Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CURITIBA
2010
2
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos aqueles que colaboraram para realização deste trabalho de forma
direta ou indireta. Principalmente a Flora, minha filha por dividir seu dia a dia e minha
atenção com as horas de estudo e dedicação, em que não pude estar tão perto quanto gostaria.
A meus pais, Helga Brodhage e Dauri Machado Sant´Anna por acreditarem em mim e
fornecerem a base necessária em minha formação formal e humana.
A meus amigos, em especial, Katia Villagra, Francisco Cardoso, Edson Macalini,
Luhanna Salata e o Coletivo “Quê?”. Com o apoio, a alegria e as conversas esclarecedoras,
estar presente e chegar até o fim pôde ser mais prazeroso.
A Sizumi Suzuki, pelos conselhos e as horas acolhedoras.
A Professora Dra. Celina Murasse Mizuta por me iniciar e incentivar no caminho da
pesquisa acadêmica.
Ao professor André Rigati integrante da minha banca examinadora, e a professora
Carmem Spanhol por nos fazer enxergar menos dificuldades e mais objetivos.
Ao professor Dr. Artur Freitas, orientador deste projeto. Agradeço não só pela
paciência e fé no meu trabalho, mas por todo o percurso de conhecimento e exemplo, traçado
em sua disciplina, durante minha formação acadêmica.
Ferreira Gullar
4
RESUMO
Esta pesquisa teve como objetivo a análise de discurso curatorial contemporâneo, com
o foco de investigação voltado a esclarecer, identificar e analisar as possíveis relações da
curadoria específica, de Lisete Lagnado, “Como viver junto?” (2006) referente a 27ª Bienal
Internacional de São Paulo, com a Estética Relacional de Nicolas Bourriaud, crítico francês,
que representa um dos principais vértices teóricos e filosóficos no debate artístico
contemporâneo.
O trabalho visa estabelecer relações de aproximação e divergências entre as curadorias
brasileiras e as teorias estéticas de Nicolas Bourriaud. Neste contexto a pesquisa torna-se uma
análise documental de fontes primárias considerando como objeto de pesquisa o discurso
curatorial de Lisete Lagnado de 2006. Porém também adentra a análise do discurso,
considerando como base para a discussão a teoria Estética Relacional de Nicolas Bourriaud.
Esta estruturação metodológica, permitiu ampliar a compreensão do estado de
espetaculização da arte no contexto das mega exposições, partindo de um olhar nacional para
um contexto global. Desta forma as decisões curatoriais contemporâneas são contextualizadas
e ampliam-se as possibilidades de interpretações e análise das demais.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................6
5 CONCLUSÃO.....................................................................................................................49
6 REFERÊNCIAS..................................................................................................................51
6
1 INTRODUÇÃO
artísticas e passe a ser um espaço que propõem um nível de experiência sensorial total,
aproximando as relações do público com as possíveis significações da arte, nestes termos a
curadoria passa a ser um instrumento mediador.
Investigar a aplicabilidade das teorias de Bourriaud na curadoria de Lisete Lagnado
significa, relacionar as possíveis conexões entre as ações curatoriais contemporâneas
brasileiras, com um dos mais importantes vetores das teorias de arte contemporânea, que é a
Estética Relacional.
Os livros de Nicolas Bourriaud , publicados em 1998 e 2004 na França, tiveram suas
edições traduzidas para o Brasil somente em 2009, o que não impediu que os conceitos
relacionais fossem antes mesmo desta data conhecidos e questionados no âmbito nacional.
Estes textos elaborados a partir da análise de artistas europeus da década de 1990, teorizam
sobre os novos paradigmas pertinentes a arte contemporânea. No entanto conceitos como
interatividade, hibridização das linguagens, e discussões sobre o conceito de obra de arte,
também se aplicam a arte brasileira desde a década de 1960, com as contribuições de Hélio
Oiticica e seu Programa Ambiental. Bourriaud porém desconhece o trabalho dos artistas
brasileiros responsáveis pela utilização desses recursos, por este fato é ao mesmo tempo
considerado e repudiado pelos críticos nacionais.
Contudo suas teorias parecem corresponder às questões e sintomas da arte
contemporânea e seu entendimento se torna indispensável para um maior aprofundamento das
questões pertinentes a Curadoria de Lisete Lagnado: Como Viver junto, Bienal Internacional
de São Paulo,2006.
Com estas considerações fica então estabelecido o problema da pesquisa da seguinte
forma:
Tendo em vista a generalizada espetacularização institucional da relação entre “arte e
vida” nas mega exposições de arte contemporânea dos anos 2000, é possível identificar, nos
discurso curatorial da Bienal de São Paulo de 2006, alguma aproximação com o discurso
geral da chamada estética relacional, conforme defendida pelo crítico francês Nicolas
Bourriaud? De que forma e em que medida o discurso da curadora dessa exposição
eventualmente se aproxima e/ou se distancia dos conceitos elaborados por Bourriaud? E, por
fim, é possível que essa aproximação entre o discurso curatorial brasileiro e o pensamento
estético relacional seja compreendida como um sintoma possível do entendimento mais geral
de arte contemporânea no Brasil durante os anos 2000?
8
Para esclarecer estas questões, traço como objetivo geral, identificar as possíveis
aproximações entre o discurso curatorial de Lisete Lagnado na Bienal de São Paulo (2006) e a
Teoria da Estética Relacional de Nicolas Bourriaud. Para tanto foi necessário:
- Contextualizar a Estética Relacional a partir das Vanguardas Históricas de 1920;
- Conhecer a Teoria da Estética Relacional;
- Analisar o discurso Curatorial da 27ª edição da Bienal Internacional de São Paulo;
- Confrontar os argumentos curatoriais de Lisete Lagnado(2006) com os conceitos da Estética
Relacional;
- Reconhecer aproximações e divergências entre o discurso curatorial da 27ª Bienal de São
Paulo e os conceitos da chamada Estética Relacional.
Desta forma o trabalho fica estruturado em três capítulos, sendo o primeiro um
apanhado histórico necessário para a compreensão da relação Arte-vida, conceito fundamental
das teorias Relacionais de Nicolas Bourriaud, que recebe o título: “Conceitos Preliminares: a
relação arte e vida”. Este capítulo tem como apoio as obras de Michael Archer, Arte
Contemporânea (2001), Gianni Vattimo, O fim da Modernidade: niilismo e hermenêutica na
cultura pós-moderna (2007); e Peter Bürger, Teoria da Vanguarda (2008).
No segundo capítulo a Teoria de Bourriaud é analisada, e descrita através da leitura
das duas obras disponíveis em português de Nicolas Bourriaud , Estética Relacional e Pós
Produção : como a arte reprograma o mundo contemporâneo (2009), com o alicerce crítico
do artigo do Professor Doutor Ricardo Fabrini “Arte relacional e regime estético: a cultura da
atividade dos anos 1990” (2010). Este capítulo então recebe o nome: “Da Estética Relacional
de Nicolas Bourriaud: as condições da arte contemporânea num contexto relacional”.
Por fim a análise de caso. Têm como objeto de pesquisa, a análise da curadoria da
Bienal internacional de São Paulo do ano de 2006, de Lisete Lagnado, e ainda todo o contexto
curatorial contemporâneo pertinente, relacionado a curadoria contemporânea e a aproximação
arte e vida. Para tanto foram necessários o referencial sobre curadoria Cenário da arquitetura
da arte: montagens e espaços de exposições de Sonia Salcedo del Castilho (2008); Bienais de
São Paulo: da era do Museu à era dos curadores, de Polyana Canhetê e Francisco Alambert
(2004). Além dos artigos de Laura de Castro , “O museu e os curadores”, e Marilúcia Bottalo
“A curadoria de exposições de arte moderna e contemporânea e sua relação com a
museologia e os museus”, e toda coleta de artigos, periódicos que contribuiram para a análise
do discurso curatorial específico, incluindo o Guia da 27ª Bienal de São Paulo.
9
1
Definição para o processo de apropriação de objetos já existentes, e sua apresentação como proposta de arte.
10
Neste sentido, acredita em uma “função” da arte na sociedade burguesa, que teria a
finalidade de uma formação integral do homem, “unindo as metades” (BÜRGER, 2008, p.99),
que foram separadas pela dinâmica capitalista da relação com o trabalho e do consumo. Para
estas fundamentações, utiliza em sua obra os discursos de Schiller e Marx, e ainda, ao tratar
dos aspectos específicos da Arte, analisa o discurso de Adorno, Kant, entre outros. No entanto
condena a apropriação estética dos elementos de consumo, característica das neovanguardas
dos anos 1960 e 1970, presentes como exemplo na Pop Art. Sobre este aspecto acredita que:
“Uma arte não mais segregada da práxis vital, mas que é inteiramente absorvida por esta,
perde – juntamente com a distância – a capacidade de criticá- la.” (BURGER, 2008, p. 107)
2
Técnica de colagem, que agrega objetos reais ao plano da tela. Ver Cubismo e Dadaísmo.
3
Termo marxista utilizado para se referir a dinâmica cotidiana na sociedade capitalista.
11
Para Bürger além da função crítica direta, a arte também tinha uma função, como já foi
dito, de ressarcir o homem dos prazeres e dos desejos inibidos pelo cotidiano do trabalho. Ao
se concretizar na aparência fictícia de uma ordem melhor da sociedade, ou um espaço em que
as emoções e os desejos humanos pudessem ser expressos, a arte “alivia a sociedade
estabelecida da pressão das forças voltadas para a transformação” (BÜRGER, 2008, p. 107).
Esta transformação seria o processo contínuo da industrialização e dos avanços
tecnológicos. Neste sentido haveriam aqueles grupos de artistas que assumiriam uma postura
crítica que se relaciona com o discurso de Bürger, como os dadaístas. Porém houve também
aqueles que encontraram na modernidade um terreno poético a ser explorado, numa
ostentação do dinamismo, da tecnologia e dos novos padrões estéticos associados a
aceleração, crescimento econômico e tecnocientífico. A este caso poderíamos associar os
manifestos Futuristas.
O projeto utópico das vanguardas artísticas do início do século XX, fracassou.
Evidente, pois a arte como instituição pertencente ao sistema social vigente, fortalecia-se
juntamente com as novas formas de trabalho, e as novas relações de consumo. Desta forma a
produção artística adaptou-se a nova realidade, transformando seus padrões estéticos.
Gianni Vattimo (2007), em 1985 publica O fim da Modernidade: Niilismo e
hermenêutica na cultura pós-moderna. Este autor, de certa forma complementa os estudos de
Bürger, pois passa a tratar da problemática arte e vida nas neovanguardas da década de 1960 e
1970.
No capítulo específico, Morte ou Ocaso da Arte (VATTIMO, 2007, p. 39-55), trata do
conceito hegeliano de morte da Arte, que afirma ter se concretizado na modernidade,
resultado do desenvolvimento de uma sociedade efetivamente industrial (VATTIMO, 2007,
12
p.39). Considera que este processo não é desassociado do projeto das vanguardas históricas,
do inicio do século XX, ao contrário vê como uma continuação histórica.
Para Vattimo(2007, p.42), “A Morte da Arte” não se dá no sentido literal, mas é apenas
um processo de transformação. Migra de uma estética filosófica tradicional, para uma estética
de consumo, em que a Arte passa a se apropriar da mídia, da tecnologia e da própria
instituição como meio de manter-se ativa e inserida nesta sociedade burguesa-industrial.
4
Palavra alemã que tem o sentido de algo que leva jeito para; que esta pré destinado à.
13
No paradoxo entre uma arte que se apropriava da estética de consumo, e outra que
procurava formas de se posicionar contra a comercialização extrema – de negação da arte
como mercadoria – , a arte ganhou formatações cada vez mais diversas no período de
transição dos anos 1960 e 1970.
Nos anos 1960, a relação entre o homem e o objeto industrializado, assim como suas
relações de consumo, ficam claramente estabelecidos como poéticas possíveis . A Pop Art
talvez seja o principal vértice na exploração e apropriação desta estética de consumo.
Na legendária frase de Andy Wahrol, em que afirmava que todos poderiam ter seus 15
minutos de fama, deixa evidente sua estratégia de produção. Wahrol se apoderava dos
mecanismos de produção assim como das imagens icônes de personalidades e produtos de
alto consumo. Emprestava o sucesso e a comerciabilidade destas imagens para suas obras, que
eram rapidamente absorvidas e desejadas pelo público em geral.
Nesta nova relação entre a obra e o público, as possibilidades de interação com a arte
se ampliavam ao mesmo passo que a arte era banalizada como objeto de consumo, de moda e
tendência. No contexto da Guerra Fria, da disputa silenciosa entre o capitalismo e o
socialismo, de acordo com Archer ( 2001, p. 117), qualquer coisa que alimentasse o mercado
e com isso contribuísse para o bem- estar comercial das econômicas ocidentais era percebida
por alguns artistas norte-americanos como um apoio disfarçado, informal, mesmo que
indireto, “ao envolvimento dos EUA, entre outras coisas na Guerra do Vietnã.” Desta forma
ao mesmo tempo em que alguns se aproveitavam do novo comportamento de consumo, outros
encontravam formas para tornar incomercialisáveis suas obras. Neste sentido encontramos as
performances, que na década de 1970 em especial, tornam-se o fio condutor das produções
deste período.
14
Para Uberto Eco ( 1989, p. 94) no período da vanguarda entre as décadas de 60 e 70,
haviam duas possibilidades de produção coexistindo. A uma ele denomina de
experimentalismo e a outra de vanguarda. A diferença essencial entre esta e aquela é que no
primeiro caso, “da obra extrapola-se uma poética”; e no segundo, “da poética extrapola-se a
obra.” Diante desta colocação entendo que no experimentalismo, a obra ainda esta em
processo de criação e questiona sua própria forma, investiga suas possibilidades. Já nas obras
que Eco chama de vanguarda, a relação entre o público – obra, é direta. Crítica a instituição
que a recebe, ao mesmo tempo que incorpora-se a ela.
As relações: artista – obra; obra – público; e arte – mundo, estavam mais uma vez
sofrendo transformações. “ Os artistas tradicionalmente vistos como individualistas avessos às
associações, começaram a organizar-se em grupos de pressão, que levavam diante a idéia
predominante do Conceitualismo, de que era de responsabilidade do artista tanto estabelecer o
contexto para sua obra quanto fazer sua própria obra.”( ARCHER, 2001, p.118)
A arte torna-se cada vez mais política e engajada, chamando o público e a sociedade a
participar, a vivenciar junto com os artistas suas poéticas. O que leva as “obras” ficarem cada
vez mais abertas, e o conceito de obra acabada, de obra como algo terminado e muito bem
executado, havia se perdido desde o primeiro momento que tentou-se romper com quaisquer
tradições da arte, no início do século XX ( BÜRGER, 2008, passim).
O formato obra de arte como categoria, segundo Bürger – no dadaísmo – não deixa
de existir mas é totalmente transformada, sendo assim prefere chamá-las ao invés de obras,
manifestações. Isto comprova a historicidade do processo relacional na arte.
Em meados dos anos sessenta até uma parcela dos anos setenta, o que percebemos é
uma preocupação com a banalização da arte visual, sendo transformada em um espetáculo.
Em 1963, (apud ARCHER, 2001, p. 60) Thomas Hess ao comentar sobre a Pop Art , presume
que a presença de uma grande platéia é indispensável para estas obras, caracterizando uma
transformação teatral. Desta forma a produção de uma pintura Pop torna-se impossível sem
que se tracem planos para sua exposição. Ou seja, a obra passa a interagir e por vezes só fazer
sentido em um determinado contexto expositivo.
Archer ( 2001, p. 60) ainda considera que o demasiado afrouxamento das categorias, e
o “desmantelamento das fronteiras interdisciplinares”, permitiu que a arte neste período
assumisse variadas formas e nomes diferentes. Para citar alguns: Conceitual, Arte Povera,
Processo, Anti-forma, Land, Ambiental , Body, Performance e Política. Todos estes e outros
15
ainda, segundo o autor tem suas raízes no Minimalismo (1950-1960) e nas várias ramificações
do Pop e do novo Realismo.
Percebemos nestes novos modos de se fazer arte, uma transição poética que antes
vinculava-se ao mundo material, os objetos, uma discussão acerca das formas para a
materialidade das coisas, inclusive do corpo humano e suas relações com o mundo. Na Body
arte, e nas performances notamos claramente a aproximação da arte com a vida no processo
de criação do artista que passa muitas vezes ser considerado como a própria obra. De um
modo ou de outro a Instituição Arte sempre achou soluções para tornar comercializável, ou
ao menos compilar, catalogar, essas manifestações, através por exemplo, do registro
fotográfico.
Com esta desmaterialização suscetível da forma da arte, o que predomina no período
que Archer (2001, p.155) chama de Pós Moderno, é uma volta as formas tradicionais da
pintura, que buscavam o “restabelecimento da habilidade manual por meio do prazer da
execução.” Com isto deixa de ter importância a idéia do progresso em arte, o que possibilitou
uma liberdade de busca de referências e inspirações em toda parte, permitindo que a arte da
Transvanguarda (1980) citasse qualquer período que desejasse. Por esta característica alguns
acusavam que o pós modernismo era desprovido de senso histórico, o que levou alguns a crer
que a arte pós moderna era constituída de simples apelos estéticos, superficiais e evocativos.
O pluralismo do pós moderno, impedia que se generalizasse como um movimento. O
que podemos notar é que os artistas da década de 1980 passaram a servir-se dos exemplos e
da herança deixada pelas décadas anteriores para tratar de poéticas pessoais e discussões
locais. Percebemos então a arte voltando-se gradativamente, e cada vez mais, para o
indivíduo, inserido numa sociedade moderna, que serve-se de sua própria história.
16
Essa história, hoje, parece ter tomado um novo rumo: depois do campo
das relações entre humanidade e divindade, a seguir entre humanidade e
objeto, a prática artística agora se concentra na esfera das relações inter-
humanas, como provam as experiências em curso desde o começo dos
anos 1990. (BOURRIAUD, 2009 , p. 41-42)
Ou seja a relação entre arte e vida, neste contexto, não se dá através de sua relação
formal mas de sua interação entre obra e expectador. É a partir dos anos noventa que
17
Bourriaud percebe uma forte preocupação cada vez mais eminente dos artistas para com seu
público, preocupando-se como este público irá receber sua obra. Nestas circunstâncias , essas
produções específicas determinam não só um campo ideológico e prático, mas também novos
domínios formais, estes domínios formais de acordo com o autor, extrapolam a barreira do
espaço expositivo tradicional.
Bourriaud admite que as formações de relação de convívio são fatores históricos desde
os anos 1960. No entanto, mesmo a geração dos anos 1990 retomando esta questão, não
retomaria junto com ela a problemática sobre definição da arte, evidente nos anos 1960 e
1970. “A questão não é mais ampliar os limites da arte, e sim testar sua capacidade de
resistência dentro do campo social global.”(BOURRIAUD, 2009, p. 43) Esta resistência se
deve ao rompimento na tentativa utópica de uma transformação social direta. A arte
contemporânea resiste a globalização e a estetização generalizada, pois passou a atuar nas
microestruturas individuais ou coletivas. “A função crítica e subversiva da arte
contemporânea agora se cumpre na invenção de linhas de fuga individuais ou coletivas”.
(BOURRIAUD, 2009, p. 44)
O Professor Doutor Ricardo Fabrini, em seu artigo, Arte Relacional e regime estético:
a cultura da atividade dos anos 1990, publicado na Revista da FAP (2010), procura esclarecer
em suas próprias palavras: “se na tentativa de suprir a ausência de políticas sociais, o que
teríamos nos espaços de arte relacional é uma sociabilidade glamourizada, fictícia – um
simulacro da sociabilidade dita real […] fundada na imprevisibilidade e nos conflitos.”
( FABRINI, 2010, p.1) Ou seja para Fabrini a arte relacional, colaborativa como a define,
citando o próprio Bourriaud, pode não passar de um simulacro.
Neste contexto dois pontos valem ser melhor explicados. Para Fabrini (2010) e para
Bourriaud (2009), o procedimento contemporâneo de propor situações que possibilitem uma
alteração do sensível, embasado em discussões políticas, sociais, comunitárias e sobretudo
interpessoais de nada se assemelham ao procedimento vanguardista utópico descrito por
18
Felix Gonzalez-Torres, Untitled (Perfect Lovers). 1991. Clocks, paint on wall. (35.6 x 71.2
x 7 cm). Gift of the Dannheisser Foundation. © 2006 The Felix Gonzalez-Torres Fundação,
Cortesia Andrea Rosen Gallery.
relacionais (BOURRIAD, 2009, p. 11) se repetem intensamente. É sobre estes aspectos, que
poderíamos pensar, a condição relacional como um possível sintoma da arte contemporânea.
Além disso as relações de consumo passam a ditar os comportamentos. A arte coexiste
nesta realidade. Nas palavras de Bourriaud o que não pode ser comercializado – entenda-se
consumido – esta fadado a morrer. Inclua-se nestes produtos de consumo o espaço, e o tempo
assim como os vínculos sociais, cada vez mais padronizados, que passam a fazer parte do
procedimento artístico como linguagem. De acordo com Fabrini (2010, p. 9) a figura do
espectador vanguardista é substituído pelo consumidor cultural num comportamento
extremamente eclético e dinâmico a serviço de um mundo tecnocientífico acelerado.
Por outro lado esta possibilidade relacional da arte , em que prevalece uma estética do
5
Hipermodernidade é o termo criado pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky para delimitar o momento atual da
sociedade humana. O termo “hiper” é utilizado em referência a uma exacerbação dos valores criados na
Modernidade, atualmente elevados de forma exponencial. (LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sebastian.Os
tempos Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004)
23
encontro, da vivência, pode ser o resultado radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos
do projeto das vanguardas artísticas modernas. De fato estaríamos num processo de
estetização de tudo e de todos, desde os anos 1960. Mas de acordo com o professor Dr.
Ricardo Fabrini6, o projeto moderno de estetização da vida não pode ser considerado
totalmente fracassado, pois hoje vivemos num mundo totalmente visual em que as imagens da
arte, como por exemplo os esquemas geométricos de Mondrian, podem ser vistas a qualquer
instante, estampados, citados, apropriados por objetos de consumo. A arte foi de fato
consumida e neste sentido também não teria sido banalizada?
Voltamos a discussão de uma possível morte da arte, já que o que vemos, hoje, na arte
contemporânea é um terreno de infinitas possibilidades de formatações e apropriações
impensáveis, livres de parâmetros estéticos que regulem sua produção. Numa arte em que
parece estar isenta de qualquer critério crítico, o que Bourriaud tenta fazer é organizar os
6
De acordo com palestra proferida pelo Professor Dr. Ricardo Fabrini, na Semana Acadêmica do Curso de
Licenciatura em Artes Visuais, na Faculdade de Artes do Paraná, Curitiba, 2010.
24
Procurando esclarecer o que Bourriaud chama de Pós – Produção, este termo estaria
ligado ao mundo da televisão, do cinema e do vídeo, a “procedimentos de montagem,
acréscimo de outras fontes visuais ou sonoras, as legendas, vozes off, os efeitos especiais.”
(BOURRIAUD, 2009, p.7). Neste contexto as possibilidades seriam: Reprogramar obras
existentes; Habilitar estilos e formas historicizadas; Utilizar a sociedade como um repertório
de formas; Usar imagens, Recorrer a moda e a outros meios de comunicação.
( BOURRIAUD, 2009a, passim)
Em um primeiro momento a questão que Bourriaud relaciona com a democratização
7
Bourriaud afirma que a base filosófica que sustenta a estética relacional foi definida por Louis Althusser
como um materialismo de encontro fortuito ou materialismo aleatório. “ Assim, a essência da humanidade é
puramente transindividual, formada pelos laços que unem os indivíduos em formas sociais sempre históricas
( Marx: a essência humana é o conjunto das relações sociais) Não há 'fim da história' nem 'fim da arte'
possíveis, porque a partida sempre é retomada em função do contexto, isto é em função dos jogadores e do
sistema que eles constroem ou criticam.”(BOURRIAUD, 2009 , p.25)
25
Para Ranciere ( apud Fabrini, 2010, p. 13) na falta de uma forma artística ou do gesto
estético, estas ações transpostas a realidade existente, “resultam de colaborações de artistas,
curadores, mass- mídia e terceiro setor, entre outros parceiros”. Desta forma o artista deixa de
lado o atestado de gênio presente e passa a atuar como um organizador, podendo ainda
assumir papéis de editor ou empregador. Ou seja a produção contemporânea aproxima-se cada
vez mais dos parâmetros que regem uma empresa.
No entanto Bourriaud afirma que a estética relacional não constitui uma teoria da arte,
“ que suporia o enunciado de uma origem e de um destino e sim uma teoria da forma.” Mas
afinal que forma é esta já que o mesmo autor considera todas as possibilidades de relações
interpessoais, de encontros, que não assumem formas concretas tradicionalmente aceitas na
arte como dignas de uma produção estética?
Bourriaud (2009, p. 29) afirma que “observando as práticas artísticas contemporâneas,
deveríamos falar mais em 'formações' do que em 'formas'.” Considera que ao contrário de uma
obra fechada em si mesma – conceito tradicional da obra de arte – a arte contemporânea é
8
Samplear :[Neologismo] v. 1. Ato de capturar e registrar digitalmente sons, frases musicais ou timbres
sonoros, por meio de um sampler, com o propósito de manipulá-los e recombiná-los.
9
Um disc jockey (DJ ou dee jay) é um artista profissional que seleciona e roda as mais diferentes composições,
previamente gravadas para um determinado público alvo.
26
resultado e só existe na “ relação dinâmica de uma formação artística com outras formações,
artísticas ou não .” [...] “A arte é um estado de encontro fortuito”(BOURRIAUD, 2009, p.27)
Descordando da estética tradicional , em que a forma artística é intermediada por uma
obra, Bourriaud considera que a forma artística assume consistência, somente neste aspecto:
Esses encontros não se apresentam como representações, mas criam modelos. Estes
modelos criam “domínios de trocas “ particulares. Para criar um mundo , uma possibilidade ,
um modelo, este encontro considerado fortuito deve se tornar duradouro. “Os elementos que
constituem devem se unificar numa forma, isto é, os elementos têm de dar liga.”
( BOURRIAUD, 2009, p.27) Então além dos vínculos entre estas formas a relação tempo
espaço exercem um papel determinante na formação da obra relacional.
Compreendendo melhor esta forma subjetiva da arte contemporânea, entendo,
concordando com Bourriaud, que como resultado de uma sociedade regada por imagens,
fotográficas, midiáticas e cinematográficas, a percepção e a experiência visual torna-se mais
complexa. A experiência de se apreender um conjunto de tomadas de cenas , um plano de
seqüências formando a unidade do vídeo, permite-nos entender que mesmo relações entre
elementos e signos aparentemente diversos podem se unir em uma forma única, ligados por
um leque de relações criadas pela interação e o tempo de duração destes encontros, “que não
estão ligados por nenhuma matéria unificadora, nenhum bronze.” (BOURRIAUD, 2009,
p.28).
A forma da arte hoje é eclética, mas não um ecleticismo pejorativo, e sim entendam
público e artistas num mesmo patamar de consumo de um grande banquete cultural e
histórico. “A chave do dilema encontra-se na instauração de processos e práticas que nos
permite passar de uma cultura de consumo para uma cultura de atividade, da passividade
diante do estoque [eclético] disponível de signos para práticas de responsabilização.”
(BOURRIAUD, 2009a, p.108)
Usar as infindáveis possibilidades imagéticas em uma sociedade movida pelas
27
informações visuais é não assumir uma postura de depósito. Os artistas reativam as formas,
habitando-as. Para Bourriaud ( 2009a, p. 110) se hoje esta reutilização e esta apropriação das
imagens do mundo de uma forma geral é uma questão importante, “ é porque elas convidam a
considerar a cultura mundial como uma caixa de ferramentas, e não como um espaço
narrativo aberto, unívoco, e uma gama de produtos acabados.”
Numa sociedade regida pelo poder tecno-mercantil, a padronização dos gostos da
estética em geral, ou seja, dos desejos de consumo, representam uma ameaça a liberdade de
juízo. Por outro lado permitem um estreitamento das relações globais, facilitando o universo
da comunicação e das linguagens que tendem a se formatar em conceitos generalistas e
“totais”.
28
Para Sonia Salcedo del Castilho (2008, p. 42) já no início do século XX, os
procedimentos artísticos modernos exigiam das exposições novos padrões que atendessem as
necessidades de montagem, de modo que facilitassem as possíveis interpretações do público.
Como exemplo que atendia esses novos padrões, Castilho cita a exposição “concebida
como acontecimento”, a Secessão de Viena em 1902. Sua formatação permitia que o
espectador assumisse o papel de “vetor ou veículo” de um campo estético em um espaço
“como um teatro mudo” (CASTILHO, 2008, p.43). Para termos idéia da importância da
montagem desta exposição, a autora afirma que possivelmente a Secessão de Viena de 1902 ,
anunciava o que mais tarde, em 1950, viria a ser os Happenings10.
Tendo isso podemos afirmar que os critérios expositivos adaptavam-se aos novos
modos de produção da arte, e propunham junto as obras uma nova maneira de se relacionar
com o público, preocupando-se com um conceito de obra de arte total, com o mesmo
princípio de se unir arte e vida.
Para Castilho esta tentativa de vinculação entre arte e vida é ainda mais remota: estaria
presente já nas idéias Românticas do século XVIII. No entanto esta expressão “total” da arte,
concebida através da montagem e curadoria, segundo Ekehard Mai ( apud CASTILHO, 2008,
p.46), permitiu que se iniciasse uma forma de exposição que ao se preocupar com o todo
espacial, “tornava vulnerável a independência de cada objeto” e ainda, Mai considerou este
10
“O termo happening é criado no fim dos anos 1950 pelo americano Allan Kaprow para designar uma
forma de arte que combina artes visuais e um teatro sui generis, sem texto nem representação. Nos espetáculos,
distintos materiais e elementos são orquestrados de forma a aproximar o espectador, fazendo-o participar da cena
proposta pelo artista. Os eventos apresentam estrutura flexível, sem começo, meio e fim. As improvisações
conduzem a cena - ritmada pelas idéias de acaso e espontaneidade - em contextos variados como ruas, antigos
lofts, lojas vazias e outros. O happening ocorre em tempo real, como o teatro e a ópera, mas recusa as
convenções artísticas. Não há enredo, apenas palavras sem sentido literal, assim como não há separação entre o
público e o espetáculo. Do mesmo modo, os "atores" não são profissionais, mas pessoas comuns.” ( Itaú
Cultural. Enciclopédia do Itaú Cultural: Artes Visuais.
Disponível em http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?
fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3647, acesso em 12-08-2010.
29
formato, um terreno perigoso “uma vez que sua fruição era guiada por uma espécie de
mediação expressiva e interpretativa, que privilegiava a unidade do conjunto” e não as
especificidades de cada obra.
“Os temas curatoriais, assim como Bethoven [ tema da Sucessão de 1902], buscando
unidade visual, conciliam toda a lógica expositiva, impulsionando a sintaxe espacial de
diferentes expressões artísticas, principalmente nas mega exposições. (CASTILHO, 2008,
p.46)” Este sentido de unidade, sem dúvidas, concordando com Castilho, esta presente nas
ações curatoriais nos dias de hoje. O que as tornam “mega eventos”, e não somente
exposições ou mostras de cunho contemplativo.
Na transição do século XIX para o XX, a discussão da funcionalidade do artista numa
sociedade em extremo desenvolvimento econômico era constantemente discutida. A burguesia
de modo geral não tinha interesse pela arte, mas consumia como status social. Os artistas
numa tentativa incessante de transgressividade, eram tidos como problemáticos e muitas
foram as frentes que se abriram para tentar incorporá-los no âmbito das artes liberais.
“Conscientes de que o artista rejeitado pela crítica poderia, no futuro, alcançar preços mais
elevados, muitas vezes esses mercadores se antecipavam à critica em busca de novos 'valores'
artísticos.” ( CASTILHO, 2008, p. 47)
Estas relações de arte e mercado, influenciaram definitivamente na funcionalidade das
exposições. Passaram de mostras a eventos, que pretendiam envolver o público mais do que
informar ou mostrar as produções artísticas.
Desta forma as exposições coletivas retiravam a fruição particular das obras em prol de um
valor coletivo.(CASTILHO, 2008, p.75)
Para compreendermos as curadorias atuais, devemos voltar o olhar atentamente para
esses interesses das mostras coletivas do passado, e considerar a abertura de possibilidades e
linguagens possíveis numa contemporaneidade do consumo.
No Brasil a história das mega exposições de arte, inicia-se com a primeira Bienal de
São Paulo em 1951, que objetivava transformar São Paulo num centro artístico nacional ao
mesmo tempo que atualizava culturalmente, as concepções de arte moderna provenientes do
circuito internacional. Para Francisco Alambert e Polyanna Canhetê, de 1951, até o fim dos
anos 1960 – assediada pela ditadura – a Bienal representou o processo de formação cultural
no Brasil. “ A mostra mudou continuamente, às vezes para o bem, as vezes para o mal , mas
sempre marcando época , passo a passo com as mudanças na arte e na cultura de São Paulo,
do Brasil e do mundo.” (ALAMBERT; CANHETÊ, 2004, p. 12)
Ainda nas palavras destes autores, (Idem, p.13) nenhuma edição da Bienal passou sem
causar fervor, críticas, polêmicas e discussões e desta forma se estabeleceu como um
acontecimento único na cultura brasileira. “Olhar para a história da Bienal de São Paulo é
também caracterizar o estado da arte e a história do Brasil.”
A princípio Ciccilio Matarazzo, empresário e idealizador da Bienal de São Paulo,
inspirado na Bienal de Veneza, primava pela formação de um acervo de arte moderna no
Brasil. Com o tempo as Bienais passaram a atender interesses econômicos e políticos,
variando sua formatação principalmente pela ação dos curadores.
Mas é somente na história mais recente, nas duas décadas finais do século XX e no
início do século XXI que a ação curatorial torna-se crucial para o desenvolvimento das
mostras. Em meio a problemas administrativos, políticos, e boicotes, as curadorias a partir da
década de 80 deixaram suas assinaturas definitivas na maneira de se olhar a arte e se pensar a
Bienal.
De acordo com Laura de Castro (Os Museus e os Curadores, S/D) a ação curatorial
tem se tornado, importante ferramenta facilitadora de uma experiência estética, na relação arte
31
e público, fazendo com que o espaço expositivo deixe de ser apenas um espaço de
armazenamento e cuidado de obras artísticas e passe a ser um espaço que propõem um nível
de experiência sensorial total, aproximando as relações do público com as possíveis
significações da Arte, nestes termos a curadoria passa a ser um instrumento mediador.
Para Marilúcia Bottallo, é a partir dos anos 80 que ganha destaque a figura do
chamado curador independente, e sobretudo durante os anos 90, torna-se o centro de muitos
debates de caráter ideológico e ético. (Bottallo, 2004, p. 41)
Ao contrario do que Castilho (2008, passim) afirma sobre a perda de identidade das
obras em exposições no âmbito internacional histórico, que visavam uma forma total, Bottalo
(2004) nos esclarece que no Brasil, a figura do curador independente, surge de forma
“auspiciosa” quando Walter Zanini aceita o convite para assumir a curadoria das Bienais de
São Paulo de 1981 e em sequência de 1983:
as pinturas.
Estas foram os dois grandes marcos curatorias, referências das Bienais de São Paulo,
para podermos compreender o processo que resultou nas curadorias atuais, como exemplo a
de Lisete Lagnado , objeto desta pesquisa, possibilitando identificarmos aproximações ou
divergências desta realidade brasileira com as teorias relacionais do crítico francês
contemporâneo Nicolas Bourriaud.
Hélio Oiticica e Ligia Clark exploravam as relações arte e vida através de formas
interativas e dinâmicas que extrapolavam as concepções tradicionais da forma. Por isso a
convergência conceitual entre a teoria de Bourriaud e a curadoria de Lisete Lagnado, não
pode ser vista como uma mera aplicação prática das teorias do critico francês. Lagnado
considera, que o programa ambiental de Oiticica e seu sentido ético-social, “repercute hoje,
mais do que quando foi elaborado, nas práticas artísticas contemporâneas. Algumas idéias,
como a passagem do museu para o mundo, refletem o modo como as pessoas se organizariam
cotidianamente na esfera social” (LAGNADO apud: FIALHO, 2006)
Acredito que Lagnado, como sujeito de um mesmo mundo globalizado, tenha em suas
experiências estéticas, fatores próximos a que Bourriaud obteve. E mesmo sendo objetos de
histórias geograficamente distantes, partilham concepções relacionais convergentes.
Fialho(2006), acredita que a divergência entre Lagnado e Bourriaud sobre os
antecedentes de uma estética relacional, surgem na verdade em uma questão mais ampla, de
ordem geo-política, que é a compreensão da história da arte de forma geral.
11
Trocas, organizado por Rosa Martinez (09-10/10/06), defende a idéia de intercâmbio como uma maneira
mais otimista de relação entre as pessoas, e integra o conjunto de seis seminários que fazem parte do projeto
educativo da 27ª Bienal de São Paulo. Estes seminários eram abertos ao público e visavam proporcionar um
entendimento mais crítico e menos estético, de maneira acessível a todo o público.
36
Esta colocação se torna importante para que possa prosseguir com a análise curatorial
de Lagnado, sem que o leitor conclua que a obra de Bourriaud interfere ou interferiu de
maneira direta nos acontecimentos artísticos contemporâneos, como Clement Greemberg e
sua “planaridade” em certa fatia da vanguarda moderna.
Pelo contrário, foi a partir da observação das produções contemporâneas que Nicolas
Bourriaud pode construir seu pensamento. E a partir do legado da arte brasileira
contemporânea, e os conceitos experimentalistas de Oiticica, que Lagnado concebeu sua
curadoria da 27ª Bienal de São Paulo.
O que procuro, são convergências, proximidades que possibilitem talvez, medir o
quanto os conceitos contemporâneos de arte podem estar unificados no sentido de partilharem
um mesmo propósito. E então, como exemplo, olhamos Borriaud e a Bienal de Lisete.
12
Ana Letícia Fialho (2006) considera que Bourriaud “faz muito pouca referência aos antecedentes de sua
estética relacional. [...]o problema mais grave nas propostas de Bourriaud não se refere à estética que ele
defende, mas à fragilidade de seus fundamentos teóricos. Existe no livro um certo eurocentrismo somado a uma
ausência de perspectiva histórica, além de uma utilização superficial e utilitária de certos autores, como Marx,
Deleuze e Guattari, Lyotard.”
O problema seria uma falta de referenciação e embasamento teórico histórico e não o desprezo total
com o modernismo, mesmo que considere somente a história internacional.
38
Para tanto cita Mario Pedrosa, quando afirma que “o Brasil é um país condenado ao
moderno.” Mas considera que no contexto desta Bienal , “moderno significa a reinvenção
permanente”.( LAGNADO, 2006a, p. 16)
As idéias de Lagnado, se aproximam de uma estética relacional principalmente na
maneira em que ela estrutura o evento Bienal. De acordo com o Professor Cauê Alves (2006,
p.16) para a revista Bien ´Art, a pergunta que mais se ouviu nos corredores da 27ª Bienal de
São Paulo, foi a tradicional: “Mas isto é arte?”
Para Cauê, esta questão, nesta Bienal, seja intensamente retomada pela escolha
curatorial de artistas que tendem a se distanciar da arte apenas como uma experiência estética.
Fica claro que no recorte curatorial estão presentes as concepções estéticas propostas
por Bourriaud, em que a estética contemporânea não esta intimamente ligada a forma , mas a
formações. Mas também é claro que só percebemos esta congruência, pela aproximação dos
conceitos de Oiticica e Roland Barthes, – fundamentais para um entendimento na relação Arte
e Vida, e utilizados por Lagnado, – com a percepção relacionada a arte dos anos 1990 de
Bourriaud. Não é por acaso, como já foi dito, que artistas citados como exemplos relacionais
em Bourriaud estão presentes com seus trabalhos na Bienal de Lagnado. Entre eles:
Domenique Gonzalez-Foster e Felix Gonzales-Torres.
Reconhecidas as proximidades, entre o pensamento de Lisette Lagnado e Nicolas
Bourriaud, temos que considerar seus aspectos históricos locais diferenciados.
Lisete Lagnado ( 2006a, p. 16) afirma que : “o conceito da 27ª Bienal, situa-se no
cruzamento de duas linhas de pensamento que estão na base do Programa Ambiental de Hélio
Oiticica : o sentido de 'construção', próprio da experiência neoconcreta brasileira, e um 'adeus
ao esteticismo'.” Ou seja a concepção brasileira de uma estética relacional estaria ligada a
nossa própria realidade histórica. Principalmente ao Neoconcretismo e as contribuições
estéticas de Hélio Oiticica desde a década de 1960.
Ao continuarmos a leitura do texto de Lagnado, presente no Guia da 27ª Bienal de São
Paulo, ela traduz sua concepção em duas linhas que ela denomina: Projetos Construtivos e
39
Programas para a Vida. Lembramos então a descrição de Bourriaud para a nova forma da arte
relacional, em que são propostos realidades possíveis, ambientes de experimentações de
outras sociabilidades, e por que não “programas para a vida”.
A 27° Bienal por si só poderia ser considerada uma “formação”, por ser um evento de
cunho cultural que promove relações de trocas e serve-se das diferentes propostas artísticas
contemporâneas, em boa parte interativas.
Bienal. Em texto, Manoel Francisco Pires da Costa , presidente da Fundação Bienal ( 2006,
p.5), afirma que os resultados desta Bienal têm importância histórica por consolidar todos os
critérios adotados pela Fundação Bienal , que seriam:
durante toda a Bienal se formavam filas para poder visitar a obra. Entrar ou não era uma
escolha.
Detalhe da instalação Restore Now, de Thomas Hirschhorn, na 27ª Bienal de São Paulo, 2006 e foto do
exterior da obra no canto inferior direito.
O expectador, ou o público que se propôs participar deste grande evento, a 27ª Bienal
de São Paulo, pode ter suas escolhas. Criou seu próprio roteiro, foi dono de sua experiência
propondo trocas a medida de seus interesses. Este aspecto que não é descrito através de uma
forma, e sim de um contexto, que é o que torna possível considerarmos a 27ª Bienal de São
Paulo, Como Viver Junto , um exemplo pontual da Estética Relacional resultante da sociedade
contemporânea globalizada.
Os conceitos de coexistências e coabitações, tão citadas por Bourriaud contemplam
posicionar na fila para poder entrar na obra de Hirchhorn – na ocasião estava grávida – , fui alertada pelo
segurança que a obra continha cenas fortes de violência. É que junto com toda a instalação de ferramentas e
livros de filosofia, fotografias de pessoas mutiladas e mortas de maneira brutal, pela barbárie das Guerras e
atentados, dialogavam com todo o contexto da instalação e davam sentido as formas.
42
todo o trabalho de Lagnado. A curadora parece querer ao mesmo tempo quebrar com a força
tradicionalista da organização por representações nacionais, dando mais autonomia a mostra ,
e sair de cena, para dar o primeiro plano para a exposição.
Autonomia parece ser a palavra chave, e ao mesmo tempo o segredo para que os
diferentes organismos possam sobreviver coabitando o mesmo espaço. Lagnado assume um
papel autoral que podemos aproximar da figura do artista contemporâneo quando divide ou
fragmenta seu trabalho com outros curadores e cria núcleos de interesses para atender
diferentes áreas do evento.
Em sua equipe Lisete contou não somente com outros curadores, mas com uma equipe
multidisciplinar, composta por educadores, psicanalistas, cientistas-políticos, antropologistas
e historiadores de arte. ( ALCIOLI; BOTELHO, 2006) A própria ação curatorial neste sentido
ganha ares relacionais. Destaque para a proposta das residências artísticas internacionais, em
que dez artistas de diferentes países, puseram em confronto suas experiências pessoais com a
cultura brasileira. Estreitando as barreiras geopolíticas, não somente nos termos expositivos,
mas também nos processos de criação.
14
Jardim Miriam Arte Clube: “misto de ateliê coletivo, escola, oficina de estamparia e minibiblioteca
integrados em um único, limpo, claro e amplo galpão – há um cartaz com a foto e uma frase de Maratma Gandhi:
' Nos devemos ser a mudança que queremos ver no mudo'” ( MORAES, 2006, p. 40) O JAMAC foi fundado em
2003 por Mônica Nador, no Jardim Miriam , Periferia de São Paulo. Participou da 27ª Bienal de São Paulo com
obras no pavilhão de exposições, intervenções na Galeria Vermelho (SP) e como núcleo de debates e ações
artísticas da zona leste, onde Jarbas Lopes promoveu um Happening em que convidava artistas brasileiros a
interagirem com a comunidade. ( MORAES, 2006, p. 40)
43
simplesmente outros lugares para mostrar a arte.” ( BOURRIAUD, 2009 a , p. 83) Bourriaud
considera não existir mais um lugar certo para o acontecimento arte, visto sua consideração
sobre a estética das relações possíveis e interpessoais, qualquer lugar torna-se um ambiente de
trocas possíveis.
Considerando todos estes aspectos podemos listar em que termos a ação curatorial de
Lisete, entra em convergência com o discurso da teoria Estética Relacional de Nicolas
Bourriaud.
Jane Alexander. Foto da obra baseada nos genocídios africanos. 27ª Bienal de São
Paulo, 2006.
Guy Tillim . Série Leopold e Mobutu. Maria Galindo. Detalhe da sala de exposição de
Fotografia. 27ª Bienal de São Paulo, 2006. suas fotografias. 27ª Bienal de São Paulo, 2006
45
Laura Lima vestida com sua obra. 27ª Bienal de São Paulo, 2006
Para Lagnado a prática do Como Viver Junto, permitiu uma curadoria inovadora, que
ao mesmo tempo deixa sua marca autoral transformando o evento em algo maior, em uma
totalidade, sem que as barreiras individuais sejam quebradas.
47
Tratando da questão do espaço, além da Bienal ampliar sua extensão rompendo com a
formalidade do espaço expositivo, procurando aproximar o público em geral, numa busca
principalmente em acabar com a elitização da arte, e com a exclusão social do conhecimento,
o espaço também foi trabalhado em questões que discutiam as relações entre arte e
arquitetura. Fialho (2006), ao relatar a palestra proferida por Bourriaud no Seminário Trocas,
pertencente ao programa da Bienal, destaca esta relação considerada por Bourriaud, como um
dos principais nortes da arte relacional. Este pensamento estaria intimamente ligado ao
sistema de reaproveitamento das formas: “É preciso recusar a natureza das coisas, a idéia de
que não há nada a ser mudado. A estética relacional recusa essa idéia de não mudar a natureza
das coisas. Ao mesmo tempo, há a idéia de que podemos usar o mundo, (reaproveitar) as
formas que estão disponíveis no mundo.” (BOURRIAUD , apud: FIALHO, 2006)
Isto também nos leva a pensar sobre as questões políticas. Fialho (2006), afirma que
Bourriaud frequentemente é acusado pela crítica, por supostamente, sua Estética Relacional
propôr uma “despolitização” da arte. Porém, “para ele, há um valor político na estética
relacional que deriva de dois fatores basicamente: 1) A realidade social é produto de
negociações; 2) A democracia é, ela mesma, uma combinação de formas”. (FIALHO , 2006)
Bourriaud, apoia-se principalmente nas questões políticas relacionadas a forma, o que
me faz lembrar de outro artista escalado para esta Bienal que trabalha as questões urbanas de
espaço. Marcelo Cidade, em sua entrevista para o Guia da Bienal (FUNDAÇÃO BIENAL DE
SÃO PAULO, 2006, p.152), afirma que para ele o importante é deixar claro que, “qualquer
discussão sobre o espaço, é sempre uma discussão política”.
Para Ana Letícia Fialho, uma das questões mais interessantes da produção de
Bourriaud, é a aplicação do seu conceito de estética relacional ao campo institucional. E é
neste sentido que percebemos a maioria das aproximações e possíveis utilizações da teoria da
Estética Relacional.
Estas posturas geraram um grande sucesso de público para o Palais de Tokyo. E até
hoje, mesmo Bourriaud e Jerôme Sens tendo deixado sua direção, estes fatores continuam
contribuindo para que a estética relacional se consolide como um conceito interessante para se
pensar a arte contemporânea, sobretudo no plano institucional. ( FIALHO , 2006)
Lagnado talvez, tenha implantado ao menos um pouco desta visão diferenciada do
papel Institucional da Arte no Brasil. As aproximações aqui sugeridas entre Bourriaud e
Lagnado, tem apenas o intuito de se fazer pensar em um possível papel da arte em nossa
sociedade, e a responsabilidade atribuída ao artista e ao curador.
“Como viver junto é também saber dosar uma justa distância com o outro”
(LAGNADO, 2006 , p.5). Lagnado criou um grande arquipélogo, termo que empresto de
Agnaldo Farias, quando procura entender a arte contemporânea, na Introdução do seu livro
Arte Brasileira Hoje (2002). Arquipélogo porque parte da idéia da valorização das
individualidades. “Um arquipélogo porque cada obra engendra uma ilha, com topografia,
atmosfera e vegetação particulares, eventualmente semelhante a outra ilha, mas sem
confundir-se com ela. Percorrê-la com cuidado equivale a vivenciá-la, perceber o que só ela
oferece.”( FARIAS, 2002, p.20)
Este talvez tenha sido o grande trunfo de Lisete Lagnado para com a arte
contemporânea, a Bienal de São Paulo e o panorama cultural nacional. Sua contribuição na
história das Bienais talvez ainda não seja totalmente visível, mas ao olharmos para as edições
posteriores, de Ivo Mesquita em 2008 com o tema Em Vivo Contato, conhecida também como
a “Bienal do Vazio”, e para a edição atual de Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos (2010) que
traz o tema Há sempre um copo de mar para um homem navegar, podem demonstrar certas
reações e/ou continuidades do projeto Como viver Junto de 2006.
49
5 CONCLUSÃO
6 REFERÊNCIAS
27ª Bienal de São Paulo: Como Viver Junto: Guia.; LAGNADO, Lisete; PEDROSA, Adriano
(ed.). São Paulo: Fundação Bienal, 2006. pp 16-254
ALAMBERT, Francisco; CANHÊTE, Polyana. Bienais de São Paulo: da era do Museu à era
dos curadores. São Paulo: Boitempo, 2004.
ALVES, Cauê. Mas isto é arte? In.: 27ª Bienal de São Paulo: Revista Bien´Art. São Paulo:
Fundação Bienal de São Paulo, Editora TPT, 2006. nº25. p.16.
ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
COSTA, Manoel Francisco Pires da. A opção foi certa: ousadia e inovação. In.: 27ª Bienal de
São Paulo: Revista Bien´Art:. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, Editora TPT, 2006.
nº25. p.5.
FABRINI, Ricardo. Arte relacional e regime estético: a cultura da atividade dos anos 1990.
Revista Científica / FAP, Curitiba, nº 05, jan-jun. 2010 (no prelo).
FREITAS, Artur. Sobre a arte Literalista. In: Canal Contemporâneo.(2008) Disponível em:
http://www.canalcontemporaneo.art.br/arteemcirculacao/archives/001981.html
Acesso em 13/04/2010
FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Bien´Art: 27ª Bienal de São Paulo. São Paulo:
Editora TPT, nº25, 2006.
HORA, Daniel. Territórios ocupados. In.: In: 27ª Bienal de São Paulo.: Revista Bravo!.São
Paulo: Editora Abril, Ano 10, n°110, outubro 2006. p. 34-37
LAGNADO, Lisete. In.: Bate-papo com Lisete Lagnado-27/11/2006 às 18h. Bate Papo
Portal Uol. Disponível em :http://tc.batepapo.uol.com.br/convidados/arquivo/arte/
53
LAGNADO, Lisete. Introdução. In.: 27ª Bienal de São Paulo-Como Viver Junto: Guia.
LAGNADO, Lisete; PEDROSA, Adriano (ed.). São Paulo: Fundação Bienal, 2006a.
MORAES, Angélica de. Fome de Beleza. In.: 27ª Bienal de São Paulo.: Revista Bravo!.São
Paulo: Editora Abril, Ano 10, n°110, outubro 2006. p 40-41.
OLIVA, Fernando. Mensagem para o Futuro. In: 27ª Bienal de São Paulo.: Revista
Bravo!.São Paulo: Editora Abril, Ano 10, n°110, outubro 2006. p 26-34.
REZENDE, Marcelo.Uma artista Inquieta e Curiosa. In.In: 27ª Bienal de São Paulo.: Revista
Bravo!.São Paulo: Editora Abril, Ano 10, n°110, outubro 2006.p 38-39.