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06/07/2021 Miles e Juliette

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Miles e Juliette
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OCTOBER 01, 2020

Não sei se existe uma tradução em português da autobiografia do Miles


Davis. Imagino que a questão de como traduzir o adjetivo “motherfucker”,
que Miles usa para qualificar amigo ou inimigo e homem ou mulher, tenha
dissuadido tradutores em potencial. Miles distribui “motherfuckers” do
começo ao fim do seu livro. Só poupa uma pessoa, a cantora Juliette Gréco,
que morreu há dias, com 93 anos de idade, e só não foi sua namoradinha
parisiense porque ninguém ousaria chamar a musa do existencialismo de
“namoradinha” de quem quer que fosse.

Miles e Juliette tiveram não um namoro, mas um tórrido romance. Miles


conta que caminhavam abraçados pela beira do Sena e, como nem ele falava
francês nem ela falava inglês, passavam o tempo se beijando. Recomeçavam
o romance sempre que Miles ia a Paris, como na vez em que foi convidado
pelo diretor Louis Malle para improvisar a trilha sonora do seu filme
Ascensor Para o Cadafalso. Uma vez, se reencontraram em Nova York. Juliette
fora contratada para atuar num filme americano baseado num livro do
Hemingway e os produtores a colocaram no hotel Waldorf-Astoria, onde
seria assinado o contrato. Miles levou o baterista Art Taylor na sua visita a
Juliette no hotel grã-fino, e os dois causaram grande sensação – que Miles
descreve com evidente prazer – na sua passagem pelo saguão, vestidos,
segundo o próprio Miles, como gigolôs do Harlem, entre caras brancas
espantadas.

Um companheiro constante do casal nos cafés e porões do Quartier Latin


era Jean-Paul Sartre. Foi Sartre quem sugeriu que Miles e Juliette se
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casassem. Subentendido na sugestão de Sartre estava o convite para Miles


ficar morando em Paris, ou pelo menos na Europa, como já faziam tantos
músicos afro-americanos, para fugir do racismo dos Estados Unidos, entre
outras coisas. Americanos autoexilados em Paris constituem, há anos, uma
categoria artístico-literária que se solidificou num clichê, que persiste. Miles
não aceitou a proposta do “motherfucker” Sartre de se mudar para Paris e
viver com Juliette como num clichê. Passeios e beijos pela beira do Sena em
visitas esporádicas lhe pareceram uma ideia muito melhor.

É ESCRITOR, CRONISTA, TRADUTOR, AUTOR DE TEATRO E


ROTEIRISTA

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