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Goirnin€. Contos-sP Movs Cuca. 2002 MICROMEGAS Histéria Filoséfica Viagem de um habitante da estrela Sirio ao planeta Saturno Em um dos planetas que giram ao redor da estrela denomi- nada Sirio, vivia um jovem de muito espirito que eu tive a honra de conhecer em ocasiao da ultima viagem que ele fez a este nosso diminuto formigueiro: chamava-se Micrémegas, nome muito apro- priado a todos os grandes. Possuia 8 léguas de altura: entendo, por 8 léguas, 24 mil passos geométricos de 5 pés cada um. Alguns matemiticos, pessoas sempre titeis ao ptiblico em ge- ral, pegarao logo a pena e, considerando que o sr. Micrémegas, habitante do pais de Sirio, mede da cabega aos pés 24 mil passos, isto é, 20 mil pés, e que nés, cidadaos da Terra, nado medimos além de 5 pés de altura, e 0 nosso planeta tem 9 mil léguas de circunferéncia, esses matematicos, dizia eu, calcularao que é ne- cessdrio, absolutamente, que o astro que o produziu seja 21.600 mil vezes maior que a nossa mintscula Terra. Nada mais sim- ples nem mais comum na natureza. Os territérios de alguns Es- tados da Alemanha ou da Itélia, cuja volta pode ser realizada em meia hora, comparados ao império da Turquia, de Moscévia* ou * Regio histérica da Russia, onde se desenvolveu o Grao-Principado de Moscou, eujos soberanos se tornaram os czares da Riissia (1547). (N. do T.) 109 OBRAS-PRIMAS da China so uma débil imagem das extraordindrias diferencas que a natureza colocou em todos os seres. Por ser Sua Exceléncia da altura que eu afirmei, todos os nossos escultores e pintores concluirao sem dificuldade que a sua cintura pode medir 50 mil pés, 0 que é uma bela proporgao. A respeito do seu espirito, ele 6 um dos mais ricos que ha; sabe muitas coisas e inventou algumas outras: ainda nao conta- va 250 anos e jd estudava, de acordo com 0 costume, no colégio dos jesuitas de seu planeta, quando adivinhou, sé pelo poder de seu espirito, mais de cinqiienta proposigées de Euclides — ou seja, dezoito a mais que Blaise Pascal, 0 qual, depois de haver adivi- nhado 32, por brincadeira, conforme dizia sua irmi, tornou-se mais tarde um gedmetra bem mediocre e um péssimo metafisico. La pelos seus 450 anos, ao sair da infancia, dissecou muitos des- ses pequenos insetos com apenas 100 pés de didmetro e que se esquivam dos microscépios ordindrios; escreveu sobre a matéria um livro muito curioso, mas que lhe acarretou alguns problemas. O mufti* do seu pafs, sujeito minucioso e ignorantissimo, encon- trou em seu livro assergées suspeitas, dissonantes, temerdrias, heréticas, e o perseguiu sem descanso: tratava-se de saber se a forma substancial das pulgas de Sirio era a mesma que a dos caracéis. Micrémegas defendeu-se com inteligéncia; conquistou 0 apoio das mulheres; 0 processo durou 220 anos. No fim o mufti fez condenar o livro por jurisconsultos que nao o tinham lido, eo autor recebeu a ordem de nao aparecer na corte durante oitocen- tos anos. Pouco se importou ele de ser expulso de uma corte onde sé havia intrigas e mesquinharias. Compés uma cangao muito en- gracada contra 0 mufti, a que este nao deu importancia; e come- cou a viajar de planeta em planeta, para terminar de formar oO espirito e 0 coragdo, como se diz. Os que sé viajam de cadeira de posta e coche ficaraio com certeza espantados com os equipamen- tos de 1 pois nés, nesta pequena bola de lama, nada concebemos * Chefe religioso muculmano, (N. do T.) 110 CONTOS além de nossos habitos. O nosso viajante conhecia as maravilhas as leis da gravitagao e todas as forgas atrativas e repulsivas. Uti- lizava-as tao de acordo que, ou por meio de um raio de sol, ou gracas a comodidade de um cometa, ia de planeta em planeta, ele € os seus, como um passaro voa de galho em galho. Em pouco tempo percorreu a Via-Lactea; e vejo-me forgado a confessar que ele jamais divisou, em meio as estrelas de que é formada, esse lindo céu empireo* que o ilustre vigério Derham se vangloria de haver enxergado na ponta de sua luneta. Nao que eu afirmar que o sr. Derham tenha visto mal, Deus me livre! Mas Micrémegas esteve no local, é um bom observador, e eu nao quero contradizer ninguém. Micrémegas, apés dar muitas voltas, chegou ao plane- ta Saturno. Por mais habituado que estivesse a ver coisas novas, nao conseguiu, ante o diminuto tamanho daquele planeta e de seus habitantes, evitar esse sorriso de superioridade que as ve- zes escapa aos mais sdbios. Ja que, afinal, Saturno nado é mais que novecentas vezes maior que a Terra, e os seus cidaddos nao passam de andes que tém apenas umas 1.000 toesas** de altura. A principio, ele zombou um pouco da sua gente, mais ou menos como um misico italiano ri da mtisica de Lulli, quando chega a Franga. Mas 0 siriano, com seu espirito justo, compreendeu que uma criatura pensante poderia muito bem nao ser ridicula ape- nas por ter 6.000 pés de altura. Acostumou-se com os saturninos, depois de té-los assustado. Fez grande amizade com o secretario da Academia de Saturno, homem de muito espirito e que, na ver- dade, nao havia inventado nada, mas prestava excelente conta das invengées dos outros, e fazia sofriveis pequenos versos e gran- des cdlculos. Reproduzirei aqui, para alegria dos leitores, uma notdvel conversagao que Micrémegas manteve um dia com 0 se- nhor secretario. * Amorada dos santos e bem-aventurados. (N. do T.) ** Toesa: antiga unidade de medida de cumprimento, equivalente a 6 pés, ou seja, 1,98 m. W. do T.) *** Compositor italiano naturalizado francés (Florenga 1632-Paris 1687). Excelente violi nista, ganhou a confianca do jovem Luis XIV, que o nomeou compositor de misica de camara real e o encarregou dos balés da corte. (N. do T.) 1 OBRAS-PRIMAS 2 Conversacéo do habitante de Sirio com o de Saturno Depois que Sua Exceléncia se deitou, o secretario aproximou- se de seu rosto: — E preciso confessar — declarou Micrémegas —, que a na- tureza é bem variada. — Sim — disse o saturnino —, a natureza é como um cantei- ro cujas flores... — Ah! — exclamou o outro. — Deixe 0 canteiro em paz. — Ela é — manifestou-se de novo o secretario — como uma reuniao de loiras e morenas cujos ornamentos... — O que eu tenho a ver com as suas morenas? — E entao como uma colegio de pinturas cujos tragos... — Ora! — atalhou o viajante. — De uma vez por todas: a natureza é como a natureza. Para que procurar-lhe comparagoées? — Para agradar a vocé — respondeu o secretario. — Eu nfo quero que me agradem — rebateu o viajante. — Quero que me ilustrem. Comece por me dizer quantos sentidos possuem os homens do seu planeta. — Temos 72 — respondeu 0 académico. — E todos os dias nos queixamos de serem tao poucos. A nossa imaginagao vai além das nossas necessidades; julgamos que, com os nossos 72 senti- dos, 0 nosso anel, as nossas cinco luas, somos muito limitados; e, malgrado toda a nossa curiosidade e o grande numero de paixdes que procedem dos nossos 72 sentidos, ainda temos tempo de so- bra para nos aborrecermos. — Nao duvido — declarou Micrémegas —, pois no nosso planeta temos cerca de mil sentidos, e ainda nos sobra nao sei que impreciso desejo, nao sei que inquietagao que continuamente nos avisa do pouco que somos e de que existem seres muito mais 112 CONTOS perfeitos. Andei viajando um pouco; vi mortais muito abaixo de nés; vi muito superiores; mas_ndo vi nenhum que nao tivesse _mais desejos do que reais necessidades, e mais necessidades do que satisfagao. Talvez algum dia eu chegue ao pais em que nao falta nada; mas até este momento, ninguém me deu noticias desse pais. O saturniano e o siriano estenderam-se entao em suposigées; porém, apés muitos raciocinios tao engenhosos quanto incertos, foi preciso voltar aos fatos. — Quanto tempo vivem vocés? — perguntou o siriano. — Ah! Pouquissimo — respondeu 0 homenzinho de Saturno. — Exatamente como nés — disse o siriano. — Vivemos nos queixando que é pouco. Deve ser uma lei universal da natureza. — Ai! — suspirou o saturniano. — Nés vivemos somente qui- nhentas grandes revolugées do Sol (0 que, pela nossa forma de contar, resulta em cerca de 15 mil anos). Bem se vé que é quase 0 ‘mesmo que morrer no instante em que se nasce; a nossa vida é um ponto; sua duracdo, um instante; 0 nosso planeta, um dtomo. Logo que comegamos a nos instruir um pouco, chega a morte, antes que tenhamos obtido experiéncia. Quanto a mim, nao ouso fazer nenhum plano; sou como uma gota de agua num oceano imenso. Sinto-me envergonhado, sobretudo diante de vocé, do papel ridiculo que fago neste mundo. — Se o amigo nao fosse filésofo — respondeu Micrémegas —, eu recearia angustid-lo dizendo-lhe que a nossa vida é setecentas vezes mais longa que a sua. Mas também sabe que, quando so- mos obrigados a devolver o corpo aos elementos e tonificar a na- ‘tureza sob outra forma (que é 0 que chamamos morrer), quan- ‘do chega esse momento de metamorfose, ter vivido muitos anos ou um dia 6 exatamente a mesma coisa. Estive em paises onde se vivia mil vezes mais tempo do que no meu, e vi que mesmo assim eles se queixavam. Mas existe em todos os lugares pessoas de bon natureza. Espalhou ele pelo Universo uma quantidade infinita senso, que sabem compreender e agradecer ao criador da de variedades, com uma extraordindria espécie de uniformidade. 113 OBRAS-PRIMAS Por exemplo, todos os seres pensantes sao diferentes, e no fundo todos se parecem, pelo dom do pensamento e dos desejos. A maté- ria esta em todos os lugares, mas possui em cada planeta pro- priedades diferentes. Quantas dessas propriedades vocés compu- tam na sua matéria? — Se esta aludindo — disse o saturniano — a essas proprie- dades sem as quais consideramos que este planeta nao poderia existir da forma como é, computamos trezentas, como a exten- so, a impenetrabilidade, a gravitagiio, a divisibilidade etc. — Aparentemente — falou o viajante —, basta esse pequeno ntimero para os designios do Criador em relagao 4 pequena mo- rada de vocés. Em tudo admiro a Sua sabedoria. Percebo por toda parte diferengas, mas também proporgées. Pequeno é 0 seu pla- neta e também seus habitantes; vocés tem poucas sensagoes, sua matéria possui poucas propriedades: tudo isso é obra da Provi- déncia. De que cor é 0 sol de vocés? — De um branco muito amarelado — respondeu o satur- niano. — E ao dividirmos um de seus raios, vemos que contém sete cores. — O nosso sol tende para o vermelho — informou o siriano —e apresenta 39 cores primitivas. Dentre os sdis de que me apro- ximei, nao existem dois que se parecam, como nao existe entre vocés um rosto que no seja diferente de todos os outros. | _ Depois de varias perguntas dessa natureza, perguntou quan- | tas substancias essencialmente diferentes existiam em Saturno. | Soube que no existiam mais que umas trinta, como Deus, 0 es- | paco, a matéria, os seres extensos que sentem e pensam, os seres pensantes que nao possuem extensdo, os que se penetram, os que nao se penetram, ¢ o resto. O siriano, em cuja patria havia tre- zentas, e que havia descoberto outras 3 mil em suas viagens, dei- xou 0 filésofo de Saturno espantado. Afinal, apés terem partici- pado um ao outro um pouco do que sabiam e muito do que nao sabiam, apés terem permutado idéias durante uma revolugio do Sol, decidiram empreender juntos uma breve viagem filoséfica. 114 cONTOS 3 Viagem dos dois habitantes de Sirio e de Saturno Estavam os nossos dois filésofos prontos para embarcar na atmosfera de Saturno, com um bom estoque de instrumentos ma- tematicos, quando a amante do saturniano, ao tomar conheci- mento disso, veio queixar-se aos prantos. Era uma linda moreni- nha de somente seiscentas toesas, mas que compensava com nu- merosos encantos seu diminuto tamanho. — Ah, cruel! — bradava ela. — Depois de lhe haver resistido durante 1.500 anos, quando finalmente comegava a render-me, quando passei somente cem anos nos seus bracos, vocé me aban- dona para ir viajar com um gigante de um outro mundo! VA, vocé nao passa de um curioso, jamais teve amor; se fosse um verda- deiro saturniano, seria fiel. Por onde vai correr? O que pretende? As nossas cinco luas séo menos errantes que vocé, 0 nosso anel 6 menos mutavel. Pronto! Nunca mais amarei ninguém. O saturniano, por mais que fosse filésofo, beijou-a, chorou com ela, e a moga, apés ter desfalecido, foi consolar-se com um janota do pais. Os nossos dois curiosos partiram; saltaram primeiro sobre 0 anel, que julgaram bastante plano, como bem o adivinhou um ilustre habitante do nosso diminuto planeta; continuaram, de- pois, de lua em lua. Visto que um cometa passou bem perto da ultima, langaram-se sobre ele, com todos os seus criados e ins- trumentos. Depois de haverem percorrido aproximadamente 150 milhGes de léguas, encontraram os satélites de Jupiter. Nesse planeta demoraram-se um ano todo, durante o qual descobriram belos segredos, que seriam agora publicados se nao fossem os se- nhores inquisidores, que consideraram algumas assergdes um pouco arrojadas. Mas na biblioteca eu li o manuscrito do ilustre arcebispo de ***, que me permitiu examinar seus livros, com uma generosidade e benevoléncia nunca suficientemente louvadas. 115 OBRAS-PRIMAS Mas voltemos aos nossos viajantes. Apés deixarem Jupiter, atravessaram um espaco de cerca de 100 milhdes de léguas, e passaram pelo planeta Marte, que, como se sabe, é cinco vezes menor que a nossa diminuta Terra; viram as duas luas desse planeta e que escaparam aos olhos dos nossos astrénomos. Eu sei que o padre Castel escrever4, inclusive com bastante espirito, contra a existéncia dessas duas luas; mas eu aludo aqueles que raciocinam por analogia. Sabem esses bons filésofos como seria dificil ao planeta Marte, que se encontra tao distante do Sol, nao possuir pelo menos duas luas. Seja como for, 0 caso é que os nos- sos amigos 0 acharam tao pequeno, que temeram nao encontrar pousada, e seguiram adiante, como dois viajantes que desprezam um mau albergue de aldeia e continuam até a cidade vizinha. Mas 0 siriano e seu companheiro logo se arrependeram disso. Viajaram por muito tempo sem nada encontrar. Por fim avista- ram um pequeno clardo; era a Terra; coisa de causar dé a gente que provinha de Jupiter. Contudo, com receio de se arrepende- rem pela segunda vez, decidiram desembarcar aqui mesmo. Des- locaram-se para a cauda do cometa e, procurando intencional- mente uma aurora boreal, entraram nela, chegando a Terra pelo norte do mar Baltico, em 5 de julho de 1737. 4 Que lhes aconteceu sobre a face da Terra Apés haverem descansado um pouco, almogaram duas mon- tanhas, que os criados lhes prepararam com esmero. Quiseram depois fazer um reconhecimento do diminuto pais onde se encon- travam. Inicialmente caminharam de norte a sul. Os passos nor- mais do siriano e do seu pessoal eram de 30 mil pés aproximada- mente; o ando de Saturno seguia de longe, ofegando, pois ele pre- 116 CONTOS cisava dar uns doze passos correndo enquanto 0 outro dava um: imaginem (se é consentida tal comparagio) um cAozinho de madame que tivesse de acompanhar um capitao da guarda do rei da Prissia. Visto que os dois estrangeiros caminhavam muito depressa, deram a volta ao mundo em 36 horas; 0 Sol, na verdade, ou me- Thor, a Terra, faz igual viagem em 24; mas deve-se considerar que é mais cémodo girar sobre 0 préprio eixo do que caminhar, movendo um pé depois do outro. Ei-los portanto de regresso ao ponto de partida, apéds terem visto esse pantano, quase imper- ceptivel para eles, que se chama mar Mediterraneo, e esse outro pequeno charco que, sob o nome de Grande Oceano, contorna o formigueiro. A agua jamais havia passado das canelas do ano, enquanto 0 outro sé molhara os calcanhares. Fizeram tudo 0 que puderam, caminhando em todas as diregées, para descobrir se este planeta era habitado ou nao. Agacharam-se, deitaram-se, apalparam por toda parte; porém, como os seus olhos e maos nao eram proporcionados aos pequenos seres que por aqui se arras- tam, no perceberam 0 minimo indicio que os fizesse suspeitar de que nds, e os nossos demais companheiros habitantes deste planeta, tivéssemos a honra de existir. O ando, que as vezes raciocinava muito agodadamente, con- cluiu que a Terra nao possuia habitantes. Seu primeiro argu- mento era de que nao tinha visto ninguém. Micrémegas, educa- damente, mostrou-lhe que ele nao estava raciocinando direito: — Pelo fato de nao divisar, com os seus olhinhos, certas es- trelas de qiiinquagésima grandeza que eu vejo perfeitamente, conclui disso que essas estrelas no existem? — Mas — retrucou o anao — eu apalpei bem. — Mas sentiu — respondeu o outro. — Mas este planeta é tao mal construido — contrapés 0 anao —, 6 tudo tao irregular e de uma forma tao ridicula! Aqui, tudo parece um completo caos: nao esta vendo esses regatos que nun- ca correm em linha reta, esses charcos que nao sao nem redon- dos, nem quadrados, nem ovais, nem de nenhuma forma regu- lar? E todos esses graozinhos pontiagudos de que esta arrepiado 117 OBRAS-PRIMAS este planeta e que me arranharam os pés? (Queria aludir as mon- tanhas.) Repare ainda na forma de todo o planeta, como é acha- tado nos pdlos, e a sua maneira inadequada de girar ao redor do Sol, de forma que a regiao dos pdlos fica obrigatoriamente esté- ril? Em verdade, 0 que me faz pensar que aqui nao existe nin- guém é a conviccao de que gente de bom senso nao moraria num lugar como este. — Pois bem — disse Micrémegas —, talvez os que aqui vi- vem no sejam seres de bom senso. Mas existem probabilidades de que isso nao tenha sido feito a toa. As coisas aqui Ihe parecem irregulares porque em Saturno e Jupiter tudo é feito com régua e compasso. E precisamente por esse motivo que ha aqui um pouco de confusao. Mas eu ja nao Ihe disse que nas minhas viagens sempre encontrei variedade? O saturniano rebateu todas essas razées. E a discussao nun- ca teria um fim se, por felicidade, Micrémegas, no calor da dispu- ta, no tivesse rompido o seu colar de brilhantes. Estes cairam ao chao. Eram lindas pedras de tamanho variado, possuindo as maiores 400 libras de peso e as menores, 50. O anao apanhou algumas; ao aproximé-las dos olhos, viu que, da maneira como estavam lapidadas, serviam como excelentes microscépios. To- mou, pois, um pequeno microscépio de 160 pés de didmetro, que aplicou a pupila; e Micrémegas escolheu um de 2 500 pés. Eram 6timos; porém, no inicio, nada notaram com a sua ajuda: era necessério se acostumares. Finalmente, o habitante de Saturno viu algo quase imperceptivel que se movia na superficie do mar Baltico: era uma baleia. Pegou-a cuidadosamente com o dedo minimo e, colocando-a sobre a unha do polegar, mostrou-a a Micrémegas, que comegou a rir do infimo tamanho dos habitan- tes do nosso planeta. O saturniano, persuadido de que o nosso mundo é habitado, imaginou que o era apenas por baleias; e, como era um grande adepto do logicismo, quis adivinhar de onde um ser tao diminuto tirava seu movimento, e se possuia idéias, vontade e liberdade. Micrémegas sentiu-se muito atrapalhado: examinou o animal com inesgotavel paciéncia, e o resultado da anélise foi que era impossivel crer que ali se hospedasse uma 118 CONTOS alma. Portanto, estavam os dois viajantes propensos a pensar que nao existe espirito em nosso mundo, quando, com a ajuda do microscépio, perceberam algo maior que uma baleia e que flutuava sobre as 4guas. Sabe-se que, naquela época, um grupo de sabios estava de regresso do Circulo Polar Artico, aonde ha- viam ido realizar observagées que a ninguém tinham ocorrido até ent&o. Noticiaram os jornais que o seu navio naufragou na costa da Bétnia* e que se salvaram com grande dificuldade; mas neste mundo nunca se sabe 0 reverso da moeda. Contarei ingenuamente como aconteceram as coisas, sem nada adicio- nar por conta prépria, 0 que no significa pouco esforco para um historiador. 5 Experiéncias e raciocinios dos dois viajantes Com muito cuidado, Micrémegas estendeu a mao para o lu- gar onde se encontrava 0 objeto, e, avancando dois dedos e reti- rando-os com medo de errar, e depois abrindo-os e fechando-os, pegou com todo o jeito o navio que carregava os tais sdbios e colocou-o sobre a unha, sem apertd-lo muito, para evitar nao esmaga-lo. — Aqui esta um animal bastante diferente do primeiro — disse 0 anao de Saturno; o siriano colocou o suposto animal na palma da mao. Os passageiros e os tripulantes, que pensavam estar sendo erguidos por um furacio, e que acreditavam encon- trar-se sobre algum tipo de rochedo, comegaram a se movimen- tar; os marinheiros pegaram pipas de vinho e as jogaram sobre a * Extremidade setentrional do mar Baltico, entre a Suécia e a Finlandia. (N. do T.) 119 OBRAS-PRIMAS mao de Micrémegas, e depois fugiram. Os geédmetras pegaram seus esquadros, seus setores € nativas da Lapénia, e pularam para os dedos de Micrémegas. Tanto fizeram que este sentiu fi- nalmente mover-se algo que Ihe provocava cécegas nos dedos: era um bastdo com ponta de ferro que lhe enfiavam no indicador; achou, por aquilo, que havia saido alguma coisa do pequeno ani- mal que ele segurava. Mas nao desconfiou de mais nada. O mi- croscépio, que mal fazia distinguir uma baleia de um navio, nao alcangava seres tao insignificantes como os homens. Nao tenho o intuito de chocar a vaidade de ninguém, mas sou forcado a pedir as pessoas importantes que me acompanhem numa pequena observacio: considerando a homens com aproximadamente 5 pés de altura, nao fazemos, na superficie da Terra, maior figura do que faria, sobre uma bola de dez pés de circunferéncia, um ani- mal que medisse a seiscentésima milésima parte de uma polega- da. Imaginem uma entidade que conseguisse sustentar a Terra na mao, e que possuisse 6rgados na mesma propor¢éo dos nossos (e pode ser que existam muitas dessas entidades): considerei, entio, o que elas pensariam dessas patalhas que nos custaram duas aldeias que foi necessério devolver. Se algum capitiio de granadeiros ler algum dia esta obra, nao duvido que mande aumentar, ao menos em dois pés, 0s ca- pacetes da sua tropa; mas fica avisado de que, por mais que faca, jamais passarao, ele e os seus homens, de infinitamente pequenos. Que extraordindria habilidade no foi necessdria ao nosso filésofo de Sirio para perceber os Atomos de que acabo de falar! Quando Leuwenhoek e Hartsoeker viram pela primeira vez, ou pensaram ver, a semente de que nos formamos, nao fizeram tao espantosa descoberta. Que prazer nao sentiu Micrémegas ao ver moverem-se aquelas pequenas maquinas, examinando-lhes todos os movimentos, seguindo-as em todas as operagées! Que excla- macoes! Com que alegria ele entregou um dos seus microscépios ao companheiro de viagem! — Vejo-os! — exclamavam os dois ao mesmo tempo. — Repa- ye como carregam volumes, como se levantam, como se abaixam! 120 CONTOS Assim falando, suas maos tremiam pelo prazer de ver objetos tdo novos e pelo temor de perdé-los. O saturniano, passando de um excesso de desconfianca para um excesso de credulidade, pensou que eles estivessem trabalhando na propagagao da espécie. — Ah! — exclamou ele. — Apanhei a natureza em flagrante. Mas estava sendo enganado pelas aparéncias, o que acontece mui- tas vezes, quer a gente utilize ou nao microscdpios. 6 Que lhes aconteceu com os homens Observador mais eficiente que 0 ando, Micrémegas percebeu com clareza que os étomos conversavam entre si; e o fez notar ao companheiro que, envergonhado do seu engano a respeito da ge- ragio, nao quis acreditar que tal espécie pudesse trocar idéias. Possuia o dom das linguas, como o siriano; nao ouvia os nossos 4tomos falarem, e presumia que nao falavam. Alias, como pode- riam aquelas criaturas imperceptiveis ter os érgaos da voz, e que teriam para se dizer? Para falar, é necessdrio pensar, ou quase; porém, se pensavam, possuiam entao o equivalente de uma alma. Ora, atribuir um equivalente de alma a uma espécie daquelas parecia-Ihe absurdo. — Mas — observou Micrémegas —, ha pouco vocé imaginava que eles praticavam o amor. Sera que acha que se possa praticar © amor sem pensar e sem pronunciar alguma palavra, ou pelo menos sem se fazer compreender? Acredita, alids, que seja mais dificil elaborar um raciocinio do que fazer um filho? Para mim, uma e outra coisa constituem profundos mistérios. — Eu ja nao ouso nem acreditar nem negar — respondeu o an&o —, nao possuo mais opiniao. Vamos primeiro examinar es- ses insetos, em seguida discutiremos a respeito. 121 OBRAS-PRIMAS _— Muito bem pensado — concordou Micrémegas. Depois ti- rou do bolso uma tesourinha, com que cortou as unhas e, com uma lasca da unha do polegar, fabricou uma espécie de trompa actistica, que era como um grande funil cujo bico aplicou no ouvi- do. A boca do funil envolvia 0 navio e toda a tripulacao. A voz mais fraca penetrava nas fibras circulares da unha, de forma que, gracas a sua habilidade, 1é do alto, o filésofo conseguiu ouvir per- feitamente 0 zumbido dos insetos aqui embaixo. Em poucas ho- ras foi capaz de distinguir as palavras, e por fim compreender 0 francés. O ando fez a mesma coisa, porém com maiores dificulda- des. O assombro dos viajantes aumentava a cada instante. Ou- viam insetos falarem com muito bom senso: esse capricho da na- tureza parecia-lhes inexplicdvel. Podem muito bem imaginar como Micrémegas e o seu anao ardiam de impaciéncia para conversar com os Atomos. Receavam que as suas vozes de trovao, principal- mente a de Micrémegas, ensurdecessem os insetos, sem serem ouvidas. Era preciso diminuir-lhes a poténcia. Colocaram na boca umas espécies de palitos cujas pontas afiadas chegavam perto do navio. O siriano tinha 0 ano sobre os joelhos, e 0 navio com a tripulacdo sobre uma unha. Inclinava a cabega e falava baixinho. Por fim, por intermédio desses e de outros cuidados, iniciou as- sim o seu discurso: — Insetos invisiveis, que a mao do Criador se deleitou em fazer brotar do abismo do infinitamente pequeno, agradeco a Deus por se haver dignado desvendar-me os segredos que pa- reciam impenetraveis. Na minha corte, talvez nfo se dignem olh4-los, mas eu nao desprezo ninguém e lhes oferego a minha protegio. Se alguém chegou ao extremo assombro, foram sem dtivida as pessoas que ouviram essas palavras. Nao conseguiam saber de onde provinham. O capelao de bordo fez exorcismos, os mari- nheiros praguejaram, e os sébios do navio aventaram hipéteses; contudo, por mais hipéteses que apresentassem, nao descobriam quem estava Ihes falando. O ano de Saturno, cuja voz era mais suave que a de Micrémegas, informou-lhes entao com quem esta- vam lidando. Contou-lhes sobre a partida de Saturno, disse-lhes 122 cONTOS quem era o sr. Micrémegas, e, apés haver lamentado por eles serem tao diminutos, perguntou-lhes se sempre haviam estado naquela miserdvel condigio tao proxima do aniquilamento, o que faziam num planeta que parecia pertencer as baleias, se eram felizes, se se multiplicavam, se possuiam alma, e mil outras ques- tdes dessa natureza. Um sébio do grupo, mais corajoso que os outros e ofendido por duvidarem da existéncia de sua alma, observou o interlocutor por meio de pinulas assestadas sobre um esquadro, fez duas mi- ras e, na terceira, assim lhe falou: — Acredita entdo, senhor, sé pelo fato de medir mil toesas da cabega aos pés, que é um... — Mil toesas! — exclamou o ano. — Meu Deus! Como é pos- sivel ele saber a minha altura? Mil toesas! Nao se engana nem de uma polegada. Esse a4tomo me mediu! E geémetra, conhece as minhas dimensées; e eu, que 0 enxergo por meio de um microscé- pio, ainda nao conhego as dele. — Sim, eu o medi — declarou 0 fisico —, e medirei também o seu enorme companheiro. Aceita a proposta, deitou-se Sua Exceléncia ao comprido; pois, se ficasse de pé, sua cabeca se encontraria muito acima das nu- vens. Os sdbios plantaram-lhe uma grande Arvore num lugar que o dr. Swift* designaria pelo nome, mas que eu me recuso a no- mear, por causa do méu grande respeito as damas. Em seguida, por uma seqiiéncia de triangulos, concluiram que aquilo que eles estavam vendo era um jovem de 120 mil pés de altura. Micrémegas proferiu entdo estas palavras: — Reconhego, mais do que nunca, que nada devemos julgar por seu tamanho aparente. 0 Deus, que destes uma inteligén- cia a substancias que aparentam ser tao despreziveis, o infini- tamente pequeno vos custa tao pouco como 0 infinitamente gran- de; e, se é possivel que existam seres ainda menores que estes, * Voltaire refere-se aqui a Jonathan Swift (1667-1749), escritor irlandés autor, entre muitas outra obras, de As Viagens de Gulliver. (N. do T.) 123 OBRAS-PRIMAS podem possuir um espirito superior ao daqueles presungosos animais que vi no céu e cujo pé seria suficiente para cobrir 0 planeta em que desci. Respondeu-lhe um dos sdbios que ele poderia, com a maxima seguranga, acreditar que existem seres inteligentes muitissimo menores que o homem. Contou-lhe nao tudo o que Virgilio diz de estupendo a respeito das abelhas, mas 0 que Swammerdam* des- cobriu, e 0 que Réaumur** dissecou. Disse-lhe, finalmente, que existem animais que estéo para as abelhas como as abelhas estao para os homens, e que Micrémegas estava para aqueles desco- munais animais a que se referia como eles estdo para outras subs- tancias diante das quais nao passam de atomos. Pouco a pouco a conversa se tornava interessante, e Micrémegas assim falou. Conversagdao com os homens 6 dtomos inteligentes, em quem o Ser Eterno se deleitou em manifestar seu engenho e poder, devem sem: dtvida gozar das maio- res alegrias sobre 0 seu planeta; pois, possuindo tao pouca matéria e parecendo puro espirito, devem passar a vida a amar ¢ a pensar, que 6 0 que constitui a verdadeira existéncia dos espiritos. A verdadeira felicidade, que nao vi em parte alguma, com certeza aqui existe. ‘Ao ouvir essas palavras, todos os sébios menearam a cabeca; e um deles, mais sincero que os outros, confessou de boa-fé que, + Jan Swammerdam (1637-1680), microscopista holandés, cuja preciso The possibilitou veuligar vérias descobertas, incluindo a das eélulas vermelhas do sangue. (N. do 7) 4s René Antoine Ferchault de Réaumur (1683-1757), cientista francés. Realizou ‘trabalhos cm entomelogia, porém 6 mais conhecido como idealizador da escala de temperatura Réaumur, hoje pouco empregada, na qual 0°R = 0°C ¢ 80°R = 100°C. (N. do T.) 124 CONTOS exceciio feita a um pequeno niimero de habitantes muito pouco considerados, 0 resto no passa de uma assembléia de loucos, maus e infelizes. — Nés possuimos mais matéria do que precisamos — disse ele — para causar muito mal, se o mal provém da matéria, e pos- suimos espirito em excesso, se o mal provém do espirito. Nao sa- bem, por exemplo, que no momento em que lhes falo, existem cem mil loucos da nossa espécie, cobertos de chapéus, que matam cem mil outros animais cobertos de um turbante, ou que sao mas- sacrados por estes, e que, quase por toda a Terra, é assim que se faz, desde tempos imemoriais? O siriano estremeceu e indagou qual poderia ser a causa des- sas terriveis pendéncias entre tao mesquinhos animais. — Trata-se — respondeu o sabio — de uma porgiio de lama do tamanho do seu calcanhar. Nao que alguns desses milhdes de ho- mens que se exterminam pretendam um palmo que seja dessa lama. Trata-se somente de saber se pertenceré a certo homem a que deno- minam Sultao, ou a outro homem a que chamam de César, nao sei por qué. Nenhum dos dois viu, e nunca verd, 0 pedacinho de terra em questao, e quase nenhum desses animais que mutuamente se degolam ja viu algum dia o animal pelo qual se degolam. — Infelizes! — exclamou o siriano, indignado. — Pode-se por acaso imaginar mais furiosa loucura? Estou até com vonta- de de dar trés passos e esmagar esse formigueiro de ridiculos assassinos. — Nao se dé a esse incémodo; eles j4 trabalham o suficiente para a sua propria desgraga. Fique sabendo que, depois de dez anos, ja nao restara nem a centésima parte desses miserdveis, e, mesmo que nao tivessem usado a espada, a fome, a fadiga ou a intemperanga os levam a quase todos. Alias, nao é a estes que é preciso punir, mas sim a esses barbaros sedentarios que, do fundo dos seus gabinetes, ordenam, durante a digestio, 0 massacre de um milho de homens, e em seguida agradecem solenemente a Deus. O viajante sentia pena da pequena raga humana, na qual estava descobrindo tao assombrosos contrastes. 125 OBRAS-PRIMAS — Ja que pertencem ao diminuto numero de sdbios — disse- Thes ele — e aparentemente nao matam ninguém por dinheiro, digam-me em que se ocupam entao. — Dissecamos moscas — respondeu o sébio —, medimos li- nhas, juntamos nimeros, concordamos a respeito de dois ou trés pontos que entendemos, e discutimos sobre dois ou trés mil que nao entendemos. O siriano e o companheiro tiveram entao a idéia de interro- gar aqueles dtomos pensantes sobre coisas que ambos conheciam. — Quanto contam — perguntou Micromegas — da estrela de Canicula a grande estrela de Gémeos? — Trinta e dois graus e meio — responderam todos ao mes- mo tempo. — Quanto contam daqui até a Lua? — Sessenta semidiametros da Terra, em numeros redondos. — Quanto pesa o ar de vocés? Pretendia confundi-los nesse ponto, mas todos responderam que o ar pesa cerca de novecentas vezes menos que igual volume de 4gua e 19 mil menos que o ouro. O ando de Saturno, pasmo com as respostas deles, sentiu-se tentado a considerar feiticeiros aqueles mesmos a quem havia negado uma alma quinze minutos antes. Por fim, disse-Ihes Micrémegas: — Ja que sabem tao bem o que se encontra fora de vocés, com certeza sabem ainda melhor 0 que possuem por dentro. Di- gam-me 0 que é a sua alma e como constroem as suas idéias. Os sabios falaram todos ao mesmo tempo, como antes, porém foram de diferentes opinides. O mais velho citava Aristdteles, outro pronunciava o nome de Descartes; este falava em Malebran- che, aquele em Leibniz, um outro em Locke. Um velho peripatético disse em voz alta com toda a seguranga: — A alma é uma enteléquia, razdo pela qual tem o poder de ser o que 6. E o que declara expressamente Aristételes, pagina 633 da edigdo do Louvre: ’EvreAezera ton ete. — Nao entendo muito bem o grego — disse o gigante. — Nem eu tampouco — replicou 0 inseto filoséfico. 126 CONTOS — Entao por que — tornou o siriano — cita um certo Arist6- teles em grego? — E que — respondeu o sdbio — convém citar aquilo de que nao se compreende nada na lingua que menos se entende. O cartesiano tomou a palavra e disse: —A alma é um espirito puro, que recebeu no ventre da mae todas as idéias metafisicas, e que, ao sair de la, 6 obrigada a ir para a escola e aprender de novo tudo 0 que tao bem sabia e que no sabe mais! — Entao nao valia a pena — retrucou o ser de 8 léguas — que a sua alma fosse tao sabia no ventre de sua mae, para ser tao ignorante quando tivesses barba no queixo. Mas que entende por espirito? — Bela pergunta! — exclamou 0 raciocinador. — Nao tenho a minima idéia disso: dizem que nao é matéria. — Mas pelo menos sabe 0 que é a matéria? — Perfeitamente — respondeu o sabio. — Por exemplo, esta pedra é cinzenta e possui determinada forma, tem as suas trés dimensies, é pesada e divisivel. — Pois bem — disse o siriano —, e essa coisa que lhe parece divisivel, pesada e cinzenta, saberé dizer-me exatamente o que 6? Vocé lhe vé alguns atributos; mas o fundo da coisa, por acaso 0 conhece? — Nao — respondeu 0 outro. — Entao no sabe o que é a matéria. Em seguida o sr. Micrémegas, dirigindo a palavra a outro sdbio, a quem equilibrava sobre o polegar, perguntou-lhe o que era a sua alma, e 0 que fazia. — Absolutamente nada — respondeu o filésofo malebranchista —, € Deus que faz tudo por mim. Eu vejo tudo em Deus, fago tudo em Deus: é Ele quem faz tudo, sem que eu me preocupe. — Eo mesmo que se vocé nao existisse — tornou 0 sdbio de Sirio. — E vocé, meu amigo — disse a um leibniziano que ali se encontrava —, 0 que vem a ser a sua alma? — Ela é — respondeu o leibniziano — um ponteiro que indi- ca as horas, enquanto o meu corpo toca o carrilhao; ou, se quiser, 127 OBRAS-PRIMAS é ela quem toca o carrilhdo, enquanto 0 meu corpo marca a hora; ou entao, 6 a minha alma o espelho do Universo, e 0 meu corpo, a moldura do espelho: isso 6 bem claro. Um minmisculo partidério de Locke estava ali perto; e quan- do afinal lhe dirigiram a palavra, respondeu: — Eu no sei como é que penso, mas sei que nunca pude pensar sem a ajuda dos meus sentidos. Nao duvido que exis- tam substancias imateriais e inteligentes; mas também nao nego que Deus possa transmitir pensamento A matéria. Vene- ro o poder eterno, nfo me cabe limitd-lo; nada afirmo, conten- to-me em acreditar que existem mais coisas possiveis do que julgamos. O ser de Sirio sorriu: nao considerou aquele o menos sabio; e 0 ando de Saturno teria abracgado o seguidor de Locke, se nao o im- pedisse a enorme desproporgao entre os dois. Porém, por desgra- ga, havia ali um animal microscépico de capuz que cortou a pala- vra a todos os animais microse6picos filosofantes: declarou que sabia o segredo de tudo, 0 qual se encontrava na Suma, de Santo Tomas; mediu de alto a baixo os dois habitantes celestes; afirmou-lhes que as suas pessoas, seus mundos, sis e estrelas, tudo fora criado uni- camente em fungéo do homem. Ao ouvir isso, os nossos dois via- jantes cairam um nos bracos do outro, sufocados pelo riso irreprimivel que, de acordo com Homero, é préprio dos deuses; seus ombros e ventres agitavam-se, e, devido a essas convulsées, 0 na- vio que Micrémegas trazia na unha caiu no bolso da calga do saturniano. Os dois 0 procuraram por muito tempo; finalmente o encontraram e rearranjaram tudo convenientemente. O siriano retomou os pequenos insetos; falou-Ihes de novo com muita bonda- de, embora no intimo se sentisse um tanto irritado de ver que os infinitamente pequenos possuiam um orgulho quase infinitamen- te grande. Prometeu-lhes que escreveria um belo livro de filosofia, com letras bem mitidas, para uso deles, e que, nesse livro, veriam o fim de todas as coisas. De fato, entregou-lhes esse volume, que foi levado para a Academia de Ciéncias de Paris. Porém, quando o secretario o abriu, viu apenas um livro em branco. — Ah! Bem que eu desconfiava... — declarou ele. 128

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