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FEMINISMO AFRO-LATINO AMERICANO EM QUARTO DE DESPEJO: UM

DIÁLAGO ENTRE LÉLIA GONZALEZ E CAROLINA MARIA DE JESUS

Francisco Erik Washington Marques da Silva1

RESUMO

Este artigo tem como intento elaborar um diálogo ou encontro entre Carolina Maria de Jesus e
Lélia Gonzalez através da obra “Quarto de Despejo” de Carolina e o texto “Por um Feminismo
Afro-Latino Americano” de Lélia. O trabalho se desenrola em uma breve discussão sobre a
literatura de autoria feminina e a literatura de autoria feminina afro-brasileira, para assim
adentrar na obra de Carolina e tentar demonstrar uma sintética relação com o texto de Lélia. O
objetivo central é demonstrar como o feminismo afro-latino americano de Gonzalez se relaciona
com a obra de Carolina e assim propor uma nova abordagem de Quarto de Despejo. A
metodologia utilizada foi exploratória de cunho biliográfica e básica, pois objetiva gerar novas
compreensões textuais e conceituais. As conclusões são parciais e se trata da articulação entre o
pensamento de Lélia e algumas ideias presentes na obra de Carolina para uma convergência
conceitual das duas intelectuais.

Palavra-chaves: Feminismo; racismo e sexismo.

INTRODUÇÃO
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Mestrando do Mestrado Interdisciplinar em Letras e História da Universidade Estadual do Ceará (MIHL-UECE),
vinculado a linha 2: Gênero, raça e identidade. E-mail: francisco.erik@aluno.uece.br.
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Elaborar um diálogo entre essas duas autoras e intelectuais é um caminho de
encruzilhadas que leva-me em encontro com dois pensamentos/vidas que são intersecionadas.
Uma encruzilhada que tem uma base comum e trilhas diferentes. Lélia Gonzalez e Carolina
Maria de Jesus, além de serem mineiras – uma da capital (BH) e a outra de um pequeno
muncípio chamado Sacramento, vivenciaram algumas experiências de encruza; as duas sairam
de suas cidades natais para as grandes cidades do sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo) e lá
experimentam pobreza, machismo e racismo – tanto quanto em seus locais de nascimento- e
escreveram sobre, denunciaram várias formas de opressões (miserabilismo, machismo) e
,principalmente, do racismo.

Seus escritos são potentes porque “elas tomam como mote de criação justamente a
vivência. Ou a vivência do ponto de vista pessoal mesmo, ou a vivência do ponto de vista
coletivo” (EVARISTO, 2017a,). Escritos de denúncia da realidade que sentem na pele e que
colocam expressamente no papel para demonstrar as atrocidades, mas também o sentimento
de escrever e quando denunciam nunca é apenas apenas para si, para com todas e todos que
expereciem as mesmas condições.

Escrevo sobre Lélia e Carolina porque são duas intelectuais que perpassaram minha
vida de uma forma que nunca mais fui o mesmo desde que as conheci. São duas mulheres
negras que lutaram por igualdade racial e de gênero, e eu enquanto um homem negro, escrevo
esse breve artigo não para “falar por elas”, mas para ouvi-las em dialogo e discorrer não
“apenas um sobre” e sim um encontro, uma conversa.

Deste modo, será necessário acentuar a importância da literatura de autoria feminina


negra, visto que é nesse ponto onde encontra-se um contra-lugar, ou seja, uma negação do
“lugar da mulher negra” para criação de outras possibilidades além da favela e um grito de
uma voz que não foi ouvida na literatura, nem no feminismo branco, e que foi ouvida por
vozes que também não foram escutadas: “Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades
para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros” (JESUS,
2014, p.36). Sua escrita é uma voz coletiva que fala por aquelas e aqueles que são
desumanizadas/os, assim como Lélia Gonzalez que dedicou sua vida quase toda a combater o
racismo e o sexismo.

Com Carolina pensa-se a situação das favelas e dos favelados da Favela do Canindé-
SP e sua respectiva denúncia em sua exímia obra “Quarto de Despejo” publicada em 1960,
obra que causou um grande alvoroço e polêmica ao ser publicada; com Lélia Gonzalez refle-
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se sobre um feminismo insurgente que dá conta das demandas das mulheres negras na
América Latina ou Améfrica2 (GONZALEZ, 1988), que é a proposta de um feminismo afro-
latino americano exposto no seu texto “Por um feminismo Afro-latino-americano” publicado
em 1988 e que se articula de uma forma diferente, mas não é antagônico, ao feminismo negro
pensado pelas mulheres negras estadunidenses (DAVIS, 2016).

A grosso modo, a proposta do trabalho é um diálogo entre esses dois textos para
reforçar a ideia de um feminismo que esteja atrelado a condição das mulheres negras na
América Latina compreendendo todo seu contexto e demandas a partir da literatura de autoria
negra feminina e de um pensamento feminista afro-latino americano elaborado por mulheres
negras, neste caso, Lélia e Carolina.
O artigo é dividido em duas partes que segue-se de subtópicos, inicia-se com uma
breve reflexão sobre a literatura de autoria feminina (TOFANELO, 2015); (ZOLIN, 2009)
para ir adentrando em uma discussão sobre a literatura de autoria feminina afro-brasileira
(AUGEL, 1996); (FERREIRA, MIGLIOZZI, 2016) para que assim entenda-se o contexto de
produção literária feminina no Brasil; a segunda parte é a examinação da obra de Carolina
Maria de Jesus e tentar elaborar o encontro com Lélia Gonzalez.
Encontro esse, de produções em tempos diferentes, mas que renderá uma grande
reflexão sobre a situação das mulheres negras na Améfrica, suas formas de resistência e
denúncia. Para mim, Quarto de Despejo é mais que uma obra autobiográfica; é uma denúncia
político-ético-histórico-filosófico-poético do colonialismo, racismo e sexismo brasileiro e esse
artigo irá acusar isso de uma forma breve, mas incisa, juntamente com Lélia Gonzalez.

LITERATURA DE AUTORIA FEMININA NO BRASIL

A literatura, assim como outras áreas de conhecimento, durante muito tempo teve uma
predominância de uma produção (reconhecida) hegemonicamente masculina, fazendo com que
as mulheres ficassem excluídas do âmbito da literatura. Da mesma maneira que em diversas
outras áreas, o espaço da escrita literária era reservado somente aos homens, donos dos
consagrados “cânones literários”. Algumas mulheres que quiseram se inserir nesse meio

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Améfrica é uma categoria elaborada por Lélia Gonzalez no seu texto “A Categoria Político-Cultural de
Amefricanidade” publicado em 1988 na revista Tempo Brasil. Segundo Lélia; “a categoria de amefricanidade
incorpora todo o processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação
de novas formas (...) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos africanos (...). Em consequência ela nos
encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica ” (GONZALEZ, 1988, p.76). É uma categoria
que busca a unidade cultural e política dos povos negros da América, povos que foram sequestrados de África e
trazidos para o Brasil e que por meio da sua relação com os povos indígenas que aqui habitavam se transformaram,
mas ainda carregam a base cultural africana, por isso Améfrica (África com América).
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tiveram de o fazer de forma escondida, por meio de pseudônimos (TOFANELO, 2015, p.1).

No entanto, por mais que as mulheres não pudessem estar inseridas nesse meio ou
quando escreviam não eram reconhecidas, isso não quer dizer que elas não produziam.
Gabriela Tofanelo no seu artigo A Trajetória do feminismo na literatura de autoria feminina:
espações e conquista, reflete sobre como mesmo muitas não sendo reconhecidas, elas ainda
estavam presente na literatura:
As mulheres sempre ocuparam lugar de destaque na literatura. Eram sempre
representadas nas literaturas canônicas como personagens, muitas vezes
protagonistas, dos livros de autoria masculina, ou seja, não possuíam voz própria,
eram representações pela voz do outro, o homem .Exemplos, temos vários: Capitu,
de Machado de Assis em Dom Casmurro; A Moreninha, de Joaquim Manuel
Macedo, Iracema, Senhora, Lucíola, todas de José de Alencar, entre tantas outras
(TOFANELO, 2015, p.2).

Não que essas representações também fossem positivas ou tentassem demonstrar outra
coisa além do “lugar da mulher” ou o que é ser mulher através de uma ótica feminina, pois as
representações de personagens femininas na literatura foram realizadas de acordo com
estereótipos culturais da época, ditados pelo sistema patriarcal, como exemplifica a
pesquisadora e professora Lúcia Osana Zolin (2009, p.226): “o da mulher sedutora,
perigosa e imoral, o da mulher como megera, o da mulher indefesa e incapaz e, entre outros, o
da mulher como anjo capaz de se sacrificar pelos que a cercam”. Para Tofanelo, existem três
fases da literatura de autoria feminina:
A fase feminina, a partir de 1859, com o romance Úrsula, de Maria Firmina dos
Reis, no qual a mulher obtinha um caráter pejorativo, frágil e indefeso, por
estar presa ainda ao modelo patriarcal vigente na época; a fase feminista, em
1944, com Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, em que a mulher passa
a questionar sua situação já evidenciada no movimento feminista; e a partir de 1990,
surge a fase fêmea ou mulher, com uma literatura voltada para a autonomia
da representação feminina, sem mais serem necessários os questionamentos
anteriores em que a mulher tem uma chance nunca antes permitida (...)
(TOFANELO, 2015, p. 4).

Dessa forma generalizada é que ela tenta sistematizar as fases da produção literária
feminina no Brasil e o que seriam suas características. Nas duas últimas fases haveria uma
relação do movimento literário feminino e do movimento feminista, pois acabaria por seguir
um solapamento e crítica da literatura hegemônica para se articular um outro modo de
enxergar a literatura. Lúcia Osana Zolin em A Literatura de autoria feminina brasileira no
contexto da pós-modernidade 2009, adverte:
A considerável produção literária de autoria feminina, publicada à medida que o
feminismo foi conferindo à mulher o direito de falar, surge imbuída da missão
de “contaminar” os esquemas representacionais ocidentais, construídos a partir da
centralidade de um único sujeito (homem, branco, bem situado socialmente), com
outros olhares, posicionados a partir de outras perspectivas. O resultado,
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sinalizadopelas muitas pesquisas realizadas no âmbito da Crítica Feminista desde os
anos 1980 no Brasil, aponta para a re-escritura de trajetórias, imagens e desejos
femininos. A noção de representação, nesse sentido, se afasta de sua concepção
hegemônica, para significar o ato de conferir representatividade à diversidade de
percepções sociais, mais especificamente, de identidades femininas antipatriarcais
(ZOLIN, 2009, p. 2).

Zolin propõe uma reflexão bastante intrigante sobre a presença das mulheres na
literatura, sua escrita e a relação com o movimento feminista para reconstruir-se a imagem da
mulher dentro da literatura; vozes falando por elas mesmo e não mais a partir de outro. Deste
modo, a considerável produção literária de autoria feminina, a partir de então, teve o papel de
desestabilizar a legitimidade tradicional da representação da mulher na literatura canônica,
que em nada condizia com a grande multiplicidade de identidades femininas
(TOFANELO, 2015, p.4). Autonomia e reconstrução são palavras importantes para
compreender esse momento.
Assim, segundo Tofanelo (2015, p. 9) “as narrativas de autoria feminina representam a
angústia de personagens em busca de uma identidade própria, livre da oposição binária
homem/mulher”, com problemáticas outras que não as de gênero, demonstrando um
importante avanço para os estudos de gênero e para a crítica literária feminista. Mas fica uma
questão? Tratar da literatura de autoria feminina apenas na perspectiva de gênero não
excluiria outras mulheres que não se encaixam no perfil da mulher branca, isto é, mulheres
negras? Não seria necessário pensar os problemas raciais nessa equação para atingir-se algum
avanço? Quando se fala em “Multiplicidade de identidades femininas”, mas não se específica
que mulheres são essas, não se estaria ainda na mesma lógica patriarcal de universalização?
Por isso é necessário uma reflexão sobre a literatura de autoria feminina negra.

LITERATURA DE AUTORIA FEMININA AFRO-BRASILEIRA

Para discorrer sobre a literatura de autoria negra feminina, a autora Moema Parente
Augel com seu artigo "E Agora Falamos Nós": Literatura Feminina Afro-Brasileira, discorre:
Quem são essas mulheres negras que decidiram quebrar o secular silêncio em que
estavam envolvidas e usar do papel e da palavra para a sua autorevelação? Se a
literatura afro-brasileira ainda continua a ser pouco ou quase nada conhecida ou
reconhecida, sobretudo dentro do Brasil mesmo, a literatura das mulheres
negras até hoje, com pouquíssimas exceções, tem sido relegada à completa
desconsideração. E não são tão raras as afro-brasileiras que escrevem, que
procuram explicitar pela palavra o seu “estar-no-mundo” o seu "ser-negra-
no mundo” (AUGEL, 2018, p.2).

Muitas mulheres negras escreveram sobre sua dor, sofrimento, alegrias, prazeres ou
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simplesmente escreveram. Escreveram para denunciar, para dizer, falar e existir, mostrar sua
própria humanidade e o seu ser-negra-no-mundo. O título do artigo da autora é intrigante “E
Agora Falamos Nós”, pois realmente é isso. Não são mais outras vozes que falam por elas,
vozes de homens ou mulheres brancas, mas elas mesmas falando por elas e para elas.
Amanda Ferreira e Luiz Migliozzi auxiliam nessa consideração quando publicam em
2016 o artigo Literatura afro- eminina brasileira no século XXI: corpo, voz, poesia e
resistência para fazer-se ouvir , “visto que pensar a escrita afro-feminina é pensar um
movimento, em um ato de resistência” (FERREIRA; MIGLIOZZI, 2016, p. 1). Essa escrita
não é uma escrita por escrever, mas uma escrita que diz: Eu existo! Eu resisto! Desde a
publicação de Úrsula em 1859 da Maria Firmino dos Reis que essa voz negra ecoa na literatura
brasileira.
Para Ferreira e Migliozzi (2016, p.2) “Úrsula inaugurou a presença da mulher negra
na Literatura Brasileira/ afro-brasileira enquanto sujeito de sua história já que sempre foi
tratada como objeto dentro da literatura”, e não apenas um objeto inferior, mas como um
objeto não-humano. Algo por exemplo que não ocorre com as mulheres brancas, visto que
como Sueli Carneiro argumenta no seu texto Enegrecer o feminismo: a situação da mulher
negra na América latina a partir de uma perspectiva de gênero

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente


a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos
falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres,
provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito,
porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente
de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou
nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam
nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e
trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto.
Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje,
empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo
exportação.(CARNEIRO, S/D, ...)

A situação das mulheres negras no Brasil é extremamente diferente das mulheres


brancas, por isso a necessidade de refletir-se sobre este ponto, já que se não fizer estar-se-ia
no mesmo argumento universalista feito pelo paternalismo branco. Ainda mais quando se trata
de analisar uma autora negra como Carolina Maria de Jesus, que viveu um processo violento
de desumanização por se negra, mulher e favelada.
Sendo assim, a escrita de mulheres negras procura ressignificar palavras e valores
distorcidos pela Literatura canônica. Desconstrói estereótipos, renuncia a todas as verdades
que lhes foram impostas e “liberta” as novas gerações destas por meio do questionamento e
reconstrução da autoestima (FERREIRA;MIGLIOZZI, 2016, p.4). Quarto de Despejo é uma
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dessas obras que propõe uma desconstrução e reconstrução por meio da escrita das
faveladas/os negras/os que viviam na favela do Canindé-SP na década de 60.

CAROLINA MARIA DE JESUS: A REBELDIA ANTE A LITERATURA E QUARTO


DE DESPEJO:
O diário que foi publicado como livro em 1960, Quarto de Despejo, foi escrito entre
15 de julho de 1955 a 1º de janeiro de 1960. 1960 foi o ano em que o Jornalista Audálio
Dantas, com o seu ímpeto ingênuo de “mudar o mundo ou pelo menos a favela do Canindé”
conheceu a “negra Carolina” (2014, p.6). Ele mesmo descreve esse encontro no prefácio da
obra de Carolina:
Repórter, fui encarregado de escrever uma matéria sobre uma favela que se expandia
na beira do rio Tietê, no bairro Canindé. Lá, no rebuliço favelado, encontrei a negra
Carolina,
que logo se colocou como alguém que tinha o que dizer. E tinha! Tanto
que, na hora, desisti de escrever a reportagem (JESUS, 2014, p. 5).

Esse encontro mudou tanto a vida de Carolina quanto a de Audálio. Para Audálio,
“Escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história: a visão de dentro da favela” (2014,
p.6). E foi isso que Carolina lhe ofereceu, uma visão de dentro da miséria da favela e dela
como uma experimentadora daquilo tudo. Através desse encontro, Carolina foi revelada para
o mundo da literatura brasileira. O livro correu o mundo e foi traduzido para diversas línguas,
vendidos aproximadamente 100 mil exemplares da obra; os jornais, os rádios e a televisão
sensacionalizavam a negra semi-analfabeta que sonhava em ser uma grande escritora e que
havia conseguido o seu breve dia a dia de fama. Muitos literários da época teciam elogios e
vários outros agouros, como descreve Audálio:

Carolina, querendo ou não, transformou-se em artigo de consumo e, em certo


sentido, num bicho estranho que se exibia “como uma excitante curiosidade”. Sobre
o livro escreveram alguns dos melhores escritores brasileiros: Rachel de Queiroz,
Sérgio Milliet, Helena Silveira, Manuel Bandeira, entre outros. O que não impediu
que alguns torcessem o nariz para o livro e até lançassem dúvidas sobre a
autenticidade do texto de Carolina. Aquilo, diziam, só podia ser obra de um
espertalhão, um golpe publicitário (JESUS, 2014, p.7).

Nesta pequena descrição de Audálio enxergar-se o racismo e o machismo imbricados


na recepção da mídia brasileira e do mundo literário brasileiro, pois, por ser mulher, negra e
semi-analfabeta, foi totalmente desacreditada de sua obra. Não aconteceria a mesma coisa se
ela fosse branca. Na verdade, não aconteceu a mesma coisa com algumas contemporâneas
suas; Rachel de Queiroz e Clarisse Lispector, que por mais que fossem mulheres e

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enfrentassem as dificuldades de ser mulher num país machista, não carregavam a marca da
escravidão na sua cor. Carolina era mulher, negra, semi-analfabeta e favelada; o perfil do sem-
perfil, sem nome, no Brasil.
Fica uma questão, como uma mulher, preta e favelada conseguiu ser ouvida no Brasil
do século XX? Estava atrelada ao movimento negro que na época era insurgente? Na verdade,
não. Carolina não participava de nenhum movimento. O único movimento que ela participava
era o movimento da luta por sobrevivência. Era uma negra em movimento. Sua voz alcançou e
até hoje alcança lugares que ela nunca imaginou chegar. Um dos temas principais que perpassa
todo o Diário é a fome: “13 de maio de 1958: E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava
contra a escravatura atual – a fome” (2014, p. 32).
Só nessa breve e mais conhecida passagem do diário de Carolina, já consegue-se
detectar a denúncia da continuidade do sistema de escravidão e do colonialismo e como este
deixou grandes sequelas na sociedade brasileira, que mesmo depois da dita “abolição” as
negras e negros brasileiras/os continuam a sofrer: “16 de maio de 1958: Eu amanheci nervosa.
Porque eu queria ficar em casa, mas não tinha nada para comer (...) Eu quando estou com
fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino (...)” (2014, p.
33).
Essa citação demonstra o quanto o livro de Carolina é uma obra de denúncia que
escancara a situação desumanizadora em que viviam na favela do Canindé:
...As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos
que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou
na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de
sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso,
digno de estar num quatro de despejo (JESUS, 2014, 19 de maio, p 37).

Um mundo cindido em dois: os que são e os que não são nada. A obra de Carolina é
uma literatura que pensa o sujeito negra e negro, além de enunciador, protagonista, um sujeito
que utiliza a literatura para se humanizar; “já que à literatura cabe nos recordar, todo o tempo,
que somos humanos. O seu exercício tem o dom de nos fazer mais humanos (...). E, como não
podemos ser mais que humanos, o destino da literatura é trágico: ela lutará sempre contra as
tentativas de nos desumanizar” (SANTOS, 2009, p. 25).
A literatura afro-brasileira é a resposta ao processo de desumanização dos negros e
negras brasileiras/os, é a afirmação de sua existência; protesto contínuo de afirmação. A
fome/falta é o indício de que querem nos matar - me coloco nesse momento, pois sou um
pesquisador negro e estou sujeito a essa situação - e a literatura é a evidência de que queremos
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viver.
Toda essa enorme reflexão que a obra de Carolina traz faz-se pensar em outra grande
pensadora que denunciou de forma incisiva o colonialismo, racismo e sexismo e propôs uma
nova forma de enxergar o feminismo, Lélia Gonzalez.
Lélia Gonzalez, intelectual e feminista negra brasileira, nos anos de 1980 refletiu
atentamente sobre a realidade da exclusão das mulheres na sociedade brasileira,
principalmente das negras e indígenas. Ela foi pioneira nas críticas ao feminismo
hegemônico e nas reflexões acerca das diferentes trajetórias de resistência das mulheres ao
patriarcado. Assim como Carolina, Lélia viveu uma vida de exclusão e dificuldade, conseguiu
se tornar doutora em antropologia com bastantes obstáculos, mas por meio da escrita e da
militância combateu os estigmas e estereótipos colocados às mulheres negras.
A intelectual publicou diversos textos falando sobre racismo, cultura negra, machismo
e colonialismo, contudo, foi escolhido o texto Por um feminismo afro- latino americano de
1988 porque penso que este texto é um marco sobre o feminismo e sua compreensão,
estabelecendo novas formas de entender o movimento de mulheres.

FEMINISMO AFRO-LATINO AMERICANO: LÉLIA GONZALEZ E CAROLINA


MARIA DE JESUS, UM ENCONTRO

No início de seu texto vê-se Lélia expondo algo muito semelhante ao que Carolina fala
sobre a “Escravatura atual”, uma denúncia a continuação desse sistema e sua crueldade e é
importante nunca esquecer-se que a situação atual não é muito melhor como a de antes:
Neste ano de 1988, Brasil, o país com a maior população negra das
Américas, comemora o centenário da lei que estabeleceu o fim da
escravização neste país. As celebrações se estendem por todo território nacional,
promovidas por inúmeras instituições de caráter publico e privado, que festejam
os “cem anos da abolição”. Porém, para o Movimento Negro, o momento é
muito mais de reflexão do que de celebração. Reflexão porque o texto da
lei de 13 de maio de 1988 (conhecida como Lei Áurea), simplesmente
declarou como abolida a escravização, revogando todas as disposições contrarias
e... nada mais. Para nós, mulheres negras e homens negros, nossa luta pela
liberdade começou muito antes desse ato de formalidade jurídica e se estende até
hoje (GONZALEZ, 1988, p.1).

Assim como Lélia, Carolina, busca por liberdade e por uma libertação coletiva da
situação violenta em que homens e mulheres negras se encontram: “21 de maio de 1958: Os
politicos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê seu povo
oprimido” (JESUS, 2014, p. 39). Essa relação não é por acaso, são duas mulheres negras com
sede de justiça que viveram condições humilhantes e que lutaram por elas e pelas suas e seus.
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O que Lélia pretende com seu texto é mostrar as contradições do feminismo, ou seja,
“Ao evidenciar a ênfase direcionada a dimensão racial (quando se trata da percepção e do
entendimento da situação das mulheres no continente) tentarei mostrar que, no interior do
movimento de mulheres, as negras e as indígenas são as testemunhas vivas dessa exclusão”
(GONZALEZ, 1988, p.1). Por mais que a distância temporal não seja tão grande, Carolina e
Lélia viveram décadas do século XX diferentes, Lélia foi uma das primeiras a fazer essas
ponderações sobre o movimento de mulheres, imagine-se então Carolina da década de 60;
poderia-se considera- la uma autora feminista, visto que o feminismo não a contemplava de
nenhuma forma? Pode-se pensar um pouco sobre essa questão mais à frente.
Para Lélia o feminismo enquanto prática e teoria é importante:

É inegável que o feminismo como teoria e pratica vem desempenhando um


papel fundamental em nossas lutas e conquistas, e à medida que, ao apresentar
novas perguntas, não somente estimulou a formação de grupos e redes,
também desenvolveu a busca de uma nova forma de ser mulher. Ao centralizar
suas análises em torno do conceito do capitalismo patriarcal (ou patriarcado
capitalista), evidenciou as bases materiais e simbólicas da opressão das mulheres,
o que constitui uma contribuição de crucial importância para o encaminhamento
das nossas lutas como movimento. Ao demonstrar, por exemplo, o caráter
político do mundo privado, desencadeou todo um debate publico em que surgiu
a tematização de questões totalmente novas –sexualidade, violência, direitos
reprodutivos, etc. –que se revelaram articulados as relações tradicionais de
dominação/submissão. Ao propor a discussão sobre sexualidade, o feminismo
estimulou a conquista de espaços por parte de homossexuais de ambos os sexos,
discriminados pela sua orientação sexual (GONZALEZ, 1988, p.4).

No entanto, discuti pouco ou quase nada sobre a questão racial. Há um esquecimento da


questão racial ou não relevância sobre essa questão tão importante que está no contexto e
processo de colonização sofrido na América que é marcado violentamente pelo racismo:
Como se explica este “esquecimento” por parte do feminismo? A resposta, na nossa
opinião, está no que alguns cientistas sociais caracterizam como racismo por
omissão e cujas raízes, dizemos nós, se encontram em uma visão de mundo
eurocêntrica e neo- colonialista da realidade (GONZALEZ, 1988, p.4).

Então, o que observa-se através dessa argumentação da Lélia é que o feminismo acaba
por reproduzir o racismo e o colonialismo quando esquece-se de tratar da questão racial. Por
isso a crítica de Lélia é incisiva, pois necessita-se compreender que:
É importante insistir que no quadro das profundas desigualdades raciais existentes
no continente, se inscreve, e muito bem articulada, a desigualdade sexual. Trata-se
de uma discriminação em dobro para com as mulheres não-brancas da região: as
amefricanas e as ameríndias. O duplo caráter da sua condição biológica – racial e
sexual – faz com que elas sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma
região de capitalismo patriarcal-racista dependente. Justamente porque este sistema
transforma as diferenças em desigualdades, a discriminação que elas sofrem assume
um caráter triplo, dada sua posição de classe, ameríndias e amefricanas fazem parte,
na sua grande maioria, do proletariado afrolatinoamericano (GONZALEZ, 1988,
p.17)
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Lélia é uma autora que atende há aquilo que chama-se de análises plurais e inclusivas,
visto que ela inclui na sua argumentação sobre as mulheres que são mais oprimidas, tanto as
mulheres negras quanto as indígenas, e quando a pensadora fala de “amefricanas”, conceito
político-cultural que é de fato, democrático, já que exatamente o próprio termo permite
ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico abrindo novas
perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo a América
(GONZALEZ, 1988, p. 76). É um conceito que engloba toda a diversidade étnica ou
pluriétnica e experiências das negras/os no continente Americano em relação com o
continente Africano, por isso, Améfrica.
Carolina, assim como Lélia, é mulher e negra, mas a todo momento está tentando
reforçar o caráter positivo e o orgulho de ser negra, por mais que lhe desprezem por causa de
sua cor:
16 de junho: eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles me
respondiam:
- É pena você ser preta.
Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho
o cabelo de preto mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto
onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça
ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se que é existe reincarnações, eu quero voltar
preta. (...) O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o
branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto,
atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro tambem. A natureza não seleciona
ninguém (JESUS, 2014, p. 64).

É potente essa passagem do livro de Carolina porque mostra como a autora enfrenta o
racismo e todos aqueles que tentam diminuí-la e desconsiderá-la. Esse orgulho de Carolina é o
que ela tem como arma. Assim como diversas mulheres negras e homens negros no Brasil a
autora tem consciência que sua humanidade é desconsiderada por causa de sua cor e por isso é
importante enfatizar o quanto isso não é tornar menor que ninguém ou inferior, por isso Lélia
discorre:

Cabe aqui um dado importante da nossa realidade histórica: para nós, amefricanas
do Brasil e de outros países da região -assim como para as ameríndias- a
conscientização da opressão ocorre, antes de qualquer coisa, pelo racial. Exploração
de classe e discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de
homens e mulheres pertencentes a uma etnia subordinada. A experiência histórica da
escravização negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e
mulheres, fossem crianças, adultos ou velhos (GONZALEZ, 1988, p.9)

O feminismo afro-latino americano é justamente esse feminismo amefricano que é


articulado por mulheres negras da América Latina que vivem uma situação semelhante e
particular, lutando contra o racismo, colonialismo e machismo que assola suas vidas. Sofrem
pelos papéis atribuídos as amefricanas (negras); abolida sua humanidade, elas são vistas como
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corpos animalizados: por um lado são os “burros de carga” (do qual as mulatas brasileiras são
um modelo). Desse modo, se constata como a socioeconômica se faz aliada a super-
exploração sexual das mulheres amefricanas (GONZALEZ, 1988, p.10).

Em um diálogo com Carolina Maria de Jesus, o único movimento, quiçá, que percebe-
se que a autora de Quarto de Despejo poderia se aproximar, seria o feminismo afro-latino
americano de Lélia Gonzalez, não de forma normativa ou querendo encaixar Carolina em
algum movimento - mesmo ela não fazendo parte, aqui é apenas uma tentativa de
aproximações, pois sua obra é marcada pela luta contra todas essas opressões nas quais
também constata-se na obra de Lélia.

Por mais que Carolina tivesse uma visão, em alguns momentos em seu diário, negativa
das mulheres da favela, coisa que faz parecer contraditória: “tenho pavor destas mulheres da
favela (...) A língua delas é como os pés de galinha. Tudo espalha. Está circulando rumor que
eu estou grávida! E eu, não sabia!” (JESUS, 2014, p. 12); “Mesmo elas aborrecendo-me, eu
escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei
formar o meu caráter. A única coisa que não existe na favela é solidariedade” (JESUS, 2014,
p. 13). Isso não quer dizer que seu posicionamento não seja de empatia, na verdade, ela
mantinha mais uma honestidade aos seus princípios e compreensão, e ao mesmo tempo
cuidados por viver em um ambiente tão hostil de não o deixar ainda mais complicado: “Há de
existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais. O
que me revolta é contra a ganancia dos homens que espremem uns aos outros como se
espremesse uma laranja” (JESUS, 2014, p. 46).
Carolina tem um código ético severo quanto à sua sobrevivência e às vezes pode
parecer apática aos sofrimentos das mulheres da favela, principalmente das casadas:
(...) Elas tem que mendigar e ainda apanhar (...) A noite quando elas pede socorro eu
tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra
as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres
casadas da favela que levam vida de escravas indianas. Não casei e não estou
descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que eles me impunham
eram horríveis (JESUS,2014, p. 14).

Mas essa sua postura é mais uma lucidez diante da realidade hostil em que vive do que
de fato uma antipatia ao sofrimento dessas mulheres, visto que Carolina “manifesta o que
sofre em prol dos outros” (JESUS, 2014, p. 36). As diversas mulheres que perpassam a obra
de Carolina, as que ela constrói essa imagem são daquelas que ela acredita que são más
influências para as crianças:
... E o pior na favela é o que as crianças presenciam. Todas as crianças da favela
sabe como é o corpo de uma mulher. Porque quando os casais se embriagam brigam,
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a mulher, para não apanhar sai para a rua. Quando começa as brigas os favelados
deixam seus afazeres para presenciar os batefundos. De modo que quando a mulher
sai correndo nua é um verdadeiro espetáculo para o Zé Povinho. Depois começam os
comentários entre as crianças (...) Tudo o que é obseno pornográfico o favelado
aprende com rapidez (JESUS, 2014, p. 40-41)

Verifica-se aqui uma imagem negativa que Carolina faz dessas mulheres, mas também
uma preocupação gigantesca com a formação das crianças, uma tentativa de humanizar as
pessoas que vivem no espaço onde lhes falta até motivos para viver, ou segundo a Carolina:
“Quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num
quarto de despejo” (JESUS, 2014, p. 37).
Dessa forma, volta-se ao questionamento do incídio do artigo: Carolina é feminista?
Não é o intento desse artigo responder essa pergunta ou inserir a autora nesse movimento, por
mais que diversas autoras e autores já tenham tentando essa empreita de colocar Carolina
como feminista, ou proto-feminista negra, mas prefiro vê-la por ela mesma ou em
atravessamentos a Lélia Gonzalez, como uma autora amefricana que denúncia o racismo e
machismo ao seu modo de se expressar. Uma autora subversiva e plural.
No Quarto de Despejo há uma breve passagem que intriga muito, principalmente pela
sua articulação com as ideias feministas; Carolina diz:

Quando eu era menina o meu sonnho era ser homem para defender o Brasil porque eu
lia a história do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só li nomes masculinos
como defensor da patria. Então eu dizia para a minha mãe:
- Por que a senhora não faz eu virar homem?
Ela dizia:
- Se você passar por debaixo do arco-iris você vira homem.
Quando o arco-iris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava
sempre distanciando. Igual os politicos distante do povo. Eu cançava e sentava.
Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar
para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo
(JESUS, 2014, p. 54).

Essa passagem do Diário explana muito bem a percepção que Carolina tinha das
relações de gênero/poder. Um relato que desde criança questionava quem tinha o poder da
escrita, de decisão e de luta. Por mais que seja trágico o que Carolina descreve, em busca do
arco-iris que sempre foge dela e sua vontade de ser homem porque só assim poderia ser
reconhecida e poderia lutar pelo país, isso não quer dizer que ela desista mesmo assim de lutar
para melhorar o Brasil.
Por essa busca do arco-iris, não mais para buscar ser homem, mas sim para se afirmar
enquanto mulher negra e escritora que Carolina, e Lélia repetiria suas palavras, discorre:
“Aqui na favela todos lutam com dificuldade para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só
eu. E faço isso em prol dos outros” (JESUS, 2014, P. 36). Carolina e Lélia nunca chegaram a
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se encontrar, mas seus caminhos em encruzilhadas se cruzam em mulheres e homens negras
(os) que hoje continuam o seu legado de denúncia e combate a toda forma de opressão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intuito desse artigo era fazer uma relação entre o feminismo afro-latino americano
de Lélia Gonzalez e suas críticas ao feminismo branco hegemônico com a obra Quarto de
Despejo de Carolina Maria de Jesus. O artigo articulou uma breve aproximação do feminismo
proposto por Lélia com a obra de Carolina e algumas ponderações. Amefricanizar Quarto de
Despejo é potencializar diversas características denunciativas e combativas dessa obra tão
intrigante e importante da literatura brasileira.
Concebeu-se a obra de Carolina como uma potência feminista amefricana pelo seu
cunho denunciativo de humanidades negadas e inferiorizadas para a humanização das
mulheres, crianças, idosas que viveram na favela do Canindé. Em meio há um espaço
desumanizador, Carolina escreve e cria: “enquanto escrevo vou pensando que resido num
castelo cor de prata e as luzes de brilhantes (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para
esquecer que estou na favela” (JESUS, 2014, p. 52). Lélia escreveu para denunciar as diversas
opressões que recaem sobre os corpos negros e amefricaniza suas existências para
potencializar e registrar suas resistências ao racismo.
Considero que os objetivos foram de certo modo alcançados no quesito de estabelecer
um diálogo entre essas duas grandes pensadoras, elaboração que ainda não tinha sido feito,
para abrir-se novos horizontes e possibilidades de análise da obra de Carolina Maria de Jesus.
Como uma grande obra, é algo aberto e não determinado e assim tem-se diversas
compreensões e Carolinas também. Remeter a essas duas pensadoras é de extrema
relevância para que cada vez mais tenha-se o ímpeto de denunciar todo projeto de opressão e
de miserabilismo que assola o país.
Carolina Maria de Jesus e Lélia Gonzalez abriram os caminhos, como pombogiras
rainhas, para a possibilidade de novas conquistas para o povo negro brasileiro. Sua luta
continua até hoje em diversos corpos negras/os e utilizando as palavras de Jurema Werneck
que escreve no prefácio da obra de Conceição Evaristo “Olhos D’água”, elas são “Iyalodês, as
que falam pelas mulheres que não podem falar, contando, dizendo, amaldiçoando. Era Oxum,
às portas da casa de Oxalá, amaldiçoando a pobreza e a injustiça que recaía sobre as mulheres.
E crescendo em força e poder, transformando-se na dona de toda a riqueza (...) (WERNECK,
2018 apud EVARISTO, 2018, p. 17). E como Oxum que também engana Exu para conseguir
os segredos dos Búzios, Carolina e Lélia construiram estratégias para diversas mulheres
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negras continuerem seu axé.

REFERÊNCIAS
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Revista Liteafro, 2018.http://www.letras.ufmg.br/literafro/arquivos/artigos/teoricos-
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latina a partir de uma perspectiva de gênero. Disponível em:
http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00000690.pdf. Acessado em 15 de junho de 2020.

EVARISTO, Conceição. Escritora Conceição Evaristo é convidada do Estação Plural:


depoimento [jun. 2017]. Entrevistadores: Ellen Oléria, Fernando Oliveira e Mel
Gonçalves.TVBRASIL, 2017a. YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?
v=Xn2gj1hGsoo. Acesso em 15 jul. 2018.
WERNECK, Jurema. Prefácio. In: EVARISTO, Conceição. Olhos D’água. 2.ed. Rio de
Janeiro, RJ. Pallas Mini, 2018.

FERREIRA, Amanda Crispim; MIGLIOZZI, Luiz Carlos Ferreira de Melo. Literatura afro-
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http://www.abralic.org.br/anais/arquivos/2016_1491524538.pdf. Acessado em 17 de junho de
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GONALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: SILVA, L. A. et al.


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