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213  O fanático da desconfiança e sua garantia

O antigo  Queres tentar o impossível ensinando aos homens? Onde está tua garantia?
Pirro  Aqui está: quero pôr os homens de sobreaviso contra mim, quero confessar
publicamente todos os defeitos de minha natureza e revelar aos olhos de todos meus
envolvimentos, minhas contradições e minhas tolices. Não me escutem, lhes direi, antes que
não me tenha tornado semelhante ao menor dentre vocês e até menor que ele; sublevem-se
contra a verdade quando puderem, por causa do desgosto que lhes causa seu defensor. Serei
seu sedutor e seu impostor e ainda encontrarem em mim o menor brilho de consideração e de
dignidade.
O antigo  Prometes demais, não poderás carregar esse fardo.
Pirro  Vou dizer também aos homens que sou muito fraco e que não posso manter o que
prometi. Quando maior for minha indignidade, tanto mais vão desconfiar da verdade quando
sair de minha boca.
O antigo  Queres, portanto, ensinar a desconfiança da verdade?
Pirro Uma desconfiança tal que jamais existiu igual no mundo, a desconfiança a respeito de
tudo e de todos. È o único caminho que leva à verdade. O olho direito não deve confiar no
olho esquerdo e será necessário que, durante algum tempo, a luz se chame escuridão: é o
caminho que se deve seguir. Não crês que te levará a árvores frutíferas e à sombra de
salgueiros admiráveis? Encontrarás nesse caminho pequenas sementes duras  são verdades;
durante anos, deverás engolir mentiras em quantidade para não morrer de fome, embora
saibas que são mentiras. Mas essas pequenas sementes serão semeadas e enterradas no solo
no solo e talvez a colheita vai ocorrer um dia: ninguém tem o direito de prometê-la, a menos
que seja um fanático.
O antigo  Amigo, amigo! Tuas palavras, elas próprias, são palavras de um fanático!
Pirro  Tens razão! Quero ser desconfiado a respeito de todas as palavras.
O antigo  Então deves ficar calado.
Pirro  Vou dizer aos homens que devo ficar calado e que eles devem desconfiar de meu
silêncio.
O antigo  Renuncias, pois, a teu projeto?
Pirro  Pelo contrário – acabas de me indicar a porta por onde devo entrar.
O antigo  Não sei realmente se ainda nos compreendemos perfeitamente.
Pirro  Provavelmente não.
Pirro  Contanto que tu te compreendas bem a ti mesmo.
Pirro se volta rindo.
O antigo  Ai! Meu amigo! Calar-se e rir – será essa agora toda a tua filosofia?
Pirro  Não seria a pior.

Nietzsche, F. O Viajante e sua sombra. São Paulo: Escala, 2013. p. 163

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