Você está na página 1de 4
GoG : Nova Fronteira, s/d. PAPINI, Giovanni. Gog.Rio de Janeir: FRBINI : HISTORIA DA ILHA New Parthenon, 6 de novembro Stern A NoITE me vi de repente diante de um homem que nao encontrava ha mais de vinte anos. Com Pat Cair- ness conheci fome e médo em Frisco, nos primeiros tempos da minha chegada. Pat, um irlandés cheio de espirito e de idéias, salvou-me mais de uma vez do desespéro. Depois que vim para as cidades do Leste nada mais soube déle. Quando chegou, sem dizer o nome, nao o reconheci. Mudou de cér, e, me parece, de fisico. Era um canico pali- do e tornou-se um carvalho escuro. Andou trabalhando, diz éle, como viajante: nos primeiros anos por necessidade e de- pois por curiosidade. Nao ha pais que néo tenha visto, mar gue nao tenha atravessado, estrada que nao tenha percorrido. Fala oito linguas e mais de vinte dialetos. Foi contratador de coolies, sécio de piratas, vendedor de serpentes, grande feiticeiro, falso monge budista, piléto dos desertos — enfim, tédas as profissées daqueles cuja tnica vocacdo é a da mu- danga. Se escritas, suas memérias dariam um livro muito mais rico do que os de Melville e Jack London. f Disse-me, porém, que o tempo das aventuras acabou, que nao ha lugar na terra onde nao se encontrem rastros de visi- tantes e marcas de civilizacéo, que € quase impossivel encon- trar um pedaco de floresta ou de estepe onde os brancos ainda nao tenham penetrado. Em tédas as suas viagens des- cobriu sémente uma ilha até entéo desconhecida dos mari- nheiros e dos gedgrafos. Uma _ilha do Pacifico, pouco maior que uma das Ilhas Sandwich, ao sul da Nova Zelandia, habi- 20 tada por algumas centenas de melanésios papuas, 1a aporta- dos com seus barcos ha muitos séculos. — A singularidade desta ilha, contava-me Pat Cairness, nao reside no seu aspecto, que é semelhante ao das outras ilhas do Pacifico, nem nos seus habitantes, que conservaram os habitos e as tradicdes da sua raga. Consiste nisso: os che- fes reconheceram ha muito tempo que a ilha nao pode ali- mentar mais do que um determinado numero de habitantes, precisamente setecentos e setenta. Grande parte do solo, mon- tanhoso, é estéril, e o mar ndo € muito piscoso. De fora na- da chega, porque ninguém desembarcou na ilha depois dé- les, e os netos dos primeiros emigrantes esqueceram a arte de construir grandes embarcacées. A assembléia dos chefes, por- tanto, promulgou em tempos imemoriaveis, uma lei estranhis- sima — ou seja, que a cada névo nascimento deve seguir-se uma morte, de modo que o nimero dos habitantes nado supere nunca setecentos e setenta. E uma lei, creio, tnica no mundo, que € severamente mantida gracas ao conselho dos anciaes, composto de feiticeiros e guerreiros. Como em todos os ou- tros paises, os nascimentos superam as mortes naturais, e assim, cada ano, dez ou vinte daqueles infelizes segregados do mundo devem ser mortos pela tribo. O médo da fome le- you os oligarcas papuas a inventar um sistema de recensea- mento muito primario, porém exato. Uma vez por ano, na primavera, a assembléia se retine e é lida a lista dos nasci- mentos e das mortes. Se, por exemplo, ha vinte nascimentos e ito mortes, € necessario que doze vivos sejam sacrificados para o bem da comunidade. Houve tempo, me disseram, em que morrer cabia aos mais velhos, mas sendo o conselho dos chefes formado na sua maioria por velhos, éstes conseguiram, recorrendo a ndo sei quais estratagemas, que o nivelamento fésse confiado 4 sorte. Cada habitante possui uma tabuinha de madeira onde, por meio de um desenho ou um hieroglifo, esta escrito seu nome. No dia terrivel as carteiras dos vivos sao juntadas num barco afundado na areia diante da cabana do conselho, e cuidadosamente remexidas com um remo pelo feiticeito mais velho. Em seguida solta-se um cachorro que, treinado para isso, desce no barco, abocanha uma das tabui- nhas e a entrega ao feiticeiro, repetindo a operacao tantas vé- zes quanto necessario. Os designados tém direito a trés dias 21 para despedir-se da familia e matar-se do jeito que preferi- tem. Se depois de trés dias alguém ainda néo teve a coragem de suicidar-se, € préso por quatro homens escolhides ectee os mais fortes, amarrado num saco de couro com algumas pe- dras, e jogado ao mar. “Dita assim a coisa parece simples, e de certo modo, até logico. Mas é preciso viver-se com aquela gente, como eu fiz Por algum tempo, para ter uma idéia do horror dessa lei ¢ de todas as suas conseqiiéncias, tragicas e grotescas. Antes de mais nada, téda mulher que percebe estar gravida tranca-se na sua cabana e nao ousa mais aparecer. & uma inimiga: todos a odiariam. Cada crianga prestes a nascer é uma amea- $@ para os ja nascidos, um perigo piblico. E nem a mae e o Pai ficam trangiiilos, porque, como ja aconteceu, a sorte pode designar um déles para desaparecer em favor do filho. Por causa disso, as mulheres estéreis so as mais benquistas e os homens s6 se decidem ao casamento quando estao fora de si. “Além do mais, na ilha é muito comum © homicidio, por- que os assassinos se propéem, assim, nivelar o ntmero dos nascimentos evitando, ao menos por algum tempo, as terriveis surprésas da sorte. Nas minhas viagens nao vi nada de mais lagubre do que a assembléia na gual se designam os sacrifi- cados ao espectro da carestia. Assisti a uma dessas assem- bléias e, apesar de ser tudo menos um sentimental, guardei uma sensacao penosa. Alguns dias antes ha quem tente se es- conder nas grutas da ilha com a esperanca de evitar o perigo, Mas a ilha € pequena e a vigilancia é do interdese de todo as auséncias aumentam o risco para os presentes. Alguns sio arrastados 4 férca para a reuniao e eu os vi se debatendo furiosamente para nao entregar a tabuinha com o nome. Na- quela vez havia sémente nove excedentes e Feparei que ne- nhum déles aceitava com resignacéo a sentenca da sorte. Uma jovem mulher agarrava-se desesperadamente aos joe- Thos dos chefes implorando cleméncia. Tinha, parece, um fi- Iho ainda pequeno e pedia chorando que the permitissem vi. ver ainda um ano para nao deixd-lo sdzinho. Um homem mais velho declarou estar gravemente enférmo, prestes a livrar a tribo da sua existéncia, mas implorava a graca de morrer de morte natural. Um jovem pedia aos gritos que o dispensas- sem da morte imediata, nao para si, dizia, mas por ser arrimo 22 da mae velha e dos trés irmaos ainda incapazes de trabalhar. Um casal urrava desesperadamente porque entre os sorteados estava o tiltimo e mais bonito dos seus filhos. Uma jovem implorava que esperassem pelo menos o seu casamento; ia casar dali a alguns dias e nao queria morrer antes de manter a promessa feita solenemente ao futuro marido, Um velho do conselho tentava salvar-se afirmando que sé éle conhecia cer- tos segredos necessarios 4 vida da tribo e que, se o matassem, morreria sem revela-los a ninguém, de pura vinganca. “Durante trés dias na ilha ouviram-se somente gemidos e lamentos. Mas a lei é inexordvel e nado admite prorrogagées nem dispensas. Num tinico caso um dos designados pode ser salvo: ou seja, se outro aceitar morrer em seu lugar. Mas, pelo que me disseram, isto nao se da quase nunca. No ter- ceiro dia ja sete condenados tinham-se matado sdzinhos, em meio aos gritos de parentes e amigos, e ao alvorecer do quar- to dia apenas dois sacos foram jogados ao mar, diante de toda a populagao silenciosa. Reparei porém que os que haviam escapado comecavam a se refazer e que os rostos eram mais serenos: tinham, garantido, um ano de vida diante de si. Pat Cairness contou-me muitas outras histérias, mas pela sua singularidade esta é a que mais me impressionou. 23

Você também pode gostar