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IX SIMPÓSIO NACIONAL DE PRÁTICAS

PSICOLÓGICAS EM INSTITUIÇÕES
- ATENÇÃO PSICOLÓGICA: FUNDAMENTOS, PESQUISA E PRÁTICA

ATENÇÃO PSICOLÓGICA CLÍNICA EM


INSTITUIÇÕES: PRÁTICA E PESQUISA

Profa. Dra. Vera Engler Cury


Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Programa de Pós Graduação em Psicologia
vengler@puc-campinas.edu.br

Resumo

A vida nas grandes cidades do Ocidente exige das pessoas uma luta diária por
espaço, segurança, privacidade, enfim pela própria sobrevivência. Do ponto de vista
psicológico, paradoxalmente, sentimentos de solidão rondam os relacionamentos. A
experiência de exclusão não se restringe aos menos favorecidos, econômica e
culturalmente; democratiza-se pelo viés da competitividade. Alguns buscam apoio em
dogmas, outros em verdades que se traduzem em números e indicadores. Todos
parecem necessitar de alguma forma de apoio para enfrentar modos de existência que
se tornam cada vez mais conturbados. Qual o papel da psicologia clínica num cenário
como este? As psicoterapias tradicionais, em especial as de tempo indeterminado,
disponibilizam modelos de intervenção cuja eficácia baseia-se em critérios de
aderência e auto motivação do paciente, possíveis apenas no restrito contexto das
clínicas privadas. O sofrimento humano vivido na experiência coletiva do cotidiano das
instituições demanda abordagens criativas e emancipatórias, abordagens que
reconduzam as pessoas a uma compreensão sobre si mesmas e sobre o sentido de
suas vidas.

Para Arendt (2009), a compreensão é posta em movimento quando algum evento


nos faz perder o lugar no mundo e, enquanto não compreendermos suas razões e seu
sentido, não somos capazes de nos reconciliar com o curso da vida e nos reinstalar no
mundo. A ênfase de Husserl (1935/1996) de que a Psicologia deveria assumir sua
missão como ciência dos fundamentos, isto é, da compreensão sobre os elementos
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fundamentais da experiência humana, permanece como denúncia e apelo. Por sua vez,
a Psicologia Humanista reconduziu o homem ao lugar de protagonista da própria
existência, posto no mundo para vir a ser, para tornar-se uma pessoa a partir da
experiência vivida no encontro com outros homens.

A partir de uma perspectiva clínica humanista e fenomenológica temos nos


ocupado de desenvolver propostas de práticas diferenciadas de atenção psicológica,
como alternativa às intervenções tradicionais. A implantação destes enquadres clínicos
privilegia contextos institucionais. Assim, fez-se necessária uma adequação
metodológica para alicerçar o delineamento das investigações científicas efetivadas,
contribuindo para a preservação da coerência entre o aporte teórico/epistemológico e o
caminho traçado para o desenvolvimento das pesquisas. Desta análise resultou a
opção por uma estratégia metodológica que consiste na utilização de narrativas como
recurso, tanto para contextualizar e descrever os dados das intervenções, como
também para inserir a própria análise e interpretação, sob uma perspectiva
intersubjetiva. Esta postura paradigmática pretende integrar a abordagem humanista ao
modo fenomenológico de condução das investigações no contexto do Grupo de
Pesquisa “Atenção psicológica clínica em instituições: prevenção e intervenção”. Nossa
maior contribuição tem se efetivado no campo das práticas psicológicas em instituições
públicas de saúde mental, porém outros contextos nos quais possam ser efetivadas
intervenções de caráter clínico também são considerados, tais como creche, escola,
serviço de assistência judiciária, hospital geral, clínicas e serviços universitários.

A abordagem terapêutica que orienta estas intervenções caracteriza-se por


favorecer a simbolização das experiências subjetivas de modo não invasivo,
possibilitando a emergência da potencialidade para a saúde e facilitando a retomada da
autonomia numa dimensão transformadora, tanto no plano pessoal como no coletivo.
Neste sentido, destinamos á prática clínica a tarefa de confirmar a experiência humana
e ao psicólogo, a missão de legitimar a própria Psicologia como profissão e ciência. A
este respeito, posiciona-se Amatuzzi (2001):

“O que é então trabalhar processos humanos de forma integrada, em todos os seus


âmbitos inseparáveis ? É tomar a iniciativa e começar já a viver segundo outro
paradigma. É passar a funcionar a partir do centro pessoal, abrindo-se ao outro. É
associar-se na prática do que fazermos e buscar o bem de todos. Se isso não fizer
parte do trabalho do psicólogo, ele estará somente contribuindo para que o mundo
continue a ser como é. Transcendemos a psicologia ? Creio que a psicologia que não
estiver atravessada por esses valores, em todos os seus níveis de inserção
profissional, já não tem nada de importante a oferecer a nosso mundo” (p131).

Algumas reflexões sobre o ato de compreender a experiência humana na clínica


e na pesquisa.

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Quando afirmamos que nosso referencial é humanista e fenomenológico,
buscamos um resgate, como o propôs Husserl (1935/1996), do sentido a partir da
subjetividade, ou melhor, um mundo intersubjetivo, não apenas centrado numa
subjetividade em particular.Visamos o homem em seu viver mais próprio, em
comunidade, o homem com suas experiências cotidianas particulares, conduzindo sua
vida em meio a outros homens; um homem encarnado nas palavras de Merleau--Ponty.
Nesse sentido, nossas pesquisas buscam trazer à tona os modos particulares de
expressão das pessoas, tomadas em sua totalidade, vivendo suas experiências e
atribuindo um sentido a elas. Não é nossa intenção proporcionar uma forma de ajuda
psicológica de antemão; também não pretendemos enquadrar o vivido ou classificá-lo;
não importa ao clínico em seu sentido stricto os esquemas explicativos, pois lhe cabe
exercitar o ofício da compreensão. De modo análogo, o pesquisador fenomenológico
não está interessado em encontrar uma maneira de provar o que já está consolidado
teoricamente; ao contrário, ele permite-se impregnar do fenômeno, a fim de pronunciar
as questões iniciais numa relação autêntica com o contexto e com os participantes. O
projeto de pesquisa é delineado a partir de uma motivação pessoal intensa vivida pelo
pesquisador aproximando-se do que Moustakas denominou de pesquisa heurística.

Do ponto de vista da intervenção há a intenção de acolher a demanda do cliente

pela via de escuta qualificada e de uma atitude de disponibilidade para facilitar-lhe

encontrar o caminho de volta a si mesmo e a seus significados. Da mesma forma, do

ponto de vista da pesquisa, os pressupostos ontológicos e epistemológicos que

delineiam e recortam, imprimindo uma forma específica ao olhar do pesquisador, não

impedem a emergência de um encontro entre pesquisador e pesquisado que não existe

de antemão. A explicitação desses pressupostos também se fundamenta

fenomenologicamente, pois visa pôr a descoberto, tanto quanto possível, o olhar de

quem olha, por se acreditar que no âmago da subjetividade reside a construção de

qualquer realidade existente, lembrando que “só no puro conhecimento científico-

espiritual o cientista escapa à objeção de que se encobre a si mesmo em seu saber”

(Husserl, 1935/1996,p83).

Historicamente, vemos o homem quebrando antigas verdades,

renovando sua forma de pensar e de existir no mundo. A questão dos enquadres

diferenciados parece ter a árdua – mas feliz – função de nos levar a refletir sobre a

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prática profissional do psicólogo, buscando formas de atuação inovadoras que visem

qualificar a profissão, adequando cada vez mais o que fazemos àquilo que precisa ser

feito com ética e responsabilidade social, tomando por base a construção de modelos

de ajuda que não excluam a vida concreta, com seus potenciais e limites, valores e

crenças diversos, enfim, nossa humanidade (Bilbao,2008) .

Relembrando as palavras de Critelli (2009)): “ O objeto da terapia é, então,

primariamente, diverso. Mesmo retomando a interpretação de Filon, o que cabe na

alma e o que cabe no ser, seus alvos originários, é indelimitável. Cabem as angústias,

as idiossincrasias, as loucuras, a ética, os desejos, a felicidade, imagens,

pensamentos, palavras...O objeto da terapia nasce quase indefinido, distinguindo-se

apenas, então, dos cuidados do corpo. Nela, o que é mais preciso é a natureza mesma

da atividade: cuidar, velar(p.20).”

Se assumirmos a psicologia como verdadeira ciência do espírito, como diria

Husserl, vamos encontrá-la em sua mais autêntica manifestação, primeiramente, tanto

quanto possível, dando novo lugar à nossa subjetividade ao fazermos ciência. É

legitimando o lugar de sujeitos que somos ao fazermos ciência, que nossa ciência será

mais humana.

De acordo com Rogers (1957), expoente da Psicologia Humanista, o fator

primordial para que qualquer atendimento de natureza psicológica possa ser

desencadeado é o estabelecimento de uma relação interpessoal, ou seja, que haja um

contato psicológico entre as duas pessoas envolvidas, terapeuta e cliente, sendo que a

cada uma delas é destinado um papel específico e fundamental. Assim, somente a

existência de um encontro psicológico genuíno pode ser capaz de desencadear e

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manter uma relação terapêutica potencialmente positiva. Os dois personagens em cena

definirão seu papel nesta relação a partir de determinadas atitudes.

Cabe ao psicólogo clínico, fundamentalmente, estar em um papel de escuta


acolhedora, baseada nas atitudes de congruência, empatia e aceitação positiva
incondicional; atitudes estas, que ao serem efetivamente comunicadas ao cliente,
permitem-lhe expressar-se mais abertamente, ainda que em um pequeno intervalo de
tempo, pois sente que está sendo ouvido, compreendido e aceito. Este sentimento de
confiança, pautado num tipo muito especial de relacionamento com o outro, evolui para
a conquista de confiança em si mesmo. A presença de um ser humano capaz de
oferecer uma interlocução ativa desempenha um papel fundamental nos atendimentos
psicológicos, uma vez que valoriza a existência do outro e permite-lhe ouvir-se,
reconhecer-se e identificar seus próprios sentimentos. Facilitar a abertura do cliente a
um refletir acerca de determinada questão que se lhe apresenta vital, é um resultado
suficientemente importante para legitimar o processo terapêutico num mundo
performático no qual as aparências precedem e substituem a existência.

Tomemos como ponto de partida para esta caracterização dos enquadres


clínicos diferenciados, uma modalidade de atenção psicológica a qual temos nos
dedicado a praticar e estudar nos últimos anos: o plantão psicológico.

Compreender a queixa do cliente como é trazida por este emergencialmente,


sem preocupar-se com uma análise diagnóstica, parece ser uma das razões que
aufere um bom resultado ao serviço prestado pelo plantonista, pois favorece que o
cliente ao sentir-se imediatamente respeitado e compreendido em sua forma peculiar
de trazer a problemática pessoal que o aflige, possa reconstruir sua autonomia
pessoal. O Plantão Psicológico é um espaço de escuta respeitosa à maneira do cliente
de perceber e manifestar sua queixa.

Assim, o psicólogo desempenha um papel que vai além de fornecer apoio, ou


ajudar no alívio da tensão momentânea pela via catártica. É fundamental que ele
partilhe da experiência de sentir-se também exposto ao outro, este desconhecido que o
interroga. A atitude de congruência ou autenticidade proposta por Rogers (1957)

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implica nesta particular experiência de não saber, de estar disponível para a
descoberta do novo, daquilo que se anuncia dialogicamente. Esta condição é
desafiadora para o aprendiz, pois desaloja suas frágeis certezas provenientes do saber
recentemente adquirido.

O cliente, por seu lado, caracteriza-se por estar em um estado de incongruência,


o que o torna vulnerável e angustiado, levando-o a buscar ou desejar ajuda. Parece
que ter alguém disponível no momento em que se precisa, faz com que o tempo, o
vínculo e a confiança, assumam um significado especial, mobilizador.

De fundamental importância para que mudanças psicológicas possam


processar-se no contexto das relações terapêuticas, é a possibilidade de que o cliente
assuma um papel ativo de investigador de si mesmo, propondo-se ao exercício da
dialética do viver; neste, o pensar, o sentir, o falar e o ouvir, são elementos
constitutivos, enunciadores da experiência vivida. E para tanto, assim como para o
próprio viver, não se pode prescindir da presença de um outro significativo.

O tempo é outra questão fundamental a ser refletida, quando se fala de


elementos terapêuticos inerentes a um atendimento psicológico. Sabemos que é vivido
de maneira subjetiva, porém este conhecimento somente pode ser apropriado pela
própria experiência. O sentido do tempo pertence á esfera das relações interpessoais;
é tácito.

Da mesma forma, o significado de uma emergência psicológica é muito


diferente para cada um dos clientes, uma vez que os atendimentos englobam uma
gama muito grande de demandas, que variam de problemas situacionais surgidos no
ambiente de trabalho a tentativas de suicídio. Portanto, é importante considerar a
emergência do ponto de vista de cada uma das pessoas atendidas, proporcionando em
comum um ambiente de escuta que seja organizado muito mais como um espaço a ser
ocupado por pessoas do que destinado ao tratamento de determinadas patologias.
Torna-se, assim, a atenção psicológica clínica em mais um agente de promoção da
saúde especialmente em contextos institucionais caracterizados como equipamentos
de saúde pública, de portas abertas à população.

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O fato de a atenção psicológica ser oferecida no exato momento da
necessidade, também assume um importante papel no sentido de ser um elemento
fundamental a possibilitar a emergência da criatividade, pois aquele que se dispõe a
rever sua experiência pessoal, estará apto a criar novos modos de estar no mundo,
modos estes que podem permanecer neutralizados nas circunstâncias habituais da
vida em seu curso natural (Furigo,2006). Este potencial criativo atuará a favor da
atenção psicológica, que associada ao poder terapêutico da relação de ajuda, em uma
atmosfera de escuta e aceitação, facilitará a emergência de um processo
transformador, auto motivado.

Palmieri-Perches (2008) e Cury & Ramos (2009) delimitaram elementos


terapêuticos significativos presentes no processo psicológico desencadeado pelo
plantão psicológico, a partir da experiência de clientes e plantonistas, permitindo uma
análise em relação a algumas dimensões da relação intersubjetiva propiciada por esta
modalidade de atenção psicológica. Emergiram significados que confirmam
experiencialmente a importância das seis condições consideradas por Rogers como
necessárias e suficientes para que uma relação terapêutica seja desencadeada, fato
que não deve nos surpreender já que ele revelou-se exímio na arte de praticar atenção
psicológica em campos diversos, embora suas proposições teóricas tenham sido
limitadas em função dos ditames científicos positivistas de seu tempo e lugar.
Enfatizamos hoje, á maneira rogeriana, a importância de que a formação do psicólogo
clínico inclua seu desenvolvimento pessoal, ao expor-se á prática de atitudes
facilitadoras em situações naturais presentes nos contextos institucionais. Neste
sentido, o plantão psicológico desempenha papel fundamental, dadas as
peculiaridades que o caracterizam como modalidade de atenção psicológica.

Mais recentemente, desenvolvemos estudos sobre a possibilidade de


aplicação em instituições de uma outra modalidade de atenção psicológica clínica,
denominada oficina de pintura. O conceito de facilitação deve ser aqui considerado
como uma forma de relação grupal proporcionada pelo psicólogo às pessoas para que
possam descobrir a própria capacidade de, ao desenvolver uma atividade lúdica num
contexto grupal, utilizar essa relação para crescer. Num clima não ameaçador e lúdico,
o terapeuta cria uma situação favorável, a partir de atitudes facilitadoras de forma a
possibilitar aos participantes da oficina o ingresso num processo de auto-conhecimento
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e de crescimento pessoal. Deve existir na atitude geral do psicólogo durante a Oficina
de Pintura, uma confiança no processo de crescimento pessoal do outro, assumindo
uma postura não-diretiva e procurando reduzir ao máximo os julgamentos e
pressupostos, visando acompanhar o processo de maneira transparente e empática.
Não há, pois, ênfase no produto realizado pelos participantes, direcionamento quanto
aos temas das conversações, ou questionamentos acerca de problemas psicológicos;
facilita-se a própria dinâmica do grupo como medida terapêutica.

Para compreender a experiência na Oficina de Pintura, utilizamos a


abordagem sugerida por Dutra(2002), compreendendo que a narrativa é uma estratégia
de pesquisa que coaduna com os princípios da fenomenologia, já que é uma
comunicação da experiência vivida e não dos fatos. Além disso, a narrativa não
pretende veicular nenhuma verdade absoluta, sendo uma maneira de produzir
significado e que pode, ao ser ouvida por outros, gerar novos significados, sendo,
nesse sentido, uma abordagem que conserva a abertura ao movimento, ao próprio
processo de atribuir significados e à própria dinâmica da vida. Segundo Dutra(2002):

“A narrativa contempla a experiência contada pelo narrador e ouvida pelo outro, o

ouvinte.Este, por sua vez, ao contar aquilo que ouviu, transforma-se ele mesmo, em

narrador, por já ter amalgamado à sua experiência a história ouvida. A consonância

com tal modo de pensar a experiência e a narrativa como sua expressão, levam-nos a

eleger a narrativa como uma técnica metodológica apropriada aos estudos que se

fundamentam nas idéias fenomenológicas e existenciais”(p.377)

Essa estratégia metodológica tem suas bases na filosofia de Benjamin (1994) que

já em 1936 afirmava que a “a arte de narrar está em vias de extinção”(p.197),criticando

a forma de intercâmbio de experiências como pobre, se comparada à narração do

tempo em que as pessoas viviam em comunidade, tinham um ritmo lento para o

trabalho artesanal e contavam sobre suas experiências de pessoa a pessoa em

narrações plenas de significados. Ao aprofundar-se sobre as mudanças provocadas

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nas formas de narrar no decorrer da história, descobre que a pobreza narrativa

característica de seu tempo era decorrente da pobreza da própria experiência humana,

que se esvaziou de sentido na medida em que a experiência da vida coletiva e do

passar do tempo foram sendo obscurecidos face ao avanço capitalista. Assim, em suas

críticas sobre o empobrecimento da linguagem, acaba resvalando no mesmo problema

apontado por Husserl: a crise da humanidade. Enquanto Husserl discute a crise do

homem moderno, levando a discussão para o âmbito da filosofia e da ciência e

apontando para um “retorno às coisas mesmas” visando restituir a importância da

experiência e do mundo da vida em contraposição a uma ciência vazia de sentido,

Benjamin discute a era da informação como substituindo a história oral narrada como

reflexo de um mundo vazio de sentido e apontando para o retorno a narração como

possibilidade de resgate de construção da experiência humana e não meramente como

uma proposta nostálgica e romântica. Enquanto a informação busca realidade factual e

explicações, a narração não tem compromisso algum com o real nem com verdades,

abrindo-se para novos significados a cada instante e, inclusive, á interpretação do

outro. Essa característica faz da narração, diferentemente da informação, um sistema

aberto. Ao contarmos uma experiência já vivida, não estaríamos apenas rememorando

algo acabado, mas estaríamos trazendo ao presente um vivido. Esse vivido, ao ser

contado, presentifica-se, já não é meramente o passado rememorado, “aquilo que

aconteceu”, mas é “como reflito sobre minha experiência do que aconteceu, agora”.

Portanto, para o próprio narrador, o vivido passa a ser receptivo a outros significados

que possam surgir e, na medida em que é contado, juntam-se os significados

provenientes de como o meu ouvinte o experimenta. Nesse sentido, a abertura opera

na direção do passado e do futuro, fazendo da narrativa um sistema aberto. É no seio

dessa dinâmica que a psicologia fenomenológica proposta nesse estudo abordou o


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vivido na oficina. O que foi experimentado na oficina, conversado, pintado, as imagens,

sensações, pensamentos, vão sendo significados e traduzidos de forma verbal pela

narrativa da pesquisadora.. O leitor do trabalho irá, por sua vez, amalgamar aos

significados primeiros a sua própria interpretação e seus próprios significados,

consolidando a abertura do conhecimento da pesquisa e da própria dinâmica viva da

consciência intencional. Vale salientar também,que a própria oficina, enquanto prática,

constituiu-se de histórias contadas pelos participantes. Como já havia sido observado

em estudo anterior (Bilbao, 2007), a oficina é um fazer permeado de contar histórias

vividas, revelações que acontecem numa rede intersubjetiva que, dotada de

intencionalidades, possibilita a construção de novos significados. Pode-se pensar que a

oficina, ao mesclar o trabalho artesanal do fazer e o trabalho artesanal do comunicar (a

narrativa), possibilita o contato com a própria experiência como nos tempos antigos

anunciados por Benjamin(1994). O narrador era artesão, sua consciência não estava

descolada do fazer, do seu corpo. Sua fala e seu trabalho vinculavam-se à experiência.

Mais que isso, talvez, sugere Benjamim(1994):

“A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles
definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar”(p220) e ainda logo depois
“Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e a sua matéria – a
vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa
trabalhar a matéria-prima da experiência – a sua e a dos outros – transformando-a num
produto sólido, útil e único ?(p.231).

Estudo recentemente concluído analisou o impacto da participação de

adolescentes em um grupo de dança de rua em uma escola pública. Contribuiu para

confirmar a necessidade de se cuidar da escola como um espaço potencial de

crescimento pessoal e de desenvolvimento humano. É no contexto escolar que

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crianças e adolescentes passam considerável parte de seus dias, de modo que a

educação para a vida, e não apenas para o aprendizado de conteúdos importantes,

acontece atualmente mais na escola do que no convívio familiar. Contexto escolar foi

compreendido nesse estudo de forma ampliada, não se referindo apenas às situações

de sala de aula, mas ao tempo que se passa na escola e à qualidade das relações

humanas estabelecidas.

A pesquisadora (Rego,2008) constatou a surpresa dos adolescentes que

participaram do estudo em relação ao fato de suas experiências pessoais terem sido

ouvidas e valorizadas; ao narrarem como se sentiam participando do grupo de dança

de rua, encontraram novos significados para compreender a própria experiência

particular de adolescer. As narrativas trouxeram à tona a presença da tendência

atualizante como um guia para a abertura às experiências de dançar e de adolescer.

Mediante as inevitáveis adversidades da vida, a tendência á auto compreensão e ao

desenvolvimento prevalecem conduzindo a um amadurecimento construtivo da

personalidade.

Szymanski e Cury (2004) apontam que as entrevistas psicológicas, por

promoverem a reflexão, mobilizam o entrevistado por meio da escuta interessada e

revelam ao pesquisador e ao seu interlocutor elementos do vivido antes irrefletidos.

Com isso, pode-se dizer que as entrevistas possuem caráter interventivo e até

terapêutico.

A escuta da pesquisadora e o contar as próprias experiências proporcionados

pela participação nesta pesquisa parecem ter dado voz à busca pela liberdade de ser si

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mesmo e ao viver criativo que a dança já expressava sem palavras. Dançar em grupo

na escola trouxe novas e criativas formas de viver o adolescer.

Campos & Cury (2009) em pesquisa sobre encontros terapêuticos com crianças

em uma creche constaram na prática a capacidade das crianças para assumir a

iniciativa pela busca espontânea por uma relação de ajuda psicológica e para

expressar sentimentos a respeito de suas vivências. Retomou-se o significado da

construção de um setting terapêutico em sua acepção primeira, como desenvolvimento

de uma relação intersubjetiva. Este estudo evidenciou o potencial transformador de

uma relação terapêutica baseada numa mediação dialógica. E foram as próprias

crianças que vitalizaram este processo ao interpretarem a presença da psicóloga a

partir de suas necessidades.

Por outro lado, nossas pesquisas recentes com foco na implantação de

enquadres diferenciados de atenção psicológica clínica em diferentes tipos de

instituição, tais como hospital, creche, escola e serviço de assistência judiciária, tem

demonstrado a importância do processo de inserção do psicólogo/pesquisador no

contexto institucional como elemento essencial para garantir um bom desenvolvimento

da pesquisa. A intervenção psicológica e o próprio delineamento do projeto são

construídos nesta fase de reconhecimento das características da instituição e dos

modos peculiares de relacionamento entre seus membros, apreendidos pelo

pesquisador ao estar presente no cotidiano das relações profissionais que se

estabelecem.

Concluindo, é a partir destes princípios norteadores que nossas intervenções

clínicas progridem, acompanhadas de perto pelas pesquisas, ambas objetivando

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revelar os significados da experiência vivida num jogo interessante de interlocução

dialógica no qual o pesquisador interroga o psicólogo sobre sua prática clínica e este

devolve-lhe apontando novas questões a serem elaboradas no plano teórico. A

pesquisa e a prática tornam-se, pois, indissociáveis, desafiando a academia a rever

seus paradigmas científicos de neutralidade e separação sujeito/objeto, pela via do

encontro dialético entre profissão e ciência, ambas a serviço do bem comum,

circunstanciado no espaço público, contexto onde devem ser exercidas as práticas de

uma política social na concepção de Arendt (1993). Desenvolver conhecimento

científico em psicologia a partir da premissa de que o conhecimento só é válido a partir

do estudo da experiência vivida e não de abstrações ou de uma natureza humana

idealizada traz, inevitavelmente, a questão do conhecimento construído no terreno

intersubjetivo, eliminando-se as barreiras eu/outro, interior/exterior, sujeito/objeto.

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