era sempre preciso tomar tudo para si e que
por ser luta tudo seria permitido.

MEDÉIA
E não acreditas mais nisso hoje à noite?
JASÃO
Não. Quero apenas aceitar.
MEDÉIA
Aceitar o quê?
JASÃO
Quero ser humilde. Este mundo, o caos por onde você me conduzia pela mão, eu quero que ele
tome forma finalmente. É você quem está com a razão sem dúvida ao dizer que não há razão,
não hã luz, não há descanso, que é preciso remexer as mãos ensanguentadas, estrangular e
rejeitar tudo o que arrancamos. Mas eu quero para agora. Quero ser um homem. Agir, talvez
como aqueles que desprezamos, fazer o que fez meu pai e o pai de meu pai e todos que, sendo
mais simples que nós, aceitaram antes de nós abrir uma pequena clareira onde o homem
possa se manter no meio desta desordem e desta noite.
MEDÉIA
Achas que vais conseguir?
JASÃO
Sem você, sem seu veneno sorvido dia após dia eu poderei sim.
MEDÉIA
Sem mim. Conseguiste então imaginar um mundo sem mim?
JASÃO
Vou tentar com todas minhas forças. Não sou mais tão jovem para agurentar o sofrimento. A
essas contradições assustadoras, esses abismos, feridas eu reajo hoje com o gesto mais
simples que os homens inventaram para poder sobreviver: eu os afasto.
MEDÉIA
Usas uma fala tão mansa,Jasão, para dizeres palavras terríveis. Como estás seguro de ti. Como
estás forte!
JASÃO
Sim, estou forte.
MEDÉIA
Raça de Abel(13), raça dos justos, raça dos ricos, como todos vocês falam tranqüila e
docemente! É legal, não é mesmo, ter de seu lado o céu e claro, a polícia em caso de dúvidas.
É massa pensar um dia como seu pai e o pai de seu pai, como todos aqueles que sempre
tiveram razão desde sempre. É bom ser bom, ser nobre, ser honesto. E tudo isso assim vapt-
vupt, numa bela manhã, como sem querer, quando nos chegam as primeiras canseiras , as
primeiras rugas, o primeiro ouro por sobre a cabeça. Joga o jogo, Jasão, faça o gesto, vá! Tens
uma bela velhice preparada para depois, então vá!
JASÃO
Esse gesto, o da morte, eu jamais o faria contigo Medéia. Eu teria dado tudo para que nós
tivéssemos nos tornado dois velhos, lado a lado, em um mundo acalmado. Mas você, foi você,
não o quis.
MEDÉIA
Não!
JASÃO
MICHELOTTO & ANOUILH

Segue seu caminho. Gire, gire por aí. Rasgue-se, debate-se, despreze, insulte, mate recuse tudo
que não seja você mesma. Mas eu parei. Já está bom para mim. Aceito as aparências tão
duramente, tão resolutamente quanto outrora as recusei com você.E se é para continuar em
combate, é por elas, as aparências, que agora me baterei, humildemente, apoiado nesta parede
derrisória, construída com minhas próprias mãos entre o absurdo e meu eu.
Tempo. Acrescenta
E é isso, ao final das contas- e nada mais que isso- que é ser um homem.
MEDÉIA
Nem tenhas dúvidas, Jasão: és um homem agora!

JASÃO
Aceito teu desprezo e aceito este nome.
Levantando-se
Essa moça é linda. Menos bela que você quando me apareceu naquele primeiro dia na
Cólquida e eu a jamais a amarei como te amei. Mas ela é nova, simples, pura. Vou recebê-la
sem sorrir das mãos de seu pai e de sua mãe, daqui a pouco, sob oi sol do dia que está para
amanhecer, com seu vestido branco e seu cortejo de criancinhas. De seus dedos desajeitados
de garota eu espero humildade e esquecimento. E se os deuses quiserem, o que você mais
odeia no mundo, o que é a coisa mais longe de você neste universo todo: a felicidade, ah sim,
se puder espero a pobre felicidade.
MEDÉIA
A felicidade...
Silêncio.
Imediatamente, com voz baixa, humilde.
Sem se mexer

Jasão, é difícil de dizer,quase impossível. Isso me estrangula e me mata de vergonha, mas se


eu te dissesse que queria tentar a felicidade contigo agora, me acreditarias?
JASÃO
Não.
MEDÉIA
Um tempo
E estarias com a razão.
Completa. Voz neutra.
É isso aí. Já nos dissemos tudo o que tínhamos para dizer, não é?
JÁSÃO.
Isso.
MEDÉIA
Tu acabaste. Estás limpo, lavado. Podes ir agora. Ciao, bye-bye...
JASÃO
Adeus Medéia. Não posso lhe dizer: seja feliz. Seja você mesma.
Ele sai enquanto Medéia murmura ainda

MEDÉIA

A felicidade deles...
MICHELOTTO & ANOUILH

Recompõe-se e grita para Jasão que já se foi


Não parta assim, Jasão! Volta. Grita qualquer coisa. Hesita. Sofra, Jasão, eu te suplico! Basta
um minuto de desalento e de dúvida em teus olhos e estaremos salvos.
Corre na direção em que ele saiu
Tens razão! Tu és bom, és justo e tudo será culpa minha para sempre. Mas por um segundo,
um segundo, duvida disso.Volta e talvez eu possa me libertar também...
Seu braço recai, cansado. Jasão deve já estar longe.
Ela chama com outro tom.
Babá!
Aparece a Babá na entrada da carroça

Em breve o dia vai amanhecer. Acorda as crianças e os vista como para uma festa. Quero que
eles levem meu presente de casamento para a filha de Creonte.

BABÁ
Teu presente? Pobrezinha, o que te resta ainda para dar?
MEDÉIA
Está escondido. Pega para mim o baú negro que eu trouxe de Colcos.
BABÁ
Você proibiu que se tocasse nele! Nem Jasão podia saber de sua existência.

MEDÉIA
Vá buscá-lo velha e de boca fechada!Não temos mais tempo para te escutar. Tudo precisa
andar terrivelmente rápido agora. Dê o pacote para as crianças e leva-os até onde possam ser
vistos da cidade. Que eles perguntem pelo Palácio do rei, que digam que é um presente da mãe
deles para a esposa. Que eles o entreguem em suas mãos e voltem. Escuta mais. O pacote
contem um véu de ouro e um diadema, restos do tesouro de minha raça. Que meus filhos não o
abram!
Grita repentinamente com a velha hesitante
Obedece!
A velha desaparece na carroça.
Ela sairá mais tarde de lá com as crianças.
Medéia, só.
É agora Medéia que você tem que ser você mesma! Ó mal! Grande animal vivo que rasteja
por sobre mim e me lambe e me aprisiona. Sou tua esta noite, sou tua mulher. Penetra-me,
rasga-me, incha e me queima no meio de mim. Vês, eu te acolho , te ajudo, eu me abro....
Venha como um peso por sobre mim com teu corpo aveludado, aperta-me com tuas grandes
mãos calosas e com tua respiração rouca sobre minha boca, me escuta. Eu final,mente estou
vivendo! Sofro e nego. Estas são minhas bodas. É para esta noite de amor contigo que eu vivi.
E tu noite, pesada noite, barulhenta noite de gritos abafados e de lutas, noite encharcada de
todos animais que se caçam, pegam e matam, espera ainda um pouco, por favor, não passe tão
rapidamente... Ó bestas inúmeras a meu redor, obscuros trabalhadores destas terras, inocentes,
terríveis, matadoras....É isso que eles, os homens, chamam de noite calma, esse burburinho
gigante de coitos silenciosos e de assassinatos. Mas eu te sinto, essa noite eu ouço todas suas
vozes pela primeira vez, no fundo das águas e das ervas, nas árvores, por sob a terra. Um
mesmo sangue bate em todas as veias. Animais da noite, estranguladores, meus irmãos!
Medéia é um animal como vocês. Medéia vai gozar e matar como vocês. Esta terra toca nas
MICHELOTTO & ANOUILH

bordas de outra terra que toca nas bordas de outra até ao limite das sombras, onde milhares de
animais semelhantes se atacam e se cortam as gargantas ao mesmo tempo. Animais desta
noite! Medéia está aqui, em pé diante de vocês, cordata e traidora de sua raça. Eu dou com
vocês este grito no escuro. Aceito como vocês sem querer entender mais nada, o negro
mandamento. Eu esmago com meus pés, eu apago a pouca luz que ainda resta. Faço de meu
gesto uma vergonha. Eu tomo a responsabilidade para mim, eu assumo, eu reivindico.
Animais, sou de vocês! Tudo o que caça e mata esta noite é Medéia!
A Babá entra de repente
BABÁ
Medéia! As crianças chegaram no palácio, pois um grande rumor se elevou na cidade.Não sei
qual foi teu crime, mas o ar já está dando sinais dele. Atrela rápido o cavalo e fujamos para a
fronteira.
MEDÉIA
Fugir, eu? Se por acaso eu já tivesse partido, eu voltaria só para me comprazer com este
espetáculo!
BABÁ
Que espetáculo?
MENINO
aparecendo
Tudo está perdido! O reino, o estado, tudo ruiu. O rei e sua filha estão mortos!
MEDÉIA
Mortos já? Tão depressa?
MENINO
Duas crianças vieram ao amanhecer trazendo um presente para Creusa, um cofre negro que
continha um véu de ouro e um diadema precioso. Ela mal os toco, ela mal os colocou como
uma menina muito curiosa se olhando no espelho quando mudou de cor e caiu se retorcendo
com dores horríveis, desfigurada pelo sofrimento.
MEDÉIA
Gritando
Feia, feia como a morte, não foi?
MENINO
Creonte correu para socorrê-la, quis agarrá-la, lhe tirar o véu e o círculo de outro que matavam
sua filha, mas foi só tocar e empalidecer. Ainda teve um instante de terror em seus olhos para
depois arriar por terra gritando de dor. Ficaram embolados um no outro respirando em
sobressaltos e misturando seus membros como se protegendo um ao outro sem que ninguém
ousasse tocar neles. O que se diz por ai é que foi você quem enviou o veneno. Os homens
pegaram paus e facões e estão vindo para a carroça. Eu corri na frente para te avisar que você
não terá nem mesmo o tempo para se desculpar, Medeia. Foge. E rápido.
MEDÉIA
Nunca!
Grita para o Menino que foi-se embora
Obrigado!Duas vezes obrigado! Foge você! É melhor que nunca me tenhas conhecido.
Enquanto os homens tiverem memória é melhor ser dos que não me conheceram...
Volta-se para a Babá
Pega tua faca, corta o pescoço do cavalo para que não sobre mais nada de Medéia daqui a
pouco. Ponha brasas sob as rodas para fazermos uma fogueira de festa como a fazíamos na
Cólquida! Vamos!
MICHELOTTO & ANOUILH

BABÁ
Estás me levando para onde?
MEDÉIA
Sabes bem: para a morte! A morte é leve. Siga-me velha, tu verás. Nunca mais irás arrastar
teus velhos nossos que só te dão dores e te fazem gemer. Acabou tudo isso! Vais descansar
finalmente, que grande domingo está começando!

BABÁ
Livra-se dela aos urros
Não posso! Quero viver!

MEDÉIA
Quanto tempo ainda carregarás a morte nas costas minha velha?
As crianças entram correndo
e se jogam assustados por entre a s as saias de Medéia
Medéia para.
Oh Olha os dois aí! Estão com medo desse pessoal todo que corre e urra, desses idiotas???
Tudo será silêncio já já.
Puxa suas cabeças para trás,
olha-os nos olhos e murmura
Inocentes! Armadilhas esses olhos de crianças, pequeninos brutais e espertos, com cabeças de
homens. Estão com frio? Não lhes farei mal algum. Serei rápida. Justo o tempo do espanto ao
sentir a morte diante dos olhos.

Ela faz carinho neles.


Vamos lá, eu garanto, só vou apertá-los mais um pouco contra meu corpo, pequenos corpos
quentes. É bom ficar juntinho da mãe, perde-se o medo.Pequenas vidas mornas saídas de meu
ventre, pequeninas vontades de viver e ser feliz...
Grita

Jasão! Eis tua família, ternamente unida. Olhe-a. Assim poderás te perguntar se Medéia
também não teria amado a felicidade e a inocência.Se Medéia também não poderia ter,
também ela, a fidelidade e a fé. Quando estiveres sofrendo daqui a pouco e até a hora de tua
morte, pense que existiu um dia uma menina Medéia, que antigamente era exigente e pura.
Uma pequena Medéia terna e amordaçada dentro da outra. Pensa que ela terá lutado sozinha,
desconhecida, sem uma só mão estendida para ajudá-la e que essa é que era a tua mulher. Eu
quererei Jasão, eu teria querido talvez também eu que isso durasse para sempre e fosse como
nas histórias! Eu quero, quero ainda neste segundo, de maneira tão forte como quando eu era
pequenina, que tudo seja luz, tudo seja bondade! Mas Medéia inocente foi escolhida para ser a
presa em vez da luta...Outros mais frágeis ou mais medíocres podem escorregar através das
malhas da rede até as águas calmas ou a lama. Os peixes miúdos, esses os deuses abandonam.
Mas Medéia era uma caça bela demais presa na armadilha e aí ela vai ficar.Não são todos os
dias que eles conseguem desta vantagem não esperada., os deuses, uma alma bastante forte
para seus reencontros, seus jogos sujos. Eles puseram tudo sobre minhas costas e ficam
olhando eu me debater. Olhe junto com eles, Jasão, meus últimos sobressaltos. Eu tenho ainda
que cortar a inocência desta menina que a teria querido tanto e desses dois pequenos pedaços
MICHELOTTO & ANOUILH

mornos de mim. Eles esperam este sangue lá no alto, eles não suportam mais esperar por este
sangue lá no alto!
Leva as crianças para a carroça
Venham meus pequenos, não tenham medo. Estão vendo eu faço carinho, eu protejo vocês e
assim vamos entrando em casa...
Eles entram na carroça. O palco fica vazio por um tempo.
A Babá reaparece com ar perdido como um animal que se esconde, e chama.

Medéia! Medéia! Onde estás? Eles estão chegando!


Recua e grita imediatamente
Medéia!
Chamas saem por todos os lados cercando a carroça.
Jasão entra apressado conduzindo os homens.
Apaguem o fogo! Não a deixem- escapar!
Medéia aparece na janela e grita
MEDÉIA
Não te aproximes Jasão. Proíba-os de avançar!
JASÃO
Para
Onde estão as crianças?

MEDÉIA
Peça- o mais uma vez para que eu olhe bem dentro de teus olhos.
Grita
Estão mortos! Mortos degolados todos dois e antes mesmo que andes um passo adiante essa
mesma faca irá me matar. Finalmente re encontrei meu cetro, meu irmão, a Tosa do Carneiro
de ouro foi devolvida à Cólquida. Reencontrei minha pátria e a virgindade que tinhas roubado
de mim! Sou, enfim, para sempre Medéia! Olha-me pela última vez antes de ficares sozinho
no teu mundo razoável, olha bem para mim Jasão! Eu te toquei com essas duas mãos, eu as
coloquei sobre tua testa ardente para que ficasse fresca e sobre tua pele para essa ardesse. Te
fiz chorar, te fiz amar. Olha-nos: teu pequenino irmão e tua mulher sou eu. Sou eu! A horrível
Medéia. E agora tenta esquecer-me!
Ela se esfaqueia e cai por sobre as chamas
que crescem muito envolvendo toda a carroça.
Jasão, com um gesto, para seus homens que iram pular no fogo
e diz simplesmente
Sim, eu te esquecerei. Sim, viverei e apesar dos vestígios sangrentos de tua passagem a meu
lado, eu amanhã refarei pacientemente meu pobre andaime de homem sob o olho indiferente
dos deuses.
Volta-se para seus homens
Que um de vocês vigie esse fogo até que aí só restem cinzas, até que o último osso de Medéia
esteja queimado. Venham você outros,. Voltemos ao palácio. Está na hora de viver
novamente, manter a ordem, dar leis a Corinto e reconstruir sem ilusões um mundo à nossa
medida para podermos nele esperar tranquilamente a morte.
Sai com seus homens, salvo um que dá uma golada de vinho
e vai se arrastando par a guarda do fogo.
A babá entre e vem timidamente se acocorar perto dele
enquanto o dia ao fundo vai se abrindo.(14)
MICHELOTTO & ANOUILH

BABÁ
Ela não tinha mais tempo para me escutar, ora. Mas eu tinha alguma coisa a dizer, a se tinha.
Após a noite vem a manhã radiosa e há o café para se fazer e as camas para arrumar. E quando
varremos tudo, temos um pequeno momento tranquilo ao sol antes de descascar os legumes. É
nessa hora que é bom mesmo, pois se pudemos ganhar algumas moedas, tomamos uns tragos
para esquentar o buraco do ventre. Depois tomamos a sopa e limpamos os pratos. Após o
almoço é hora de lavar os lençóis e as panelas de cobre e aproveita-se para bater um bom papo
com as vizinhas e devagar devagarzinho sem quase a gente se aperceber vai chegando a hora
da janta. Aí a gente deita e dorme.
O GUARDA Juão Denis
Após um tempo
Vai fazer um dia lindo hoje!
BABA
Vai ser um bom ano também. Haverá muito sol e muito vinho. E a colheita?
O GUARDA Juão Denis
Já começamos a ceifa na semana passada. Amanhã ou depois vamos guardar tudo nos silos se
o tempo se mantiver tão bom
BABÁ
A colheita de vocês foi boa?
O GUARDA Juão Denis
Não há o que reclamar. Ainda haverá bastante pão para todo mundo durante este ano.
Durante esse diálogo deles
– que continua perfeitamente audível-
a cortina cai.

PEQUENAS NOTAS PARA UMA TRADUÇÃO

1. et nous sommes lá, toutes les deux


e aqui estamos, todas duas.
Bestando (= bancando as bestas) é um bom termo para as duas largadas lá no
meio do mato, longe da cidadezinha, ouvindo os ecos da festa.
Também para diferir um pouco o vocabulário de ambas.A Babá no final irá se
mostrar bem prática, bem terra a terra, bem menos “nobre”.
Estou só lhe adiantando um pouco o estilo
2. Por alguma razão me parece que a atriz não deve dizer essa frase com seriedade,
mas com zombaria.
MICHELOTTO & ANOUILH

3. Est-ce que je chante, moi, est-ce que je danse?


Será que eu canto, eu , será que eu danço?
Sei lá ela, está irritadíssima, acho que pode usar um tu de vez em quando...
4. Leur journée est finie.
O dia deles acabou.
Jornada também é um dia de trabalhos, E é sobre eles que a Babá fala.
Como falará no fim da peça. Daí nossa escolha do termo.
5. je suis grosse ce soir
6. . bela ironia
7. Molecagem pura
8. Ave de rapina, melhor, por
9. Esse não fica esplêndido ai, melhora um pouco o frances:
10. Já disse, já disse.
11. Esse texto é muito muito muito bem escrito, caramba!
12. Toison d´Or, ou Velocínio de Ouro,ou...só palavras estranhas para dizer isso: um
artefato em forma de pele de carneiro todo em ouro.
13. Essa é uma das inúmeras brincadeiras de descontextualização, uma constante na
escritura de Anouilh: um grego deste tempo invocando uma história judáica da qual
ele não poderia ter o menor conhecimento, é uma bela chave para futuros intérpretes e
tradutores de sua obra.
14. Cara, esse final não existe! É muito bem bolado. A coisa toda vai para o ralo, o foco
distorce todo parecendo que dessa vez volta para seu lugar certo: o povo, a comida, o
sol, a vida. Putz!
MICHELOTTO & ANOUILH

Um espaço neutro,
paredes pintadas,
uma porta estreita e alta,
um banco sobre o qual estão
assentados lado a lado, Édipo e
Jocasta.

Coro
Este homem que sonha sentado sobre
este banco, ao lado de sua mulher, é
Édipo.
Na língua dele esse nome quer dizer o
que tem os pés inchados. Ele teve um
acidente quando criança-ele não sabe
ainda que acidente foi esse- que o
deixou assim deformado. Ele manca. É essa desgraça que talvez o faça ter tanta coragem e
orgulho.
Ele chegou nesta cidade, fugindo de seu país, há já uns vinte anos. Ele era jovem e não tinha
medo de nada.
Um monstro que chamavam de a Cantora Cadela, meio leoa, meio mulher, aterrorizava a
cidade e impedia que alguém chegasse até ela. Essa esfinge, esse um de seus inúmeros nomes,
propunha um enigma aos viajantes e se eles não conseguissem resolvê-lo ela os degolava. Ela
então, naquele dia, parou Édipo, como parava todos os outros no caminho de Tebas e lhe fez a
pergunta fatal.
Ficaram um bom e longo tempo face a face, o velho monstro fêmea e o jovem rapaz,
enquanto a noite caia, olhos nos olhos, um à espera da resposta.
Ele pensava que se abrisse a boca e se enganasse iria morrer nesta mesma noite,
estupidamente, sem realizar coisa alguma entre tantas de que ele se sentia capaz. O velho
monstro o olhava com seus olhos excessivamente maquiados por uma máscara branca com
uma boca ensanguentada e pensava que dali a pouco iria beber este sangue jovem como o fez
com todos os outros. Havia, contudo, no fundo de seu olho esverdeado, algo como um medo
vago diante do olhar ousado deste pequeno homem, fixado o tempo todo nela. Ela sabia que
na misteriosa contabilidade dos deuses um só erro lhe seria fatal.
Ao final Édipo, com esta certeza estranha e que nunca o abandonava de ser sempre o mais
forte em tudo, respondeu simplesmente: “É o homem”. A essas palavras a velha teve um
ataque de raiva e com uivos de louca se jogou do alto da montanha. Pela primeira vez um
homenzinho de nada tinha resolvido o enigma que lhe dava seu poder, retirando-a de entre as
criaturas por uma decisão dos deuses que nem ela também podia compreender.
MICHELOTTO & ANOUILH

Tebas assustada, à espera, havia ouvido o grito desesperado do monstro. Então,todos saíram
correndo em direção do jovem que havia libertado a cidade. Os mais jovens o colocaram sobre
os ombros e levaram-no ao palácio real, onde ainda se chorava a morte de Laios, o velho rei,
que havia partido para o exterior para consultar os oráculos e assim livrar seu povo do
monstro, mas que havia sucumbido miseravelmente, em uma emboscada feita pelos bandidos
das estradas.
É o que dizem.
A multidão gritava que era necessário que Édipo, seu salvador, fosse também seu chefe... A
rainha Jocasta recebeu-o serena e séria, um pouco perturbada certamente pela beleza deste
jovem que o povo trazia nas costas e exigia aos gritos que fosse o rei deles. Houve um longo
silêncio entre eles. Édipo também a olhava um tanto perturbado. A rainha tinha mais idade que
ele, mas era ainda muito muito bela. Esse segundo muito era ele que acrescentava neste
momento. Uma estranha doçura emanava dela, uma promessa de paz, que deixava o jovem
homem meio fora de controle.
Enfim, após tê-lo longamente olhado - o que só aumentou o silêncio e a ânsia da multidão –
estendeu-lhe a mão.

Édipo
com doçura
Te lembras?
Jocasta
Claro.
Édipo
Há exatos vinte anos. Me disseste:”Estrangeiro, salvaste a cidade e ela pede que sejas seu rei.
Queres-me por tua rainha?”
Jocasta
Foi assim. E enquanto o povo urrava de alegria a nosso redor, eu comecei a ser tomada por um
medo repentino. Eu ainda era jovem. Laios me tomou como esposa aos 12 anos, mas tu, tu
eras quase uma criança e eu tive medo
que tu só conseguisses ver essas pequeninas rugas que insistiam em começar a aparecer nos
cantos de meus lábios e de meus olhos.

Édipo
Foram elas que eu acariciei naquela noite, quando ainda perturbado te tomei em meus braços.
Eras muito bonita.
Jocasta
Disseste eras. Bem agora eu estou um pouco mais velha.
Édipo
Não, não. Continuas a mesma.
Jocasta
Tem um leve sorriso
e faz um pequeno gesto em direção dele
Me amaste como se deve amar uma mulher, eu o sei, e isso foi desde o início.Tua avidez em
me tomar para ti quase me dava medo. Mas após o amor, tu dormias dentro de mim, a cabeça
por sobre meu seio, após um grande suspiro de relaxamento. E eu ficava acordada a tomar
MICHELOTTO & ANOUILH

conta de ti. Eu sentia pouco a pouco esse jovem carniceiro que havia tomado posse de mim, ir
se tornando pequeno em mim, quase como uma criança.
E é estranho, era alguém muito puro e mais profundo que o prazer que tinhas acabado de me
dar...

Édipo
Murmura, com a cabeça escondida no regaço de Jocasta
Eu nunca quis sair de de dentro de ti
Jocasta
Com um sorriso terno
Mas de manhazinha acordavas um homem e corria rápido para teus cães e teus soldados. Eu
precisei um bom tempo para me acostumar com isso, pois amavas a caça e amavas a guerra.

Édipo
Levanta-se e diz
É...eu era jovem! Ser rei era como tomar um porre. Dar ordens, com o machado nas mãos,
tanto aos homens quanto às feras das florestas. Ser o mais forte, logo eu, o pequeno manco de
quem todos zombavam antes. Édipo Rei! Por muito tempo essas palavras foram minha
cachaça. Até que um belo dia, não tenho a menos idéia porque, essas vitórias todas parecem
vãs, pequeninas.

O dia está ensolarado contudo, contudo a manhã é igual a todas outras manhãs, a gente
continua a se sentir forte como em todas as manhãs que precederam, tem-se tudo o que se
pode e se quer ter, mas acaba-se dizendo para si próprio que a vitória é apenas e somente
isso... esse gosto amargo na boca.
Nunca houve outra coisa que pudesse me acalmar além deste desaparecimento à noite
dentro de ti .

Jocasta
Com um sorriso triste
Eu senti quando sem mais nem menos começaste a te enjoar de tudo...Eu te mandei escravas.
Eu as escolhia entre as mais belas, eu mesma, apesar de meus ciúmes...
Édipo
Sombriamente
Minha mão não reconheciam mais seu caminho por sobre as escravas. E uma vez acabado meu
prazer decepcionante, lá estava eu de volta, enfim, para o caminho reconhecido, para esse
abismo profundo e quente onde eu jamais tive o menor medo!
Põe a mão com um gesto terno sobre ela e ficam em silêncio.
Coro que estava a olhá-los murmura:
Coro
Ah a felicidade! Seu dente doce até a morte poderia ter engolido Édipo que voltava, sem
saber porque, à fonte de tudo, ao fundo do ventre de Jocasta. Mas os deuses haviam tomado
outra decisão.
Os deuses não amam a felicidade dos homens.
Então decidiram que eles não haviam sido feitos um para o outro. E isso valia sobretudo para
Édipo...
MICHELOTTO & ANOUILH

A coisa começou em Tebas por uma garotinha doente que os médicos observavam morrer sem
entender o porque.
Depois seguiram-se outras e mais outras mortes de crianças e rapidamente após as crianças,
os velhos e após esses também os adultos e finalmente todos animais domésticos e o gado
caindo aos rebanhos, sem que se soubesse a razão para isso. Era uma peste estranha que
começou a assolar a cidade. Todos se apressavam para queimar os cadáveres, os sacerdotes
multiplicaram suas preces e sacrifícios. Mas nada. A sombra da desgraça continuava a planar
sobre Tebas. E então lembraram-se de seu rei, e vieram ver Édipo pata que ele os salvasse
pela segunda vez. E foi aqui que a história toda começou...
Uma pequena multidão de homens e mulheres, camponeses,
entra e se junta ao Coro, se confundindo agora com ele.
À sua entrada, Jocasta se levanta e entra em silêncio no palácio.
Édipo se dirige a eles:
Édipo
Homens e mulheres deste país, você pediram para me ver. O que querem então?

Coro
Não aguentamos mais, senhor! É por isso que viemos até você, nosso rei. Nós lhe demos o
poder e fomos submissos a você. Em troca você nos deve a sua proteção. Sua cidade, Tebas,
está morrendo. De todos que vieram conosco não tem um só que não chore a morte de um
filho, uma esposa, um pai. E os mais felizes, os que ainda não perderam nenhum parente, já
choram de há muito por seu gado e pelos animais que eles amavam e que os faziam viver e
pelos campos onde não nasce mais nada.
Há vinte anos você nos salvou uma vez quando ainda era jovem, ao vencer a Cantora Cadela
que degolava todos nossos viajantes e assim isolava nossa cidade do resto do mundo.
É preciso que você nos salve de novo!
Todos se ajoelham em silêncio,
com gestos de quem não sabe o que fazer ,
diante de Édipo, mudo.
Édipo! Eis-nos prostrados diante de você. Não lhe tomamos , claro, por um deus- você é
apenas um homem todos nós o sabemos – mas sabemos também que você e é o mais forte e o
de mais bom senso entre nós.

Quando você venceu a Cantora Cadela, há vinte anos, os deuses estavam a seu lado. Se eles
ainda forem favoráveis, oferece-lhes o sacrifício que pedem e suplica a eles que nos poupem.
Édipo
Faz um gesto em direção do Coro
E fala para um deles.
Velho homem, levanta-te! Todos vocês são meus filhos, mesmo você que é mais velho que eu.
Ao me darem a glória, ao mesmo tempo me fizeram me encarregar de vocês. Eu sei bem que
aqui cada um sofre por causa de suas próprias dores- mesmo o mais justo entre nós. Mas eu
sou o encarregado de todas as dores de vocês. Este é meu papel. Vocês não me acordaram de
um sono tranquilo. Desde o momento em que minha cidade começou a sofrer, eu perdi o
sono. Eu busquei todos os caminhos, noite após noite, e desesperançoso da razão dos homens
eu me voltei para os deuses. Eu enviei, então, Creonte, o irmão da rainha, a Delfos para
consultar o oráculo e o que o deus nos ordenar fazer, isso o farei custe o que possa me custar.
E se ele exige uma vítima inocente - deuses às vezes têm esses caprichos – sou eu o seu rei e
MICHELOTTO & ANOUILH

então será natural que seja eu quem pague. Peço-lhes que esperemos a mensagem que Creonte
nos trará.
Coro
Ele voltou, Édipo Eu o vejo já subindo as escadarias do palácio!
Édipo
Ó deus, único e verdadeiro rei! Possa ele nos trazer a salvação!
Coro
Deve estar trazendo boas notícias, pois colocou uma coroa de louros!
Creonte entra
Édipo
Príncipe, filho de Manasses, meu parente, que resposta nos trazes da parte dos deuses?

Creonte
Uma boa reposta: para nosso mal existe um remédio.

Édipo
Qual? Quais são os termos do Oráculo
Creonte
Se achas necessário ouví-lo diante de todos então falarei, senão , entremos no palácio.
Édipo
Fale na nossa frente. A dor deles é também a minha.
Creonte
Eis então a mensagem de deus. Ele insiste em que extirpes de nossa terra a sujeira que ela está
alimentando. Se a deixarmos crescer, então será o fim de todos.
Édipo
De que tipo de sujeira e como devemos nos purificar?
Creonte
É preciso afastar os assassinos ou pagar a morte com a morte. A terra bebeu há muito o
sangue secado, mas Hécate não está sossegada.
Édipo
De que assassinato o deus está falando?
Creonte
Príncipe, Laios governava esse país antigamente. Foi a ele que sucedestes. E ele foi morto,
bem o sabes.
O deus ordena que se punam hoje seus assassinos.
Édipo
Mas já se passaram 20 anos! Onde é que eles podem estar? Como encontrar- lhes as
pegadas?
Creonte
Eles estão aqui mesmo, declarou o deus. E acrescentou: o que se busca, se pode encontrar!
Édipo
Disseram-me que Laios encontrou a morte fora de nossas fronteiras...
Creonte
MICHELOTTO & ANOUILH

Seu propósito, ele o dissera repetidamente, era de enganar por uma noite a vigilância da
Cantora Cadela e de ir a Delfos em segredo, acompanhado de alguns homens apenas para lá
consulta o Oráculo.
Assim ele se foi, e nunca mais voltou.
Édipo
Nenhum mensageiro, nenhum companheiro de viagem voltou para dizer o que havia se
passado?
Creonte
Todos morreram, salvo um que , tomado de medo -ele o confessou- fugiu após o início do
ataque.
Ele só se lembrava de uma coisa...
Édipo
Qual? Era talvez um pequeno indício?
Creonte
Negativo. Tudo o que pudemos tirar dele - e eu o interroguei eu mesmo apesar do choque
haver perturbado muito o seu espírito – é que os bandidos que os assaltaram e que mataram o
rei estavam em maioria.
Édipo
Mesmo se Laios tivesse apenas uma pequena escolta, todos sabiam bem que simples bandidos
das estradas não teriam tido a audácia de atacá-lo!
Essa história toda não poderia ter sido montada a preço de ouro a partir daqui por seus
inimigos?
Creonte
Chegamos a pensar nisso por alguns instantes.
Mas os tempos não eram bons, a pesquisa era infrutuosa e Laios acabou ficando sem um
vingador.
Édipo
Mas como?! O trono estava em ruínas e vocês não tentaram nada?
Creonte
A esfinge que v venceste estava a nos bloquear os caminhos, lembras?
Édipo
Após um silêncio
Bom, este mistério tem que ser eu quem deve esclarecer. Fui eu quem sucedeu a Laios no
trono; sou eu, portanto, o vingador designado. Já que o deus exige que se limpe a sujeira para
dar a paz a esta cidade que se

tornou minha, o assassino de Laios já me condenou. É minha causa também que vou defender
contra ele.
Tenha ele o poder que tiver, eu o desmascararei.
Vão! Juntem o povo e digam que com a ajuda do deus eu ou conseguirei ou morrerei tentando
resolver essa questão.
Ele entra no palácio e todos se retiram,
menos o Coro que avança em direção ao público
Coro
E mais uma vez já vai o coxo correndo! Ele estava adormecido na felicidade do ventre quente
de Jocasta. Há muito que não havia mais guerras na região e há muito que os animais da
MICHELOTTO & ANOUILH

floresta, agora pegos com a maior facilidade não serviam mais de elogios à sua destreza de
caçador.
Ele se sentiu de repente tão jovem e forte quando , há vinte anos, enfrentou a Cantora Cadela
naquela noite. Nesta noite em que os homens o levaram sobre as espáduas até ao palácio, entre
gritos e o cheiro de alho e de suor, pra fazer dele um rei. Vingar Laios iria ser sua obra. Iria,
enfim, sair da felicidade tranqüila e obesa e poder lutar novamente- poder voltar a ser homem,
ora! Havia chegado a hora enfim de abandonar a cama confortável de casal onde a ternura
terminava por nos engolir para dentro deste ventre eternamente protetor.
É por isto que os homens partem para as guerras, quase alegre, enfim: de novo entre homens!
É como se fosse um segundo nascimento da virilidade! E depois, salvar a cidade era seu ofício
de rei. E os homens amam bastante seu ofício. Não é que vingar Laios fosse no fundo a coisa
mais importante. Ele nem havia conhecido o ”velho” como às vezes ele e Jocasta na
intimidade o chamavam. Eles falavam raríssimas vezes dele, apesar de sua sombra nunca ter
saído dentre eles.
Ela, ela não podia esquecê-lo , esta grande presença terrível, idoso como seu pai, a quem a
entregaram um dia em que ela mal era uma menina. Este velho que tinha se divertido algum
tempo com seu corpo de jovenzinha, antes de voltar a suas concubinas e a sua devassidão ,
abandonando-a ao vasto tédio de seu gineceu.
E ainda houve aquele filho, seu único filho, nascido um ano depois que ele não quis ter nem
manter vivo. E isso são coisas de que mulher nenhuma se esquece.
Ela só havia se tornado mulher nos braços de Édipo. Com o outro ela não teve a menor idéia
do que pudesse ser o amor, foi isso que ela confessou a Édipo daquela primeira noite e Édipo
sabia disso. , mas a imagem do velho que foi o seu primeiro a torturava permanentemente e
muitas vezes ela pensou em se livrar dele.
Os bandidos resolveram o problema para ela, que bom! E agora era ele quem iria se tornar o
seu vingador! A vida decididamente é absurda, mas, feitas as contas ele nem é tão má assim. E
no dia seguinte, na hora da caça, Édipo saiu todo radiante de seu palácio....
Os camponeses voltaram a fazer parte do Coro
quando Édipo reaparece.
Édipo
Homens e mulheres deste país, minha decisão foi tomada, mas é preciso que todos vocês me
ajudem. Eu parto com vinte anos de atraso como um homem que não sabe nada dos fatos, nem
das versões que correram na época do crime e minhas pesquisas darão em nada se vocês não
me ajudarem. Se qualquer um de vocês tiver algum indício e que se tenha calado antigamente
por medo, que ele fale agora. Seu silêncio covarde lhe será perdoado. Mas se alguém se calar,
se temendo por si ou por um amigo deixar de confessar, escutem bem o que resolvi: seja lá
quem for o culpado, eu proíbo – em toda extensão territorial de minha autoridade que alguém
o ajude, fale com ele ou reze por ele. Vocês todos devem se afastar dele como se ele fosse a
sujeira.
Eu que sucedi a este rei, eu que tenho por esposa a sua mulher, que teria tido por filhos os seus
filhos caso ele tivesse procriado- mas nisso a fortuna lhe foi adversa – eu estou decidido a
combater por sua causa como se ele fosse meu próprio pai e a castigar seu assassino.
Falem.
Digam o que sabem, esta é minha ordem.
Coro
Príncipe, nenhum de nós jamais soube de nada.
MICHELOTTO & ANOUILH

É ao deus que pede que se retome a busca a quem cabe designar o assassino.
Édipo
Sem dúvida. Mas nenhum homem jamais forçou a vontade dos deuses.

Coro
Uma outra versão do crime era contada antigamente. Mas era muito vaga e muito antiga...

Édipo
Diga-a. Devo examinar todas as possibilidades.
Creonte
Alguns dizem que não eram bandidos mas sim viajantes estrangeiros que atacaram o rei.
Édipo
E eles se baseiam em quê para dizê-lo?
Creonte
Eles não levaram nada. Não foi roubo.
Édipo
Já me haviam dito isso também. Mas nessa época não conseguimos nenhuma testemunha
ocular.
Agora, então, como é que iríamos encontrar?
Creonte
Tirésias, príncipe, ara o sumo sacerdote nesta época e ele tinha o dom de visões. Foi ele quem
disse isso.
Depois, tornado velho e cego ele se retirou para as montanhas e só reza e só se cala.
Talvez ele pudesse esclarecer esse negócio.
Édipo
Já me sugeriam isso também e guiados por Creonte eu já lhe enviei dois de meus homens.
Devem chegar aqui pela manhã.
Coro
O assassino, sabendo que você tomou tais medidas vai viver agora sob o medo e quem sabe
acabe se traindo.
Édipo
Esperemos que sim. Mas o homem é o mais rude dos animais e se não tremeu na ação, temo
que não se assuste com uma ameaça.
Coro
Pode ser. Mas já está chegando aquele que pode desmascará-lo...
Aparece Tirésias conduzido por uma criança
Édipo
Velho e venerável Tirésias, estás diante do rei. Parece que tu sabes tudo, as verdades que
podemos verificar e as verdades de verificação proibida., as coisas do céu e as coisas da terra.
Teus olhos estão cegos e sei que vives há muito tempo retirado lá nas montanhas. Mas
certamente não ignoras o mal que nos assola e o que os deuses exigem para nossa liberação
que é a punição pela morte ou exílio do ou dos assassinos de Laios. Fala, então. Dize- nos o
que sabes sobre essa história e rememora tudo o que já soubeste antigamente.
Diante da exigência dos deuses, como qualquer um de nós, tu também não tens mais o direito
de te calares.
MICHELOTTO & ANOUILH

Tirésias
Gravemente, após uma pausa.
Sou velho demais. O que eu soube antigamente, e já o esqueci.
E é por isso que eu aceitei vir.

Édipo
Mas por quê? O que há contigo? Por que estás perturbado?
Tirésias
Imediatamente
Deixa-me ir embora. Será melhor para mim e para ti, creia-me.

Édipo
Recusas ajudar teu pais numa desgraça?
Tirésias
Sou velho demais e já me retirei do meio dos homens.
Édipo
O quê?! Conheces a verdade e te negas a proferí-la?
O destino de tua cidade está em jogo e eu ainda sou o rei dela. Ordeno-te então que fales!

Tirésias
Tu me interrogas em vão. Para que serve fazer-nos ambos sofrer?
Permita-me que eu me vá. Esse menino conhece o caminho e me guiará.
Édipo
Velho homem, és um santo, parece, e te retiraste para viveres de montanhas e de preces, está
bem.
Mas eu sou o responsável por este país e não posso me dar ao luxo de me livrar das coisas
deste mundo.
Saiba bem que de um modo ou de outro eu te obrigarei a falar!
Tirésias
Um tempo. Ameaçador
As coisas acontecem por elas mesmas, mesmo que meu silêncio as oculte. Deixa-me partir,
estou velho e cego.
Édipo
É uma saída fácil, a velhice!!! Mas creia-me: eu não te deixarei ir embora!
Silêncio. Édipo endurecido perscruta Tirésias
Queres que eu diga porque essa tua obstinação em te calares? Claro, não foste tu quem bateu,
mas conheceste o crime antigamente e então podes ter tu o sido o instigador ou o cúmplice.E é
por isto que foste para as montanhas quando me tornei rei, santo homem, porque teu golpe não
funcionou!
Mas és como uma mosca em minha mão agora. Eu te ordeno falar ou o pouco de sangue que
te resta irá ser derramado.
Tirésias
Repentinamente muito violento
MICHELOTTO & ANOUILH

Pois bem, eu, eu te ordeno, pela força do edito que proclamaste, que fujas desta terra que
sujas, pois é de ti que nos vem todo o mal.
Édipo
Estás sabendo com quem falas?
Tirésias
Claro.
Édipo
A pessoa do rei é sagrada, sabes bem.
Acusá-lo é um crime e eu posso te destruir imediatamente.
Tirésias
Eu trago em mim a verdade viva e a verdade não se pode matar.

Édipo
Zombando
A verdade? E foi certamente tua arte que a revelou?. Sacerdotes orgulhosos!Pensadores!
Eunucos! Como se fosse um ofício de homens o ofício de pensar! Os que me carregaram nos
ombros até o palácio para me fazer rei o que me pediram não foi que eu pensasse! Mas sim
que eu arregaçasse as mangas e e tomasse a vida- a vida deles- em minhas mãos para ajudá-
los a viver, a lutar contra a miséria, a insegurança e os crimes que nos emboscam entre povos
de lobos...Pediram-me para ser seu chefe e não seu pastor! Acima deles, certo, mas com os
pés sobre a mesma terra que os deles. Diante dos Argivos de longos dentes que começavam a
se mexer para dentro de nossas fronteiras quando o trono ficou vacante, acreditas que eles
precisassem mesmo era de um adivinho? O que iria acontecer não era difícil de adivinhar, te
garanto, pois toda presa fraca encontrada no meio da mata está perdida. Para defendê-los era
necessário um homem. Os deuses estão muito longe de nós, sabes, e não entram em detalhes: é
entre homens que a vida se regula.
Eu fiz o que tinha de ser feito e a cidade foi salva.

Tirésias
ameaçador
E voltaste a perdê-la...
Édipo
Após tê-lo contemplado por um instante,
Com um sorriso malévolo nos lábios
Que naufrágio que é a velhice, não?! Tremes durante a noite e durante o dia és só papo furado!
[0]
E Creonte foi mesmo um maluco em me aconselhar ir te buscar...Talvez antigamente
pudesses ver com clareza, mas esses tempos estão muito longe agora... És um cadáver bem
longe de nós, com as idéias embaralhadas. Quem sabe mesmo já esquecestes o que acabaste
de me dizer. Estás lembrado ainda?..
Tirésias
Eu disse- e repito- que tu és o assassino que procuras!
Édipo
Está bom, dessa vez já passou dos limites!
Chama
Guardas!
Coro
MICHELOTTO & ANOUILH

Adiantando-se
Édipo, este homem é um santo! Sempre foi venerado e escutado em nosso meio! Todo mundo
ficaria muito perturbado se tu tocasses nele!
Édipo
Virando-se para ele, fulo de raiva
Ah é?! Esse traidor tem direito a dar sua opinião? Foi ele que seduziu a Cantora mutante?
Cansaram-se de mim? Minha polícia já me havia advertido disso. Andaram trabalhando com
belas palavras, por detrás das bodegas de Tebas, o cérebro desses obtusos artesãos que fedem
a alho?
Estão acordando a opinião pública que andou meio adormecida? Isso é uma conspiração?
Primeiramente foi ele , esse velho resto de gente que imaginou essa história que só vai servir,
no final das contas, para rebentar em pedacinhos esses seus velhos ossos.
A quem mais essa história poderia servir , a que outro ainda vivo, escondido aí por detrás
deste velho e augusto maluco.
Creonte, talvez?

Tirésias
Violento [00]
Creonte não tem nada a ver com tua infelicidade. És o único artesão dela!
Édipo
Repentinamente começa a gritar
Ó riqueza! Ó realeza! Ó talentos, ó coragem! Todos esses caminhos que julgamos belos, a
inveja não pensa em outra coisa que sujá-los e destruí-los. O poder que esta cidade me colocou
entre as mãos sem que eu o tenha desejado, Creonte o deseja, eu o sei. Creonte, o irmão de
minha mulher, meu amigo desde o primeiro dia! Ele estava bem próximo do trono no dia que
cheguei. E agora ele não pode fazer nada: eu o afastei e está difícil para ele esperar outra vez.
Ele está fazendo algum complô e por isso me envia esse feiticeiro intrigante, este esperto
charlatão, esse cego que possivelmente nunca viu nada , esse sábio venerado pela credulidade
pública e que só usa bem seus olhos quando pode tirar proveito deles. E agora, cita-me um,
somente um caso em que tenhas acertado tua adivinhação, velho impostor! Quando a Cantora
Cadela estava por ai e cantava seus enigmas, por que foi que não encontraste a boa resposta e
assim livrar toda tua cidade da maldição? Claro não era qualquer um que podia resolver, não é,
só adivinhos!!! Mas certamente o que se precisava mesmo era arriscar a pele, isso sim, olhos
dentro dos olhos da fera. E o que viste então? Nem os pássaros nem os deuses te revelaram
nada.
Eu era apenas um viajante solitário, com um saco nas costas e um bastão na mão. Não
consulte os augúrios através das aves apenas olhei a Cantora entro de seus olhos e por fim
arriscando tudo lancei-lhe minha resposta obrigando-a a votar para o nada. É assim que eu me
tronei rei. Mas como eu estou atrapalhando hoje, vocês estão chamando os deuses para ajudá-
los. E tu já te sentes sentado à sombra do trono de Creonte.
Pensas ser o mestre secreto do poder com tuas pequenas frases iniciando por “eu penso,
companheiros, que...”!!!. [0]

Velho palhaço! Essa regeneração vai custar caro a ambos.


A vida é dura, mas eu sempre venci.
Chama mais uma vez
Guardas!
MICHELOTTO & ANOUILH

Coro
Colocando-se entre eles.
Eles fala sob o império da paixão, Édipo, e você também. A verdade só aparecerá se os dois
procurarem juntos.

Édipo
Eu sou o rei e disse que encontraria a resposta sozinho. Então assim será.
Tirésias
És o rei. Mas tenho o direito de te responder de igual para igual, pois não estou a teu serviço:
sou um sacerdote. É a um outro rei que sirvo. Deste-me vergonha ao seres tão cego, então
escuta o que vou te dizer. Aquele que vê tudo tão claramente, não está enxergando o abismo
para onde se dirige, nem vês onde moras e nem quem te deu a vida. Sabes ao menos de quem
nasceste? Dos teus, mortos ou vivos, és o inimigo sem o saberes.
E em breve, se aproximando terrível e com golpes sobre golpes, para teu pai e tua mãe, a
maldição ligada a teu sangue te expulsará deste país.
Então, tu que tens tão boa visão, ficarás em meio à noite e compreenderás que caminhos
proibidos você trilhou, cego, contra o vento. Jamais mortal algum terá sido, como tu, um
brinquedo tão terrível dos deuses.

Édipo
perceptivelmente perturbado [1]
Velha sombra! Velho ódio! Vieste para me fazer medo, foi?

Tirésias
Vim porque me chamaste
Édipo
Gravemente, após tê-lo contemplado um instante em silêncio.
Vá-te embora velho! Eu pouparei teu velho corpo repugnante. Volta para tua montanha velho
louco!
Tirésias
Os autores de teus dias me julgavam um sábio e me pediam conselhos. Conduz-me pequeno!
Édipo
Dando repentinamente um grito
Quem? Espera aí. Falaste dos autores de meus dias. Sabes a quem devo minha vida?
Tirésias
Antes desta tarde receberás a luz e a perderás.
Édipo
Que luz? Uma vez por todas pára de falar em enigmas!
Tirésias
Com um certo brilho irônico dentro de seu olho [2]
Não és tão bom em resolvê-los?
Reflete pois, do mesmo modo que fizeste com a Cantora Cadela e encontrarás as respostas.
Édipo
Sorrindo
MICHELOTTO & ANOUILH

Vou te contar uma coisa. Nunca me perdoaste de ter descoberto o enigma sozinho, apenas com
minha razão humana, não foi mesmo?! Tua arte nunca te ajudou, não é verdade?!
Tirésias
Este grande sucesso de tua razão foi o que te perdeu;
Édipo
Se salvei meu país, o que importa o resto?
Tirésias
Duro

Não era teu país e ainda não é teu país. És um estrangeiro aqui e é um estrangeiro que matou
Laios.
Agora me leva daqui pequeno, voltemos para casa.
Édipo
É isso, tá na hora dele te levar para tua cabana para continuar profetizando no deserto.
E todos vocês saibam que eu sou Édipo, eu sou o rei e já demonstrei para vocês que não tenho
medo de enigmas.
Tirésias sai, levado pelo seu pequeno guia.
Édipo entra no palácio, os homens e mulheres de Tebas se retiram, sobra apenas o Coro no
palco.

Coro
Chegamos lá.
Édipo está agora pronto para representar a peça pra a qual ele foi sem dúvida criado desde
toda eternidade.
E ele irá até o seu fim.
O homem é um rei que manca.[3] Ela anda com um pé na sombra e o outro no caminho claro
de sua razão e avança sem saber bem para onde vai. Sobre a estrada de luz ele reconstrói
orgulhosamente o mundo e , mesmo com apenas uma perna, ele pode tudo.! Mas o outro pé
segue pela trilha obscura e escorregadia no fundo de seu ser. E é por isso que ele manca, o
infeliz! Algumas vezes ele crê ter vivido como um justo, mas ele apenas esqueceu a besta que
mora nele e que vai se vingar.
Algumas vezes ele viveu como um animal, cedendo a todos seus desejos, mas esqueceu o
pequeno garoto que ele foi outrora e que, quando chegar sua vez, vai julgá-lo, jovem anjo
exterminador que é. Pois no topo de seu triunfo um homem é apenas uma presa dos próprios
remorsos, estranho animal que ele é!
Em todo caso, agora, ele vai regrar suas contas. Vai ter que fugir diante dele mesmo.
As fúrias infalíveis se acordaram de seu pesado sono e estão a cercá-lo. A palavra de ordem
foi lançada. E o miserável que agora circula no meio dos bosques selvagens, touro perdido,
morno, só, com o ruído dos próprios passos, vai tentar escapar em vão, tentando em vão
roubar sua vítima aos deuses.
Creonte
Entra com o resto do Coro
Cidadãos, não é possível o que me disseram! O rei Édipo lançou contra mim uma estranha
acusação!
Venho aqui, portanto, para que me façam justiça!
MICHELOTTO & ANOUILH

É verdade que ele disse que eu subornei o velho adivinho para que ele mentisse?!
Coro
É o que ele pensa...
Creonte
Mas como! Estava em seu juízo perfeito, vendo as coisas com clareza como sempre o vimos
fazer?
Quem o induziu a isso?
Coro
Talvez o deus que quer a sua perda. Mas aproveita para perguntar a ele próprio!
Édipo
Édipo entrando, em em sobressalto ao ver Creonte
Estás aqui?!!!! Como ousas? Desejas me tomar o trono e minha vida, fazes complôs contra
mim e ainda vens me desafiar? Tomavas-me por um cego ou por um covarde quando tramaste
essa coisa toda? Acreditavas que essas tuas intrigas iriam rastejar até mim sem eu vê-las??
Pensavas que pela boa fé de teu velho cúmplice eu me deixaria ser tosado como um
carneirinho sem me defender? Que tentação absurda! Conheces-me mal!
Creonte
Calmo
Eu te conheço,Édipo, bem melhor que pensas e acreditava que me conhecias também depois
de tanto tempo. Em, vez de se atacar como um touro enlouquecido contra um pano vermelho,
não daria para me escutar antes?
Édipo
És um bom advogado e um bom político, eu o sei. Teu ofício são as palavras. Mas mostraste
teu ódio ao me enviares este velho idiota e aí as palavras não resolvem mais. Há um crime
agora entre nós e tu me deves explicações.
Creonte
Que crime?

Édipo
Foste tu quem me aconselhou a chamar o adivinho, não foi?
Creonte
Ora, foste tu quem me enviaste a consultar o oráculo. Só resta agora interpretá-lo.
Édipo
Da maneira que te convir melhor não é mesmo?!
Essa desgraça pairando sobre a cidade, que ocasião maravilhosa para uma boa política de
oposição, não é mesmo!?
Esperavas, ansioso por esta ocasião: a desgraça de Tebas.

Ora, é bem triste, mas que é uma excelente ocasião ah isso é!


Creonte
Estas divagando, Édipo! Mal me conheces. Teu orgulho e tua sede de poder te deixam
perdido. Eu fiz tudo para te servir honestamente durante vinte anos e tu vivias suspeitando de
mim?!
Essa a grande fraqueza dos homens: projetar sobre os outros o que eles trancaram dentro deles
mesmos!
Édipo
MICHELOTTO & ANOUILH

Há quanto tempo Laios sumiu misteriosamente?


Creonte
Logo antes de tua vinda, há vinte anos.
Édipo
Nesta época o adivinho já exercia sua arte?
Creonte
Sim. E todos nós o venerávamos.
Édipo
Nesta época, ele te falou de mim?
Creonte
Nunca. Nunca na minha frente, em todo caso.
Édipo
E vocês não fizeram uma pesquisa a respeito do assassinato?
Creonte
Fizemos uma, como era de nosso dever, mas sem resultado algum.
Édipo
Podes me explicar porque esse tão hábil homem teria guardado segredo sobre estas coisas que
ele acredita ser seu dever nos desvendar hoje e somente hoje?
Creonte
Sei tanto sobre isso quanto tu.
Édipo
Pois deixa-me te dizer uma coisa. Se ele não fosse teu cúmplice após esse tão longo silêncio,
sua memória não teria voltado assim tão subitamente. É a seu favor que ele veio intervir
neste desastre.
É um fenômeno conhecido , a oposição se esconde sempre logo após os desastres!
Creonte
Calmo
Édipo, governaste bem este país e até agora tua cabeça tem estado clara. Então, deixa-me
também te colocar uma questão: esposaste de bom grado minha irmã quando o povo quis que
fosses nosso rei?
Édipo
Sim, mas não vejo o que isso tem a ver...
Creonte
Ela divide contigo as prerrogativas reais, não é mesmo?
Édipo
Ela era uma rainha antes de mim e eu sempre a respeitei como uma rainha.
Creonte
Eu era o terceiro na cidade e ambos sempre me trataram como um igual, não foi?

Édipo
Foi assim, mas isso não bastou pelo que parece!
Creonte
Com calma
Falas por ti, Édipo, projetas sobre mim teu orgulho. Tu não poderias viver certamente em paz
nesse lugar aí às escondidas. Mas eu sim. Porque não sou orgulhoso... Eu amo a vida, Édipo e
MICHELOTTO & ANOUILH

vou te dizer outra coisa que vai te revoltar porque não conheces o significado: eu adoro a
felicidade. O poder pelo qual vocês lutam como cães por um osso, eu o julguei pelo que ele
vale.
Eu envelheci, Édipo! Eu amadureci.
E é uma das aventuras que acontece a bem poucos homens ao final das contas.

Eu abandonei junto com os cravos e espinhas de minha cara, a presunção e a sede vã de


poder próprios de meus quinze anos.
Mas não vocês, que vivem lutando nos pátios das escolas para ver quem é o mais forte, não
vocês... [3]
Sou muito rico e não tenho vergonha de sê-lo – isso é um sentimento que só bem mais tarde os
homens aprenderão a apreciar. Sou influente, minha irmã tu nunca me negaram nada, não
concordas? Eu sou o que chama por ai se preferires, um corrompido. Acontece-me de ajudar
sorrindo esses velhos guris cheios de intrigas que pululam ao redor do poder, confesso. Eu os
empurro até perto de ti em troca do prazer de suas mulheres, de uma bela escrava ou de um
objeto raro da casa deles que me agradou.
É , em resumo, uma troca de ilusões!
Pois , creia-me, eu sei colocar também o prazer em seu lugar! Mas creio também que os
homens não descobriram nada melhor para adocicar esse tempo de vida tão absurdo.
E acreditas então que eu iria, trocar tudo isso- que me diverte e muito- pelo tédio pesado e
destruidor que é o do exercício do poder?
Sou um homem superficial, Édipo, com tudo o que isso pode significar de lucidez , de
desprezo e de sabedoria.
Te enganaste. Nunca tive a menor vontade de ficar em teu lugar, tuas suspeitas são puro
absurdo para mim.
Édipo
Jogando pesado [00] também, depois de um certo tempo
És um homem hábil e de uma conversa fácil, isso eu já te disse. E esses bobalhões que te
escutam nunca tiveram que enfrentar realmente a dura realidade de cada dia.
Sorri, com amargura
Eles fingem odiá-los, mas no fundo os pobres adoram os ricos: é o teatro deles! [5]
Mas devo te dizer que teus belos discursos o eram apenas para eles. Eu não sou um público tão
indulgente! [6]
Creonte
Que queres? Expulsar-me do país?
Édipo
Com um sorriso malévolo no canto dos lábios [7]
Para que vás tramar tua teia entre os Argivos? Fizeste um complô para a minha morte. Eu
quero a tua em troca.
Creonte
endurecido
Havia leis em Tebas, antes de ti, sabias? A esta acusação contra um homem livre deverás
acrescentar as provas.
Édipo
Podes crer que as encontrarei!
Creonte
MICHELOTTO & ANOUILH

Eu sei. Com uma boa polícia, nunca se estará em falta de provas... está certo que tu nos
garantiste a ordem, mas também sua contrapartida: a porrada!
Mas Tebas é ainda uma cidade livre desde sempre e eu era seu cidadão antes de ti, estás
esquecendo?

Édipo
Jogando-se contra ele
Estás me ameaçando? Um rebelde, meu guri, a gente esmaga!
Eles lutam até a intervenção do Coro.
Coro
Péraí, ó Príncipes![8] Vocês são irmãos e respeitem Jocasta,que acaba de chegar, ela é a irmã e
a esposa !

Que ela consiga separar vocês!!


Jocasta se joga aos pés deles e os aparta.
Eles se levantam ligeiramente envergonhados.
Jocasta
Infelizes! Que disputa insana é esta entre vocês?O
povo está doente e vem suplicante até vocês- e vocês em resposta se esmurram??!! Vocês são
príncipes!
Creonte
Calmo
Minha irmã, eu não teria jamais levantado meus punhos contra Édipo que é teu marido e meu
rei. Foi ele quem se lançou contra mim, só porque eu lhe disse que há leis ainda em Tebas
que lhe impediriam de fazer o que quer.

Jocasta
E o que ele quer, bom deus!?
Creonte
Meu exílio e minha morte.
Jocasta
Pálida, volta-se para Édipo
O que é que ele está dizendo, Édipo?!
Creonte
Frio
A verdade. Acabei de surpreendê-lo tramando com pérfida destreza um complô contra mim.
Oh começo a conhecê-lo este teu irmão!
Creonte
Para o povo, de repente, com solenidade

Escutai-me todos! Que a maldição divina caia sobre mim, que eu morra imediatamente pela
mão dos deuses se por acaso eu tiver feito qualquer dessas coisas de que ele me acusa!
Jocasta
Em nome dos deuses, creia nele, Édipo! Respeita seu juramento solene!
E me respeita também e a esse povo que te escuta!
MICHELOTTO & ANOUILH

Coro
Príncipe, estamos em Tebas, onde um juramento é garantido e tem direito ao respeito.
Entre nós o homem que jurou é sagrado e só uma prova irrefutável pode ir contra ele. Essas
são as leis de Tebas.
Édipo
Sombrio
Eu conheço igualmente as leis de Tebas. Elas também dizem que sobre a maldição que lancei
não posso voltar atrás. Se vocês escolhem acreditar nele e neste adivinho- muito bem
guardado por vinte anos em seu bolso- vocês estão escolhendo me condenar ao exílio e à
morte [8] e é isso o que querem?
Um silêncio geral. Ele conclui com calma
Contudo, minha esposa, eu não quero aumentar teu pesar. É teu irmão então eu o pouparei por
amor a ti.
E que ele desapareça. Que deixe essa cidade de uma vez por todas.
Que vá fazer seus complôs lá no fundo dos infernos!
Mas que saiba que leva consigo todo meu ódio.
Creonte
Com dureza
Adeus, Édipo. Esta noite eu atravessarei a fronteira. Mas teu orgulho e tua violência serão tua
perda.
Acabarão por destruir também a ti.
Édipo
Grita de repente exasperado
Vais ou não vais me liberar de tua presença?
Creonte
Está feito. Te deixo sozinho contigo mesmo. É o bastante para que eu me sinta vingado.

Sai rapidamente.
Todo mundo está pasmo até que finalmente o coro fala.
Rainha, o que esperas? Pega Édipo pelo braço e vá para dentro do palácio com ele.
Se não ele não se acalmará nunca!
Jocasta
Voltando a si
Mas, de que ele é acusado?
Édipo
duramente
De ter matado Laios.
Jocasta
Grita, espantada

Isso é monstruoso! Sobre o que nisso se fundamenta? Sobre qual relatório, sobre qual
pesquisa?
Édipo
Duramente
Ele não se acusou a si próprio, mas ele subornou o velho adivinho que mandou buscar das
montanhas.
Jocasta
MICHELOTTO & ANOUILH

A partir das visões de um adivinho?!!! Posso te acalmar, Édipo, com apenas uma palavra:
ninguém sabe o que os deuses querem e eles não tem necessidade de ninguém para nos fazer
conhecer sua vontade. Eles dão conta disso sozinhos. Escuta antes o que vou te contar e verás
o que valem os oráculos. É uma coisa triste sobre a qual eu nunca mais quis pensar, mas se
ela pode te ajudar a te acalmar, eu te conto.
Um oráculo enviado a Laios antigamente, claro que não pelo próprio Apolo, mas por um de
seus sacerdotes, lhe havia anunciado que ele deveria morrer pelas mãos de um filho que ele
teria de mim. Pois bem: foram os bandidos das estradas, exatamente quando lá ia ele de novo
consultar os oráculos, que o assassinaram num país estrangeiro, no cruzamento de duas
estradas. Além disso, 3 dias apenas após o nascimento da criança. Laios mandou amarrar os
pés dele e jogou-o pela montanha abaixo. Apolo não realizou o oráculo de seus sacerdotes e
Laios não morreu pela mão de um filho como ele andava obcecado pensado e com medo.
Contudo foi este caminho que as profecias lhe haviam traçado.
um pequeno silêncio e ela acrescenta.

Não dês demasiada importância a o que esse velho diz e deixa os deuses decidir sozinhos o
que eles bem quiserem e quando eles bem o quiserem.
Os deuses não tem necessidade de adivinhos. Vem agora, entremos em nossa casa.
Édipo
Sonhador
É estranho, minha mulher, mas ao te ouvir alguma coisa me perturbou.
Jocasta
O quê, meu amor?
Édipo
Disseste-me que Laios foi morto numa encruzilhada...
Jocasta
É o que se dizia antigamente e todo mundo sempre acreditou nisso.

Édipo
E em que região isso se passou?
Jocasta
O país se chama Fócida e o assassinato teve lugar onde a estrada que vem de Delfos cruza
com a de Daulis.
Édipo
E quanto tempo se passou des desse acontecimento?
Jocasta
Soubemos do crime pouco antes que tu chegasses aqui
Édipo
Murmura estranho, como que para si

Ó Zeus! O Que premeditaste para mim?!


Jocasta
Inquieta
Que pensamento assombra tua face, Édipo?
Édipo
Espera! Não me interrompa agora. Diga-me antes qual o aspecto de Laios, com quem ele se
parecia?
MICHELOTTO & ANOUILH

Jocasta
Mas já te disse mais de mil vezes! Seus cabelos começavam a embranquecer.
O aspecto? Que posso te dizer? Parecia-se contigo agora, grande forte, se mantendo bem ereto.
Édipo
Podes me dizer algum outro detalhe mais preciso?
Jocasta
Abraçando-o

Mas por que, meu amor? Para te fazer sofrer mais ainda?
Havíamos combinado de nunca mais voltar a falar dele..
Édipo
Sim, mas eu creio que esta noite precisaremos falar mais uma vez.
Jocasta
O que é que estás querendo dizer? Estás me dando medo..Eu não ouso mais levantar meus
olhos para ti.
Édipo
Acho que lancei minha maldição um pouco precipitadamente.
Pede ainda timidamente
Podes me responder ainda sobre um último ponto?
Jocasta
O medo está começando a me paralisar, mas pergunta que eu te responderei.
Édipo
Laios viajava com uma pequena escolta ou viajava bem escoltado como um chefe de estado.
Jocasta
Ele queria enganar a Cantora Cadela e por isso partiu com apenas 3 de seus homens e um
rastreador.
E o único carro era o seu.
Édipo
Estranhamente calmo
Está certo. E quem te contou essas coisas, mulher?
Jocasta
Um doméstico. O único sobrevivente do massacre.
Édipo
E ele vive ainda nesta casa?
Jocasta
Não. Pouco após tua chegada ele te viu colocado como rei no lugar do rei defunto e então me
suplicou para deixá-lo ir-se embora para os campos como pastor. Ele não parava de ter medo
desde que chegou aqui.
Dizia que não queria mais ver a cidade. Eu o deixei partir.
Mesmo para um escravo,era o mínimo que eu poderia fazer para pagar por sua fidelidade.
Édipo
Pergunta, neutro.
Ele morreu depois disso?
Jocasta
Creio que não
Édipo
Poderemos encontrá-lo ainda?
MICHELOTTO & ANOUILH

Jocasta
Claro. Mas por que o faríamos?
Édipo
Neutro
Eu quero vê-lo. Quero escutar sua história.
Jocasta
Faz um gesto terno, de mulher.
Ele virá, te prometo. Vou mandar buscá-lo. Mas sou tua mulher, Édipo, e sinto que há um
segredo entre nós e sabes que deves me dizer sempre tudo.
Édipo
faz um gesto também com sua mão
Está certo. Nunca tive outro confidente que tu. Sempre fui meio solitário... Quando vim, eu
fugia de meu país. Eu apenas te disse que eu era gente de bem e respeitaste meu silêncio..
Hoje vou te contar eu sou o filho de Políbio, rei de Corinto, minha mãe Mérope é também uma
princesa dórica. Cresci lá como um dos principais do reino, junto com meu pai.. E depois, um
dia, eu tinha pouco menos de vinte anos, um homem pegou do vinho- e todo mundo já havia
bebido um pouco além da conta, e me tratou como se fosse supostamente seu filho.
Ferido em meu orgulho, e também bastante bêbado por outro lado, eu me joguei por sobre ele.
Os outros nos separaram me dizendo que ele não sabia o que dizia. E logo no dia seguinte eu
fui perguntar a meu pai e minha mãe.

Eles se indignaram também e me acalmaram com palavras carinhosas.Apesar da ternura deles


ter-me sido agradável, a queimadura do insulto havia penetrado profundamente em meu
coração. Então, algum tempo depois, sem que eles soubessem, eu pretextei ter que fazer uma
viagem de há muito desejada e parti para consultar o oráculo de Delfos.
O oráculo não se dignou de responder à minha questão, curiosamente. Mas o sacerdote que o
interrogava me olhou de repente com um tipo de terror. Eu a enchi de perguntas em vão. Só
que um pouco de ouro desatou a língua dele, pois esses santos homens não desprezam o ouro,
e ele acabou por me dizer, aos trancos e barrancos, como se já se arrependendo de tê-lo dito,
uma coisa monstruosa: que eu mataria meu pai e que me casaria depois com minha mãe.
Assustado eu despedi os que eram de minha comitiva e seguí sozinho pela estrada, decidido a
nunca mais voltar a Corinto. Eu não conseguiria mais, após o que ouvi, voltara vero rosto de
meu pai e o de minha mãe.
Um silêncio. Continua gravemente
És minha mulher, Jocasta, me salvaste de tudo e o mais difícil ainda me resta a te dizer...
Ao atravessar a Fócida em um caminho estreito, perto do cruzamento de duas estradas, um
carro avançou contra mim. Estavam atrelados dois cavalos novos, precedido por um
rastreador, conduzido por um homem de estatura elevada, cabelos já meio brancos. O
rastreador primeiro e depois o ancião começaram a me insultar, exigindo que eu saísse do
caminho. O criado me derruba e me joga contra os arbustos. Logo eu bati nele e parti para
cima do mais velho. Ele, vendo-me passar ao lado do carro, me bate duas vezes na cabeça com
golpes violentos. Cego pelo sangue, endoidecido, batí-lhe com meu bastão . Ele cai e roda
para baixo do carro com os cavalos apavorados e então a roda acaba de lhe quebrar o crânio.
Um tempo. Retoma pesadamente
Tive medo. Aí sai matando todo mundo.
Espero quer não seja ele. Mas se Laios tem algo em comum com esse viajante, a maldição
solene cai sobre mim mesmo que a lancei. Ninguém daqui por diante poderá me dirigir a
MICHELOTTO & ANOUILH

palavra em me dar abrigo. Serei expulso de todas as casas, pois com essas minhas mãos que o
mataram eu estarei sujando a memória do morto.
Jocasta
Ficou por um momento espantada
E imediatamente se joga em seus braços urrando
Não, não foste tu, meu amor, não foste tu. Não foste tu!
Édipo
Afasta-a docemente
Agora não ouso mais te tocar, Jocasta.
Jocasta
Grita, ajoelhada, agarrando-se em seus joelhos
Meu amor! Meu único amor! Eu sei que não foste tu!
Édipo
Sombrio
Só este pastor pode no-lo dizer. Era sem dúvida o quarto e deve ter fugido rapidamente, pois
eu matei apenas três.
Se ele contar a mesma história mas disser que havia uma gangue de assaltantes então meu
medo desaparecerá pois eu matei a todos sozinho.

Jocasta
Ele não pode voltar atrás no que disse, meu amor. Toda a cidade o ouviu e eu também.
E toda a pesquisa que foi feita dizia a mesma coisa.. Creonte mesmo te dirá isso...
Ela o acaricia timidamente
Ó meu amor, eu vou expulsar todas essas sombras de ti e te reencontrar como eras antes.
Édipo
Esperemos este homem. Só ele poderá fazê-lo.
Jocasta
Mas mesmo que ele volte atrás em seu testemunho- o que é possível pois ele deve estar já bem
velho – se sobre um ponto ou outro ele não estava tão seguro de si, nunca seu testemunho
poderá provar que Laios foi morto segundo as profecias, já que o oráculo lhe havia predito que
ele iria ser morto por um filho meu.
E como poderia então o pobre pequeno matar seu pai, se ele morreu antes?
Disse isso estranhamente.
Édipo, tocado toma-a por entre as mãos

Édipo
Isso está te fazendo mal, não é mesmo? Nunca quiseste me falar deste menino...
Jocasta
Num estranho tom neutro
Eu nem tive tempo de amá-lo...
Sorri, expulsando sua tristeza e beija a mão de Édipo
Mas não estás vendo bem, meu amor, que não se pode acreditar nos oráculos?!
Ela o arrasta, puxando-o pelos ombros
Vem. Vem meu pequenino que tem medo de fantasmas. Vem dormir. Já é tarde e esta jornada
foi por demais rude. Mas sabes bem que perto de mim, todas tuas penas desaparecem...
Édipo
Seguindo-a, dócil
MICHELOTTO & ANOUILH

Tu és boa. Tu curas tudo. Mas esperemos ainda a chegada deste pastor....


Entram no palácio. O Coro vá em direção do resto de pessoas que ficou no fundo do palco.
Coro
E eis meus amigos que a noite cai sobre Tebas e o rei e a rainha vão tentar dormir...
O que vocês ouviram esta noite, é melhor não dizê-lo a ninguém mais.
Os segredos dos reis não são tão bons assim para que a gente os descubra.
Entrem em suas casas , vocês também, pessoas boas. Entrem em suas pobres casas onde em
troca de sua dura vida de trabalho , pelo menos o cansaço, ao tombar a noite, terá piedade de
vocês e lhes acalmará.
Não creio que os dois dormirão hoje sob cortinas de púrpura.. Vocês invejam tantas vezes a
sorte dos grandes e pensam sempre que os deuses são injustos, uma vez que eles teriam podido
se ocupar melhor de vocês. Não se deve pensar assim. Felizes, isso sim, aqueles a quem os
deuses esquecem!
A luz cai quando eles saem até a escuridão.
Quando Jocasta retorna, é de manhã.
Ela sai do palácio seguida de suas filhas( [Antígone e Ismênia]
E vai colocar oferendas num pequeno altar doméstico que se vê ao fundo.
O povo humilde já está lá, esperando também para fazer suas oferendas
Jocasta
Gente de Tebas, eu venho oferecer ao deus em seu altar familiar essas coros e esses perfumes.
Juntem-se a mim com suas oferendas.
Édipo, o rei de vocês é um joguete de mil pensamentos que o estão deixando perturbado..
Um homem razoável, comparando as profecias, julgaria as novas pelas antigas que mentiram e
não prejudicaria a vontade dos deuses. Ele, infelizmente acredita em tudo o que se lhe dizem
se for de encontro a suas crenças.
Eu passei toda noite em vigília a seu lado, balançando-o como se balança uma criança doente
no berço e finalmente ele conseguiu dormir....
Ajoelha-se diante do altar e deposita nele suas oferendas
Ó Apolo Liceu, guarda de nossa vizinhança, venho te oferecer essas primícias. Tu que sondas
os corações e os rins, conheces meu marido. Faça com que ele apareça livre de toda sujeira.

O pavor toma conta de todos nós quando o vemos assim, a ele, nosso chefe, igual a um piloto
que perdeu a cabeça... Envia alguém, envia um de teus mensageiros celestes para livrá-lo
disso...
Todo estão prosternados.
Um homem aparece do lado onde está situada os montes atrás deles.
Hirsuto ,bebum.
À primeira vista ele parece estar sóbrio.
Um Homem [9]
Ô desgraça como está quente! E que estradinha ruim! Talvez um de vocês pudesse me
informar...
Tira de lado uma garrafa de sua blusa e bebe um gole furtivo.
Depois interpela.
Ei pessoal. Dá para me dizer se já estou em Tebas? Onde posso encontrar o palácio do rei
Édipo?
Ou melhor, onde eu poderia encontrar o próprio?
Coro
MICHELOTTO & ANOUILH

Que se levantou junto com os outros


O palácio está bem ali, fácil de encontrar.

E esta mulher que estás vendo aqui é a mão de seus filhos..


O Homem
Tira seu chapéu sujíssimo
E a saúda com uma ênfase grotesca.
Eu desejo à esposa do rei todo tipo de prosperidades para ela e para todos os que andam em
redor dela e...
Jocasta
Voltando-se e cortando os agradecimentos
Te agradeço, estrangeiro, Mas por que queres nos ver? Que tens a nos dizer?
O Homem
Boas notícias para tua casa e teu marido, rainha!
Jocasta
Notícias!...e da parte de quem?!
O Homem
Notícias de Corinto. Quando digo boas...bem são boas para uns e ruins para outros, não é
sempre assim?
É a vida, minha rainha! Mas como rainha conheces melhor que eu que não passo de um pobre
pobre...
Jocasta
Com um leve sorriso
Explica-te melhor. Pareces bem cansado.
O Homem
Esse calor, minha rainha! E a estrada está em péssimas condições e eu vim na toda porque
queria ser o primeiro a dar a notícia. Então antes de dizer, já que ninguém chegou na minha
frente, permita-me dessecar e lubrificar um pouco minha goela com um pequeno golinho de
nada, minha rainha?!
Bebe, enxuga a boca passando o braço de lado por sobre ela e fala
Bem, lá vai. Estão dizendo lá em nossa terra que se precisa encontrar Édipo o mais rápido
possível, pois vai ser eleito rei pelos habitantes do Istmo.
Jocasta
Por quê? O rei Políbio não está mais sobre o trono?
O Homem
Deitadinho está ele sobre seu último trono, a cova! Todo mundo chega lá, minha rainha,
até...me desculpe!
Jocasta
Dá algo como um grito de libertação interior
Estás certo que o velho Políbio...
O Homem
Foi-se embora...tão verdadeiro quanto eu estar aqui à sua frente vivo.
E em sua homenagem, para pranteá-lo um pouco, peço humildemente a vossa majestade a
licença de dar um brinde à grandeza do papai de Édipo, tão tristemente falecido, ok?
Como o homem, madame, é um ser fraco, não é mesmo?!
MICHELOTTO & ANOUILH

Jocasta
Com um grande suspiro dessa vez de alívio, ela grita
Ah Jocasta, corre para dar essa notícia a teu marido!
E grita para o céu, com ódio
Oráculos divinos, pois sim! Bando de mentirosos!
Édipo se trancou dentro de casa por temer haver matado seu pai. E ale acaba de morrer agora,
que belo!
Édipo
Aparece esfregando os olhos, olhar desgarrado
Jocasta, tive a maior dificuldade em dormir. Por que, então, me chamaste tão cedo?
Jocasta
Jogando-se contra ele, agarrando-o, apertando-o
Acorda, meu home! Acorda querido! Escuta este estrangeiro e verás que os oráculos não
valem nada!
Ela o aperta contra si histericamente
Ah! Meu querido! Meu querido estás de volta, enfim esses sombrios augúrios nos abandonam.
Édipo
Mostrando o velho Homem

que se acaba de tanto fazer rapapés grotescos saudando-o


Estás falando deste homem aí?
O Homem
De mim mesmo, meu rei!
Édipo
Quem é ele? E o que deseja?
Jocasta
Veio de Corinto para anunciar que Políbio, teu pai, acabou de falecer.
Édipo
Empalidecendo
Que disseste, estrangeiro?
Diga-me de novo a tua mensagem!
O Homem
Faz desajeitadamente uma saudação de antigo militar
Quando a situação é grave, na ausência do chefe, diziam os chefes, é preciso ter iniciativa. Foi
o que fiz., por decisão própria! Parti correndo, bem não tanto porque estava muito quente e a
garganta toda hora ficava seca, mas mesmo assim cheguei aqui primeiro.
Teu pai passou a arma para o outro lado, chefe! É Isso aí: foi riscado da armada!
Édipo
Por mão criminosa ou por alguma doença?
O Homem
Faz um gesto explicativo
Ora, você sabe chefinho, nesta idade basta uma corrente de ar e puf ... lá se foi nosso rei.
Já estava na hora mesmo, o velho já tinha vivido bastante, podes crer.
Édipo
Tendo dado um enorme suspiro de libertação, grita
Quem lerá agora o futuro ouvindo pipiar de aves agourentas!!?
MICHELOTTO & ANOUILH

Se fosse para crer neles eu deveria ter matado meu pai, e ele morreu enquanto eu estava aqui
dormindo e eu não saí daqui.
Grita enternecido
A meu caro e velho pai que não matei, perdoa-me esta alegria indigna – mas para o Hades
onde foste repousar, carregaste junto todos meus pesadelos!
Jocasta
Eu não tinha te dito, meu amor, eu não tinha te dito!!!
A noite toda eu acariciei tua fronte molhada de suor e fiquei repetindo que não se pode
confiar nos oráculos...

Édipo
Gravemente
Eu estava com muito medo.
Jocasta
Mas acabou, meu amor! Volta para cá, meu herói. Estás livre!
Podes olhar o destino na cara , como o fizeste com a Cantora Cadela e o vencerás também!
Édipo
Mas mamãe vive ainda...
Jocasta
Vai para de se atormentar, não vai? Esquece tua mãe, tu só tens a mim agora!
Sou eu agora quem a substituo. Já cresceste. Não és o primeiro homem que dividiu em
sonhos o leito de sua mãe. É preciso vencer esses medos absurdos e deixar a vida voltar a ser
simples.
É preciso deixar a noite para a noite e não esperar nada dos sonhos. Teu pai morreu, Édipo e
não o mataste!
Édipo
...Mamãe está viva ainda.......
O Homem
Que os escutou, meio bebum ainda, bebericando mais uma golada de lado fala
Quem é essa mulher que te dá tanto medo, chefe, se não for muito indiscreto de minha parte
perguntar?

Édipo
É Mérope, velho, a mulher de Políbio.
O Homem
Mas qual é mesmo o tipo de seu medo, meu chefe?
Édipo
Um oráculo enviado pelos deuses
O Homem
Será que daria para eu também saber o que é, meu chefe...claro, claro, se não for um segredo
de família...
acho que tenho uma idéia, não é muita coisa não, mas certamente pode ajudar
Édipo
O sacerdotes predisseram antigamente que eu iria para a cama com minha mãe e que eu
derramaria o sangue de meu pai. Essa a razão de eu ter fugido de Corinto.
O homem
MICHELOTTO & ANOUILH

É por isso que você se mandou um dia , como se tivesse ido virar monge trapista [10]
Todomundo andou te procurando, meu chefe!!!
Édipo
Eu sei meu bom homem.
O Homem
Ó Chefe, tudo o que eu queria era servir à vós, uma pena mesmo que eu não tivesse sabido
desses teus pobremas antes!

Édipo
Fique tranquilo. Serás bem recompensado por me teres trazido notícia tão boa .(pensando no
pai) Meio boa.
O Homem
Tenta mais uma vez saudá-lo desajeitadamente como soldado
O primeiro chefe! Fui o primeiro a chegar aqui! Tomei a iniciativa como me diziam os velhos
chefes e sai na toda porque eu sabia que você não conseguiria nunca deixar de pensar em mim
no dia em que voltasse a nosso país!
Édipo
Políbio está morto, mas Mérope está viva e isso significa que não voltarei nunca a Corinto!
O Homem
De repente
Meu filho- permita-me dar mais uma relembradazinha eu ficou seco por dentro quando ouço
essas coisas terríveis...
Bebe outra golada de lado, cada vez a bebe furtivamente, apesar de pedir licença
Meu filho, digo eu, a gente vê bem que estás falando sem saber bem o quê..

Édipo
Estás querendo dizer o quê com isso meu velho soldado?
O homem
Que se é só esse negocinho ai de tua mão estar viva, que te impede de voltar a Corinto, tás te
esquentando por um nada, filhote... Sabe esse negócio de teus pais...todo mundo acreditava
nisso, mas eu não.
E eu estou cheio de razão, presta atenção!
Édipo
Crispado repentinamente.
Agarrando –o pela frágil gola de sua camisola de época
Que que estás dizendo, ó homem?! Eu não sou o filho deles, é isso??! Um bêbado é quem tem
razão?!
O Homem
Protestando por ter sido sacudido
Ei, ei, ei, péraí, meu chefe, qual é essa agora de sair saacuudiindooo o velho, olha a terceira
idade ai, mêu!
Calma! Estou te prestando o maior serviço de toda essa tragédia e fico ai sendo saacuudiidoo,
oh!
Posso garantir que o Políbio não tinha uma gotinha só de sangue seu. Ou é o contrário?!
Édipo
Políbio não era meu pai?
MICHELOTTO & ANOUILH

O Homem
Com todo respeito, meu grande chefe, ele era teu pai tanto quanto eu era tua mãe!
Édipo
Grita ainda angustiado
E porque Hades ele me chamava de filho, então?(11)
O Homem
Foi ele quem te criou, então era assim como se fosse, né!
Mas fica sabendo que há muito tempo ele recebeu você de minhas mãos...
Édipo
Após um silêncio de espanto
E esse seu menino adotivo, ele o amava muito?
O homem
Mas claro! Bote-se no lugar dois dois, meu chefe! Eles não podiam ter filhos, nem ele nem a
rainha. É isso!
Édipo
Mas quando você me deu para ele, você tinha me comprado, tinha me achado ou o quê?
O Homem
Na maior felicidade por poder enfim representar seu papel
Descoberto no meio dos arbustos, num desfiladeiro do Cíteron! ... Bée.Bée.Bée....
Eu pensei que tinha perdido um cordeirinho, sai procurando e olha o que encontro: um
garotinho cagão de 3 aninhos . Com todo respeito, mas você criancinha cagava muito, ave!
Édipo
Estavas fazendo o que lá no Monte Cíteron?
O Homem
Tomando conta dos rebanhos na montanha.
Édipo
Eras pastor nômade ou a soldo de outra pessoa?
O Homem
Eu pertencia ao mestre, mas era um homem livre! E depois que importa, eu consegui te salvar,
meu filho! No estado em que estava não iria durar muito não,sabe?!Restou uma lembrancinha
aí em você...Olha pro chão, tas vendo os pés? Pois é todo mundo sabia que ias suceder a
Políbio, então nas cozinhas , nas estrebarias do palácio tinha gente que dizia:” porque rei se
coxo?!” e eu sempre respondia te defendendo: “ porque coxo, se rei?!” [12]... Tem gente ruim
pra todo lado, sobretudo nas cozinhas dos palácios, sabes....
Édipo
Crispado, gravemente
Por que me relembras este antigo sofrimento?

O homem
Porque fui eu que desfez as cordas que te amarravam, e olha que foi um serviço bem feito!
Você tinha a ponta de cada pé transpassada. É por isso que te deram esse apelido...
Édipo
Grita
Quem? Quem fez isso comigo? [13] Meu pai ou minha mãe? Diga logo!

O Homem
MICHELOTTO & ANOUILH

Sei lá, nunca soube da onde isso saiu... Mas o que te entregou a mim deve saber porque essa
coisa ruim toda...
Édipo
E porque você não o encontrou você mesmo?
O Homem
Temos que nos entender, meu chefe! Fui eu quem te salvou.
Sem mim os lobos não iriam demorar muito a te encontrar o outro apenas te coloco nos
arbustos e como éramos amigos ele lhe liberou para mim antes de se mandar.
Édipo
Era também pastor? Lembras como era?
O Homem
Claro, a gente pastoreava um do lado do outro lá na montanha.

Édipo
Podias nos dar indicações sobre como achá-lo?
O Homem
Fazendo um gesto de negativa
Já se passaram muitos anos. Em todo caso dizia-se que era escravo de Laios.
Édipo
De Laios? De que Laios, o antigo rei deste país?
O Homem
Dele mesmo. Ele me dizia que tomava conta dos rebanhos do rei.
Édipo
Mas será que ainda vive?
O Homem
Um gesto indicativo.
Bem quem sabe aqueles ali que são da região saibam ainda alguma coisa...
Édipo
Para o Coro
Algum de vocês conhece este pastor de quem ele está falando? Alguém o encontrou alguma
vez? Falem!
Agora é a hora dos esclarecimentos.
Eles todos olham para ele, mudos.
Ele se volta para Jocasta, pálido
Mulher, pensas que o homem que mandei buscar, o que deixou a cidade logo após o
assassinato é o mesmo homem que esse pastor de Laios?
Jocasta
Voz sem expressão
Era um doméstico de Laios, já te disse. E ele pediu para se tornar pastor.
Édipo
Tornar-se pastor, é o que me dizes!? Ele já havia sido pastor antes então?
E por que Laios o havia tomado como doméstico em seu palácio, tirando-o da condição de
pastor?
Ele deve ter prestado um enorme serviço a Laios, não?!
O Homem
Repentinamente com voz dura
MICHELOTTO & ANOUILH

Não sei. Cala-te. Todas essas palavras. Todas palavras! O que é que vocês homens têm
sempre que ficar procurando? Não basta estar vivo?
Eu sou tua mulher, eu te amo, tu me deste 4 filhos, Polinice e Etéocle , meninos fortes e belos
como tu, e a terna Antígone e a doce Ismênia... Essa é a tua vez de seres um homem.
Por que buscar um pai. Esqueça teu pai e tua mãe, eles não são mais nada para ti. Por que
remexer nessas sombras? Por que se perguntar de quem você é filho? Tua realidade, tua
única realidade somos nós, tua mulher e teus filhos, esse é teu ofício. Nós somos tudo o que
podes tocar com tuas mãos de homem, tudo o que pode te alimentar todos os dias.
Deixa que os deuses se divirtam com os restos!!
Édipo
Tenho impressão que eles já começaram a se divertir...
Jocasta
Jogando-se em seus braços
Sejamos felizes enquanto nos deixam em paz, como dois animais que se esquentam um ao
outro sem nada saber.
Os animais são mais sábios que nós. Enquanto a flecha não tocar neles, eles continuam a viver
e a morte deles não será mais que um simples acidente: eles a colocam a morte em seu lugar!
Só os homens é que gostam de fazer perguntas. Édipo, nesse momento nós ainda podemos
viver! Não peças mais nada.
Édipo
Livrando-se dela
Eu devo saber.
Como que tendo um rictus monstruoso repentino
E quando com meus pés traspassados descobrirem que sou escravo há três gerações, a
desonra não será tua!
Jocasta
Caindo de joelhos agarrando-se em suas pernas

Eu te suplico, Édipo! Deixa-me viver! São as mulheres que sãos as sábias. Elas são as únicas
que conhecem a vida porque elas é que a carregam e a dão. Elas cuidam, alimentam,
consolam, sem jamais fazer perguntas.
Elas são sábias: elas aceitam.
Édipo
Repelindo-a brutalmente
Eu começo a me encher a paciência com esse monte de sabedoria!
Jocasta
Derrubada por terra
Olha-o ternamente
E murmura, estranha.
Meu pobre menino. Pudesses nunca saber quem em verdade és.
Édipo
Urra, andando como um animal feroz em sua jaula.
Irás me trazer esse pastor ou não afinal? Não ligue para ela, deixe-a contar vantagem sobre sua
rica família!
Jocasta
Levantando-se com dificuldade
Subitamente envelhecida, apenas diz
MICHELOTTO & ANOUILH

Minha pequenina criança! Vou te esperar lá dentro de casa!


Entra no palácio. O Coro se junta a Édipo
Coro
Édipo, tua mulher entrou no palácio com o rosto empobrecido daqueles que não tem nem
mais força para gritar. Junte-se a ela. Fale com ela.
O silêncio dela é cheio de infelicidades que não vão tardar , tememos, a explodir.

Édipo
Urra imediatamente como que liberado
Ora, que explodam! Não aguentamos mais esperar por isso, essa a verdade!
Xinga
Que raios está fazendo esse pastor? Por mim não me importa quão baixo seja meu nascimento,
eu quero saber de onde vim! As mulheres são vaidosas,que ela fique lá para dentro para
esconder-se da vergonha de minha origem humilde. Eu me proclamo o filho da Fortuna e a
Fortuna me tratou bem, eu não a renegarei.
É essa minha verdadeira mãe! Ao longo de meus dias eu conheci altos e baixos, mas assim
nasci eu e assim vou ficar. E venha eu de onde vier, eu o aceito!Eu sou mais eu! Eu sou
Édipo, o coxo que se tornou ei!
E os deuses, eu gosto de olhá-los bem nos olhos!

Entram dois homens, trazendo um velho apavorado. Édipo o olha e pergunta.


Quem é este homem?
Coro
Mansamente
É ele, Édipo. O antigo pastor de Laios!

Édipo
Com um suspiro de alívio
Enfim! Olha-me bem, velho homem, sem medo! Não te desejo mal algum.
E responde bem às minhas perguntas. Estavas ao serviço de Laios outrora?
Pastor
Sim, como escravo.
Acrescenta com um certo orgulho insólito
Não comprado, nascido na casa.
Édipo
Você trabalhava em quê?
Pastor
Passei toda minha vida a tomar conta dos rebanhos
Édipo
Em que região tu os apascentava habitualmente

Pastor
Ora no Cíteron. Ora nos pastos ao redor. Dependia da estação.
Édipo
Mostrando-lhe o Homem
Estás vendo este homem? Lembras-te de tê-lo encontrado antigamente nesta região?
Pastor
MICHELOTTO & ANOUILH

Olha- o durante um pesado silêncio.


Finalmente diz com voz pesada
O quê ele fazia lá? De que homem você está me falando?
Édipo
Com uma calma assustadora
Este homem aqui. Olha-o bem. Nunca fizeste nenhum negócio com ele?
Pastor
Há já muito tempo atrás. Eu esquecí-me de muitas coisas, sabe...

O Homem
Não é admirável, meu mestre, como ele foi paparicado! Mas vou lhe refrescar a memória. Os
pastores ficam sempre sós com o cão e as ovelhas, durante meses. Então não é bem assim
como na cidade onde vocês, vocês têm o hábito de...Breve, quando se tem um colega, as gente
nunca esquece. Ele me conheceu muito bem lá no Cíteron. Nós conduzíamos sempre ele dois
rebanhos e eu um só, era ou não era, companheiro? Por três vezes nós trabalhamos lado a lado
durante um semestre, da primavera ao se pôr da Ursa Maior. E quando veio a estação ruim,
nós voltávamos com os animais, eu para minhas cocheiras , ele para as de Laios.
Será que eu estou enganado, meu amigo? Não foi assim que as coisas se passaram?
Pastor
Grave
Talvez você tenha dito a verdade. Mas isso tudo já passou, já passou.
O Homem
Mas há coisas sempre que não dá para esquecer. Nem vais me dizer que esqueceste o dia em
que me entregaste uma criança para que eu criasse como se fosse meu próprio filho!
Pastor
Firme
Porque estás me perguntando isso?

O Homem
Mostrando Édipo
Tás vendo ali! È o nosso bebê de antigamente! Precisas de mais razão? Ele prosperou, tás
vendo?!
Pastor
Enrolando os sons em gromelatto
Que a peste te esgane, velho falador!
Não podes segurar um pouquinho essa língua já que estás perto de te ferrar?
Édipo
Sisuda mas docemente
Não ache ruim dele, velho homem. Creio que é você quem merece ser repreendido
Pastor
Gemendo, apavorado
EU não me lembro de mais nada! Estou muito velho! Que é que eu fiz de errado?!
Édipo
Mesmo jogo
Nada, velho homem. Não te afobes. Responda-lhe somente a respeito da criança.
Pastor
MICHELOTTO & ANOUILH

Ele é um velho também! Ele não sabe o que diz. Está naquela idade do “ eu penso, camaradas,
que...”!!!
Édipo
Se não quiseres falar, toma cuidado. Eu saberei como te forçar a fazê-lo!
Pastor
Aterrorizado
Não! EM nome dos deuses! Não deves maltratar um ancião!

Édipo
Rápido, para os guardas
Que se lhe amarrem imediatamente as mãos atrás das costas.
Os guardas se lançam sobre o velho, derrubando-o brutalmente

Pastor
Gemendo
Oh infeliz de mim! Para que tudo isso? Por que tens necessidade de saber das coisas?
Édipo
Enquanto os guardas o seguram bem forte
A criança de que esse homem falou...foi você quem a deu a ele?
Pastor
Enrolando as palavras por entre os dentes (isso é o gromelatto...),
Após um silêncio pesado.
Foi. Mas eu teria feito melhor se tivesse escolhido minha morte naquele dia.
Édipo
Sossega, pois isso irá acontecer hoje finalmente, caso deixes de me falar algo importante.
Pastor
Grave
Se eu falar é que eu vou morrer, isso sim.
Édipo
Grita para os guardas
Este homem está zombando de nós. Apertem mais os nós das cordas!
Pastor
Apavorado, dando um grito de dor
Tá bom! Tá bom Eu já disse que entreguei a criança!
Édipo
Inclinado por sobre o pastor, torcido de dor
Onde você o pegou? Ele era teu? Ganhaste-o de outro?

Pastor
Não era meu não! Eu o recebi.
Édipo
De quem? De que família?
Pastor
Eu te suplico, meu mestre, para por ai tuas buscas!
Édipo
Estarás morto antes de me ouvires repetir esta pergunta. Então...
MICHELOTTO & ANOUILH

Pastor
A criança nasceu na casa de Laios!
Édipo
Escravo ou filho do rei?
Pastor
Grave
Ô meu deus, porque me meteram nisso! Como é que eu vou dizer isso??!!
Édipo
Com dureza
E é mais duro ainda para mim ouví-lo. Mas é preciso que eu o ouça!
Pastor
Dizia-se que era filho de Laios.
Mas a mulher que está no palácio poderá te explicar melhor que eu teu próprio passado.
Édipo
É ele quem te entregou a criança?

Pastor
Foi ela, meu rei.
Édipo
Por quê?
Pastor
Para ir matá-lo

Édipo
Sua mãe? Ah, miserável!

Pastor
Ela era uma menina ainda. E temia a ameaça do oráculo. Tens que entendê-la!
Édipo
Que ameaça?
Pastor
Que a criança mataria seus pais.
Édipo
Mais docemente
Mas você, porque você a entregou a este homem em vez de cumprir as ordens e matá-la?
Pastor
Por pena! Eu me dizia que o levaria para o estrangeiro, bem longe, para seu país.
E que assim, a pobre criança pelo mesmo viveria. Mas, infelizmente, foi o pior que
aconteceu!
Pois se tu és a criança que ele diz ser, teria sido melhor que não tivesses sobrevivido!
Édipo
Com uma calma aterradora
Obrigado, pastor. Fizeste o que tinhas que fazer. Desamarrem-no. Deixai-o retornar à sua
montanha.
Pastor
Eu não quis o mal.
Édipo
MICHELOTTO & ANOUILH

Ninguém nunca quer o mal.

Mas ele está aí para se tropeçar nele. Eu sou a criança que não era querida e eu realizei meu
destino.
Olha por um momento para o sol e diz simplesmente:
A luz do dia está me ferindo.
Volta-se e entra em seu palácio sem dizer mais nada.
O Pastor, o Homem e as pessoas do Povo saem comentando com voz baixa os acontecimentos
O Coro fica sozinho.
Coro
Para o público
Eis ai. Tudo está acabado.Leis muito antigas exigem que do fundo do buraco obscuro sobre o
qual o homem nada, agarrado a sua razão, dizem que é preciso matar seu pai para “ser” e
voltar ao ventre de sua mãe,a terra, para onde tudo volta e de onde tudo veio.
O homem crê na felicidade e se bate por ela com coragem, noite a noite, contra a noite, mas
quando ele acredita ser o levantar da alba, ele é devorado do mesmo jeito que o carneiro no rio
do lobo. E tudo entra de novo na ordem incompreensível dos deuses. As Fúrias, as Eríneas
fizeram sua parte, O resto é apenas detalhe.
O mensageiro sai do palácio, perturbado. Ele é jovem
O Coro lhe pergunta, fazendo pose de coro.
Como foi que a a coisa se passou?
O Mensageiro
Todo pálido
Jocasta está morta.

Coro
Mas claro. As mulheres, elas sempre morrem.

Mensageiro
Louca de horror ela atravessou o vestíbulo sem nos ver, com uivos de animal, depois correu
para seu quarto, batendo a porta com toda força. Nós a ouvíamos amaldiçoar Laios, o velho
rei, que a havia possuído sem amá-la. Depois houve apenas silêncio e estávamos lá,
assustados, sem ousar tocar na porta. Foi então que Édipo surgiu, sem rumo. Gritava que se
lhe dessem uma espada, mas nenhum de nós não conseguia se mover.
Ele nos perguntava também onde estava sua mulher e de repente ele começou a se jogar
contra a porta dela como se ele tivesse compreendido o que estava se passando. Os pesados
batentes resistiam a seus golpes de espádua, mas ele estava com uma força sobre humana
nesse momento e sob seus golpes, a porta finalmente cedeu. No fundo do quarto, toda reta,
mas sem os pés tocar no chão, jazia Jocasta a olhar-nos fixamente do alto de sua écharpe
vermelha...
Penso que houve um minuto de silêncio,depois Édipo com um poderoso grito louco, partiu em
sua direção, cortou o nó e o cadáver caiu sobre ele derrubando-.’Ele ficou ali estendido por
terra coberto por aquele corpo que fora o de sua mãe e que fora o de sua esposa.... O tempo
parou para nós também que lá ficamos estátuas de cera junto com todo o resto que não
conseguia sair do lugar naquele quarto.
MICHELOTTO & ANOUILH

E de repente ele se move e o que fez nos aterrorizou. Arrancou os pingentes de ouro que
enfeitavam as vestes da morta e berrando feito um animal ele os enfiou pelos olhos a dentro,
com ódio e gritava:” Não quero mais ver! Não quero mais ver nada!”. Ele levantava suas
pálpebras e golpeava sem para fazendo jorrar sangue pelo rosto, queixo abaixo, mas não em
fios, em jatos como de uma chuva negra e uma saraivada de granizos sangrentos.
Só aí conseguimos sair daquele aturdimento e nos lançar sobre ele, tentando para o sangue de
qualquer maneira. Mas ele se debatia e berrava que devíamos abrir todas as portas para que
todas crianças de Cadmos vissem cara a cara um parricida!
Não foi fácil ver aquela cena e foi preciso que se juntasse muita gente mesmo para contê-lo.
Foi tratado, ficou mais calmo. Pediu um bastão, dizendo que ele mesmo se baniu e que não
pode ficar em casa.
Que precisa retomar as estradas.
A pequena Antígone, sua filha preferida, decidiu partir com ele e ser seu guia. Nem Ismênia
sua bela irmã, nem sua babá tentaram dissuadí-la desta decisão, mesmo que todas já
soubessem como é impossível fazer Antígone voltar atrás depois que ela se decide a fazer
algo.[14] Só restou a ambas o pranto.
Coro
E quem podia detê-los? A rainha está morta. Creonte está longe e ambos são duas mulas
cabeçudas!
Quanto aos filhos, Etéocle e Polinice, dois pequenos salafrários, com o boca crispada e os
olhos endurecidos, esperavam apenas o momento de disputa entre si a herança e matar um ao
outro caso não fossem controlados.
Édipo aparece, olhos vendados, conduzido por Antígone,
uma pequena adolescente negra e bem magra. Pergunta
Édipo
Já estamos do lado de fora?
Antígone
Sim. Cuidado com os degraus. São três.
Édipo
Está bem. Avancemos. Guia-me. Vamos sair pra estrada do norte.
Creonte aparece.
Antígone pára
Édipo pergunta
Por que paraste? Quem está aí?
Antígone
Direta
Creonte.
Édipo
Voltaste?
Creonte
Sim
Édipo
Tinhas razão, estás vendo?! Estás saboreando teu triunfo?
Creonte
Não
Édipo
Não hesites. Já espero tuas zombarias.
MICHELOTTO & ANOUILH

Creonte
Não posso triunfar sobre ti, Édipo, nem te culpar por teu passado.
Acho apenas que deverias voltar e entrar em casa. Não é decente se mostrar a infelicidade em
praça pública.
Édipo
Os homens e os deuses têm direito ao espetáculo.
Creonte
Murmurando triste
Orgulhoso antes, e para sempre orgulhoso!
Édipo
Sim. É tudo o que me resta. Poupa-me de tuas lições. Mas se tens alguma pena, ajuda-nos
apenas a sair da cidade. É uma criança que me guia e eu estou cego.
Creonte
Onde pretendes ir?
Édipo
Não importa onde, contanto que eu não tenha mais que falar com ninguém. Sobre o Cíteron
que minha mãe e meu pai haviam escolhido para túmulo de seu filho recém nascido. Lá
morrerei , vítima deles, como eles o quiseram no passado. Devemos obedecer a nossos pais...
Eu peço para enterrares...
Pára de repente
..É estranho, eu não sei mais qual nome lhe dar..Enterra aquela que jaz dentro do palácio.
Creonte
E teus filhos?

Édipo
Cuidarás deles. Não se preocupe com meus meninos. Eu nunca os amei, nem eles a mim. Já
estão grandezinhos e terão também que cumprir o que o destino traçar para eles. O futuro está
escrito no ódio que cultivam.
Acaricia Antígone, triste
Mas minhas filhas, não. Toma conta delas. São ainda meus doces cordeirinhos. Doces porque
mulheres, e por isso já armadilhas. Cuida delas.
Creonte
Eu o farei.
Édipo
Quando está me tiver conduzido ao Cíteron, manda teus homens buscá-la e toma bastante
cuidado com ela.
É uma alma coberta de fragilidade, mas dura e sombria no fundo.
Não enfrentes nunca!
Creonte
docemente
Vou tentar, Édipo, vou tentar! Mas vocês são todos de uma família difícil de se lidar com ela e
o orgulho está engastado dentro de vocês.O que é que faz com que os Édipos, as Antígones,
continuem em pé, assim, eretos e duros e inflexíveis? Estou quase certo que terei bastante
problemas com ela também...
Um tempo. Mais firme
MICHELOTTO & ANOUILH

Ontem me desprezaste quando te disse que a felicidade era o suficiente em nossa vida. Não
podemos chamar a atenção dos deuses, Édipo! Temos que nos fazer de bem pequeninos, para
que eles nos esqueçam. É preciso tentar nossa pouca felicidade cada dia, arrancando-a com as
unhas , arranhando mas sem fazer barulho.
Dançar enquanto houver música ! E isso é tudo!
Édipo
É uma vergonha isso!!
Creonte
Sim. Mas é a única chance do homem. No momento em que ele não aceita isso , no momento
em que ele começa a fabricar alguns planos, aí começa o massacre.
Um silêncio pesado
Édipo
Se desviando
Vamos, minha pequenina. Leva-me para longe daqui. Já falei demais com os homens.
Nós tomaremos a estrada de montanha e me deixarás sozinho lá em seu sopé.

Creonte
Com um leve sorriso de certeza
Boa viagem, de todo jeito, seu velho louco! Agora eu tenho que entra em casa, porque me
resta botar ordem em tudo de novo. Alguém vai ter que fazê-lo, e essa vez é a minha.
Entra no palácio enquanto Édipo e Antígone saem e o povinho se desfaz pelas laterais, triste,
abanando as mãos em adeus para os viajantes.
Resta apenas o Coro
Coro
Acabou. Acabou por essa vez. Todos outros voltaram para Tebas, onde a vida de todo dia vai
continuar.
E aí virá a estação em que se deve semear e se esperar que a colheita seja melhor que a do ano
que passou....
Quando houver desgraças, as desgraças passarão sozinhas. Serão apenas uma história
envelhecida que os velhos da cidade contarão para seus filhos e eles aos seus e aos seus e
assim por diante.
E ainda haverá outras doenças, outras coisas chatas, outras misérias....
E bom ano, mal ano, sempre morre um punhado de gente, não é mesmo?!....
A infelicidade, é o que vocês acabaram de ver na história de Édipo, nunca foi uma coisa tão
excepcional assim....

A cortina se fecha em frente ao Coro

Fim

28 de março de 1978
[15]
MICHELOTTO & ANOUILH

NOTAS QUE Muito importa LER


[SE ASSIM O QUISERES]

[0] radotages/radotes. Essa palavra no português tem história e talvez isso valha mais que
toda nossa tradução. Nos tempos de Zé de Alencar e Machado de Assis, seria “parvoíce”( de
parvo, criança), lá pelos idos de 60/70 Roberto Carlos lançou o “papo furado”( que usamos
aqui também em homenagem à data de escritura da peça:1978); láá pelos idos de 70/ 80
Asdrúbal Trouxe o Trombone cunhou como “besteirol” suas obras dentro do mesmo sentido;
os anos 90 não foram pródigos em gírias e radotes eram bobagens mesmo, MAS em sua
segunda metade começamos a ouvir a abertura de um maravilhoso discurso político, que
repercute até hoje em dia (estamos em 2010, data do centenário de Anouilh), concentração
total de parvoíce, papos furados, besteirol & bobagens e falta de pensamento: “eu penso,
companheiros, que...”.
Glória a Lula, seu inventor, difusor, mas graças a deus único utilizador, que conseguiu assim
fazer evoluir a besteira/ radotages do domínio das crianças em 1800 para o domínio do poder
em 2010.
Passando por Roberto Carlos incólume!

[00] sourdement. É a didaskalia mais comum. É uma palavra ampla em francês de teatro. Vai
de pesado a violento, passando por grave e outras tantas emoções (são tantas...). Eu saí as
distribuindo conforme meu conhecimento do português/brasileiro, de Anouilh e do teatro
francês me permitiam. Sou ótimo nas 3 coisas. (não disse “humilde” disse ótimo!)

[1] imperceptiblement troublé. Se imperceptible, a didaskalia se torna desnecessária.


Por isso vertemos ao contrário. Distrações acontecem.

[2]por vezes acho que Anouilh se diverte colocando didaskálias mais para o cinema que para
o teatro...
“un lueur ironique dans son vieil oeil”, disse ele! UUU(boquinha de bico nisso) seguido de
iiiii, o todo religado pela oposição l/r : lueur ironique...vieil oeil... & o na o ironique dans son.
Passou-lhe batido? É porque é uma mera didaskalia!.. Mas nos permite dizer que o autor
estava se divertindo com as possibilidades de sua bela língua.. Isso é:” Anouilh is the guy!”,
diria Barak Obama

[3] boiteux, o que manca, o coxo. Se coxo porque belo, se belo porque coxo- diria Machado
no tempo em que essas palavras ainda não eram proibidas de serem escritas assim. Em
politicamentecorretês seria : Édipo o desfavorecido, em apenas uma das pernas, de
movimentos seguros. Que título para uma peça! Sabendo que esse é o índice pelo qual Édipo
tem o tilt e saca que está ferrado, entendemos porque assim Anouilh nomeou sua peça. É um
escritor sagaz. Mas nos dá alguns problemas nessa época correta em que , eu penso
companheiros que apenas não se pode corrigir o poder.
A lembrar que o francês preferiu a imagem de lata para a designação e nós em português
preferimos a forma de um verbo francês (politicamente incorreto) : o que manca. Manquer é
faltar. E nas pessoas nada falta hoje em dia, há apenas alguns desvios. Até no poder, até no
poder. Essa talvez a razão de uma certa perda de interesse, nesses tempos bicudos (gíria do
tempo dos modernistas de 22), por Anouilh: porque tenta atingir o poder.
MICHELOTTO & ANOUILH

[4] ah eu amo Anouilh! Cada vez que se elege um ditador, um presidente, um senador, um
deputado, um vereador, um pequenino reitor, um diretor de centro, um chefe, um coordenador,
um ” professor do ano”, um Lula, eu só consigo pensar nisso: “ah como eu amo Anouilh!”

[5] Joãozinho XXX copiou deslavadamente essa frase anos depois.


A diferença entre ele e Anouilh é que há algo mais a se dizer, disse Anouilh: ”isso é teatro
deles”. Eis a diferença entre um grande escritor e um livre mas pequeno pensador. João XXX
confundiu tudo e meteu a realidade pra dentro da ficção e , mais ou menos como Lula,
acreditou por demais só em sua grandeza, ou adiantou-se à frase: “eu penso, companheiros
que....”.
Como se uma bobagem dessas valesse a pena ser dita (talvez) e registrada(certamente é o
erro comum dessa espécie de ignorante!).

[6] viram o que eu disse acima ( notas 3, 4 e 5)?


Nós não somos público indulgente! Anouilh & Micheloto dixerunt.

[7] não resisti, não pude resistir. Didaskalia é dos poucos lugares onde a gente pode se divertir
à vontade.
Anouilh dixit (=fecit ) !
Esse conjunto gracioso de didaskalias- que me lembra o posterior Nelson em Valsa #6 –
Anouilh conseguiu certamente por ser um dos maiores conhecedores e “vertedores para o
palco” de Marivaux.
É preciso ler suas outras obras para me acompanhar nas entrelinhas dessas minhas notas, ok?
O tradutor também deve ser um escritor. Sem pudores.

[8] c´est me condamner à lá mort et à l´exil. Claro que inverti. Mais acima acontece a mesma
coisa. O que podemos supor que Anouilh não está cansado e distraidamente (erros acontecem
até com Anouilh!0 fez tal frase. A lógica nos impede de primeiro matar um homem e depois
fazer com que ele vá andando até a fronteira e lá fique exilado. Foi difícil. Mas como não
refleti o suficiente sobre o porque do Anouilh ter feito essa inversão (isso não se configura
como nenhuma figura de estilo na Retórica de Fontannier ] preferi re-inverter. Uma vez que
suponho ser uma frase para ser dita( logo esquecida rapidamente), podendo pois ser antes mal
entendida que entendida no sentido que o autor lhe deu e eu não encontrei. Se eu não [estou
aqui há 3 anos], imagina nosso público que passará apenas um segundo por aqui, né não????...
Já teve gente que foi capaz de pensar que faço notas só para dizer que sou belo, inteligente,
maior que o leitor etc. Sou mesmo e não me vexo.
Mas leiam com cuidado e verão que eu tenho tido o maior cuidado do mundo em minhas
traduções.
Escrúpulos mesmo.
Sei que ao apressado não parece, mas gastem 3 ou 4 anos me relendo e o descobrirão.
Eu gasto tempo vertendo meus bons autores. E quando não acho, digo. Não é vergonha, é
meu tamanho!...

[9] toda linguagem do Homem de Corinto foi traduzida literalmente e indexada de mais
alguns efeitos para se adequar bem a nossos bêbados brasileiros. Em Antígone Anouilh faz
MICHELOTTO & ANOUILH

apelo a 3 soldados com nomes franceses, em vez de gregos, para criar esse tipo de situação
extra-temporal, que permite ampliar a atuação para o
grotesco.. Essa marca está presente aqui pela primeira vez, neste personagem. Só seguimos os
passos de Anouilh ao longo de sua obra.

[10] ah eu amo Anouilh! Ele toda hora pula através dos tempos. Com a linguagem... Olha os
trapistas ai entrando com São Bernardo de Claraval e tudo mais dentro de uma tragédia grega!
Isso é que é dar uma super-mãozinha para seus futuros tradutores!!! ah eu amo Anouilh!

[11] apesar de Anouilh fazer pulos no tempo, ele é o autor, mas eu humílimo tradutor apenas
não posso fazê-lo. Então, como não se falava em diabos na Grécia, joguei tudo pro Hades,
porque a expressão correta de Édipo é: Cacêta, porque diabos...etc. Isso é: Tá p. da vida!

[12]... eu perco minhas amizades mas nunca perco uma piada! Anouilh , em vida, fazia assim
também...

[13] o texto diz “ quem me chamava assim”. Adiantei, trocando-o por que me fez isso. A
história do apelido e de sua falação já está dita e bem acima , no lugar onde coloquei a nota
anterior.
Repetir aqui fica fraco e desnecessário. Creio que Anouilh pensou, Quem me fez isso, e
escreveu outra coisa.
A resposta do Homem confirma minha tese: a função dessa fala é permitir ao Homem
informar-nos sobre quem lhe entregou a criança. Um testemunho ocular de tudo. O elo perdido
que Édipo busca metodicamente desde o início. As falas dele às vezes soam chatas. Porque
levam todas essa marca de inquirição. Ele pesquisa o tempo todo e não se dá por contente com
informações que podem enganar. Ele tenta ir ao fundo das respostas. Claro, pro falta de um
testemunho ocular. E é isso que O Homem veio lhe dar. Esse é seu papel, e ele percebeu que
este é O papel da peça!!!! A troca de texto feita por Anouilh deve ser explicada porque devia
estar cansado, como este texto indica às vezes, através de um ou outro escorregão.
Estamos em 1978 e parte da confusão com ele toda está sedimentada. Provavelmente
escreveu essa peça ainda com um certo sabor amargo na boca em relação à França.. O que
não diminui em nada sua beleza.
Pelo contrário! E é a isso que estou fazendo jus com essas notas! E é por isso que me
empenho tanto em trazê-la para o Brasil neste centenário.

[14] Anouilh dá uma pequena chamada para sua peça de 42 acrescentando a história de
Ismênia e as babás tentarem dissuadí-la. Ele dá uma deixa sobre o caráter de Antígone.
Retocamos a frase para ficar mais forte ainda, para reavivar a memória da outra peça,
sessentona que nem eu, uma vez que o tempo se passou, já temos um século por sobre Anouilh
e o tempo de uma juventude por sobre Édipo o rei que manca..

[15] Acabada 3 dias antes de meus 34 anos. A peça faz 32 anos em 2010.
E agora a traduzi, poucos dias depois de meus 66.
A semelhança de números é sempre mera obra do destino.
Mas esta certamente é uma história envelhecida que eu contarei para meus filhos
e eles para seus filhos e eles para os seus e os seus e assim por diante ...
até se mudarem as estações
MICHELOTTO & ANOUILH

[16]
Nota bene final:
Entre as páginas 48 & 52 do original francês está escrito:
Jocasta
Voltando a si
Édipo
duramente
Jocasta
Grita, espantada
Édipo
Duramente
Jocasta
Com um sorriso
Um pequeno silêncio e ela acrescenta.
Édipo
Sonhador
Jocasta
Édipo
Jocasta
Édipo
Jocasta
Édipo
Jocasta
Édipo
Murmura estranho, como que para si
Jocasta
Inquieta
Édipo
Jocasta
Édipo
MICHELOTTO & ANOUILH

Jocasta
Abraçando-o

Eu adoraria, em homenagem a Anouilh, deixar assim minha tradução.


E isso é puro Anouilh de 1978, entenderam???? O resto é desnecessário.
Mas sei que assim acabaria expulso dessa cidade
que também não é minha, assim dirão.
MICHELOTTO & ANOUILH
MICHELOTTO & ANOUILH

Você também pode gostar