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PLATÃO. Diálogos III. A república. Trad. Leonel Vallandro. 25 ed. Rio de


Janeiro: Ediouro, 1999. (Livro X. p. 232-236)

A VISÃO DE ER
 Pois vou contar-te uma história; não uma narrativa como a que Ulisses fez a
Alcínoo, mas a dum bravo homem, 1 Er, filho de Armênio e panfílio de nação. Morrera
ele em batalha e dez dias depois, quando foram recolher os cadáveres já putrefatos, o
seu foi encontrado intato e levado para casa a fim de ser enterrado. E no décimo
segundo dia, já estendido na pira funerária, retornou à vida e contou o que tinha visto
no outro mundo. Disse que, depois de sair do corpo, sua alma se pusera a caminho
com muitas outras, chegando por fim a um lugar maravilhoso onde apareciam na terra
duas aberturas que comunicavam entre si e, em frente a elas e no alto, outras duas no
céu. No espaço intermediário estavam sentados uns juízes que, depois de pronunciar
suas sentenças, escreviam-nas em rótulos que penduravam sobre o peito dos justos, e
os mandavam subir através do céu, pelo caminho da direita; e aos injustos ordenavam
que descessem pelo caminho da esquerda, levando também, mas às costas, o sinal de
tudo o que haviam feito. Ao aproximar-se Er, disseram-lhe que seria ele o mensageiro
encarregado de relatar aos homens as coisas do outro mundo e convidaram-no a olhar
e escutar tudo o que ali sucedia; e assim viu como, depois de julgadas, as almas se
retiravam por uma das aberturas do céu e outra da Terra; e como, por uma das
restantes, saíam da Terra cobertas de sujeira e de pó, enquanto pela última desciam
mais almas do céu, limpas e brilhantes. E as que iam chagando pareciam vir de uma
longa viagem; jubilavam-se jubilosas pela pradaria, acampavam como imensa feira, e
todas as que se conheciam abraçavam-se e conversavam, perguntando as que vinham
da Terra pelas coisas de além e às do céu, pelas lá de baixo. E contavam umas as outras
o que havia sucedido em caminho, as primeiras entre prantos e gemidos, recordando
as coisas vistas e ouvidas durante sua viagem subterrânea, que durara mil anos; as que
vinham do céu falavam de sua bem-aventurança e de visões de inenarrável beleza.
Levaria muito tempo, Gláucon, se quisesse referir tudo em detalhe, mas o principal era
o seguinte: Disse ele que cada uma pagava um décuplo a pena de todas as injustiças e
ofensas feitas aos demais, e cada vez pelo espaço de cem anos, que é a duração
computada para a vida humana  um total, pois, de mil anos por delito. Se, por
exemplo, alguns dentre eles houvessem causado grande número de mortes,
atraiçoado ou reduzido à escravidão cidades e exércitos, ou, enfim, fossem
responsáveis por qualquer calamidade semelhante, expiavam cada um desses crimes

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Sócrates faz um jogo de palavras com apólogon (narrativa de Alcínoo) e alkímou andrós (de um
homem valente). Por “narrativa de Alcínoo” entendia-se o relato que Ulisses fez de suas aventuras a
Alcínoo, rei dos feácios, e que abrange os cantos IX a XII da Odisseia. A expressão tornara-se proverbial e
designava comumente uma história interminável, mas Platão parece antes querer contrastar o caráter
puramente episódico da visita de Ulisses aos infernos (Canto XI) com o simbolismo filosófico da visão de
Er.
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com padecimentos dez vezes maiores; e a recompensa das boas obras, da justiça e da
piedade e da piedade era na mesma proporção. Escuso de repetir o que ele disse sobre
as crianças que morriam logo depois de nascer; mas quanto à piedade ou impiedade
para com os deuses e os pais, e também quanto ao homicídio à mão armada, contava
que as sanções eram outras e muito maiores.
[...]
Ora, depois de passar sete dias naqueles prados, cada um tinha de levantar
acampamento no oitavo e seguir viagem; e quatro dias mais tarde chegavam a um
lugar elevado, de onde podiam divisar uma linha de luz, reta como uma coluna,
estendendo-se através do céu e da Terra, e de cor muito parecida com a do arco-íris,
se bem que mais brilhante e mais pura. Mais um dia de jornada e estavam lá, no meio
da luz; viram então a extremidade das cadeias que partiam do céu, pois essa luz o
cingia inteiramente, mantendo unida toda a sua esfera como as ligaduras das
trirremes. De uma extremidade à outra se estendia o fuso da Necessidade, que faz
girar todas as esferas. [...] em redor, sentadas cada uma em um trono e a distâncias
iguais, havia três outras mulheres; eram as Parcas, filhas da Necessidade, vestidas de
branco e com ínfulas na cabeça  Láquesis, Cloto e Átropos, todas as três a
acompanhar com suas vozes a harmonia das sereias. Láquesis cantava as coisas do
passado; Cloto as presente e Átropos, as futuras. [...]
E contou que todos eles, uma vez chegados ali, deviam dirigir-se para Láquesis;
que um certo profeta os colocava previamente em fila e, depois de apanhar no regaço
da própria Láquesis umas sortes e uns modelos de vida, subia a uma alta tribuna e
dizia:
“Esta é a palavra da virgem Láquesis, filha da Necessidade. Almas efêmeras, eis
que começa para vós um novo ciclo de vida mortal. Não é o Fado que vos escolhe, e
sim vós que escolheis o vosso fado. Que o primeiro indicado pelo sorteio seja o
primeiro a eleger o seu gênero de vida, ao qual ficará inexoravelmente unido. A
virtude é livre, e cada um participará mais ou menos dela conforme a estima ou o
menosprezo em que a tiver. A responsabilidade é de quem escolhe: deus está inocente
nisso.”
Tendo falado assim, jogou as sortes à multidão e cada qual apanhou a que caíra
a seu lado, exceto Er, a quem não se permitiu fazê-lo; e ao apanhá-la, cada um ficava
conhecendo o seu lugar na ordem de escolha. Então o profeta colocou no chão, diante
deles, os modelos de vidas; e eram estes de todos os tipos, e em números muito maior
que os das almas presentes: as vidas de cada animal e de cada condição humana.
Havia entre elas existência de tiranos, umas levadas até o fim e outras interrompidas
em meio e terminando em pobreza, exílio e mendicância. E havia vida de homens
famosos, uns pelo garbo e beleza ou pela robustez e vigor na luta, outros pelo
nascimento e pelos grandes feitos de seus antepassados; havia também os homens
obscuros, e coisa igual sucedia com as das mulheres. Não havia, porém, espécies de
almas, pois estas se tornavam por força diferentes ao escolher uma nova vida; mas
todas as outras qualidades apareciam misturadas entre si e com elementos variados
de pobreza e riqueza, de saúde e doença, havendo também condições intermediárias.
E aí, meu querido Gláucon, reside o supremo perigo para o homem, fazendo-se
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necessária a maior cautela. Que cada um de nós procure adquirir esse conhecimento,
ainda que tenha de descurar tudo mais, e veja se há meio de aprender ou se encontra
alguém que lhe ensine a distinguir entre a vida proveitosa e a miserável e a escolher
sempre e em todas as partes a melhor possível. Para isso terá de considerar a relação
que todas as coisas de que falamos têm com a virtude, quer isoladamente, quer
combinadas entre si; de saber o bem e o mal que produzirá a beleza unida a tal ou qual
disposição de alma numa pessoa pobre ou rica, e também o que resultará da
combinação entre o bom ou mau nascimento, a condição privada ou os postos de
comando, a robustez ou a fraqueza, a facilidade ou rudeza para aprender e todas as
demais qualidades inatas na alma ou adquiridas por ela. E assim, comparando-as
todas em sua mente, será capaz de fazer a escolha se determinar a bondade ou
maldade da vida de acordo com a natureza da alma e, chamando melhor à que a torna
mais justa e pior à que a torna mais injusta, deixar de lado tudo mais; pois já vimos que
essa é a melhor escolha para o homem, tanto na vida como depois na morte. Deve ele
levar consigo para o Hades essa opinião inquebrantável, a fim de não se deixar ofuscar
ali pelo desejo de riqueza e outras seduções do mal e para não cair em tiranias e
outras práticas do mesmo gênero, com o que causa males irremediáveis a seu próximo
e ele mesmo sofre outros muito piores; que saiba escolher sempre uma vida média
entre os extremos e evitar tanto quanto possível os excessos em um ou outro sentido,
tanto nesta vida como na futura, pois é esse o caminho da felicidade.
E, segundo contava o mensageiro do outro mundo, então o profeta falou assim:
“Até para o último a chegar, se escolhe com discrição e vive diligentemente, há uma
existência boa e aprazível. Que não se descuide o primeiro a escolher, nem desespere
o último.” E em seguida adiantou-se o que fora designado como primeiro pela sorte e
escolheu a maior tirania; cegado pela sua avidez e toleima, não fizera o necessário
exame prévio e não se deu conta de que estava destinado, entre outras calamidades, a
devorar seus próprios filhos; mas quando refletiu com mais vagar se pôs-se a bater no
peito e a lamentar a sua escolha, esquecendo a proclamação do profeta; pois, em vez
de se reconhecer culpado daquela desgraça, acusava a fortuna, os fados  numa
palavra, tudo menos a si mesmo. E esse era um dos que tinham vindo do céu e em sua
existência anterior vivera numa república bem regida, mas sua virtude fora uma
simples questão de hábito, pois filosofia não tinha. E, em geral, era do céu que
provinha o maior número dos que se deixavam ludibriar por não terem passado pela
escola das provações, enquanto a maioria dos que subiam da Terra, e que haviam
padecido e visto padecer a outros, não se davam tanta pressa em escolher. Devido a
isso à sorte que lhes coubera, muitas almas trocavam uma existência má por outra boa
e vice-versa. Porque, se ao chegar a este mundo um homem se dedicasse sempre à sã
filosofia e não tivesse recebido um dos últimos lugares no sorteio, não só poderia,
segundo contava o mensageiro, ser feliz aqui, mas sua viagem à outra vida e seu
regresso a esta se faria por um caminho fácil e celeste, e não escarpado e subterrâneo.
Tal, dizia ele, era aquele curioso espetáculo em que as almas, uma por uma,
escolhiam suas vidas  curioso, e ao mesmo tempo lamentável, ridículo e estranho:
porque a maior parte escolhia de acordo com os hábitos que trouxera da existência
anterior. E contou como tinha visto alma que fora de Orfeu escolher uma vida de cisne,
por ódio às mulheres, pois não queria nascer de uma mulher quem fora trucidado por
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elas; vira a alma de Tâmiras eleger uma vida de rouxinol. E um cisne que trocava a sua
pele humana, coisa que igualmente faziam outros animais cantores. A alma a quem
tocara por sorte o vigésimo lugar escolhera uma vida de leão: era a de Ájax Telamônio,
que não queria voltar a ser homem, recordando a injustiça que lhe fora feita no
julgamento das armas. A seguinte era a de Agamenon, o qual, odiando também a raça
humana por causa de seus padecimentos, tomara uma vida de águia. À alma de
Atalanta coube um dos lugares medianos; e, vendo a grande fama de um atleta, na
resistiu a tentação. Depois dela veio a de Epeu, filho de Panopeu, que trocou sua
condição pela de uma mulher laboriosa; e entre as últimas, ad o ridículo Tersites, que
assumiu a forma de macaco. E sucedeu que coubera a Ulisses escolher em derradeiro
lugar; desiludido da ambição pela lembrança de suas anteriores fadigas, andou muito
tempo dando voltas em busca de uma vida de homem comum e despreocupado, e
assim que a encontrou, largada a um canto e esquecida pelos outros, escolheu-a
radiante, dizendo que o mesmo teria feito se sua vez fosse a primeira em lugar da
última. De igual modo se faziam as transformações de animais em homens ou em
outros animais: os maus em criaturas ferozes, e os bons em seres mansos, ocorrendo
também aí toda classe de combinações.
E, depois de haverem todas as almas escolhido suas vidas, aproximavam-se de
Láquesis conforme à mesma ordem que lhes tocara; e ela dava a cada uma, como
guardião de sua vida e executor de sua escolha, o fado que elegera. Este conduzia
então a alma para junto de Cloto e a colocava sob o giro do fuso impelido pela mão
desta, ratificando assim o destino de cada um. Uma vez presa ao seu destino, era
levada a Átropos, que torcia os fios e os tornava irreversíveis; daí, sem virarem para
trás, passavam sob o trono da Necessidade e, tendo chegado todas ao outro lado,
encaminhavam-se para o Campo do Esquecimento, debaixo de um calor abrasador,
pois esse campo era uma planície despida de árvores e de tudo quanto produz a Terra.
Ao cair da tarde acampavam junto ao Rio da Despreocupação, cuja água não há vasilha
alguma que possa conter. Dessa água eram todos obrigados a beber certa quantidade,
e os que não se continham pela prudência bebiam mias que o necessário; e, ao beber,
cada qual se esquecia de todas as coisas. E pela meia-noite, quando estavam todos
deitados a repousar, sobreveio uma trovoada e um tremor de terra, e num instante
foram arrastados para cima em todas as direções, cada qual rumo ao lugar de seu
nascimento, deslizando à maneira de estrelas. A Er, todavia, não fora permitido beber
daquela água; mas por que caminho ou de que modo retornara ao seu corpo, não
sabia, só que pela manhã, acordando subitamente, dera consigo estendido na pira.
E assim, Gláucon, salvou-se este relato e não se perdeu, e ainda nos pode salvar
a nós se lhe dermos crédito; pois, estando precavidos, atravessaremos sem perigo o
Rio do Esquecimento e não contaminaremos nossa alma. Portanto, meu alvitre é que
sigamos sempre o caminho do alto e pratiquemos de todos os modos a justiça, com
inteligência, tendo em mente que a alma é imortal e capaz de suportar todos os males
e todos os bens. E assim seremos amigos de nós mesmos e dos lardões daquelas
virtudes, a exemplo dos vencedores nos jogos, quando dão volta à arena para recolher
seus prêmios. E não só aqui mas também na viagem de mil anos que estivemos
descrevendo, seremos felizes.

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