Você está na página 1de 10

Problema de pesquisa

Que distintos modos de subjetivação se efetuam nos corpos apresentados pelos filmes de
Apichatpong Weerasethakul? Quanto à imagem cinematográfica, que figurações do corpo humano
estão em jogo?

Hipótese de trabalho / Corpus

Conforme Marie-José Mondzain (2010), Mal dos trópicos (2004) apresenta a metamorfose
como um rito de iniciação xamânica. Pretendemos investigar outras figurações do corpo humano
em estados limiares, de instabilidade ou transitoriedade, incorporação ou exposição a um fora-de-si,
em suas múltiplas ocorrências nos filmes de Apichatpong Weerasethakul. Da maneira como
Mondzain o caracteriza, este filme inaugura um modo de tratar o tema da perseguição em relação à
tradição cinematográfica, ao eleger como seu espaço privilegiado a floresta, em termos de
desterritorialização, desejos pulsionais e devires - que impelem o soldado Keng a tornar-se tigre.
Em suma, ele passa a compartilhar de um mesmo mundo com o xamã que o persegue. A partir do
momento que adentra a floresta, Keng tem seu aprendizado pela perda e pela errância, é despojado
de seus atributos humanos, de uma territorialidade reconhecida, enfim, de seus domínios. Inclusive
sobre o próprio corpo, à medida em que se encaminha para uma plena desindividuação ou
poderíamos dizer: são modos de subjetivação que nele se efetuam. É de interesse da pesquisa dirigir
uma indagação sobre este corpo metamórfico, que na imagem vemos agir e padecer às pulsões, ou
às materialidades incorpóreas, que o tomam por completo, à sua revelia. Trata-se de um corpo que
se aprofunda em um processo de 'perder-se a si mesmo' enquanto sujeito autônomo, entregue agora
à heteronomia, que culmina no sacrifício, não no sentido de um fim determinado pela morte, há
continuidade - ou aliança demoníaca, como encontramos nos Mil Platôs, expressão que Viveiros de
Castro esclarece: “um conceito de aliança como síntese disjuntiva” (2015, p. 183).

(…) é o “roubo” que realiza a síntese disjuntiva imediata dos “três momentos” do dar,
receber, retribuir. Pois os dons podem ser recíprocos, mas isso não faz de sua troca um
movimento menos violento; todo o propósito do ato de donação é forçar o parceiro a agir,
extrair um gesto do outro, provocar uma resposta: roubar, em suma, sua alma (a aliança
como roubo recíproco de alma). E neste sentido, não há ação social que não seja uma “troca
de dons”, pois toda ação só é social enquanto, e apenas enquanto, é ação sobre uma açao,
reação a uma reação. Reciprocidade, aqui, quer dizer apenas recursividade. Nenhuma
insinuação de sociabilidade, menos ainda de altruísmo. A vida é roubo. (VIVEIROS DE
CASTRO, 2015, p. 194)
A contribuição do perspectivismo pode ser pertinente a uma abordagem de Mal dos trópicos,
embora deslocada de contexto, pois na filosofia xamânica sul-americana outras relações estão
colocadas entre homem e animal. Nos permite pensar o corpo como locus de afetos e afeccões ou:
instância de inconstância, lugar de metamorfose e diferenciação, a partir das posições que assumem,
“sempre parciais, baseadas em relações ontológicas (ou ontologias relacionais)” (BRASIL, 2010).
Seguindo a elaboração de André Brasil, a performance (no contexto ritual) efetiva no corpo outros
modos de subjetivação, alterações de caráter ontológico, pois o modificam de fato, demovendo-o de
sua pura posição autônoma, impelindo-o o corpo a diferenciações. O corpo está sujeito a encontros
e situações de inconstância, com abertura para sua própria dessubjetivação, heteronomia portanto.
Como operador analítico que pode vir a auxiliar a abordagem deste filme, cabe a ideia de que “a
imagem poderia se definir – agora sim, ontologicamente – como o lugar onde se performam formas-
de-vida” (BRASIL, 2010).

A pesquisadora tailandesa May Adadol Ingawanij, quando escreve sobre Mal dos trópicos,
argumenta em favor de um realismo performativo no cinema de Apichatpong que teria como
características: intensidade sensorial, reflexividade temporal e estímulo à percepção espectral
através do som e da tatilidade. Sua visada do filme procura aproximações com as práticas animistas
de possessão e mediunidade que engendrariam, na imagem, uma realidade de natureza
performativa, pela sobreposição de mundos diegéticos que se desvanecem tão logo a experiência
performada deixa de ser real. Sem que haja uma transição muito bem demarcada entre um momento
e outro, há sim sobreposições de tempos não sincrônicos, então a imagem desafia a explicação
racionalista do tempo histórico-cronológico. Como destaca Ingawanij (2015) a cosmologia animista
tem “uma concepção do 'eu' como algo permeável à multiplicidade das formas de vida” (2015,
p.245). A metamorfose implicaria, inclusive, não a extirpação de todo da forma humana precedente,
pelo contrário, indicaria a preservação da “essência do eu”. A autora cita um dos contos do Khmer:

“(...) três filhas vão à floresta e ao longo do tempo adquirem aparência física de pássaros, o
que as liberta de sua existência anterior com uma mãe abusiva. Em seu novo estado, as
irmãs se comunicam através do canto dos pássaros, mas ainda entendem a linguagem
humana, então elas se tornaram ao mesmo tempo mais e menos que seres humanos”
(INGAWANIJ, 2015, p. 249).

Encontramos outra situação similar a esta em Tio Bonmee, que pode recordar suas vidas
passadas (2010), quando Boonsong, filho de Bonmee, retorna à casa do pai anos depois para contar
a história sobre como se tornou macaco-fantasma, após se sentir atraído para a mata e acasalar com
uma fêmea da espécie, que ele mesmo supunha, até então, se tratar apenas de uma lenda local de
sua infância. Esta sequência é bastante elucidativa de uma outra figuração do corpo recorrente no
cinema de Apichatpong que vai ter lugar de modo exemplar neste filme: o corpo kármico ou
reminiscente. Momentos antes da chegada de Boonsong à mesa de jantar, é a esposa-fantasma de
Bonmee quem retorna. Ingawanij (2015) chama atenção para o procedimento da câmera, que
enquadra primeiro a reação dos familiares à aparição espectral, enquanto a esposa-fantasma
permanece fora de quadro. Logo o espanto inicial é apaziguado, os personagens se reestabelecem,
então os familiares vivos e os mortos são apresentados no mesmo plano, coexistindo na imagem. O
que se passa com Boonsong e Huay é a mesma coisa: eles retornam para ter contato com seus
familiares, pois de alguma forma essa relação de outra vida ainda concerne a eles, por mais que
tenham morrido ou se metamorfoseado. Em outra sequência a irmã de Huay, Jen, pergunta se ela
têm recebido as oferendas que eles lhes têm feito, o que ela confirma, e lhes conta que sente um
grande alento ao ouvir as vozes de Jen e Bonmee se comunicando com ela. O filme se refere a uma
concepçaõ compartilhada pelas tradições animista e budista, de que os indivíduos não se extinguem
em uma vida, vínculos afetivos que permanecem com as vidas passadas e se perpetuam nas
reencarnações seguintes. Temos portanto uma compreensão de existência que é cíclica, o que se
relaciona com a noção importante de karma. Padma Samten (2001) e Sogyal Rinpoche (2005),
contribuirão para um embasamento inicial da filosifia budita.

Samsara diz respeito aos ciclos de sofrimento (duka) aos quais permanecemos retidos
quando nos deixamos levar pelas chamadas seis emoções perturbadoras, que são de acordo com
Padma Samten (2001): “orgulho, inveja, desapego/apego, obtusidade mental, carência e
raiva/medo”. Estamos sujeitos aos impulsos internos causadores destes sofrimentos, manifestações
não-conscientes, que por vezes nos incitam a reproduzir ações prejudiciais, no presente, aos outros e
por consequência a nós mesmos (inseparatividade, mútua afetação). Estas ações repetitivas podem
ter relação com padrões mal resolvidos em existências anteriores, o que se denomina karma.
Quando operamos dentro dos padrões kármicos de sofrimento, sem a atenção voltada para o aqui-
agora da experiência cotidiana, tendemos a repeti-los indefinidamente (isto é samsara). Bonmee,
por exemplo, suspeita que a doença que ele enfrenta, no filme, tenha a ver com um karma ruim,
devido à sua atuação como soldado nos anos 60, quando matou comunistas a serviço do exército
tailandês. Jen tenta confortá-lo, dizendo que o fez por uma boa causa, que na época era consenso
como o melhor para o bem-estar da nação. Bonmee se recorda igualmente de outras vidas, quando
foi búfalo e princesa, ou seja, preserva nele mesmo, no corpo atual em que se reconhece,
reminiscências de sofrimentos dos quais não consegue ainda se desapegar. O filme explicita assim o
princípio da inseparitividade, das ações que retornam, inevitavelmente, como reações kármicas,
impondo aos corpos modos de subjetivação de vidas passadas.
Outras perguntas que se desdobram do problema de pesquisa, então: o que é o corpo
kármico ou reminiscente? De que modo esta figuração atualiza, nos filmes, noções das tradições
espirituais tailandesas? Pode-se estabelecer uma relação entre a insistência dos padrões kármicos e a
localidade em que os indivíduos habita? Como se dá essa coexistência na imagem de tempos não
sincrônicos sobrepostos? Seria o caso de convocar uma abordagem em torno da espectralidade da
imagem e dos seus tempos anacrônicos, conforme esta discussão vem sendo suscitada por leitores
mais recentes da obra de Aby Warburg?

Os filmes poderiam ser agrupados em séries de análise, de acordo com as similaridades e


questões comuns que apresentam. Ao lado de Mal dos trópicos, convém mencionar Vampire
(2008). Esta videoinstalação foi realizada sob demanda para exposição na galeria Louis Vuitton, na
França. Modesto pela precariedade das condições de gravação, vemos em 19 minutos a própria
equipe do filme, guiados apenas por algumas lanternas, madrugada adentro na mata escura.
Empreende-se um projeto ambicioso e de sucesso incerto: capturar a imagem de um pássaro mítico
conhecido como Nok Phii, e famoso por ser uma ave carnívora que se alimenta do sangue de outros
animais. A equipe se orienta apenas por algumas pistas frágeis da presença da espécie no local, nas
montanhas entre a Tailândia e Mianmar. Então há todo um esforço de comunicação – primeiramente
um exercício de escuta minucioso –, alguns membros da equipe vocalizam, aparentemente tentando
imitar o canto do pássaro para trazê-lo de encontro ao grupo, cuidadosamente, para que não seja
espantado imediatamente pelo excesso de luzes ou de ruído. Em entrevista sobre este projeto¹,
Apichatpong dizia: “Gosto desta configuração em que as luzes e o desejo cruzam caminho. Desejo
de se comunicar com seres invisíveis da escurdião, ou da memória, ou ainda do futuro. Está sempre
relacionado com o cinema e conosco, como insetos que são atraídos pela luz”.

Observamos que Vampire, de alguma maneira à semelhança de Mal dos trópcios, está
imbuído de um devir-pássaro que orienta a equipe em direção ao animal desconhecido, eles
elaboram estratégias de atração, espalhando pedaços de carne, panos manchados de sangue, e
chegam a banhar seus próprios corpos em sangue, colocando-se à disposição do predador, afim de
tornar possível esta comunicação imprevista. Corpos em exposição ao fora, no sentido de Jean-Luc
Nancy, que aqui são os próprios integrantes da equipe. O dispositivo da videoinstalação, por sua
vez, estabelece uma dinâmica de expectativa, junto ao espectador, que passa a aguardar, imerso em
tal experiência sensorial, pela imagem de um predador que pode se preciptar na tela a qualquer
momento sobre a equipe. O que o filme nos oferece, seja para satisfazer o espectador ou a galeria
Louis Vouitton, contratante do projeto, é a imagem de um pássaro pequeno, aparentemente
inofensivo, que não condiz com a imagem que o filme vinha desenhando, da temível ave carnivora
Nok Phii.

Nos parece produtivo considerar as videoinstalações em comparação aos filmes de longa-


metragem, pois o corpo do espectador é aqui convocado a entrar em um jogo permanente com as
imagens, a estar disponível à sensorialidade intensa que o filme enseja, tanto quanto os membros da
equipe que oferecem seus próprios corpos à possibilidade do encontro. Apichatpong reivindica
frequentemente que sua motivação para trabalhar com videoinstalações tem inspiração no cinema
underground norte-americano (Baillie, Conner, Smith) – talvez a retomada da fortuna crítica e
teórica em torno desses filmes possam nos ser valiosas para pensar esta relação que se pretender
entreter com o espectador, mobilizando seu próprio corpo. Conforme o próprio cineasta declara em
uma entrevista:

A videoinstalação tem muito a ver diretamente com as respostas emocionais que o público
pode vir a sentir. Então ela é mais imediata. Pode oferecer ao público toda uma experiência
sensorial de espaço e tempo. No filme, trata-se mais de uma acumulação gradual de afetos.
(WEERASETHAKUL, 2011)

A respeito desta reflexividade temporal, assim nomeada por Ingawanij, de caráter


acumulativo, Cemitério do Esplendor (2015) pode ser considerado um filme exemplar, pela sua
insistência na questão do sono e do sonho, o que do ponto de vista analítico nos permitiria abordar o
problema de um corpo onírico. Segundo a compreensão budista apontada por Sogyal Rinpoche
(2005), cuja investigação precisamos aprofundar, a experiência do sonho se refere a um estado de
consciência em que possuímos um corpo de grande mobilidade. Outra hipótese é que Cemitério do
Esplendor apresenta, de modo distinto a Mal dos Trópicos, como uma caminhada inicática, um
despertar para a mediunidade, quando Jenjira, a protagonista, e a médium Keng enquanto incorpora
o soldado Itt, vão visitar um antigo palácio que não existe mais fisicamente. Há uma tensão que se
modula entre o visível e o invisível na imagem, tornada palavra quando designa e descreve um
edificio monumental que o espectador não vê, mescladoo a memórias da guerra da própria Jenjira
que vem à tona por algumas estátuas encontradas pelo caminho. Entretanto, o que não vemos nos é
oferecido pelo trabalho de mediação da imagem fílmica que, curiosamente, encena um trabalho de
mediação ou canalização mediúnica, o que nos leva a indagar o que seja este corpo mediúnico.
Paarece se tratar de um choque entre realidades incorpóreas e sua apresentação ou atualização, no
presente, através de um outro corpo que se dispõe a fazê-lo.

Façamos um detalhamento mais minucioso da narrativa: em Cemitério do Esplendor


acompanhamos Jenjira, que se torna voluntária em um hospital na cidade de Khon Kaen (sua cidade
natal e também a de Apichatpong) para cuidar de soldados que sofrem de uma misteriosa doença do
sono. Aquele mesmo lugar, antigamente, abrigava uma escola, onde ela estudou em sua juventude.
Do lado de fora do hospital uma retroescavadeira revolve a terra e prepara o terreno para que
alguma nova construção venha tomar lugar ali. Aqui o filme se refere diegeticamente, e nos parece
que também em suas operações de montagem e transições entre planos, a outra noção importante da
filosofia budista, a impermanência.

Padma Santem (2001) trata da impermanência sob o ângulo da fixidez das crenças, ou seja,
quando recusamos a reconhecer a transitoriedade das coisas e estabelecemos pontos referenciais
muito sólidos na condução de nossas vidas, apostamos em uma segurança que é ilusória. Ao cabo de
um tempo determinado de aprendizado tomamos consciência de que as coisas se desfazem,
invariavelmente. Da mesma maneira ocorre com as emoções, tão logo elas se
preciptam,perturbando ou aprazendo nossos corpos, tão logo elas tendem a se dissipar para que
outras emoções venham tomar lugar. Em uma metáfora, Sogyal Rinpoche nos diz: assim também se
movem as nuvens no céu, transitórias, já o firmamento segue resplandecendo as estrelas, cuja
impermanência, em função de nosso ponto de vista por demais limitado e fugaz (humano), não
somos capazes de perceber.

Em Cemitério do Esplendor, Jenjira passa a frequentar o templo budista próximo ao hospital,


onde faz uma oferenda de estátuas de animais em miniatura às deidades locais. Certo dia, para seu
espanto, enquanto come algumas frutas em horário de descanso, ela se vê surpreendida pelas
próprias deusas, que se apresentam em corpo humano, em trajes comuns, e vêm lhe agradecer pelos
presentes deixados no altar. Entretanto, não é só isso. Elas vêm contar a Jenjira uma história antiga
sobre aquela região, onde outrora existia um palácio, do qual elas eram as princesas. Travou-se ali
uma batalha entre dois reinos. Acontece que esta guerra jamais cessou, conforme explicam as
deusas. A querela se desenrola ainda em outra dimensão, espiritual, e os reis-fantasmas seguem
drenando a energia do mundo dos vivos para manter em curso suas batalhas. Por isso os soldados do
hospital em que Jenjira trabalha jamais poderiam se curar da doença do sono, eles são os primeiros
a servir, insconscientmente, aos propósitos dos fantasmas. De alguma maneira suas experiências
oníricas, trazidas à tona pela médium dizem respeito a esta aflição com que os soldados, mesmo
dormindo, se debatem: o que nos sugere uma aproximação entre o corpo onírico e o corpo kármico,
pois se estas pessoas se encontram ainda enredadas ao belprazer dos fantasmas é porque esta
história antiga da guerra diz respeito a suas vidas passadas e a questões então mal resolvidas, que
repercutem no presente.

Há uma médium no hospital, Keng, que possui o dom de penetra no sonho dos soldados e
comunicar aos seus familiares os desejos e angústias dos pacientes, que de outro modo não
poderiam se expressar, pois passam dormindo a maior parte do tempo. Jenjira tampouco consegue
conversar o quanto gostaria com o paciente de quem cuida, o soldado Itt. Então, durante uma sessão
com Itt, a médium se disponibiliza a fazer esta ponte, a mediação necessária, colocando seu próprio
corpo a disposição, para que Itt e Jenjira possam desfrutar de um passeio pela região do antigo
palácio. Nesse sentido há um cruzamento entre histórias pessoais, de vidas passadas, e a própria
história coletiva que se refere à localidade de Khon Khaen. A questão que interessa para a pesquisa
diz respeito a este corpo mediúnico. Do que se trata esta mediação entre a realidade onírica e
kármica de Itt e sua atualização, no presente, através do corpo da médium?

Desta maneira, encontramos neste corpus preliminar, composto por quatro filmes (Mal dos
trópicos, Vampire, Tio Bonmee, Cemitério do Esplendor), quatro questões que concernem à
figuração do corpo no cinema (corpo metamórfico, corpo onírico, corpo mediúnico e corpo
kármico) – e talvez uma quinta categoria analítica, se viermos a considerar a relação que a imagem
cinematográfica estabelece com o espectador, em sua intensidade sensorial, mobilizando afecções
em seu corpo. Por este motivo pode ser interessante ainda a inclusão ao corpus de Mekong Hotel
(2012), filme que teve circulação tanto no formato de instalação quanto no cinema e compartilha
das mesmas questões com os quatro filmes previamente listados, tais como: incorporações
fatasmáticas, canibalismo/vampirismo, referência a uma localidade e sua história particular durante
a guerra (o rio Mekong) atrelada à história pessoal (kármica) dos personagens.
Quadro teórico-conceitual / Metodologia:

Preferimos eleger, por enquanto, apenas dois autores que abordam a filosofia budista e sua
concepção específica da experiência humana, o que nos permitirá avançar com maior cautela em
direção aos filmes, sem partir de antemão de teorias ocidentais alheias a essa realidade social.

Sogyal Rinpoche (2005, p. 143) trata da questão da morte a partir da noção de bardos,
palavra tibetana que designa simplesmente “transição” ou “o intervalo entre o encerramento de uma
situação e outra” - o que nos parece valioso para pensar estes corpos em estado de liminaridade.
Seriam quatro os estados intermediários que encaramos em nossas existências cíclicas: o bardo
“natural” da vida; o bardo “doloroso” da morte; o bardo “luminoso” do dharmata; o bardo
“kármico” do vir-a-ser. O primeiro diz respeito a uma compreensão, difundida entre os mestres
budistas, de que o período de uma vida, desde o nascimento até a morte, consiste apenas em uma
transição. O segundo bardo corresponderia aos instantes que começam com o processo do morrer e
culminam com a (re)descoberta da natureza ilimitada da mente. O terceiro abrange a experiência do
pós-morte e o que se chama de “grande de luminosidade”. Por fim, o bardo kármico seria este ao
qual Ingawanij se refere, o estado intermediário que dura até o momento do renascimento. Na
compreensão de Sogyal Rinpoche os bardos são diferentes realidades da mente, oportunidades de
aprendizado, que poderiam ser descobertos em suas interrelações, mesmo em vida, através de
práticas como a meditação. O terceiro bardo, dharmata, pode ser experienciado em vida através de
um exercício que consiste em tomar consciência, pela prática diária, do momento limítrofe
transitório entre o estar acordado e o instante que precede o início dos sonhos:

Sonhar tem afinidade com o bardo do vir-a-ser, o estado intermediário onde você tem um
“corpo mental” clarividente e de grande mobilidade que passa por todos os tipos de
experiência. Também quando sonhamos temos um tipo semelhante de corpo, o corpo
onírico, em que vivemos todas as experiências da vida onírica (RINPOCHE, 2005).

Francisca Cho (2008) traz uma perspectiva de análise fílmica centrada no budismo que nos
parece muito interessante, que consiste em explorar uma abordagem dos filmes como forma de
prática religiosa, demonstrando de que modo as imagens podem direcionar nossa atenção para a
prática mesma de “ver”, nas coisas ordinárias da experiência cotidiana, este “extraordinário” que
concerne ao fenômeno religioso da atenção plena e da contemplação. O filme nos engaja em uma
experiência em tempo real, a câmera segura nossa mirada em um objeto específico e prolonga sua
duração, estabelece para nós este ritmo à medida em que descobre nas coisas algo que não estava
dado e se revela pela atenção minuciosa. Partindo das premissas buditas, cuja tradição é rica em
metáforas visuais, Francisca Cho estabelece uma distinção entre “ver em um filme” e “pensar sobre
um filme”. Na tradição budista é um tema recorrente o perigo que representa o pensamento
cognitivo / intelectual, ou seja, o apego à realidade mental restrita de um ponto de vista humano e
individual, como empecilho a esta outra experiência espirtual do “ver” - os filmes teriam esta
especificidade de nos “dar a ver” tanto quanto um ensinamento metafórico (koan) oferecido pelos
mestres, pois se trata ainda de imagens. Mudança da própria visão e torção do ponto de vista, pois
não há mais um 'eu' que enxerga, de um lado, e o mundo que se vê, do outro lado, mas uma
implicação mútua, inseparável entre sujeito e objeto, ao contrário do que se dá no pensamento
moderno ocidental.

Este deslocamento analítico despreza, portanto, que a imagem seja compreendida a partir de
qualquer significação prévia ou categorização – nossos próprios padrões de observação são
desafiados pela experiência de abertura reflexiva que as imagens propiciam. Cho entende o cinema
primeiramente como um meio sensorial (sensory medium), não discursivo em sua natureza inata –
nesse sentido privilegia cineastas que não abusam de maneirismos e estripulias técnicas que
comprometem a imagem com julgamentos de antemão, reproduções de si mesmos, prefere aqueles
que desafiam nosso modo de ver, por oferecer uma complexidade de interpretações possíveis. Em
vez de uma “certeza do significado” (certainty of meaning), pensemos estas “incertezas
significativas” (meaningful uncertainty).

“Ver”, no sentido proposto por Cho em correlação com a filosfia budista, está associado a
uma meditação filosófica sobre como constituímos nossa realidade, para além das conformações
conceituais, o que poderia ser propiciado pela experiência cinematográfica. Se a ficção pode nos
levar a este deslocamento definitivo de perspectiva é porque as experiências sensoriais e emocionais
que o filme é capaz de engendar afetam diretamente nossa instância corporal enquanto
espectadores. A presença de corpos nos filmes interpela diretamente nossos corpos, invoca
sensações, produz afecções e revela sua vulnerabilidade – do mesmo modo Linda Williams
argumenta a favor dos “body-genres” (horror, pornografia).

Quanto à metodologia para análise fílmica disposta, Francisca Cho pretende se afastar de
uma aproximação aos filmes que leva em conta meramente seu conteúdo discursivo/narrativo e
mobiliza tão somente nossas faculdades cognitivas, para uma análise que considera a estética
também quanto ao conhecimento que se torna possível para nós através da experiência sensorial. A
autora argumenta que nossa ênfase moderna em torno das habilidades cognitivas tende a ignorar
que o dado somático e o aprendizado a partir da perfomance, ou seja, através corpo, prevaleceu em
muitas sociedades, especialmente no contexto asiático - e por influência incontornável do budismo.
O conhecimento estético (pelo corpo) é um treinamento para a ação, do mesmo modo que budismo
consiste em uma filosofia de orientação prática. O que Cho denomina como a “experiência
religiosa” que alguns filmes nos encorajam é “o cultivo de um certo modo de ver que persegue a
contemplação sensorial e não-cognitiva” e estimula uma percepção em aberto para as faculdades
intuitivas.

Bibliografia

BRASIL, A. Formas de vida da imagem: da indeterminação à inconstância. IN: Revista


Famecos, vol. 17, n.3, 2010. Porto Alegre
CHO, F. Buddhism, film and religious knowing: Challenging the literary approach to film. IN:
WATKINS, G. Teaching religion and film. New York: Oxford University Press. 2008, pp 117-127.
INGAWANIJ, M. A. O animismo e o cinema realista performativo de Apichatpong
Weerasethakul. In: Coleção Cinusp v.7, Realismo fantasmagórico. São Paulo, 2013.
MONDZAIN, M. A perseguição no cinema: um ensaio sobre Tropical Malady, de Apichatpong
Weeresethakul. In: Devires, vol. 7, n. 2, 2010, pp. 180-197.
NANCY, J. Being-singular-plural. Stanford: Stanford University Press. 2000.
NANCY, J. Cosmos basileus & advertência e convite: para traduzir Jean-Luc Nancy. In:
Direito e práxis, vol. 7, n. 13, 2016, pp. 898-915
RINPOCHE, S. O livro tibetano do viver e do morrer. São Paulo: Talento, 2005.
SAMTEN, P. Meditando a vida. São Paulo: Fundação Petrópolis, 2001.
VIVEIROS DE CASTRO, E. Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac Naify. 2015
WEERASETHAKUL, A. Learning about time: an interview with Apichatpong Weerasethakul.
Entrevista a Ji-Hoon Kim. In: Film Quarterly, v.ol 64, n.4, 2011, pp. 48-52.

Você também pode gostar