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HISTORIA
ECONÔMICA E SOCIAL
DA IDADE MÉDIA
tA
EDITÔRA MESTRE JOU
São Paulo
Primeira edição em írancês ................ 1933
última edição em francês ................... 1963
Oitava edição em espanhol ................ 1961
Primeira edição emportuguês ............. 1963
Segunda edição emportuguês .............. 1965
Terceira edição emportuguês .............. 1966
Quarta edição em português ................ 1963
Titulo original
HISTOIRE ÉCONOMIQUE ET SOCIALE
DU MOYEN-AGE
Traduçâo :
Lycurgo Gomes da Motta
Revis&o :
Elson Lenardon
O autor
INTRODUÇÃO
i
Para se compreender o renascimento econômico que teve
lugar na Europa Ocidental, a partir do século XI» deve-se exa
minar, em poucas palavras, o período anterior.
Ruptura do equilíbrio econômico da Antígüidade. Do pon
to de vista em que nos devemos colocar aqui, vê-se logo que os
reinos bárbaros fundados nc século V, no solo da Europa Oci
dental, tinham conservado o caráter mais legítimo e essencial da
civilização antiga: seu caráter mediterrâneo,1 O mar interior,
em torno do qual nasceram todas as civilizações do mundo antigo,
e pelo qual se comunicaram umas com outras, foi o veículo de
suas ideias e de seu consórcio. O Império Romano, por último,
havia abarcado inteiramente o aludido mar; para ele convergia a
atividade de todas as províncias imperiais, desde a Bretanha até
o Eufrates, e depois das invasões germânicas, continuara desempe
nhando seu papel tradicional. Para os bárbaros estabelecidos na
Itália, na África, na Espanha e na Gália, era ainda a grande viu
de fnnnumraçãn mm n ImpérioJBizantino, e as relações que man
tinha com este permitiam que subsistisse uma vida econômica em
que se deve ver, sem a menor sombra de dúvida, um prolonga
mento direto da Antigüidade. Basta recordar, aqui, a atividade1
1. Em geral, esta verdade é atualm ente reconhecida, ainda, pelos historia
dores que admitem que as invasões do século V vieram transtornar e transfor
mar a civilização ocidental. Veja-se F. Lot, no tomo 1 da Histoire du Moyen Age
(Histolro Générale), p. 347. A. Dopsch, W lrtschaftllche und sozlale Grundlagen
dor europãlBchen Kulturentwlckelung aU9 der Zelt voan Caesar bis anf Karl den
Grossen, 2.a ed. (Viena, 1923-1924), 2 vols.. tem o mérito de haver demonstrado
que não houve cisão na história econômica entre o período anterior ao estabe
lecimento dos germanos no Império e o período seguinte.
8 Henri Pirenne
O RENASCIMENTO DO COMÉRCIO.
I O MEDITERRANEO. 1
tar pelos rios dos Países Baixos, com o nome de palita fresonica,
as fazendas tecidas em Flandres, as quais, devido às belíssimas
cores com que eram tingidas, tiveram tal reputação, que Carlos
Magno não encontrou melhor presente do que elas para o califa
Harúm-al-Raschid.15b O aniquilamento do comércio pelas inva
sões dos escandinavos interrompeu, naturalmente, esta exportação.
Mas quando os saqueadores, durante o século X, se transformaram
em navegantes e seus navios voltaram a sulcar, em busca de mer
cadorias, as águas do Mosa, do Reno e do Escalda, a tecelagem
encontrou novos mercados exteriores para os quais enviou os seus
produtos. A sua finura tomou-os logo apreciados ao longo de
iodas as costas freqüentadas pelos marujos do Norte. Com o
atrativo de uma procura contínua, sua fabricação aumentou em
proporções nunca vistas até então. Em fins do século X, eram tão
consideráveis que, já não bastando a lã da região, teve que
ir abastecer-se dela, na Inglaterra.
O comércio de tecidos. A qualidade superior da lã inglesa
melhorou, naturalmente, a de tecidos, cuja crescente fama devia
propagar a sua difusão. Durante o século XII, toda a extensão
da Flandres converteu-se em região de tecelões e batedores. O
trabalho de lã, que até então se havia praticado somente nos
campos, concentra-se nas aglomerações mercantis que se fundam
por toda parte e anima um comércio, cujo progresso é incessante.
Forma-se, assim, a incipiente riqueza de Gante, Bruges, Ipres,
Douai e Arrás. Desde aquela época é um artigo essencial do
comércio marítimo e começa a originar uma poderosa corrente
dc comércio terrestre. Por mar, os tecidos de Flandres chegam,
desdes princípio do século XII, até a feira de Novgorodo. *16 Na
mesma época, italianos, atraídos por sua fama, vêm trocá-los, no
próprio lugar em que se fabricam, por especiarias, sedas e jóias
de ouro que importam do sul dos Alpes. Mas os flamengos, por
sua vez, freqüentam essas famosas feiras da Champanha, onde
15b. H. Pirenne, Drap» de Fris© on draps de Flandre. Veja-se Introd. n« 7.
16. H. Pirenne, Draps dT pres a Novgorod an commencement do X llèm e
siècle, em «Revue Belge de philol. et d’histoire», t. IX (1S30), p. 563.
História Econômica e Social da Idade Média 43
AS CIDADES
I. O RENASCIMENTO DA VIDA URBANA. 1
sua parte das esmolas reservadas aos pobres; alugavam o seu ser
viço aos camponeses, na época das colheitas ou das vindimas, ou
se alistavam como mercenários nas tropas feudais, em tempo de
guerra.
Não deixaram de aproveitar os novos meios de vida que lhes
oferecia, ao longo das costas e dos estuários dos rios, a chegada
de navios e mercadores. Impulsionados pelo espírito de aventura,
não há duvida de que muitos se engajaram nos navios venezianos
ou escandinavos que precisavam de marinheiros; outros fizeram
contratos com as caravanas de mercadores que, com crescente fre-
qüência, se dirigiam aos “portos”. A sorte favoreceu aos melho
res, que não podiam deixar de aproveitar as oportunidades de
fazer fortuna que abundam na vida comercial, para os vagabun
dos e os pobres diabos que sabem intentar uma empresa com sufi
ciente energia e inteligência. A verossimilhança não bastaria para
disso nos convencer, se a história de São Goderico de Finchal não
nos proporcionasse um valioso exemplo da maneira como se for
mavam então os “novos ricos”. 7
Goderico de Finchal. Nasceu em fins do século XI, cm
Lincolnshire, de camponeses pobres e. obrigado sem dúvida a
abandonar a herdade onde seus pais trabalhavam, teve que se
esforçar para ganhar a vida. Como tantos outros indigentes de
todos os tempos, procurava nas praias os restos de navios naufra
gados, arrojados pela maré. Os naufrágios eram inúmeros e um
feliz acaso proporcionou-lhe um dia de oportunidade, graças à
qual pode comprar um lote de quinqüilharias. Economizara al
guns centavos quando teve a boa sorte de unir-se a um grupo de
mercadores. Seus negócios prosperaram de tal maneira que logo
chegou a dispor de lucros bastante consideráveis para associar-sc
com alguns companheiros e fretar um barco, com o qual empre
enderam a cabotagem ao longo das costas da Inglaterra, Escócia,
7. Veja-se para (*ste personagem o artigo de Vogei, mencionado mais acl-
ma, n* 5. O JJbellu* do vlta et miracuIU GodrirI, herem^tac de Flnchale,
auctore Reginaldo monocho dunelmen»!. fol edi’ado em Londres em 1847, por
Stevenson, para a Surtees Society.
H istó ria E conôm ica e Social d a Id a d e M édia 63
ralha. Não existe cidade alguma, na Idade Média, que não tenha
sido fortificada.
As finanças urbanas. Para cobrir os gastos exigidos pela
necessidade permanente de fortificar-se, tornou-se indispensável a
instituição de recursos. E onde se poderiam obter estes, senão no
próprio seio da burguesia? Como estavam interessados, na defesa
comum, todos seus membros tiveram, também igualmente, de
contribuir para as despesas. A quota de cada um calcula-sc pro
porcionalmente, à sua fortuna e isto é uma grande novidade.
Veio, com efeito, substituir a talha senhorial, arbitrária e recebida
no interesse exclusivo do senhor, uma contribuição relativa às
possibilidades dos contribuintes tendo por objetivo o bem geral,
de tal modo que o imposto readquire a sua natureza pública, que
perdera durante a época feudal.
As magistraturas urbanas. Para estabelecer e receber o
imposto, a fim de satisfazer as necessidades, cujo número ia cres
cendo, ao passo que aumentava a população urbana — construção
dc cais, mercados, pontes e igrejas paroquiais, regulamentação do
exercício dos ofícios, vigilância dos alimentos etc. — foi preciso,
desde logo, eleger ou fazer instalar-se um conselho de magistra
dos, que se chamaram, na Itália e na Provença, cônsules, jura
dos na França e aldermans, na Inglaterra. No século XI, apa
receram nas cidades lombardas, onde são mencionados os cônsules
de Luca, cm 1080. No século seguinte, transformaram-se, em
todas as partes, em uma instituição ratificada pelos poderes pú
blicos e inerente a qualquer constituição municipal. Em muitas
cidades, como por exemplo, nas dos Países Baixos, os almotacéis
servem ao mesmo tempo, de juízes e administradores das bur-
ruesias.
As cidades e os príncipes. Os príncipes leigos logo com
preenderam as vantagens que lhes trazia o crescimento das cida
des, pois, à medida que a circulação se tornava mais ativa nas
História Econômica e Social da Idade Média 61
%
História Económica e Social da Idade Média 65
lação urbana, desde o século XII até o XV, nunca foi muito su
perior à décima parre do total dos habitantes, 2 S6 cm algumas
regiões, como nos Países Baixos, a Lombardia ou a Toscana esta
proporção foi muito superior. Seja como fôr, é absolutamcnte
exato afirmar que, do ponto de vista demográfico, a sociedade
da Idade Média é essencialmente agrícola.
Os latifúndios. O latifúndio gravou tão profundamente seu
sinete nesta sociedade que suas marcas não desapareceram em
muitos países, ate a metade do século XIX. Não nos compete
remontar às origens desta instituição, que a Idade Média herdou
da Antigüidade. Limitar-nos-emos a descrcvé-la tal como existia
cm seu apogeu, no decorrer do século XII, isto é, na época cm
/'Tjuc não havia ainda sentido a ação transformadora das cidades. 3
[ É inútil acrescentar que a organização dominial não se impôs
\ a toda população rural. Não se aplicou a um certo número de
Vpequenos proprietários livres, e encontram-se, nas regiões afasta
das aldeias que conseguiram escapar mais ou menos ao seu do
mínio. É inútil, porém, levar em consideração estas exceções,
quando unicamente nos propomos a traçar um quadro sumário
t!a evolução geral do ocidente da Europa.
Se os considerarmos do ponto de vista da sua superfície,
os latifúndios medievais caracterizam-se todos por uma extensão
que justifica amplamente o nome que se lhes dá. É mais que
provável que a média de sua extensão tenha sido 300 man.si,
isto é, aproximadamente, 4ÜUÜ hectares, e muitos deles tinham
11. Thomas de Cantimpré, Bonum Universale de apibus, II. 49, pâg. 446,
ed. de Douai de 1605.
12. Journal des visites pastorales d’Eudes Rigaud, archevêque de Rouen
(1248-1269). ed. Th. Bonnin (Rouen, 1852).
88 Henri Pirenne
nem
- I
formado
uma
associação momentânea, mas nao um contrato regular dc socie-
iC. Não têm nem representantes no exterior, nem estabc-
lecimcntos com os quais estejam em correspondência. Não pa
rece mesmo que estejam em relações com os banqueiros e os
cambistas das feiras de Champanha, pois, como regra, estipula-se
que o reembolso das quantias emprestadas se efetue no lugar do
seu domicílio. Por outro lado, não se encarregam nem de rece
ber denósitos de fundos, nem dc efetuar pagamentos no exterior,
nem d descontar letras dc câmbio.
Todas essas operações, ao contrário, os italianos conheciam
desde o século XII, c elevaram-nas, desde o século seguinte, ao
mais alto grau de desenvolvimento, tendo-sc em conta as condi
ções sociais da época. A superioridade dos italianos sobre os ca
pitalistas do Norte era muito desproporcionada para que estes
não sc vissem forçados a abandonar-lhes a praça e, desistindo de
ser financistas, se transformassem, no fim do século XIII, em
opulentos capitalistas, otiosi, que se conformavam com adminis
trar a sua fortuna pessoal, ou com adquirir bens de raiz c com
prar rencas.
Os financistas Desde o século XIII,
comc a se viu mais acima
[requentavam as feiras de Champanha e as de Flandres. Em
vista da que representava para eles a indústria têxtil.
em
da Europa, muitos resolveram cstabelccer-se naquela região e
/ i A. 1
%
HUtória Bconômica e 8oclal da Idade Média Iftd
nem fundado Kocnigsberg, quando a dita burguesia lançara os
fundamentos de Elbing. Ao mesmo tempo estabeleceu-se nas
costas da Suécia, cm Estocolmo, c apodenou-sc das pesqueiras
de arenques da península de Schonen.
Entre os seus postos avançados em territórios apenas subme
tidos e as orlas de um mar de onde, havia pouco, tinham sido
expulsos os escandinavos, era preciso celebrar um convénio para
a proteção de todos. Sob a iniciativa de Lubeck, que cm 1230,
firmou um tratado de amizade comercial com Hamburgo, as
jovens cidades do Báltico formaram uma liga a que logo aderi
ram os portos do mar do Norte e recebeu o nome de Hansa, que
se dava às associações de negociantes. Essa confederação de cida
des marítimas alemãs, que oferece um contraste tão marcante
com as contínuas guerras das cidades italianas do Mediterrâneo,
garantiu-lhes cm toda a extensão dos mares do Norte uma pre
ponderância que deviam conservar até o fim da Idade Média.
Graças ao dito convênio, conseguiram resistir vitoriosamente aos
ataques que os reis da Dinamarca dirigiram contra elas e favo*
recer de comum acordo os seus progressos no estrangeiro.
O comércio hanseático. Na Inglaterra, o Stalhof de Lon
dres, criado em meados do século XII, e em Flandrcs a feitoria
de Bruges, eram, mormente a última, as suas bases de operação
no Ocidente. No Oriente possuíam uma em Novgorod, onde
concentravam o comércio da Rússia. O Weser, o Elba e o Odcr
eram as vias de comunicação por meio das quais o seu comércio
penetrava na Alemanha continental. Pelo Vístula, dominavam
a Polônia e estendiam o seu raio de ação até os confins dos
países balcânicos. Em compensação, a grande via comercial pela
qual, outrora, o Báltico correspondia com Constantinopla, e Bagdá
com a Rússia, achava-se fechada desde que os pechenegas se esta
beleceram, no século XII, nas costas do mar Cáspio, e dessa forma
conquistaram para o Mediterrâneo o monopólio das relações com
o Oriente bizantino e muçulmano.
A exportação dos hanseáticos, diferente da dos portos italia
nos, consistia em produtos naturais, os únicos que podiam pro
156 Henri Pirenne
A ECONOMIA URBANA E A
REGULAMENTAÇÃO DA INDÚSTRIA
I. AS CIDADES COMO CENTROS ECONÔMICOS.
A ALIMENTAÇAO URBANA. 1
AS TRANSFORMAÇÕES DOS
SÉCULOS XIV E XV
I. CATASTROFES E PERTURBAÇÕES SOCIAIS. 1
das por sua miséria c pelo ódio aos nobres, aos quais acusavam
dc ser responsáveis pela sua situação, as coisas parece que ocor
reram de forma muito diferente no levante de Flandres ociden
tal, de 1323 a 1328, e na insurreição de 1381, na Inglaterra.
A insurreição da Flandres marítima. A longa duração do
primeiro bastaria para demonstrar que não pode ser senão a obra
de uma plebe miserável e débil. De fato, foi uma verdadeira
tentativa de rebelião social dirigida contra a nobreza, com o fim
de arrebatar-lhe a autoridade judicial e financeira. O rigor com
que se arrecadavam em favor do rei da Fiança os impostos para
pagar as pesadas multas a que Flandres fora condenada depois
da guerra iniciada com a batalha dc Courtrai, provocou motins
que logo se transformaram em rebelião aberta contra a ordem
estabelecida. Não se trata apenas de pôr fim a abusos de poder.
O espírito de independência dos robustos camponeses daquele ter
ritório, descendentes dos “hóspedes” que cultivaram as suas terras
pantanosas nos séculos XII e XIII, empenha-sc na luta a ponto
de considerarem todos os ricos e a própria igreja como seus ini
migos naturais. Bastava que uma pessoa vivesse da renda do
solo para que se tomasse suspeita. 8 Os camponeses negavam-sc
a pagar o dízimo e exigiam que o trigo dos mosteiros se dis
tribuísse ao povo. Os sacerdotes não conseguiam eximir-se do ódio
de classe que sublevava as massas. Um dos chefes do movimento
desejaria ver, dizia ele, o último deles pendente da forca. Com
refinamento de crueldade, obrigavam os nobres e os ricos a matar
os próprios pais sob os olhares da multidão. Nem durante as
jaequeries, nem durante a rebelião inglesa, em 1381, houve violên
cias semelhantes às que aterrorizaram, então, a Flandres ociden
tal. “Foi tal a peste da insurreição — disse um contemporâneo —
que os homens sentiam asco de viver”. Para dominar os rebel
des que, “como feras privadas de senso e de razão”, ameaçavam