Gos
FAPINI
o
PAPINI, Giovanni. Gog.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.
O EMBRUTECEDOR
Nice, térca-feira gorda,
EA thee ou nes one conseguiu chegar até mim —
apesar de encontrar-me doente, com uma das minhas crises
de figado — um voluminoso velho que se chama, me parece,
Sarmihiel.
Vi a minha frente um enorme rosto com fortes maxila-
res de boiadeiro, suavizado por grandes olhos quase brancos,
de estatico. Estendeu-me uma sdlida mao de Golias e anun-
ciou-me que precisava da minha ajuda para um empreendi-
mento do qual dependia a felicidade futura dos homens. Res-
pondi logo que os homens e a sua felicidade nao me interes-
savam absolutamente e que podia poupar tempo e voz. Mas
Sarmihiel nao se surpreendeu.
— Quando o senhor tiver uma idéia de que seja o meu
sistema — respondeu, — é provavel que mude de opiniéo. E
escutar nao Ihe custara nada. Nao peco esmolas mas com-
preensao.
Por curiosidade, e talvez devido @ minha fraqueza da-
quele dia, me dispus a escuta-lo.
— O senhor certamente conhece, continuou o velho, o
famoso aforisma de Frederico, o Grande: L’homme est un
animal depravé, Sentenca profunda e verificavel a cada dia.
Tédas as desgracas, a ruindade e a melancolia do homem se
originam na sua depravacdo, ou seja, em ter renegado seu
verdadeiro destino, ter violentado sua natureza original. O
homem € um animal, nada mais que um animal, e por’ uma
perversdio tnica entre os brutos, quis tornar-se algo mais do
que um animal. Cometeu uma traic&o, a traicdo para com a
219animalidade. E por essa prevaricacao foi punido. Nao con-
seguiu transformar-se em anjo e perdeu a inocente beatitude
do animal. Por isso ficou suspenso, no ar, torturado, angus-
tiado, doente, sombrio e insatisfeito. A tnica salvacao sera
a volta as origens, a reintegracdo plena na natureza auténtica,
a volta ao animal. Todos os grandes pensadores desde Lu-
ciano até Leopardi reconheceram que os bichos sao incom-
paravelmente mais felizes e perfeitos do que o homem, mas
até agora ninguém pensou em elaborar um método racional
€ seguro para obter o reencontro com nossos irmaos. Deve-
mos voltar ao paraiso perdido, e lembre-se de que o Eden era
um imenso jardim zoolégico. O paraiso a ser reconquistado
é a fauna,
“Homero ja havia tido esta visio. Circe, que transforma
em porcos os companheiros de Ulisses, € a feiticeira benfazeja
de quem a distancia de tantos séculos, ainda me orgulho de
ser discipulo. Mas Ulisses, que representa a astticia, ou seja,
a inteligéncia corruptora e € protegido de Minerva, — ciu-
menta da felicidade dos homens — féz o possivel para de-
volvé-los 4 condicgao humana, quer dizer, a condenagao, E
como éste crime foi punido em seguida lé-se claramente na
Odisséia.
— Entendi a tese — interrompi, — entendi bem, justa-
mente por ser um animal. Mas ainda nao vejo.. .
— Um pouco de paciéncia — respondeu Sarmihiel. — O
senhor é 0 primeiro que me escuta por mais de dois minutos
e permitiré a um velho desabafar pelo menos uma vez na vida.
Sou um profeta rechacado, como Zaratustra, mas os nossos
ideais s4o contrarios: éle anunciava o aperfeigoamento e eu
busco o embrutecimento. Mas ambos estamos de acérdo ao
considerar o atual estado do homem — vil e triste compro-
misso entre o macaco e o super-homem — absurdo e insu-
portavel. Nao podendo, como é evidente, tornarmo-nos su-
per-homens, s6 nos resta retroceder e virar macacos.
“Um masoquista suigo do Setecentos ja se havia timida-
mente aproximado dessa idéia. Rousseau, porém, pregava a
volta a vida selvagem. Seria um progresso, se os selvagens
no se parecessem tanto com os homens e tao pouco com os
animais. Meu sistema é mais radical. Mas é preciso, antes de
mais nada, experimenta-lo, e por isso pensei no senhor.
220— Em mim? E que deveria fazer?
— Sé isso: conceder-me por alguns anos os grandes ter-
renos desertos que possui nos Montes Alleghany e dar-me
algum dinheiro para as primeiras despesas. Eu levaria para
la trés casais humanos, escolhidos entre os miseraveis sem
teto e sem profissdo, e a éles aplicaria o meu método, que
consiste em reacostumar gradativamente nossa espécie as con-
dicdes de vida dos animais nao domésticos.
“Antes de tudo, nenhuma roupa. Proibicdo de cortar
cabelos, barbas, pélos e unhas. Proibida a posicdo erecta:
deveriam acostumar-se a andar de quatro. Vedado o uso da
palavra e de toda linguagem humana: deveriam comunicar-se
comigo e entre si somente gracas a gestos, grunhidos e urros.
No campo das experiéncias nao seriam tolerados nenhum
utensilio, nenhuma maquina, nenhum objeto fabricado. Deve-
riam aos poucos aprender a alimentar-se de frutas, de raizes
ou de carne crua. Naturalmente nao teriam habitagdes ou
abrigos de espécie alguma; fa-los-ia dormir em grutas ou entre
os galhos das arvores. Seria permitida a caca, mas sem ar-
mas, e a luta corpo a corpo e dente a dente entre éles. Ne-
nhuma lei, nenhuma moral, nenhuma religido. Livres animais
sob livre céu.
“Creio que se a vigilancia fosse continua, poucos anos
bastariam para obter o embrutecimento integral dessas cria-
turas e conseqiientemente sua completa felicidade. Tudo
aquilo que atormenta o homem, animal degenerado e corrupto,
desapareceria por milagre, e meus alunos reconquistariam len-
ta, mas seguramente, o tranqiiilo conhecimento dos seus anti-
gos irmaos. Se essa primeira experiéncia, como espero, fosse
bem sucedida, poderiamos comecar, com possibilidade de
triunfo, 0 apostolado pelo embrutecimento total da humani-
dade. Certamente surgiriam objecées, reagées e até oposi-
¢ées violentas, especialmente por parte dos chamados “inte-
lectuais” — verdadeiros bacilos nefastos da nossa espécie.
Mas tenho certeza de que a maior parte dos homens, tanto
entre os ricos quanto entre a plebe, seria rapidamente con-
vertida a uma idéia que responde aos nossos profundos e se-
cretos instintos. Por mais que os pedagogos do género hu-
mano tenham tentado distorcer a sadia animalidade primitiva
com tédas as drogas e os sortilégios das literaturas, das filo-
22Ksofias e das religides, os homens conservaram a nostalgia do
estado animal e, quando podem, voltam de boa vontade, pelo
menos por alguns minutos ou algumas horas, a inebriar-se
com a pura volipia dos brutos. Sao animais depravados e
traidores mas no a ponto de terem esquecido e destruido por
completo a natureza primeira. Assim que ouvirem minha voz,
apoiada na experiéncia, sentiréo despertar em seu amago os
elementos da coruja e do macaco, e se chegarao a mim como
a seu salvador. Eu serei o messias da animalidade recupera-
vel. Os homens descendem dos animais mas trairam seus pais.
Eu devolvo a sua verdadeira familia éstes filhos infiéis e res-
tituo a todos a felicidade perdida. Se no névo reino a religiao
fésse admitida, me adorariam como um deus.
— Perdio — disse eu, — mas o senhor me parece muito
inteligente e altruista para virar bicho. Por que nao comeca
a experiéncia s6bre si mesmo, se realmente acredita que a
animalidade seja o bem supremo?
— O senhor nao me entendeu — respondeu com tristeza
o enorme velho. — Como todos os redentores, devo sacrifi-
car-me para a felicidade alheia. Assim como a Moisés, me
é dado entrever a terra prometida, mas devo evitar entrar
nela; do contrario, quem dirigiria a imensa operacao de anti-
domesticacao que idealizei? Quem difundiria a palavra da sal-
vacGo? Eu sou 0 oposto do domador: cabe-me transformar os
civilizados em selvagens. E, se o domador deve ser um pouco
feroz para dominar os ferozes, eu sou, ao contrario, conde-
nado a manter-me inteligente para eliminar a inteligéncia, O
senhor me entendeu afinal?
Para livrar-me déle tive que lhe prometer que pensaria
na proposta e que Ihe participaria minha deciséo dentro de
uma semana. E Sarmihiel, o profeta embrutecedor, saiu sole-
nemente do meu quarto, ndo sem antes ter-me encarado com
seus enormes olhos de babuino.
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