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A REPÚBLICA

Platão

Introdução,

Tradução e notas
de
M a r ia H e l e n a d a R o c h a P e r e ir a

9." edição

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


que seja desse modo. Contudo, sinto-me perturbado, com
os ouvidos azoratados de ouvir Trasímaco e milhares de
outros; ao passo que falar a favor da justiça, como sendo
superior à injustiça, ainda não o ouvi a ninguém, como é d
meu desejo — pois desejava ouvir elogiá-la em si e por si.
Contigo, sobretudo, espero aprender esse elogio. Por isso,
vou fazer todos os esforços por exaltar a vida injusta; depois
mostrar-te-ei de que maneira quero, por minha vez, ouvir-
-te censurar a injustiça, e louvar a justiça. Mas vê se te apraz
a minha proposta.
— Mais do que tudo — respondi —. Pois de que outro
assunto terá mais prazer em falar ou ouvir falar mais vezes
uma pessoa sensata?
— Falas à maravilha — disse ele —. Escuta então o que e
eu disse que iria tratar primeiro: qual a essência e a origem
da justiça,
— Dizem que uma injustiça é, por natureza um bem, e
sofre la um mal, mas que ser vítima de injustiça é um mal
maior do que o bem que há em cometê-la. De maneira que,
quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das
outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso, quando
não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a 359a
um acordo mútuo, para não cometerem injustiças nem
serem vítimas delas. Daí se originou o estabelecimento de
leis e convenções entre elas e a designação de legal e justo
para as prescrições da lei. Tal seria a géncse e essência da
justiça, que se situa a meio caminho entre o maior bem —
não pagar a pena das injustiças — e o maior mal — ser
incapaz de se vingar de uma injustiça. Estando a justiça
colocada entre estes dois extremos, deve, não preitear-se
como um bem, mas honrar-se devido à impossibilidade de b
praticar a injustiça. Uma vez que o que pudesse cometê-la e

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fosse verdadeiramente um homem nunca aceitaria a con­
venção de não praticar nem sofrer injustiças, pois seria lou­
cura, Aqui tens, ó Sócrates, qual é a natureza da justiça, e
qual a sua origem, segundo é voz corrente.
Sentiremos melhor como os que observam a justiça o
fazem contra vontade, por impossibilidade de cometerem
injustiças, se imaginarmos o caso seguinte. Dêmos o poder
c de fazer o que quiser a ambos, ao homem justo e ao injusto;
depois, vamos atrás deles, para vermos onde é que a pai­
xão leva cada um. Pois bem! Apanhá-lo-emos, ao justo, a
cam inhar para a mesma meta que o injusto, devido à ambi­
ção, coisa que toda a criatura está por natureza disposta a
procurar alcançar como um bem; mas, por convenção, é
forçada a respeitar a igualdade. E o poder a que me refiro
seria mais ou menos como o seguinte: terem a faculdade
d que se diz ter sido concedida ao antepassado do Lídio
[Giges]. Era ele um pastor que servia em casa do que era
então soberano da Lídia. Devido a uma grande tempestade
e tremor de terra, rasgou-se o solo e abriu-se uma fenda no
local onde ele apascentava o rebanho. Admirado ao ver tal
coisa, desceu por lá e contemplou, entre outras maravilhas
que para aí fantasiam, um cavalo de bronze, oco, com umas
aberturas, espreitando através das quais viu lá dentro um
cadáver, aparentemente maior do que um homem, e que
e não tinha mais nada senão um anel de ouro na mão.
Arrancou-lho e saiu. Ora, como os pastores se tivessem
reunido, da maneira habitual, a fim de comunicarem ao rei,
todos os meses, o que dizia respeito aos rebanhos, Giges foi
lá também, com o seu anel. Estando ele, pois, sentado no
meio dos outros, deu por acaso uma volta ao engaste do
anel para dentro, em direcção à parte interna da mão, e, ao
360a fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam ao lado,

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os quais falavam dele com o se se tivesse ido em bora.
Admirado, passou de novo a mão pelo anel e virou para
fora o engaste. Assim que o fez, tomou-se visível. Tendo
observado estes factos, experimentou, a ver se o anel tinha
aquele poder, e verificou que, se voltasse o engaste para
dentro, se tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava
visível. Assim senhor de si, logo fez com que fosse um
dos delegados que iam junto do rei. Uma vez lá chegado,
seduziu a mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacou-o b
e matou-o, e assim se assenhoreou do poder \
Se, portanto, houvesse dois anéis como este, e o
homem justo pusesse um, e o injusto outro, não haveria
ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse
no caminho da justiça, e que fosse capaz de se abster dos
bens alheios e de não lhes tocar, sendo-lhe dado tirar à
vontade o que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir- c
-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas a
quem lhe aprouvesse, e fazer tudo o mais entre os homens,
como se fosse igual aos deuses. Comportando-se desta
maneira, os seus actos em nada difeririam dos do outro, mas
ambos levariam o mesmo caminho. E disto se poderá
afirmar que é uma grande prova, de que ninguém é justo
por sua vontade, mas constrangido, por entender que a
justiça não é um bem para si, individualmente, uma vez

1 Giges foi rei da Lídia, c. 687-651 a.C., depois de ter assassi­


nado o monarca anterior, Candaules, e de ter desposado a viúva
deste. As circunstâncias romanescas da história foram narradas
por Heródoto (I. 8-12) e serviram também de tema a uma tragé­
dia, de que se recuperou num papiro um fragmento de 16 ver­
sos, mas que se não sabe datar. A parte relativa ao anel é exclu­
siva de Platão.

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que, quando cada um ju lg a que lhe é possível com eter
injustiças, comete-as, Efectivamente, todos os homens
d acreditam que lhes é muito mais vantajosa, individualmente,
a injustiça do que a justiça. E pensam a verdade, como dirá o
defensor desta argumentação. Uma vez que, se alguém que
se assenhoreasse de tal poder não quisesse jamais cometer
injustiças, nem apropriar-se dos bens alheios, pareceria aos
que disso soubessem muito desgraçado e insensato. Con­
tudo, haviam de elogiá-lo em presença uns dos outros, en­
ganando-se reciprocamente, com receio de serem vítimas
de alguma injustiça. Assim são, pois, estes factos,
e Quanto à escolha, em si, entre as vidas de que estamos
a falar, se considerarmos separadamente o homem mais
justo e o mais injusto, seremos capazes de julgar correcta­
mente. Caso contrário, não. Qual e então essa separação?
É a seguinte: nada tiremos, nem ao injusto em injustiça,
nem ao justo em justiça, mas suponhamos que cada um
deles é perfeito na sua maneira de viver. Em primeiro
. lugar, que o injusto faça como os artistas qualificados —
como um piloto de primeira ordem, ou um médico,
repara no que é impossível e no que é possível fazer
361a com a sua arte, e mete ombros a esta tarefa, mas abandona
aquela. E ainda, se vacilar nalgum ponto, é capaz de o corri­
gir. Assim também o homem injusto deve meter ombros
aos seus injustos empreendimentos com correcção, pas­
sando despercebido, se quer ser perfeitamente injusto.
Em pouca conta deverá ter-se quem for apanhado. Pois o
supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser. Dêmos,
portanto, ao homem perfeitamente injusto a mais completa
injustiça; não lhe tiremos nada, mas deixemos que, ao
b cometer as maiores injustiças, granjeie para si mesmo a mais
excelsa fama de justo, e, se acaso vacilar nalguma coisa, seja

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capaz de a reparar, por ser suficientemente hábil a falar, para
persuadir; e, se for denunciado algum dos seus crimes, que
exerça a violência, nos casos em que ela for precisa, por
meio da sua coragem e força, ou pelos amigos e riquezas
que tenha granjeado. Depois de imaginarmos uma pessoa
destas, coloquemos agora mentalmente junto dele um
homem justo, simples e generoso, que, segundo as palavras
de Esquilo 2, não quer parecer bom, mas sê-lo. Tiremos-lhe,
pois, essa aparência. Porquanto, se ele parecer justo, terá c
honrarias e presentes, por aparentar ter essas qualidades.
E assim não será evidente se é por causa da justiça, se pelas
dádivas e honrarias, que ele é desse modo. Deve pois
despojar-se de tudo, excepto a justiça, e deve imaginar-se
como situado ao invés do anterior. Que, sem cometer falta
alguma, tenha a reputação da máxima injustiça, a fim de ser
provado com a pedra de toque em relação à justiça, pela sua
recusa a vcrgar-se ao peso da má fama e suas conseqüências.
Que caminhe inalterável até à morte, parecendo injusto d
toda a sua vida, mas sendo justo, a fim de que, depois de te­
rem atingido ambos o extremo limite um da justiça, outro
da injustiça, se julgue qual deles foi o mais feliz.
— Céus! Meu caro Gláucon! — exclamei eu —. Com
que vigor te empenhas em limpar e avivar, como se fosse
uma estátua, cada um dos dois homens, a fim de os subme­
ter a julgamento!
— O mais que posso — respondeu ele —. Sendo eles
assim, já não há dificuldade alguma, segundo creio, em
prosseguir na discussão relativa ao gênero de vida que e
aguarda cada um. Digamos, pois. E se for dito de maneira
um pouco rude, pensa que não sou eu que falo, ó Sócrates,

2 Os Sete contra Tebas 592.

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—Â pergunta que fizeste — esclareci — carece de uma
resposta em forma de metáfora.
—Mas não é teu costume, segundo julgo, falar por me­
táforas.
— Seja — disse eu —. Estás a troçar, depois de me teres
488a. atirado para um raciocínio tão difícil de demonstrar! Ouve,
então, a metáfora, para veres ainda melhor como eu sou
mesquinho a arquitectá-las. O sofrimento que aguentam os
melhores, por parte da cidade, é tão pesado, que não há ou­
tro assim; mas, para dar uma imagem dele, e para fazer a sua
defesa, tenho de reunir elementos de muitas proveniências,
tal os pintores que misturam nos seus quadros bodes com
veados3 e outros que tais. Imagina, pois, que acontece uma
coisa desta espécie, ou em vários nawos ou num só: um ar-
*b mador4, superior em tamanho e em força a todos os que se
encontram na embarcação, mas um tanto surdo e com a vis­
ta a condizer, e conhecimentos náuticos da mesma exten­
são; os marinheiros em luta uns contra os outros, por causa
do leme, entendendo cada um deles que deve ser o piloto,
sem ter jamais aprendido a arte de navegar nem poder indi­
car o nome do mestre nem a data do seu aprendizado, e
ainda por cima asseverando que não é arte que se aprenda, e
estando prontos a reduzir a bocados quem declarar sequer

3 Os animais fantásticos começaram a aparecer na arte grega


por influência orientalizante. Para outros compostos deste gênero,
veja-se Aristófanes, As Rãs 937.
4 Desenvolve-se aqui, mais uma vez, o símile da nau do Es­
tado, cuja numerosa ascendência literária tem o seu ponto de par­
tida em Arquíloco (fr. 105 West).
O dono do navio, numa democracia, é Demos («povo»), con­
forme notou já Aristóteles (Rhet. 1406b 35-36) e os comentadores
antigos. Compare-se também a figura de Demos em Os Cavaleiros
de Aristófanes.

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que se pode aprender, estão sempre a assediar o dono do
navio, a pedir-lhe e a fazer tudo para que lhes entregue o
leme; algumas vezes, se não são eles que o convencem, mas
sim outros, matam-nos, a esses, ou atiram-nos pela borda
fora; reduzem à impotência o verdadeiro dono com a man-
drágora5, a embriaguez ou qualquer outro meio; tomam
conta do navio, apoderam-se da sua carga, bebem e rega­
lam-se de comer, navegando como é natural que o faça gen­
te dessa espécie; ainda por cima, elogiam e chamam mari­
nheiros, pilotos e peritos na arte de navegar a quem tiver a d,
habilidade de os ajudar a obter o comando, persuadindo ou
forçando o dono do navio; a quem assim não fizer, apodam-
-no de inútil, e nem sequer percebem que o verdadeiro pilo­
to precisa de se preocupar com o ano, as estações, o céu, os
astros, os ventos e tudo o que diz respeito à sua arte, se quer
de facto ser comandante do navio, a fim de o governar, quer
alguns o queiram quer não —pois julgam que não é possível e ,
aprender essa arte e estudo, e ao mesmo tempo a de coman­
dar uma nau6. Quando se originam tais acontecimentos nos
navios, não te parece que o verdadeiro piloto será realmente
apodado de nefelibata7, palrador, inútil, pelos navegantes de 489a
embarcações assim aparelhadas?

5 Os antigos, como os medievais, conheciam o poder da raiz


desta planta. Adam recorda, a este propósito, pseudo-Demóstenes,
Philip, iv. 6.
6 A arte «de comandar um navio» (y.upepvTtTiy.fi) parece ser
uma maneira redundante de exprimir o resultado da aquisição da
mesma, pela «arte» (réxvT|) e «estudo» (jjLeXéni). É esta a conclu­
são de Adam, que discute largamente as várias interpretações deste
obscuro passo (apêndice i ao Livro vi).
7 Usamos o composto de origem grega, que significa «que
ram inha, nas nuvens», como equivalente do ixeTeojpoaxó-iros do

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—É mesmo assim —respondeu Adimanto.
—Não me parece —prossegui eu —que seja necessário
examinares a fundo o quadro, para veres que se assemelha
às relações das cidades com os verdadeiros filósofos; mas
compreendes o que quero dizer.
—Perfeitamente —confirmou ele.
— E, antes de mais nada, ensina esta metáfora àquele
que se admirava por os filósofos não serem honrados nas
cidades, e tenta convencê-lo de que seria muito mais sur-
b preendente, se o fossem.
—Hei-de ensinar-lha.
— E que, portanto, dizes a verdade: que são inúteis à
maioria os melhores filósofos. Da sua inutilidade, manda,
contudo, acusar os que os não utilizam, e não os homens su­
periores. Pois não é natural que seja o piloto a pedir aos ma­
rinheiros que sejam comandados por ele, nem que os sábios
vão às portas dos ricos, mas quem inventou este gracioso
dito8 mentiu. A verdade é que quem estiver doente, seja
c rico ou pobre, é forçoso que vá bater à porta do médico, e
que todo aquele que precisa de ser dirigido, à de quem pu­
der govemá-lo, e não ser o comandante que suplica aos súb­
ditos que consintam em ser mandados, quando na verdade é

texto (literalmente: «observador das alturas»). É uma das críticas


feitas ao Sócrates de As Nuvens (225, 228, 1503) e repetida entre as
acusações formuladas contra o mestre na Apologia de Platão (18b).
Outros passos do filósofo apresentam esta palavra como censura
corrente. N a sua base, deve estar a velha oposição entre a vida con­
templativa e a activa, cristalizada na anedota segundo a qual Tales
caíra a um poço, porque, absorvido na contemplação dos astros,
não reparara no que estava a seus pés.
* Segundo Aristóteles, Rhet. 1391a 8-12, o dito era do poeta Si-
mónides.

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dele que lhes vem auxílio. Se comparares os chefes políticos
actuais com os marinheiros a que há pouco nos referimos,
não errarás; e bem assim aqueles que eles qualificam de
inúteis e de pessoas que falam no ar, com os verdadeiros
pilotos.
—Exactamente —confirmou ele.
—Por estes motivos e nestas condições, não é fácil, por
conseguinte, que a melhor das ocupações seja apreciada por
aqueles que exercem actividades opostas a ela. Mas a acusa­
ção maior e mais violenta que fazem à filosofia é de longe a d
que lhe vem através dos que afirmam dedicar-se a estes es­
tudos, e acerca dos quais declaras que o detractor da filosofia
proclama que é perversa a maioria dos que a ela se dedicam,
e que os mais equilibrados são uns inúteis — coisa em que
concordei contigo que era verdadeira. Não é assim?
-É .
— Logo, ficou esclarecida a razão da inutilidade dos
bons filósofos?
—Perfeitamente.
— Queres que, em seguida, analisemos como é forço­
so que exista perversidade na maioria, e que tentemos de­
monstrar, se pudermos, que a filosofia também não tem cul- e
pa disso?
—Quero, sim.
— Escutemos, então, e recordemos a nossa conversa a
partir do ponto em que analisámos as qualidades naturais
que tem de se ter para vir a ser um homem perfeito9. Se 490a
bem te lembras, ia em primeiro lugar a verdade, de que ele
tinha de ir no encalço de toda a maneira e em todo o lado —

9 N o originai está xaXós re expressão sobre a qual


vide supra, nota 68 ao Livro m .

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