Você está na página 1de 228

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA

FÁBIO GOMES DE FRANÇA

SOB A APARÊNCIA DA ORDEM


Sociabilidade e Relações de Poder na Implantação da Polícia Solidária em João Pessoa - PB

JOÃO PESSOA – PB
2014
2

FÁBIO GOMES DE FRANÇA

SOB A APARÊNCIA DA ORDEM


Sociabilidade e Relações de Poder na Implantação da Polícia Solidária em João Pessoa - PB

Trabalho apresentado como requisito para a


obtenção do título de Doutor em Sociologia,
na linha de pesquisa Cultura e Sociabilidades,
pelo Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal da
Paraíba, sob a orientação da Profª. Drª. Simone
Magalhães Brito.

JOÃO PESSOA – PB
2014
3

F814s França, Fábio Gomes de.


Sob a aparência da ordem: sociabilidade e
relações de poder na implantação da polícia
solidária em João Pessoa-PB / Fábio Gomes de
França.- João Pessoa, 2014.
226f. : il.
Orientadora: Simone Magalhães Brito
Tese (Doutorado) - UFPB/CCHL
1. Sociologia. 2. Cultura e sociabilidades. 3.
Polícia solidária - João Pessoa-PB. 4. Biopolítica. 5.
Controle social.

UFPB/BC CDU:
316(043)
4
5

Dedico todas as palavras desta


empreitada intelectual a três
pessoas que dividem comigo
grandes momentos de suas
existencialidades: Jonas Do
Monte, Rubens e Verônica.
6

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Simone Magalhães Brito por mais uma vez ter-me
possibilitado uma orientação pautada na atenção, dedicação, carinho e respeito próprios de um
processo de construção intelectual onde prevaleceu a aprendizagem mútua, o que me levou,
assim como ocorrido na ocasião do mestrado,a buscar de forma incessante um mundo pelo
qual a ciência nos ajuda a entender o que é o homem em sua relação com os outros e as
formas de ser e estar no mundo.
Gostaria de agradecer imensamente aos professores Adriano de León, Rogério
Medeiros e Nildo Avelino, todos da UFPB, pela valiosa contribuição dispendida durante a
banca de qualificação desta pesquisa, bem como, pelo aceite em participar da banca final.
Some-se a eles, os meus sinceros agradecimentos ao Profº Leonardo Damasceno de Sá, da
Universidade Federal do Ceará, pela presteza e atenção com que aceitou participar da banca
final.
Em especial à minha saudosíssima irmã Elizabeth, a quem não pude dizer adeus para
agradecer-lhe por todo o empenho dedicado à educação que recebi quando criança e
quandojovem, a qual foi imprescindível para que eu pudesse chegar a este momento. Sua
imagem é concreta em meu coração e a saudade um sentimento que me faz querer vencer para
enaltecer o meu amor diante de sua ausência.
A Rubens Elias, pela presença constante em minha vida. Para além da amizade, pelo
rico amadurecimento que foi fomentado por uma dupla biografia que a vida preservou com
muito esmero e respeito. Pelo fato de termos criado laços fraternais que nos constroem e
protegem até hoje.
À Verônica, por sua amizade, sutileza e sinceridade na hora de me engrandecer com as
palavras mais caras que me ajudam a guiar-me por um caminho traçado com muitos percalços
e alegrias.
Ao meu sempre presente “brother” Do Monte, cuja distância não é capaz de apagar a
saudade que invade o coração nos momentos de reflexão e cujo jeito militante de encarar o
mundo faz dele meu pequeno-grande herói desta passagem ditada pela raridade de grandes
amizades.
7

A Thiago Cavalcante pela construção de uma amizade pautada na confiança, no


respeito e na possibilidade de compartilharmos um mundo cheio de descobertas que nos
provam o quão valiosa é nossa companhia recíproca.
À Dona Conceição, Wilta, Nielson, Narla, Francicleide, Cláudia, Mara e Wedson por
terem compartilhado comigo momentos existenciais únicos e terem se transformado numa
verdadeira família, que me consolou nas horas mais difíceis.
À minha mãe e minha irmã Helena. Meu irmão Hélio e sua esposa Elane. A todos os
meus sobrinhos e sobrinhas. Destaco que, sem eles, eu não teria tido as bases necessárias para
chegar até aqui, tanto nos bons como nos maus momentos.
A Lenílson por todos os momentos compartilhados. Por sua energia contagiante em
sempre me mostrar que a vitória é possível mesmo quando passamos a acreditar que não é
mais. A sua amizade é indescritível em minha vida e, se eu pudesse descrevê-la diria que ser
seu amigo é um dom.
Ao meu amigo Adriano de Léon que chegou em minha vida como uma “ilha
existencial” que preenche minha alma sempre que nos permitimos estar juntos.
Mais uma vez à memória de meu pai que, ao comprar-me, quando de meus tempos
infantis, “aquele livro”, ajudou a construir os meus primeiros passos na condução de minha
curiosidade que acabou por conformar-se com o saber científico. Ratifico em dizer que eu
gostaria muitíssimo que hoje ele aqui estivesse para ver que me ajudou na construção de um
homem que pensa sobre o mundo, mas também que sente sua ausência quando a saudade
invade o coração.
Por fim, a todos os policiais militares da Polícia Militar da Paraíba, sem os quais,
devido às experiências compartilhadas, eu não poderia ter construído este trabalho. Em
especial ao Tenente-Coronel Júlio César e ao Major Ciro pelo apoio que me foi dado quando
o tempo tornava-se conflituoso para o exercício da profissão PM e as exigências do mundo
acadêmico. Além disso, ainda ressalto um especial abraço a todos os meus alunos policiais, os
quais me fazem cada vez mais descobrir através do conhecimento a possibilidade de
vislumbrar mudanças, em meio a uma cultura organizacional nutrida pelo conservadorismo e
à resistência a inovações.
8

RESUMO

Este trabalho de Tese teve por finalidade analisar a implantação do projeto de policiamento
solidário na cidade de João Pessoa, Estado da Paraíba. Para tanto, partiu-se da hipótese de que
esse programa governamental (o Polícia Solidária) trata-se, na verdade, de formas mais
sofisticadas de controle social por parte do Estado em relação às comunidades onde o
policiamento atua. Desse modo, o problema de tese fundamentou-se em questionar como
novas relações de poder se estabelecem no exercício de uma forma de sociabilidade que não
mais diz respeito ao modo repressivo da Polícia Militar atuar, e sim por formas consideradas
mais democráticas e cidadãs. Nesse percurso, contextualizamos historicamente como emergiu
o discurso sobre o policiamento comunitário e a suposta falência do modelo tradicional de
polícia, de cunho reativo e repressivo. Mostramos também como se configura o modelo
comunitário de policiamento cunhado de solidário em João Pessoa (desde as políticas
governamentais às características dos postos de policiamento que foram implantados). Assim,
com base na perspectiva teórica foucautiana, em diálogo com autores como Norbert Elias,
David Garland e Giorgio Agamben, chegamos à conclusão de que o projeto trata-se, na
verdade, de uma forma de atuação biopolítica que, ao mesmo tempo em que desenvolve
modos de normalização das populações envolvidas, cria o discurso de proteção das
comunidades das classes consideradas perigosas. Ainda mais, demonstramos haver uma
relação intrincada entre o que chamamos de distinção policial militar e os mecanismos
biopolíticos. A partir da análise de documentos diversos e dos dados etnográficos (observação
participante e entrevistas), concluímos que nesse processo, dada a complexidade de sua
configuração, os envolvidos desconhecem a “estratégia” que suas ações articulam, as quais
possibilitam o exercício de relações de poder que a partir das políticas estatais mantêm um
controle social mais efetivo sobre a vida das pessoas nas comunidades. Esse controle enseja
uma vigilância policial maior das mesmas e fortalece a dinâmica de manutenção do Estado, da
distinção entre policiais e sociedade e a permanência de um status quo pautado nas
desigualdades sociais e controle dos desfavorecidos socialmente.

Palavras-chave: Polícia Solidária; biopolítica; controle social.


9

ABSTRACT

This thesis work aims at examining the project implementation of solidarity policing in the
city of João Pessoa, State of Paraiba. To do so, we started with the hypothesis that this
government program (the Solidarity Police) it is actually more sophisticated forms of social
control by the State in relation to policing communities where it operates. Thus, the problem
of the thesis was based on the question how new power relations are established to exercise a
form of sociability that no longer concerns the way repressive military police work, but in
ways considered more democratic and citizen. Along the way, we contextualize historically
how emerged the discourse on community policing and the alleged failure of traditional
policing model, reactive and repressive nature. We also show how to set up community
policing model of solidarity coined in João Pessoa (from government policies to the
characteristics of police stations that were deployed). So based on foucautiana theoretical
perspective in dialogue with authors like Norbert Elias, David Garland and Giorgio Agamben,
we conclude that the project it is actually a form of biopolitics acting at the same time
develops ways of standardizing the populations involved, creates the discourse of protecting
communities of classes considered dangerous. Further, we demonstrate to be a intricate
relationship between what we call the military police distinction and thebiopolitical
mechanisms. From the analysis of various documents and ethnographic data (participant
observation and interviews), we conclude that in this process, given the complexity of your
setup, those involved are unaware of the "strategy" their actionsarticulate, which enable the
exercise of relations power from government policies maintain a more effective social control
over people's lives in communities. This control entails greater police surveillance of them
and strengthens the dynamic maintenance of the state, the distinction between police and
society and the permanence of a status quo ruled in social inequalities and control of socially
disadvantaged.

Key words:Solidarity Police; biopolitics; social control.


10

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Capacitados em Polícia Comunitária na PMPB (1998-2013)----------------------78


Quadro 2 – Quadro Hierárquico da PMPB--------------------------------------------------------222
11

LISTA DE SIGLAS

AISP – Área Integrada de Segurança Pública e Defesa Social


APP – Área de Policiamento Preventivo
BPM – Batalhão de Polícia Militar
CPM – Colégio da Polícia Militar
CPRM – Comando de Policiamento da Região Metropolitana
CLPM – Consolidação das Leis da Polícia Militar
CVLI – Crimes Violentos Letais intencionais
CVP – Crimes Violentos Patrimoniais
CESP – Curso de Especialização em Segurança Pública
CFO – Curso de Formação de Oficiais
CHO – Curso de Habilitação de Oficiais
DISP – Distrito Integrado de Segurança Pública e Defesa Social
ESG – Escola Superior de Guerra
FEB – Força Expedicionária Brasileira
GPAE – Grupamento de Policiamento em Áreas Especializadas
IPM – Inquérito Policial Militar
MCN – Matriz Curricular Nacional
PESP – Plano Estadual de Segurança Pública
PNSP - Plano Nacional de Segurança Pública
PMPB – Polícia Militar do Estado da Paraíba
REISP – Região Integrada de Segurança Pública e Defesa Social
RDPM – Regulamento Disciplinar da Polícia Militar
SAPP – Sub-áreas de Polícia Preventiva
SNI – Sistema Nacional de Informações
UPP – Unidade de Polícia Pacificadora
UPS – Unidade de Polícia Solidária
12

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Cartaz do programa de policiamento solidário em João Pessoa-PB------------------35


Figura 2: Frase que denota “Linha solidária”, numa viatura da Polícia Militar em João
Pessoa-PB-------------------------------------------------------------------------------------------------35
Figuras 3 (Esquerda) e 4 (Direita): Instrução do Exército sobre revista a pessoas e veículos
no 16º RCMEC em Bayeux (Paraíba) ----------------------------------------------------------------47
Figura 5: Quadrantes de Polícia Solidária na região do Bairro São José e Manaíra-----------75
Figura 6: Divisão geográfica do Estado da Paraíba segundo o Sistema de Segurança Pública--
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------75
Figuras 7 e 8: Imagens do exterior do Posto de Policiamento Solidário de Mandacarú/Alto do
Céu---------------------------------------------------------------------------------------------------------79
Figuras 9 e 10: Imagens do interior da UPS de Mandacarú/Alto do Céu------------------------80
Figura 11: Uma rua inteira abandonada em Mandacarú por conta da violência----------------82
Figuras 12 e 13: Inscrições com siglas que identificam as Facções que atuam nos bairros de
Mandacarú/Alto do Céu---------------------------------------------------------------------------------83
Figuras 14, 15, 16, 17: Imagens da periferia do bairro de Mandacarú, locais onde, segundo os
policiais militares da UPS, atuam os traficantes-----------------------------------------------------84
Figuras 18 e 19: Frente da UPS do bairro São José (esquerda). Sala de recepção da UPS
(direita)----------------------------------------------------------------------------------------------------87
Figuras 20 e 21: Imagens da UPS do Bola na Rede------------------------------------------------87
Figuras 22 e 23: Imagens da UPS do Róger---------------------------------------------------------90
Figura 24: UPS de Jaguaribe--------------------------------------------------------------------------91
Figura 25: Índices indicativos dos Crimes Violentos Letais Intencionais---------------------106

Figura 26: Panfleto contendo propaganda do policiamento solidário--------------------------129


Figura 27: Logomarca da Polícia Solidária--------------------------------------------------------132
Figura 28 (esquerda): Cadete da PMPB usando o azulão, uniforme que se destaca pelo uso de
apetrechos como a barretina, ou seja, cobertura adornada com penachos vermelhos que
remetem aos tempos do Império brasileiro ---------------------------------------------------------151
Figura 29 (direita): Espadim Tiradentes: espada em miniatura que simboliza a passagem dos
cadetes pelo Curso de Formação de Oficiais -------------------------------------------------------152
13

Figura 30: Chegada ao casamento de um cadete da PMPB de um convidado policial militar


vestido com a túnica utilizada em momentos solenes como a comemoração referida. Os
cadetes se colocam no corredor da igreja vestidos com o azulão e empunhando o espadim-152
Figura 31: Cadetes do 1º Ano “pagam flexões” com os do 3º Ano durante a semana de
adaptação dos recém-egressos na Polícia Militar---------------------------------------------------167
Figura 32: Os cadetes pagam flexão durante uma aula de tiro. A cadete que por motivos de
saúde não pode fazer o exercício fica com os braços distendidos paralelos ao solo-----------168
Figura 33: Os cadetes recebem instrução debaixo de chuva, pois nem os fatores climáticos
devem abater um policial militar---------------------------------------------------------------------168
Figura 34: Um cadete mais antigo ordena que um aluno mais moderno pague flexão dentro
da sala de aula-------------------------------------------------------------------------------------------169
Figuras 35 (Esquerda) e 36 (Direita): Um cadete e uma cadete se arrastam em exercício
noturno---------------------------------------------------------------------------------------------------169
Figuras 37 (Esquerda) e 38 (Direita): Alunos e alunas policiais realizam exercício na barra
fixa--------------------------------------------------------------------------------------------------------170
Figura 39: Alunos policiais militares pagam flexão com roupas civis-------------------------171
Figura 40: Bolo de casamento de dois policiais militares da PMPB (Acima, à esquerda)--174
Figura 41: Bolo de casamento de um Tenente da PMPB (Acima, à direita)------------------174
Figura 42: Bolo de casamento de um policial da PMPB (Abaixo, à esquerda)---------------174
Figura 43: Bolo de casamento de um Tenente da PMPB (Abaixo, à direita)------------------174
Figura 44: Cerimonial do teto de aço ---------------------------------------------------------------175
Figura 45: Casamento de um Soldado da PMPB--------------------------------------------------176
Figura 46: Espada utilizada pelos Oficiais policiais militares que demarca simbolicamente a
posição no Posto de Oficiais -------------------------------------------------------------------------177
Figuras 47 e 48: Alunos policiais militares na posição de sentido de frente a seus superiores
hierárquicos----------------------------------------------------------------------------------------------185
Figura 49: Aluna policial militar durante exercício de aprendizagem na semana de adaptação-
------------------------------------------------------------------------------------------------------------188
Figura 50 (Acima, à esquerda): Escultura encontrada no Centro de Educação simboliza a
honra policial militar com a morte de um PM------------------------------------------------------189
Figura 51 (Acima, à direita): Placa aos pés da escultura do policial morto ratifica
discursivamente o valor da honra policial militar que sacrifica a vida em defesa da sociedade--
------------------------------------------------------------------------------------------------------------189
Figura 52 (Abaixo, à esquerda): Frase que enaltece a honra policial militar------------------190
14

Figura 53 (Abaixo, à direita): Memorial com placas que indicam a morte de policiais
militares em serviço------------------------------------------------------------------------------------190
Figura 54: Cadetes da PMPB em um baile de debutantes com o traje de gala. Todos seguram
o Espadim Tiradentes ----------------------------------------------------------------------------------195
Figura 55 (Acima – esquerda): 2º Tenente da PMPB e o uso da luva (insígnia) por sobre os
ombros em ambos os lados como forma de demonstrar que ele faz parte do círculo dos
Oficiais---------------------------------------------------------------------------------------------------196
Figura 56 (Acima – direita): Luvas ou insígnias usadas pelos Oficiais das Polícias Militares
como forma de distingui-los institucionalmente dos Praças--------------------------------------196
Figura 57 (Abaixo): 2º Tenente da PMPB vestido com o uniforme de passeio---------------197
Figura 58 (Acima): 3º Sargento da PMPB com a divisa correspondente à sua posição
hierárquica no quadro funcional da instituição. As divisas se encontram em ambos os braços--
------------------------------------------------------------------------------------------------------------198
Figura 59 (Abaixo): As divisas que representam as graduações (posições hierárquicas), dos
Praças nas Polícias Militares--------------------------------------------------------------------------198
Figuras 60 (Acima) e 61 (Abaixo): Policiais da PMPB, uma Tenente e um Soldado, com o
uniforme da tropa especializada de choque---------------------------------------------------------199
Figura 62: Insígnias usadas pelos Aspirantes e Cadetes das Polícias Militares---------------223
15

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO-----------------------------------------------------------------------------------------15

CAPÍTULO 1 – A POLÍCIA COMUNITÁRIA E OS NOVOS PADRÕES DE


POLICIAMENTO--------------------------------------------------------------------------------------26
1.1 – DA POLÍCIA TRADICIONAL À POLÍCIA COMUNITÁRIA-------------------27
1.1.1 – A Polícia de Sir Robert Peel---------------------------------------------29
1.1.2 – O discurso sobre a Falência do Modelo Tradicional de Polícia--36
1.1.3 – O Sistema Policial Brasileiro e a Estrutura Militarista------------39
1.2 – O SURGIMENTO DO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO: EXPERIÊNCIAS
NO MUNDO E CARACTERÍSTICAS------------------------------------------------------48
1.3 - OS ESTUDOS SOCIOLÓGICOS SOBRE O POLICIAMENTO
COMUNITÁRIO--------------------------------------------------------------------------------56
1.4 – A HISTÓRIA DO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO NO BRASIL E NA
PARAÍBA----------------------------------------------------------------------------------------65

CAPÍTULO 2 – POR QUE A POLÍCIA SOLIDÁRIA NA PARAÍBA?--------------------72


2.1 – A IMPLANTAÇÃO DO POLICIAMENTO SOLIDÁRIO------------------------72
2.2 - CONHECENDO OS POSTOS COMUNITÁRIOS DO POLICIAMENTO
SOLIDÁRIO----------------------------------------------------------------------------------------------77
2.2.1 – A UPS de Mandacarú-------------------------------------------------------79
2.2.2 – A UPS do São José-----------------------------------------------------------84
2.2.3 – A UPS do Bola na Rede-----------------------------------------------------86
2.2.4 – A UPS do Róger--------------------------------------------------------------89
2.2.5 – A UPS de Jaguaribe---------------------------------------------------------91
2.3 - MAPEANDO OS HOMICÍDIOS NO BRASIL E NO NORDESTE-------------93
2.4 – O PANORAMA DA VIOLÊNCIA E OS HOMICÍDIOS NA PARAÍBA E
JOÃO PESSOA-----------------------------------------------------------------------------------------102

CAPÍTULO 3 – POLICIAMENTO SOLIDÁRIO E BIOPOLÍTICA---------------------109


3.1 - A ORIGEM DAS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS, O PROCESSO DE
CIVILIZAÇÃO MODERNO E O MONOPÓLIO ESTATAL DA FORÇA----------110
3.2 –O “DISPOSITIVO DE DISCIPLINARIZAÇÃO”----------------------------------119
16

3.3 - O CONTROLE DAS CLASSES PERIGOSAS E O ESTADO DE EXCEÇÃO----


-----------------------------------------------------------------------------------------------135

CAPÍTULO 4 – DA VIOLÊNCIA À DISTINÇÃO POLICIAL MILITAR--------------143


4.1 – AS INTERFACES DA VIOLÊNCIA POLICIAL MILITAR NO BRASIL----144
4.2 – SOBRE A DISTINÇÃO POLICIAL MILITAR------------------------------------149
4.2.1 – “O Senso de Distinção”----------------------------------------------------154
4.2.2 – Os Mecanismos de Distinção na Polícia Militar----------------------164
4.2.3 – Sobre a Honra Policial Militar-------------------------------------------178

CONSIDERAÇÕES FINAIS-----------------------------------------------------------------------200
REFERÊNCIAS----------------------------------------------------------------------------------------204
ANEXOS------------------------------------------------------------------------------------------------221
15
15

INTRODUÇÃO

Como a ordem, aqui traduzida pelos organismos policiais militares em nosso país, está
desenvolvendo modelos de policiamento que possam ser reconhecidos pelo viés do discurso
democrático? Para responder a essa indagação, este trabalho visa analisar sociologicamente a
implantação do policiamento chamado de “solidário”, na cidade de João Pessoa, o qual se
fundamenta na perspectiva de uma polícia de “aproximação” com a comunidade. Tal
problemática objetiva, nesse sentido, buscar entender como se consolidou o distanciamento
entre Polícia Militar e sociedade e quais são as “estratégias” que estão sendo utilizadas pelos
órgãos policiais, em nome do Governo do Estado da Paraíba, para garantir essa suposta
reaproximação.
Desse modo, partimos da hipótese de que esses novos padrões de sociabilidade entre
policiais militares e moradores de comunidades podem estar sendo pautados por relações de
poder sustentadas por processos de “governamentalidade” (FOUCAULT, 1979). Buscamos
demonstrar como o projeto de policiamento solidário cria certo distanciamento entre o que
está sendo apresentado como proposta e a real atuação policial nas ruas.
O programa de policiamento solidário que está sendo implantado na cidade de João
Pessoa faz parte de uma tendência nacional que está ocorrendo em diversos Estados, com
destaque para a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP‟s) adotada no Rio de
Janeiro. Assim, nossas primeiras observações foram direcionadas para as campanhas sobre a
instauração de uma polícia mais cidadã em João Pessoa, a qual pode ser compreendida como
sendo solidária e democrática. A visibilidade desse novo modelo de policiamento passou a ser
percebida em vários contextos: a mídia televisiva, impressa e radiofônica; através de slogans
publicitários e panfletos distribuídos nas comunidades; nas viaturas policiais que se tornaram
visíveis com a estampa do nome “Polícia Solidária”; na realização de eventos como pequenas
formaturas militares nos bairros onde estão sendo implantadas as UPS‟s (Unidades de
Policiamento Solidário).
Assim, indicamos que o problema da tese diz respeito a como se estabelecem essas
novas sociabilidades entre moradores e policiais militares. Se até agora, com o policiamento
tradicional, tínhamos relações de conflito, onde o PM enquanto agente de segurança do
Estado impunha medo ao cidadão devido à violência ilegal exercida, com a busca de novas
formas de sociabilidade por parte da Polícia Militar como podemos compreender as relações
de poder presentes na interação entre os agentes do Estado e moradores de comunidades?
Destacamos tal problemática devido à existência de uma cultura policial militar distintiva
16

(MUNIZ, 1999; SILVA, 2002) em relação ao paisano, o que nos leva a analisar, a partir dessa
cultura, como são reelaboradas as dissimetrias entre policiais militares e moradores das
comunidades já que a lógica do policiamento solidário busca afirmar que o policial também
faz parte da comunidade que ele vigia e protege.
De todo modo, gostaríamos de começar este percurso ao mostrar que nossos estudos
sobre Polícias Militares e, em específico, a Polícia Militar da Paraíba, tiveram início em outro
momento1 no qual nossas inquietudes empírico-teóricas conduziram-nos a adentrar os muros
da caserna e empreender uma pesquisa no quartel de formação policial militar, o Centro de
Educação, localizado na cidade de João Pessoa. Constatamos que, a implantação e utilização,
de modo formal e informal, de saberes humanizadores no processo pedagógico PM se trata de
uma forma mais sofisticada de controle dos alunos policiais por parte da instituição, o que
caracteriza novas relações de poder que configuram um processo que chamei de
“humanização disciplinada”. Pudemos observar como os alunos criam resistência a uma
educação para os Direitos Humanos. Uma vez que, a cultura disciplinar da formação na PM
não enxerga os direitos dos alunos devido à naturalização do ethos militarista voltado para a
hierarquia e disciplina, os discentes não conseguem apreciar criticamente as propostas de
mudanças organizacionais implementadas. Tem-se, então, uma humanização que apenas
enaltece a instituição para que a mesma possa supostamente apagar a imagem negativa
herdada dos tempos ditatoriais.
Nessa pesquisa, estávamos no plano em que “o regime de materialidade dos
enunciados é da ordem da instituição, isso leva o pesquisador a considerar a relação entre
prática discursiva e instituição, que abarca regras determinadas historicamente” (NAVARRO,
2011, p. 139). E, se a pesquisa anterior nos revelou que diante de uma formação policial
militar baseada em uma humanização que não abre mão do disciplinamento como forma de
dominação, o qual permanece na construção de uma distinção entre policiais militares e
paisanos, a partir de então nossas reflexões foram conduzidas para tentar entender como esses
policiais formados passavam a atuar no projeto de policiamento solidário, projeto esse
lançado pelo Governo do Estado da Paraíba e a Polícia Militar no ano de 2011.
Assim como ocorrera na feitura da Dissertação de Mestrado, algumas considerações
devem ser feitas em relação ao nosso posicionamento frente ao objeto de pesquisa. Neste
ponto, a discussão metodológica nos possibilita contextualizarmos alguns esclarecimentos,
sem o medo de descrever o percurso deste trabalho em primeira pessoa, dado o fato de eu ser

1
Ver França (2012a).
17

atualmente um Capitão da Polícia Militar da Paraíba. Só que, desta vez, munido de certo
amadurecimento teórico, e depois da experiência de ter conduzido pesquisas sobre minha
profissão e ter refletido sobre a dimensão sociológica da experiência policial (FRANÇA,
2012a, 2012b, 2013) que envolvem recortes empíricos sobre a Polícia Militar, conduzi a
pesquisa com mais segurança em relação ao problema de uma suposta neutralidade científica,
que no seio das ciências sociais é motivo de debates e muitas contraposições.
De toda forma, ao contrário do que destaca Villela (2010), não creio que estudar um
mundo institucional no qual se está inserido se trate de uma atitude apologética, militante ou
internalista que podem ser compreendidas pelo que os ingleses chamam de halfie, ou seja,
quando o pesquisador encontra-se entre o objeto que ele estuda e a antropologia. Por esse
viés, com toda implicação epistemológica que tal problemática possa suscitar, acredito na
validade dos trabalhos que já foram desenvolvidos a partir da questão anteriormente posta e
ainda acrescento que, em certo sentido, ser um pesquisador nativo pode ajudar na construção
de parâmetros metodológicos melhor orientados dada a existência de uma “experiência”
prévia sobre do que se observa. E estudar o universo policial militar enquanto nativo tem-se
revelado objeto de muito trabalho e dedicação.
Assim, o contato e o conhecimento de campo antropológico, dado o diálogo entre a
Sociologia e a Antropologia, permitiram-me compreender que não só era possível, mas fazia
parte da legitimidade científica das disciplinas humanas fazer o caminho oposto ao
preconizado pelos precurssores da etnografia e assim, ao invés de treinar apenas “o olhar e o
ouvir” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998) para observar e analisar uma cultura estranha, eu
poderia tornar “o familiar em exótico” (DA MATTA, 1978). Por esse parâmetro, sigo também
as considerações expostas por Gilberto Velho (1981) quando ele afirma que mesmo que seja
familiar aquilo que vemos e encontramos, isso não garante conhecer-se o que se observa.
Além disso, o mesmo autor esclarece que,

Em princípio, dispomos de um mapa que nos familiariza com os cenários e situações


sociais de nosso cotidiano. Isso, no entanto, não significa que conhecemos o ponto
de vista e a visão de mundo dos diferentes atores em uma situação social nem as
regras que estão por detrás dessas interações, dando continuidade ao sistema. A
“realidade” (familiar ou exótica) sempre é filtrada por determinado ponto de vista do
observador, ela é percebida de maneira diferenciada. Mais uma vez, não estou
proclamando a falência do rigor científico no estudo da sociedade, mas a
necessidade de percebê-lo enquanto objetividade relativa, mais ou menos ideológica
e sempre interpretativa (Ibidem, 1981, p. 127-129, grifos do autor).
18

E de acordo com essa “objetividade relativa”, podemos dizer que, “o fato de sermos
policiais e sociólogos ou “policiais-sociólogos” não implica, necessariamente, que devamos
ter o conhecimento da instituição e mesmo da profissão policial como um todo”
(MENDONÇA, 2010, p. 106). Nesse caminho, mesmo existindo poucos trabalhos nas
ciências sociais que pousaram a curiosidade científica sobre a cultura policial militar, mais
ainda àquela que pode ser percebida a partir do ambiente intramuros do quartel de formação
pedagógica policial militar, outros estudos realizados por policiais militares ou ex-policiais
(SILVA, 2002; SILVA, 2011; SOUZA, 2012, STORANI, 2008, MENDONÇA, 2010) que
resolveram fazer de sua profissão uma exploração acadêmica, me ajudaram a mostrar que essa
área de estudos não inviabiliza minha posição de policial e sociólogo. As palavras de Souza
(2012) também ajudam a justificar meu trabalho quando, ao ter desenvolvido pesquisa na
Polícia Militar do Estado de Sergipe sobre representações sociais e violência policial militar e
ter realizado entrevistas fardado por uma questão de escolha metodológica, já que à época era
policial, ele afirma que “as escolhas na academia não estão distantes das demais que tomamos
constantemente nos diversos campos da vida. Elas estão relacionadas a elementos de nossas
demandas e experiências pessoais” (p. 25).
Nesse sentido, também, a sociologia compreensiva weberiana (WEBER, 2003) dá-me
o suporte adequado para meu posicionamento em relação ao objeto que abordo, de forma que
a mesma possibilita-me estabelecer o momento devido para utilizar critérios objetivos que
ratifiquem o caráter científico do problema. Por esse aspecto, segundo a perspectiva
weberiana, os valores que conduzem nosso olhar para a observação de um objeto de pesquisa
acabam por ceder espaço para a compreensão objetiva desse mesmo objeto, de modo a
permitir a construção de “tipos ideais” que expliquem de modo aproximado a realidade
estudada. Não estou afirmando que me tornei sociólogo a partir do contato com as
informações que a profissão PM me proporcionou, ao contrário, foi a formação como
sociólogo (a qual adquiri depois de oito anos como policial militar) que me fez passar a
enxergar a PM de outro modo, com reflexão que acabou por direcionar o olhar crítico à
análise de uma hipótese inicial que se descortinou na apreensão de um objeto de pesquisa que
poderia ser abordado sociologicamente. No final, a minha busca tem finalidades científicas e
objetivas, as quais direcionaram minhas impressões subjetivas como primeiro passo para
sistematizar a validade do problema que eu aqui analiso.
Para Muniz (1999), existem similitudes entre o trabalho etnográfico do antropólogo e
o trabalho policial nas ruas. Só que, no segundo caso, fala-se de uma etnografia policial
voltada para o trabalho prático em que o PM preocupa-se em mostrar “a suposta verdade dos
19

fatos”, ao contrário do antropólogo que busca desvendar a “realidade dos fatos”. Para o
policial importa aguçar o olhar e a intuição para descobrir na atitude suspeita quem pertence
ao mundo do crime. Bittner (2003) corrobora com essa ideia e afirma que o conhecimento
policial das ruas é “etnográfico”, pois, “ele é metódico e semelhante, de muitas maneiras, ao
conhecimento dos sociólogos e dos antropólogos sociais” (p. 185). No meu caso, afirmo ter
utilizado de ambas as técnicas para obter minhas observações e informações, pois, neste
sentido, enquanto policial-pesquisador, foram as diversas situações de rua que me
possibilitaram abrir caminho para o olhar sociológico. Munido das técnicas policiais que me
faziam estar presente nas ruas para desempenhar as funções que me cabiam como
profissional, também já me eram conhecidas as técnicas de observação etnográficas, o que, de
certa forma, torna-se um fato positivo na coleta de dados fundamentais para a pesquisa, visto
a situação não usual de um sociólogo na investidura do pesquisador estar numa viatura de
polícia rondando nas ruas para cumprir outro papel.
Nesse contexto, o percurso metodológico que desenvolvi pautou-se numa pluralidade
de caminhos que sistematizo a partir de quatro dimensões: a primeira seria a análise de
documentos governamentais (planos de governo que envolve a Polícia Militar paraibana,
dados estatísticos implementados pela cúpula da Polícia Militar do Estado da Paraíba, mapas
que demonstram a setorização cartográfica dos lugares onde se encontram os postos de
policiamento solidário, Decretos lançados no Diário Oficial da Paraíba); a segunda diz
respeito ao material propagandístico utilizado pelo Governo da Paraíba e pela Polícia Militar
da Paraíba para legitimar o novo modelo de policiamento que segue a filosofia de polícia
comunitária; a terceira dimensão centrou-se em observar os policiais militares trabalhando nos
postos comunitários, de modo que eu pudesse comparar o que se encontra entre o dito e o
oculto na práxis dos policiais envolvidos no projeto de Polícia Solidária e, por fim, participei
da reunião dos gestores das Polícias Militares envolvidos com o projeto de policiamento
solidário, situação essa que nos força a apenas indicar esse encontro e analisar as falas e
observações apreendidas. A necessidade de se ocultar qual foi essa reunião diz respeito ao
fato de que a mesma se trata de situação onde são debatidas questões de políticas estatais de
Segurança Pública que sistematizam informações do Governo da Paraíba. No entanto, fica a
ressalva de que essa reunião contou com a participação da imprensa.
Sobre a primeira dimensão, reconheço que a coleta de material foi facilitada pelo fato
de eu ser policial militar, especialmente Oficial da PMPB. Através do contato com amigos
que trabalham diretamente na Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social da
Paraíba, pude ter acesso aos documentos que demonstram as estratégias do Governo do
20

Estado em relação às políticas de Segurança Pública. Do mesmo modo, obtive os dados


estatísticos que servem de acompanhamento mensal sobre o desempenho de todos os
Batalhões da PMPB no que concerne aos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) e os
Crimes Violentos Patrimoniais (CVP). Quanto aos mapas que definem a setorização
desenvolvida pelo Programa do Governo do Estado para “quadricular” a forma de
funcionamento do policiamento solidário, obtive as informações mediante um dos
entrevistados que à época era Coordenador do Programa no 1º Batalhão de Polícia Militar.
Analisei também alguns documentos que podem ser encontrados no Diário Oficial do Estado
da Paraíba e nos Boletins Gerais da PMPB. Quanto aos últimos, o acesso só pode ser
conseguido mediante o uso da matrícula institucional e a data de nascimento do policial
militar através do site da PMPB, o que garante o acesso por um civil, apenas caso algum
policial assim queira ceder essas informações.
Quanto à observação do serviço desempenhado pelos policiais que trabalham no
projeto de Polícia Solidária, acompanhei o cotidiano laboral dos mesmos em momentos
esporádicos com revezamentos entre os turnos da manhã, tarde, noite e madrugada, inclusive
compondo as viaturas nas horas das “rondas” pelos bairros e na resolução de ocorrências. O
tradicional “caderno de campo” foi a ferramenta que me acompanhou nessa “aventura sócio-
antropológica” com os policiais. Concomitante à observação direta e participante que
desenvolvi, realizei entrevistas semi-estruturadas com os policiais dos postos de policiamento
solidário. Com o decorrer da pesquisa, foi necessária a mudança para o uso de entrevistas
abertas, pois ocorreu de alguns policiais se recusarem a serem entrevistados, o que me fez
criar formas de aproximação de acordo com cada situação em particular e, as entrevistas
passaram a acontecer depois que eu estabelecia um contato informal que acabava por me levar
a obter as informações gravadas. Neste caso, a escolha dos entrevistados foi aleatória, mas
procurei me ater, neste sentido, a entrevistar preferencialmente os policiais que fazem parte do
projeto desde a fundação dos postos de policiamento solidário. Na impossibilidade dessa
situação, eu acabava entrevistando policiais chegados para trabalhar nos postos
posteriormente à fundação dos mesmos. Foram também entrevistados policiais que trabalham
nas viaturas que fazem parte dos bairros onde estão instaladas as UPS‟s, já que o serviço
desenvolvido nos postos de policiamento solidário está diretamente ligado àquele
desempenhado nas viaturas. Entrevistei ainda um Tenente-Coronel e um Major da PMPB com
o fito de historiar as experiências passadas de policiamento comunitário na Paraíba. No caso
do primeiro Oficial, o mesmo esteve à frente da implantação do policiamento comunitário na
cidade de Sousa. No caso do Major, tem-se o relato da implantação do policiamento
21

comunitário em Campina Grande. Ao contrário dos policiais que ajudaram a reconstruir a


história do policiamento comunitário na Paraíba, os demais entrevistados tiveram seus nomes
resguardados, de modo que todos foram identificados pelo posto ou graduação que ocupam na
hierarquia policial militar. O dado interessante é o de que não existe nenhuma mulher
trabalhando em nenhum dos postos de policiamento solidário.
Tornou-se pertinente ainda entrevistar um Capitão para descrever suas atividades à
frente da Coordenação dos Postos de Policiamento Solidário que pertencem à área do 1º
Batalhão de Polícia Militar e outros dois Capitães e dois Tenentes (um homem e uma mulher),
para que os mesmos descrevessem informações históricas sobre cada Posto de Policiamento
Solidário em particular, dos quais são responsáveis, com a ressalva de que meu olhar esteve
voltado apenas para os postos analisados nesta pesquisa. Por fim, entrevistei um Capitão que
trabalha na Coordenadoria de Integração Comunitária e Direitos Humanos, que está
subordinada ao Estado-Maior Estratégico da PMPB. E outro Capitão que trabalha no setor de
estatísticas sobre crimes (CVLI e CVP) diretamente subordinado ao Comando Geral da
PMPB. De um total de sete postos de policiamento solidário, a pesquisa centra-se apenas em
cinco, todos pertencentes ao 1º Batalhão da PMPB. Durante a realização da pesquisa, os
postos dos bairros do Alto do Mateus e Ilha do Bispo já não mais funcionavam com as
características do modelo de policiamento solidário devido a decisões do Comando da PMPB.
Existem ainda postos na região do 5º Batalhão da Polícia Militar, mas acreditamos que incluí-
los na pesquisa tornaria o foco da mesma abrangente, de modo que a realidade encontrada nos
postos do 1º Batalhão pode ser suficiente para nossos propósitos.
Quanto às dificuldades que surgiram no percurso metodológico, destaco o perigo
inerente à incursão em alguns postos de policiamento solidário, situação essa já destacada por
Zaluar (1999) como componente que dificultou etnografias sobre violência e criminalidade
em nosso país por conta do perigo existente. Recordo-me quando de minhas visitas ao posto
do Bairro São José quando fui orientado pelos policiais militares para não aparecer no local
sozinho nem fardado (pois eu poderia ser alvejado pelos traficantes do local, principalmente
quando da passagem pela Laje) ou à paisana, pois eu poderia ser confundido com algum
comprador de drogas e, caso eu fosse abordado pelos traficantes e não fosse comprador, eu
poderia ser confundido também como um espião trabalhando para a Polícia Militar. Desse
modo, antes de chegar ao posto, eu ligava para os policiais militares e eles pegavam-me no
prédio da Delegacia Integrada de Segurança Pública, que se localiza na entrada do bairro. De
lá, eu era conduzido de viatura e devidamente escoltado. Esse perigo também estava presente
quando precisei conhecer melhor os bairros onde fiz a pesquisa. Por esse mote, eu visitava os
22

locais devidamente fardado, com uma guarnição de policiais em uma viatura, com colete à
prova de balas e armado com pistola. Essa atitude também me orientou no sentido de ter que
realizar as entrevistas fardado, como forma de ganhar a confiança dos policiais.
Além do exposto, construí reflexões no sentido de entender a ideia de que, se a Polícia
Militar busca uma “aproximação” com a sociedade, é porque existe um distanciamento
prévio, como já mencionei anteriormente, mas qual seria o fator desencadeador desta lacuna
entre policiais e sociedade? Para tanto, cito um exemplo que foi aguçado por meu olhar de
sociólogo quando eu estava em um casamento de um amigo policial militar, ou melhor, um
Tenente da Polícia Militar. Sempre em cerimoniais desta natureza (pois eu já tinha observado
outros casamentos de policiais), os Oficiais realizam um rito conhecido por “teto de aço”,
onde o policial e sua noiva passam por debaixo de espadas que são alçadas para o ar formando
um corredor, e as mesmas são batidas, “tilintadas”, em pares, pelas pontas, causando um
barulho que, de certa forma, denota respeito ou talvez boa sorte aos recém-casados. Sempre,
até aquele momento, eu tinha achado aquele rito esteticamente bonito, mas depois percebi o
quanto aquele cerimonial representava positivamente para quem dele participava, ou seja: o
policial que estava a casar e seus amigos policiais que participavam da execução do rito.
Ainda mais quando da festa após o cerimonial religioso, novamente o “familiar” se
transformava em “exótico” quando percebi que, em cima do bolo dos noivos tinha dois
bonecos que simbolizavam o casal, porém o homem era a imagem do meu amigo com a
túnica para eventos de gala da Polícia Militar, só que ele estava “pagando flexões”. Essa
situação me fez conseguir fotos de outros casamentos e também me despertou o olhar para
uma lógica que, por eu ter naturalizado para mim mesmo devido à profissão, não tinha
percebido anteriormente, ou melhor, que existe uma racionalidade própria aos policiais
militares que os fazem atribuírem a si mesmos o que passo a denominar de “distinção policial
militar” (BOURDIEU, 2007a). E por esse âmbito, no Capítulo IV tentarei mostrar como essas
experiências podem ser entendidas enquanto uma categoria.
Nesse contexto, passei a estabelecer a correlação que existe entre a distinção policial
militar, a violência policial e o distanciamento que se configurou historicamente entre
agências policiais e sociedade, num olhar próximo da abordagem que Reiner (2004)
desenvolveu ao falar de uma “cultura policial”. Só que, pela ausência de estudos que
esmiúcem essa “configuração”, fui em busca dos pormenores que caracterizam a “distinção
policial militar” nas diversas nuances do cotidiano, ao modo como Elias (2001) nos descreveu
o significado que tinha a Sociedade de Corte para os nobres que participavam do reinado de
23

Luís XIV.2 Fotografei desde símbolos incomuns para os “paisanos” como as espadas que os
Oficiais usam depois que se formam no Curso de Formação de Oficiais (CFO) aos diversos
uniformes utilizados nas mais variadas atividades policiais militares, como forma de
enaltecimento simbólico, pois, como nos diz Giddens (2002), “a roupa é muito mais que um
simples meio de proteção do corpo – é manifestamente um meio de exibição simbólica, um
modo de dar forma exterior às narrativas da auto-identidade” (p. 62). Além disso, acrescentei
como parte das entrevistas aos policiais que trabalham no policiamento solidário questões
relativas ao histórico deles na instituição PM, de modo que eu pudesse apreender as nuances
que caracterizam essa distinção.
Todos os dados coletados levaram-me a entender que, pela existência própria da
“distinção policial militar”, que acaba por configurar exatamente o distanciamento entre
“militares e paisanos” (CASTRO, 2004), sendo os últimos uma condição pejorativada assim
vista pelos militares, como as instituições policiais militares podem afirmar a existência de
um “policiamento de proximidade” com a sociedade, já que em sua própria natureza os
policiais militares sentem-se diferentes daqueles que são por eles vigiados? Por essa
consideração, procurarei mostrar que a preocupação não seria perguntar “Quem vigia os
vigias?” (LEMGRUBER et al., 2003), mas a indagação a ser feita é: “Como os vigias
sofisticam sua vigilância para não serem vigiados?”.E por esse aspecto, se estamos a tratar de
“estratégias” de poder que consolidam formas de controle social mais sofisticadas,
procuraremos mostrar que existe uma correlação entre a distinção policial militar e
mecanismos biopolíticos (FOUCAULT, 1999).
Nessa perspectiva, no que tange aos elementos etnográficos, podemos dizer que nossa
análise aproxima-se da perspectiva adotada por Elias (2000) quanto à forma de apreensão dos
dados, os quais nos ajudam a demonstrar que, entre policiais militares e moradores, “um
grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração diferencial
contribui substancialmente para seu excedente de poder” (p. 22). No entanto, a abordagem
que adotamos neste trabalho não se resume a analisar o poder enquanto algo excedente
apropriável por um grupo, mas como uma relação que possibilita o controle e a
“normalização” de toda uma população pelos cálculos político-estratégicos vinculados ao
Estado. Nesse foco, a perspectiva foucaultiana foi utilizada (FOUCAULT, 1988, 1999, 2009)

2
Aludo a esta comparação com os trabalhos de Norbert Elias sobre a Sociedade de Corte pelo fato desta Tese
visar explicar relações de poder que se estabelecem entre policiais e moradores. No caso de Elias, é demonstrado
como a etiqueta funciona como um dos mecanismos de diferenciação entre a nobreza e os outros segmentos
sociais. Em relação às Polícias Militares, a disciplina se desenvolve como elemento semelhante e, por isso,
mostraremos ao longo deste trabalho como a disciplina diz respeito a uma das facetas da biopolítica.
24

para possibilitar-nos a análise de documentos diversos, os quais nos remetem à apreensão da


relação saber-poder presente no projeto de policiamento solidário.
Nesse percurso, este trabalho se divide em quatro capítulos. No Capítulo I (A Polícia
Solidária e os Novos Padrões de Policiamento) demonstramos como surgiu o modelo
tradicional de polícia e como, devido ao que se considera o fracasso desse modelo
mencionado, a polícia comunitária surgiu como resposta para o que possa ser uma polícia
democrática. Desse modo, apresentamos as características do policiamento comunitário e,
logo após, fazemos um levantamento histórico em nosso país sobre as pesquisas até então
empreendidas no campo sociológico sobre polícia comunitária. Para constituição do
argumento, passamos a conhecer as experiências no Brasil e na Paraíba sobre o policiamento
comunitário e, por fim, descrevemos a implantação do policiamento solidário em João Pessoa,
lócus de nossa pesquisa.
No Capítulo II (Por que a Polícia Solidária?), tentamos mostrar as justificativas
utilizadas pelo Governo da Paraíba e pela polícia paraibana para legitimar a implantação do
policiamento solidário. Nesse esteio, mostraremos resultados etnográficos a partir da
descrição dos postos de policiamento solidário analisados. Ainda, argumentamos teoricamente
sobre o mapeamento dos homicídios no Brasil e no Nordeste, de modo que esses dados nos
remetam à realidade sobre os homicídios na Paraíba e em João Pessoa. Com base nos dados,
mostraremos porque a polícia solidária foi aplicada como solução para a violência urbana em
alguns bairros de João Pessoa.
No Capítulo III (Policiamento Solidário e Biopolítica), inicialmente descreveremos o
contexto histórico das organizações policiais no Estado moderno a partir do arcabouço teórico
eliasiano que ressalta o desenvolvimento da exteriorização da violência para a interiorização
da mesma baseada na civilidade dos costumes. Por esse prisma, poder-se-á ser possível
entendermos como a posteriori, na modernidade, pela perspectiva foucaultiana, as polícias se
regimentam como mecanismos de segurança de modo que, atualmente, tais instituições estão
sendo utilizadas no controle das “classes perigosas” e das classes pobres como um todo
exatamente por manter esse controle por meio do discurso do policiamento solidário. Tal
lógica, que pertence ao significado do processo de “pacificação” das comunidades sitiadas
pela violência do tráfico de drogas, por exemplo, é o que Agamben sustenta ser um “Estado
de Exceção” (AGAMBEN, 2004). Assim, relacionaremos o exposto com os conceitos de
poder e sociabilidade que adotamos neste trabalho.
Por fim, No Capítulo IV (Da Violência à Distinção Policial Militar), demonstramos
inicialmente o que configura, por um determinado prisma, a violência policial militar em
25

nosso país. A partir dessa apreciação, nos reportaremos às características identitárias dos
policiais militares para analisarmos os elementos simbólicos e culturais que constroem o “ser
militar” ou, baseado no que considera Castro (2004) sobre o “espírito militar”, o que
conforma o “espírito policial militar” e as distinções que surgem com base nesse processo
identitário tanto entre os policiais como, especialmente, entre policiais e civis. O foco na
identidade simbólica policial militar será abordado como forma de mostrarmos que a
distinção policial militar faz parte das estratégias biopolíticas e de “governamentalidade”
(FOUCAULT, 1979), que veremos tratarem-se da configuração do antigo sonho descrito por
Foucault (1987), o qual teria se desenvolvido juntamente com o sonho iluminista do século
XVIII de termos uma sociedade regida pela razão, ou seja, de termos também uma sociedade
guiada pelos princípios militaristas.
Assim, este trabalho visa enriquecer o debate no mundo científico, no sentido de
ampliar as discussões em áreas como a Sociologia do Poder, da Violência e do Controle
Social. Além disso, torna-se evidente que esta pesquisa busca esclarecer a existência de
formas ocultas de poder que acabam por minar a apreciação crítica e a resistência dos
dominados, o que nos conduz a vislumbrar a importância dos resultados aqui discutidos para a
sociedade e para a compreensão da forma de atuação das Polícias Militares em nosso país.
26

CAPÍTULO 1

A POLÍCIA COMUNITÁRIA E OS NOVOS PADRÕES DE POLICIAMENTO

Acreditamos, segundo o discurso oficial, que a preocupação em se criar novas formas


de policiamento que aproximem instituições policiais e sociedade pode ser sintetizada por
dois motivos principais. O primeiro deles é para que, tanto a sociedade quanto os policiais
reconheçam que ser um policial é também estar inserido na sociedade. O segundo é para dar
ênfase ao trabalho preventivo da polícia, de modo a, consequentemente, se buscar a
diminuição da violência policial exercida ilegalmente.
Desse modo, no esteio de entendermos como está sendo implementado o projeto de
“polícia de proximidade” ou polícia comunitária, intitulado de “Polícia Solidária” na cidade
de João Pessoa, Estado da Paraíba, partiremos com o objetivo de compreender exatamente
como surgiu a ideia de um policiamento comunitário, a partir da crença que se construiu sobre
certo fracasso do modo profissional de policiar. Nessa conjuntura, destacaremos quais são os
propósitos que norteiam a perspectiva do modelo policial comunitário para, em sequência,
elencarmos as características que traduzem essa nova estratégia, que difere do modelo
exclusivamente reativo e repressivo que até então existe nas polícias ocidentais, incluindo-se,
neste caso, as Polícias Militares brasileiras.
Continuaremos por relacionar nosso problema de pesquisa no âmbito do conjunto dos
diversos trabalhos que até aqui foram realizados em nosso país no campo da sociologia e que
tiveram como tema central, de algum modo, o policiamento comunitário. Para tanto, fomos
em busca de teses, dissertações e trabalhos outros que apontem problemáticas sociológicas
sobre a “polícia de proximidade” ou comunitária, baseando-se numa fundamentação histórica.
Por fim, após discorrermos sobre quais foram as tentativas que já tinham ocorrido na Paraíba
para implementar o policiamento comunitário, passaremos a conhecer a partir de qual
momento histórico o policiamento solidário passou a ser implementado em João Pessoa.
27

1.1 –DA POLÍCIA TRADICIONAL À POLÍCIA COMUNITÁRIA3

Nossa análise inicia-se a partir da consolidação do modelo profissional de polícia


surgido em meados do século XIX, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Este
recorte histórico coaduna com os propósitos de nossa pesquisa, uma vez que, esse modelo foi
criado juntamente com os Estados-nação europeus e exportado para a América (inclusive o
Brasil) como forma de manter a ordem interna de territórios delimitados com governos
politicamente estabelecidos. Nessa ótica, afirmamos a partir de Monet (2002) que é durante o
século XIX que a significação atual do termo polícia se afirmará, tendo a Europa como
cenário. Pelo fato de todas as capitais européias terem se tornado palco de motins e
revoluções, e com a insuficiência dos Exércitos para conter esses levantes, a polícia se afirma
como instituição estatal organizada e equipada que, além de conter os distúrbios civis
deflagrados assume também o papel de auxiliar da justiça penal. Tem-se, pois, uma
organização que se encarrega de “reprimir as infrações às leis e aos regulamentos e de impedir
movimentos coletivos que agitam com freqüência cada vez maior o próprio coração de
cidades em plena expansão (MONET, 2002, p. 23-24). Na delegação das atribuições, já que
os organismos policiais foram incumbidos da pacificação interna pelo uso da força em nome
do Estado, coube aos Exércitos exercerem o papel da proteção externa (SAPORI, 2007).
E para legalizar o uso dessa força legítima sob os auspícios do Estado, podemos
apontar sinteticamente algumas características que consolidaram a profissionalização dos
organismos policiais modernos. Se os modelos policiais que existiram até a Idade Média
dizem respeito a formas descentralizadas que confundiam a esfera pública e privada, no seio
do Estado moderno a função policial passou a existir exatamente para garantir a separação
entre o que é público e o que é particular, e para tanto as polícias (neste caso estamos a tratar
especificamente dos modelos europeus) organizaram-se com base em um recrutamento de
seus agentes por meio de concursos alicerçados por critérios meritocráticos; desenvolveram-
se saberes específicos que passaram a nortear a profissão policial apreendidos durante os
processos de formação; ao invés de absorver voluntários passou-se a se pagar uma
remuneração que sustentasse o exercício da profissão em tempo integral (MONET, 2002).

3
No capítulo 3 faremos uma digressão histórica para retomarmos a origem dos organismos policiais a partir do
período feudal. Tal análise será empreendida de forma diferente do contexto por ora adotado porque, neste
momento, tentamos explicar o que sustenta o discurso de implantação do policiamento comunitário e, adiante,
recorreremos à exposição histórica para mostrar como os organismos policiais surgiram na Modernidade como
uma das facetas do processo de governamentalidade (FOUCAULT, 1979, 2008), o que suscita relações de poder
para controlar, a partir dessas instituições, as populações.
28

Nesse conjunto de fatores, observa-se a partir dos modelos europeus emergentes de


polícia que a influência militarista se fez presente já no século XIX e, se levarmos em
consideração a estruturação do Estado moderno, destacam-se e implementam-se
principalmente polícias das capitais e polícias militares. Além disso, “a maior parte dessas
polícias mantém uma disciplina de ferro em suas fileiras, notadamente recrutando
maciçamente antigos militares. Na França, durante muito tempo, cinco em seis empregos
oferecidos nos concursos da polícia parisiense são reservados a antigos militares” (Ibidem, p.
63). Esses dados, portanto, permitem compreendermos que, em meio à busca de estabelecer e
manter a ordem pública devido às constantes sublevações surgidas com o processo de êxodo
do campo para as cidades e nessas, com a falta generalizada de empregos, surge um processo
que originou as instituições policiais contemporâneas. Ao mesmo tempo em que essas últimas
se especializam para combater as desordens, e com o apoio das camadas urbanas dominantes,
vê-se surgir organizações policiais que imbricam elementos culturais e organizacionais
advindos do Exército e ao mesmo tempo do que se passa a conhecer como uma “polícia
clássica” (MONET, 2002).
É por essa lógica que diversos autores afirmam (TAVARES DOS SANTOS, 1997;
MUNIZ, 1999; SILVA, 2011) que os dois principais modelos policiais que influenciaram o
desenvolvimento das instituições policiais no Ocidente teriam sido o francês (com caráter
militarista) e o inglês (mais próximo de um modo comunitário de policiar). No caso do
modelo francês, o desenvolvimento das forças policiais ocorreu de duas maneiras. A partir do
século XVI tem-se a territorialização da Maréchaussée (polícia montada), de origem
eminentemente militar. No entanto, com o decorrer do tempo, essa força policial se distancia
das autoridades militares (o Exército), de modo a estabelecer suas competências no
policiamento dos campos quando passa a prender vagabundos, desertores, contrabandistas,
assim como reprimir sublevações camponesas, ou seja, a Maréchaussée estabelece o controle
do que dizia respeito às questões do comércio, da higiene. O distanciamento para com o
Exército se consubstancia principalmente depois da Revolução, quando em 1791 ela é
rebatizada de Gendarmerie e assume as feições de uma Guarda Civil, resguardando suas
características quase sem modificações do século XVIII até os tempos de hoje (MONET,
2002). A segunda força policial francesa foi criada em 1667 durante o reinado de Luís XIV
que criou a Tenência de Polícia para administrar de forma geral a cidade de Paris.
Em sentido oposto, a criação da polícia inglesa caminhou de modo a negar sua
organização com base no modelo francês de origem militarizada porque, o que estava em jogo
era o receio da população em perder seus direitos civis e a liberdade que poderiam ser
29

cerceados diante do monopólio de uma força preventiva e repressiva conduzida pelo


Parlamento, já que a polícia francesa era conhecida pela violência contra a população devido
ao seu entrelaçamento com o Governo central. Como nos descreve Monet (2002) ao nos
apresentar uma notícia de jornal de fins do século XVIII onde se destaca que “Nossa
Constituição não pode admitir nada que se pareça com a polícia francesa; e muitos
estrangeiros nos declararam que preferiam deixar seu dinheiro nas mãos de um ladrão inglês a
suas liberdades nas de um tenente de polícia” (p. 48). O que os ingleses buscavam era uma
força policial capaz de manter a ordem pública, cumprindo a lei e garantindo a paz nas
cidades, no entanto, “esta organização não poderia intervir nas lutas políticas, questionar as
conquistas civis, nem violar a privacidade dos súditos. Seria uma polícia sem papel
paramilitar, exclusivamente orientada para atender as demandas citadinas” (MUNIZ, 1999, p.
27-28).
Com base nessas considerações históricas sobre os modelos policiais francês e inglês,
importa compreendermos o surgimento do que se pode considerar o modelo moderno de
polícia, o qual também passou a ser denominado de modelo “profissional” e “tradicional”. Por
esse mote, direcionamos nossa visão para a criação específica da polícia londrina em 1829,
pois, “do ponto de vista de sua evolução institucional, o paradigma das polícias ocidentais é a
Polícia Metropolitana de Londres, a „nova polícia‟” (BATITUCCI, 2010, p. 31), a qual foi
criada principalmente com base num modelo prevencionista, ao contrário da perspectiva de
uma polícia repressiva de origem francesa.4

1.1.1 – A Polícia de Sir Robert Peel

A polícia londrina criada por Robert Peel em 1829 traduz, de certa forma, um modelo
de organização policial que buscou vencer a desconfiança dos ingleses em relação à

4
Durante a Banca de Qualificação desta Tese, no ano de 2014, o Profº Nildo Avelino levantou a interessante
hipótese de que os primeiros rudimentos de uma polícia comunitária poderiam ter surgido na França absolutista
com o regime de lettres de cachet, através do qual o soberano agia para solucionar os pedidos feitos pela
população (conflitos entre pais e filhos, confrontos entre vizinhos, brigas entre casais, enfim). Se comparadas as
situações que eram solucionadas mediante o poder soberano pelo sistema de lettres de cachet, ver-se-ão
acontecimentos análogos aos que preconizam as teorias sobre o policiamento comunitário no que tange à
resolução de pequenos conflitos que envolvem a comunidade, porém, a ideia sobre uma polícia de cunho
comunitário, acreditamos, aproxima-se mais do modelo inglês por este ter surgido com respeito às liberdades
individuais numa política de cunho liberal e não por imposição soberana como ocorreu na França. No entanto, o
sistema de lettres de cachet pode ser um indicativo histórico para uma melhor compreensão de como ocorreu a
transição de um modelo de segurança privada no período feudal para um modelo público de segurança. Além de
que, segundo Foucault, o sistema de lettres de cachet é um caso particular da França. Para maiores
esclarecimentos ver FOUCAULT, Michel. “A vida dos homens infames”. In.: Ditos & escritos IV: estratégia,
poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. p. 203-222.
30

autoridade estatal que, segundo a população, poderia retirar as liberdades civis conquistadas,
ainda mais se fosse uma instituição baseada em princípios militaristas (BATITUCCI, 2010;
MUNIZ, 1999). No entanto, os diversos eventos populares que eclodiram em Londres durante
a década de 20 do século XIX propiciaram a reformulação das forças policiais da cidade. Tais
conflitos populares, somados ao crescente número de crimes brutais representam, de certa
maneira, os resultados de uma cidade afetada pela industrialização e pela urbanização. Além
disso, o que existia era a atuação de forças policiais de cunho particularista, ou seja, que não
eram formadas por agentes públicos pagos pelo Estado, e cujo modus operandi baseava-se na
tortura e em alguns privilégios, além de não exercerem suas atividades de forma
regulamentar. Destacava-se ainda a ineficiência do Exército em conter as insurgências
populares, dado o grau de brutalidade próprio às Forças Armadas.
Nessa conjuntura, fala-se então na construção da “legitimidade” (REINER, 1992) da
polícia londrina que, para conquistar o respeito e a confiança dos ingleses (tanto da burguesia,
quanto das classes proletárias), teve nas reformas empreendidas por Robert Peel o caminho
que provasse ser a polícia capaz de manter a paz e a ordem social interna, bem como o
combate à criminalidade, respeitando os direitos civis assegurados aos cidadãos. Por esse viés,
tal legitimação da polícia londrina foi assegurada por uma série de situações.
O estabelecimento do consenso, ou melhor, da aceitação da polícia pela sociedade
ocorreu principalmente depois da incorporação das classes proletárias nas instituições
políticas e econômicas da Inglaterra. Além disso, o consenso pode ser percebido como parte
do “processo civilizador” das condutas que permitiu a harmonização das relações sociais
(ELIAS, 1993, 2011). Concomitante ao consenso, a nova polícia profissionalizou-se passando
a ter agentes trabalhando em tempo integral, que passaram a ser promovidos com base no
mérito e não mais por influências partidárias, visto que o modelo de organização centrou-se
numa hierarquia burocratizada. As normas legais foram incorporadas como forma de
orientação da atuação dos policiais, o que passou a prescrever a discricionariedade das ações
dos guardas, ou melhor, a escolha de decisões que orientem a conduta policial para a prática
de comportamentos na hora de atuar mediante as Leis. E a ausência no uso de armas tornou-se
um elemento fundamental como estratégia do uso da força mínima e para a obtenção do apoio
popular, tanto que apenas o cassetete deveria ser usado nas atuações (ainda assim, de forma
velada), e se possível como o último recurso. Outro ponto dizia respeito à polícia distanciar-se
da política, o que garantiria a responsabilização dos atos dos policiais pela Corte Britânica e
por uma certa proximidade com o povo e não com o Estado. Essa proximidade com a
sociedade caminhava próximo ao fato da polícia também desempenhar outros serviços que
31

não só o de cunho repressivo e, nesse contexto, a prevenção tornou-se a tônica da polícia


londrina de Peel. Assim, a aparente eficácia policial baseou-se no conjunto de ações
preventivas juntamente com a manutenção da ordem e o controle do crime, de modo que,
sinteticamente,

De uma instituição odiada e temida, a polícia passou a ser vista como a incorporação
da autoridade impessoal, seguidora da lei, aplicando democraticamente a legislação
aprovada, no interesse da maior parte da população e não de quaisquer interesses
partidários, e mantendo-se estritamente dentro das exigências do devido processo
legal. Tal conquista é devida a uma variedade de estratégias organizacionais da
polícia, mas essas só tiveram sucesso por causa da maior inserção da classe operária
no contexto social (REINER, 2004, p. 97).

De todo modo, a origem da polícia londrina criada por Robert Peel, dado o fato, como
constatamos, da história da mesma servir de mote para compreendermos os motivos que
levaram o Estado a criar uma força pública que legitimasse o uso da violência legal, propiciou
debates nos estudos históricos sobre as polícias que colocou em lados opostos pesquisadores
considerados “ortodoxos” e “revisionistas” (REINER, 2004). Os primeiros defendem a
análise da criação da polícia londrina como produto do consenso entre burguesia e classes
proletárias. Os segundos argumentam pela criação de uma polícia que ideologicamente
protege os privilégios burgueses em detrimento das classes pobres. Além disso, em meio aos
debates que posicionam pontos de vista divergentes quanto aos motivos pelos quais as
polícias foram criadas, emerge também a síntese, que vincula ao mesmo tempo resultados que
se imbricam. Analisemos, então, estes debates a partir do que nos expõe Reiner (2004).
Sob o ponto de vista “ortodoxo”, teriam sido os problemas advindos da
industrialização e urbanização que incidiram diretamente na manutenção da ordem social que
garantiu a busca pelo estabelecimento de uma polícia profissional e permanente por parte do
Governo inglês, isto porque os sistemas policiais anteriores a 1829 eram fragmentados,
amadores e privatizados, o que acabava por fazer os seus agentes incorrerem em atos de
corrupção. Assim, a reforma da polícia inglesa foi motivada pelo “medo do crime”, que era
alicerçado pelo desregramento moral. No entanto, houve oposição à implantação da nova
polícia que se baseava no discurso de que as liberdades tradicionais dos ingleses poderiam ser
suprimidas, tanto do ponto de vista dos aristocratas quanto dos trabalhadores. Só que, tal
oposição foi rapidamente abolida quando os valores positivos da nova polícia passaram a ser
reconhecidos. E por esse liame, os pesquisadores ortodoxos defendem a ideia de que a
novidade por trás do policiamento que surgiu “consistia na instituição de uma organização
32

burocrática de profissionais, racionalmente administrada e direcionada para uma política de


„policiamento preventivo‟” (REINER, 2004, p. 43), o que gerou um impacto positivo, de
modo que principalmente teria sido a classe trabalhadora e os pobres os maiores beneficiados
com a criação da nova polícia. Daí ter surgido o conhecido jargão citado por Reith de que “a
polícia é o povo e o povo é a polícia”, que nos leva a observar um suposto controle do povo
sobre as instituições policiais inglesas, ou melhor, o que pode ser visto como a consolidação
do poder popular, argumento esse que notabiliza um Estado democrático. Toda a retórica
ortodoxa, pois, fundamentou a criação da polícia voltando-a para o estabelecimento do
“consenso” e não da coerção. Em síntese, a explanação histórica dos historiadores
considerados “ortodoxos” situa a implementação da nova polícia a partir de “reformadores
previdentes” que souberam aliar elementos contraditórios como ordem e liberdade.
De maneira oposta, os teóricos “revisionistas”, em certo sentido, refutam o argumento
tendencioso dos ortodoxos que propõem a defesa histórica de uma polícia que beneficia
especialmente os menos favorecidos socialmente. Enquanto os ortodoxos, neste sentido,
aproximam-se de uma visão “idealista”, segundo Reiner (2004), os revisionistas adotam um
ponto de vista “materialista”. Por esse viés, para os historiadores revisionista-materialistas, as
consequências da urbanização e industrialização também estão presentes, no entanto, o que se
tem é o “desenvolvimento de uma segregação muito maior entre as classes. As áreas pobres
podem ter gerado mais crime e desordem, em conseqüência do anonimato, da desmoralização
e do desespero” (Ibidem, p. 50). Nessa consideração,

Em resumo, a visão revisionista enfatiza muito menos a ineficiência intrínseca do


antigo policiamento privado do que sua crescente inadequação às novas relações de
classes de uma sociedade capitalista. Isso rompeu as redes sociais existentes,
destruiu a moral das comunidades, substituiu os laços pessoais pelos vínculos
salariais e causou imensa pobreza e desmoralização. Então, o motivo para a
formação da nova polícia foi a manutenção da ordem exigida pela classe capitalista,
sendo que o controle do crime, dos tumultos, das dissidências políticas e da
moralidade pública é conseqüência separada desta missão mais ampla (Ibidem, p.
54-55).

Pelas consequências apresentadas que legitimam a visão dos pesquisadores


revisionistas sobre a criação da polícia, teríamos então que a oposição das classes
trabalhadoras à implantação da nova polícia não desapareceu tão rápido como afirmam os
ortodoxos, pois, conflitos intermitentes se estenderam, e as batalhas nas ruas nos anos 80 do
século XX servem de exemplo. O que se pode dizer ainda com base no argumento dos
33

revisionistas é que a nova polícia surgiu conforme um modelo burocratizado, no melhor


sentido weberiano (WEBER, 1982), o que consolidou uma autoridade pautada na
impessoalidade que se distanciou dos antigos modelos de cunho particularista. Essa visão de
uma polícia racionalizada, pois, distante da crença ortodoxa do “policial cidadão”, permitiu a
inserção do policial profissional em uma instituição que se desenvolveu de forma
“disciplinada e tecnologicamente avançada” (Ibidem, p. 58), o que aponta, desde esse
momento histórico, para se observar a distinção entre policiais e cidadãos.
Só que não esqueçamos que as proposições dos revisionistas traçam um panorama
ideológico em relação à criação da nova polícia na Inglaterra. E esse percurso retrata o
surgimento de uma “sociedade policiada”, na qual a autoridade policial passou a agir em
nome das classes dominantes burguesas e do Estado, que passa a agir repressivamente quando
o consenso é rompido e que, “em tempos normais, a polícia pinta uma cobertura brilhante de
serenidade no tecido decadente do capitalismo” (Ibidem, p. 59). Ao contrário, então, da
crença de se ver a classe trabalhadora e os pobres como beneficiários da nova polícia,
teríamos a burguesia como a classe que lucrou com a eficiência do policiamento profissional,
já que esse garantiu a proteção da propriedade burguesa, bem como assegurou sua segurança e
passou a estabelecer a ordem social para garantir a posição e o poder dos dominantes. Além
disso, a própria instituição policial legitimou sua autonomia.
De modo concludente, Reiner (2004) nos coloca na direção de entendermos que,
historicamente, ambos os posicionamentos, quer os dos historiadores que defendem uma
polícia criada pelo consenso ou daqueles que argumentam a favor de uma polícia que protege
os ideais burgueses, em certo sentido, não podem estar isentos de críticas. Assim, o que pode
ser destacado é que, por exemplo, quanto à ideia do que estava errado com os modelos
anteriores à nova polícia, eles não eram tão ineficazes assim como é apontado por
pesquisadores ortodoxos e revisionistas, pois, “o sistema de justiça criminal do século XVIII
era diversificado e arbitrário, mas não era ineficiente como os primeiros autores sugeriram.
Nem era a arma unilateral da classe dominante, retratada pelos revisionistas” (REINER, 2004,
p. 68). Está-se a falar de um modelo de policiamento mais “complexo” do que se supunha,
mas que de toda forma se adequava ao sistema social vigente à época.
Outra consideração que foge às explicações dos ortodoxos e revisionistas diz respeito
ao fato de que, se ambas as posturas indicadas acreditam que o crime e a desordem seriam os
veiculadores da criação da nova polícia, de acordo com as perspectivas próprias a cada um
dos dois grupos de teóricos, por outros parâmetros, teríamos a criação e profissionalização da
polícia vinculadas à forma como o governo local passou a organizar racionalmente o seu
34

modelo de administração. Além disso, é possível afirmar que tanto as classes alta e média
como as classes trabalhadoras se opuseram à implementação dos novos órgãos policiais. As
primeiras por não aceitarem perder as liberdades civis, pagar os impostos advindos com os
custos de uma polícia pública e pela interferência do governo em assuntos locais por meio da
ingerência policial. Quanto às classes operárias, receava-se a intromissão da polícia em
momentos de recreação e nas formas de atuar no controle das reformas políticas e industriais.
Ainda mais,

Em resumo, embora fosse pequeno seu impacto inicial em qualquer coisa que não
fosse a economia casual das ruas e suas ilegalidades marginais, no final a polícia
estava envolvida em um amplo processo de pacificação ou integração da sociedade
vitoriana. Apesar de ser difícil estabelecer o peso de sua contribuição característica,
sem dúvida ela foi significativa (Ibidem, p. 76).

O que se está a admitir pelo exposto é que, o surgimento da nova polícia inglesa
acabou por conformar um certo grau de legitimidade com base no consenso (TAVARES DOS
SANTOS, 1997), mas de modo a se ter conhecimento que a ordem social capitalista está
eivada pelo conflito, o que poderá suscitar momentos alternados de pacificação e opressão na
relação entre polícia e sociedade. O que percebemos é que a polícia inglesa tornou-se uma
representação do lado mais comunitário de policiar que influenciou as polícias ocidentais,
inclusive a brasileira. De todo modo, por não encontrarmos nas explicações de Reiner (2004)
argumentos suficientes para entendermos o que propomos no nosso problema de tese,
importa-nos compreender como se estruturam relações de poder no momento em que as
instituições policiais visam uma “proximidade” com a sociedade, por meio da afirmação de
um discurso mais democrático.
Por esse prisma, se tivemos até aqui na história da relação entre polícias e sociedades
no Ocidente, a partir de um contexto histórico exemplificado pelo modelo inglês de polícia,
na modernidade, uma espécie de pêndulo (HELLER; FEHÉR, 1995) entre o consenso pela
permanência da organização social e a arbitrariedade policial para a manutenção da ordem,
nos posicionamos, neste sentido, para buscar entender relações de poder que indicam ser o
poder “uma forma de exercício da dominação caracterizado pela legitimidade, e por sua
capacidade de negociar o conflito e estabelecer o consenso” (TAVARES DOS SANTOS,
2009, p. 39). Diríamos, nesse contexto, que estamos a falar de relações de poder que se
coadunam com formas de governamentalidade (FOUCAULT, 1979), ou com modos de
conduzir estrategicamente populações, fortalecendo o próprio poder e sofisticando as
35

dissimetrias entre os agentes que participam da relação (o que, para nós, tratar-se-ia de
observar de um lado a polícia e do outro a sociedade). Estamos, neste sentido, no plano da
biopolítica5 e do biopoder, ou melhor, na situação a partir da qual a vida das populações no
Estado-moderno tornou-se alvo de regulamentações estatais sustentada por uma relação de
saber-poder (FOUCAULT, 1988, 1999). Por essa percepção, temos que “todos os tipos de
domínio residem na mediação institucional do poder, mas são canalizados pelo uso de
estratégias definidas de controle, que dependem, em grau significativo, da forma de
dominação de onde são geradas” (GIDDENS, 2008, p. 36).
Nesse foco, recobramos Foucault (1987) quando o mesmo nos diz que tais estratégias
se fortalecem a partir da emergência de saberes, pois, “o poder produz saber. Poder e saber
estão diretamente implicados. Não há relação de poder sem constituição correlata de um
campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de
poder” (p. 27). Vejamos abaixo, como exemplo, a propaganda (saberes), utilizada pela Polícia
Militar da Paraíba para divulgar o policiamento solidário na cidade de João Pessoa.

FIGURA 1 (esquerda): Cartaz do programa de policiamento solidário em João Pessoa-PB.


FIGURA 2 (direita): Frase que denota “Linha solidária”, numa viatura da Polícia Militar em João Pessoa-PB.
FONTE: Arquivos do autor (2013).

Mas, antes que possamos compreender esse processo envolto por estratégias que
sustentam um novo modelo de policiamento mais próximo da sociedade, mostremos,
portanto, como se fundamentou a suposta falência do modelo profissional e tradicional de
polícia que serve de mote para o discurso de implementação do policiamento comunitário e
solidário.
5
Para um melhor conhecimento acerca do debate atual sobre biopolítica ver a coletânea de textos organizada por
Campbell &Sitze (2013).
36

1.1.2 – O Discurso sobre a Falência do Modelo Tradicional de Polícia

Após a consolidação da “legitimidade” da polícia, sendo a Polícia Metropolitana de


Londres (MET) a delimitação histórica desse processo, caminhemos no sentido oposto para
observarmos o que podemos entender como a “queda de legitimidade” da polícia (REINER,
2004). No entanto, para isso, seguiremos os passos de Batitucci (2010) ao traçarmos uma
visão que aproxime a ocorrência desse acontecimento na Inglaterra, nos Estados Unidos e no
Brasil, pois tal comparação serve para demarcarmos quais são as particularidades que
caracterizam a criação das polícias militares brasileiras.
No caso da polícia inglesa, a análise histórica mostrou que as últimas décadas do
século XX, especialmente a partir da década de 60, teriam deixado para trás a imagem
positiva construída pelo bobby inglês.6 Foi a época das transformações advindas da chegada
do patrulhamento de rondas motorizado, além da busca profissional baseada na tecnologia.
Creditou-se a tais inovações a aproximação com as comunidades, visto que as viaturas
proporcionariam mais agilidade para atender emergências. Mas, ao contrário, as expectativas
se frustraram e o que acabou ocorrendo foi uma certa “politização” da polícia, inclusive pela
eclosão de movimentos de contracultura (protestos pela guerra no Vietnã e contra o
apartheid) que geraram confrontos com a polícia.
O conjunto desses eventos desencadeou a fragmentação da imagem da polícia inglesa
que passou a não mais ser vista como uma burocracia eficiente nem disciplinada,
especialmente pela série de escândalos de corrupção que passou a ser denunciada no final da
década de 1960. Enquanto a polícia montava sua guerra contra a criminalidade, ela era ao
mesmo tempo denunciada por não respeitar as prescrições legais que a legitimaram no
passado. O princípio do uso da força mínima cedeu espaço para a criação, no início dos anos
1980, de pelotões especializados em distúrbios grevistas que passaram a utilizar de táticas
militares nos confrontos, “além da crescente utilização de equipamentos para controlar
tumultos, tem ocorrido na Inglaterra uma rápida proliferação do uso de armas de fogo pela
polícia” (REINER, 2004, p. 113). Esses fatos criaram tensões quanto à responsabilização da
polícia, mas não impediram o discurso institucional de manter a “lei e a ordem” e, ao
contrário de uma polícia preocupada com a prestação de serviços e prevenção, se viu o
estabelecimento da cultura de combate ao crime. Segundo Holdaway (apud REINER, 2004), o
uso do patrulhamento em rondas motorizadas “encorajou, no trabalho policial, o

6
Nome popular como ficaram conhecidos os policiais da Polícia Metropolitana de Londres.
37

desenvolvimento de uma perspectiva hedonista de ação e a glorificação das emoções da


perseguição com automóveis, do combate e da captura” (p. 121). Assim, o que se verificou foi
um certo desprezo moral na atuação dos policiais para com aqueles que se distanciam dos
valores reconhecidos pelos policiais como adequados, principalmente os desempregados, que
passam a ser vistos como pessoas sem cidadania. Além dos desempregados e moradores de
rua, as relações com as comunidades negras também se deterioraram e a discriminação racial
por parte da polícia se efetivou na prisão de jovens negros pelo cometimento de crimes
banais.
No que tange à polícia norte-americana, a mesma orientou sua organização
profissional de acordo com o modelo proposto pela polícia inglesa (MONKKONEN, 2003;
LANE, 2003; BATITUCCI, 2010; BITTNER, 2003), especificamente quando se fala da
busca do limite da ação estatal e policial frente às garantias e liberdades individuais. No
entanto, a realidade norte-americana possui suas particularidades como, por exemplo, a
permissão oficial para o uso de arma de fogo (LANE, 2003). Com o passar do século XIX, a
nova polícia nos Estados Unidos desenvolveu-se baseada numa forte centralização
hierárquica, aos moldes militares, que estruturou o comando e as comunicações. Ao invés do
judiciário, o executivo assumiu o comando das polícias nas diversas cidades e, os policiais
ganharam visibilidade pelo uso do uniforme e passaram a receber salários fixos.
(MONKKONEN, 2003). Nessa nova regimentação, inicialmente, a polícia preocupou-se com
as desordens populares, mas também desempenhava a assistência social, de modo que os
departamentos policiais serviam de dormitório aos sem-teto. Com o passar do tempo, a
reformulação na assistência social juntamente com a visão de alguns chefes de polícia
“começaram a diferenciar os componentes das “classes perigosas”; e os desempregados, para
eles, tornaram-se os vagabundos e não aqueles que eram perigosos” (Ibidem, p. 586). Esse
fato consubstanciou uma política voltada, a partir dos anos 1890, para o controle dos crimes
praticados pelas classes desassistidas.
Só que essas transformações no final do século XIX prenunciam o profissionalismo
dos sistemas policiais americanos que se tornaram efetivos a partir da década de 30 do século
XX. O decorrer do século XIX, porém, demonstra que as polícias nos Estados Unidos foram
marcadas principalmente pela forte dependência do contexto político local. Assim, ocorreu
forte oposição política à implementação efetiva do modelo de polícia londrino que era
baseado em regras impessoais, mas outras características foram adotadas como o
policiamento contínuo e preventivo, em contraponto à atuação reativa. No entanto, “a polícia
local supostamente deveria, nos Estados Unidos, ser composta por residentes e eleitores
38

politicamente ativos. A força policial ganhava o nome do prefeito que estivesse no poder”
(LANE, 2003, p. 23). Existiam modelos de policiamento descentralizados sob a influência dos
particularismos locais, mas entre as décadas de 1850 e 1880, talvez pela demanda sobre o
controle das atividades policiais que se tornara preventivo e permanente, massificou-se a
uniformização dos policiais em todo o país. Outra vertente defende a ideia de que tal
massificação de homens fardados tenha seguido o ritmo da racionalização dos serviços
públicos, como os policiais, que antes eram de caráter particular (BATITUCCI, 2010).
Esse processo, pois, engendra o afastamento das polícias norte-americanas dessa
aproximação com os políticos locais o que fez com que, no transcorrer do século XX, as
instituições policiais nos Estados Unidos passassem por inúmeras transformações que
acabaram por consolidar um policiamento baseado no patrulhamento de cunho reativo. Essas
modificações foram implementadas não só no serviço de atendimento aos cidadãos, mas na
dinâmica interna das instituições policiais, bem como na relação que as polícias mantêm com
os ambientes externos, como as estratégias criadas para combater a corrupção policial. As
mudanças ocorridas basearam-se, como já pontuamos anteriormente, no estabelecimento de
uma burocracia quase militar que se desenvolveu para configurar-se como “legalista e
tecnocrática”, a qual gerou implicações no sentido de que, quanto ao sistema de controle
hierárquico os policiais passaram a obedecer ao comando policial, ao invés do poder das
autoridades políticas como ocorria no século XIX. Passou a existir uma confiança legal na
polícia (REISS JR., 2003), devido aos parâmetros de organização que foram adotados. A
burocratização dos serviços policiais também possibilitou a divisão entre os que trabalham na
linha de frente e os profissionais de escritório, além de afastar também do apadrinhamento
político a formação policial, que se realizou a partir de então “por um sistema de mérito
baseado em testes de qualificação e um sistema de promoções baseado em patentes” (Ibidem,
p. 86). Por fim, a burocratização das funções policiais consolidou uma divisão institucional do
trabalho que especializou as tarefas e fixou os locais de jurisdição.
Assim, as mudanças na estrutura da organização policial norte-americana estiveram
vinculadas às modificações ocorridas na sociedade como o aumento populacional das cidades,
a transformação nas políticas governamentais em relação às comunidades, além das
implementações tecnológicas. Sobre as últimas, o impacto da utilização dos novos aparatos
tecnológicos (o uso de veículos no patrulhamento, o rádio como mecanismo transmissor e o
telefone) acabou por consolidar o que passamos a conhecer como policiamento tradicional ou
profissional. Sobre as consequências da efetivação dessas políticas de mudança institucionais
no âmbito das polícias estadunidenses
39

A capacidade dos cidadãos para mobilizar a polícia e outros sistemas de emergência


cresceu graças ao desenvolvimento do sistema centralizado de comunicação por
telefone, o 911, e logo sobrecarregou a maior parte dos recursos em muitos
departamentos de polícia. As primeiras vítimas dessa tecnologia foram a ronda a pé
e o posto policial. Com o fechamento dos postos policiais, os cidadãos não tinham
mais, na vizinhança, um lugar onde apresentar suas queixas ou resolver seus
problemas. Esses só poderiam ser tratados pelo envio de policiais, após a
mobilização telefônica, ou indo até o posto central. Não era mais necessário que
policiais patrulhassem a pé, pois um só policial, de carro, podia cobrir toda a área
(REISS JR., 2003, p. 66).

Ainda mais, pode-se afirmar que uma das maiores perdas diz respeito ao isolamento
das polícias em relação à sociedade, pois, “o oficial de patrulha, em um carro com ar
condicionado e aquecimento, não saía mais dele para fazer patrulha preventiva ou saber mais
sobre a comunidade que estava policiando” (Ibidem, p. 67), o que significa dizer que a
confiança da população nas polícias para resolver seus problemas se exauriu e, no tocante a
certos segmentos sociais como alguns grupos minoritários, o sentimento foi de hostilização
por parte dos policiais.
As observações sobre o fracasso, em certo sentido, do modelo inglês e norte-
americano de polícia nos acenam para o surgimento, na atualidade, da tentativa de se
remodelar as formas de atuação policial que visem à reaproximação entre polícia e sociedade,
mas antes vejamos como o modelo policial brasileiro seguiu a mesma lógica do policiamento
tradicional, mas de acordo com características próprias ao modo como as polícias se
desenvolveram em nosso país.

1.1.3 – O Sistema Policial Brasileiro e a Estrutura Militarista

Ao falarmos da história e do desenvolvimento das polícias brasileiras, devido ao


recorte adotado neste trabalho, direcionamos nosso olhar especificamente para as Polícias
Militares. Em nosso país, as organizações policiais militares são responsáveis pelo
policiamento ostensivo fardado e a manutenção da ordem pública7e, por carregarem o
emblema do militarismo seus agentes tornam-se, ao mesmo tempo, policiais e militares.
Nesse sentido, as Polícias Militares não realizam o ciclo completo de polícia, pois, a parte
investigativa e judiciária passou a ser administrada pela Polícia Civil, oficialmente desde a
promulgação constitucional de 1988.

7
Ver Constituição Federal de 1988.
40

Por esse olhar, ao buscarmos entender como se consolidou historicamente o


policiamento profissional a partir das Polícias Militares deparamo-nos com um problema.
Devido ao fato de que as instituições policiais militares em nosso país serem de
responsabilidade dos Estados da Federação, ou seja, de vinte e sete entidades político-
administrativas diferentes8, torna-se difícil descrever a história de tantas instituições, pois esse
fato nos leva a perceber que estamos a falar de “muitas datas, normas, leis, códigos,
personagens, os acontecimentos e os fatos históricos que, de uma forma ou de outra,
interferem na história da organização” (BARROS, 2005, p. 32). No entanto, por conta do
modelo de organização em comum, é-nos possível retraçar um panorama histórico, de forma
sintética, das Polícias Militares brasileiras a partir de eventos que se tornaram importantes não
só para a história particular de cada polícia estadual, mas para conformar um quadro geral que
diz respeito à consolidação do modelo policial militar no Brasil. Em meio a essa proposta,
situaremos a presença da história da Polícia Militar paraibana, objeto de nossa análise.
Nesse percurso, ao olharmos para o período colonial brasileiro, podemos dizer que as
formas de organização de forças que atuavam em nosso território eram baseadas em modelos
advindos do Exército português, mas ainda assim incipientes. Tivemos as Ordenanças, as
Milícias e as Tropas de linha. As primeiras eram compostas por homens que tinham a função
de atuar em situações emergenciais como invasões e perturbações da ordem, momentos nos
quais seus integrantes faziam o uso de armas, no entanto não eram remuneradas. As Milícias,
que auxiliavam as Tropas de linha, já eram formadas por categorias distintas (enquanto os
soldados eram brasileiros, os postos para Oficiais eram reservados para portugueses) e tinham
na sua composição pessoas da população local. Eram também empregadas em situações de
emergência, porém, recebiam além do treinamento, uniformes e armas do Exército. Por fim,
as Tropas de linha eram forças regulares e pagas constituídas por portugueses para agirem em
nome da Metrópole. No conjunto das práticas de policiamento na colônia a repressão se
sobressaía, visto que a prevenção da criminalidade não era o objetivo visado. As atividades
relevantes diziam respeito à escolta de condenados à justiça, à captura de foragidos e a caça a
escravos que fugiam por não aceitarem as condições de trabalho que lhe eram impostas. Tem-
se um tipo de policiamento que se assemelha à função que era exercida pelo capitão do mato,
que caçava os escravos fugitivos em nome dos senhores proprietários dos negros
(PINHEIRO, 2008).

8
Inclui-se, nesse sentido, o Distrito Federal.
41

O caminho das mudanças no tocante à organização de um aparato policial no Brasil


ocorreu a partir da chegada da família real portuguesa em 1808 no Rio de Janeiro. Com o fito
de proteger a Corte, D. João VI criou em 05 de abril de 1808 a Intendência Geral da Polícia da
Corte e, em 13 de maio de 1809 criou a Divisão Militar de Guarda Real de Polícia da Corte.
Só que a criação desses aparatos serviu apenas para legitimar o caráter repressivo que
acompanhou o modelo de administração da Metrópole em relação à Colônia, o que se traduz
numa vigilância maior acompanhada de métodos violentos especialmente contra os negros,
ex-escravos e outras categorias de indivíduos como os estrangeiros que estavam alijados do
processo de transformação urbano-político-econômico que se acentuou no Império com a
chegada da Corte portuguesa. De certo modo, esse período denota o advento de nossas
“classes perigosas”.
Mas é apenas no período regencial que surgem forças policiais que passam a ser
constituídas nas diversas províncias. O surgimento dessas instituições acompanhou, em certo
sentido, as mudanças que se efetuavam na sociedade. Se antes os negros eram controlados por
seus donos mediante o castigo físico, com o processo de urbanização e crescimento das
cidades surgiram dificuldades para as elites manterem seu poderio, dadas as resistências que
passaram a ser criadas pelas classes sociais inferiores no espaço público. Desse modo, houve
um movimento de profissionalização do sistema criminal-judiciário e com o processo de
emancipação política ocorrido no Brasil seguido do término da Guarda Real em 1831,
tivemos a importação de conceitos de policiamento e gestão judiciária vindos da Europa, que
se traduziu na criação do juiz de paz e da Guarda Nacional (MELO, 2009). Segundo
Holloway (1997), essas transformações operadas no Rio de Janeiro para a melhoria
administrativa das forças policiais, que passavam a atuar armadas e uniformizadas, são
contemporâneas das mudanças ocorridas na Europa Ocidental (como vimos em relação à
Inglaterra com a criação da Polícia Metropolitana de Londres em 1829) e anteriores à
profissionalização das polícias norte-americanas. No entanto, no caso brasileiro, torna-se
difícil falarmos da construção histórica de uma polícia urbana baseada no “consenso” e
“legitimidade”, pois, o papel principal dos aparatos policiais pode ser traduzido na violência,
coerção, prisão e perseguição aos negros, capoeiras, pobres e marginalizados.
Concomitante à preocupação das elites com as “classes perigosas” emergentes o
período regencial brasileiro foi palco de diversas insurreições e revoltas provinciais (Sabinada
1837-1838, Balaiada 1838-1841, Revolução Farroupilha 1835-1845) que trouxeram
instabilidade política ao período. Tais acontecimentos ensejaram algumas medidas por parte
do regente Diogo Antônio Feijó que já tinha criado em 1831 a Guarda Nacional, que era uma
42

força militar voluntária. De todo modo, ao abolir a Guarda Real, devido a sua participação em
agitações políticas, criou-se “em seu lugar uma corporação com caráter também militar, mas
com distinções fundamentais, como o recrutamento entre os pobres e subordinação a uma
autoridade civil” (MELO, 2009, p. 40). Nesse contexto, em 1831 surge o Corpo de Guardas
Municipais Permanentes no Rio de Janeiro, o qual foi fundado

Para funcionar como estrutura pilar da repressão institucional. Sua


profissionalização foi a principal inovação introduzida com a criação dos
permanentes. Os soldados militares não foram alistados entre as classes abastadas, e
sim pela contratação de indivíduos pertencentes à base da pirâmide social, que
receberiam uma renda mínima em compensação a um regime de disciplina,
hierarquia e obediência sem contestação. A profissionalização militar foi a solução
encontrada pelas elites, especialmente pelas frações aliadas ao liberalismo
moderado/autoritário, para cobrir o vácuo deixado pela extinção da Guarda Real
(Ibidem, p. 40).

O movimento de criação dos Corpos de Guardas Municipais Permanentes passou a


ocorrer em todas as províncias do Império, já que tinha sido baixado um Decreto em 1831 que
determinava tal intento. Como exemplo, tivemos a criação dessa força policial em Minas
Gerais em 1831 e São Paulo no mesmo ano. No tocante à polícia paraibana, a qual é aqui
analisada, sua institucionalização como Guarda Municipal Permanente da Paraíba se deu em
03 de fevereiro de 1832. No dia 2 de junho de 1835, através da Lei nº 09, o Corpo de Guardas
Municipais Permanentes recebeu a denominação de Força Policial. Essa denominação
perdurou até 1892, ano em que a nomenclatura mudou para Corpo Policial. Ao longo do
tempo, a polícia paraibana ainda foi denominada de Corpo de Segurança, Batalhão de
Segurança, Batalhão Policial, Regimento Policial, Força Policial, por três vezes, e Força
Pública. Em 1947, o nome Polícia Militar da Paraíba foi instituído mediante decreto
constitucional (LIMA, 2013). Ainda quando da criação do Corpo de Guardas Municipais
Permanentes da Paraíba, percebe-se como sua origem seguiu os princípios militaristas que
regeram os demais Corpos Municipais nas Províncias do Império brasileiro. Por esse
argumento, três dias após a sua criação em 6 de fevereiro de 1832, o Conselho Provincial
definiu a organização do Corpo em Infantaria e Cavalaria (com 50 homens ao todo, sendo 35
à pé e 15 à cavalo). Além disso, o modelo adotado passou a ser regido hierarquicamente com
a definição das patentes de Capitão, Sargento, Furriel, Cabo e Soldado, onde todas tiveram
remuneração definida de acordo com a função exercida, com o estabelecimento de um
fardamento e o aquartelamento da tropa.
43

De modo geral, a criação das Guardas Municipais Permanentes nas províncias do


Império nos acena para a compreensão de como se construiu um certo distanciamento entre
forças policiais estatais e a sociedade (especialmente as classes de pessoas menos favorecidas
socialmente) já que,

Muitos foram os argumentos em favor do aparato policial de conteúdo militar.


Acreditava-se que forças policiais aquarteladas poderiam ser mais disciplinadas,
leais e de fácil controle. Isoladas dos “paisanos”, esperava-se a construção de uma
organização com forte espírito de corpo, resistente à corrupção, à arbitrariedade e à
disciplina. Além disso, presumia-se um forte apego a cerimônias, ritos, normas,
hierarquia e autoridade. Afastar os policiais militares do mundo civil foi um bom
mecanismo para deixar distante da população os membros oriundos da sua
comunidade que não deixavam de participar de levantes e movimentos de oposição
ao poder estabelecido. A militarização apareceu, em tais circunstâncias, não só como
proteção do Estado e manutenção da ordem, mas, também, como elemento de
“descontaminação” dos comportamentos e “modos de ser” do que se entendia como
“classes desordeiras” e„perigosas‟” (BARROS, 2005, p. 39).

Pelo que se observa a profissionalização das polícias brasileiras responsáveis


diretamente pela ordem pública ocorreu de modo contrário ao que vimos na Inglaterra e nos
Estados Unidos, onde a preocupação inicial, por mais que não tenha efetivamente ocorrido,
era com as garantias e liberdades individuais. No Brasil, a origem da profissionalização
policial esteve atrelada à adoção do modelo militar, principalmente dos elementos culturais
que constroem o sentido do “espírito militar” (CASTRO, 2004; WRIGHT MILLS, 1981). Ao
invés da busca por uma aproximação com a sociedade, o que se percebe historicamente é a
manutenção de uma estratégia por parte das elites imperiais para que os policiais que atuem
diretamente nas ações que exigem a manutenção da ordem social derivem das classes
“baixas” da sociedade, de modo que os policiais vigiem as pessoas e os espaços de onde se
originam.
No período republicano, essa profissionalização de base militarista acentua-se e, um
fato que se tornou referência para compreendermos este processo foi a chegada da Missão
Francesa para organizar a Força Pública de São Paulo em 1906, chefiada pelo Coronel Paul
Balagny. Devido à eclosão da 1ª Guerra Mundial, a Missão foi encerrada provisoriamente em
1914 e retornou ao Brasil em 1919, para finalmente encerrar suas atividades com a Força
Pública paulista em 1924 (FERNANDES, 2006). Para Azevedo (s.d., p. 7), o impacto
referente à presença da Missão Francesa ocorreu de modo que “após esses anos de formação,
instrução, fardamento, armamento e comando, a Força Policial do Estado ostentava um alto
44

padrão de organização e disciplina, constituindo-se em instrumento de repressão e defesa, em


que os governos se apoiariam legalmente”. Inclusive o modelo de organização alcançado pela
Força Pública paulista foi o que permitiu sua participação na Revolução Constitucionalista de
1932 quando seus integrantes lutaram contra as forças do Governo Federal.
A Missão Francesa também se estendeu à organização do Exército brasileiro,
causando-lhe um grande impacto no seu processo de militarização, de modo que, na verdade,
credita-se o fato de que a presença dos militares franceses em São Paulo acabou por criar um
“pequeno exército” estadual, já que o modelo adotado baseava-se nos moldes da
Gendarmerie. Além disso, a presença dos militares franceses em São Paulo propiciou uma
posterior padronização da carreira policial militar, bem como, sua burocratização, ou seja,

Tanto o treinamento profissional como a doutrinação ideológica (elaboração do


papel do militar) surgem articulados. Enfim, não se visa formar apenas um “bom
soldado”, mas também um “bom militar”. Deste modo, na Primeira República, a
militarização não atinge apenas a instituição, mas os próprios agentes, o que propicia
a sua identificação com a ideologia do Estado. Por sua vez, esta identificação
permite à categoria policial-militar que sua atividade se dê com relativa autonomia
frente às classes de onde provêm seus membros (FERNANDES, 2006, p. 277).

O que se percebe é que existe uma certa continuidade na Primeira República em


relação ao Império no que concerne ao distanciamento que se estabeleceu entre as forças
policiais militares estaduais e a sociedade. Novamente, se destaca a incorporação de membros
na Força Pública que assumem a função de vigiar e reprimir aqueles que pertencem às classes
das quais advieram, pois, a abolição da escravatura permitiu a oferta de mão-de-obra para ser
recrutada não só para atender as demandas do mercado privado, mas também do serviço
público.
Assim, a profissionalização das Forças Públicas no Brasil caminhou ainda mais em
direção de uma instituição militarizada com o final da República Velha quando a Constituição
Federal de 1934, sob o governo getulista, determinou que as forças estaduais passassem
oficialmente a denominar-se de Polícias Militares e que as mesmas seriam reserva do Exército
(Art. 167). A subordinação ao Exército foi uma decisão adotada pelo governo de Vargas para
impedir uma nova revolução como a que ocorreu em 1932, liderada por uma Força Pública
estadual. A partir da Constituição de 1934,“a concepção da polícia enquanto instrumento
político à disposição do Governo Federal se inaugurou de modo formal. Ou seja, a partir da
interação entre “Segurança Pública” e “Segurança Interna” se instituiu uma polícia política
ordenada constitucionalmente” (KROK, 2008, p. 38). O texto da Constituição de 1937,
45

promulgada no Estado Novo, não fez alusão às Polícias Militares, o que voltou a ocorrer com
a Constituição de 1946 onde em seu Art.183 lê-se que “As polícias militares instituídas para a
segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal,
são consideradas, como forças auxiliares, reservas do Exército”.
Com o advento do golpe militar de 1964, foi promulgada a Constituição de 1967, na
qual as Polícias Militares permaneceram como forças auxiliares e reservas do Exército (Art.
13, parágrafo 4). O único acréscimo coube à inserção do Corpo de Bombeiros Militares na
redação do mesmo artigo referente às Polícias Militares. Tal fato se esclarece quando se
observa que “as ações cívicas constituem uma estratégia militar que tem por objetivo garantir
uma boa imagem das instituições militares para com a população” (KROK, 2008, p. 42).
Nesse contexto político, a profissionalização das Polícias Militares consolidou-se mediante a
subordinação ao Exército, ratificando o que prescrevia as Constituições de 1934 e 1946 e sua
função baseava-se na manutenção da ordem e da segurança interna nos Estados, nos
Territórios e no Distrito Federal. Com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, a Segurança
interna foi retirada como prerrogativa constitucional sendo de competência das Polícias
Militares, de modo que permaneceu apenas a manutenção da ordem na referida Emenda
Constitucional.
Nesse contexto, por terem ficado incumbidas da manutenção da ordem pública, as
Polícias Militares tiveram relevante papel na ditadura militar, a qual vigorou sob o enfoque da
“Ideologia de Segurança Nacional” (COMBLIN, 1978) e foi mantida diretamente pelas
condições ideológicas impostas pelo National War College, a Escola Superior de Guerra
Americana (ESG). Segundo Teles (2010), o que legitimou a perpetuação do Estado de
exceção foram os anos de Guerra Fria, pois os princípios da Doutrina de Segurança Nacional
surgiram ainda na Segunda Guerra Mundial no contato entre os militares norte-americanos e a
Força Expedicionária Brasileira (FEB). Antes mesmo do golpe empreendido em 1964, já
eram articuladas aproximações entre militares e empresários pela intermediação da ESG e,
desses contatos, foi criado posteriormente o Serviço Nacional de Informações (SNI), que se
tornou elemento fundamental na manutenção do Estado militarizado no Brasil.
O regime de exceção consolidou-se como tempos difíceis que marcaram o imaginário
popular do brasileiro. As instituições que eram responsáveis por promover um regime político
que assegurasse aos cidadãos seus direitos fundamentais, entre eles, a segurança, percorreram
o caminho inverso. Através das Forças Armadas e dos organismos policiais implementou-se
um regime de perseguição a todos que denunciavam e eram contra o sistema político-social
imposto. Nessa realidade, as palavras insegurança, medo e morte denotam em quais princípios
46

basearam-se os ditames da ditadura no Brasil. Ao relatar especificamente sobre o medo


causado pela polícia nos tempos ditatoriais Cardia (1997) nos diz que,

Esse medo fazia parte de nós que tínhamos algum nível de informação durante os
anos sessenta e começo dos setenta e contaminava o nosso cotidiano. Como você
deveria reagir se a operação OBAN lhe abordasse? Você deveria visitar o seu amigo
ou amiga na cadeia e ser identificado como o amigo dele ou dela? Você deveria ir
assistir ao julgamento de um amigo ou amiga no Tribunal Militar? Apresentar sua
identidade a alguma autoridade não era uma experiência neutra. Se você fosse uma
pessoa minimamente informada, com certeza se sentiria apreensiva ao retornar do
exterior ao país e ver seu passaporte desaparecer em um buraco de uma parede,
sabendo que seria examinado por um anônimo e não tendo certeza se seu documento
seria devolvido ou que tipo de informação estava sendo extraída dele. Todos esse
fatos podiam ser totalmente inofensivos mas também podiam ser perigosos porque
os critérios utilizados pelos policiais não eram conhecidos, ou seja, pelo próprio
arbítrio vivido (p. 250).

Cardia (1997) ainda amplia a compreensão do sentimento de medo na época ditatorial


brasileira ao nos afirmar que a cautela com o próprio comportamento tornava-se automático
pelas pessoas e muitas situações passaram a ser evitadas como expor a opinião pessoal sobre
fatos políticos em ambientes públicos, mesmo nas universidades; deveria-se ter cuidado até
com as conversas com conhecidos, visto não se saber quem estava à espreita e como essas
palavras poderiam ser interpretadas, já que elas poderiam tornar qualquer um suspeito; o
cuidado com o tipo de literatura que se tinha em casa era outro motivo a se temer visto que os
livros poderiam ser considerados inadequados e suspeitos. Essa configuração da suspeita
baseada em informantes era um dos principais instrumentos utilizados pela ditadura para
manter o controle social. Ademais, a lei de censura fortalecia o governo para coibir qualquer
tipo de manifestação popular ou artística e legitimava de forma totalitária a arbitrariedade
contra as formas de resistência aos abusos cometidos e à violência generalizada.
No tocante à ação das Polícias Militares no cenário ditatorial brasileiro, as mesmas
passaram a desempenhar o policiamento ostensivo fardado e foram desaquarteladas a partir de
1967 de acordo com o Decreto-Lei nº 317, de 13 de março. Conforme esse Decreto foi criada
a Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), órgão vinculado ao Exército brasileiro. Com
a IGPM, as PM‟s não só tiveram o reforço da subordinação e do controle exercido pelo
Exército, como também ratificaram o seu modelo de organização. Em 02 de julho de 1969, foi
aprovado o Decreto-Lei nº 667 que passou a reorganizar as Polícias Militares e os Corpos de
Bombeiros Militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, revogando o Decreto-
Lei nº 317. Em 30 de setembro de 1983, nova reformulação na organização das PM‟s e dos
47

Corpos de Bombeiros levou à aprovação do Decreto nº 88.777 e, neste novo conjunto de


diretrizes institucionais permaneceu o ensino das Polícias Militares sendo coordenado pelo
Estado-Maior do Exército através da IGPM, o que fica claro segundo o Artigo 37, item 3, ou
melhor, compete aos mencionados órgãos do Exército “a orientação, fiscalização e controle
do ensino e da instrução das Polícias Militares”. No período ditatorial, portanto, “os policiais
militares ficaram sujeitos ao trinômio: instrução militar, regulamento militar e justiça militar”
(ZAVERUCHA, 2007, p. 33). Ainda mais, com as PM‟s sendo colocadas nas ruas para
promover a ordem pública, institucionalizou-se a cultura profissional das “blitzen”, as
conhecidas batidas e operações policiais que utilizam do uso maximizado da força (SILVA,
2003), as quais ainda hoje são ensinadas nos quartéis do Exército brasileiro como mostrado
nas figuras abaixo.

FIGURAS 3 (Esquerda) e 4 (Direita): Instrução do Exército sobre revista a pessoas e veículos no 16º RCMEC
em Bayeux (Paraíba).
FONTE: Tenente Dutra da PMPB (2007).

Essa violência excessiva, porém legítima, já que respaldada e garantida pelo governo
militar, deixou marcas profundas em nossa sociedade, pois “torturar e matar para depois
desaparecer com os corpos foi um dos primeiros atos da ditadura e a presença dessa memória
na vida pública brasileira é signo da mudez da democracia em relação a sua herança
autoritária” (TELES, 2010, p. 309). Desse modo, após vinte anos de ditadura, o Brasil chegou
ao seu novo contexto democrático onde a promulgação da Carta Constitucional de 1988
tornou-se o ícone maior desse processo de transição. Mas, enquanto as Polícias Militares
preparavam-se para se adaptarem à realidade democrática pós-ditadura, restou também a
herança não só da memória coletiva sobre as atrocidades que foram cometidas, mas a cultura
48

policial militar ratificou seu modo autoritário de atuar, dado o fato do modelo organizativo
sobrevindo do Exército não ter sido descartado mesmo com a aprovação da Constituição de
1988.9
Portanto, de acordo com o percurso histórico adotado por meio de uma perspectiva
comparada entre as polícias da Inglaterra, Estados Unidos e Brasil, no tocante ao processo de
profissionalização das mesmas, vimos que o modelo profissional adotado em cada um dos três
países acabou por gerar problemas que distanciaram polícias e sociedade. De qualquer modo,
mesmo sendo a violência praticada pelos policiais um dos problemas mais graves e presentes
nos três países, nas Polícias Militares brasileiras a violência ilegal exercida pelos PM‟s
sempre esteve atrelada à construção de um profissional que obedece aos ritos e à cultura
militarista. Desse modo, talvez possamos afirmar que o legado autoritário e o modelo de
formação profissional herdados pelas Polícias Militares constituem um dos maiores dilemas
para a consolidação de nossa democracia. No entanto, os debates sobre a reformulação dos
organismos policiais teem ocorrido em todos os continentes como forma de se construir uma
“polícia cidadã” pelos princípios do que foi conhecido como policiamento comunitário.

1.2 – O SURGIMENTO DO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO: EXPERIÊNCIAS NO


MUNDO E CARACTERÍSTICAS

Skolnick e Bayley (2002) assinalam que talvez as primeiras experiências de


policiamento comunitário tenham começado quando da gestão de Arthur Woods como
Comissário da polícia de Nova Iorque entre os anos de 1914 e 1919. Suas ideias foram
apresentadas em diversas conferências na Universidade de Yale e podem ser sintetizadas
como uma busca da valorização pública do trabalho policial de modo que, com o
esclarecimento do público, haveria respeito por parte do mesmo em relação às complexidades
que envolvem os deveres atrelados à atividade policial. Essa estratégia foi pensada como
forma de garantir a colaboração do público para o desempenho consciente e eficaz do ofício
de polícia. As estratégias do programa de Woods estavam centradas principalmente na
aproximação e amparo a jovens pobres, visto que o desemprego era considerado uma das
principais causas da criminalidade aliada à imigração em massa ocorrida nos Estados Unidos.

9
Segundo o § 5º do Artigo 144 da Constituição Federal de 1988, “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva
e a preservação da ordem pública” e, no § 6º, especifica-se que “As polícias militares e corpos de bombeiros
militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos
Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Ver Constituição Federal de 1988.
49

Só que os resultados esbarraram na falta de continuidade do programa quando da saída de


Woods e à corrupção associada à política local.
Com o tempo, podemos entender que o período entre os anos de 1920 e 1960 pode ser
considerado como uma época de tranquilidade social, onde se destacou, como vimos
anteriormente neste capítulo, a busca pela profissionalização da polícia, o que resultou na
implementação de “padrões educacionais mais elevados para a polícia, melhoramentos
tecnológicos, regularidade administrativa, aplicação da lei no combate à corrupção, e uma
autoridade central forte” (Ibidem, p. 60). No entanto, o policiamento realizado em “guardas”
disseminou-se com base no julgamento criado pela polícia em relação a alguns segmentos da
sociedade e sua organização socioeconômica, além de que houve a influência da política e dos
interesses dos chefes de polícia na forma de policiamento adotada. Esse conjunto de
elementos resultou num modo de policiar voltado especialmente para a discriminação racial
contra os negros que fez com que, na década de 1960, a aparente tranquilidade social nos
Estados Unidos fosse perturbada por diversos distúrbios civis. A tentativa de lidar com esses
distúrbios resultou na elaboração do Relatório da Comissão Consultiva Nacional sobre
Desobediências Civis (Report of the National Advisory Commission on Civil Disorders)
lançado em 1968, que se tornou conhecido como o relatório da Comissão Kerner e a
Comissão Presidencial sobre Policiamento e Administração da Justiça (The President’s
Commissionon Law Enforcement and Administration of Justice), que ficou conhecido como
relatório da Comissão do Crime, de 1967 (ROSENBAUM, 2002; SKOLNICK & BAYLEY,
2002).
Skolnick e Bayley (2002), pois, ao analisarem os citados relatórios, concluem que os
distúrbios civis surgiram da associação das hostilidades da polícia para com as populações
negras com o conjunto do sistema criminal e policial que se sustentava por serviços
correcionais inadequados e pela forma desigual no tratamento com os pobres. Somam-se a
tais condições a inexistência na aceitação das denúncias contra a violência policial praticada
nos guetos e a ausência de minorias como os negros compondo o quadro das forças policiais.
Esses parâmetros acenaram para o reconhecimento das limitações e da ineficácia do modelo
tradicional de polícia (ROSENBAUM, 2002), o que fomentou a tentativa de implementação
de alternativas de policiamento, a partir da qual deveria ser incentivada a participação do
público em ações que incentivassem a diminuição do crime.
Uma dessas alternativas foi a criação, nos anos 1960, da Unidade de Relacionamento
com a Comunidade, implantado na Polícia de São Francisco e estudada pela Comissão
Kerner, a qual não alcançou êxito devido ao projeto ter criado dissidências entre os policiais
50

do Departamento de Polícia e aqueles envolvidos no programa de aproximação com a


comunidade. Em outro estudo realizado pela Comissão do Crime em 1973 sobre a experiência
do que foi chamado de “Policiamento em Grupo”, na cidade de Cincinnati, chegou-se à
constatação de que o aumento de policiais na ronda, por setores, não diminuiu as taxas de
criminalidade, bem como, a sensação dos cidadãos em relação à segurança. E como acréscimo
para o insucesso do programa, houve o boicote dos membros da administração média e alta
que sentiram a ameaça da perda de status já que desenvolveram a crença de que seus
trabalhos poderiam se tornar obsoletos com a descentralização das atividades policiais que
propiciaram mais autonomia para tenentes, sargentos e oficiais que trabalhavam no
patrulhamento.
Assim, mesmo com a falta de êxito dos programas de policiamento que visavam uma
certa aproximação com as comunidades na década de 1960 nos Estados Unidos, Skolnick e
Bayley (2002) argumentam que na década de 1980 houve um aumento nas tentativas de
implantação do policiamento comunitário porque os problemas envolvendo a hostilidade dos
organismos policiais com os negros e marginalizados anteriormente elencados agravaram-se.
Além disso, o policiamento comunitário passou a ser adotado também em outros países
devido ao aumento nas taxas de crimes violentos como assassinatos e roubos. Por essa
perspectiva, Skolnick e Bayley (2002) apontam o desenvolvimento de modelos de
policiamento comunitário na Austrália, Canadá, Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Grã-
Bretanha, Japão, Cingapura e Estados Unidos.10
Na Austrália foi implantada a Vigilância de Bairro. No entanto, tal programa quase
não modificou o policiamento tradicional e houve resistência dentro da própria polícia. No
Canadá, destaca-se o policiamento de grupo baseado em zonas, com a reintrodução do
policiamento a pé e o estabelecimento de escritórios policiais em frente às delegacias. Na
Noruega, pode-se citar o projeto experimental do posto policial do distrito urbano de Holmia,
na capital Oslo, no qual seis policiais se revezavam para realizar diversas atividades que
visavam o relacionamento com a comunidade, entre as quais se utilizou o policiamento a pé.
Na Dinamarca, existem três trabalhos preventivos desenvolvidos pela polícia. O primeiro
centra-se na aproximação dos policiais com as escolas com o intuito de instruir os jovens que
não tiveram problemas com a lei. O segundo, designado de SSP (Special Security Program),
funciona dentro das delegacias e reporta-se para crianças com problemas com a lei e a justiça,
como aquelas que cometem pequenos furtos e que pertencem a famílias desestruturadas. O

10
Para o conhecimento de outras experiências ao redor do mundo ver Wisler & Onwudiwe (2009).
51

terceiro diz respeito às casas do policiamento de bairro onde os policiais “realizam ronda a pé,
fazem reuniões com os moradores do bairro, ensinam crianças em um programa educacional,
trabalham com o SSP etc. Andam armados para combater problemas e servem uma área
relativamente circunscrita e designada” (Ibidem, p. 48). Na Grã-Bretanha, o policiamento
comunitário se constitui como uma miscelânea de programas que não possuem centralidade
estratégica, porém, 5% dos oficiais da MET participam das “rondas de moradias”, que se
configura na busca da prevenção do crime, no patrulhamento a pé e na tentativa de estreitar os
laços da polícia com a comunidade. Na Ásia, o Japão possui o modelo mais antigo de
policiamento comunitário conhecido, o qual apresenta os elementos que caracterizam esse
tipo de policiamento (SKOLNICK & BAYLEY, 2002). E, em Cingapura, ao imitar o modelo
do Koban japonês em detrimento do modelo reativo herdado da Grã-Bretanha, foram
implantados os “Postos de Polícia de Bairro”, os quais representam o melhor exemplo na
mudança de uma força policial reativa ao modelo comunitário de policiar. Por fim, nos
Estados Unidos, observam-se diversas experiências pelo país, mas que se traduzem em
“aspiração” ao invés de “implementação” (Ibidem, 2002).
Pelas considerações apontadas, podemos dizer, pois, que o policiamento comunitário
se trata de uma “cooperação maior entre a polícia e a comunidade” (SKOLNICK &
BAYLEY, 2002, p. 69). No entanto, várias implicações surgem dessa constatação principal
sobre o que seja o policiamento comunitário, o que nos leva a destacar uma definição mais
ampla com as principais características que são teorizadas para fundamentar esse tipo de
policiamento.
Diversos autores (TROJANOWICZ & BUCQUEROUX, 1994; MOORE, 2003;
SKONICK & BAYLEY, 2002; SKOGAN, 2002; GREENE, 2002; ROSENBAUM, 2002;
CERQUEIRA, 1999) colaboram para que possamos compreender que o policiamento
comunitário trata-se de uma filosofia e de uma estratégia organizacional que possibilita uma
nova parceria entre a polícia e a população. Por meio de um trabalho conjunto, podem-se
resolver problemas relativos ao crime, drogas, medo do crime, os que ocasionam desordens
físicas e morais, além da decadência do bairro, de modo que se busque a melhoria na
qualidade de vida dos locais onde exista esse tipo de policiamento. Para tanto, é necessário
que exista o comprometimento de todos os policiais com um olhar voltado para a prevenção e
com ênfase na descentralização do patrulhamento, dando-se maior autonomia e liberdade aos
policiais em contato com as pessoas nas ruas. Esse contato visa à aproximação entre policiais
e moradores, inclusive pelo fato do policiamento comunitário privilegiar o patrulhamento a
pé, ao invés do uso da viatura tradicional de rádio-patrulhamento. Essas condições exigem a
52

permanência do policial comunitário nas áreas em que atua. Por esse escopo, “o policiamento
comunitário impõe uma responsabilidade nova para a polícia, ou seja, criar maneiras
apropriadas de associar o público ao policiamento e à manutenção da lei e da ordem”
(SKOLNICK & BAYLEY, 2002, p. 18). De modo sintético, poderíamos dizer que o
policiamento comunitário se baseia na crença que o caracteriza como,

Em essência, uma colaboração entre a polícia e a comunidade que identifica e


resolve os problemas da comunidade. Com a polícia sem ser os guardiões exclusivos
da lei e da ordem, todos os membros da comunidade tornam-se aliados ativos no
esforço para aumentar a segurança e a qualidade dos bairros. O policiamento
comunitário tem implicações de longo alcance. A perspectiva ampliada sobre o
controle e a prevenção do crime, a nova ênfase em fazer os membros da comunidade
em participantes ativos no processo de resolução de problemas e o papel
fundamental dos agentes de patrulha no policiamento comunitário em exigir
mudanças profundas dentro da organização policial. O oficial de patrulha de bairro,
apoiado pela organização policial, ajuda os membros da comunidade a mobilizar
apoio e recursos para resolver problemas e melhorar sua qualidade de vida. Os
membros da comunidade expressam suas preocupações, formam conselho, e tomam
medidas para responder a estas preocupações. Criando uma parceria construtiva que
exigirá a energia, criatividade, compreensão e paciência de todos os envolvidos
(BUREAU OF JUSTICE ASSISTENCE, 1994, p. 7).11

Durante as entrevistas realizadas para este trabalho, alguns policiais militares quando
indagados sobre o que viria a ser o policiamento comunitário, ou até mesmo solidário,
inclusive aqueles que não têm o curso de polícia comunitária promovido pela PM paraibana,
nos responderam que: “É um contato com a sociedade. É você saber quais os problemas da
comunidade. O que é que realmente a comunidade precisa” (Tenente, UPS de Mandacarú);
“Policiamento solidário é aquela polícia que trabalha junto com a comunidade” (Soldado,
UPS São José); “Seria esse contato, esse elo de ligação entre a polícia e a sociedade através
dos seus policiais capacitados com curso de polícia comunitária” (Cabo, UPS Jaguaribe); “Na
verdade o policiamento comunitário é tudo aquilo que nós estamos junto com a população, ou
seja, a comunidade na hora que precisa, nós estamos pronto pra ter uma solução informando o
tipo da solicitação e nós tamo dando um apoio [sic]” (Sargento, UPS Róger); “O policiamento

11
Community policing is, in essence, a collaboration between the police and the community that identifies and
solves community problems. With the police no longer the sole guardians of law and order, all members of the
community become active allies in the effort to enhance the safety and quality of neighborhoods. Community
policing has far-reaching implications. The expanded outlook on crime control and prevention, the new emphasis
on making community members active participants in the process of problem solving, and the patrol officers‟
pivotal role in community policing require profound changes within the police organization. The neighborhood
patrol officer, backed by the police organization, helps community members mobilize support and resources to
solve problems and enhance their quality of life. Community members voice their concerns, contribute advice,
and take action to address these concerns. Creating a constructive partnership will require the energy, creativity,
understanding, and patience of all involved (tradução nossa).
53

solidário é essa proximidade, esse convívio com a sociedade buscando um contato direto pra
diminuir a distância entre a polícia e a comunidade “ (Soldado, UPS São José); “É o policial
conhecer a problemática da comunidade e visualizar por ângulos diferenciados, não agir
apenas como polícia, mas agir como um agente social” (Sargento, UPS Mandacarú).
Se olharmos para o nosso país, por exemplo, podemos dizer que o policiamento
comunitário está mais próximo da democracia, pois rege a nossa Constituição de 1988 em seu
Artigo 144 que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é
exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio”. Isso significa dizer que, mesmo com a abertura político-democrática em nosso
país não se efetivou um modelo de polícia pautado em princípios constitucionais. Dessa
forma, “a solução da crise da polícia passaria pela reaproximação entre a polícia e a sociedade
e pelo desenvolvimento de instituições e práticas capazes de assegurar a prestação de contas
aos cidadãos e o atendimento das expectativas dos cidadãos por parte da polícia”
(MESQUITA NETO, 2011, p. 75).
O que se percebe é que o conceito de policiamento comunitário busca a atuação da
polícia para além do campo estritamente reativo. Ou seja, sai de uma caracterização no papel
da polícia como sendo uma atividade centrada no combate direto ao crime e na manutenção
da ordem, através da ação ensejada pela solicitação telefônica dos moradores após a
ocorrência do crime ou durante a presença nas ruas das viaturas policiais exercendo o
patrulhamento. Ao contrário, a maioria dos atendimentos policiais são emergências de cunho
social como a resolução de conflitos domésticos, atendimento a crianças e pessoas
desaparecidas, problemas com alcoolismo e perturbação do sossego devido ao uso no excesso
de som, situações com usuários de drogas e doentes mentais, socorro médico, atos de
vandalismo, problemas gerados no trânsito, enfim (MOORE, 2003, DIAS NETO, 2002).
Nesse sentido, os policiais que entrevistamos também apontam quais seriam os principais
problemas a serem solucionados que surgem no projeto de policiamento solidário: “Deter,
conduzir à delegacia, conversar, aconselhar. Problema familiar, um marido alcoólatra, ou
agrediu a mãe, ou pequenos furtos. A polícia solidária da forma que foi implantada no bairro
ela serviu ao bairro” (Cabo, UPS do Bola na Rede).
Dessa maneira, pode-se dizer que os movimentos que impulsionaram a implementação
de diversos projetos de policiamento comunitário pelo mundo e, particularmente nos Estados
Unidos, visam não apenas a busca de um modelo de policiamento mais próximo da
população. Torna-se também importante para a implantação de um policiamento comunitário
o trabalho preventivo de combate ao crime bem como, a valorização do trabalho policial que
54

não deve estar pautado na atuação violenta e repressora contra as minorias e as populações
afro-descendentes. Somam-se a essas condições, ainda para fortalecer a criação de uma
polícia comunitária, elementos como o aumento da criminalidade, o medo em consequência
desse aumento e a desordem provinda da deterioração dos bairros. Nesse sentido, destacou-se
como justificativa a “teoria das janelas quebradas” proposta por Wilson e Kelling (1982), que
nos demonstra que, caso exista uma janela quebrada e ela não seja consertada, certamente o
resultado será mais janelas quebradas, o que significa dizer que essa deterioração pode
estimular a prática de atividades criminosas sérias estabelecendo uma correlação entre crime e
desordem. Assim, ao sintetizar as conclusões de algumas pesquisas que correlacionam crime e
desordem e o consequente aumento no medo do crime, Rosenbaum (2002) expõe que

A desordem é extremamente importante porque manda um sinal claro aos residentes


e outros que utilizam os locais em que a ordem social deteriorou. Janelas quebradas,
prédios abandonados, pichações, lixo nas ruas, música alta, crianças andando
sozinhas – a mensagem é clara para todos – as pessoas são, ou incapazes ou
indiferentes para intervir em defesa de seu bairro e de seus vizinhos. A mensagem
para os delinqüentes potenciais é clara – como a ordem social se deteriorou nesta
área, ninguém vai interferir se você decidir assaltar uma loja, quebrar a janela de um
apartamento, molestar uma senhora idosa, ou mesmo matar alguém. A mensagem
para as vítimas potenciais também é clara – esta área não é segura e aqui você pode
ser vítima de um crime (p. 35).

Essas considerações nos fazem retomar os propósitos que originaram as teorias sobre o
policiamento comunitário e a destacar a solução de problemas como um fato que se traduz
como o “cerne da teoria do policiamento comunitário” (Ibidem, p. 39). O “Policiamento
orientado para a solução de problemas” foi proposto por Hermann Goldstein (DIAS NETO,
2002; SKOLNICK & BAYLEY, 2002; BRODEUR, 2002; MOORE, 2003; GREENE, 2002)
e se diferencia do policiamento comunitário em sua aplicação, porém, corrobora em muitos
princípios, propósitos e objetivos com o policiamento comunitário. Segundo Palmiotto
(2011), além das considerações propostas por Goldstein, o policiamento orientado para a
solução de problemas também sofreu influência da proposta criada por Eck e Spelman
cunhada de incident-driven policing. De todo modo, ambos os modelos aproximaram-se em
uma abordagem que,

Foi uma tentativa de ir além das limitações do modelo profissional concentrando-se


na finalidade do policiamento ao invés dos meios; encorajando a iniciativa policial
na abordagem de problemas da comunidade; tentando resolver problemas
persistentes pela análise de suas causas; avaliando a adequação de estratégias atuais;
55

desenvolvendo novas soluções e monitorando sua eficácia; e envolvendo a entrada e


recursos da comunidade (PALMIOTTO, 2011, p. 182).12

Segundo Goldstein (apud PALMIOTTO, 2011), o policiamento orientado para a


solução de problemas baseia-se em algumas premissas, as quais indicam que o policiamento
deve levar em consideração uma variedade de diferentes problemas que não apenas o crime,
os quais precisam ser reavaliados para não serem classificados nos moldes tradicionais, pois,
cada problema exige uma solução diferenciada e não uma resposta generalizada que possa ser
aplicada a todos eles. Além disso, a aplicação da lei precisa ser vista como um dos meios
para resolver os problemas e não a única forma juntamente com uma atuação policial baseada
num trabalho preventivo que está para além de respostas eficientes a incidentes que dizem
respeito às manifestações do problema. Assim, resolver um problema torna-se dar ênfase à
análise de prioridades ao invés de utilizarem-se práticas tradicionais de modo que se perceba
que a capacidade da polícia é limitada, apesar da crença policial caminhar num sentido
oposto. O papel do policial o coloca como um “facilitador” para que a comunidade possa
manter-se organizada retirando a responsabilidade apenas da polícia.
Para Eck e Spelman (apud PALMIOTTO, 2011), os princípios que fundamentam o
policiamento orientado para a solução de problemas baseiam-se no fato de que um problema
se resolve com sua eliminação total ao se medir a eficácia da resolução pela ausência do tipo
de incidente criado pelo problema em questão. Só que, desse modo, podem-se eliminar
poucos problemas, não muitos. O problema também pode ter os incidentes que o criam apenas
diminuídos, o que também serve para mensurar a eficácia do resultado. E ainda mais, os
incidentes podem ser manipulados através da criação de métodos como a redução de custos, o
tratamento das pessoas com humanidade melhorando a satisfação das vítimas, entre outros.
Por fim, um problema pode ser resolvido retirando-o da esfera policial, ou seja, medindo-se a
eficácia por um tipo de solução na qual o problema passa da polícia para os outros.
Por esse foco, o policiamento orientado para a solução de problemas visa se prestar
atenção a problemas específicos enfrentados pela polícia de modo que, com base em
informações, eles sejam solucionados de maneira analítica. Busca-se entender as causas por
trás dos problemas de maneira a operacionalizar soluções efetivas e aplicáveis para os
mesmos. Enquanto isso, o policiamento comunitário pauta-se no engajamento e parceria

12
Was an attempt to go beyond the limitations of the professional model by focusing on the ends of policing
rather than the means; encouraging police initiative in addressing community problems; attempting to solve
persistent problems by analyzing their causes; assessing the appropriateness of current strategies; developing
new solutions and monitoring their effectiveness; and engaging community resources and input (tradução nossa).
56

estabelecidos entre policiais e comunidade com o intuito de diminuir o crime e o medo


causado por ele, restabelecendo a segurança e democratizando os espaços públicos, pois “o
policiamento comunitário enfatiza que os próprios cidadãos são a primeira linha de defesa na
luta contra o crime” (MOORE, 2003, p. 139). De qualquer modo, ressalvadas as diferenças
entre as duas concepções, pode-se afirmar que “o policiamento comunitário e o orientado para
a solução de problemas têm sido aclamados como um novo paradigma do policiamento, com
ênfase nos melhoramentos da eficácia policial assim como no aumento da responsabilização
da polícia” (GREENE, 2002, p. 177).
Portanto, por tratar-se de um projeto que envolve a busca na melhoria das condições
de convivência e interação entre policiais e comunidades, o policiamento comunitário tornou-
se objeto dos estudos sociológicos. Além disso, a implantação do policiamento comunitário
deve envolver a participação de outras esferas da sociedade que não só os moradores das
comunidades onde possa ser implantado o policiamento. Falamos, nesse sentido, das
autoridades cívicas eleitas, os pequenos estabelecimentos comerciais e grandes empresas,
instituições públicas e sem fins lucrativos e a mídia (TROJANOWICZ & BUCQUEROUX,
1994). Portanto, a pesquisa sociológica no Brasil, desde a década de 1990, tem sido
desenvolvida para estudar os diversos projetos e tentativas de implementação da polícia
comunitária e as implicações que foram descobertas desses processos.

1.3 - OS ESTUDOS SOCIOLÓGICOS SOBRE O POLICIAMENTO COMUNITÁRIO

Zaluar (1999) empreendeu importante discussão sobre os estudos que envolveram o


fenômeno da violência e do crime no cenário intelectual brasileiro, especificamente no campo
das ciências sociais. A autora faz o levantamento das principais obras e autores que
desbravaram as problemáticas que envolvem a complexa dinâmica dos fatores que estão
relacionados aos temas da violência, crime, políticas públicas de segurança, e temas que em
geral dizem respeito às três esferas que engendram o cenário brasileiro no campo da
Segurança Pública, ou seja, a Justiça Criminal, as organizações policiais e o sistema prisional.
Assim, Zaluar (1999) analisa os seguintes temas que sistematizaram as pesquisas sobre
violência e crime no Brasil: o que é violência; as imagens ou representações sociais do crime
e da violência e o medo da população; contagem de vítimas e dos crimes; a procura de
explicações para o aumento da violência e da criminalidade e o problema social da
57

criminalidade como tema de política pública. O último ponto se concretiza por dois eixos: o
primeiro demonstra a persistência do conflito entre dois principais modelos de políticas de
controle da criminalidade, que seriam o crime enquanto efeito de “macropolíticas sociais” e o
outro baseado nos custos advindos da vitimização a curto prazo, o que acaba por favorecer o
discurso de autonomia das políticas que envolvem a Segurança Pública. O segundo eixo
analisado diz respeito à segurança militarizada e o controle dessa esfera estatal pelo viés
democrático, o que também incide em reconhecer a autonomia desse processo. Como nos
relata a autora, é neste ponto que podemos localizar as problemáticas que envolvem as
polícias, especialmente sobre a violência institucionalizada e o decurso das ilegalidades que
surgem do reconhecimento dessa legitimação.
É nessa configuração que reconhecemos a dinâmica das conflitualidades institucionais
que passaram a envolver as PM‟s,que favorecem atualmente o debate acercada organização de
uma polícia militarizada, porém democrática. É esse discurso que encaminha a tendência atual
das políticas públicas de segurança à concepção de uma polícia mais cidadã, por fim, com
laços mais estreitos com as comunidades nas quais os policiais atuam.
O que podemos notar, de acordo com o contexto exposto por Zaluar (1999) naquele
momento, é uma incipiente coleta de dados e informações sobre o que foi caracterizado pela
autora como uma terceira fase dos estudos sobre a polícia, que seria o aparecimento das
primeiras experiências de polícia comunitária, com análise sobre as tentativas de implantação
dos primeiros projetos. De todo modo, os pequenos conflitos (familiares, entre vizinhos,
pequenos desentendimentos entre os moradores nos bairros) passavam a ganhar visibilidade
analítica. Segundo as primeiras análises sociológicas, essa busca pela nova filosofia policial
centrou-se em políticas públicas que passaram a privilegiar um “Estado social” em desfavor
de um “Estado penal” em nossa sociedade. Articularam-se os primeiros discursos na agenda
das políticas públicas com a concepção de parcerias entre policiais e moradores, com ênfase
na prevenção e participação popular na resolução dos problemas de Segurança Pública.
Decorre desse fato um certo protagonismo popular, que talvez foi interpretado como a
possibilidade de controle por parte da sociedade sobre as instituições estatais oficialmente
legitimadas para manter a ordem pública. Vê-se o nascedouro, pelo menos no plano
discursivo, de um espaço para se criar a visão da prevenção frente à criminalização da
desordem, que deveria ser tratada com o rigor repressivo. Só que, ao mesmo tempo em que se
iniciou o debate para a implantação da polícia comunitária, a relevância da lei e da ordem foi
enaltecida, dados os problemas conjunturais de aumento gradativo do crime em suas variadas
facetas (PASSOS, 2011).
58

Por esse âmbito, as PM‟s passaram a ser objeto de estudo e especulação sobre as
práticas de seus agentes e sobre as particularidades próprias a uma instituição com modelo
específico de socialização vinculado às doutrinas militares, o que acaba por acarretar
sociabilidades advindas dessa socialização provida pelo ethos guerreiro (ELIAS, 1997;
FRANÇA, 2012a; SILVA, 2011, MUNIZ, 1999) e que atinge diretamente o contato dos
profissionais policiais com a sociedade. Com base nesse dilema, passou-se a divulgar o slogan
de uma forma comunitária de policiar. Essa maneira contrapõe-se nos preceitos doutrinários e
na execução ao modo tradicional de polícia, que ficou conhecido como policiamento
profissional, resguardado no nosso país especificamente por basear-se no modelo que alia o
fazer policial com o policiamento ostensivo fardado e o respeito às características simbólicas
do ser militar. Tal modelo constrói identidades que carregam a hierarquia e disciplina como
elementos fundamentais e característicos do modo de organização.
Nesse contexto histórico-sociológico sobre o novo paradigma de policiamento
comunitário no Brasil, destacamos que as primeiras pesquisas estiveram voltadas para a
análise do desempenho dos primeiros programas (ZALUAR, 1999), especialmente em São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Nesse sentido, o trabalho de Beato (2002), já apontava
que, na implementação do projeto de “Polícia de resultados” em Belo Horizonte, em meio a
alguns avanços como a criação de Conselhos Comunitários de Segurança Pública, havia um
distanciamento entre a teoria sobre policiamento comunitário e a prática. Surgiram
dificuldades como maior participação dos estratos superiores das Polícias Militares ao invés
dos policiais que trabalhavam diretamente no contato com as pessoas nas ruas, já que esses
últimos criavam resistência em mudar as formas tradicionais de atuação. Por uma perspectiva
análoga, Souza (1999) constata que nos cinco primeiro anos (1993-1997) de implantação do
policiamento comunitário em Belo Horizonte, mesmo com a parceria entre associações
comunitárias e Polícia Militar, o que houve foi a tensão entre as políticas preventivas do
modelo comunitário de policiar e as formas de policiamento tradicional. Nesse foco,
destacam-se as ações reativas na resolução de crimes por parte da polícia a partir do
policiamento comunitário aliado à valorização da estrutura organizacional de cunho
militarista.
No mesmo caminho, Muniz et al. (1997), demonstram as dificuldades observadas na
implantação do projeto de polícia comunitária no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Participaram da implantação do projeto setores progressistas da Polícia Militar em parceria
com o movimento Viva Rio, mas o lócus de atuação resumiu-se apenas à esfera do 19º BPM
da Polícia Militar. Esse trabalho é uma das primeiras análises na década de 1990 sobre as
59

primeiras experiências do modelo comunitário de policiamento não só no Rio de Janeiro, mas


em se tratando de todo o Brasil. Para os autores, as dificuldades que fizeram o projeto
sucumbir diante da expectativa prévia de um ano para a implantação e a possível
disseminação para outros bairros e setores centrou-se no conjunto de três obstáculos: a
acessibilidade aos moradores do bairro, a troca de parcerias com outras instituições públicas e
as particularidades organizativas e institucionais da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Como
afirmam os autores, o artigo trata-se de um “inventário” sobre as dificuldades surgidas ao
longo do processo de implementação do policiamento comunitário. Só que, o que deve ser
destacado é o fato de levar em consideração que os fatores de desequilíbrio fazem parte desse
processo, mas no caso da experiência do Rio de Janeiro, ao contrário e em comparação com a
implantação do modelo de policiamento similar na cidade de Nova Iorque, nos Estados
Unidos, as dificuldades não possibilitaram o êxito do novo modelo de gestão e execução
policial. Nas palavras dos próprios autores:

Levando-se em conta as resistências e os obstáculos manifestos desde o início do


programa, essa desativação representou a vitória de setores que se opõem a
transformações na doutrina e nas formas tradicionais de atuação policial, que
desejam preservar a auto-suficiência corporativa dos órgãos de segurança pública e
desaprovam ou temem sua abertura ao diálogo com a sociedade civil, e que
consideram inócuo o enfrentamento da desordem pública e exaltam as práticas
puramente repressivas como verdadeiro, senão único, “trabalho de polícia” (Ibidem,
p. 2).

Marinho (2002) contribui no campo da Sociologia das Organizações em trabalho de


cunho estritamente teórico, onde se destaca a comparação entre as características principais do
modelo de policiamento tradicional (profissional) e do policiamento comunitário. Sobre os
aspectos organizacionais o primeiro modelo centra-se na cultura burocrática formal, racional e
com forte hierarquia verticalizada, o que ajuda a dirimir as influências ambientais externas e o
controle da incerteza no próprio processo de gerir a dinâmica interna da organização. Essa
estratégia delimita o campo de ação dos agentes policiais que trabalham na linha de frente na
resolução direta dos crimes, delitos e perturbações de outras ordens, o que tende, no final das
contas, a privilegiar o serviço policial como aquele expressamente repressivo (reativo), pois
se delega princípios de liderança para os policiais que estão nas funções de comando
burocrático. Segundo a autora, essa situação afasta polícia e comunidade, pois os policiais que
têm acesso direto à comunidade não exercem poder de decisão, mas apenas de execução,
mesmo que exista discricionariedade no momento da ação. De modo contrário, a análise do
policiamento comunitário demonstra esse modelo como baseado na flexibilização das ações
60

policiais e, os policiais da linha de frente aproximam-se das comunidades por assumirem o


papel de decisão em suas ações profissionais. Passa a existir descentralização nas ações, visto
que as mesmas inserem-se num ambiente mais complexo e com situações diversas. Não só
crimes devem ser combatidos, mas outros problemas que envolvem a comunidade são levados
em consideração. Fala-se em prevenção ao invés de repressão.
Em pesquisa realizada sobre a implantação da polícia comunitária no Ceará, que foi
denominada de “Ronda do quarteirão”, Pinheiro (2008) demonstra haver “dilemas no
processo civilizador” quando se diz respeito ao controle do excesso de violência ilegal
proporcionada pelos policiais militares quando de suas atividades no policiamento ostensivo
nas ruas. Pinheiro (2008) coloca em destaque os problemas concernentes às relações que se
estabelecem entre as “velhas práticas” e as “novas práticas” de policiar a sociedade. Como o
próprio autor destaca, a partir da análise de casos de violência praticada por policiais
militares, junto à Corregedoria integrada de polícias, a apresentação do programa de uma
nova perspectiva de policiamento destoa das práticas efetivas efetuadas pelos policiais
militares, pois, esses profissionais “na prática, pode recorrer à violência física ou simbólica na
solução dos conflitos sociais” (PINHEIRO, 2008, p. 149). Nesse sentido, tem-se que as
abordagens policiais se distanciam dos acordos formais que visam ao respeito à cidadania e
aos direitos dos indivíduos, visto que tais procedimentos acabam por orientarem-se por uma
lógica de poder onde a “violência não comedida” através de “métodos não convencionais”
torna-se a regra.
Em análise do mesmo programa, ou seja, do Ronda do quarteirão no Ceará, Barreira &
Russo (2012) demonstram os resultados positivos alcançados na diminuição de índices como
roubos e furtos entre os anos de 2007 e 2009. No entanto, os autores também constatam que
esse projeto não garantiu a diminuição nos índices de homicídios e revelou também a
violência praticada pelos policiais militares envolvidos no projeto, além de destacar a
ambiguidade de um programa governamental que almeja ser uma proposta de policiamento
comunitário, mas que privilegia o policiamento repressivo com investimento no
aparelhamento policial e o consequente aumento nas prisões de delinquentes.
Na análise de Loche (2012) sobre a implantação do policiamento comunitário em São
Paulo, no Jardim Ângela em 1998, tal proposta surgiu como resposta à violência policial que
suscitou debates públicos que levaram o governo paulista a colocar em pauta uma possível
unificação entre as polícias civil e militar, o que poderia acarretar a extinção da última.
Assim, o programa de polícia comunitária foi criado principalmente devido à mobilização
popular. Nesse sentido, com o desenvolvimento do projeto, a autora constata que no mesmo
61

encontram-se presentes duas racionalidades distintas: uma de cunho neoliberal, que propugna
a criação de parcerias preventivas por uma lógica de “cultura do controle” (GARLAND,
2001) e outra que efetiva a atuação do Estado na prestação de segurança à sociedade, próxima
da lógica do estado assistencialista.
No entanto, o que se percebe nos estudos até então realizados sobre policiamento
comunitário é a permanência da cultura policial militarista como componente que dificulta
processos de mudança nas organizações policiais militares, além da resistência no uso do
policiamento tradicional realizado em viaturas. Por esse parâmetro, Passos (2011) nos mostra
que no projeto de polícia comunitária em Aracajú, Sergipe, prevalece o patrulhamento
motorizado e, em bairros de classe média, os moradores preferem confiar nos seus
“condomínios fechados” ao invés de criarem vínculos com a polícia militar. Para Batitucci et
al.(2011) importou analisar os dados e referências sobre as experiências até então realizadas
no que diz respeito ao sistema de policiamento comunitário em Minas Gerais. Ao ter como
fonte de informações pesquisas sobre a evolução dos programas de policiamento comunitário
no estado mineiro, os autores destacam criticamente que, mesmo com as primeiras
experiências iniciadas no final da década de oitenta, atualmente persiste o distanciamento
entre os aspectos doutrinários do modelo comunitário de policiamento e a própria execução
do programa; a presença marcante da atuação dos policiais comunitários com base no modelo
de policiamento profissional reativo e repressor; a falta de motivação dos policiais
comunitários devido à ausência de incentivos e recompensas para os mesmos, ou seja, em 15
anos, a tentativa de manter o policiamento comunitário em Minas Gerais esbarra nas
dificuldades culturais e institucionais.
Gottardo e Silva (2011) discorrem sobre a implementação do programa de polícia
comunitária no Estado de Rondônia. Com proposta que foi iniciada no ano de 2003, e a
implantação da filosofia comunitária de policiamento ocorrendo na cidade de Cacoal, tal
estudo apresenta um olhar positivo dos resultados alcançados que precisa ser compreendido.
Não que esses resultados não possam realmente condizer com a realidade, mas por tratar-se de
uma pesquisa de campo, os autores, que afirmam terem realizado entrevista com policiais
vinculados ao projeto e com moradores do bairro, não expõem as falas dos sujeitos
entrevistados, além de apresentarem uma amostra que nos deixa dúvidas no que concerne ao
modo como foi utilizada a metodologia aplicada. De qualquer modo, o estudo nos informa da
existência da preocupação da Polícia Militar de Rondônia em querer fazer uso da nova
filosofia de policiamento.
62

Em pesquisa de campo sobre o policiamento comunitário na cidade de São José, em


Santa Catarina, Fernandes (2011) demonstra a importância do Conselho Comunitário de
Segurança enquanto política pública. A autora baseou-se em estudo de caso sobre o Conselho
de Segurança do bairro de Forquilhinhas, e o que podemos destacar é o fato de ter sido
observado um certo “conservadorismo” por parte da comunidade em relação aos problemas
do bairro, onde se buscava a correção de aspectos morais de alguns moradores, especialmente
os jovens. Além disso, a autora ressalta a ausência de grande parte da população do bairro, em
muitos casos por medo, para deliberar problemas no Conselho de Segurança, o que resultou,
em certo sentido, no fracasso do programa. Costa (2012), também em pesquisa realizada
sobre o policiamento comunitário em Santa Catarina, na cidade de Lages, chega à conclusão
de que passados dez anos de implantação do programa o mesmo não obteve êxito devido a
diversas situações. Entre as principais, destacam-se: a cultura militarista da Polícia Militar que
dificultou o diálogo com os Conselhos de Segurança; a relação entre a Polícia Militar e a
Polícia Civil baseada em conflitos de atuação operacional; a falta de efetivo policial militar
bem como de recursos materiais e a baixa participação popular nos Conselhos de Segurança.
De tudo isso resulta um tipo de violência estatal pela ausência de participação popular nas
questões concernentes à Segurança Pública o que acarreta uma falta de reconhecimento de si e
do outro no campo das políticas públicas.
O caso do Estado do Rio de Janeiro tornou-se emblemático no que concerne aos
estudos sobre uma possível mudança nas formas de policiar, especificamente no que tange às
Polícias Militares. As primeiras análises sociológicas sobre o policiamento comunitário no
Rio de Janeiro, como antes demonstrado neste trabalho, ocorreram a partir de Muniz et. al.
(1997). No entanto, ao fazer um balanço da história do policiamento comunitário no Rio de
Janeiro, Ribeiro (2012) considera que as tentativas empreendidas até aqui (1983-2012) se
tornaram falhas, pois, se nem ao menos se conseguiu consolidar o policiamento considerado
moderno e tradicional, ainda mais distante se torna a tentativa de organização de um
policiamento que construa uma possível proximidade entre policiais e comunidades. Ocorreu,
portanto, uma instrumentalização desses programas de policiamento comunitário, que foram
enviesados estrategicamente para uma burocratização das ações policiais.
Albernaz et. al. (2007) realizaram pesquisa que analisa a implantação dos
Grupamentos de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE) no Rio de Janeiro, que são
programas de policiamento comunitário anteriores às atuais Unidades de Polícia Pacificadora
(UPP‟s). Assim, as autoras concluem que existem contradições entre o que prescrevem as
teorias sobre a filosofia de policiamento comunitário e o tipo de trabalho desenvolvido pelos
63

policiais nos GPAE, o qual, mesmo tendo alcançado resultados como a redução “na
incidência de confrontos armados” nas favelas onde se aplicou o projeto, ao mesmo tempo
não se distanciou de uma prática voltada para uma cidadania excludente em relação aos
jovens considerados “suspeitos e bandidos”. Ao lançar um olhar sobre o mesmo projeto, o
GPAE, Melo (2009) chega à conclusão de que o policiamento comunitário trata-se, na
verdade, de uma forma mais sofisticada de “controle social”, pois

Como detentos em liberdade provisória, as pessoas assistidas são colocadas em


quarentena durante um período de vigilância e obrigações ampliadas, em que devem
provar seu comprometimento com os valores do trabalho e da família. O que se tem
em mira não é a universalização da cidadania, mas a regulação dos comportamentos
de populações problemáticas e marginalizadas da classe trabalhadora por intermédio
da persuasão moral, opondo-se à dependência de programas sociais e resignando as
pessoas a aceitarem sem alarde a pobreza e o emprego inseguro como padrão de
vida admitido (MELO, 2009, p. 111-112).

Pelo mesmo prisma, Dos Anjos (2010), ao analisar o policiamento comunitário no


Paraná a partir de trabalhos acadêmicos realizados por Oficiais da Polícia Militar paranaense
nos diz que “ao abrigo das instituições militares o policiamento comunitário pode cumprir a
missão de aumentar a capacidade de “controle” do Estado sobre a vida das pessoas” (p. 12, grifo
do autor). Isso implica no fato de que a polícia é a única agência tecnicamente capaz de resolver
os problemas de segurança, e na busca por resultados que gerenciem o controle do crime, delega-
se às comunidades que participam dos projetos de polícia comunitária apenas a função de
“informantes” da polícia, o que esvazia o discurso democrático que fomenta a aproximação entre
Polícias Militares e comunidades. Em outro momento, Dos Anjos (2011) observa a transformação
da retórica do discurso democrático atrelado ao policiamento comunitário, novamente por parte
dos Oficiais em trabalhos acadêmicos, como forma de controle social que justifica a presença de
policiais nas escolas públicas para o combate ao crime, visto a ausência de ordem nos
estabelecimentos educacionais. Esse argumento sintetiza uma possível “policialização” ocultada
de uma lógica preventiva, mas que na verdade serve para vigiar e reprimir principalmente as
“classes perigosas” e marginalizadas. De modo análogo, Almendra (2012) analisa a relação dos
discursos produzidos em forma de propaganda em um site sobre violência urbana no Paraná, ao
mesmo tempo em que o referido site enaltece a implantação e atuação da Unidade Paraná Seguro
(UPS/policiamento comunitário) para combater essa violência urbana produzida pelos “bandidos”.
Decorre de tal fato a produção de demandas sociais que se convertem em tratamento policial e a
UPS como resposta discursiva transforma-se em “linguagem da dominação e da segregação
64

urbana”. Tem-se novamente aqui uma “policialização” que torna legítimo o uso da militarização
implicada com uma segurança preventiva.
De todo modo, os debates mais recentes que têm conquistado notoriedade,
especialmente por conta da mídia, dizem respeito à implantação das UPP‟s no Rio de Janeiro,
ocorrida a partir do final de 2008. No entanto, pelo fato de terem se passado apenas cinco
anos desde a implantação das UPP‟s, identificamos alguns trabalhos produzidos e discutidos
em importantes Congressos científicos como o da ANPOCS.13 Por esse viés, os temas
debatidos têm se estruturado com base em argumentos teóricos que localizam as UPP‟s como
um “campo” onde o Estado exerce sua soberania distante da normatividade jurídica em um
“estado de exceção”, de modo a criar estratégias de criminalização da pobreza nas favelas
(MATTOS, 2012), ou ainda, pela mesma perspectiva, de “militarizar a Segurança Pública”, o
que acaba por criar um “estado policial” nas favelas (SANTOS FILHO, 2013). Estaríamos a
falar de um Estado que legitima sua atuação exatamente pela ausência da lei, que garante
assim a politização e controle sobre o homo sacer e a “vida nua” (AGAMBEN, 2010). Em
outro contexto, Misse (2013) demonstra, também com análise sobre as UPP‟s no Rio de
Janeiro que o decréscimo nos índices de crimes como homicídios pode estar vinculado, além
da implantação das UPP‟s, à política do Sistema Integrado de Metas desenvolvido pela
Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro, que se iniciou em 2009. Isso significa
dizer que, concomitante com a diminuição dos homicídios houve o aumento de crimes como o
de desaparecimento. Essa constatação dificulta na afirmação de causas e efeitos na diminuição
da criminalidade nas favelas cariocas, devido ao processo complexo que envolve tal temática,
mas o que pode se notar é a não exclusividade da pacificação através das UPP‟s como
responsável pela queda no índice de crimes letais como os homicídios.
Assim, pelo levantamento das pesquisas sobre policiamento comunitário realizado, no
campo da sociologia, podemos asseverar que as principais análises centram-se principalmente
nas dificuldades para a implantação e realização do programa, devido a questões como: a
cultura policial repressora, tradicional e militarista, a burocratização do serviço de polícia, a
ausência de um certo “padrão de civilização” na atuação policial, bem como, mais
recentemente, pelas “formas de governar” do Estado que se baseiam numa política excludente
com o discurso da inclusão. Visualiza-se o policiamento comunitário como uma forma de
controle social mais eficaz por parte do Estado em relação às classes menos favorecidas, que
precisam ser vigiadas. Em continuidade, conheçamos como se desenvolveu a implantação do
policiamento comunitário em nosso país e, em específico, no Estado da Paraíba.
13
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.
65

1.4 – A HISTÓRIA DO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO NO BRASIL E NA PARAÍBA

Os debates sobre polícia comunitária no Brasil iniciaram-se no Rio de Janeiro durante


a gestão do governo de Leonel Brizola como governador do Estado na década de 1980, o qual
elegeu o Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira (entre os anos de 1983-84 e 1991-94)
para ser Comandante Geral da Polícia Militar. Esse último tornou-se o grande precursor dos
estudos sobre policiamento comunitário (MELO, 2009; BEATO, 2002, ALBERNAZ et al.,
2007) em nosso país e foi um dos principais articuladores na implantação dos primeiros
projetos no Rio de Janeiro.
A busca pelo desenvolvimento do policiamento comunitário no Brasil caminhou de
acordo com a abertura política pós-regime militar e ganhou força com a aprovação da
Constituição de 1988 que traz em seu texto um amplo conjunto de garantias individuais e
coletivas com destaque para princípios como cidadania e segurança, os quais estiveram
distantes de serem efetivados durante o período de exceção (1964-1985). Além disso, temos
que destacar a luta em favor da garantia dos Direitos Humanos que mobilizaram a sociedade a
exigir, com o novo regime político, instituições policiais com práticas democráticas por parte
de seus agentes.
Nesse caminho, as primeiras experiências de policiamento comunitário ocorreram no
Espírito Santo, nas cidades de Guaçuí e Alegre, no ano de 1988. No Rio de Janeiro, tivemos
as experiências no bairro de Copacabana, entre os anos de 1994-95 (MUNIZ et al., 1997). Em
São Paulo, o projeto iniciou-se em 1997 com a implementação dos Conselhos Comunitários
de Segurança nos bairros (BEATO, 2002). No entanto, a primeira base em São Paulo só foi
instalada em 22 de dezembro de 1998 no Jardim Ângela que, segundo dados da Organização
das Nações Unidas tratava-se, à época, do “lugar mais violento do mundo”. Além das
experiências apontadas anteriormente, segundo Cerqueira (1999), os Estados em que foram
feitas tentativas ou implementações de projetos de policiamento comunitário no Brasil são o
Pará, Paraná, Sergipe, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Ceará,
Pernambuco, Paraíba, Minas Gerais, Santa Catarina e Bahia. Existem ainda informações sobre
a existência de projetos no Amapá14 (Polícia Interativa e de Segurança Social), iniciado em
1998 e, em Rondônia (GOTTARDO & SILVA, 2011). O que se percebe em meio às diversas
experiências no Brasil é a variada nomenclatura adotada pelas polícias estaduais15, ou melhor,
como exemplos: Ronda do Quarteirão no Ceará; Polícia Interativa no Espírito Santo;

14
Ver em Policiamento comunitário: experiências no Brasil 2000 – 2002. São Paulo: Página Viva, 2002.
15
Referimo-nos aqui especificamente às Polícias Militares.
66

Policiamento Ostensivo Volante (POVO) no Pará; Polícia Cidadã na Bahia; Polícia Solidária
na Paraíba e, atualmente a Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro.
No contexto das políticas governamentais, foi lançado no ano 2000, durante o segundo
mandato do então Presidente Fernando Henrique Cardoso o Plano Nacional de Segurança
Pública (PNSP) que, “elaborado a partir de consultas ao Gabinete de Segurança Institucional,
governos estaduais, universidades e organizações da sociedade civil, definiu pela primeira vez
uma política nacional de segurança pública” (MESQUITA NETO, 2011, p. 390). Dentre o
conjunto de 124 ações que prescreviam medidas no âmbito do Governo Federal, desse último
com os Governos Estaduais, além de medidas de natureza normativa e institucional, no
Compromisso nº 12, que ressalta a Capacitação Profissional e o Reaparelhamento das
Polícias, tem-se que “É hoje consenso em todo o mundo que a eficiência da polícia está
diretamente ligada a sua proximidade da população e ao grau de confiança alcançado junto à
comunidade” (PNSP, 2000). De acordo com esse preceito, temos a Ação de nº 94 que
sintetiza o “Apoio à Capacitação das Polícias Estaduais e Incentivo às Polícias Comunitárias”,
ou seja, “Apoiar e padronizar a capacitação das polícias estaduais, particularmente na gestão
de segurança pública, [...] e, especialmente, na implantação de polícias comunitárias, além de
promover a integração entre as academias de polícia civil e militar” (PNSP, 2000). O PNSP
ainda previa na Ação de nº 93 a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) que
acabou por ser instituído em 14 de fevereiro de 2001 mediante a Lei nº 10.201, após ter sido
criado mediante a Medida Provisória nº 2.029, de 20 de junho de 2000. De acordo com o Art.
1º da referida lei deveria-se “apoiar projetos de responsabilidade dos Governos dos Estados e
do Distrito Federal, na área de segurança pública, e dos Municípios, onde haja guardas
municipais”. Nesse sentido, o Art. 4º, Inciso IV, relaciona o apoio a programas de polícia
comunitária.
Nesse percurso, no ano de 2009, ao ser lançada pelo Ministério da Justiça e pela
Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), a Matriz Curricular Nacional (MCN),
que consiste num compêndio que congrega ações formativas para os profissionais da área de
Segurança Pública, inclusive os policiais militares, traz em seu conjunto a Malha Curricular,
que diz respeito a “um núcleo comum de disciplinas, agrupadas por áreas temáticas, que
congregam conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, com o objetivo de garantir a
unidade de pensamento e ação dos profissionais da área de Segurança Pública” (MCN, p. 35).
Como forma de nortear, pois, os currículos dos cursos de formação dos policiais militares e
cursos à distância promovidos pela SENASP, encontramos na Malha Curricular (quando se
leva em consideração a distribuição das disciplinas de acordo com a natureza dos conteúdos),
67

as disciplinas de Fundamentos de Gestão Integrada e Comunitária e Mobilização


Comunitária. Na primeira, a polícia comunitária como filosofia de um trabalho integrado
aparece como conteúdo programático e, na segunda, os objetivos da disciplina e o conteúdo
programático direcionam-se para o ensino de como se criar condições para que o profissional
de Segurança Pública possa construir Conselhos Comunitários de Segurança de modo que, em
meio a essa busca

Qualquer tentativa de trabalho ou programa de Polícia Comunitária deve incluir


necessariamente a comunidade, pois a participação dela é um fator importante na
democratização das questões de Segurança Pública, na implementação de programas
comunitários que proporcionam a melhoria de qualidade de vida e na divisão de
responsabilidades. A compreensão da dinâmica da comunidade é essencial para a
prevenção e controle do crime e da desordem, assim como do medo do crime, pois o
controle e a participação social informal (do coletivo, do grupo) é mais eficaz. Todas
as vezes que grupos de cidadãos, ou moradores, se reúnem para encaminhar
soluções para problemas comuns o resultado é bastante positivo. O desafio, portanto,
não está apenas em promover trabalhos de interesses específicos com grupos
organizados da comunidade, mas também em trabalhar na organização de trabalhos
comunitários de forma constante e permanente (MCN, p. 67-68).

O que se constata com a presença de conteúdos sobre policiamento comunitário na


MCN é a institucionalização de conhecimentos que visam a efetivação de programas de
polícia comunitária por parte das polícias estaduais na formação de seus profissionais. Essas
estratégias governamentais aparentemente baseiam-se na crença de que “os investimentos no
aparato da repressão, por maiores que fossem, eram e são claramente insuficientes para dar
conta da criminalidade em sociedades desiguais como as nossas e para diminuir o crime seria
preciso contar com a colaboração da comunidade” (KAHN, 2002, p. 9).
Por esse viés, a Paraíba também seguiu os ventos que sopram para uma nova forma de
policiar com a sociedade e desde o final da década de 1990 vem fazendo tentativas para
implementar projetos de policiamento comunitário. Segundo Cerqueira (1999), a Polícia
Militar da Paraíba desenvolveu um curso de Polícia Comunitária em dezembro de 1997, o
qual teve como finalidade “sensibilizar as autoridades da área de segurança pública para a
necessidade de mudanças na administração e na filosofia da atuação policial” (Ibidem, p.
137). O referido curso foi promovido em conjunto pela Polícia Militar da Paraíba com o
Instituto Carioca de Criminologia, o Conselho Estadual da Defesa dos Direitos do Homem e
do Cidadão, a Universidade Federal da Paraíba e a Secretaria de Trabalho e Serviço Social.
No entanto, a disciplina de Policiamento Comunitário já existia desde a feitura da primeira
Grade Curricular do Curso de Formação de Oficiais (CFO) da PM paraibana em 1991. No
68

Curso de Formação de Soldados (CFSD), a disciplina Polícia Comunitária foi incluída pela
primeira vez em 2002.
O Plano Estadual de Segurança Pública do Governo da Paraíba (PESP) entre os anos
de 2003 e 2006 enfatiza em vários pontos de suas diretrizes a utilização da polícia e do
policiamento comunitário como meta de governo. Para tanto, de acordo com um “Quadro
Diagnóstico Indicativo de Problemas”, para superar a mobilização comunitária deficiente
propunha-se como medida necessária o Curso de Polícia Comunitária assim como, com a
intenção de investir no aperfeiçoamento técnico-científico de recursos humanos estipulou-se
“capacitar, dentro das instituições, agentes multiplicadores nas áreas de Direitos Humanos,
Polícia Comunitária e Relações Interpessoais” (PESP, 2003, p. 19). Assim, para destacar a
prevenção como prioridade, o PESP visou implantar a Polícia Comunitária e elencou esse
objetivo como medida institucional observando “a Polícia Comunitária como filosofia,
estratégia e política de governo, transformando as polícias em instituições democráticas e
mais próximas da comunidade” (Ibidem, p. 31). O PESP ainda acentuava o Programa de
Desenvolvimento do conceito de Polícia Comunitária explicitando que

A Polícia Comunitária é a essência da atividade policial moderna. Seu fundamento é a


estreita colaboração e o estreito relacionamento entre as pessoas da comunidade e
destas para com a sua Polícia, tudo em prol da ordem pública. Esse modelo requer
programas permanentes de interação povo - polícia, programas esses de informação e
educação. É preciso considerar que a Polícia deve estar a serviço da comunidade, no
sentido de propiciar ao cidadão o exercício de todos os seus direitos, individuais e
coletivos que a legislação assegura. Deve ser observado, ainda, que um dos
pressupostos desse modelo de Polícia consiste no fato de o próprio policial se sentir
um cidadão inserido no contexto social, sincronizado, comprometido e envolvido com
os anseios da comunidade. (Ibidem, p. 44).

Na prática, as primeiras experiências de policiamento comunitário na Paraíba


ocorreram na cidade de Sousa, no Sertão paraibano, entre os anos de 1998 e 1999. Com
informações obtidas mediante entrevista, realizada com o Tenente-Coronel Sobreira, à época
Capitão e Comandante da Companhia de Polícia Militar de Sousa, além de idealizador do
projeto, pudemos obter informações que descrevem essa experiência. Segundo o Tenente-
Coronel Sobreira a ideia surgiu depois de sua participação no Curso de Gestão em
Policiamento Comunitário no ano de 1998, que inclusive teve o Coronel Carlos Magno
Nazareth Cerqueira da Polícia Militar do Rio de Janeiro como um dos instrutores. O curso
ocorreu no então Centro de Ensino da PMPB em parceria com a Universidade Federal da
Paraíba e o Núcleo de Direitos Humanos da UFPB. Após o curso, o nosso interlocutor levou a
69

ideia para a cidade de Sousa e, de acordo com suas palavras, ao recordar sobre a notícia
exposta por uma repórter de um jornal local que dizia: “Polícia Comunitária na Paraíba
começa por Sousa”, ele afirma que tal manchete gerou problemas com seus superiores
hierárquicos.
Ainda pelas palavras do Tenente-Coronel Sobreira, o objetivo do projeto em Sousa era
“aproximar a polícia do cidadão. Gerar confiança. Estreitar os laços da polícia com os
moradores locais para que esse estreitamento venha nos trazer detalhes, informações das
situações de problemas existentes naquele bairro” (Entrevista em 17/10/2013). O projeto foi
aplicado em quatro bairros periféricos (Jardim Planalto, Cangote do Urubú - Nossa Senhora
de Fátima -, Várzea da Cruz e Mutirão) e um central (Frei Damião), e contou com o apoio
principalmente das comunidades e de profissionais liberais como médicos, empresários e
professores. As comunidades recebiam serviços gratuitos como corte de cabelo, que eram
custeados pelos empresários locais. Na época, a cidade de Sousa tinha uma média de 20
(vinte) homicídios por ano. Uma rádio emissora da cidade também apoiou o projeto, ao
contrário do Comando da PM paraibana, que apoiou de forma mínima, segundo o Tenente-
Coronel.
Após a experiência de Sousa, poucos anos depois, em 2002, tivemos as experiências
do policiamento comunitário nos bairros de Paratibe e Mussumago, em João Pessoa. Os dois
bairros, à época, tinham conjuntamente uma população de 13.016 habitantes e apresentavam
características de comunidades rurais, visto a falta de estrutura urbana como ruas asfaltadas e
redes de esgoto e o subemprego temporário era a realidade para a maioria dos moradores. Os
projetos surgiram com base nas exigências do Sistema Único de Segurança Pública já que, o
Governo Federal, através da SENASP, fomentou o aumento das experiências de policiamento
comunitário (LIMA & MATIAS DA SILVA, 2010; MATIAS DA SILVA, 2007).
No período de 16 de julho a 16 de agosto de 2001 foi iniciada a formação, com o
primeiro Curso de Gestão em Policiamento Comunitário, com recursos do Fundo de Amparo
ao Trabalhador (FAT), que contou com a participação de policiais militares e membros das
comunidades por meio de convênio entre a UFPB e a PMPB. O projeto foi coordenado pelo
Centro de Ensino da PMPB e a Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, a
Comissão de Direitos Humanos e a Fundação de Apoio à Pesquisa e à Extensão da UFPB.
Ainda apoiaram o projeto o 5º Batalhão de Polícia Militar, a Secretaria de Segurança Pública,
o Núcleo de Defesa da Vida, o Centro Profissionalizante Deputado Antônio Cabral e as
Comunidades de Paratibe e Santana. Essas últimas apoiaram o projeto juntamente com
igrejas católicas e evangélicas que cediam seus espaços para os encontros entre policiais e
70

moradores e para outras atividades que diziam respeito à polícia comunitária. Após a
implantação do policiamento comunitário 11 (onze) policiais foram designados para trabalhar
nas comunidades e houve divulgação do programa por parte da comunidade, inclusive com a
utilização de uma rádio difusora (LIMA & MATIAS DA SILVA, 2010; MATIAS DA
SILVA, 2007). Assim como ocorreu na cidade de Sousa, atualmente o programa está extinto.
A última experiência na Paraíba anterior ao atual policiamento solidário foi
implementada na cidade de Campina Grande entre os anos de 2002 e 2010. Assim como o
relato do projeto ocorrido em Sousa, realizamos entrevista com o Major Simão, que era
Capitão à época do início do projeto e foi um dos idealizadores do mesmo. Semelhante ao
histórico das experiências anteriormente citadas, o Major Simão participou de um Curso sobre
Polícia Comunitária em 2002, no então Centro de Ensino da PMPB que durou praticamente
um mês, compondo-se de 120 horas/aula. Após o curso, e ao retornar para Campina Grande, o
Comandante do 2º Batalhão de Polícia Militar (BPM) resolveu implementar algumas Bases de
policiamento comunitário na cidade que se iniciou, segundo o citado Major, no bairro carente
do Mutirão e depois no bairro do José Pinheiro, que era um local de alta incidência criminal.
Em 2005, com a chegada de um novo Comandante, foram implementadas mais duas Bases.
Por essa perspectiva, o projeto organizou-se de modo que foram estabelecidas a Base de
Polícia Comunitária da Zona Oeste (bairro do Mutirão), Zona Leste (bairro do José Pinheiro),
na Zona Norte e na Zona Sul da cidade.
No plano das dificuldades, destaca o Major Simão que “obviamente a gente tem que
dizer que não seguiu a teoria tendo em vista que nós tínhamos várias dificuldades. Primeiro
porque era algo muito novo e também a necessidade do Comandante de fundar aquelas Bases
e colocar o seu nome, vamos dizer assim, até porque não houve uma preparação pra aqueles
policiais que iam trabalhar. Não houve uma capacitação adequada” (Entrevista em
17/10/2013). Inclusive o próprio Comandante do 2º BPM queria que a primeira Base
Comunitária fundada tivesse um “xadrez”16, o que foi motivo de não-aceitação por parte do
Major que acreditava que “aqueles policiais que iam fazer essa relação com a comunidade
local fizesse a prisão de alguém, apreendesse alguma pessoa, teria que encaminhar pra
Delegacia e não para a Base local. A Base local seria um local de discussão, de ampliar esse
contato com a comunidade local”.
O trabalho inicial era sempre de “sensibilização das comunidades”. De início houve
desconfiança por parte das comunidades e dos policiais, mas afirma o Major que com o tempo

16
Nome popular no seio policial para denominar as celas onde são colocadas as pessoas que são presas pela
Polícia Militar e entregues à Polícia Civil nas Delegacias.
71

o projeto se consolidou e além da manutenção dos Conselhos Comunitários em cada um dos


bairros, os quais exigiam justificativas dos policiais nas reuniões pela diminuição do
policiamento nas devidas áreas, entre 2005 e 2006 cerca de 120 policiais participavam do
projeto. Ainda assim, o Major entrevistado afirma que “tinham alguns Comandantes que via a
experiência com bons olhos e que apoiava, articulava alguma coisa pra ajudar. Mas a grande
maioria preferiu o modelo reativo que é o que aparece de forma midiática” (Entrevista em
17/10/2013).
Segundo o Major, o esfacelamento do projeto começou a acontecer em 2010 quando
foi criado em Campina Grande o 10º BPM, e as Bases Comunitárias foram divididas
territorialmente quanto à esfera administrativa da Polícia Militar. Além disso, ocorreu um
processo de “descentralização”, já que as Unidades Especializadas da Polícia Militar
(Patrulhamento em motos –ROTAM-, Cavalaria, Força Tática, Policiamento de Choque)
foram transferidos para as comunidades onde existiam as Bases Comunitárias como forma de
manter e estreitar o relacionamento e, por fim, de acordo com as palavras do Major, “Com o
início desse Governo17, nós podemos dizer que houve o que a gente denomina de uma
descontinuidade daquilo que tinha iniciado, ou seja, a Agência de Governo preferiu
denominar de outra forma e iniciar também, apesar da mesma perspectiva filosófica, mas que
denominou com outro nome, e começou a surgir o que hoje tá se constituindo, são as
Unidades de Polícia Solidária, que na verdade em Campina Grande a gente só veio a
acontecer no ano de 2013” (Entrevista em 17/10/2013). Então, no que consiste o policiamento
solidário?

17
O entrevistado se refere ao atual Governo da Paraíba, sob a direção do Governador Ricardo Coutinho.
72

CAPÍTULO 2

POR QUE A POLÍCIA SOLIDÁRIA NA PARAÍBA?

De acordo com as palavras de Ricardo Brisolla Balestreri, então Secretário nacional de


Segurança Pública no ano de 2008, ao se referir à luta contra o crime ordinário (assalto,
roubo, sequestro relâmpago), a polícia comunitária seria “a nossa menina dos olhos”, pois,
“não se pode pensar em polícia comunitária em um lugar dominado pelo crime organizado.
Para o crime ordinário o que funciona é a polícia comunitária. O que realmente reduz é o que
chamamos de „polícia de proximidade‟” (ALVES; EVANSON, 2013, p. 299). Para fortalecer
tal argumento sobre a polícia de proximidade, Alves e Evanson (2013, p. 340) ainda nos
dizem que, no Brasil, “a polícia, especialmente a PM, tem trabalhado há muito tempo em um
mundo fechado, com rejeição ao público, contestando os críticos e limitando o diálogo com a
sociedade em geral”.
Então, para responder a indagação que denomina este capítulo, “Por que a Polícia
Solidária na Paraíba?”, passaremos a conhecer a configuração dos postos de policiamento
solidário, desde suas implantações e localizações às características de cada um deles.
Esboçaremos, em continuidade, algumas nuances sobre a literatura sociológica e no campo da
Segurança Pública que destaca o mapeamento dos homicídios no Brasil e no Nordeste. A
partir dessas informações poderemos situar como se descortina, pois, o panorama da violência
na Paraíba e de modo específico em João Pessoa, local de nossa pesquisa.
Adiante, mostraremos o discurso do governo da Paraíba para justificar a implantação
de um modelo de policiamento comunitário baseado principalmente na busca de resultados
que estejam vinculados à redução de homicídios, à política anti-drogas e na diminuição de
crimes contra o patrimônio.

2.1 - A IMPLANTAÇÃO DO POLICIAMENTO SOLIDÁRIO

As bases para a implantação do policiamento solidário em João Pessoa começaram no


dia 20 de abril de 2011 com a inauguração da sede de Polícia Comunitária no bairro do Alto
73

do Mateus.18 Ainda durante o ano de 2011 foram instaladas as Unidades de Polícia Solidária
(UPS‟s) nos bairros Mandacarú, Oitizeiro (Comunidade Bola na Rede) e São José.19 No dia
16 de setembro de 2012 o Jornal da Paraíba20 divulgava através da internet o suposto sucesso
na implantação do policiamento comunitário em João Pessoa ao trazer como título da
reportagem: “‟Polícia Solidária‟ ajudar a reduzir violência em JP”. Ademais, destacava-se a
informação de que “estratégia de aproximação dos policiais com a população está ajudando a
diminuir os índices de homicídio na capital”. Assim, a reportagem enaltecia o fato de que as
UPS‟s tratam-se de mais uma arma na redução do crime, além de proporcionar, segundo as
palavras de um Tenente comandante de uma UPS a satisfação dos moradores, já que são
desenvolvidas ações de integração com a população através de palestras em escolas, creches,
com líderes comunitários sobre assuntos voltados à violência doméstica, alcoolismo, doenças
sexualmente transmissíveis.
Tal reportagem foi divulgada dois meses depois do lançamento do Programa de
policiamento solidário pelo Governo do Estado da Paraíba e pela Polícia Militar. Pouco mais
de um ano após a implantação do projeto, por meio de notícia encontrada no site da Polícia
Militar da Paraíba21 no dia 15 de julho de 2013, veicula-se a comemoração desse primeiro ano
do Programa de Polícia Solidária com a entrega de comendas às autoridades, inclusive ao
governador do Estado da Paraíba. O que se destaca na notícia é que “O Polícia Solidária é
mais uma ferramenta importante do Governo de promover a aproximação entre a polícia e a
sociedade. É a oportunidade de mostrar ao cidadão qual o seu papel perante os órgãos de
segurança pública”.
Desse modo, através do material divulgado pela imprensa, podemos sintetizar quais
são os objetivos da criação da Polícia Solidária em João Pessoa segundo o discurso oficial, ou
seja, reduzir o crime e garantir a aproximação entre polícia e sociedade. De acordo com esses
parâmetros, foram lançados alguns documentos pelo Governo do Estado da Paraíba e
ratificados pela Polícia Militar que oficializam a implementação e funcionamento das
Unidades de Polícia Solidária. Esses documentos baseiam-se estritamente no Plano Nacional
de Segurança Pública. No Diário Oficial do Estado da Paraíba nº 15.115, do dia 15 de
dezembro de 2012, foi criada a Lei Complementar nº 111, de 14 de dezembro de 2012. Nessa
lei, ficou estabelecido o Sistema de Segurança Pública e Defesa Social da Paraíba o qual está

18
Disponível em <http://inforsurhoy.com/cocoon/saii/xhtml/pt/features/saii/features/main/2011/06/08/feature-
01>.
19
Disponível em <http://1bpmnorte.blogspot.com.br/p/ups-bola-na-rede-mandacaru-e-ilha-do.html>.
20
Disponível em <http://www.jornaldaparaiba.com.br/noticia/91914_policia-solidaria-ajuda-a-reduzir-violencia-
em-jp>.
21
Disponível em:<http://www.pm.pb.gov.br/pagina_noticia_8270.htm>.
74

disposto conforme uma hierarquização territorial e de comando, conforme especificamos


abaixo, como encontrado no Art. 2º da referida lei:

Para fins desta Lei Complementar, consideram-se Territórios Integrados de Segurança Pública
e Defesa Social22:

I – Região Integrada de Segurança Pública e Defesa Social - REISP: divisão


estratégica de circunscrição com responsabilidades compartilhadas, em nível de alto
comando, com gerência sobre as Áreas Integradas de Segurança e Defesa Social. II –
Área Integrada de Segurança Pública e Defesa Social - AISP: divisão tática de
circunscrição com responsabilidades compartilhadas, em nível de comando
intermediário, com gerência sobre os Distritos Integrados de Segurança e Defesa
Social. III – Distrito Integrado de Segurança Pública e Defesa Social - DISP:
divisão operacional de menor circunscrição com responsabilidades compartilhadas,
composto por bairros ou municípios (grifo nosso).

Com base nessa divisão geográfica do território do Estado da Paraíba e da cidade de


João Pessoa, o Art. 6º, § único destaca que “Os Distritos Integrados de Segurança e Defesa
Social serão delimitados por setores de policiamento preventivo”, além de que, no Art. 7º
podemos encontrar finalmente a posição ocupada pelas regiões específicas de atuação do
policiamento solidário, pois “Nos Distritos Integrados de Segurança Pública e Defesa Social
poderão ser criadas Unidades de Polícia Solidária - UPS, sob a responsabilidade da Polícia
Militar”.

22
Faz parte do Sistema de Segurança Pública e Defesa Social do Estado da Paraíba não apenas a Polícia Militar,
mas também a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros Militares e o Instituto de Polícia Científica, por isso o fato
do projeto ter a designação de “integrado” nas diversas disposições geográficas, pois, neste caso, a intenção
principal é aproximar o conjunto de ações realizadas pelas polícias militar e civil visando a aproximação com a
sociedade. Segundo o Plano Nacional de Segurança Pública (2003, p. 32), “a experiência cooperativa servirá
para derrubar tabus corporativistas e para demonstrar as virtudes da integração entre as diversas etapas do ciclo
policial”.
75

FIGURA 5: Quadrantes de Polícia Solidária na região do Bairro São José e Manaíra.


FONTE: Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social.

FIGURA 6: Divisão geográfica do Estado da Paraíba segundo o Sistema de Segurança Pública.


FONTE: Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social.
76

No dia 17 de outubro de 2013, foi lançado no Diário Oficial do Estado da Paraíba nº


15.365 a Portaria nº 222, de 11 de outubro de 2013, que dispõe sobre as abrangências
territoriais das REISPs, AISPs e DISPs. A partir desse documento podemos visualizar que a
cidade de João Pessoa é a região localizada na 1ª REISP, tendo como Unidade Gestora no
tocante à Polícia Militar o Comando de Policiamento da Região Metropolitana (CPRM).
Quanto à organização da Polícia Militar, foi criada a Diretriz de Serviço nº 01, lançada
no Boletim Geral da PMPB nº 0045, de 08 de março de 2013, cuja finalidade diz respeito a
“Padronizar a implantação e a execução de uma filosofia solidária na Polícia Militar da
Paraíba, direcionando o policiamento tradicional para o policiamento solidário baseado nos
princípios fundamentais da Polícia Comunitária”. No Boletim Geral nº 0168, de 05 de
setembro de 2013, encontramos a Diretriz de Comando nº 006/2013, que rege sobre
“Quadrantes de Polícia Solidária”, com a finalidade de “Estabelecer a concepção institucional
de Quadrante de Polícia Preventiva, onde após a consolidação da doutrina passará a ser
denominado Quadrante de Polícia Solidária, o qual se reveste de ações estratégicas pautadas
na melhoria contínua da proximidade com a comunidade”. E por fim, temos a Resolução nº
010, lançada no Boletim Geral da PMPB nº 0218, de 18 de novembro de 2013, onde se
redimensiona as Áreas de Policiamento Preventivo (APPs), Subáreas de Polícia Preventiva
(SAPPs) e Unidades de Polícia Solidária (UPS). No Capítulo IV (Das Unidades de Polícia
Solidária), o Art. 12 define que “As Unidades de Polícia Solidárias (UPS) são edificações
destinadas às atividades da Polícia Militar, instaladas segundo os critérios de acessibilidade e
visibilidade, em bairros ou comunidades onde as demandas de segurança pública ensejem o
emprego da polícia de proximidade como uma solução viável para redução dos índices de
criminalidade”.
No Art. 13 da Resolução nº 010 encontra-se definido que “O policiamento solidário
empregado nas UPS‟s devem se basear nos conceitos de policiamento comunitário, devendo
ser pré-requisito para o seu efetivo, a capacitação através de curso ou estágio de policiamento
comunitário”. Quanto às Unidades de Polícia Solidária atualmente instaladas, o Art. 14 elenca
os seguintes locais: São José, Róger, Jaguaribe, Alto do Céu, Bola na Rede, Alto do Mateus,
Bela Vista, Jardim Planalto e Ernesto Geisel na cidade de João Pessoa. Dos locais citados,
nossa pesquisa se concentrará nos cinco primeiramente elencados, conheçamos, pois, cada um
deles.
77

2.2 - CONHECENDO OS POSTOS COMUNITÁRIOS DO POLICIAMENTO SOLIDÁRIO


Uma inscrição bíblica encontrada nas placas de inauguração dos postos de
policiamento solidário em João Pessoa e também destacada no muro da entrada da UPS de
Mandacarú serve-nos de referência para pensarmos esse projeto, ou seja, “Bem aventurados
os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. Neste caso, os pacificadores são os
policiais militares, que devem estar engajados no processo de aproximação entre polícia e
sociedade, demonstrando existir uma polícia mais democrática e cidadã. Nesse caminho, ter
observado cotidianamente os postos de policiamento solidário revelou-nos um projeto que se
desenvolve numa rede de estratégias que visam à adaptação da atuação policial militar em
bairros com características distintas, mas que independente das particularidades de cada posto,
permitiu-nos perceber o que pode ser comum a todos eles.
Assim, em todos os postos observamos que o serviço desempenhado pelos policiais
militares se divide de duas formas: existem aqueles que trabalham como “permanentes”,
expressão nativa que caracteriza o policial que fica fixo no posto, atendendo à população local
e, o outro modo diz respeito ao serviço reativo de rádio-patrulhamento, que funciona de
acordo com o modelo antigo ou tradicional de polícia com acionamento da viatura via
telefone mediante o 190 e despacho pela Central de Informações da Polícia Militar. Em
nenhum dos postos existe policiamento a pé que siga as prescrições do que vem a ser o
policiamento comunitário. Alguns deles também funcionam mediante o “linha solidária”,
onde a viatura do bairro possui um telefone celular para atendimento direto com a população.
O número encontra-se na viatura, mas esse serviço já não mais se encontra disponível em
todas as UPS‟s assim como era quando se iniciou o projeto.
Outra situação encontrada em todos os postos foi o fato de que a proposta inicial
visava utilizar os policiais recém-formados no trabalho de policiamento solidário. Eles assim
passavam por um curso de “promotor” de polícia comunitária por um período de uma semana
antes de assumirem suas funções nos novos locais de trabalho. Segundo o quadro
demonstrativo abaixo, a quantidade de policiais militares que fizeram o curso de Polícia
Comunitária aumentou consideravelmente a partir do ano de 2011, data de criação das
primeiras UPS‟s.

Quadro 1 – Capacitados em Polícia Comunitária na PMPB (1998-2013)


Ano Quantitativo
1998 49
1999 -
2000 01
78

2001 36
2002 42
2003 15
2004 42
2005 -
2006 08
2007 -
2008 70
2009 179
2010 173
2011 360
2012 679
2013 652
Total 2.306
FONTE: Estado Maior Estratégico da PMPB

No entanto, durante as visitas, observamos que existe um fluxo constante dos policiais
que trabalham nas UPS‟s. Muitos são ou já foram transferidos para outras Unidades.
Misturam-se policiais que possuem o curso de policiamento comunitário com outros que não
possuem, além de que o efetivo é formado por policiais com pouco tempo de serviço com
outros que aguardam poucos meses para se “reformarem”, ou seja, no seio policial militar
quer dizer aposentarem-se. Alguns policiais que pertencem a outras Unidades de trabalho
passam a “tirar serviço”23 nas UPS‟s pela escala extra, que diz respeito a um policiamento
remunerado que propicia ao policial militar trabalhar em suas horas de folga podendo
escolher, até certo ponto, em qual local gostaria de desempenhar o seu serviço. Inclusive
podendo deslocar-se para trabalhar em Batalhões ou Companhias de policiamento em outra
cidade diferente de sua circunscrição. Tal fato enseja que, o policial que trabalha pelo extra
não fica necessariamente de forma fixa nas UPS‟s. Em outra situação, Um Tenente nos relata:

Às vezes um militar entra de férias aí encaixa outro que é de outro setor que não tem
nada a ver com polícia comunitária, e quando esse militar volta de férias já não cabe
ele aqui, já joga ele pra outro canto. Problema de tapar buraco na polícia militar.
Aqui muitas vezes quando uma pessoa faz uma atitude negativa pra o Batalhão, ela é
transferida pra aqui, pra base de Mandacarú, já vem aqui como se fosse um castigo
(Entrevista em 15/10/2014).

23
Na linguagem policial militar é o mesmo que trabalhar. Como quando se indaga “Você vai tirar serviço
onde?”, ou seja, qual será seu local de trabalho.
79

Como informa o entrevistado, alguns policiais são colocados para trabalhar nos postos
como forma de castigo, ou seja, pelas palavras do mesmo Tenente da UPS de Mandacarú: “Se
aquele militar cometeu uma atitude negativa pra o Batalhão e a Companhia entender que um
trabalho ostensivo como é o trabalho aqui é negativo pra ele, ele não gosta, mandam ele pra
aqui, como uma forma de punição. E aquele que gosta de trabalho ostensivo vai ser tirado
daqui, botar numa custódia24 ou na permanência”. Um Cabo, que afirmou ter o curso de
polícia comunitária, da UPS de Jaguaribe também nos disse: “Nós sabemos que o serviço
extra você tem o direito de escolher aonde você quer trabalhar pelo menos é o que diz o papel
e quando a gente estava colocando, e lá na observação a gente colocava voluntário para tirar
serviço na UPS de Jaguaribe, estava sendo remanejado para custódia, para guarda do presídio
e eu me aborreci e deixei de colocar”. De todo modo, vejamos como podemos compreender
melhor cada um dos postos pesquisados.

2.2.1 – A UPS de Mandacarú/Alto do Céu


O posto de policiamento solidário do bairro de Mandacarú foi o segundo a ser
inaugurado em João Pessoa no dia 13 de outubro de 2011. Sua sede, apesar de estar situada
em Mandacarú, também diz respeito à área do bairro vizinho conhecido por Alto do Céu. Em
Mandacarú, o posto localiza-se no encontro entre as ruas José Alfredo de Ataíde e João de
Brito Lima Moura, tendo à sua frente a rua João Fernando Vieira. Segundo dados do IBGE, a
população local no bairro de Mandacarú é de 12.593 habitantes e, o Alto do Céu possui uma
população de 16.557 pessoas. No total, essa UPS está localizada numa área que serve ao todo
29.150 habitantes.

FIGURAS 7 e 8: Imagens do exterior do Posto de Policiamento Solidário de Mandacarú/Alto do Céu.

24
Tipo de policiamento no qual os policiais ficam no acompanhamento de presos que se encontram internos em
hospitais.
80

O posto funciona em um edifício composto de duas partes separadas. Em uma delas


funciona a sede do Comando da UPS e na outra, além de ser o ponto de funcionamento de
atendimento ao público também existe um alojamento para os policiais com quarto, banheiro
e cozinha. O policiamento no posto é realizado pela presença dos policiais “permanentes”,
aqueles que ficam fixos no posto. Geralmente é uma dupla de policiais que trabalha como
permanentes numa escala de 24 horas de serviço contínuo, com uma folga de três dias. O
outro serviço dos policiais da UPS é aquele referente ao trabalho reativo realizado pelos
policiais nas viaturas. Existe também o policiamento efetuado em motos.

FIGURAS 9 e 10: Imagens do interior da UPS de Mandacarú/Alto do Céu.


FONTE: Arquivos do autor.

Segundo os dados coletados nas entrevistas, para que a UPS Mandacarú/Alto do Céu
fosse inaugurada, foi preciso, cerca de dois meses antes da fundação, uma “mega operação”
por parte das forças policiais para a “retomada” do controle do bairro. Inclusive utilizaram um
helicóptero da Polícia Militar de Pernambuco. Segundo as palavras de um Sargento
“Mandacarú estava sem controle. As áreas comerciais aqui no mínimo eram assaltadas duas
vezes ao dia, o mesmo estabelecimento. E no toque de recolher as ruas ao invés de serem
tomadas pela polícia estavam sendo tomadas pelos vândalos, pelos delinquentes. Foi um dia
de operação, agora foi uma operação que começou pela madrugada e se prolongou o dia todo”
(Entrevista em 30/10/2014).
Após a suposta “tomada” do bairro, foi deslocado o primeiro efetivo para trabalhar na
UPS. De acordo também com informações dos entrevistados, esse efetivo inicial (cerca de
70% dele) foi deslocado do Rancho do 1º Batalhão de Polícia, ou seja, o local que funcionava
81

como cozinha da Unidade Militar, que hoje se encontra desativado. Os policiais não possuíam
o curso de polícia comunitária. Ainda mais que o prédio utilizado para a UPS tinha sido
invadido por três famílias desabrigadas. Inicialmente os policiais montaram uma tenda no
terreno e passaram a conviver com as famílias, de modo que depois foram conseguidas casas
por parte do município para as mesmas, fazendo com que a Polícia Militar assumisse o posto
e o reformasse, o qual se encontra atualmente com as características físicas observadas nas
fotos expostas acima. No que concerne à atuação policial na área, os bairros de
Mandacarú/Alto do Céu, de acordo com as estatísticas do Governo do Estado, são dois dos
locais que apresentam os maiores índices de homicídio em João Pessoa. Como nos expõe um
Capitão que trabalha na UPS:

Esta UPS cuida dos dois bairros: Mandacarú e Alto do Céu. E nós tivemos uma
redução, em relação ao ano passado, até agora está em 33% referente a 2013-2012.
Então a nossa expectativa é que nós possamos cada vez mais baixar esses números.
Tivemos, durante o ano de 2012, 27 homicídios em Mandacarú e estamos tentando
bater esses números mês a mês. Apresentamos uma redução, agora no mês de
setembro, em relação aos meses de 2012, uma redução de 33%. A nossa perspectiva
é que fechemos o ano de 2013 com pelo menos 20 homicídios. Aí nós estaríamos,
pelo menos, batido a nossa meta. Se assim nós fecharmos com 20 homicídios, aí sim
a gente vai reduzir em pelo menos 30% a relação anual do número de homicídios,
que são os CVLI‟s (Entrevista em: 17/09/2013).

Além da relação que existe entre a criminalidade e o número de homicídios,


observamos uma lógica social presente no bairro pautada pela falta de infraestrutura urbana,
que se alia à presença do tráfico de drogas e do conflito entre facções rivais pelo controle dos
pontos de venda de drogas. Segundo o relato dos policiais da UPS, os traficantes têm gerado o
medo nas pessoas do bairro, o que causa o distanciamento entre policiais e moradores, pois,
“Hoje já estamos visualizando pessoas que não quer que o policial passe e fale com ele [sic]
fardado. A vagabundagem aqui está agindo da seguinte forma: se chegar fardado em qualquer
residência, aquela pessoa que lhe recepcionou é tido como X-9. Então automaticamente ela
vai ter duas opções: ou sair, abandonar a residência ou morrer. Se o vagabundo passar e ver
uma das pessoas com telefone no ouvido já acha que tá ligando pra polícia. Antes
procuravam, hoje é mais por telefone porque existe os olheiros aqui” (Entrevista em:
30/10/2014).Um Tenente entrevistado nos relatou o seguinte fato: “Antigamente tinha o Seu
Vavá ali na esquina que a gente ia tomava um café, tomava uma água, refrigerante,
conversava e é um ponto estratégico. Outras pessoas vinham, conversavam com a gente,
contavam histórias e alguns dias desses aí um criminoso aqui da área invadiu a barraca do Seu
82

Vavá e disse que se visse a polícia lá mais uma vez ele ia matar Seu Vavá. A barraca existe há
muito tempo e uma coisa que a polícia já fazia há muito tempo, hoje a gente não pode mais
por causa desse tipo de atitude” (Entrevista em: 15/10/2014).

FIGURA 11: Uma rua inteira abandonada em Mandacarú por conta da violência.
FONTE: Dados do autor.

Segundo os policiais da UPS, a presença do tráfico tem distanciado os moradores da


comunidade de procurar o posto para pedir auxílio e, cada vez mais, isso tem sido feito apenas
mediante ligações telefônicas. A conjuntura do tráfico de drogas atuante na área da UPS tem
se estabelecido por meio do conflito de duas facções rivais: a Okaida (Al Qaeda) e os Estados
Unidos. Durante as observações de campo, juntamente com as incursões policiais, pudemos
perceber a deterioração dos locais onde essas supostas facções atuam, os quais são
caracterizados pela pobreza e falta de saneamento básico. Nesse sentido, a ausência de
políticas estatais torna-se evidente como observamos nas palavras de um Sargento
entrevistado: “Se o Senhor chegar em uma dessas residências aqui, o cara tem que roubar,
traficar pra sobreviver. Aqui nós já tivemos ocorrência de idosas com 85 anos sendo escravo
do tráfico” (Entrevista em: 30/10/2014).
83

FIGURAS 12 e 13: Inscrições com siglas que identificam as Facções que atuam nos bairros de Mandacarú/Alto
do Céu.
FONTE: Dados do autor (2013).

Um Tenente da UPS também nos esclarece de quem se trata esses traficantes, pois, ao
invés de chefes do tráfico, os mesmos são utilizados pelos verdadeiros chefes que não se
encontram no bairro e utilizam moradores locais para vender e distribuir a droga, de modo
que “Exemplo é o Daniel, que é o chefe aqui do Beco de Zé Borges, se diz chefe, na verdade
não é chefe de coisa nenhuma. É um cara que não tem onde cair morto. Em um local que tem
um tráfico tão intenso como em Mandacarú um chefe do tráfico de droga não tem nem uma
roupa pra usar direito. Há dez meses que eu tô aqui, há dez meses ele usa a mesma roupa, ou
seja, não tem uma condição financeira pra um chefe do tráfico” (Entrevista em: 15/10/2014).
84

FIGURAS 14, 15, 16, 17: Imagens da periferia do bairro de Mandacarú, locais onde, segundo os policiais
militares da UPS, atuam os traficantes.
FONTE: Dados do autor.

2.2.2 – A UPS do São José


A UPS do bairro São José foi inaugurada no dia 12 de dezembro de 2011. Segundo
dados do IBGE, o bairro São José possui uma população de 7.078 habitantes. Sua localização
faz fronteira com o bairro de Manaíra, assim como com o Shopping Manaíra, o maior da
cidade de João Pessoa. As casas basicamente se dispõem no decurso de uma longa rua, a
Edmundo Filho, na qual se localiza o posto de policiamento solidário. Assim como em
Mandacarú, devido aos índices de homicídio no bairro, o mesmo precisou ser “tomado” antes
da implantação da UPS. De acordo com os policiais e com os dados do Governo da Paraíba,
com a chegada do projeto de policiamento solidário, os índices de homicídio diminuíram. As
palavras de um Capitão que trabalha no setor de levantamentos estatísticos da Secretaria de
Estado da Segurança e da Defesa Social ilustram esse fato:
85

O bairro São José tinha uma concentração geográfica de crime muito alta. Chegou a
ter, em 2011, 37 homicídios num ano. Se a gente fosse colocar em termo de taxa
seria uma das taxas mais altas do Estado, talvez do Nordeste como um todo. Uma
população muito pequena. Um bairro que sofria dessa incidência específica de
homicídio e não se tinha a problemática nem de furto nem de roubo era mais
homicídio mesmo e também a situação do tráfico e do consumo de drogas. É um dos
exemplos. Foi uma das primeiras Unidades de Polícia Solidária implementadas que
passaram a ter os excelentes resultados que a gente pode citar como exemplo
(Entrevista em: 09/10/2014).

No entanto, no cotidiano da UPS, observamos algumas situações. O prédio da UPS é


monitorado por câmeras, pois, segundo os policiais, já ocorreram alguns atentados ao posto.
Certa vez já quebraram a placa que se encontra na frente do posto com sua identificação e, em
outra situação, jogaram um gato morto na porta do posto. Desse modo, nas vezes em que pude
estar presente no posto, o portão de entrada sempre se encontra fechado, às vezes com
cadeado. Outro fato a se notar é que no São José as pessoas também evitam falar com os
policiais, o que, segundo os policiais, acontece por conta da possível retaliação dos
traficantes. Como nos relatou um Soldado; “Aqui no São José ainda não tá totalmente
“pacificado”, melhorou muito, mas você percebe que eles não podem falar com você. Muita
gente que a gente conhece fora do bairro que conversa aí fala, quando chega lá no bairro não
pode falar comigo porque a criminalidade ainda existe e eles são reprimidos aqui dentro do
bairro se mantiver um contato com a polícia aqui dentro” (Entrevista em: 07/01/2014).
Assim também como observado em Mandacarú, no São José aconteceram fatos nos
quais teve um morador que por vender lanche aos policiais foi ameaçado e teve que se mudar.
Como nos confidenciou um Sargento da UPS: “Acho estranho, até uma senhora passa aqui e
não dá bom dia”. Vizinho ao posto funciona um posto de saúde e, segundo um Soldado, “Até
as enfermeiras têm medo, atendem a gente rápido e falam pouco”. Aqui também as pessoas
evitam procurar pessoalmente a UPS, preferindo ligar para pedir auxílio policial. Segundo os
relatos dos policiais, no bairro atuam duas facções rivais: a turma da Laje e a turma da rua do
Rio. A Laje é uma edificação no sentido estrito do termo que fica na parte de cima de uma
igreja evangélica localizada em uma das entradas do bairro. De lá, os traficantes
surpreenderam os policiais atirando contra os últimos em algumas situações. Por funcionar
como ponto de observação do tráfico segundo os policiais, ao avistar a viatura, a expressão
usada pela turma da Laje para avisar sobre a chegada da polícia é “Olha o óleo!”.
86

FIGURAS 18 e 19: Frente da UPS do bairro São José (esquerda). Sala de recepção da UPS (direita).
FONTE: Dados do autor.

Quanto às instalações físicas do posto, o mesmo possui uma sala de recepção, um


outro ambiente onde se encontra o computador com as imagens das câmeras de
monitoramento e, ainda existe um alojamento, cozinha e banheiro.Os primeiros policiais que
foram trabalhar na UPS foram todos deslocados do Centro de Educação da PMPB.
Atualmente, os policiais trabalham na permanência, geralmente três policiais que obedecem a
uma escala de um dia de trabalho por três de folga e ainda temos o serviço da viatura, com
uma guarnição estritamente voltada para atender ocorrências no bairro, com a mesma escala
da permanência. Alguns policiais da UPS (tanto da permanência quanto da viatura) trabalham
pelo serviço extra e, eles se dividem entre aqueles que têm e os que não têm o curso de polícia
comunitária. Como nos relatou uma Tenente25: “Aqui não se faz o trabalho de polícia
comunitária, aquela coisa dos policiais saírem tendo contato com os moradores. Aqui tem
apenas o trabalho das viaturas”.

2.2.3 – A UPS do Bola na Rede


A localidade da UPS do Bola na Rede faz parte de um bairro maior conhecido por
Oitizeiro. Segundo o IBGE, não existe o total populacional do Bola na Rede, mas a população

25
Como havíamos afirmado antes, não existem mulheres trabalhando nas UPS‟s, essa fala foi obtida da Tenente
que no dia trabalhava como Coordenadora de Policiamento do Distrito Integrado de Segurança Pública de
Manaíra, ao qual a UPS do São José está subordinada.
87

do Oitizeiro é de 29.125 habitantes. O bairro é uma comunidade localizada às margens da BR-


230 e circundada por outros bairros periféricos como Cruz das Armas, Alto do Mateus e
bairro dos Novaes. A UPS foi inaugurada no dia 12 de novembro de 2011. O prédio localiza-
se na rua (vila) São João Batista e, de frente a ele temos a rua 7 de setembro. As instalações
físicas se dividem na parte térrea, onde temos a sala de recepções do posto e um primeiro
andar, onde encontramos os alojamentos.

FIGURAS 20 e 21: Imagens da UPS do Bola na Rede.


FONTE: Arquivos do autor.

Nessa UPS, também foi realizada por parte da Polícia Militar uma “tomada” do bairro
antes da instalação do posto. Segundo informações dos entrevistados, foi necessário um
trabalho de dois meses desenvolvido pelo setor de inteligência da PM, o qual foi finalizado
com a operação que os policiais denominaram de “gol de placa”. Até então, nem ao menos
existia a denominação de Unidade de Policiamento Solidário. Esse nome passou a ser adotado
para todo o projeto com a inauguração da UPS do Bola na Rede. Segundo um Tenente
entrevistado, ao falar da operação de tomada do bairro dos traficantes: “Ao todo foram em
torno de 200 a 300 homens que participaram dessa operação. Depois dessa implantação nós
chegamos lá aí começou o trabalho de saturação na área, então a gente contou com o apoio do
Bope26, da Rotam, das tropas especializadas, foi elas [sic] que ficaram durante um mês
saturando a área” (Entrevista em: 13/12/2013). Um Cabo da UPS ainda acrescentou: “Depois
dessa invasão foi quando a UPS foi ser instalada porque até então quem mandava no local, um

26
Batalhão de Operações Policiais Especiais.
88

tal de Alexandre Neguinho, ele tava bem armado. Era 12, 15 homens, 20 homens. Aí qualquer
viatura que viesse pra aí tinha que vir no mínimo com reforço. Dois homens não resolvia.
Com a tomada, com a instalação da UPS a população teve uma melhor condição de vida”
(Entrevista em: 22/10/2014).
Aqui também os policiais se revezam na escala entre a permanência e as viaturas. O
serviço dura nas duas formas de policiamento 24 horas com uma folga de três dias. Dois
policiais trabalham na permanência e, segundo eles, os policiais da permanência vieram
transferidos do presídio do Róger e não possuem o curso de polícia comunitária. Muitos
também trabalham pelo serviço extra remunerado, de modo que alguns policiais da
permanência disseram que chegam a trabalhar 24 horas por outras 24 horas de folga por conta
do extra.
No tocante aos policiais das viaturas, uma informação a se destacar é que no dia 13 de
outubro de 2013 os policiais da Força Tática (um grupamento de polícia especializada), que
trabalham especialmente de forma reativa, adotaram o posto da UPS como sede. Mas ao
contrário dos policiais da permanência quase todos eles têm o curso de polícia comunitária, o
que pode ser identificado pelo emblema (brevê) relativo ao curso que eles carregam nos
uniformes. Segundo informaram-nos, foi dada a ideia ao Capitão Comandante da Força Tática
para que os policiais desse grupo fizessem o trabalho de polícia comunitária, pois “polícia
comunitária é aproximar policiais e moradores, coisa que não acontece” porque os policiais da
permanência não podem se ausentar do posto. Um Cabo da Força Tática contou-nos que, após
a chegada da Força Tática na UPS, os homicídios no bairro reduziram em 70% e depois
explicou-nos que “Nós abordamos, abordamos todo mundo (falou com uma certa ênfase),
para evitar que aconteça”, ou seja, os moradores, indistintamente, ainda mais aqueles
reconhecidos pela ótica policial por apresentarem as características que os colocam como
possíveis suspeitos de serem traficantes ou delinquentes, passam a sofrer constantes revistas
pessoais.
O Bola na Rede também é um bairro caracterizado pela violência segundo relatos dos
policiais. Essa violência teria diminuído após a fundação da UPS e, principalmente com a
chegada da Força Tática. Segundo as palavras de um Cabo que trabalha de permanente, houve
uma situação na qual “duas jovens foram esquartejadas vivas”. Um Sargento acrescentou
sobre a mesma história: “Ele cortou o corpo delas ainda vivas”. No entanto, o Cabo continuou
seu relato ao dizer que “O culpado foi preso no bairro e, foi extremamente violentado pelos
policiais. Foi chute por todo canto, todo mundo deu a sua. E quando se falou para parar, não
adiantou”. Um Sargento narrou uma outra situação na qual “uma jovem foi violentada com
89

água quente por um traficante, mas o mesmo foi preso”. Um Cabo da Força Tática disse-nos
que “Uma Senhora que mora naquela casa (apontou para o imóvel que fica de frente ao
posto), disse que um traficante falou que queria sair com a filha mais nova dela. E quinze dias
depois queria sair com a mais velha. Um dia depois ocorreu a “ocupação”, que foi a salvação
da Senhora”. Um Tenente também nos revelou que: “Uma vez a gente conseguiu salvar a vida
de uma pessoa, o camarada ia tocar fogo num cara vivo. Esse camarada que ia matar esse
outro era foragido de três estados: de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Pernambuco”. Ele
ainda relatou que,

Na verdade a gente colocou a comunidade bola na Rede no mapa. Ela não existia e
quando a polícia ia pra lá, a gente ia com duas, três viaturas porque uma viatura só
não entrava lá porque o risco era muito grande de um confronto, uma troca de tiros.
Atendia a ocorrência e depois saía. Quando saía o tráfico reinava do mesmo jeito. O
pessoal andava armado, até com arma longa, parecia favela do Rio de Janeiro, o
crack era servido na bandeja, entre outras coisas que aconteciam. A iluminação era
precária, calçamento não existia. Os traficantes ditavam suas leis. Então, pra um
cidadão passar por lá de moto ele tinha que tirar o capacete, desligar o farol e seguir
seu caminho. Várias pessoas foram mortas lá só porque erraram o caminho e
estavam perdidos e como desconheciam essas regras, eles (os traficantes) atiravam.
Essa era uma regra da comunidade (Entrevista em 13/12/2013).

No dia 17 de outubro de 2014, um pouco depois que tínhamos encerrado as visitas à


UPS do Bola na Rede, a Força Tática foi transferida para a UPS da Ilha do Bispo, que foi
reativada e, no Bola na Rede, chegaram outros policiais da tropa comum.

2.2.4 – A UPS do Róger


O bairro do Róger, segundo dados do IBGE, possui uma população de 10.140
habitantes. É um bairro conhecido pelas manifestações culturais que apresenta como
quadrilhas juninas e escolas de samba. A UPS do Róger localiza-se na junção entre a
movimentada avenida Ayrton Senna e a rua Ramalho Leite e foi fundada no dia 29 de agosto
de 2012. O prédio era sede do antigo posto policial do bairro. Ele possui uma pequena sala de
recepção para o contato com os moradores, onde se encontra um computador que serve de
suporte para mostrar as imagens que são monitoradas por câmeras que se encontram na parte
externa do prédio. Ainda mais, possui uma pequena cozinha, banheiro e alojamento.
Assim como as outras UPS‟s, existem policiais que trabalham na permanência e
aqueles da viatura. Na permanência, apenas dois policiais tiram serviço numa escala de 12
horas, sendo 36 horas de folga. Um deles ainda trabalha pelo serviço extra e acaba tirando 24
90

horas de serviço. Isso implica dizer que fica apenas um policial fixo no posto por dia.
Geralmente nas visitas que fizemos o portão do posto sempre estava fechado de cadeado. Por
outro lado, pelo menos na nossa presença, a UPS do Róger foi a que observamos o maior
contato entre os policiais da permanência e pessoas da comunidade. Quando o policial da
permanência vai embora à noite, os policiais da viatura ficam na UPS e saem apenas para
atender ocorrências.

FIGURAS 22 e 23: Imagens da UPS do Róger.


FONTE: Arquivos do autor.

Sobre o conhecimento acerca do policiamento comunitário, um Sargento da


permanência que está no posto desde sua fundação relatou-nos que “Todos nós foram [sic]
convocados pra fazer o curso de policiamento comunitário. Geralmente tudo pela sequência.
Vários companheiros fizeram, só que teve alguns que não deu tempo. Fui convocado ali no
Alto do Mateus numa reunião que teve lá com vários oficiais. Mais ou menos dez dias, outros
passaram quinze dias. Inclusive teve também no CE. O meu mesmo foi no colégio que tem,
esqueço o nome no momento, mas ao lado um galpão, inclusive houve debate, vídeo”
(Entrevista em: 15/10/2014). Ao contrário, um Subtenente narrou, ao ser indagado, se sabia o
que era o policiamento comunitário que: “Como eu nunca passei pelo curso não sei muito
como é que... Eu não sei como é o curso e como é. O que é que tem a ver com a polícia
comunitária, solidário” (Entrevista em: 28/10/2014).
Segundo nossas observações e pelos dados apresentados pelas estatísticas da
Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social, a UPS do Róger não apresenta índices
elevados de violência. Como nos disse um Sargento, ao falar dos principais problemas da
comunidade: “Geralmente aqui nessa comunidade é mais som alto, às vezes é confusão
91

familiar e nós somos convocados. Tudo o que foi repassado pra gente perante os oficiais, foi
tudo aceito, tudo aproveitado” (falando acerca dos conhecimentos sobre policiamento
comunitário). No entanto, não existe qualquer tipo de policiamento a pé no bairro, ficando a
cargo da viatura a resolução de todas as ocorrências.

2.2.5 – A UPS de Jaguaribe


Em Jaguaribe, a UPS está localizada dentro das instalações físicas do Instituto Federal
da Paraíba (antigo Cefet). O posto fica na avenida 1º de maio. O bairro tem uma população de
14.530 habitantes segundo dados do IBGE e é considerado um local calmo, formado por
famílias antigas. A UPS foi inaugurada no dia 25 de setembro de 2012 e, fisicamente, é a
menor entre as cinco pesquisadas. Possui apenas uma pequena sala de recepção. Não possui
alojamento para os policiais nem banheiro. Assim como em todas as outras, existem policiais
com o curso de polícia comunitária e outros que não têm. A escala para os policiais da
permanência e da viatura é de 24 horas com folga de três dias. Alguns também trabalham pela
escala extra. Nesta UPS também é desempenhado o policiamento realizado em motos
(motopatrulhamento).

FIGURA 24: UPS de Jaguaribe.


FONTE: Arquivos do autor.

A particularidade da UPS de Jaguaribe é sua localização próxima de vários


estabelecimentos comerciais (agências bancárias, lotérica, padaria, farmácia, lanchonete).
92

Como nos afirmou um Soldado: “A gente conhece todos os pontos comerciais que teem aqui:
padaria, mercadinho, cabeleireiro e já tem uma noção praticamente de ocorrência que tem pra
gente poder passar mais vezes naquele local ou não. Justamente porque a gente sabe que é um
bairro nobre de classe média e antigo. Vinte e uma horas o pessoal tá todo dormindo. O índice
mais alto que tem aqui hoje é furto a celular. A comunidade fala com você” (Entrevista em:
22/10/2014).
Quanto aos problemas enfrentados pela comunidade, os policiais relataram-nos que se
destaca a violência e o uso de drogas nas escolas. Como narrou um Cabo sobre a presença das
drogas no bairro: “Nós temos pessoas aqui na comunidade que nós sabemos que são
dependentes químicos, mas nós não temos a quem recorrer. Hoje nós não temos nenhum
órgão que seja responsabilizado por isso” (Entrevista em: 17/10/2014).
Um ponto a se ressaltar em comum em relação às UPS‟s são as tentativas
empreendidas pela Polícia Militar para consolidar uma imagem do projeto condizente com os
preceitos do policiamento comunitário. Na UPS de Jaguaribe, uma Tenente coordenadora
falou-nos que: “O que tem dado certo é o contato com as escolas. A gente tá sempre com o
diretor. O diretor tem o telefone da gente. A gente faz palestra. Tem um militar que ele é
cantor; eu tenho levado ele pras palestras. Ele toca umas músicas. E a questão de tentar
melhorar a imagem do policial militar. Eu percebo que o que tem dado mais certo ainda é essa
integração nas escolas” (Entrevista em: 18/09/2013). Na UPS do Bola na Rede tivemos as
seguinte experiências contadas por um Tenente:

A gente começou a manter contato com os colégios, a gente fazia palestras nos
colégios, uma atividade preventiva. Começou também um trabalho nas igrejas. Isso
tudo são estratégias pra tentar uma aproximação, pra ganhar confiança das pessoas.
Então, tinha um sopão lá a gente começou a ajudar nesse sopão. A gente organizou
um sopão, um culto, a gente convidou um pastor pra fazer um culto na frente da
UPS. Foi bom que você vai se aproximando mais das pessoas e ganhando a
confiança delas (Entrevista em: 13/12/2013).

Na UPS de Mandacarú, desde 2011, foi desenvolvido o projeto “Uma nota musical
que salva”, o qual funciona na casa de um casal residente do bairro. Tem por objetivo ensinar
música, culinária e canto a crianças e adolescentes com o intuito de afastá-los das drogas. Os
professores são voluntários, inclusive sendo alguns deles policiais da Banda de música da PM
paraibana. No bairro São José desenvolveu-se o projeto “Caminho certo”, onde um Sargento
ensina futebol e voleibol a crianças e jovens dos oito aos 16 anos.
93

Num relatório preparado pela Coordenação Estadual de Polícia Comunitária podemos


encontrar, de forma sintética, qual é o discurso disseminado pela Polícia Militar acerca dos
objetivos do policiamento solidário, ou seja,

Diante dos elevados índices de violência e criminalidade em algumas localidades de


João Pessoa, o comando da corporação resolveu investir na disseminação e efetiva
aplicação de uma filosofia de Policiamento mais próxima das pessoas. Diante dessa
perspectiva foi elaborado um plano de ação para capacitar profissionais na filosofia
de atuação comunitária, passando aplicar os princípios norteadores de uma Polícia
Solidária, orientando as pessoas para prevenção do delito, a fim de identificar
problemas que afligem as suas comunidades, além de capacitar pessoas moradoras
da comunidade na resolução pacífica de conflito por meio da mediação numa
perspectiva cidadã, demonstrando a importância da Mobilização Comunitária para
criação de Conselhos Comunitários de Defesa Social, objetivando alcançar melhores
índices de qualidade de vida para todos da comunidade, atentando também para que
esse novo modelo de atuação policial prestigiasse os direitos humanos dos cidadãos,
passando a tratar essa filosofia como princípio basilar para o êxito do trabalho
institucional (s. d., p. 3-4).

Assim, em meio ao que foi exposto sobre a realidade do projeto de policiamento


solidário, destacamos o fato de que todo o discurso sobre um policiamento preventivo em
torno do programa caminha paralelo com o paradoxal aumento do policiamento reativo e
repressivo (PASSOS, 2011). Antes da execução e efetuação do projeto, veem-se estratégias
que legitimam a presença cada vez maior dos policiais nos bairros assistidos pelo
policiamento solidário. Aliás, a utilização do modelo tradicional de polícia faz parte do
projeto, onde as viaturas policiais carregam o emblema “Paraíba unida pela paz”. Nesse
caminho, de acordo com a análise de dados que se segue, a Paraíba tem feito parte de uma
complexa dinâmica que envolve a violência e a criminalidade em nosso país, a qual nos cria a
indagação de que, se as políticas de Segurança Pública visam a diminuição de crimes como os
homicídios, como compreender a presença de políticas preventivas como o são as de
policiamento comunitário?

2.3 - MAPEANDO OS HOMICÍDIOS NO BRASIL E NO NORDESTE

Zaluar (2007) nos traz uma interessante discussão para pensarmos nas causas que
estão por trás do aumento da violência em nosso país nas três últimas décadas e, em especial,
no crescente número de homicídios que vitima geralmente jovens pobres, ou melhor, homens,
nas periferias das grandes cidades. Segundo a autora, podemos destacar dois paradoxos e um
94

enigma. O primeiro paradoxo diz respeito ao fato de que a democratização do país, iniciada
em 1978, teria ocorrido exatamente com o crescimento nas taxas de homicídios de homens
jovens. O segundo paradoxo centra-se na ideia de que, se o Brasil foi uma nação construída
com base na “cordialidade” (HOLANDA, 1995) e na “conciliação”, tais preceitos teriam
cedido espaço para a ausência de cidadania, pois, “os mecanismos de vingança pessoal e os
impulsos agressivos incontroláveis tomaram o seu lugar, visto que nem o perdão nem a
pacificação foram discutidos publicamente no término do regime militar” (ZALUAR, 2007, p.
2). Sobre o enigma, voltamos à informação de que essa violência desencadeada juntamente
com o processo de redemocratização quase não afetou as mulheres, mas como dito, na sua
quase totalidade, apenas homens jovens. Pode-se situar a partir desses fatos levantados por
Zaluar (2007) dados que nos indicam que entre os anos 1980 e 1990, as taxas médias de
homicídios entre homens jovens que se situam na faixa etária dos 15 aos 29 anos aumentaram
em todo o país. No ano 2000, na faixa etária indicada, morreram 93% de homens para apenas
3% de mulheres. O que se constata com essas condições é que esses jovens, não importa se
situados como vítimas ou autores de homicídios, participaram de tais atos em locais públicos
envolvendo pessoas que não se conheciam e não tinham laços de intimidade.
Em meio à complexidade no aumento da violência no Brasil em períodos de
redemocratização, pode-se falar de diversos fatores que contribuem para esse crescimento e,
no caso das taxas de homicídios, acreditamos que elas não seriam apenas causas, mas também
resultados da dinâmica que envolve a criminalidade. Nesse sentido, destaca-se a “a indústria
do crime”, que está estritamente vinculada ao tráfico de drogas ilegais e ao tráfico de armas.
E, para os jovens pobres, o fato de entrar para o crime passou a significar mudanças nos
valores culturais que se traduzam na busca por padrões de consumo que acabaram por formar
subjetividades voltadas para o individualismo mercantil que corroeu as condições morais
socialmente construídas. Nesse âmbito, juntamente com as crises de legitimidade familiar dos
jovens cooptados pelo tráfico de drogas, “surgiu, então, uma nova organização complexa,
diversificada e muito bem armada, na qual os conflitos comerciais e pessoais foram resolvidos
com armas de fogo, e na qual foram criados um culto viril e exibições violentas de poder”
(Ibidem, p. 10). Foram as correlações anteriormente citadas que acabaram por atrair jovens
pobres para situações baseadas no conflito e não na “lealdade”. Nesse jogo que enseja a
criação de uma hierarquia no tráfico e a condizente participação das agências policiais, tem-se
a consolidação de elementos estruturais e subjetivos que servem de atrativo aos homens
jovens das favelas, pois
95

Atraídos por essa identidade masculina, os jovens, nem sempre os mais destituídos,
incorporam-se aos grupos criminosos em que ficam à mercê das rigorosas regras que
proíbem a traição e a evasão de quaisquer recursos, por mínimos que sejam. Entre
esses jovens, no entanto, são os mais destituídos que portam o estigma de eternos
suspeitos, portanto incrimináveis, quando são usuários de drogas, aos olhos
discriminatórios das agências de controle institucional. Com uma agravante:
policiais corruptos agem como grupos de extorsão, que pouca diferença guardam
com os grupos de extermínio que se formam com o objetivo de matar os eternos
suspeitos. Quadrilhas de traficantes e assaltantes não usam métodos diferentes dos
primeiros, e tudo leva a crer que a luta pelo butim entre eles estaria levando à morte
os seus jovens peões. Entre os rapazes ou meninos, o principal motivo de orgulho
advém do fato de que fazem parte da quadrilha, portam armas, participam das
iniciativas ousadas de roubos e assaltos, adquirem fama por isso e podem, um dia,
caso mostrem “disposição para matar”, ascender na hierarquia do crime (ZALUAR,
1998, p. 294-295).

Podemos dizer que, em síntese, essa realidade posta sobre a morte de homens jovens e
o seu entrelaçamento com a lógica do tráfico de drogas disseminou-se pelo país, de acordo
com graus variados por Estados e regiões, mas de maneira acentuada nos grandes centros
urbanos como as capitais estaduais. Então, se nosso objetivo é entender os motivos que
ensejam a criação do policiamento solidário em João Pessoa, na Paraíba, podemos dizer a
princípio que esse projeto direciona-se não apenas para reaproximar comunidades e policiais
onde esses últimos atuam, mas também criar políticas operacionais de combate à
criminalidade. Segundo as palavras de um Capitão coordenador do projeto entrevistado por
nós:

Cada Unidade de Polícia Solidária tem um Tenente à frente e o Tenente está ligado à
questão operacional. E a minha função é justamente coordenar todas essas Unidades.
Qual a necessidade específica de cada uma. Por exemplo, eu faço junto ao Tenente o
levantamento da área dele. Tua área deu três homicídios este mês. O que foi que
promoveu estes homicídios: tráfico de drogas? Tem um levantamento das bocas de
fumo da área?27 Não temos, vamos fazer. A gente faz um levantamento das bocas de
fumo que tem na área. Faz um levantamento, o registro fotográfico, dos marginais
que têm naquela área de UPS e aí a gente vai passar a focar o nosso policiamento
com base naquelas informações que a gente tem das bocas de fumo. Então, este é o
papel que a gente vem fazendo à frente da Coordenação: apoiando os Comandantes
de UPS, orientando o norte pra eles seguirem e dando suporte também à questão
administrativa (Entrevista em: 28/08/2013).

Vê-se de acordo com o exposto que a redução do índice de homicídios e, a relação


entre essas mortes e o tráfico de drogas é uma imagem que figura como uma das
preocupações centrais pelo menos no discurso dos policiais que estão operacionalizando as
ações do policiamento solidário. E nesse mesmo discurso a distinção entre “nós” (os policiais

27
No jargão policial, diz respeito aos locais de venda ilegal de entorpecentes.
96

que combatem a criminalidade) e “eles” (os marginais), aparece naturalizada na fala do


Capitão. Nossa preocupação aqui encaminhar-se-á em outro sentido, por meio de dados
sociológicos que possam demonstrar outras estratégias presentes no processo de implantação
da Polícia Solidária, mas analisar informações sobre o aumento dos homicídios no Brasil
torna-se fato relevante para entendermos o que fundamenta e subsidia a publicização das
políticas governamentais que se enveredam para a utilização do policiamento solidário. As
palavras do Capitão coordenador da UPS dos bairros de Mandacarú e Alto do Céu ainda se
tornam esclarecedoras para entender como se justifica a implantação do projeto de
policiamento solidário, pois, como ele afirma:

O nosso foco hoje está voltado no acompanhamento desses jovens que são drogados,
são dependentes químicos. E o nosso trabalho está também voltado à outra frente,
não somente a frente da prevenção a estes jovens, mas a frente também da repressão.
Nós reconhecemos uma série de adolescentes, crianças envolvidas com as drogas.
Acabam esses jovens morrendo. Hoje em Mandacarú o índice de morte é muito alto,
principalmente a faixa etária de 15 a 20 anos. E nós reconhecemos que essas mortes
são normalmente resultados dessas disputas territoriais por pontos de droga
(Entrevista em: 17/09/2013).

Nesse contexto, ao vivenciarem o processo de transição para a vida adulta, os jovens


adquirem mais autonomia e segurança no uso da agressividade para ocupar um lugar no
espaço social do qual fazem parte. Além disso, o desemprego contribui para uma maior
aproximação dos jovens com a vivência e o exercício da violência (TAVARES DOS
SANTOS, 2007). Essa inserção num campo de conflitos que gera violência, tornando jovens
ao mesmo tempo autores e vítimas desse fenômeno, leva-nos a destacar que a vitimização por
homicídio surge como representante principal na visibilidade da violência urbana. Posto esse
quadro, o que se revela são consequências individuais e sociais, além do aumento das taxas de
homicídios advindo da configuração atual do meio urbano no Brasil (CANO & RIBEIRO,
2007).
Nesse sentido, a “violência urbana” pode ser entendida como um “problema social”
(GULLO, 1998) e, neste caso, o Estado passa a legitimar suas políticas de Segurança Pública
no combate específico aos fatores relacionados com essa violência. Nessa proposição, os
“marginais urbanos, vistos como criminosos pelo Estado, se encontram impossibilitados de
integração na sociedade urbana porque são considerados perturbadores da ordem institucional.
Formam grupos, bandos ou gangs e geralmente habitam cortiços e favelas” (GULLO, 1998, p.
4). Segundo Wiervioka (1997), ao esboçar as considerações que explicam um “novo
paradigma da violência”, para se descortinar as ideias que implementam essa nova conjuntura
97

sobre a violência, destacando-se neste caso a contemporaneidade a partir da década de 70 do


século XX aos dias atuais, tem-se que se remeter às mudanças que engendram significados e
percepções sobre o fenômeno violento e às formas de abordagem que caracterizam tal fato.
Ainda assim, sem demonstrar evidências que possibilitem o real entendimento da dinâmica da
violência, surge uma evolução histórica desse fenômeno entrecortada por digressões que
exigem formas de investigação capazes de estabelecer novas nuances ao modo de se
compreender esse processo sociológico vinculado à violência.
Podemos, neste sentido, ao falar das investigações que colocam em pauta os
homicídios em nosso país, antes de mostrarmos alguns dados, atentar primeiramente para o
fato de que, “o homicídio não constitui um fenômeno unívoco. Os homicídios respondem a
etiologias diferentes, que vão desde brigas e crimes passionais até eventos relacionados à
disputa por terras, passando por latrocínios ou conflitos entre membros do crime organizado”
(CANO & RIBEIRO, 2007, p. 52). Por isso, diversos autores (SOARES, 2011; CANO &
SANTOS, 2007; CANO & RIBEIRO, 2007) servem de subsídio para compreendermos as
dificuldades que estão por trás das pesquisas que visam proporcionar o conhecimento sobre os
índices de homicídio em nosso país. E, nessa dinâmica sobre o levantamento dos dados no
Brasil sobre homicídios, destacam-se duas formas principais: as informações obtidas do
sistema de saúde e aquelas dos registros policiais.
Essas formas de se obter dados sobre homicídios geram problemas, como por
exemplo, quando alguém é atingido por tiros, mas só vem a óbito no hospital. Neste caso, a
polícia não registra o homicídio e, o sistema de saúde nem sempre pode interpretar a morte
como homicídio. De todo modo, de acordo com o Ministério da Saúde, importam as mortes
oriundas de “causas externas de mortalidade” que dizem respeito a acidentes, homicídios e
suicídios. Por essa orientação, os dados sobre homicídios especificamente para as vítimas e o
seu grau de confiabilidade baseiam-se na propositura da homogeinização em todo o território
nacional por meio de critérios internacionais, ou seja, a Classificação Internacional de
Doenças (CID), da Organização Mundial de Saúde.28 No entanto, pelo fato desses dados
basearem-se na causa da morte de acordo com o atestado de óbito, mesmo com o grau de
confiabilidade que demonstra, apresenta alguns problemas como a não classificação de
algumas mortes pela ausência complementar sobre a causa e natureza das mesmas (CANO &
SANTOS, 2007). Sobre a deficiência quanto aos registros provenientes dos boletins de
ocorrência policiais tem-se, como exemplo, as circunstâncias em que

28
Entre os anos de 1979 e 1995 foi utilizada a 9ª revisão ou CID-9. A partir de 1996 passou a ser utilizada a 10ª
revisão ou CID-10. Ver Cano e Ribeiro (2007).
98

Geralmente são baseados em critérios jurídicos ou policiais. Assim, se uma morte


intencional não recebe o nome de homicídio, não será incluída nos totais agregados.
A polícia registra os fatos conforme são apresentados no momento do Registro de
Ocorrência, rotulando-os segundo o provável crime cometido. O nível de
padronização e a qualidade do processamento de dados na polícia são, em geral,
mais baixos do que os da área de saúde. A existência de várias forças policiais sem
qualquer centralização de dados ou de procedimentos permite a aplicação de
diferentes categorias e critérios e abre porta a vieses relacionados a fatores locais
(Ibidem, p. 23-24).

De todo modo, os parâmetros adotados em nosso país para a aferição das taxas de
homicídio são os que atualmente têm sido utilizados não só para o conhecimento acadêmico,
mas também para as políticas públicas. Para uma melhor compreensão, a seguir mostramos o
panorama quantitativo das taxas de homicídio em nosso país e na região Nordeste e, dentro
desse universo, localizaremos o principal segmento responsável pelo aumento nesses índices,
ou seja, os jovens masculinos na faixa etária dos 15 aos 24 anos. Tal intento se explica pelo
fato de que são esses segmentos sociais formados pelos jovens citados que se tornam os
principais grupos visados pelos policiais militares no combate à criminalidade, especialmente
nas áreas onde existe o projeto de policiamento solidário.
Nesse caminho, se formos considerar os dados obtidos segundo o atual mapa da
violência no Brasil (WAISELFISZ, 2013) através de séries históricas por nós relacionadas
observaremos que, em 1980 tivemos em nosso país 13.910 homicídios, o que equivale a uma
taxa de 11,7 mortes por 100 mil habitantes. Se compararmos a taxa de homicídios com as
outras duas variáveis que indicam a estrutura da mortalidade segundo causas externas teremos
que os acidentes de trânsito foram responsáveis por 20.365 mortes (17,1 por 100 mil hab.) e
os suicídios tiveram como número o total de 3.896 mortes (3,3 por 100 mil hab.). Em 1990, os
homicídios no Brasil computaram o total de 31.989 mortes (22,2 por 100 mil hab.), o que
condiz a uma porcentagem de aumento de 130% em relação à1980. Quanto aos acidentes de
trânsito tivemos um total de 29.089 mortes (20,2 por 100 mil hab.), ou seja, um aumento de
42,8% e, quanto aos suicídios, computaram-se 4.845 mortes (3,4 por 100 mil hab.),
correspondente a um acréscimo de 24,4%.
Pelo viés dos dados até o ano de 1990, entre as mortes externas catalogadas pelo
Ministério da Saúde, os homicídios foram as que apresentaram o maior aumento nos índices,
mais que dobrando o total em relação aos dados anteriores apresentados em 1980. Em
sequência, o ano 2000 nos demonstra que ocorreram no Brasil um total de 45.360 homicídios
(26,7 por 100 mil hab.). Os acidentes de trânsito foram responsáveis por 29.645 mortes (17,5
por 100 mil hab.) e os suicídios representaram 6.780 óbitos (4,0 por 100 mil hab.). De forma
99

respectiva, os aumentos nos índices de homicídios, acidentes de trânsito e suicídios foram da


ordem de 41,8%, 1,9% e 39,9% quando comparados os dados com o ano de 1990.
Por fim, os dados atuais nos demonstram que em 2011 tivemos em nosso país 52.198
óbitos por homicídios (27,1 por 100 mil hab.) e um aumento de 15,1% em relação ao ano
2000. Os acidentes de trânsito, após pequeno aumento apresentado em 2000 em comparação a
1990, voltou a aumentar com um total de 44.553 mortes (23,2 por 100 mil hab.) e uma taxa de
50,3% de aumento. Por fim, os suicídios contabilizaram 9.852 mortes (5,1 por 100 mil hab.),
ou seja, 45,3% de aumento se observado o total do ano 2000.
O que os dados revelam é o aumento evidente nas mortes causadas por homicídios no
Brasil desde que esses levantamentos passaram a ser realizados a partir de 1980. Se fizermos,
por exemplo, um comparativo com um lapso de tempo maior entre as três variáveis que
caracterizam as mortes externas no Brasil, entre os anos de 1980 e 2011, os homicídios
tiveram uma taxa de crescimento de 275,3%, enquanto os acidentes de trânsito cresceram
118,3% e os suicídios 152,9%.

GRÁFICO 1 – Demonstrativo do aumento de mortes por causas externas no Brasil


(1980-2011)

60.000
50.000
40.000 1980
30.000 1990
20.000 2000
2011
10.000 2000 2011
0 1990
Homicídios 1980
Acidentes de trânsito
Suicídios

FONTE: Mapa da violência 2013.

A partir dessas constatações, passemos então ao recorte específico sobre os homicídios


que incidem sobre a população jovem, onde essa diz respeito aos jovens que se encontram
100

entre as idades de 15 e 24 anos29 (WAISELFISZ, 2013). Em 1980, morreram no Brasil 4.327


jovens vítimas de homicídios, o que equivale a 17,2 mortes para cada 100 mil habitantes. No
tocante aos acidentes de trânsito, tivemos 4.329 mortes (17,3 por 100 mil hab.) e, foram 1.007
suicídios (4,0 por 100 mil hab.). Em 1990, o total de mortes por homicídio no grupo de jovens
referenciado chegou a 10.954 (38,8 por 100 mil hab.), o que representa o dobro no aumento
em relação ao número de mortes por acidentes que foi de 5.930 (21,0 por 100 mil hab.) e, os
suicídios tiveram um total de 1.035 mortes. Se destacadas as taxas de aumento em
comparação ao ano de 1980 tivemos índices de homicídios, acidentes e suicídios com valores
de 153,2%, 37% e 2,8% respectivamente.
Em 2000, o aumento total permaneceu prevalecente entre os homicídios que chegaram
a totalizar 17.501 mortes (51,4 por 100 mil hab.), ou melhor, 59,8% de aumento em relação
ao ano de 1990. Os acidentes cresceram para uma soma de 6.489 mortes (19,0 por 100 mil
hab.) e uma taxa de 9,4% comparado ao ano de 1990 e, os suicídios contabilizaram 1.382
mortes de jovens (4,1 por 100 mil hab.), que corresponde a uma taxa de 33,5% em relação ao
ano de 1990. Na última série histórica que destacamos, tem-se 18.436 mortes de jovens entre
os 15 e 24 anos no ano de 2011 (53,4 por 100 mil hab.), ou seja, 5,3% em comparativo com o
ano de 2000. Os acidentes alcançaram o patamar de 9.573 mortes (27,7 por 100 mil hab.) e
uma taxa de 47,5% em relação a 2000 e, os suicídios somaram 1.748 mortes (5,1 por 100 mil
hab.), com índice de 26,5% em analogia com o ano 2000.
O que se percebe é que, assim como demonstram os dados sobre as mortes por causas
externas no Brasil, desde 1980, os homicídios vêm liderando o cômputo total de mortes
quando o universo observado são os jovens entre os 15 e 24 anos, mesmo que na última série
histórica a proporção maior de aumento tenha ficado com os acidentes de trânsito. Nesse
conjunto de informações podemos ainda acrescentar que, em comparação com o que
consideramos ser uma população não jovem, as mortes de jovens no Brasil por causas naturais
encontra-se na ordem de 26,8% e entre os não jovens é da ordem de 90,1%. Quando o assunto
são as mortes causadas por condições externas (homicídios, acidentes de trânsito e suicídios)
morrem 73,2% de jovens e 9,9% de não jovens. Por fim, se os homicídios dizem respeito a
3,0% das mortes entre os não jovens, para o grupo dos jovens essa representatividade é de
39,3% (WAISELFISZ, 2013).

29
Nesse sentido, considera-se não jovem as pessoas com menos de 15 anos de idade, que assim não atingiram a
juventude e aqueles que ultrapassaram os 24 anos de idade. Ver WAISELFISZ (2013).
101

GRÁFICO 2– Demonstrativo do aumento de mortes por causas externas no Brasil entre


jovens na faixa etária dos 15 aos 24 anos (1980-2011)

20.000
18.000
16.000
14.000
12.000 Série 1
10.000 Série 2
8.000
Série 3
6.000
4.000 Série 4 Série 4
2.000 Série 3
0 Série 2
Homicídios Série 1
Acidentes
Suicídios
de trânsito

FONTE: Mapa da violência 2013.

Assim, como já expomos, a nossa intenção é destacar quais são os motivos que
justificam a criação de formas de controle social por parte do Estado que caminhem, segundo
o discurso estatal, no sentido de combater as causas que veem contribuindo para o aumento da
criminalidade, especialmente urbana, neste caso traduzida no aumento dos índices de morte
por homicídio. Se os dados sobre as mortes por homicídio no Brasil e o recorte específico
sobre a faixa etária entre 15 e 24 anos revelam aumentos gradativos no quantitativo das
vítimas, a região Nordeste não foge à regra e ajuda a manter as estatísticas com números que
possibilitam averiguar tal afirmação.
Com olhar específico sobre a morte de jovens entre os 15 e 24 anos, com série
histórica entre os anos de 1980 e 2011, temos que a região Nordeste ocupa a 3ª posição nos
índices de aumento das mortes por causas externas com uma taxa de 66,9% de aumento. No
entanto, com base nesse índice, os homicídios representam a primeira posição em relação às
demais regiões do Brasil com 47,3% de aumento, enquanto os acidentes se configuram numa
taxa de 16,7% e os suicídios 2,9%. O gráfico abaixo ajuda a situar a região Nordeste num
quadro comparativo em relação às demais regiões brasileiras.
102

GRÁFICO 3– Demonstrativo do índice de aumento (%) de mortes por causas externas


no Brasil entre jovens na faixa etária dos 15 aos 24 anos (1980-2011)

50
45
40
35
30
25
20
15 Homicídios
10
5 Acidentes de trânsito
0 Suicídios

FONTE: Mapa da violência 2013.

Percebemos, como já dito e pelos parâmetros apresentados no último gráfico, que a


Região Nordeste lidera o ranking nacional nos índices de aumento na morte de jovens entre os
15 e 24 anos no tocante ao fenômeno de homicídio. Em relação aos acidentes de trânsito, a
região ocupa apenas a 4ª posição (16,7%) e fica em último lugar quanto aos índices de
suicídio (2,9%). Nesse sentido, vejamos como se posicionam a Paraíba e sua capital, João
Pessoa, em relação aos índices que referenciam notadamente os homicídios.

2.4 – O PANORAMA DA VIOLÊNCIA E OS HOMICÍDIOS NA PARAÍBA E JOÃO


PESSOA

Na busca de voltarmos nosso olhar para a realidade que se estabelece na Paraíba e em


sua capital, João Pessoa, no tocante ao aumento da violência, traduzida especialmente pelo
número de homicídios e por crimes praticados contra o patrimônio, podemos asseverar de
antemão que a realidade paraibana caminha historicamente ao encontro dos fatos presenciados
no Brasil. Isso nos leva a observar que, da violência exercida pelo Estado através do período
ditatorial, como vimos, passamos a conviver com a violência urbana, que surgiu como legado
da ausência do controle estatal no gerenciamento de situações como o tráfico de drogas, a
organização dos grupos armados responsáveis pelo aumento do comércio ilícito de drogas e
103

armas, além da construção subjetiva de novos atores sociais envolvidos nesse processo. Por
essa lógica, a Paraíba segue o aumento gradual da violência ocorrido em todo o território
nacional e, quando demonstrados os dados que nos permitem verificar essa condição. De
acordo com as palavras do Capitão coordenador de uma das UPS,

O número de mortes hoje em Mandacarú está correlacionado a essa questão das


drogas. É um problema que já levamos à Secretaria de Segurança. O Alto Comando
da PM também tem conhecimento disso aí. Nós já temos produzido relatórios, que
inclusive tem ensejado numa série de operações, uma verdadeira caçada aos
traficantes. Nós temos conhecimento que normalmente esses grandes traficantes
estão presos em penitenciárias da capital e controlam de lá o que nós chamamos de
“robozinhos”, que são pequenos traficantes, “aviões”, que vivem o dia todo
comercializando droga aqui em Mandacarú. E isso tem incidido na questão das
mortes (Entrevista em: 17/09/2013).

Como destaca o policial, a “caçada aos traficantes” se destaca nas operações


desenvolvidas pela Polícia Militar, visto a correlação direta entre o tráfico de drogas e o
aumento no número de homicídios. Desse modo, na Paraíba, considerando-se a série histórica
entre os anos 2001-2011 (WAISELFISZ, 2013), tem-se a situação na qual em números
absolutos aconteceram 490 homicídios em 2001. Esse número situava o Estado como o 19º
mais violento do país de acordo com os homicídios registrados e como o 7º na Região
Nordeste, que tinha respectivamente como os três Estados mais violentos na época
Pernambuco (4.697 homicídios), Bahia (1.579 homicídios) e Ceará (1.298 homicídios). Em
2011, a Paraíba passou a ocupar o 13º lugar em números absolutos de homicídios no país com
um total de 1.619, o que referencia o Estado atualmente como o 5º mais violento do Nordeste.
A Bahia passou a posicionar-se em primeiro lugar com 5.451 homicídios, seguida por
Pernambuco (3.464 homicídios) e Ceará (2.788 homicídios). Soma-se a esses dados o fato de
que,se em 2001 a Paraíba era o quinto Estado do Nordeste e o 21º no Brasil em número de
homicídios por 100 mil habitantes com uma taxa de 14,1, em 2011 passou a figurar como o
segundo do Nordeste e como o terceiro do Brasil com um índice de 42,7 homicídios para cada
100 mil habitantes, ficando apenas atrás de Alagoas com 72,2 e Espírito Santo com 47,4,
enquanto a taxa do Brasil encontrava-se em 2011 em 27,1.
Quanto aos números da violência envolvendo a população jovem na Paraíba (entre 15
e 24 anos), em 2001, o Estado registrou um total de 198 homicídios, o que o fez se situar
como o sexto Estado nordestino e o 17º no Brasil. Em 2011, os dados demonstram que os
números cresceram para um total de 551 homicídios, o que posicionou a Paraíba como o
quinto Estado mais violento do Nordeste e o 13º do Brasil quanto ao recorte específico dos
104

homicídios de jovens. Já quanto ao índice por 100 mil habitantes, em 2001 a taxa era de 27,6
mortes, o que colocava a Paraíba como o quinto Estado do Nordeste e o 19º do Brasil. Só que
esse quadro se modificou em 2011 quando a Paraíba passou a apresentar um índice de 88,2
homicídios de jovens por 100 mil habitantes, ou seja, passou a ocupar também o 2º lugar no
Nordeste (atrás de Alagoas com 156,4) e o 3º no país (atrás de Alagoas e Espírito Santo, esse
último com taxa de 115,6).
Esse aumento nos números quanto aos homicídios reflete-se também na cidade de
João Pessoa, pois em 2001, em números absolutos, a cidade era a sexta mais violenta do
Nordeste com 251 homicídios, fato que se alterou em 2011 quando os dados revelam que
ocorreram 633 homicídios, ou seja, mesmo se tornando a quinta capital mais violenta do
Nordeste, os números demonstram acentuado aumento das ocorrências de homicídio. No
entanto, se em 2001, João Pessoa ocupava a quarta posição no que diz respeito ao índice de
homicídios relativo a cada grupo de 100 mil habitantes com 41,3, em 2011 a cidade passou a
localizar-se como a segunda capital mais violenta tanto no Nordeste como no Brasil com um
índice de 86,3 homicídios por 100 mil habitantes, deixando-a atrás apenas de Maceió com
111,1 tanto em âmbito regional como nacional (WAISELFISZ, 2013).
Sobre o homicídio de jovens em João Pessoa, em 2001 tivemos 105 óbitos
computados, o que resultou na colocação da cidade como a 6ª capital nordestina mais violenta
e a 17ª do Brasil. Em 2011, os números constatam um total de 289 mortes de jovens, de forma
que João Pessoa localiza-se assim como a 5ª cidade do Nordeste e a 10º do Brasil. Os dados
se tornam mais crônicos para evidenciar o aumento da violência contra os jovens em forma de
homicídios quando considerados os índices por 100 mil habitantes. Nessa perspectiva, em
2001, o índice era de 81,8 mortes por 100 mil habitantes, de modo que a cidade era a 4ª
colocada no Nordeste e a 11ª do Brasil. O quadro se alterou em 2011 com a elevação do
índice para 215,1 homicídios para grupos de 100 mil habitantes, o que deixa João Pessoa
como a segunda cidade do Brasil e do Nordeste nesta aferição, atrás apenas de Maceió com
288,1 homicídios.
Segundo Lima (2010), a violência e a criminalidade urbana na cidade de João Pessoa
têm crescido devido a vários fatores. Um deles seria o aumento populacional da capital
paraibana, pois a cidade passou de um contingente populacional de 221.546 habitantes em
1970 para 693.082 habitantes no ano de 2008, o que equivale a um aumento de 124,6% para o
período referendado. O que ocorre é que, no início do período citado esse aumento aconteceu
devido ao êxodo rural, o qual acabou por perder força para o crescimento vegetativo e para a
chegada de pessoas oriundas de outras regiões do país. E, nesse contexto,
105

Embora tenha passado por grandes transformações estruturais e por considerável


crescimento econômico em todos os setores a cidade não foi capaz de absorver esse
crescimento da sua população. Na década de 1970 teve início o crescimento da
população periférica com a formação ou ampliação de aglomerados urbanos, onde a
qualidade de vida era muito precária. Nas décadas de 1980 e 1990 o governo
investiu muito em políticas habitacionais, mas não o suficiente para absorver essa
população, que continuou a crescer (Ibidem, p. 64).

Todos esses dados nos revelam um acúmulo de conhecimentos, ou melhor, de saberes


estatísticos que têm de certa forma alimentado as políticas governamentais na Paraíba
construindo informações que possibilitam um conjunto de medidas a serem adotadas no
combate ao crime. Se os homicídios são o foco central do governo paraibano e das ações da
Polícia Militar, o que passa a estar em jogo é a vida humana, enquanto um bem tutelado pelo
Estado. Seguindo os passos de Foucault (2008a, p. 7), podemos também indagar, como
exemplo, “como se pode prever estatisticamente que haverá esta ou aquela quantidade de
roubos? Há momentos, regiões, sistemas penais tais que essa taxa média vai aumentar ou
diminuir? Essa criminalidade, ou seja, o roubo, quanto custa à sociedade?”. Tais indagações
nos levam a observar que estamos na seara de um cálculo político que envolve as agências
estatais, as quais passam a gerenciar o fenômeno da criminalidade mediante os saberes que
acionam as ações estratégicas do governo, pois, esse “dispositivo de segurança”, ainda
tomando Foucault (2008a, p. 9) como exemplo,

Vai inserir o fenômeno em questão, a saber, o roubo, numa série de acontecimentos


prováveis. As reações do poder ante esse fenômeno vão ser inseridas num cálculo
que é um cálculo de custo. Enfim, em vez de instaurar uma divisão binária entre o
permitido e o proibido, vai-se fixar de um lado uma média considerada ótima e,
depois, estabelecer os limites do aceitável, além dos quais a coisa não deve ir. É
portanto toda uma outra distribuição das coisas e dos mecanismos que assim se
esboça.

Foi para compreender esse fenômeno que comparecemos a uma reunião realizada pela
cúpula de Segurança Pública do Estado da Paraíba, no Palácio do Governo, no dia 28 de
fevereiro de 2014. O que despertou nossa atenção foram os comentários feitos pelos
presentes, de maneira informal. Um Tenente-Coronel da Polícia Militar comentou
sarcasticamente (aplaudindo), ao fazer alusão à forma como é encarada a persecução para a
redução de homicídios: “Quantos homicídios ocorreram em sua área? Houve diminuição?
Parabéns!”. Após o início da reunião, o então vice-governador do Estado declarou: “Gostaria
106

de parabenizar aqueles que conseguiram chegar ao verde”. O Secretário de Segurança


endossou as seguintes palavras: “Esperança é uma grande preocupação porque faz alguns
anos que vem em vermelha”. O uso de cores para expressar os resultados alcançados diz
respeito à forma como a Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social passou a
mensurar os índices relativos aos crimes de CVLI e CVP.

FIGURA 25: Índices indicativos dos Crimes Violentos Letais Intencionais.


FONTE: Secretaria de Estado de Segurança e da Defesa Social.

Portanto, o que se vê na Figura 25 são os indicativos em vermelho de metas não


atingidas e, em verde, das que foram alcançadas em relação ao número de homicídios que
ocorreram nas Regiões Integradas de Segurança Pública. Assim, antes de iniciar a reunião eu
também mantive contato com um Oficial30 que trabalha na Secretaria de Estado da Segurança
e da Defesa Social na preparação dos dados estatísticos. Ele me confidenciou que “um dia
queria apenas observar também o comportamento de todos na reunião, pois, aqui é um jogo de
poder. É o poder pelo poder”. Ainda falamos da possibilidade de entrevistá-lo para esta Tese
e, o mesmo falou (quase sussurrando) que não iria dizer na entrevista o que nos disse naquela
conversa. Respondemos que ele ficasse à vontade, pois a entrevista era voluntária. De modo
informal, perguntamos ainda qual era a importância do policiamento solidário naquele

30
Neste caso, preferimos resguardar, inclusive, o seu posto e função na Polícia Militar.
107

processo e, a resposta que obtivemos (ainda falando muito baixo) foi que para a Secretaria o
que importava eram os números. O que importa para a Secretaria é a repressão.
De acordo com nossas observações, a busca por esses resultados na redução dos
índices de criminalidade tem direcionado as práticas policiais para a produção de números,
com a busca constante de resultados através de critérios gerenciais próprios da administração
empresarial e privada (GARLAND, 2001). Foi assim, por exemplo, que o Governo da Paraíba
lançou neste ano de 2014 o “Prêmio Paraíba Unida pela Paz”, o qual passa a premiar os
policiais militares cujos locais de atuação consigam reduzir os números de CVLI, numa
política de metas de premiação semestral. Esse prêmio foi oficialmente lançado no Diário
Oficial da Paraíba nº 15.502, de 04 de abril de 2014, através da Medida Provisória nº 223, de
03 de abril de 2014, a qual destaca em seu Art. 1º que,

Fica instituído, no âmbito do Estado da Paraíba, o Prêmio Paraíba Unida pela Paz -
PPUP, parcela de caráter eventual, correspondente a uma premiação por resultados,
destinado a policiais civis, policiais militares e bombeiros militares do Estado
lotados nos órgãos operativos da Secretaria da Segurança e da Defesa Social, em
função de seu desempenho no processo de redução dos Crimes Violentos Letais
Intencionais – CVLI - nos Territórios Integrados de Segurança e Defesa Social -
TISPs, instituídos pela Lei Complementar n.º 111/2012 (p. 5).

Desse modo, todo o processo que envolve a criação do policiamento solidário em João
Pessoa faz parte de um projeto de maior abrangência que foi diretamente copiado do modelo
adotado no Estado de Pernambuco intitulado “Pacto pela Vida”. Através da criação do Núcleo
de Análise Criminal Estatística, vinculado à Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa
Social, foi possível a criação de um banco de dados que passou a fornecer as informações que
demonstram os indicadores sobre os principais crimes. Como nos diz o Capitão responsável
pelo referido Núcleo:

O CVLI que é o nosso indicador estatístico, que é prioridade dessa gestão, são os
crimes violentos letais intencionais mais comumente conhecidos como os
homicídios dolosos. No Brasil, como um todo, é uma metodologia que também é
aplicada em Pernambuco, mas ela foi introduzida pela própria Senasp constando
inicialmente o homicídio doloso, o latrocínio e a lesão corporal seguida de morte.
Com base nesse referencial a gente começou a fazer esses relatórios e já em abril de
2011 eles foram só agregando valor. Depois das compatibilizações foram nomeados
gestores específicos para cada área dessa e, tivemos outros avanços como a lei da
bonificação por apreensão de arma de fogo, a premiação pelo resultado e assim por
diante (Entrevista em: 09/10/2014).
108

O interessante a se observar é que o mesmo Capitão nos disse, ao falar sobre as UPS‟s,
que “ele (o projeto de policiamento solidário) é uma das vertentes dentro desse grande projeto
da Secretaria que também tem seu mérito por entender que não é só uma responsabilidade da
Polícia Militar ou nem mesmo só da polícia essa consecução de uma segurança pública
melhor”. No entanto, o entrevistado mostrou desconhecer, por exemplo, que existe um
distanciamento entre policiais militares e moradores no bairro São José. Mesmo assim, esse
último é o bairro que apresenta um dos melhores resultados na diminuição dos índices de
CVLI após a implantação das ações da Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social,
segundo as palavras do Capitão. Nesse sentido, acreditamos que esse complexo jogo
estratégico que envolve o policiamento solidário está enredado em mecanismos biopolíticos
para normalizar a vida das comunidades envolvidas, mas nesse sentido vejamos como garantir
a vida implica dizer também em regulamentar as vidas que se deve deixar morrer para se
“proteger a sociedade”.
109

CAPÍTULO 3

POLICIAMENTO SOLIDÁRIO E BIOPOLÍTICA

As instituições policiais, responsáveis por prover a ordem pública, surgiram a partir de


configurações específicas que estão associadas ao surgimento dos diversos Estados nacionais
modernos que se formaram na Europa especialmente após a eclosão da Revolução Francesa
ocorrida em 1789. E no que se trata especificamente da atuação das forças policiais militares
em nosso país, acredita-se que a violência policial enquanto um excesso de poder (TAVARES
DOS SANTOS, 2009) conformou-se historicamente contribuindo para o distanciamento entre
instituições policiais e sociedade.
Baseando-se nessa constatação histórica, neste capítulo, com o fito de analisarmos o
significado do vem a ser o “dispositivo de disciplinarização”, o qual se vincula a relações de
poder que surgem no processo de implantação de uma “polícia de proximidade”,
discorreremos inicialmente, a partir do conceito do que é a polícia, sobre como se
caracterizavam as formas de policiamento anteriores ao modelo moderno de polícia. Esse
último, pois, desenvolveu-se atrelado à centralização política própria do que passamos a
conhecer como Estado-nação. Ao contrário do modelo de polícia atualmente conhecido, os
modos anteriores de policiar a sociedade, localizados no período feudal europeu, firmaram-se
pela descentralização política que vigorou no regime social citado. Dessa forma, a perspectiva
sociológica eliasiana será adotada para demonstrarmos quais foram as dinâmicas sociais que
desencadearam as transformações responsáveis pela criação das polícias modernas.
Então, se o nosso foco inicial é pousar o olhar sobre as instituições policiais criadas na
modernidade a partir da administração estatal própria do mundo europeu pós-Revolução
Burguesa, temos que, como já sabemos, surgidas do desdobramento de funções antes
exercidas pelos Exércitos nacionais, os quais passaram a cuidar apenas dos assuntos voltados
para a defesa externa dos nascentes territórios nacionais, após a institucionalização do Estado
moderno, coube às polícias regulamentarem a ordem interna. Além disso, as polícias também
passaram a se responsabilizar pela manutenção do estado de equilíbrio entre os indivíduos que
começaram a viver numa sociedade mais complexa em suas estruturas sócio-político-
econômicas. Essa complexidade, no entanto, será analisada sob o ponto de vista que
reconhece na polícia um importante aparato de dominação estatal, o que levou as
organizações policiais a participarem da lógica disciplinar sob as condições do militarismo,
110

fato esse explicado pela dimensão teórica foucaultiana, que dimensiona a polícia como um
“mecanismo de segurança”.
Por fim, observaremos como se contextualiza a atuação das Polícias Militares de modo
a dimensionarmos o que vem a ser uma “sociabilidade estratégica”. Importa melhor entender
como as instituições policiais militares participam de relações estabelecidas por formas
específicas de governar que se baseiam em sociabilidades que engendram relações
estratégicas de poder e que conformam uma dissimetria mais sofisticada entre grupos
humanos, neste caso, entre policiais militares e sociedade.
Buscaremos, pois, desenvolver uma forma de análise que descortine o caminho entre
sociabilidade e relações de poder, onde a “vida nua” (AGAMBEN, 2010), ou aquela que
merece ser extinguida, ganha notoriedade no processo de implantação do policiamento
solidário. Segundo nossa perspectiva, o que está em jogo são formas de controle social mais
eficazes por parte daqueles que dominam, onde se revela uma lógica em que, por meio do
discurso da cidadania, todos ajudam a tornarem-se agentes imbuídos de seu próprio controle
(PASSETTI, 2003), ao mesmo tempo que lutam para limpar a sociedade daqueles que se
distanciam desse processo.

3.1 – A ORIGEM DAS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS, O PROCESSO DE CIVILIZAÇÃO


MODERNO E O MONOPÓLIO ESTATAL DA FORÇA
A origem do termo polícia, em consonância com a palavra política, remete-se
etimologicamente ao grego politeia. Nesse âmbito semântico, tal termo, se observado a partir
da época de Aristóteles e Platão, referiu-se tanto à cidade (polis) enquanto uma comunidade
política quanto à arte de governá-la. Assim, a partir da época dos citados filósofos, o conceito
passou a identificar o conjunto de leis utilizadas para administrar a cidade-Estado, bem como,
aos guardiães responsáveis por se fazer cumprir essas regulamentações. Observa-se, nesse
sentido, o início do processo histórico que determinará a distinção entre as autoridades que
editam as leis e as forças policiais que, quando preciso, pelo uso da força, impõem o respeito
ao que foi editado como regras legais (MONET, 2002).
Nesse curso, os romanos se apropriam do termo grego politeia para designar cidade,
mas criam, a partir daquela, a palavra politia, de origem latina. Como forma de assegurar a
administração do império sobre os súditos, cria-se em Roma a função de praefectus urbis
(“prefeito da cidade”), a qual, sob certos aspectos, legitima também o caráter ambíguo das
funções policiais ao garantir a constituição de leis que regulamentam a vida social como um
111

todo, bem como, o exercício da autoridade mediante a força. Ou seja, administração política e
coerção caminham juntas para caracterizar a atuação policial antiga como mecanismo político
de dominação.
Chegado o final da Idade Média retoma-se, na Europa, a noção de polícia, que
reaparece juntamente com a redescoberta do direito romano que passa a ser lecionado nas
diversas universidades. Na França e na Alemanha, em meio à aristocracia, o termo polícia
ganha significância ao direcionar-se para traduzir um “bom governo” que edita “boas leis”
que são aplicadas no corpo social.
A abrangência do termo consolida-se, de forma moderna, com a promulgação da
Assembleia Constituinte francesa pós-revolução em 1791, onde além da função de vigiar a
sociedade em nome da segurança, polícia também ganhou o sentido voltado para a atuação de
outras instituições que passaram a garantir os recém-adquiridos direitos sociais, políticos e
econômicos, tanto na esfera privada como na pública. De todo modo, dado que a força
diretiva do modelo das polícias modernas e profissionalizadas é algo recente no contexto
histórico, pois data da implantação do regime absolutista e de sua transição para o Estado-
nação31, passamos a destacar as transformações históricas que, segundo o propósito que
adotamos neste trabalho, tornam-se relevantes para melhor compreendermos o surgimento das
instituições policiais modernas, se interpretadas pelo prisma sociológico. Nesse sentido, os
estudos de Norbert Elias sobre o processo civilizador enquanto um empreendimento histórico
que se configura ao longo do tempo e que, de modo análogo, enseja mudanças internas nos
indivíduos ao mesmo tempo em que conforma as estruturas sociais será o caminho escolhido.
Tal percurso se deve ao fato desse autor mostrar uma interrelação existente entre as mudanças
nos comportamentos dos indivíduos e como essas transformações refletiram para a
consolidação dos Estados modernos.
Segundo Elias (1993, 1994a, 2006, 2008, 2011), as dinâmicas sociais são estruturadas
pelas interdependências que os indivíduos desenvolvem no meio social, ou melhor, pelos
diversos elos e imbricações que, por se complexificarem no transcorrer histórico devido ao
aumento das funções desempenhadas pelos indivíduos, acabam por formatar um contexto
social que independe das vontades ou da intenção de cada indivíduo em particular. O que
passa a importar para a compreensão do todo social é como através de processos de “longa
duração”, por meio de integrações que surgem de tensões e conflitos entre os próprios

31
Mostramos no Capítulo 1 que a polícia moderna surgiu tendo como modelo a Polícia Metropolitana de
Londres fundada por Robert Peel, no entanto, a polícia londrina tornou-se a consolidação de um processo que se
estruturou a partir do Absolutismo, onde forças estatais remuneradas passaram a ter a responsabilidade pela
segurança interna e externa dos Estados nacionais que surgiram com a derrocada do regime feudal na Europa.
112

indivíduos e entre classes e grupos de indivíduos, novas configurações (relações de


dependência recíprocas) passam a atuar determinando condições específicas de existência que
dependeram da maneira como pessoas do passado agiram socialmente e psicologicamente em
relação a si mesmas.
E já que Elias leva em consideração, como dito, os processos ao longo do tempo para
mostrar as transformações e surgimento de novas configurações no seio das sociedades, sua
teoria sobre o processo civilizador no tocante à gênese do Estado moderno e suas instituições
passa a nortear nosso percurso. Os estudos sobre o processo civilizador servem para
sedimentar nosso conhecimento sobre o desenvolvimento histórico das organizações policiais
militares e também sobre a constituição do modelo que condiciona seus profissionais no
controle externo dos indivíduos e no intenso controle interno das pulsões afetivas e
instintivas.
Para Elias (2011), o processo civilizador diz respeito à forma como os indivíduos, num
tempo histórico decorrido a longo prazo, passaram por transformações que os levaram a
adotar um controle do comportamento que de maneira gradativa foi interiorizado para
controlar as pulsões, instintos, afetividades e formas de agressividade. Esse controle intenso
dos modos de ser e atuar na sociedade passou a estar presente na conduta dos indivíduos com
mais afinco na passagem do medievo para a era moderna e, segundo o autor, o estudo de
diversas nuances (modos de se comportar à mesa e no trato direto com as pessoas na
sociedade, formas de se expressar verbal e corporalmente, o uso da agressividade nas
sociabilidades cotidianas, a expressão da sexualidade) dos padrões de relacionamento sociais
comprovam essa passagem de uma coerção externa para um policiamento interno das
condutas. Esse processo caminhou direcionado para privar as pessoas de situações de
constrangimento, vergonha, nojo ou qualquer atitude que pudesse causar repugnância no outro
mediante ao que fosse visualizado nas diversas interações sociais.
Ao analisar manuais de etiqueta lançados no medievo para ensinar, especialmente
crianças aristocráticas, a como se distinguir através do regramento corporal de pessoas de
estratos sociais inferiores, revela-se o surgimento de uma condição estrutural que independe
da vontade individual de qualquer indivíduo e que também não foi projetada por nenhum
deles. Eis que essa estrutura social, o processo civilizador, alcança projeções que, ao mesmo
tempo em que mantém o equilíbrio de novas configurações, estabelece distinções entre os
indivíduos que convivem no mesmo espaço territorial e também a visão etnocêntrica do povo
europeu ocidental em relação aos demais povos ditos “descobertos”, os quais tiveram que
civilizar suas culturas mediante a consciência civilizatória que o ocidente tem de si mesmo.
113

As análises de Elias sobre essa formatação social centram-se nas eras medieval e
moderna como modelo para demonstrar como ocorrem as mudanças entrelaçadas nos campos
psicológicos e sociais das redes de convivência desenvolvidas pelos indivíduos em meio a
novas configurações de poder que são exercidas nessas mesmas redes. E é nessa época que o
processo civilizador se mostra com mais concretude se analisados os tempos anteriores ao
período humano historicamente conceituado de moderno. Nesse foco, para Elias (2006), o
processo de civilização se descortina desde a aparição humana na Idade da Pedra, o que nos
ensina que todas as sociedades possuíram ou possuem seus padrões determinados de coações
externas e internas em níveis que oscilam de acordo com as exigências sociais, o que pode
colocar a civilização dos costumes e comportamentos em fases de desenvolvimento e
regressão. De todo modo, na análise histórica de longo tempo, Elias (1993) relata que a
imposição de códigos sociais apreendidos para harmonizar as relações coletivas tiveram nas
cortes aristocráticas da passagem da Idade Média para a moderna os espaços par excellence
criadores das novas atitudes que fomentaram a perpetuação do processo civilizador baseado
na internalização do controle externo.
Nessa esfera, segundo Elias (2011), podemos entender o processo civilizador ao
reportarmo-nos à teoria do jogo esboçada por ele mesmo, a qual enseja a compreensão das
relações de poder entre os indivíduos e grupos na sociedade, além do próprio conceito do que
vem a ser a sociedade. Falamos, pois, da concepção das relações que os indivíduos
estabelecem entre si a partir da interdependência recíproca e dos laços de interconexão entre
as diferentes posições que assumem no meio social. Nesse sentido, para Elias (2008), os
indivíduos – “jogadores” – assumem caminhos que não foram antecipadamente planejados ou
pensados por nenhum deles, mas o desenrolar do “jogo” acaba por influenciar de forma
constante as atitudes individuais de todos os participantes. Assim, o processo civilizador pode
ser entendido, no que tange ao seu desenvolvimento, como o modelo em que

O processamento do jogo adquire uma autonomia relativa quanto a planos e


intenções de qualquer dos jogadores individuais que, através das suas acções, criam
e mantêm o jogo. Isto pode ser expresso dizendo-se que o decurso do jogo não está
no poder de qualquer jogador. O reverso da moeda é que o decurso do próprio jogo
tem poder sobre o comportamento e pensamento dos jogadores individuais, uma vez
que as suas acções e ideias não podem ser explicadas e compreendidas se forem
consideradas em si mesmas; precisam ser compreendidas e explicadas no interior da
estrutura do jogo. O modelo mostra-nos como a interdependência das pessoas
enquanto jogadores exerce coacção sobre cada um dos indivíduos que estão ligados
deste modo; a coacção radica na natureza particular da sua relacionação e
dependência enquanto jogadores (Ibidem, p. 104).
114

Essas ligações recíprocas, quando observadas na sociedade de corte, dizem respeito a


uma lógica social ancorada por uma forma de racionalidade específica às interrelações
mantidas nos estratos aristocráticos, sem delegar a origem do processo civilizador à ação
individual das pessoas que estavam envolvidas nessa interdependência. Essas interações
desenvolviam-se por meio de elos de proximidade (inclusive mediante conflitos) e, com as
transformações que passaram a mudar o quadro social com a ascensão burguesa, os conjuntos
de interdependência entre os indivíduos tornaram-se cada vez mais complexos, o que
culminou com a fragmentação da monarquia absolutista e estabeleceu o Estado-moderno
como nova realidade política. Nessa apreciação, destaca-se o fato de que a análise desses
processos de longa duração, nos termos de Elias, deve levar em conta o comportamento
humano de acordo com a realidade social vigente, pois a “realidade dos cortesãos é diferente
da dos burgueses” (ELIAS, 2001, p. 109). No entanto, “a primeira é um estágio anterior e uma
condição da segunda em termos de desenvolvimento. Comum a ambas é a preponderância de
concepções de longa duração sobre as emoções imediatas quando se trata de controlar o
próprio comportamento” (Ibidem, p. 109).
Nesse âmbito, Elias (2011) fala de uma “curva civilizadora” e, conceitualmente ele
procura destacar como atitudes psicológicas humanas direcionadas para o autocontrole
corporal podem estar conectadas com o desdobramento e formação de estruturas
macrossociais, já que as dinâmicas sociais dependem das interconexões estabelecidas entre os
indivíduos, ou melhor, das relações entre os diversos estratos sociais e das funções que cada
pessoa assume que a faz estar ligada aos grupos sociais existentes num tempo histórico dado.
Para ele seria a relação entre “psicogênese” e “sociogênese”, o que se traduz em processos
sociais de “individualização” onde, através de socializações vinculadas ao controle interno
das pressões emocionais ao mesmo tempo se distribuem relações e funções multidirecionadas
entre os membros da sociedade. A partir dessa consideração, Elias (1993) buscou demonstrar
como o controle interno das vontades pulsionais, quando estudadas as mudanças sociais em
gerações distintas, influenciaram diretamente na consolidação de esferas sociais mais
abrangentes como o são os Estados modernos.
Nesse contexto, Elias (1993) nos esboça o entrelaçamento sócio-histórico que, desde o
processo de feudalização caminhou no sentido de mudanças nas relações de poder que
estavam associadas à dinâmica da civilização. No período feudal, pois, os reis, em virtude do
enorme império construído por conquistas, ao distribuir áreas aos senhores de terras ou
“oficiais”, os quais representavam a autoridade central por elos de confiança e para se fazer
115

cumprir os ditames reais, delegava-lhes o exercício das funções judiciárias e policiais, assim
como funções militares que os colocavam na posição de guerreiros que duelavam contra as
ameaças dos inimigos externos. Mas, na verdade, esses homens que assumiam o comando das
ações de governo eram agricultores e, só em tempos de imprevisibilidades e em épocas
estabelecidas, exerciam o poderio da guerra como oficiais. Nesse estágio, que Elias identifica
como uma fase constante de duelos entre forças articulam-se centralizações e
descentralizações - estas últimas com maior predominância - que fazem as relações de poder
basearem-se nas conquistas e manutenções dos territórios feudais. Era comum às classes
guerreiras feudais utilizarem do artifício do embate físico como estratégia de sobrevivência e
dominação.
O que percebemos no processo de feudalização é que não existiam instituições de
controle social para coibir a prática da violência, pois essa fazia parte das interações sociais
cotidianas próprias ao período de modo que, “o prazer de matar e torturar era socialmente
permitido. Até certo ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção,
fazendo com que parecesse necessário e praticamente vantajoso comportar-se dessa maneira”
(ELIAS, 2011, p. 185). Só que, o desenvolvimento a longo prazo das estruturas de conquistas
caminhou na direção do monopólio territorial centralizado no rei, com a crescente
fragmentação das classes guerreiras independentes e, ao mesmo tempo, com o surgimento das
cortes feudais que exigiam a utilização de comportamentos refinados e o controle dos afetos
que se traduzem na courtoisie. Com as modificações das condições sociais não só a courtoisie
caiu em desuso para ceder espaço à civilidade dos costumes, mas no século XVIII, com o
surgimento das monarquias absolutistas, consolida-se o conceito de civilização.
O que aqui buscamos demonstrar é como, nesse decurso histórico, o monopólio
administrativo gerou instituições de controle social. Ocorre que a transição entre a cortesia e a
civilização se deu com elementos da aristocracia feudal que se mantiveram, até certo período,
nas monarquias absolutistas, até serem extintos por completo. Nesse sentido, os antigos
guerreiros independentes da estrutura feudal transformaram-se em cortesãos e passaram a
viver sob o regime da nobreza sendo subsidiados pelo rei e esse fato se desenvolveu
concomitante às pressões exercidas pelos estratos burgueses emergentes que buscavam
ascensão social. O que se destaca nesse ponto é que a criação da nobreza cortesã, onde os
nobres disputavam a primazia da proximidade com o soberano e não exerciam nenhum tipo
de atividade profissional a não ser participarem da corte e receberem privilégios reais, foi um
ato estratégico por parte do monarca. Assim agia o rei para manter todos sob seus olhares e
impedir a ascensão burguesa através da adoção de mecanismos sociais de distinção inerentes à
116

aristocracia, já que a interdependência e tensão entre nobres e burgueses caracterizava a vida


cortesã. De modo sintético podemos dizer que,

A pressão constante exercida a partir de baixo e o medo que induzia em cima foram,
em uma palavra, algumas das mais fortes forças propulsoras – embora não as únicas
– do refinamento especificamente civilizado que distinguiu os membros dessa classe
superior das outras e, finalmente, para eles se tornou como que uma segunda
natureza. Isto porque a principal função da aristocracia de corte – a função que
desempenhava para o poderoso suserano – era exatamente distinguir-se, conservar-
se como uma formação social à parte, um contrapeso à burguesia. Tinha inteira
liberdade para gastar o tempo refinando a conduta social distintiva, das boas
maneiras e do bom gosto (ELIAS, 1993, p. 251-52).

Só que, com a fragmentação da vida na corte e a ascensão e afirmação dos estratos


burgueses com o exercício de ocupações profissionais, a influência da sociedade de corte foi
diminuída, embora não estivesse ausente por completo. O prestígio social passou a ser
orientado para o dinheiro e as profissões em detrimento do refinamento da vida cortesã.
Temos que deixar claro que esse processo foi de certo modo comum a todo o Ocidente
europeu regido pelo princípio aristocrático de corte, mas as análises de Elias se debruçam
especialmente sobre o modelo francês, pois foi esse que influenciou diretamente as demais
monarquias européias. Quando Elias (2011) fala da distinção mediante o uso da etiqueta, por
exemplo, o controle do comportamento e das condutas na sociedade de corte “procede à sua
autorepresentação, cada pessoa singular distinguindo-se de cada uma das outras, e todas elas
se distinguindo conjuntamente em relação aos estranhos do grupo, de modo que cada uma em
particular e todas juntas preservam sua existência como um valor autossuficiente” (p. 120).
De qualquer maneira, o fim do monopólio do poder baseado na corte cedeu espaço para a
influência burguesa que acabou por gerar o novo equilíbrio social concentrado no monopólio
público ao invés do monopólio pessoal. É a partir desse fenômeno que surge o Estado
moderno, ou seja, “numa longa série de provas eliminatórias, na gradual centralização dos
meios de violência física e tributação, em combinação com a divisão de trabalho e a ascensão
das classes burguesas profissionais” (Ibidem, p. 171).
Esse processo culmina na criação das instituições estatais e, entre elas, os organismos
que passam a monopolizar a violência física, a qual se confina aos quartéis para irromper em
situações extremas. Essa condição permite a pacificação da vida cotidiana, além de que a
civilização dos costumes traduziu-se no abrandamento e controle das pulsões que permitiu a
convivência sem a possibilidade do medo do outro e baseada na aquisição do dinheiro e do
prestígio. Assim, por passar a violência física a ser regida por grupos de especialistas e por ter
117

habitualmente sido excluída da vida comum tem-se que esses profissionais, como
representantes do monopólio da força, adquirem a missão de vigiar o corpo social e controlar
a conduta dos indivíduos. Percebe-se, nessa situação, que o autocontrole dos indivíduos torna-
se um mecanismo real de condução no meio social e, “a concentração de armas e homens
armados sob uma única autoridade, torna mais ou menos calculável o seu emprego e força os
homens desarmados, nos espaços sociais pacificados, a controlarem sua violência mediante
precaução e reflexão” (Ibidem, p. 201).

A afirmação da burguesia como classe social politicamente dominante a partir do


século XVIII é fator que não pode ser negligenciado na transformação dos
mecanismos de provisão da ordem interna. A conformação burocrático-estatal que a
polícia, a justiça e a prisão assumiram nesse período histórico está inserida num
contexto de reordenamento das relações de poder entre as classes sociais, mais
precisamente na substituição da nobreza pela burguesia no âmbito de influência
sobre o Estado. Nessa ótica, o monopólio da violência física, no processo de
transição do Estado absolutista para o Estado-nação, foi transferido da nobreza para
a burguesia. Não é casual, portanto, a continuidade do processo civilizador
verificada na sociedade capitalista (SAPORI, 2007, p. 38).

No entanto, Foucault (1999, 2007, 2008a) entende que os modos de governar na


modernidade, que se caracterizam principalmente com a ascensão burguesa ao poder, para
além da preocupação de administrar apenas um território físico como pensou Maquiavel, está
entrelaçado com o governo de homens e coisas, o que diz respeito a um cálculo político para
gerir a vida das populações por meio de estratégias sustentadas por mecanismos de poder-
saber que legitimam a atuação das diversas instituições estatais.
Por esse mote, se Foucault (1987, 2003, 2007) nos diz que na modernidade novas
formas de poder surgiram por meio de técnicas específicas, as disciplinas nas instituições
(exércitos, prisões, escolas, hospitais) e os mecanismos de segurança para conduzir as
populações, e visto o caráter de positividade e produtividade do poder, nosso olhar volta-se,
portanto, para questionar porque as Polícias Militares em nosso país passaram a utilizar o
discurso de implementação do policiamento comunitário. A nosso ver, estamos diante de uma
realidade biopolítica, onde a intenção é que se desenvolvam estrategicamente formas de
conduzir as populações de modo que os próprios governados atuem para o controle efetivo de
seus comportamentos. Nesse contexto, a polícia comunitária encontra-se envolta por saberes
que a aproximam de discursos sustentados por ideais democráticos e por slogans que
enaltecem a cidadania e a participação social, já que a segurança pública é dever do Estado,
porém, é um direito e responsabilidade de todos, para que a ordem pública prevaleça assim
118

como a incolumidade das pessoas e do patrimônio de acordo com a Constituição Federal de


1988.
O que deve ser observado neste processo de implantação de um novo modo de policiar
é como as estratégias governamentais estão sendo organizadas, visto que falar de relações de
poder com um caráter de positividade é saber que existem efeitos que surgem das ações
humanas, mas que são desconhecidos por quem produz essas ações devido à complexidade do
processo e exatamente pelo fato das ações serem vistas como positivas devido às relações de
poder. O que estamos querendo destacar é que está se delineando com o projeto de
policiamento comunitário “procedimentos que envolvem a formação de saberes e a
concretização de atuações precisas sobre um grupo de indivíduos que constituem uma
“população”, ou seja, implicam uma “arte de governar” como forma de atuação de uma
„biopolítica‟” (FONSECA, 2002, p. 193, grifos do autor). Decorre de tal assertiva não a
correção ou normalização dos indivíduos nas instituições, mas as populações de comunidades
inteiras. Esse fato pode ser observado em outros estudos onde a imposição de novas regras
nas comunidades ditas pacificadas pelos órgãos policiais não leva em consideração a
alteridade dos moradores que devem se adequar às novas exigências ditadas pela presença
policial (SILVA & BICALHO, 2012).
Nesse sentido, o que aqui podemos entender como processo de “pacificação” pode
melhor ser exemplificado quando voltamos nosso olhar para a invasão pelas Forças Armadas
e pela Polícia Militar de algumas favelas cariocas iniciadas em 2010 (BRITO & OLIVEIRA
et. al., 2013; ALVES & EVANSON, 2013) com a intenção de expulsar os traficantes de droga
e restaurar a ordem. No entanto, segundo Barreira (2013), a pacificação se configura como um
processo que se situa para além da mediação de conflitos, pois engloba também uma busca na
mudança da imagem da cidade para implementar a criação de cenários atrativos consonantes
ao urbanismo competitivo. Soma-se ao que foi dito a estratégia de implantação de um
policiamento local baseado em Unidades de polícia que visam não mais agir direcionadas pela
violência policial e contaminadas pela corrupção dos agentes de segurança pública, mas sim
por novos modelos de atuação que inclusive podem enfraquecer o poder dos traficantes pela
presença constante dos policiais. No Rio de Janeiro, seria o fenômeno das Unidades de Polícia
Pacificadora.
Dessa forma, estamos em busca de compreender como esses processos de pacificação
se exercem no tocante às esferas do biopoder e sua relação com os projetos de policiamento
comunitário, de modo que também possamos clarificar como os saberes se aliam ao poder
para legitimá-lo. Na verdade, acreditamos que exista o desenvolvimento do que passamos a
119

conhecer por “dispositivo de disciplinarização” (LEITE, 2012), enquanto fenômeno de


controle político das populações (neste caso, das comunidades envolvidas com o policiamento
solidário).

3.2 - O “DISPOSITIVO DE DISCIPLINARIZAÇÃO”


Segundo Foucault (1987), no esteio de compreendermos a consolidação dos
organismos policiais enquanto instituições que passaram a representar a população por meio
do Estado no uso da violência legítima, na passagem da esfera privada para a pública, temos
que tal processo tratou-se da “estatização dos mecanismos de disciplina”. De certa forma, isso
significa falar de três pontos centrais.
O primeiro deles diz respeito ao regime de soberania que vigorou até, pelo menos, os
séculos XVIII e XIX. Nesse sentido, Foucault (1987) nos mostrou que imperava até essa
época um regime de justiça baseado no suplício corporal, o qual fazia parte de um espetáculo
público onde os indivíduos eram corporalmente violentados em resposta aos delitos
praticados por eles, já que tais delitos vinculavam-se a uma afronta cometida contra o rei. A
visibilidade real impunha um tipo de poder específico: o poder soberano. Nesse contexto
histórico, só que em época um pouco anterior (século XVII), o grande internamento fez parte
de um processo de exclusão e rejeição dos leprosos, de separação social e exílio entre os
muros dos hospitais gerais.32 Isso quer dizer que, o poder soberano se impunha como forma
de dominação entre os homens por meio de um discurso “jurídico-político”, pois a exclusão
dos indesejados sociais é ancorada pela execução das Leis vigentes emanadas do soberano.
O segundo ponto a ser observado volta-se para o modelo da cidade pestilenta. Para
Foucault (1987), a quarentena da peste no final do século XVII traduz o surgimento de um
mecanismo que passa a funcionar por meio da disciplina. Desenvolve-se um sistema de
controle e vigilância que, ao contrário da exclusão da lepra funciona como tática de um novo
tipo de poder que surge na modernidade: o poder disciplinar.
Se o poder soberano se legitimava por meio dos suplícios corporais executados
ritualmente como espetáculos públicos, aos olhos de todos, ao contrário, a partir de
questionamentos acionados pelo povo sobre a posição adotada por uma justiça que agia em
nome do soberano para efetivar seu poder através da violência corporal, houve um movimento
para a reformulação dos diversos códigos penais europeus no início do século XIX.
Destacaram-se, como expõe Foucault (1987), reformadores humanistas que tinham a

32
Ver Foucault (2008b).
120

pretensão de humanizar as formas de punir. No entanto, afirma Foucault (1987, 2003) que, na
modernidade, essa configuração que modificou o regime penal dos principais Estados
europeus no início do século XIX não se trata de uma humanização das penas, pois o que
ocorreu foi o estabelecimento de instituições que passaram a adotar uma “ortopedia social”.
Por esse viés, a prisão passou a ser adotada como modelo único para prevenir e reprimir os
diferentes tipos de delitos praticados em sociedade e serve-nos de exemplo para
compreendermos essa ortopedia social. Nesse sentido, Foucault (1987) nos diz que as
instituições na modernidade, na verdade, tratam-se de instituições disciplinares, onde novas
relações de poder, diferentes do regime de soberania, não se reportam para os corpos e à
violência sobre eles, mas para o disciplinamento e o controle dos mesmos nas nascentes
instituições modernas.
Ocorre, pois, um processo que se expande para prisões, quartéis, asilos, manicômios,
escolas, fábricas, hospitais, enfim, onde o que importa é a produção de corpos “úteis” e
“dóceis” que serão adestrados e treinados para determinadas produtividades que, no final das
contas, acabarão por conformar as engrenagens do sistema capitalista de produção. Nessa
perspectiva, Foucault (2003) nega a tese marxista de que o poder estaria presente no modo
como uma classe social detém os meios de produção e expropria uma outra explorando-a, pois
para o sistema capitalista funcionar é necessário que se adestre primeiro os operários. Outra
situação a se considerar é que o poder não estaria no topo, representado pelo Estado, segundo
uma concepção jurídica, mas, ao contrário, estaria nas diversas relações vivenciadas pelos
indivíduos, em baixo, distante das esferas estatais. Só que esses embates não deixam de
influenciar a configuração estatal, o que leva a buscarmos uma análise de poder ascendente.
Desse modo, Foucault (1987) demonstra, ao contrário do poder soberano e da
violência atrelada a ele, que se formata, pois, nas citadas instituições um poder disciplinar,
visto que o mesmo utiliza-se das disciplinas como técnica para moldar e domesticar os corpos
dos indivíduos. Só que esse poder funciona de forma positiva. Não é um poder que reprime.
Ao invés de violência o poder disciplinar funciona de forma produtiva, de maneira que ele
naturaliza as dissimetrias existentes nas diversas hierarquias institucionais fazendo com que
exista um aumento para a aptidão às regras das instituições, o que acaba por acentuar a
dominação, ou seja,

O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele
não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz
coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considera-lo como
uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma
instância negativa que tem por função reprimir (FOUCAULT, 1979, p. 8).
121

Nesse sentido, Foucault (1987) nos faz perceber que, se o poder disciplinar oculta a
apreciação dos sujeitos sobre os processos que os subjetivam nas instituições disciplinares,
elas, neste caso, também funcionam como “instituições de sequestro”, por construírem uma
subjetividade pautada na ausência de autonomia pelo fato dos indivíduos estarem presos a
uma lógica disciplinar que busca uniformizar e padronizar não só procedimentos, mas
especialmente condutas. O ambiente disciplinar condena as idiossincrasias em prol da
uniformidade, estabelecendo um lugar para que cada um ocupe seu espaço respeitando as
hierarquias com o controle efetivo do tempo de todas as atividades desempenhadas no dia a
dia com o dispêndio de força que possa ser útil e produtiva. Pelas palavras do próprio autor
podemos sintetizar para entender o deslocamento empreendido por ele sobre a passagem da
soberania à disciplina:

O meu projeto geral consistiu, no fundo, em inverter a análise geral do discurso do


direito a partir da Idade Média. Procurei fazer o inverso: fazer sobressair o fato da
dominação no seu íntimo e em sua brutalidade e a partir daí mostrar não só como o
direito é, de modo geral, o instrumento dessa dominação – o que é consenso – mas
também como, até que ponto e sob que forma o direito (e quando digo direito não
penso simplesmente na lei, mas no conjunto de aparelhos, instituições e
regulamentos que aplicam o direito) põe em prática, veicula relações que não são
relações de soberania e sim de dominação. Portanto, não o rei em sua posição
central, mas os súditos em suas relações recíprocas (FOUCAULT, 1979, p. 181).

Por essa proposição e, ao ressituarmos o surgimento da prisão na modernidade,


destacamos como Foucault (1987) se debruça sobre os escritos do inglês Jeremy Bentham. E é
com base no Panóptico benthamiano que Foucault vai ilustrar-nos o modelo ideal de prisão
que foi pensado por Bentham para a construção de um local onde os presos pudessem corrigir
os seus comportamentos delituosos, com forte presença do trabalho como ocupação para os
detentos. De acordo com o plano do Panóptico (BENTHAM, 2008), deveria existir uma torre
ao centro de uma formação circular, como um anel, onde ficavam dispostas celas com uma
janela para o interior, de frente para a torre e outra para o exterior. Da torre, um vigia poderia
ver a todo instante os detentos, sem obrigatoriamente ser visto por eles, de modo que era
possível deixar a torre, mas o que importava era a sensação de vigilância permanente que os
detentos sentiriam, o que faria com que eles ficassem comportados. Essa máquina panóptica
poderia ser estendida para outras instituições como escolas, hospitais e fábricas. Apenas uma
única pessoa vigiando um conjunto de indivíduos.
122

Na leitura empreendida por Foucault (1987) sobre o Panóptico, o autor retrata o


panoptismo como uma engrenagem que possui um alcance bem além da arquitetura proposta
por Bentham, pois a interiorização do olhar vigilante condicionaria os indivíduos a regularem
suas condutas e promoverem um autodisciplinamento corporal e moral, estabelecendo a
disciplina e o controle enquanto técnicas que fortalecem o poder. No caso das prisões, a
vigilância constante dos apenados torna a alma, pois, como a prisão do corpo.

Na alma podem-se imprimir definitivamente valores e quereres, concepções e


práticas desejáveis com o grande benefício de aparentemente não se observar os
machucados, as feridas, os hematomas. De alguma forma também o próprio
supliciado se conforma mais quando não vê o horror de sua mutilação refletido em
sua retina, e os demais que o observam igualmente se indignam bem menos quando
tais sevícias não são expostas em carne viva. A alma é a grande tela onde a
sociedade disciplinar pode tingir seus apetites e desejos produtivos (ROCHA, 2011,
p. 44).

Neste caso, o tipo de poder estudado por Foucault se entrelaça com um campo de
saber específico, pois, “o poder produz saber. Poder e saber estão diretamente implicados.
Não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não
suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 1987, p. 27).
Essa constatação diz respeito à ingerência dos ditames especialmente das ciências humanas e
do saber médico no campo do direito penal e da justiça, o que conforma técnicas de
normalização dos indivíduos. Normalizar significa dizer que aqueles que não se adéquam às
correções impostas pelos diversos mecanismos disciplinares passam a ser vistos como
anormais e, o saber que se acumula a respeito desses transgressores nas instituições é quem
propicia o fortalecimento do discurso das ciências humanas e do campo médico (psiquiatria) e
de seus técnicos habilitados. Gera-se uma “vontade de verdade” (FOUCAULT, 2007) por
parte de quem detém o saber, já que essa verdade se constrói numa relação entre quem fala e
quem escuta.
É por esse prisma que Foucault situa (1987) as polícias surgidas ainda no período
absolutista como instituições disciplinares. No interior das Forças Armadas e das polícias, o
soldado torna-se algo que se fabrica por meio do adestramento dos gestos corporais e através
de diversos instrumentos (vigilância hierárquica, sanção normalizadora e exame) que passam
a fortalecer a lógica disciplinar.

Em suma, a polícia do século XVIII, a seu papel de auxiliar de justiça na busca aos
criminosos e de instrumento para o controle político dos complôs, dos movimentos
123

de oposição ou das revoltas, acrescenta uma função disciplinar. Função complexa,


pois une o poder absoluto do monarca às mínimas instâncias de poder disseminadas
na sociedade; pois, entre essas diversas instituições fechadas de disciplina (oficinas,
exércitos, escolas), estende uma rede intermediária, agindo onde aquelas não podem
intervir, disciplinando os espaços não disciplinares; mas que ela recobre, liga entre
si, garante com sua força armada: disciplina intersticial e metadisciplina. “O
soberano, com uma polícia disciplinada, acostuma o povo à ordem e à obediência”
(FOUCAULT, 1987, p. 177).

Assim, tem-se que a disciplina atinge as esferas estatais e, a polícia conforma-se à


sociedade disciplinar. Depreende-se desse fato que, enquanto juristas e filósofos almejaram
uma sociedade perfeita a partir do século XVIII, houve também a emergência do sonho de
uma sociedade militar, pois, o exército não só garante a paz social mediante a força que lhe
cabe, mas também se desdobra enquanto uma “técnica” e um “saber” que projeta suas
estratégias sobre a sociedade. Ou seja, “enquanto os juristas procuravam no pacto um modelo
primitivo para a construção ou a reconstrução do corpo social, os militares e com eles os
técnicos da disciplina elaboravam processos para a coerção individual e coletiva dos corpos”
(FOUCAULT, 1987, p. 142). No entanto, se as disciplinas foram utilizadas para a construção
e adestramento dos corpos nas instituições disciplinares, no que tange ao corpo social,
visualizado como “população”, temos o nosso terceiro ponto em destaque, ou melhor, o
surgimento de um poder no século XVIII que passa a normalizar grupos humanos enquanto
espécie. É um regime de poder que se volta para o governo da vida, a partir da constituição da
série “mecanismos de segurança – população – governo”, ou seja, estaríamos no campo da
biopolítica.
Por esse argumento, entendamos melhor como esse sonho de militarizar a sociedade,
segundo nossa análise, ressurge atualmente, e por uma perspectiva foucaultiana, se tal
processo se fortalece pela relação entre poder-saber estamos então diante de um “dispositivo”
específico, ou seja, o “dispositivo de disciplinarização”.
Para Foucault (1979), entenda-se como dispositivo um conjunto estratégico de
elementos heterogêneos entre si que vão desde as instituições e seus aparatos arquitetônicos,
bem como suas medidas administrativas juntamente com as decisões que as regulamentam,
discursos que se baseiam em proposições científicas, filosóficas, de cunho moral,
filantrópicas, enfim. Além disso, o dispositivo comporta em sua configuração tanto elementos
discursivos como não discursivos, que se estabelecem no mundo das práticas sociais, de modo
que relações de poder o atravessam estando diretamente implicados por campos de saber que
o sustentam e que ao mesmo tempo são sustentados por ele. Por esse mote, podemos esboçar
124

o que Foucault (1979, 2007) entende ser o “dispositivo de sexualidade” e como seu exemplo
serve-nos de parâmetro para compreendermos a posteriori o dispositivo de disciplinarização.
Nesse percurso, assim como a medicina em fins do século XVIII e início do XIX
tornou-se uma estratégia biopolítica, fazendo do corpo uma realidade biopolítica, o sexo, ou
melhor, a conduta sexual da população passou a ser algo administrável para sofrer
intervenções estatais. O sexo passava a funcionar numa relação direta com o poder, suscitando
saberes sobre as diferentes formas do sexo ser apreendido. Para tanto, Foucault (2007) parte
do princípio de que a hipótese repressiva sobre o sexo deve ser refutada, pois não se deve
compreender o poder em termos de repressão ou interdição. Como já dito neste trabalho
acerca do poder, ele se investe sobre os corpos de maneira produtiva e, no caso do sexo,
induzindo prazeres que constroem discursos sobre o sexo. Soma-se a essa constatação de um
poder não repressor e sim produtivo a hipótese de que o poder não estabelece a paz e a ordem
social por meio das Leis, e sim que o poder deve ser pensado enquanto uma guerra contínua
que funciona para “defender a sociedade”.
Então no primeiro caso, no qual o poder não age repressivamente, a história da
sexualidade no Ocidente deve ser revista. Isso porque se acreditava que o sexo passou a ser
reprimido entre a burguesia devido ao seu concomitante desenvolvimento com o capitalismo,
que transformou em condições incompatíveis a lógica da produção pelo trabalho e o dispêndio
de energia sexual por parte dos indivíduos. Em contrapartida à hipótese repressiva, o que deve
ser observado é a proliferação de discursos sobre o sexo e as práticas sexuais, o que
desencadeou uma “vontade de saber” e de “verdade” sobre o sexo. Na verdade, houve uma
grande obstinação em se falar sobre o sexo, só que esses discursos não ocorreram no seio da
licenciosidade popular ou nas brincadeiras infantis, houve uma forma específica do sexo ter
sido posto em forma de discurso que se desenvolveu a partir da tecnologia cristã da confissão
e acabou por alcançar outras instâncias. Uma verdadeira polícia dos enunciados sobre o sexo
se prolifera para fazer dele um assunto de saúde pública, pois todos os desejos, perversões,
sonhos e prazeres ocultos que habitam as regiões proibidas do pensamento de cada indivíduo
devem ser confessados. Nesse contexto, o século XVIII serve de palco para o surgimento de
uma “polícia” do sexo, já que o sexo deve ser publicamente regulado e não proibido para que
haja uma intervenção em termos políticos e econômicos, pois, “é necessário analisar a taxa de
natalidade, a idade do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a
freqüência das relações sexuais, a maneira de torná-las fecundas ou estéreis, a incidência das
práticas contraceptivas” (FOUCAULT, 2007, p. 32), enfim,
125

Que o Estado saiba o que se passa com o sexo dos cidadãos e o uso que dele fazem
e, também, que cada um seja capaz de controlar sua prática. Entre o Estado e o
indivíduo o sexo tornou-se objeto de disputa, e disputa pública; toda uma teia de
discursos, de saberes, de análise e de injunções o investiram (Ibidem, p. 33).

Desse modo, passou-se a falar ainda mais do sexo, mas por meio de outras instâncias
que se consolidam pelo que Foucault denomina de scientia sexualis, ou seja, no Ocidente, o
sexo tornou-se objeto para a ciência, ao contrário do que teria ocorrido em civilizações como
a Índia, a China, a Roma Antiga, o Japão, as nações árabe-muçulmanas onde prevaleceu uma
arte sexual (ars erotica) que visou o prazer como forma de intensificar os atributos sexuais.
Portanto, a história da sexualidade para Foucault (2007) localiza o sexo como objeto
constante de saber que passa a ser atravessado por mecanismos de poder. É essa relação
saber-poder que torna a sexualidade um dispositivo que possibilita a intervenção médica e
pedagógica sobre a masturbação infantil, a psiquiatrização de sexualidades periféricas
(homossexualismo), a histerização da mulher que assume o papel de mãe e procriadora e do
casal monogâmico que assume a função social de incitar ou frear a fecundidade, devido à
responsabilidade que se assume perante toda a sociedade.
Desenvolvem-se processos de normalização que asseguram o disciplinamento da
conduta sexual dos indivíduos para consigo por meio de técnicas específicas que estabelecem
o poder enquanto uma relação dissimétrica entre aquele que exterioriza através da fala o sexo
proibido que carrega em si para aquele que escuta e que possui o conhecimento técnico
necessário para diagnosticar a anormalidade sexual confessada. O dispositivo de sexualidade,
pois, trata-se de uma construção histórica que cria a noção de “sexo” para garantir o
funcionamento do próprio dispositivo. Essa proposição nos alude ao fato de que “na junção
entre o “corpo” e a “população”, o sexo tornou-se o alvo central de um poder que se organiza
em torno da gestão da vida, mais do que da ameaça da morte” (FOUCAULT, 2007, p. 160),
pois,

No fundo, por que a sexualidade se tornou, no século XIX, um campo cuja


importância estratégica foi capital? Eu creio que, se a sexualidade foi importante, foi
por uma porção de razões, mas em especial houve estas: de um lado, a sexualidade,
enquanto comportamento exatamente corporal, depende de um controle disciplinar,
individualizante, em forma de vigilância permanente; e depois, por outro lado, a
sexualidade se insere e adquire efeito, por seus efeitos procriadores, em processos
biológicos amplos que concernem não mais ao corpo do indivíduo mas a esse
elemento, a essa unidade múltipla constituída pela população (FOUCAULT, 1999,
p. 300).
126

Nessa perspectiva, no campo do biopoder o qual, além de agir, assim como o poder
disciplinar, de modo produtivo, diz respeito a um cálculo político de governo das populações.
E no ponto de encontro entre o poder disciplinar que atua sobre o corpo e o biopoder que
regulamenta as populações encontra-se a “norma” (FOUCAULT, 1999), enquanto um
mecanismo que não se trata da generalização das disciplinas no corpo social, mas do elemento
que possibilita o encontro entre a docilidade corporal e a regulamentação da vida, vista como
processo biológico que deve sofrer intervenção das tecnologias de poder. No entanto, mesmo
em meio às especificidades das tecnologias disciplinares e das regulamentações
normalizadoras da população, não se trata também de se enxergar essas instâncias de modo
absoluto como ressalta Foucault (1999), mas exatamente de descobrir na consolidação da
norma através da junção entre disciplina e controle sobre a vida enquanto espécie como o
Estado e as instituições se imbricam fazendo com que as disciplinas ultrapassem a esfera
institucional, já que essa é sua tendência. É por esse âmbito que Foucault (1999) situa a
polícia como um aparelho de disciplina e, ao mesmo tempo, um aparelho de Estado, pois “a
polícia, enquanto detentora do poder de criminalizar, ultrapassa o poder soberano do Estado e
antecipa o anonimato do biopoder (ROSA, 2012, p. 14).
No caso da polícia solidária em João Pessoa, observei esse processo durante a pesquisa
de campo. Eu estava na viatura policial juntamente com três policiais militares. Pelo rádio, o
comandante da guarnição informou ao Centro de Operações (CIOP) que iria realizar um
“trabalho comunitário”. Esse trabalho comunitário baseou-se essencialmente no
patrulhamento ostensivo com a viatura pelas ruelas e becos do bairro de Mandacarú. Durante
o trajeto das incursões pelas comunidades carentes do bairro, estava no período da tarde, o
comandante perguntou-me se eu gostaria de ir com ele fazer uma “visita solidária”. E então
surgiu a pergunta de minha parte sobre o que era fazer uma visita solidária. A resposta que
obtive foi que uma mulher teve a vida do filho ameaçada por traficantes e, a visita solidária
seria um auxílio para expor esse problema. Ele ainda acrescentou que tinha uma diferença
entre “visita comunitária”, que seria “pedir um cafezinho a alguém, fazer as rondas nos
bairros. Enquanto a “visita solidária” seria auxiliar as pessoas em suas casas”. Ele ainda disse
que nem sempre as visitas solidárias são bem aceitas. Contou-me o caso de uma menina que
levou um tiro e sua mãe não quis receber a polícia. Ele afirmou que aprendeu a diferença
entre os dois tipos de visita no curso de polícia comunitária. Em outro momento, acompanhei
com o mesmo comandante uma visita solidária a uma senhora que tinha supostamente sido
espancada por seu marido. Observei como o policial militar se mostrou solícito em despender
conselhos à senhora em nome da Polícia Militar.
127

O que está em jogo é a impossibilidade das pessoas não terem condição, segundo a
ótica dos policias militares, de gerenciar seu próprio mundo familiar, de modo a abrirem as
portas de suas casas para ouvirem os conselhos do policial solidário que carrega consigo a
“cartilha das boas maneiras” a partir de suas visões como profissionais imbuídos do senso de
responsabilidade e moral. Sobre o que o comandante diz ser uma “visita comunitária”, quando
da realização da pesquisa de campo no Bairro São José, eu tinha chegado ao posto pelas
dezenove horas e obtive o apoio da viatura até a sede da UPS. A guarnição era formada por
três policiais militares. Ao chegar ao posto, perguntei ao comandante se eles tinham jantado e
ele respondeu-me que “não, estou indo agora”. Falei que iria também e ele passou a relutar
que eu não fosse, pois onde ele iria comer era fornecida quentinha. Eu argumentei que não
tinha problema quanto a isso. Então me antecipei e entrei na viatura, enquanto o comandante
ficou conversando com os três policiais que estavam no posto policial, inclusive pedindo
ainda que eu não fosse. Eu disse então que “eles poderiam falar a verdade, de que não se
preocupassem”. Então, o comandante me confidenciou que eles iriam pegar as quentinhas.
Chegamos a um restaurante no Bairro de Manaíra e dois seguranças nos receberam com muita
cordialidade. Um deles era guarda municipal e o outro era morador do Bairro São José.
Quanto ao segundo, o comandante me disse que eles (os policiais) evitavam falar com o
segurança no bairro. Na frente do restaurante, à espera das quentinhas, o comandante quis se
justificar para mim dizendo que eles tinham que prestar auxílio aos policiais da UPS, levando
as quentinhas para os mesmos. Eu apenas disse que não estava ali “para fazer julgamento
moral de ninguém”. Quando saímos de lá, pedi à guarnição de policiais que parassem numa
conhecida lanchonete para que eu pudesse comprar minha comida. Fui sozinho e, ao fazer o
pedido, uma das vendedoras me olhou e perguntou se era para consumo (lembrando que eu
estava fardado). Fiquei sem entender de imediato e depois compreendi. Eu falei que era para
consumo e que eu iria pagar. Ela me disse que “os três policiais já passaram mais cedo e
pegaram. Nós damos três lanches por dia.” Após o constrangimento, a vendedora pediu-me
desculpas pelo infortúnio. Quando cheguei ao posto, peguei o caderno de campo e comecei a
descrever os eventos que tinham ocorrido momentos antes, o comandante da viatura ao ver
me perguntou: “O Senhor vai colocar no relatório (referindo-se à história das quentinhas)? Eu
respondi que “não”. Quando retornamos à viatura, o comandante disse-me que “Capitão,
muda só o nome, mas o policiamento comunitário permanece a mesma coisa, é um posto
policial”.
O que deve ser ressaltado nesse processo não são as práticas policiais enquanto
concepções morais dotadas de sentido para eles e para o observador das mesmas, mas como
128

as diversas estratégias de poder passam a operar atreladas ao projeto de policiamento


solidário. Se as práticas permanecem, os discursos, no entanto, teem sido direcionados para
construir a imagem de uma polícia diferenciada e comunitária. E nesse contexto, para além
das práticas, importa compreendermos os efeitos que surgem entre discursos embasados no
ideal de cidadania (o policiamento solidário) e as práticas em si que visam manter a ordem
estabelecida em nome da “defesa da sociedade” (FOUCAULT, 1999).
Nesses termos, recobramos o olhar foucaultiano sobre o biopoder para demonstrar sua
forma produtiva de atuar. No nosso caso, através do projeto de um policiamento cunhado de
solidário e participativo, cidadão. Formam-se saberes sobre esse tipo de policiamento que
consolida a visão de uma polícia mais pacífica e democrática. É a própria legitimidade do
“dispositivo de disciplinarização”, ou seja, deixar a cargo das polícias o controle das
populações que passam a receber dos policiais não apenas segurança, mas também assistência
em outros campos como saúde, saneamento básico, entre outros, o que retira do Estado sua
obrigação direta de atuação. Os policiais detectam os problemas sociais e, esses são
relacionados diretamente com questões de segurança pública. Essa relação permite, assim, a
confiança da população nos policiais que passam a ter autorização e ajuda das pessoas para
melhor policiar os bairros e descobrir quem são suas “classes perigosas”. Além disso, os
policiais transformam-se em exemplo de cidadania por adquirirem a confiança da
comunidade. É a norma disciplinar que extrapola a formação policial agora para mostrar que a
ordem advém do comportamento moral construído disciplinarmente nas casernas, mas que
pode ser copiado pelas pessoas como forma de bem viver, já que temos policiais mais
educados e solidários.
129

FIGURA 26: Panfleto contendo propaganda do policiamento solidário.


FONTE: Arquivos do autor (2014).

Leite (2012), ao analisar a implantação das UPP‟s no Rio de Janeiro ressalta que o
processo de “pacificação" não diz respeito apenas ao uso da força reativa para garantir o
controle das favelas nem de resolver as emergências sociais dos morros, mas também de
disciplinar os favelados para torná-los cidadãos. No entanto, o que essa autora chama de
“dispositivo de disciplinarização” está vinculado a “discursos, regulamentos, medidas
administrativas e atividade policial que reprimem o que é considerado não civilizado (como
bailes funk, música alta, encontros e festas nas ruas)” (LEITE, 2012, p. 384). Aliam-se
também a esse dispositivo atividades de filantropia que ensejam formas de sociabilidade que
passam a serem aceitas ao mesmo tempo em que enfraquece as reivindicações dos moradores.
Acontece que, quando estamos falando de um dispositivo de disciplinarização tornam-se
evidentes a proximidade do dispositivo de disciplinarização estudado por Leite (2012), porém,
neste trabalho, o que estamos mostrando é o ponto de imbricação entre o poder que disciplina
os policiais militares em suas instituições e como essa lógica chega ao mundo social
permeado por uma relação de saber-poder (FOUCAULT, 1987) presente no discurso de
policiamento solidário. Ao invés da repressão policial que busca civilizar os jovens
reprimindo bailes funk, o que temos é um tipo de sociabilidade que visa convencer os
130

moradores da importância da cidadania mostrada através dos policiais militares.33 Não


podemos falar de um dispositivo de disciplinarização pela imposição repressiva de ideais
civilizatórios que conduzam à cidadania proposta pelo Estado, pois nesse caso não estaríamos
no âmbito de um poder produtivo e sim coator. Nesse sentido, algumas falas nos revelam o
que chamamos de “dispositivo de disciplinarização”:

A disciplina faz com que nós policiais nos tornamos pessoas mais capazes porque a
disciplina é um dos pilares da polícia militar. A disciplina faz com que quem olhe
para mim, uma criança, um adolescente, queira seguir essa disciplina porque é na
disciplina que se forma um homem. Se numa casa, pai e mãe e dois filhos, não
houver uma disciplina, não houver uma rigidez, não houver uma condição: acorda
de tal horário, almoça de tal horário, toma banho de tal horário, vá ao colégio de tal
forma, se não houver disciplina não se cresce. Se a polícia realmente seguir a
disciplina do policiamento comunitário porque a polícia vai servir de modelo porque
a sociedade é feita de vários parâmetros e nós sabemos que na comunidade as
condições de vida são outras. E que a relação entre pai e filho não é uma relação que
nós vemos na classe alta, na classe média, a relação é outra. A formação em si, se
fosse levada como mostra a polícia solidária serviria muito pra essa comunidade
porque a comunidade teria uma base de como proceder (Cabo da UPS Bola na Rede,
entrevista em: 22/10/2014).

O policial em si serve de exemplo, ele tem que dá exemplo. Como nós somos
formado [sic] nós temos que dar exemplo. Ele tem que dá exemplo, ele é instruído
pra isso. Muitas vezes tem pessoa lá frente que nunca teve algum exemplo e o
policial em si, apesar de ser um ser humano igual a qualquer um, mas ele é instruído
com formação tanto através dos oficiais, intelectual, transmite pra gente. Quando
nós vê que alguém lá fora precisa do apoio da gente e tudo que eu aprendi que
transmito pra ele eu não aprendi sozinho. É como um receptor. Eu me esforço,
sempre me esforçarei para dar exemplo porque eu aprendi de minha maneira através
do meu comando e eu transmito boas coisas pra qualquer um que precisar de apoio
da minha pessoa (Sargento da UPS Róger, entrevista em: 15/10/2014).

Nós, para reprimirmos a gente em primeiro lugar tem que se dar o exemplo. Se eu
não sou um bom profissional, como vou exigir que o cara seja um bom cumpridor
dos deveres? (Sargento da UPS mandacaru, entrevista em: 30/10/2014).

Observamos nas falas dos policiais como a disciplina militar serve de parâmetro para
os policiais nortearem suas visões de mundo e como essa mesma disciplina acaba também por
servir como regulador social para as pessoas na sociedade, ou melhor, “a formação em si, se
fosse levada como mostra a polícia solidária serviria muito pra essa comunidade porque a
comunidade teria uma base de como proceder”; ou ainda, “é como um receptor. Eu me
esforço, sempre me esforçarei para dar exemplo porque eu aprendi de minha maneira através

33
No tocante à esfera da repressão policial presente nesses modelos de policiamento preventivo, discorreremos
ainda neste capítulo sobre a visão de Agamben (2004, 2010) sobre o que ele considera o Estado de Exceção e sua
relação com a vida nua, o que acreditamos ser um diálogo interessante com a perspectiva foucaultiana para
demonstrarmos o dispositivo de militarização num contexto biopolítico.
131

do meu comando (os superiores hierárquicos)”; ou seja, “se eu não sou um bom profissional,
como vou exigir que o cara seja um bom cumpridor dos deveres?”.
Nesse ponto é que podemos considerar um tipo específico de sociabilidade presente na
interação entre moradores e policiais, a partir da qual a disciplina apreendida nas casernas
pelos policiais pode funcionar, segundo a crença policial, como norteador moral para os
moradores se espelharem para melhor conduzir suas vidas. Neste trabalho, resolvemos cunhar
tal processo de “sociabilidade estratégica”. Para Simmel (2006), os indivíduos vivem em
sociedade por meio de interações recíprocas, as quais são mediatizadas pelo conjunto de
impulsos e finalidades que os impelem a realizar contatos e relações de convívio com os
outros. O que ocorre é a conexão entre matéria e conteúdo do que Simmel (2006) define por
sociação, ou seja, seria a superação da condição particular dos instintos e motivações (fome,
trabalho, amor, enfim) para se construir formas de ser e estar com o outro gerando interações.
Assim, a sociação é a forma múltipla a partir da qual os indivíduos agem conforme seus
interesses, o que garante a existência da sociedade. No que tange ao conteúdo da sociação, é a
partir dele que elaboramos os elementos que absorvemos do mundo para consolidar o sentido
de nossas vidas. Só que, o conteúdo da sociação (nossos interesses e finalidades) em certo
momento torna-se autônomo ao ponto de sua exteriorização não mais corresponder de forma
exclusiva à realização dos propósitos de quem os adquiriu. Como exemplo, segundo Simmel
(2006), podemos citar o conhecimento e o seu sentido na luta pela existência, o qual pode ser
usado para preservarmos e aprimorarmos a vida. No entanto, a praticidade do conhecimento
cedeu espaço para a ciência enquanto um valor em si mesmo, pois a instrumentalização e o
pragmatismo científico delimitam seus objetos para a própria ciência, para a própria
realização científica e suas necessidades. No mesmo esteio temos a arte que “cria a si mesma,
simultaneamente, pela segunda vez. E no entanto as formas por meio das quais ela cria e nas
quais ela consiste se criaram nas exigências e na dinâmica da vida” (SIMMEL, 2006, p. 62).
Nessas condições, vê-se operar a transmutação da matéria que engendra a forma (a
ciência, a arte, o direito) no seu contrário, pois a forma passa a determinar um valor definitivo
para si mesma, o que, para Simmel (2006), diz respeito a um jogo. Então, se nossos impulsos
e forças morais que antes produziam as formas de nossos comportamentos se autonomizam
ditando as regras do jogo que nos conformamos a seguir, temos, pois, que tal processo pode
ser compreendido também como a sociabilidade. Nesse caso, a sociabilidade é uma forma de
“sociação lúdica”, ou seja,
132

As qualidades pessoais de amabilidade, educação, cordialidade e carisma de todo


tipo decidem sobre o caráter do ser em comunidade. Mas, justamente por esse
motivo, porque tudo aqui se apóia nas personalidades, elas não devem ser
enfatizadas de modo tão individual. Quando os interesses reais, em cooperação ou
colisão, determinam a forma social, eles mesmos já cuidam para que o indivíduo não
apresente sua especificidade e singularidade de modo tão ilimitado e autônomo. Mas
onde essa condição não ocorre, é necessário que o refreamento se dê apenas a partir
da comunhão com os outros, outra maneira de redução da primazia e da relevância
da personalidade individual (SIMMEL, 2006, p. 66).

É a partir desse quadro da supressão da primazia do indivíduo em favor da


sociabilidade que lançamos nosso olhar sobre o policiamento solidário. Só que, como
afirmamos anteriormente, o policiamento solidário se pauta por um tipo de sociabilidade que
chamamos de estratégica porque, no processo de interação entre comunidade e policiais o
momento de autonomização da sociabilidade faz parte de um mecanismo estratégico atrelado
ao biopoder. Como nos ensina Foucault (2010b), quando o poder atua discursivamente de
forma positiva, estamos diante de uma “estratégia sem estrategista”, pois, “podemos chamar
de “estratégia de poder” o conjunto dos meios operados para fazer funcionar ou para manter
um dispositivo de poder” (FOUCAULT, 2010b, p. 293). Desse modo, os indivíduos
desconhecem os efeitos das ações que surgem das interações que eles promovem entre si. No
nosso caso, temos que o dispositivo de disciplinarização é um processo de sofisticação para
normalizar as comunidades fazendo-as aceitar o controle estatal por meio dos organismos
policiais. Além disso, surge a urgência de proteção de uma sociedade que visa à democracia e
à segurança de todos (discurso do policiamento solidário), onde essa última está sendo
ameaçada pelas “classes perigosas”.

FIGURA 27: Logomarca da Polícia Solidária.


FONTE: Relatório de atividades da Polícia Solidária
133

Só que, falar de “estratégia” nos conduz a falar das resistências que surgem na lógica
do poder, pois, para Foucault (2007, 2010b), não existe poder sem resistência. Aliás, o poder
só mantém a sua lógica exatamente porque admite o contrapeso da resistência e esta última é
tão real como a presença das relações de poder. Nesse âmbito, “o que torna a dominação de
um grupo, e as resistências às quais ela se opõe, é o fato de manifestarem, em uma forma
global e maciça, o entrelaçamento das relações de poder com as relações estratégicas e seus
efeitos de interação recíproca” (FOUCAULT, 2010b, p. 295).
Sobre as relações de poder e as resistências a elas, devemos deixar claro que nossa
pesquisa não se ateve a observar como as mesmas se posicionam e se desenvolvem no projeto
de policiamento solidário visto que nosso foco foram os policiais militares e suas
participações no projeto. Não pudemos, por exemplo, como já falei anteriormente na
introdução desta pesquisa, observar o cotidiano das comunidades envolvidas com a polícia
solidária ou ao menos realizar entrevistas devido ao risco de eu ser além de pesquisador,
policial militar. De todo modo, gostaríamos de pontuar um fenômeno apreendido em campo.
No Bairro José, os policiais me relataram que as pessoas dificilmente procuram o posto de
polícia solidária. Segundo um policial militar “Nós evitamos comprar lanche aqui, vamos pra
Manaíra. Os moradores não teem contato com a gente. Teve um caba [sic] aqui que me vendia
lanche, foi ameaçado. Vendeu a casa e foi morar em Mangabeira”. Outro policial me disse:
“Acho estranho, até uma senhora passa aqui e não dá bom dia”. Em outro momento me
confidenciou um PM: “Até as enfermeiras (pois existe um posto de saúde vizinho da UPS)
têm medo, atendem a gente rápido e falam pouco”. Alguns policiais da UPS também me
narraram alguns atentados sofridos pelo posto, onde não foi possível descobrir a autoria como
quando jogaram um gato morto de frente ao prédio ou quando quebraram a placa que leva o
nome da UPS. O discurso dos policiais, todavia, baseia-se na afirmação de que esse
distanciamento dos moradores diz respeito ao medo vivenciado por conta dos traficantes, pois
ser amigo de policial é ser ameaçado de morte. No entanto, não podemos afirmar
peremptoriamente tal condição, pois poderíamos também descobrir que o não contato dos
moradores com os policiais deve-se à relação de violência empreendida contra os moradores
do bairro pelas forças policiais. O que fica marcado é que em nenhum momento que estive
fazendo a pesquisa de campo algum morador do bairro São José cumprimentou os policiais ou
procurou a UPS. Observei situação análoga em Mandacarú, onde um policial militar disse-me
que “Aqui, as pessoas não falam conosco”.
Então, para se restabelecer, segundo o discurso policial militar a paz social, é preciso
“defender a sociedade” contra as classes perigosas. Dessa forma, Foucault (1999, p. 322)
134

expõe que “sob os esquecimentos, as ilusões e as mentiras que nos fazem crer em
necessidades naturais ou nas exigências fundamentais da ordem, deve-se encontrar a guerra:
ela é a cifra da paz”. Nessa apreciação, o biopoder revela sua outra face: o de que ele se
configura com base na guerra. Como afirma Foucault (1999), ao inverter o princípio de
Clausewitz, a política seria a guerra continuada por outros meios e, nesse sentido, o poder não
diz respeito à instauração da ordem por meio de mecanismos jurídicos e sim através de uma
guerra continuada.
Por esse escopo, Foucault (1999, 2007) nos explica que, enquanto o regime de
soberania se baseava na máxima de “fazer morrer e deixar viver”, a partir do século XVIII,
quando a biopolítica entra em cena, pouco depois dos mecanismos disciplinares (século
XVII), o que passa a vigorar é um poder sobre a vida que se traduz no princípio que se deve
“fazer viver e deixar morrer”. A vida passa a ser regulamentada, como já ressaltamos, por
meio de mecanismos de controle que passam a reger a conduta das populações.
Assim, para compreender a dimensão do biopoder pelos princípios da guerra, Foucault
(1999) analisa um discurso histórico que teria surgido no final da Idade Média, mais
precisamente entre os séculos XVI e XVII. Por meio desse novo discurso histórico, abandona-
se o discurso da soberania e emerge o discurso de embate e luta entre as raças. Esse discurso
pode ser observado na Inglaterra e suas lutas políticas de reação popular eclodidas no século
XVII. Tempos depois, vemos o mesmo discurso na “reação nobiliária” francesa contra o
reinado de Luís XIV. No século XIX, tal discurso histórico serviu como ideal para a
colonização dos povos descobertos e da visão que se criou de que eles seriam raças inferiores.
Nesse caminho, o que Foucault (1999) destaca criticamente é que a guerra em termos de
relações políticas estaria no plano das representações para um autor como Hobbes, pois no
estado de natureza a guerra nunca acontecerá. Não existem disputas reais no estado de
natureza hobbesiano. Ao contrário da filosofia política, Foucault (1999) parte da análise dos
escritos de Boulainvilliers sobre como o discurso histórico ensejou a reação da nobreza a Luís
XIV. Os estudos de Boulainvilliers sobre a economia e as instituições francesas denota o
posicionamento de um sujeito que se utiliza do discurso histórico numa perspectiva onde é
possível se perceber como o poder trata-se de uma relação, visto que esse discurso funciona
como uma estratégia política para provar que a nobreza deve ser vista como uma “nação”, a
qual se diferencia de outros grupos e instâncias políticas da França Absolutista. Assim, o
discurso histórico, enquanto um campo de saber específico e diferentemente de uma análise
linear voltada para grandes acontecimentos passa a ser utilizado em lutas políticas que
alcançará a Revolução eclodida em 1789. Nesse sentido, se antes o discurso histórico foi o
135

catalisador das guerras externas próprias da Idade Média passando pela vontade de afirmação
da nobreza francesa, com a ascensão burguesa temos um deslocamento do princípio da guerra
vinculado ao discurso histórico. Ocorre, então, que a guerra, no plano histórico, deve ser
realizada internamente para defender a sociedade dos perigos que lhe assaltam. Por esse mote,
a ideia de nação é reelaborada pela burguesia de forma que o discurso histórico passa a ser
utilizado nas lutas políticas burguesas. Nessa consideração histórica, a biopolítica surge
atrelada à ascensão burguesa fazendo da guerra interna uma maneira da sociedade se proteger
contra seus perigos, o que faz fortalecer o racismo como um processo que transita da
dimensão histórica para a biológica. Por meio do racismo, o biopoder, que age em função da
regulamentação da vida, torna-se “a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade
de normalização. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado
funcione no modo do biopoder, pelo racismo” (FOUCAULT, 1999, p. 306).
Nessa conjuntura, onde aqueles que devem morrer têm que ser selecionados para
garantir a vida dos que se permitem seguir a lógica biopolítica da normalização, a
criminalidade também pode ser vista em termos de racismo, pois, a relação entre
criminalidade e racismo surgiu “igualmente a partir do momento em que era preciso tornar
possível, num mecanismo de biopoder, a condenação à morte de um criminoso ou seu
isolamento” (Ibidem, p. 308). Dessa forma, por mais que a biopolítica esteja voltada para o
controle estatal da população, por um lado, o dispositivo de disciplinarização, por meio de
uma sociabilidade estratégica, garante esse controle pela perspectiva do discurso do
policiamento comunitário/solidário. Por outro lado, quanto aos que estão fora das malhas da
normalização, resta a repressão policial, num estado de coisas em que a ordem se legitima
selecionando a “vida que se pode deixar morrer” (ROSA, 2012).

3.3 - O CONTROLE DAS CLASSES PERIGOSAS E O ESTADO DE EXCEÇÃO


No esteio do que discutimos até aqui, Rosa (2012) nos aponta que pensar a biopolítica
como uma forma estratégica de administrar a vida das populações faz parte de um processo de
organização da desordem, a qual deve funcionar vinculada a um ideal de limpeza que pode ser
exercido pelas Polícias Militares como o foi durante o regime de exceção. Atualmente, esse
processo biológico de seletividade para proteger a sociedade (FOUCAULT, 1999) volta seu
olhar para as classes perigosas, as quais são compostas por indivíduos responsáveis, segundo
a ótica policial militar, por produzir uma sujeira social caracterizada por homicídios, roubos,
furtos e uma infinidade de atitudes que oscilam entre a corruptibilidade de valores morais e a
136

quebra das normas jurídicas que regem legalmente a sociedade. Esse papel de uma ordem
socialmente higienizadora já tinha sido descrito por Freud (1978), quando o mesmo descreveu
que a civilização moderna desenvolveu-se de forma paradoxal na busca de segurança pessoal
para os indivíduos em troca do controle dos instintos, pulsões sexuais e agressividade. Essa
segurança teria gerado menos liberdade ao homem moderno, vinculando-se a “ordem” a dois
outros elementos que completam as exigências da civilização, ou seja, a “beleza” e a
“limpeza”. Ao falar também da ordem associada à pureza, Douglas (1976) nos diz que a
impureza caminha num sentido contrário à ordem e, eliminar o que é impuro trata-se de um
fator positivo, de modo que ordenar as coisas diz respeito a repelir o que não seja apropriado.
Assim, manter-se na ordem é não incluir as impurezas que estão fora do seu devido lugar e
todas as sociedades (primitivas e modernas), de certo modo, possuem o seu sistema de ordem
estabelecido. Um padrão a ser seguido. Mas, para Bauman (1998a), ao analisar o que ele
considera “o sonho da pureza”, o problema reside quando são os seres humanos que passam a
ser categorizados como “sujeira” e que são colocados como um empecilho na ordenação dos
espaços. Nesse sentido, em tempos de pós-modernidade, onde prevalece a lógica neoliberal,
baseada na desregulamentação do Estado provedor e na privatização de seus serviços, emerge
o discurso da “lei e ordem” como elemento propagandístico de como se agir para se repelir,
agora, os “estranhos” do mundo do consumo, ou os “consumidores falhos”, que se
transformam em “refugos humanos” (BAUMAN, 1998a). O que está em jogo é a
incriminação de problemas socialmente produzidos como nos relata um Tenente por nós
entrevistado na UPS de Mandacarú, ao falar sobre a condição social de um traficante o qual,
segundo o entrevistado, ainda torna-se vítima de uma hierarquização do próprio tráfico que o
absorve, além da certeza da existência de um tráfico organizado que deve ser a realidade a se
combater:

Exemplo é o Daniel, que é o chefe aqui do Beco de Zé Borges, se diz chefe, na


verdade não é chefe de coisa nenhuma. É um cara que não tem onde cair morto. Em
um local que tem um tráfico tão intenso como em Mandacarú um chefe do tráfico de
droga não tem nem uma roupa pra usar direito. Há dez meses que eu tô aqui, há dez
meses ele usa a mesma roupa, ou seja, não tem uma condição financeira pra um
chefe do tráfico. São pessoas que usam esses populares diz “você agora é o chefe
aqui, você agora é quem manda aqui”. Na verdade pra ele não aparecer e usa de
cobaia, de laranja mesmo pra os chefes mesmo do tráfico organizado não estão aqui,
mas é organizado (Entrevista em 15/10/2014).

Nesse contexto, as apreciações de Garland (2001) sobre a emergência de uma “cultura


do controle” num sistema sócio-político-econômico marcado pelo neoliberalismo e em
137

tempos pós-modernos, especialmente nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, tornam-se


pertinentes para compreendermos esse processo que, devido ao alcance da globalização, pode
também ser observado na implantação do policiamento solidário na cidade de João Pessoa.
Assim, essa cultura do controle teria se fortalecido a partir do final da década de 1970 com o
aumento progressivo do encarceramento penal que passou a caminhar juntamente com a
descrença nas políticas reabilitadoras próprias do previdenciarismo penal surgido em fins do
século XIX. Após a Segunda Guerra mundial, as instituições de justiça criminal e controle do
crime nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha passaram por um processo moderno de
estatização e burocratização sustentado pelo Estado de Bem-Estar Social. O que importava
nesse processo era a profissionalização no controle do crime distanciada de uma política de
ação privada, sem a participação do público ou das vítimas, de modo a se destacar a
aplicabilidade da lei na perseguição e acusação daqueles que cometessem delitos. As
políticas estatais passavam a atuar na reabilitação dos criminosos, pois, o previdenciarismo
penal desenvolveu-se baseado na crença otimista de cunho liberal de que a frequência do
crime poderia ser reduzida por meio de uma reforma social aliada à prosperidade econômica,
o que faria com que o Estado assumisse a tutela sobre a punição e o controle dos criminosos.
No entanto, o que se viu foi um movimento contrário, especialmente com mais força a partir
da década de 1980 que disseminou transformações que já não diziam respeito à atuação de um
Estado assistencialista, mas a uma política reacionária que, em síntese, significa que,

O que é surpreendente nas vitórias eleitorais de Reagan e Thatcher é que elas se


deveram menos ao apelo de suas políticas econômicas – que nessa fase estavam
visivelmente em desenvolvimento – do que de sua habilidade para articular o
descontentamento popular. A hostilidade com respeito aos “impostos e gastos” do
governo, aos beneficiários indignos da previdência social, às políticas „brandas com
o crime‟, aos sindicatos não oficiais que estavam em funcionamento no país, à
fragmentação da família, ao colapso da lei e da ordem – estes foram pontos focais
para a política populista que rendeu o apoio generalizado. Apelando para o
conservadorismo social das classes médias trabalhadoras, respeitáveis (e em grande
parte branca), políticos da „Nova Direita‟ culparam os pobres indolentes pela
vitimização da sociedade decente – pelo crime nas ruas, os gastos da previdência, os
altos impostos, a militância industrial – e a culpa das elites liberais por permitirem
uma cultura permissiva e um comportamento anti-social encorajados por ela
(GARLAND, 2001, p. 97).34

34
What is striking about both the Reagan and the Thatcher election victories is that they owed less to the appeal
of their economic policies –which at that stage were conspicuously underdeveloped- than to their ability to
articulate popular discontent. Hostility towards „tax and spend‟ government, undeserving welfare recipients, „soft
on crime‟ polices, unelected trade unions who were running the country, the break-up of the family, the
breakdown of law and order -these were focal points for a populist politics that commanded widespread support.
Appealing to the social conservatism of „hard-working‟, „respectable‟ (and largely white) middle classes, „New
Right‟ politicians blamed the shiftless poor for victimizing „decent‟ society – for crime on the streets, welfare
138

O discurso neoliberal, assim, passou a veicular as causas para o progressivo aumento


nas taxas de criminalidade dos países ditos desenvolvidos desconsiderando as políticas
governamentais e seus efeitos como, por exemplo, a desregulamentação do mercado por parte
do Estado, o crescimento nas taxas de desemprego por conta da inserção de novas tecnologias
no setor produtivo (pós-fordismo) e a diminuição de gastos nas políticas de assistência aos
pobres e na previdência social. Em pensamento análogo ao de Garland, Wacquant (2001, p. 7,
grifos do autor) conclui que “a penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende
remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e
social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em
todos os países”. Esse paradoxo desenvolve-se em consonância com outra condição
contraditória que se torna o elemento articulador das políticas neoliberais atuais, ou seja,
agora que a sociedade foi conclamada a lutar contra a escalada do crime vê-se articular
políticas segregacionistas punitivas sob o lema da “lei e ordem” juntamente com “parcerias
preventivas” que se traduzem na criação do policiamento comunitário (GARLAND, 2001).
Então, com a descrença no Estado de Bem-Estar Social e com a disseminação de que
os pobres são incorrigíveis, já que carregam consigo a escolha racionalmente orientada para a
prática do crime, o que se deve fazer é mantê-los sob controle, o que se explica o vertiginoso
aumento das taxas de encarceramento nos países ricos. E é dentro desse processo que
percebemos que o policiamento comunitário encerra-se numa dimensão biopolítica, pois, o
que se desenvolve no controle do crime atual são estratégias que visam ao encorajamento das
comunidades para se autovigiarem (GARLAND, 2001).
Para Silva Júnior (2010), o nosso país atualmente também está passando por um
processo pelo qual a segurança pública se traduz numa “cultura do controle” ao modo como
Garland avaliou a sociedade estadunidense e a britânica. O que deve ser ressaltado é a
ausência da implementação de um estado de Bem-Estar Social em nosso país como ocorreu
nos países ricos, porém, a globalização e o neoliberalismo passaram a influenciar todo o
planeta, de modo que se desenvolveram em países da América Latina como o Brasil através
da luta por direitos próprios de uma sociedade liberal que estava se redemocratizando. No
entanto, a desigualdade social herdada do modelo econômico proposto pela Ditadura Militar
foi ampliada pela globalização neoliberal e também acentuou o aumento dos índices de
criminalidade. No tocante a esta última, o tráfico de drogas e de armas emergiu trazendo à

expenditure, high taxes, industrial militancy- and blames the liberal elites for licensing a permissive culture and
the anti-social behavior it encouraged (tradução nossa).
139

tona novas modalidades criminais e agravando a condição social das populações menos
assistidas pelas políticas estatais. Desse modo, essa cultura do controle em nosso país teria
começado a partir do final da década de 1990, especialmente após a criação da Secretaria
Nacional de Segurança Pública (SENASP) e pautada no modelo de segurança cidadã previsto
no Plano Nacional de Segurança Pública, datado de 2000, além do modelo punitivo que tem
como foco o combate à criminalidade atrelado ao Plano Nacional de Política Penitenciária.
Assim, os estudos de Garland (2001) quando aplicados ao Brasil identificam

Elementos empíricos que se enquadravam tanto às estratégias de parcerias


preventivas – desenvolvidas principalmente pelo chamado policiamento comunitário
– como às estratégias de segregação punitivas – estabelecidas pela política de
encarceramento das “classes perigosas” e pela intensificação do policiamento
reativo-repressivo -, em que ambas maximizam o controle para conter as taxas de
criminalidade e violência, além de enfatizarem a segregação, quer através de um
“comunitarismo” que busca resgatar valores tradicionais que se aproximam da ideia
de clã (impossível dentro de um mundo globalizado), quer por meio do
encarceramento em estabelecimentos prisionais ou em guetos (SILVA JÚNIOR,
2010, p. 81-82).

No que tange ao projeto de policiamento solidário na cidade de João Pessoa, esse


fenômeno pode ser observado por tudo o que já expomos até aqui. Nesse sentido, um último
ponto a ser discutido neste processo que enfatiza a consolidação de um dispositivo de
disciplinarização mediante uma sociabilidade estratégica (os quais estão enredados por
mecanismos de segurança numa esfera biopolítica, ou seja, de controle das populações) diz
respeito a como as classes perigosas devem ser “eliminadas” por meio de uma limpeza que
mantenha a sociedade sadia.
Nesse contexto, segundo Agamben (2010), não existe distinção entre soberania e
biopolítica como nos aponta Foucault (1999, 2007) na modernidade. Como vimos, a era do
biopoder diz respeito aos cálculos governamentais para gerir a vida do homem moderno
enquanto espécie, já que no regime de soberania importava a morte em detrimento da vida.
Ao contrário, para Agamben (2010), ao analisar os escritos foucaultianos, existe um “ponto
oculto” não demonstrado por Foucault (apesar de estar implícito em suas análises) no que
tange à relação entre as formas de dominação engendradas pela disciplina (o aspecto subjetivo
de atuação do poder) e as maneiras pelas quais os indivíduos se comunicam com o poder
objetivo (biopoder). Acreditamos que esse argumento não seja suficiente para caracterizar a
ótica foucaultiana como um “ponto oculto”, já que demonstramos que o dispositivo de
disciplinarização funciona exatamente mediante as práticas sociabilizadoras entre policiais
militares e moradores.
140

No entanto, ao retomar a esfera da soberania como campo de análise, Agamben (2010,


p. 14) estabelece a “intersecção entre o modelo jurídico institucional e o modelo biopolítico
do poder”, de modo que o campo do direito é recobrado para explicar que, na verdade, na
modernidade, o poder soberano produz o corpo biopolítico ao invés de servir como objeto dos
cálculos e estratégias dos processos de normalização estatal como apontou Foucault (1999).
Emerge para Agamben (2010), nesse sentido, a figura do homo sacer, ou seja, “a vida nua,
isto é, a vida matável e insacrificável do homo sacer. Uma obscura figura do direito romano
arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua
exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade)” (AGAMBEN, 2010, p. 16, grifos do autor).
Isso implica dizer que a figura sagrada do homo sacer e sua vida nua configuram-se como o
paradigma inicial da esfera política ocidental, visto que essa vida matável situa-se para além
de sua concepção sagrada.
Desse modo, Agamben (2010) exemplifica-nos a partir dos gregos que, por eles não
possuírem um termo único que distinguisse o que significa vida, a palavra zoé denotava o ato
de viver de qualquer ser vivo, enquanto bíos dizia respeito à vida que se vive de forma
contemplativa na cidade ou na política. Existia uma distinção entre as duas formas de viver.
De modo contrário, na modernidade, o poder soberano cria um espaço onde a vida comum (a
natureza) e a dimensão política (o direito) se confundem, se tornam indistinguíveis, de modo
que o soberano assume um poder de decisão que só passa a funcionar exatamente porque o
ordenamento jurídico é suspenso para garantir a manutenção desse mesmo ordenamento.
Seria o “Estado de Exceção” (AGAMBEN, 2004, 2010), ou melhor, um momento no qual a
biopolítica se estabelece para incluir a vida nua, exatamente por ela ser excluída, assim como
funcionaram os campos de concentração nazistas. A vida nua do homo sacer moderno, ou a
“vida que não merece viver”, nesse sentido pode ser interpretada, segundo Agamben (2010),
como

Aquela vida nua natural que, no antigo regime, era politicamente indiferente e
pertencia, como fruto da criação, a Deus, e no mundo clássico era (ao menos em
aparência) claramente distinta como zoé da vida política (bíos), entra agora em
primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se aliás o fundamento terreno de sua
legitimidade e da sua soberania (p. 124).

Nesse limiar de indistinção entre fato e direito, vida e norma, não se caracteriza
homicídio eliminar a vida nua, visto que, no Estado de Exceção torna-se legítimo matar
aquele que se torna matável, já que a norma jurídica foi suspensa para garantir o exercício da
141

soberania (entenda-se o Estado), ou seja, o direito é deixado de lado para manter ele mesmo.
De todo modo, essa situação não se caracteriza como caos ou anarquia, já que mesmo com a
suspensão da ordem por uma concepção jurídica o Estado se faz presente para legitimar a
vontade soberana, pois, “a decisão soberana do Estado por si mesmo liberta-se de todos os
laços normativos e torna-se verdadeiramente absoluta. O Estado suspende a lei na exceção
sob a justificativa de que esta suspensão é necessária para que ele se auto-preserve”
(SANTOS FILHO, 2013, p. 21). É por esse prisma que podemos avaliar, assim como
aconteceu com a invasão das favelas no Rio de Janeiro para a implantação das UPP‟s, o que
nossos interlocutores narraram quanto às operações realizadas nos bairros de Mandacarú,
Bola na Rede e São José. Para que as UPS‟s fossem implantadas e passassem a funcionar foi
necessário antes que a Polícia Militar e outros órgãos de segurança se empenhassem para
“limpar” a área dos traficantes.

A nomenclatura UPS surgiu exatamente nesse dia 11 do 11 de 2011, foi quando a


implantação da UPS Bola na Rede. Não estava regulamentado ainda. Primeiro a
gente chegou pra depois ser regulamentado. O processo antes desse dia, da operação
que a gente denominou “gol de placa” foram dois meses de trabalho de inteligência
policial pra saber quem eram os traficantes que estavam agindo naquela área, o
armamento utilizado, os nomes, ou seja, teve um preparo antes pra quando fosse no
dia da operação a gente ia ter certo pra fazer aquela limpeza da área (Tenente da
UPS Bola na Rede, entrevista em 13/12/2013).

A força tática veio para a Bola na Rede no momento em que a Bola na Rede foi
tomada e foram expulsos os grandes marginais que tavam [sic] naqueles locais. A
UPS veio na tomada. No momento que foi tomado o bairro a população teve aquela
sensação de segurança e paulatinamente conseguiu essa segurança devido aos
bandidos que viviam nesse local foram expulsos. Com a chegada da força tática o
policiamento se tornou mais intenso e uma condição melhor de serviço. Com a UPS
tinha só uma viatura e no máximo três motos e dois homens rondando dentro do
bairro. Com a força tática nós tínhamos quatro viaturas com quatro homens e a
constância do policiamento era diuturnamente. As viaturas paravam e faziam aquele
patrulhão e passavam por dentro de todos os bairros e todas as vielas, todas as ruas,
retirando do meio da população aquelas peças que não deveriam estar ali (Cabo da
UPS Bola na Rede, entrevista em: 22/10/2014).

Como observamos nas falas dos entrevistados, a “tomada” dos bairros dos traficantes
locais propiciou se “fazer aquela limpeza da área”, de modo que, foi possível se retirar “do
meio da população aquelas peças que não deveriam estar ali”. O discurso higienizador em
relação aos traficantes torna-se claro nas palavras dos policiais e, para alcançar o êxito da
operação, a ordem jurídica teve que ser suspensa, pois “as viaturas paravam e faziam aquele
patrulhão e passavam por dentro de todos os bairros e todas as vielas, todas as ruas”. Essa
142

operação policial funcionando na “exceção” teve a pretensão de usar a violência em nome de


se restabelecer a ordem e se implantar os postos de policiamento solidário.
Portanto, a suspensão das regras normativas nas “tomadas” realizadas pela Polícia
Militar, de certa forma, assim como nos relata os entrevistados, evidencia o quanto o projeto
de policiamento solidário está pautado por situações estratégicas múltiplas que geram como
consequências efeitos que os próprios indivíduos envolvidos desconhecem. Tem-se, neste
caso, o aumento do policiamento aos moradores e a intensificação das batidas policiais (“Nós
abordamos, abordamos todo mundo, para evitar que aconteça”, palavras de um Cabo da UPS
Bola na Rede), além de uma aproximação entre policiais e moradores onde os primeiros
apregoam como critérios morais de cidadania o modelo disciplinarizador aprendido no mundo
cultural vivenciado na profissão PM. Nesse sentido, pois, vejamos como esse modelo cultural
é construído e ratifica uma distinção entre policiais e moradores que faz parte do dispositivo
de disciplinarização e sua interrelação com o campo biopolítico, já que os policiais têm que
servir de modelo de cidadania para a sociedade.
143

CAPÍTULO 4

DA VIOLÊNCIA À DISTINÇÃO POLICIAL MILITAR

Neste capítulo, procuraremos demonstrar como a violência policial ilegítima, sob certa
perspectiva, na verdade surge como efeito do distanciamento que é criado entre policiais
militares e sociedade devido ao processo de socialização pelo qual passam os policiais em
formação. Para tanto, demonstraremos as consequências advindas da violência policial, a qual
se tornou um problema a ser observado principalmente desde que voltamos a viver em um
regime democrático.
O que deve ser ressaltado é como a cultura profissional apreendida nas casernas
propicia o exercício de uma autoridade policial baseada em valores como o machismo, por
exemplo. Segundo Bretas (1997), por existir concordância nos estudos que reconhecem uma
“cultura policial” que regimenta uma “identidade policial”, estaríamos a identificar que uma
importante característica que acompanha os organismos policiais seria “a resistência a
inovações”, a qual acompanha a sociabilidade entre policiais militares e comunidades no
projeto de policiamento solidário.
Na verdade, mostraremos como a distinção policial militar faz parte do “dispositivo de
disciplinarização”, ou seja, funciona como mecanismo biopolítico que garante a socialização
dos policiais e os tornam os veiculadores do ideal militarista de construir uma sociedade nos
moldes militares só que através de um controle social com base no policiamento solidário.
Assim, não se trata de “inovações” do policiamento, mas de “estratégias” pelas quais a
distinção policial militar seria um dos instrumentos de manutenção do poder.
Em meio a essa discussão, seguiremos adiante para demonstrar que, antes que se
configure a violência policial, neste caso, a militar, mostraremos quais são os elementos que
perpetuam não só a violência policial, mas o distanciamento entre policiais e sociedade.
Ademais, ao considerarmos a presença de um ethos voltado para uma práxis belicista por
parte dos policiais militares devido à formação militarista que assim os condiciona,
identificamos a importância de uma “honra policial militar” específica, que acaba por gerar
uma crença coletiva que, segundo o vocabulário nativo se traduz como o “espírito de corpo”.
144

4.1 – AS INTERFACES DA VIOLÊNCIA POLICIAL MILITAR NO BRASIL


Visto que as primeiras lutas pelos Direitos Humanos na América Latina e no Brasil
consolidaram-se para denunciar as arbitrariedades que eram cometidas contra os opositores
dos regimes militares que vigoraram principalmente entre as décadas de 60, 70 e início de 80
do século passado, no caso específico do Brasil a abertura político-democrática serviu para
fomentar a esperança de um povo silenciado por instrumentos como o AI-5 e o pragmatismo
autoritário pautado pela violência institucionalizada. Nesse contexto, como já destacamos no
primeiro capítulo deste trabalho, o período ditatorial em nosso país (1964-1985) foi marcado
pela legitimação da violência política através das Forças Armadas e dos organismos policiais
militares. No que tange especificamente à violência policial militar, apesar da abertura
político-democrática a partir de 1988, a mesma não desapareceu. Manteve-se através de
outros parâmetros como instrumento de controle social e também como forma de controle da
criminalidade. Por esse foco, tivemos o declínio da violência policial de modo político,
porém, essa violência emergiu contextualizada com a opressão à população pobre e
marginalizada (MESQUITA NETO, 1999; COSTA, 2004; MACHADO et. al., 1997).
Segundo Belli (2004), pelo fato das violações dos Direitos Humanos constituírem uma
política de Estado na ditadura, a restauração da democracia trouxe consigo a esperança de que
o conjunto de direitos elencados pela Carta Magna de 1988 seria cumprido, além de ter sido
reforçado pelos diversos pactos de Direitos Humanos que o Brasil passou a adotar. No
entanto, “o fim do regime militar representou um avanço fundamental ao garantir os direitos
políticos e o estabelecimento de instituições democráticas, mas não gerou, necessariamente,
um grau mais elevado de respeito aos direitos civis” (BELLI, 2004, p. 23). O que a partir de
então passou a ser problematizado em nossa sociedade não era a forma de ação das agências
legitimadoras do Estado e o seu discurso de defesa em nome da Doutrina de Segurança
Nacional, a qual não tinha mais garantias ideológicas para se manter. Se os presos políticos
eram as pessoas visadas com a ditadura, com a transição democrática os presos comuns
passaram a ser visibilizados e, decorre de tal fato que,

A década de 90 provou-se extremamente frustrante para aqueles que depositaram


tantas esperanças na democratização do país. Tomando a questão de um ponto de
vista estritamente empírico, há evidências claras de que as violações apenas se
avolumaram. Não obstante, a doutrina de segurança nacional existia apenas para os
opositores do regime. A busca da segurança contra o crime não contava com uma
doutrina formalizada, mas certamente foi contaminada pelas duras técnicas de
combate à subversão. De certa forma, a urgência de superar o regime militar e a
esperança de que a democracia eliminaria os abusos de direitos humanos
explicariam a menor visibilidade das violações praticadas pelos agentes do Estado
na gestão da política de segurança pública propriamente dita (Ibidem, p. 23).
145

Mas, episódios envolvendo a atuação das Polícias Militares brasileiras ganharam


repercussão até mesmo internacional como o que ficou conhecido como o “massacre do
Carandiru”, onde 111 presos foram mortos quando da invasão da Penitenciária de São Paulo
em 1992 pela PM, durante uma rebelião. Também se destacou a violenta intervenção policial
militar contra integrantes do Movimento dos Sem Terra (MST) em Eldorado dos Carajás, no
Pará, em 1996, onde 19 trabalhadores rurais foram mortos no confronto com a PM. Apenas
para termos uma noção do fenômeno da violência policial militar, “em 1992, A Polícia Militar
de São Paulo matou 1.470 civis, um terço do total de homicídios ocorridos no Estado. Este
número é 61 vezes maior que o número de civis mortos pela polícia de Nova York no mesmo
ano” (COSTA, 2004, p. 19). Ainda sobre a violência policial e o uso da força letal no Rio de
Janeiro temos que,

Em 1995, a polícia matou 358 civis em confrontos armados. Para se ter idéia da
magnitude desses números, as polícias norte-americanas mataram 385 civis em
1990. Ou seja, na cidade do Rio de Janeiro, com aproximadamente 5,5 milhões de
habitantes, as polícias mataram quase o mesmo número de civis que todos os
departamentos de polícia dos EUA, país com aproximadamente 240 milhões de
habitantes (COSTA apud CANO, 2004, p. 85).

Em meio à complexidade que envolve o tema da violência policial também surge a


corrupção e o envolvimento de policiais militares com os ditos marginais. Ao mostrar
informações obtidas sobre a atuação de policiais militares em um bairro de Salvador Machado
et. al. (1997, p. 217) nos dizem que “existem policiais que, visando extrair vantagens do crime
demonstram tolerância, mantêm cumplicidade e se sentindo ameaçados por marginais que
reclamam do montante das extorsões ou sabem demais, resolvem eliminá-los através de ações
conhecidas como „queima de arquivos‟”.
As Polícias Militares, como sabemos, representam o uso da força física legítima por
parte do Estado só que, ocorrem diversas situações nas quais essa legitimidade é posta à
prova. Como exemplo, policiais militares podem usar da tortura ou extorsão, quando de
serviço, no cometimento de práticas ilícitas que contrariam os preceitos jurídicos que
regulamentam a paz social, ou até mesmo quando não estão investidos do exercício da
autoridade legal em serviço, perpetuando assim a violência policial. O olhar sobre esse tipo de
violência torna-se ainda mais delicado quando ao invés de violento, o ato de um policial é
interpretado como o uso da força, como quando se prende alguém de modo excessivo ou
desnecessário, mas não ilegal (MESQUITA NETO, 1999). Costa (2004) reconhece sete tipos
146

principais de violência policial, ou seja, a tortura, detenções violentas, mortes sob custódia,
abuso da força letal, controle violento de manifestações públicas, operações policiais e
intimidação e vingança.
Nessa consideração, se a sociedade brasileira esperava, com a transição democrática,
garantir um controle maior sobre as instituições policiais, já que as Forças Armadas tiveram
seus papéis restabelecidos de garantir a defesa externa do país, as forças políticas fizeram-se
aparecer para engendrar o limite necessário do controle das instituições repressivas do Estado
pela população através de seus representantes legais. E estratégias de Segurança Pública
passaram a ser elaboradas. Como exemplo das políticas de Segurança Pública desenvolvidas,
em 1995, no governo estadual de Marcelo Alencar, do PSDB, no Rio de Janeiro, foi
implementada uma política de enfrentamento contra a criminalidade com o uso do aparato
policial. Como forma de incentivo à ação policial o secretário de Segurança Pública à época, o
General Newton Cerqueira criou uma gratificação e promoção por bravura que ficou
conhecida como “gratificação faroeste”, a qual tinha o objetivo de gratificar policiais que
participassem de ações e ocorrências violentas. O resultado de tal política governamental foi
que, só nos primeiros quinze meses de vigência da nova gratificação a polícia matou 486
civis, enquanto nos vinte e oito meses anteriores ao referido programa tinham morrido 456
civis mortos por policiais (COSTA, 2004).
Dados mais atuais mostram que, a política de implantação das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro também foi eivada pela utilização ostensiva da
violência policial. O processo caracterizou-se inicialmente pela invasão conjunta das favelas
por policiais e militares. De acordo com a situação participavam das operações o Bope e a
PM, que foram apoiados pela Força Nacional de Segurança Pública, o Exército e a Marinha.
Após a instalação física da UPP o policiamento militarizado tornava-se presente e, “os
moradores passam a conviver cotidianamente com abordagens e revistas constantes, invasões
de moradias por PM‟s em busca de possíveis armas, drogas ou traficantes, e um convívio,
muitas vezes hostil, com as forças de ocupação” (ALVES & EVANSON, 2013, p. 20). Em
entrevista coletada por Alves e Evanson (2013), uma professora de uma escola em um dos
morros onde foi instalada uma base da UPP relatou:

“Aqui é assim, tiro todo dia. Violência. O Caveirão é o símbolo, o símbolo da


temeridade. Quando ele chega, todo mundo se apavora porque, segundo as crianças,
eles falam coisas horríveis independente de quem é. Se é bandido, se é morador da
comunidade, não importa. Dizem “vou te pegar, vou te matar, vou sugar a tua alma”.
As crianças têm pavor do Caveirão. Como se fosse um ser de outro mundo, quando
falam “o Caveirão chegou”, é o fim do mundo, entram em pânico” (p. 70).
147

As formas de coibir a violência policial através de mecanismos legais podem ser por
meio do controle interno (Corregedorias de Polícia e Justiça Militar) ou externo (Ouvidorias
de Polícia, Ministério Público). No entanto, segundo a análise de Zaverucha (2010) sobre a
aprovação da Lei nº 9.299, de 1996, que legitima a competência da Justiça Comum para
apurar e julgar casos que envolvam crimes dolosos contra a vida praticados por militares
contra civis, houve um retrocesso. Mesmo sendo eliminada a competência dos próprios
militares para apurar as irregularidades policiais militares nos crimes dolosos contra a vida,
ainda ficaram sob a alçada da Justiça Militar crimes mais corriqueiros cometidos por PM‟s
como àqueles “contra o patrimônio, abuso de autoridade, espancamento, prisão ilegal,
extorsão, sequestro, prevaricação etc.” (ZAVERUCHA, 2010, p. 60).
Neste caso, excluídos os crimes dolosos contra a vida, as demais infrações penais
cometidas pelos policiais militares são investigadas e solucionadas por suas respectivas
instituições. Se as infrações constituírem crimes militares próprios ou impróprios, da forma
em que são elencados e entendidos pela legislação penal militar, utiliza-se o Código Penal
Militar (CPM) e o Código de Processo Penal Militar (CPPM), nas considerações respectivas
do uso que é feito de ambos os códigos. Nesse contexto, segundo o CPM, 35 existem crimes
que podem ser praticados em tempos de paz ou em época de guerra, mas o mesmo código é
aplicado tanto para as Forças Armadas como para as PM‟s, visto que as últimas são Forças
Auxiliares do Exército brasileiro. O que deve ser questionado neste sentido é até que ponto
existe corporativismo nos julgamentos de policiais militares que cometem crimes, já que são
os próprios PM‟s que julgam os casos desviantes nas instituições policiais militares.
Assim, quando os policiais militares sofrem sanções que não constituem crime, eles
cometem transgressões disciplinares, as quais são normatizadas pelo Regulamento Disciplinar
da Polícia Militar (RDPM). O campo de aplicação desse código prescritivo institucional
compete em apurar as transgressões disciplinares que consistem em “qualquer violação dos
princípios da ética, dos deveres e das obrigações policial-militares, na sua manifestação
elementar e simples e qualquer omissão ou ação contrária aos preceitos estatuídos em leis,
regulamentos, normas ou disposições, desde que não constituam crime”.36 Assim, fica
estabelecido que os crimes militares devem ser apurados formalmente por meio de Inquérito
Policial Militar (IPM). Caso ocorram transgressões disciplinares, o processo formal para

35
Ver Código Penal Militar.
36
Ver Decreto nº 8.962, de 11 de março de 1981, que dispõe sobre o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar
do Estado da Paraíba e dá outras providências.
148

constatar a veracidade do fato será avaliado numa Sindicância, que se trata de um


Procedimento Administrativo. Assim como no IPM, segundo o dispositivo constitucional
elencado no Art. 5º, inciso LV, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes” (BRASIL, 1988).
Ao destacar, pois, a ampla defesa e o contraditório como recursos democráticos
legítimos inerentes ao acusado policial militar (sindicado), estamos também a falar de que, o
recurso da Sindicância é o modo que as pessoas podem utilizar para denunciar violações
cometidas pelos policiais militares. Poderíamos dizer que esse Procedimento Administrativo
trata-se de uma primeira instância em que as pessoas podem formalizar suas denúncias, pois,
ao final da Sindicância, que deve ser realizada no período máximo de vinte dias prorrogado
por mais dez dias, o responsável pela apuração do caso (que se trata de um Oficial policial
militar),37 pode indicar se houve a transgressão ou se houve crime militar. Se for constatado o
último, é aberto um IPM para um levantamento mais acurado das provas.
No momento dos depoimentos das supostas vítimas dos policiais militares ou das
testemunhas que possam ter observado a ação transgressora ou criminosa por parte de um
policial militar, pela força do dispositivo do inciso LV, do Art. 5º da Constituição Federal,
vítimas/testemunhas e acusados ficam frente a frente, “olhos nos olhos”, pois, os acusados
podem comparecer em todo o processo acusatório para garantir os seus direitos de defesa.
Caso os supostos acusados não sejam avisados pelo Oficial responsável (sindicante) do
horário e local dos depoimentos das pessoas que os acusam, o mesmo pode relutar contra tais
acusações mediante o dispositivo constitucional citado e pedir pela anulação do Procedimento
Administrativo. Até mesmo nas situações em que as pessoas da sociedade que são vítimas ou
testemunhas de delitos praticados pelos policiais militares têm a chance de denunciá-los, por
falta de uma legislação específica, acabam desistindo, em muitos casos, mediante uma
“violência simbólica” sustentada pelo medo de ficar de frente aos seus supostos algozes, já
que neste sentido “a insegurança é símbolo de morte” (DELUMEAU, 2009, p. 23).
O que estamos a destacar é que o sistema de justiça militar funciona de modo a
favorecer a impunidade e a prática da violência policial militar, visto que são os próprios
policiais militares os responsáveis por julgar as infrações cometidas pelos “companheiros de

37
De acordo com as normas regulamentares policiais militares, o quadro organizativo das instituições PM‟s
comportam dois quadros funcionais distintos: o de Oficiais e o de Praças. Apesar de ambos os quadros terem
divisões hierárquicas que distinguem as diversas localizações dos servidores policiais militares dentro das
organizações PM‟s, a divisão basilar permite especificar que aos Oficiais cabem as funções de comando e às
Praças às funções de execução. Para conhecimento do Quadro Hierárquico da Polícia Militar do Estado da
Paraíba ver Lei nº 3.909, de 14 de julho de 1977.
149

farda”. Além disso, se existe uma legislação penal específica para os militares, é também
porque estamos tratando de uma profissão que demonstra a existência de diferenças entre os
policiais militares e a sociedade, a qual é sancionada pela Justiça Comum.
Por esse escopo, o que está em jogo é a regulamentação da conduta dos policiais
militares, pois, “tais normas têm por finalidade disciplinar a atuação dos policiais em diversas
situações, sobre as quais a legislação penal não é muito clara. Visam, portanto, estruturar a
relação entre a polícia e a sociedade” (COSTA, 2004, p. 103). O que deve ser observado, no
entanto, é que o RDPM tem por princípio a correção de atitudes e comportamentos com fins
de fortalecimento da disciplina e da hierarquia pouco se atendo a regular as ações que dizem
respeito ao policiamento nas ruas, ou seja, “como o policial será avaliado pelas normas
ditadas pelo RDPM e não por sua atitude com a população, freqüentemente “bons” policiais
(do ponto de vista da hierarquia e disciplina) são flagrados em cenas de abuso de autoridade e
violência contra cidadãos” (Ibidem, p. 104). Então, se os desvios praticados pelos policiais
militares quando dizem respeito à quebra da disciplina e hierarquia têm mais relevância para a
instituição do que a violência praticada por seus agentes contra a sociedade, como se
estrutura, então, essa crença na importância da disciplina e hierarquia como forma de tornar
os policiais militares distintos da população civil?

4.2 – SOBRE A DISTINÇÃO POLICIAL MILITAR


Para entendermos como se estrutura o distanciamento entre a Polícia Militar e a
sociedade no cotidiano, comecemos este tópico relatando situações obtidas durante a
observação de campo. Ao conversar com um Capitão,o mesmo narrou-nos o fato de que,
quando ainda era Tenente, ele estava sendo levado por sua esposa de carro para o Centro de
Educação, quartel de formação dos policiais militares paraibanos, pois lá era seu local de
trabalho. Ao chegarem, sua esposa avistou o “corneteiro” do quartel e ela perguntou-lhe o
que aquele corneteiro fazia ali, o que foi respondido pelo então Tenente que: “ele estava ali
para dar os toques de corneta durante as formaturas e quando o Comandante entra e sai do
quartel”. E sua esposa ainda indagou-lhe: “E o Estado paga ele pra isso? Não era mais fácil
gravar os toques em um CD e colocar num sistema de som?”
No relato de um Sargento, o mesmo contou-nos que, quando da realização de uma das
edições do CESP (Curso de Especialização em Segurança Pública),38 um fato chamou sua

38
A participação no Curso de Especialização em Segurança Pública é obrigatória para os policiais militares que
estão no posto de Capitão, pois o referido curso funciona como requisito institucional para a promoção ao posto
subsequente de Major.
150

atenção. Um dos capitães do curso exigiu que a camisa branca usada pelos alunos do CESP
tivesse sua cor modificada para que eles não fossem confundidos com os alunos do CHO
(Curso de Habilitação de Oficiais), já que esses últimos também usavam cotidianamente no
curso que frequentavam uma camisa branca como fardamento, só que eles são
hierarquicamente inferiores aos capitães,39 pois quando se formam podem ser promovidos a 2º
Tenente, dois postos anteriores ao de Capitão.
A partir dos fatos narrados podemos começar a explicar o que passamos a conceituar
por “distinção policial militar”. Para tanto, também serão discutidos aspectos da literatura que
podem ajudar a compor um modelo “típico-ideal” da experiência e identidade de PM. Em
“Memórias de um Sargento de Milícias”, livro lançado em 1854 por Manuel Antônio de
Almeida, o autor nos traça um perfil do que era ser um meirinho “nos tempos do rei”,40 já que
eram esses os homens responsáveis por manter a ordem social, ou seja,

Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram
originais, eram tipos: nos seus semblantes transluziam um certo ar de majestade
forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda
casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo
aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja
significação ignoramos, e coroavam tudo isso por um grave chapéu armado.
Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava
de sua posição (ALMEIDA, 2012, p. 13-14).

Observamos nas palavras do autor um tipo de descrição que lembra a forma como
Foucault (1987) nos mostra que, durante o século XVIII o soldado passou a ser algo
fabricável. Só que, enquanto Foucault se volta a explicar a modelação corporal, as
características apresentadas por Manuel Antônio de Almeida prendem-se com mais afinco ao
uniforme usado pelos meirinhos e como o uso do “distinto traje” possibilita ao meirinho ser
“original”, de modo a deixar transparecer em seu semblante “um certo ar de majestade
forense”. De qualquer forma, estamos a tratar aqui de um conjunto de fatores que constroem
de “corpo e alma” (ROSA; BRITO, 2010) o ser militar, além de acrescentarmos a aparência
construída com base em elementos simbólicos, como os uniformes, que denotam a presença
dessa distinção.
Machado de Assis (2002) em seu conto “O espelho: esboço de uma nova teoria da
alma humana” retrata as memórias do personagem Jacobina, que relata a outros quatro

39
Para um melhor entendimento do quadro hierárquico da Polícia Militar da Paraíba ver Anexo A.
40
Entenda-se o período da presença da família real portuguesa no Brasil que aportou em nosso país em 1808,
quando da fuga das tropas de Napoleão Bonaparte que invadiu Portugal.
151

companheiros de conversa sobre como se deu a sua nomeação para alferes da Guarda
Nacional. O que se destaca é quando da visita a uma tia, a qual pediu a Jacobina que fosse
visitá-la, mas que levasse sua farda de alferes. Em meio aos carinhos e atenções dispendidos
ao alferes, o mesmo acabou por se transformar de maneira que,

O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se;


mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de
humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o
campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os
rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A
única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da
patente; a outra dispersou-se no ar e no passado (MACHADO DE ASSIS, 2002, p.
28).

O personagem Jacobina, “no fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era
exclusivamente alferes” (Ibidem, p. 29). Só que o adoecimento da filha de sua tia fez essa
última correr ao auxílio daquela, deixando o estimado alferes sozinho no sítio, pois os
escravos aproveitaram o momento oportuno para fugir. Restando como companhia para si a
solidão, o alferes decidiu então olhar-se no espelho que a tia depositara no quarto do sobrinho,
chegando-lhe a ideia de vestir a suntuosa farda de alferes. O acontecimento proporcionou-lhe
encontrar a si mesmo novamente, mesmo com a ausência das pessoas, pois “o vidro
reproduziu a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu
mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior” (Ibidem, p. 32).

FIGURA 28 (esquerda): Cadete da PMPB usando o azulão, uniforme que se destaca pelo uso de apetrechos
como a barretina, ou seja, cobertura adornada com penachos vermelhos que remetem aos tempos do Império
brasileiro.
FIGURA 29 (direita): Espadim Tiradentes: espada em miniatura que simboliza a passagem dos cadetes pelo
Curso de Formação de Oficiais.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
152

FIGURA 30: Chegada ao casamento de um cadete da PMPB de um convidado policial militar vestido
com a túnica utilizada em momentos solenes como a comemoração referida. Os cadetes se colocam no corredor
da igreja vestidos com o azulão e empunhando o espadim.
FONTE: Arquivos do autor (2013).

Essas referências permitem perceber um modelo identitário que caracteriza e constrói


o que Castro (2004) designou por “espírito militar” quando de seus estudos sobre a formação
dos cadetes na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), local de preparação dos
futuros Oficiais do Exército brasileiro. Tal “espírito militar” também foi observado por
Wright Mills (1981) quando o mesmo identifica os militares enquanto uma “elite do poder”,
pois, quanto à construção da identidade militar “na medida em que o sistema de treinamento
tem êxito, são também iguais (os militares) em reações e perspectivas. Têm, como se diz, o
“espírito militar” (p. 234).
Do mesmo modo, visto que as Polícias Militares no Brasil herdam o modelo de
formação do Exército, podemos perceber a existência de um “espírito policial militar”. Neste
caso, há as especificidades próprias a uma profissão de caráter “híbrido”, pois ao mesmo
tempo em que as Polícias Militares reproduzem a cultura militarista do Exército também
possuem outros elementos culturais próprios das exigências de suas prerrogativas
constitucionais, ou seja, preservar a ordem pública através do policiamento ostensivo fardado.
Ainda assim, Castro (2004) nos aponta a partir de suas conclusões sobre os ritos que
estabelecem a passagem dos alunos da AMAN recém-incorporados da condição de paisano
153

para a de militar que “a distinção entre militares e paisanos 41 é o passo primordial,


instaurador, do espírito militar” (p. 54).
É esse mesmo argumento que nos leva ao reconhecimento de uma “distinção” presente
também entre policiais militares e paisanos (os civis, as pessoas comuns na sociedade) que se
inicia pela conformação dos próprios quadros hierárquicos policiais militares, pois, se
estabelecem relações intramuros que configuram formal e informalmente diferenças entre os
policiais militares localizados numa profissão verticalmente organizada quanto às suas
atribuições e funções.
Essas condições nos indicam que a violência policial não pode ser a resposta plausível
sobre o distanciamento que se estabelece entre policiais e sociedade. Ou melhor, alguns
estudos (SILVA, 2002; SILVA, 2011; FRANÇA, 2012a; MUNIZ, 1999; ALBUQUERQUE
& MACHADO, 2001, SOUZA, 2012) já correlacionaram a formação policial militar com um
certo “ethos guerreiro” que socializa os policiais militares para o combate nas ruas, o que os
condiciona para uma guerra urbana com o fortalecimento de uma visão distorcida para com
ideais democráticos como os que estão próximos dos Direitos Humanos. Tais estudos se
aproximam da análise feita por Elias (1997) quando o mesmo estudou a sociedade alemã do
período bismarckiano (1871-1918), mostrando-nos o paradoxo entre uma sociedade regida
por princípios militaristas diante de valores de cunho humanitário que passaram a ser
considerados inferiores.
Nesse sentido, visamos compreender então um tipo de “racionalidade” institucional
construída com base na disciplina e na hierarquia (LEIRNER, 1997; DUMONT, 2008) e que
nos possibilita entender o significado do que vem a ser a “distinção policial militar”, que
questiona e confronta exatamente a possibilidade de se criar uma “polícia de proximidade”.
Dessa maneira, os estudos de Bourdieu (2007a, 2011) e Elias (2001, 1993, 2011, 1997)
tornam-se esclarecedores de modo que, segundo o próprio Bourdieu:

Sinto-me mais próximo de Norbert Elias, mas por outras razões. Não tenho em
mente o Elias das grandes tendências históricas, do “processo de civilização” etc.,
mas, antes, aquele que, como em La société de cour, capta mecanismos ocultos,
baseados na existência de relações objetivas entre os indivíduos. A corte, tal como
Elias a descreve, é um belíssimo exemplo do que chamo um campo em que, como
num campo gravitacional, os diferentes agentes são arrastados por forças
insuperáveis, inevitáveis, num movimento perpétuo, necessário para manter as
hierarquias, as distâncias, os afastamentos (BOURDIEU apud MARQUI JR., 2007,
p. 7).

41
Castro afirma que “‟paisano‟ é normalmente usado em lugar de “civil” mas, embora pareça ser a mesma coisa,
não é. “Paisano” é um termo claramente depreciativo”. In: CASTRO, Celso. O espírito militar: um antropólogo
na caserna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 41-42.
154

Nessas condições, estamos em busca da compreensão do que vem a ser distinção, ou


seja, “uma certa qualidade, mais frequentemente considerada como inata, de porte e de
maneiras, é de fato diferença, separação, traço distintivo, resumindo, propriedade relacional
que só existe em relação a outras propriedades” (BOURDIEU, 2011, p. 18, grifos do autor).
Esse processo de distinção pode ser percebido nas formas de relacionamento que Elias (2001)
estudou sobre a sociedade de corte entre o rei, os nobres e os burgueses em ascensão e, no
tocante aos policiais militares, a distinção funciona de modo a que eles (os policiais militares)
“distinguem e agrupam os agentes que mais se pareçam entre si e que sejam tão diferentes
quanto possível dos integrantes de outras classes, vizinhas ou distantes” (Ibidem, p. 24). Com
base nesse argumento, podemos dizer que os policiais militares, ao mesmo tempo em que são
todos agentes públicos também se dividem em grupos de status42 que existem dentro da
instituição policial militar e, são “diferentes”, pois, das pessoas civis que compõem a
sociedade. Como observa Sá (2002), por uma perspectiva eliasiana, ao analisar os principais
rituais do Curso de Formação de Oficiais, da então Academia de Polícia Militar do Ceará, é
que o cerimonial policial militar ratifica o distanciamento social entre superiores e
subordinados, de modo que essa formalização ritualística produz “distinção”.

4.2.1 –“O Senso de Distinção”


Como vimos no capítulo anterior, segundo Norbert Elias o desenvolvimento do
processo civilizador está atrelado às formas como o povo europeu (especialmente os
franceses), disseminaram uma visão de progresso que esteve voltada para as mudanças nos
modos de se comportar. Essa concepção acabou por estabelecer a dicotomia entre os
diferentes estratos sociais no período específico de transição em que, a partir da era medieva,
estabeleceram-se costumes que se transformaram ao longo do tempo.
Desse modo, a apropriação de comportamentos herdados na etiqueta de corte acabou
por estabelecer a maneira como determinados grupos de indivíduos passaram a enxergar seus
próprios comportamentos e atitudes como sendo superiores a outros que não adotavam esses

42
Acreditamos que a expressão “grupos de status” seja mais adequada para caracterizar, ao invés do conceito de
classe, mais próximo da perspectiva marxista, os segmentos sociais que compõem os quadros que formam os
profissionais policiais militares. Esse fato decorre da condição de que, por uma análise weberiana, grupos de
status seriam aqueles que lutam institucionalmente por outros valores que não apenas de origem econômica, ao
contrário, se destacam a honra, o poder e o prestígio, além de existir um senso de comunidade que se atrela à
busca de um mesmo fim e de uma visão de mundo compartilhada por parte de quem se situa no mesmo grupo de
status. Ver Collins (2009) e Weber (1982).
155

preceitos no convívio social. O processo civilizador, pois, não foi planejado, mas a
modificação nas formas de ser e agir dos indivíduos influenciou diretamente nos valores
culturais que determinaram a distinção entre eles.
Elias (1994b) nos mostra que padrões de etiqueta eram bem delineados em manuais
específicos de disciplinamento estético para com o corpo como, quando ele nos diz que, sobre
as maneiras de agir à mesa: “Não conserve sempre a faca na mão, como fazem camponeses,
mas pegue-a apenas quando dela precisar” (1994b, p. 105). Essa distinção dos modos de agir
era clara nesses livros, mas o importante é perceber a maneira explícita de como esses códigos
evidenciavam o distanciamento entre aqueles que deviam necessariamente adquirir esses
hábitos e os que serviam de referência negativa como não possuidores de tais predileções:

É sempre educado usar o garfo para levar carne à boca, pois o bom tom não permite
que se toque com os dedos qualquer coisa gordurosa. Se alguém faz isso, não pode
deixar de cometer depois várias incivilidades [...] o que não é permitido a pessoas
refinadas, bem-nascidas (Ibidem, p.106, grifo do autor).

As pessoas bem nascidas estavam categorizadas, entre os últimos séculos do período


feudal ao absolutismo, destacadamente os jovens, como aquelas que iriam ter a chance de
participar da sociedade de corte. Era para a aristocracia de corte que os tratados de boas
maneiras eram escritos, visto que essa “classe social” era detentora de novos padrões de
comportamento que exigiam refinamento e boas maneiras. Giddens (2002) amplia essa
compreensão e assevera que “hábitos de comer são exibições rituais em si mesmos, mas
também afetam a forma do corpo, talvez indicando alguma coisa sobre a origem do indivíduo
e sobre uma certa auto-imagem que ele ou ela cultiva” (p. 63). Elias (1994b) ainda acrescenta
que, “ao fim do século XVIII, pouco antes da revolução, a classe alta francesa adotou mais ou
menos o padrão à mesa, e certamente não só este, que aos poucos seria considerado como
natural por toda a sociedade civilizada” (p. 113).
Ao olharmos juntamente com Elias (2001) para a sociedade de corte francesa
comandada por Luís XIV, poderemos entender melhor como neste tipo de sociedade “o ser
social do indivíduo é totalmente identificado com a representação que lhe é dada por ele
próprio ou pelos outros. A lógica da corte é a de uma distinção pela dependência”
(CHARTIER apud ELIAS, 2001, p. 20-21). Além disso, temos que destacar, pois, a
originalidade pela qual se baseava a sociedade de corte, de modo que a submissão da
aristocracia como um grupo social provido de distinção era o que garantia a manutenção do
poder real, já que a dominação nessa sociedade se estabelecia por meio do monopólio fiscal e
156

militar e pelo uso da etiqueta de corte. E pelas palavras do próprio Elias, podemos indagar: “o
que os mantinha unidos, o que os caracterizava, justamente dessa maneira?” (2001, p. 65). E
ainda com o acréscimo de buscarmos entender, especialmente a partir da etiqueta de corte,
como esse mecanismo funcionava para os indivíduos exercerem e manterem a distinção
relativa a outros segmentos sociais. O que a perspectiva sociológica eliasiana nos revela sobre
a sociedade de corte é que esse mundo social se equilibrava sustentado por tensões e conflitos
entre nobres e burgueses para privilégio da posição assumida pelo rei que de certa forma
alimentava essas oposições em proveito próprio. No entanto, quanto ao que nos interessa
sobre o que caracterizava as formas de distinção podemos afirmar que,

Os cortesãos desenvolvem, no âmbito de determinada tradição, uma sensibilidade


extraordinariamente refinada para as posturas, a fala e o comportamento que convêm
ou não a um indivíduo segundo sua posição e seu valor na sociedade. Dedica-se uma
atenção extrema a cada manifestação na vida de uma pessoa, portanto também à sua
casa, para verificar se está respeitando sua posição dentro dos limites tradicionais
impostos pela hierarquia social. Essa atenção, assim como a consciência com que se
observa tudo aquilo que um homem possui como referência ao seu valor social e ao
seu prestígio, corresponde perfeitamente ao aparato de dominação absolutista de
corte e à estrutura hierárquica de uma sociedade centralizada em torno do rei e da
corte. Essa atenção e essa consciência são produzidas na camada dominante como
instrumentos de autoafirmação e defesa contra a pressão feita por quem ocupa um
nível mais baixo (ELIAS, 2001, p. 77).

A lógica social que imperava na sociedade de corte tinha suas particularidades e se


diferenciava da lógica burguesa. Para a nobreza importava o “consumo de prestígio” e, esse
ethos social pode ser melhor compreendido pela alusão feita por Elias (2001) a partir de Taine
sobre uma atitude tomada pelo duque de Richelieu, ou seja, esse último tinha entregue uma
bolsa de dinheiro ao seu filho para que o mesmo a gastasse como grand seigneur, só que, ao
contrário, o jovem retornou com o dinheiro, o que fez o duque jogá-lo pela janela diante do
filho. Esse exemplo retrata o fato de que estamos a falar “de uma sociedade na qual a posse de
um título de nobreza é mais valiosa, para quem cresce ali, do que a posse de uma riqueza
acumulada; na qual pertencer à corte do rei ou mesmo ter o privilégio de comparecer à
presença do rei é algo importante na escala dos valores sociais” (Ibidem, p. 94). Essa
condição implica na construção de uma interdependência de valores entre os indivíduos que
não dá margem para que um homem individualmente pudesse crescer sem ser atrelado aos
valores dispostos pela sociedade, os quais passavam a ser interiorizados. E nessa
configuração, a condição de ser um duque, um conde ou um privilegiado era o que dava
sentido à vida desses indivíduos, pois,
157

Qualquer ameaça à posição privilegiada de uma determinada casa, assim como ao


sistema hierarquizado de privilégios como um todo, significava uma ameaça àquilo
que dava valor, importância e sentido aos indivíduos dessa sociedade, a seus
próprios olhos e aos olhos das pessoas com quem conviviam e que tinham uma
opinião sobre eles. Qualquer perda de privilégio significava um esvaziamento de
sentido de suas existências. Em função disso, cada um deles tinha de cumprir,
também, com os deveres de representação que estavam ligados às suas posições e
aos seus privilégios (Ibidem, p. 95).

Nesse entendimento, a lógica social em torno do rei, ao qual eram dedicados atos de
submissão e reverência pelos cortesãos como aqueles que diziam respeito ao despertar do
monarca em seu quarto, bem como no da rainha, faz parte de uma organização a partir da qual
tais atos, mesmo não tendo objetivos práticos, ensejavam a busca e manutenção de prestígio.
Dessa forma, “o que dava a tais atos seu significado grandioso, sério e grave era tão somente a
importância que eles atribuíam aos participantes no seio da sociedade de corte, a posição de
poder relativa a cada um, o nível e a dignidade que manifestavam” (Ibidem, p. 103). E se
assim podemos nos expressar, o mecanismo responsável pelo padrão de conformidade e
estabilidade das posições de privilégio de cada um que compunha a noblesse, em meio às
tensões era a etiqueta, pois, para quem estava inserido nesta configuração social que era a
corte, a etiqueta possibilitava não só o prestígio, mas a própria existência social.
Com a etiqueta também se estabeleciam os vínculos hierárquicos na corte já que,
mudanças na hierarquia ensejavam mudanças nos padrões de etiqueta além de que alterações
nas regras de etiqueta condicionavam transformações na disposição social da corte e da
sociedade de corte. Tais condições faziam com que cada indivíduo se tornasse “extremamente
sensível a toda e qualquer alteração na engrenagem, vigiando com atenção as mínimas
nuances para que o estado de equilíbrio hierárquico vigente fosse conservado – quando não se
empenhavam em alterá-lo em benefício próprio” (Ibidem, p. 106). Nessa conjuntura, podemos
perceber que a sociedade de corte estava sedimentada num tipo de racionalidade particular
que se baseava na passagem das coerções externas para as internas, ou seja, no autocontrole
das emoções, de modo que desse processo surgiam comportamentos que estabeleciam as
diversas distinções entre os indivíduos. Assim, essa racionalidade era pautada no
“planejamento calculado da estratégia de comportamento em relação a possíveis perdas e
ganhos de status e prestígio sob a pressão de uma competição contínua pelo poder” (Ibidem,
p. 110). E mais, para se obter e manter esse capital cultural expresso na prática mediante o
corpo o que se tinha era o exercício dessa racionalidade de corte mediante o uso da elegância.
Eis, pois, no que consistia a distinção a partir da realidade encontrada na sociedade de corte
francesa esboçada por Elias (2001) na qual,
158

A elaboração meticulosa da etiqueta, do cerimonial, do gosto, das vestimentas, da


atitude e até da própria conversa tinha a mesma função. Cada detalhe constituía,
então, uma arma na luta por prestígio, de modo que elaborá-los não servia somente
para a representação ostentatória e para a conquista de maior status e poder, para a
segregação em relação aos de fora, mas também marcava mentalmente as distâncias
entre os membros da sociedade (ELIAS, 2001, p. 126).

Essa crença na existência de uma “boa sociedade” pautada na nobreza se sustentava


exatamente pela forma com que o olhar dos outros considerava o indivíduo que a ela estava
ligado, pois, neste caso, é a força da mentalidade coletiva que funda o sentido da existência.
E, por esse âmbito, o que traduz a importância do pensamento da coletividade na “boa
sociedade” era a honra, aqui entendida segundo Elias (2001, p. 112) como aquilo que
“expressava a participação em uma sociedade nobre. Alguém tinha sua honra enquanto fosse
considerado um membro segundo a “opinião” da sociedade e, portanto, para a sua própria
consciência individual. “Perder a honra” significava perder a condição de membro da „boa
sociedade‟” (Ibidem, p. 112).
De modo sintético, podemos afirmar que a dependência ao rei não era a única causa
que prendia a nobreza na sociedade de corte, mas também a situação pela qual só através
dessa dependência que garantia o acesso à corte é que os nobres podiam garantir a distância e
se sentirem distintos perante os outros e em relação a eles mesmos, confirmando assim suas
identidades e existências sociais, tendo a etiqueta como palco de apresentação dessa
sociedade. Então, para além de gastos financeiros, os nobres participavam de uma
configuração na qual importava buscar prestígio e também o “dinheiro que alguém possuía ou
ganhava. O favorecimento do rei, a influência sobre a sua amante ou sobre os ministros, a
participação em uma determinada “panelinha”, a liderança no exército, o esprit, as boas
maneiras, a beleza do rosto etc.” (Ibidem, p. 117).
A partir de Elias (2001) podemos compreender como a sociedade de corte francesa
estabelecia diferenças entre os indivíduos no convívio social e, “por meio do questionamento
acerca da estrutura da sociedade de corte, temos acesso, indiretamente, a um entendimento
mais abrangente da nossa própria sociedade profissional-burguesa-urbana-industrial” (ELIAS,
2001, p. 65). Neste caso, em relação ao que visamos mostrar, ou seja, como se origina o
distanciamento entre policiais militares e sociedade no contato direto nas ruas enquanto um
mecanismo estratégico vinculado à biopolítica, a forma como Elias analisou a sociedade de
corte serve de parâmetro aos nossos propósitos, visto que as instituições policiais militares
também se configuram com base em elementos culturais e simbólicos que se assemelham às
formas de organização vividas na época da corte. Assim como a etiqueta, a disciplina nas
159

Polícias Militares também funciona como mecanismo de autorregulação corporal e mental


que de certa forma serve para legitimar as posições e o status que os policiais assumem dentro
da hierarquia organizacional.
Não estamos a afirmar que existem permanências dos hábitos da corte nas Polícias
Militares, mas que, importa-nos observar como se consolidavam as estruturas sociais próprias
à época da corte que ao mesmo tempo impunha comportamentos aos indivíduos os quais se
tornavam, a partir das atitudes assumidas na realidade da nobreza, condições favoráveis que
diferenciavam os indivíduos. Consolida-se, dessa forma, um jogo social que coloca em
disputa elementos materiais e simbólicos. No caso das Polícias Militares, nossa busca é
compreender que elementos como a autoridade podem ser questionados pela sociedade civil,
mas essa autoridade se impõe pelos policiais exatamente pelos padrões de distinção que eles
assumem devido aos símbolos usados, por exemplo, nos fardamentos utilizados durante o
policiamento nas ruas.
E quando argumentamos para mostrar que a distinção policial militar faz parte da
estratégia biopolítica atrelada ao dispositivo de disciplinarização, retomamos o que captamos
em campo ao observar a atuação dos policiais solidários. Quando da realização das “visitas
solidárias”, o que o policial militar faz ao aconselhar os moradores das comunidades é exercer
uma relação de poder onde suas palavras servem de considerações éticas a serem seguidas
pelo morador. O policial se coloca nesse sentido como um exemplo diferenciado de retitude,
pois mostra que tem domínio da situação e é capaz de compreender as situações nas quais os
moradores se envolvem num exercício de quarentena onde ele sempre estará pronto a
demonstrar qual o melhor caminho a seguir a partir de suas concepções. E se sua visão de
mundo está eivada pelos princípios normalizadores do militarismo, vê-se descortinar, pois, o
sonho militar de controle da sociedade por meio de parâmetros diferenciadores advindos dos
preceitos ensinados no mundo policial militar: exemplo de bom caráter, cidadania,
comedimento nas formas de ser e se comportar, motivo de orgulho para familiares e amigos,
aquele que se reconhece pelo senso de respeito, autoridade e organização. De maneira mais
detalhada,

A construção do ethos policial militar, ou melhor, a ressocialização no mundo da


caserna imprime marcas simbólicas que são visíveis ao primeiro olhar, que se
mostram evidentes logo no primeiro contato. O espírito da corporação encontra-se
cuidadosamente inscrito no gestual dos policiais, no modo como se expressam, na
distribuição do recurso à palavra, na forma de ingressar socialmente nos lugares, no
jeito mesmo de interagir com as pessoas etc. creio que mesmo uma pessoa
desinteressada e distante do universo dos policiais militares é capaz de notar
160

algumas características peculiares e até pitorescas do seu comportamento (MUNIZ,


1999, p. 89).

Assim, de volta ao desenvolvimento de nosso argumento, Elias (1994b, p. 115)


percebe a construção da relação entre estrutura social e a forma como os indivíduos se
comportavam no medievo e, segundo ele, como exemplo, a compulsão para uma conduta
refinada à mesa pressiona constantemente na mesma direção, na de um novo padrão de
maneiras à mesa. Claro que não só etiquetas à mesa foram observadas pelo autor, mas suas
considerações sobre os costumes foram amplas, indo além das minúcias sobre como portar-se
no ato de comer até os comportamentos entre os sexos, a hábitos como escarrar e assoar.

O refinamento da conduta diária nunca perde de todo, nem mesmo neste período,
sua importância como instrumento de diferenciação social. Mas, desde essa fase, não
desempenha o mesmo papel que na fase precedente. Mais do que antes, o dinheiro
torna-se a base das disparidades sociais. E o que as pessoas concretamente realizam
e produzem torna-se mais importante que suas maneiras (Ibidem, p. 115).

Para complementar a nossa análise, Bourdieu também observa, assim como Elias, um
elemento estruturador que objetiva os costumes para fazer com que esses, através da
incorporação de disposições necessárias pelos indivíduos, acabem se refletindo no meio social
com um papel estruturante através da homologia de comportamentos dos agentes sociais.
Nossa intenção é mostrar, pois, como as formas de diferenciação entre grupos, como o são as
Polícias Militares e a sociedade onde os PM‟s atuam, se estruturam em um mundo fechado
(assim como Elias observou no universo da corte) e se refletem no mundo exterior (o que para
Bourdieu caracteriza a “distinção”). No caso de Bourdieu, a distinção entre os grupos se
consolida quando os gostos e costumes surgem das relações estabelecidas entre os indivíduos
em sociedade, mas através de escolhas que ocorrem mediante uma autonomia exercida pelo
habitus. Nesse sentido, o habitus trata-se de disposições que duram e que surgem devido a um
processo de estruturação advindo do meio social, que o autor denomina de “campo”. Assim,
Bourdieu (2009) nos delega o conceito de habitus que seriam,

Sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas


predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios
geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser
objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o
domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los (p.87, grifo do autor).

Ao mesmo tempo, depois de incorporadas, essas disposições são direcionadas para os


diversos campos que existem em sociedade agindo como elementos estruturantes, visto que as
161

ações, comportamentos, pensamentos e sentimentos dos agentes sociais acabam sendo


levados ao meio social para que as relações se concretizem. Nessa perspectiva, os campos
funcionam como palcos de disputa pela manutenção e perpetuação dos elementos que possam
manter a distinção entre possuidores e não-possuidores dos diversos “capitais” que estruturam
a lógica desses espaços a partir da ação voluntária, mas ao mesmo tempo condicionada nos
agentes sociais.
Dentro dessa lógica, Bourdieu (2007a) destaca o “gosto” como fator importante para se
entender a conexão entre habitus e campo. O gosto passa a ser entendido como a escolha e
preferência de qualquer indivíduo por tudo que possa ser utilizado na implementação das
atuações sociais, tanto coletivas como individuais. A utilização tanto de elementos materiais
como simbólicos perpassam pela vontade dos agentes em gostar de algo, pois “é a partir da
relação da capacidade de produzir práticas e obras classificáveis e de diferenciar e de apreciar
essas práticas e esses produtos (gosto) é que se constitui o mundo social representado, ou
seja, o espaço dos estilos de vida (BOURDIEU, 2007a, p.162, grifos do autor).
Percebe-se, por esse enfoque, que os estilos de vida surgem com o desenvolvimento de
gostos específicos de acordo com o papel que cada um engendra na sociedade. Só que Elias já
havia nos alertado que a apropriação de determinados costumes não deixava espaços para uma
compreensão plena por aqueles que desenvolvem esses comportamentos, pois uma lógica de
estratificação se articula a partir da percepção que cada agente social passa a adotar
disciplinando esteticamente, de forma interna, seus padrões de conduta. No mundo cortesão, a
aristocracia via na manutenção dessas diferenciações externalizadas no trato do corpo com
padrões de etiqueta uma maneira de manter as relações de poder entre seus membros, o que
gerava, por conta das atitudes estabelecidas, uma classe diferenciada.
O que ocorre, na verdade, é uma luta constante entre os agentes sociais pela
apropriação de capitais específicos, que quando não materiais, podem ser simbólicos e
culturais. Assim, mesmo desenvolvendo certos costumes e inclusive tendo a capacidade de
classificá-los de acordo com a percepção que possuem do mundo no qual estão inseridos
(campos), os agentes sociais estão atrelados a uma lógica desigual de posse, onde seus hábitos
e comportamentos apenas reproduzem a manutenção da desigualdade. Nesse caso, as posições
assumidas nos campos pelos diversos agentes sociais passam a ser aceitas de modo que,
aqueles que estão na posição de subordinação não questionem tal situação.
Só que essa forma atual de dispor os elementos que estruturam o meio social e que
também legitima as desigualdades desse próprio meio evidencia o fato de que, gostar de algo,
enquanto um estilo de vida é uma prática condicionada e condicionante. É uma sistematização
162

de percepções individuais que se tornam um conjunto de combinações que estabelecem um


padrão organizado, fazendo os indivíduos perceberem-se como pertencentes a um
determinado grupo ou classe.

O gosto, propensão e aptidão para a apropriação – material e/ou simbólica – de


determinada classe de objetos ou de práticas classificadas e classificantes é a
fórmula geradora que se encontra na origem do estilo de vida, conjunto unitário de
preferências distintivas que exprimem – mobiliário, vestuário, linguagem – a mesma
intenção expressiva (BOURDIEU, 2007a, p.165).

Foi com o intento de explicar sociologicamente a dinâmica da apropriação desses


estilos de vida traduzidos na escolha pelo gosto que Bourdieu (2007a) nos legou, em sua obra
“A distinção”, dados que nos permitem observar como os agentes sociais comportam-se e
legitimam práticas desempenhadas por eles mesmos. Nesse estudo, diversos campos da vida
social foram analisados no tocante à relação estrutural-estruturante entre habitus e campos e à
luta engendrada por capitais específicos, indo para além da disputa por ganhos econômicos.
Vê-se que, em Bourdieu (2007a), o processo de proliferação dos estilos de vida,
concretizados pelo gosto por elementos materiais e culturais, e que são determinados pela
incorporação de habitus particulares, desenvolve-se de modo a estruturar uma estratificação
de classes mediante a aquisição de comportamentos e atitudes, num tipo de organização social
que se aproxima ao que foi dito por Elias sobre os padrões de etiqueta.
Alimentação, vestuário, lazer, veículos, gestos, maneiras de falar e comportar-se,
aquisição de objetos e mercadorias, consumo de obras artísticas, práticas esportivas, enfim,
Bourdieu (2007a) esclarece como os gostos mantêm os estilos de vida das novas classes
societárias e como, dentro desses padrões estabelecidos, uma dialética se reforça a partir da
aquisição e usufruto de todos os gostos. Assim, percebe-se que, dentro de campos
específicos, se delimitam classes dos que possuem o acesso e a posse de bens materiais,
culturais e estéticos que determinam maneiras distintas de manter ideais de existência, e os
que não possuem esses bens, tendo acesso a outros considerados de baixa “qualidade” e que
despertam condutas próprias de uma classe “inferior” na lógica dos campos. Na classificação
que estabelece para distinguir o gosto entre as diferentes classes sociais, Bourdieu refere-se às
classes das profissões liberais ou dos quadros superiores como aquelas que se orientam para o
“leve, delicado, requintado” (2007a, p. 176), em contraposição ao gosto popular,
caracterizado pela predileção ao “pesado, gorduroso e grosseiro” (Ibidem, p. 176). Nessa
oposição incide a consequência de que, sobre os estratos superiores citados “a abolição dos
163

freios econômicos é acompanhada pelo fortalecimento das censuras sociais que interditam a
grosseria e a grossura em benefício da distinção e da finura” (Ibidem, p. 176).
Para Bourdieu (2007a), a representação do antagonismo de classes se dá mediante a
prática dos gostos de luxo (ou de liberdade) e gostos de necessidade. Os primeiros são
próprios dos indivíduos que possuem as condições de acesso aos bens materiais e simbólicos
e que estão distanciados dos mecanismos de necessidade; eles garantem o acesso aos capitais
próprios de seu campo. Os segundos dizem respeito aos indivíduos que realizam suas
vontades atreladas à necessidade de realizá-las, distanciando-se da liberdade de escolha,
mesmo que numa percepção bourdieusiana a liberdade seja uma condição estruturada
vinculada ao habitus. Portanto, assim como a aristocracia de corte seguia costumes
específicos (os padrões de etiqueta), para denotar sua nobreza como modo de ser, condições
que eram exteriorizadas através da corporeidade, Bourdieu (2007a) afirma que,

A propósito das classes populares, seria possível falar de comer sem formalidades,
do mesmo modo que se diz falar sem papas na língua. A refeição é colocada sob o
signo da abundância. São preparados pratos “elásticos” e “em fartura”. Ao “comer
sem formalidades” popular, a burguesia opõe a preocupação em comer nos
conformes. Nunca se deve dar a impressão de precipitar-se sobre a comida. A pessoa
deve proceder com discrição (p.185-186, grifo do autor).

Ao destacar ainda as condições sociais voltadas para o cerimonial à mesa e ao ato de


alimentar-se no mundo burguês, depreende-se que “a maneira de apresentar a alimentação e
de consumi-la, a etiqueta orientando a conduta, a maneira de servir ou de se servir, o próprio
requinte das coisas consumidas” (Ibidem, p. 187), tornam-se as marcas sociais distintivas que
passam a diferenciar os que usam esses atributos “daqueles que se abandonam às satisfações
imediatas do consumo alimentar” (Ibidem, p. 187). Além disso, quando da mudança das
disposições distintivas e com o acesso das classes dominadas às práticas consideradas
próprias às classes dominantes, articulam-se outras formas de segmentação. Como exemplo,
sobre as práticas desportivas, era comum à aristocracia, para conformar seu modo esnobe de
representar-se socialmente, estar voltada, para esportes como o futebol, o rúgbi, a luta ou o
boxe, isso no surgimento dessas modalidades na França. Só que, com a popularização de tais
práticas, com a “vulgarização” das mesmas, “deixaram de ser o que eram em relação à
realidade e à percepção que os dominantes tinham a seu respeito” (BOURDIEU, 2007a, p.
203).
O que se pode notar é que a distinção de classes surge das dicotomias na apropriação de
costumes e gostos que acabam por diferenciar essas mesmas apropriações, em favor de
164

classes consideradas superiores. É a possibilidade de deslocamento desse processo


segmentador que conduz nosso olhar para as instituições policiais militares e suas
interdependências específicas, que acabam por gerar processos sociais de distinção. Por um
prima histórico, “por conseguinte, acham-se na sociedade de corte, de um modo aberto e em
larga escala, alguns fenômenos que são encontrados atualmente de modo muito mais velado e
dissimulado sob a superfície das organizações altamente burocratizadas” (ELIAS, 2001, p.
154), o que nos faz tentar entender tais fenômenos nas Polícias Militares.
Assim, ao observarmos o fenômeno da distinção entre policiais nas Polícias Militares
brasileiras, seguimos os passos de Nummer (2010) ao considerar preferências distintivas na
Brigada Militar gaúcha enquanto estilos de vida que podem ser analisados a partir da
interrelação estabelecida com a construção de identidades profissionais, pois “as profissões
são mais do que funções sociais especializadas que as pessoas desempenham de acordo com
as necessidades de outras: são uma das múltiplas dimensões das identidades dos sujeitos,
sendo capazes de gerar esquemas de percepção e ação no mundo social” (NUMMER, 2010, p.
66). Neste ponto, estamos a falar de uma concepção subjetiva moldada por técnicas
específicas (FOUCAULT, 1987) que passam a conformar a estrutura social própria aos
policiais militares que condicionam uma trajetória profissional particular a cada um, mas
voltada à crença a partir de então em oposições com o meio social vivenciado pelos outros, os
civis. Tem-se, por esse olhar, que o “ser militar” enceta um modo específico de relações que
determinam atitudes corporais e morais baseadas numa visão de futuro que consolida a crença
em qualificativos que fortalecem a identidade profissional (DUBAR, 2005), ao ponto da
dimensão pessoal confundir-se com o mundo social incorporado cedendo sua autonomia para
esse último que se torna uma “subjetividade militar” (ROSA; BRITO, 2010).

Na administração cotidiana dessa subjetividade parece ser preciso se manter


vigilante, em uma espécie de estado existencial de prontidão, jamais perdendo de
vista o comprometimento de sempre “honrar a farda” “em cada ação realizada”, “em
cada ideal alcançado”, em suma, “em cada exemplo deixado” (MUNIZ, 1999, p.
100).

Mas como essas características distintivas dos policiais militares são construídas?

4.2.2 – Os Mecanismos de Distinção na Polícia Militar


Neste momento, para entendermos a construção da distinção policial militar, teremos
que passar a compreender os diversos elementos que a consolidam, visto que esse tipo de
distinção se estabelece em conformidade à identidade policial militar e ao tipo de socialização
165

específica a ela vinculada. Isso quer dizer que, falar da socialização policial militar é
descrever diversos aspectos da formação profissional (gênero, cultura, honra, entre outros).
Nesse contexto, partamos a partir da compreensão dos valores sociais baseados no machismo
e na dominação masculina (BOURDIEU, 2002) que podem ser percebidos em sua
manifestação no tipo de formação e cultura profissional encontrados na Polícia Militar, visto
que essa instituição herdou o modelo de organização do Exército. Nesse sentido, a obra de
Falconnet e Lefaucheur intitulada “A fabricação dos machos” (1977) torna-se esclarecedora.
Ao descortinarem as diversas nuances que fortalecem a cultura machista e masculinizada que
projetam o homem como sujeito dominador e ativo na sociedade capitalista, o que
consequentemente delega à mulher o papel de subalternidade que a acompanha no transcorrer
histórico do Ocidente, os autores reportam-se às características militares como um dos vetores
que privilegiam a manutenção da ideologia masculina. Quando o “ser homem” diz respeito a
atributos específicos que emergem da competição própria entre os machos. Para se ter uma
vida de homem deve-se seguir o mundo simbólico de estar sempre pronto a guerrear, a
utilizar-se de armas e de lutar com afinco pelo poder. A “virilidade” é algo estreitamente
relacionada aos militares e, como a hierarquia é um princípio basilar da vida da caserna,
afirmam os autores que os homens “gostam de ganhar, de dominar, e não questionam a
hierarquia social quando esta joga em seu benefício. Não procuram escapar às relações de
domínio senão quando estas lhes são desfavoráveis” (FALCONNET; LEFAUCHEUR, 1977,
p. 57). Nesse contexto, o sistema militar demonstra como se configuram as relações sociais de
domínio e como essas são fortalecidas pelo reconhecimento de que atividades sem sentido
podem ganhar importância para provar o exercício da autoridade:

Os depoimentos sobre os estágios-comando do exército francês e os métodos ali


utilizados para acertar os passos dos jovens soldados o confirmam: medir um pátio
de caserna com um fósforo não parece uma atividade indispensável à sobrevivência
da espécie ou ao bom desempenho da economia, mas é sempre um recurso para
obrigar ao reconhecimento da autoridade e das relações de domínio (Ibidem, p. 59).

Falconnet e Lefaucheur (1977) afirmam que exércitos e polícias usam de elementos


como a força e a violência para incutir o papel de virilidade aos rapazes que incorporam
nessas instituições, o que acaba por fortalecer a ideologia dominadora dos homens. Loriga
(1996) também contribui para ampliar essa visão ao analisar a inserção dos jovens na
experiência militar nos nascentes exércitos europeus que surgiram com a dissolução do
Ancien Régime, já que nesse período eram admitidos além de homens jovens, adultos e
166

velhos. Com o recrutamento obrigatório a partir de fins do século XVIII que estipulou a
conscrição entre os 20 e 25 anos, a virilidade masculina passou a ser um componente
norteador do “espírito militar” e ela era buscada nas formas de educar os soldados física e
moralmente. Essa educação para a virilidade baseada no recrutamento para o combate
adquiriu ritualidade existencial e, o campo de guerra tornou-se local de prova sexual, por
sancionar a inserção dos jovens na fase viril de suas vidas.
No tocante à realidade das Polícias Militares brasileiras, acrescentamos que um
exemplo par excellence na construção dessa identidade masculina pode ser vista no constante
exercício dos corpos nos cursos de formação. Para além das atividades físicas que fazem parte
do currículo, alguns ritos informais aceitos e defendidos pela cultura militarista como as
flexões de braço, que no seio policial militar é comumente chamado de “pagar”, acompanha
os alunos em todos os momentos e lugares que fazem parte do Centro de Educação. Isso
implica dizer que, caso um superior hierárquico ordene ao aluno que ele “pague”, não
importando o local ou circunstância, ele terá que cumprir a “missão”. Essa situação acontece
em muitos casos quando um superior hierárquico ou aluno precedente43 se utiliza desse
recurso corporal que exige um certo esforço físico, e até mesmo psicológico, para fazer o
subordinado ser retaliado por algo que fez de errado, ou ainda pode acontecer em situações
que servem para destacar o brio, a força, o vigor, o orgulho pelo fato de ser um policial
militar.

43
Entre os alunos do Curso de Formação de Oficiais, o qual funciona durante um período de três anos, o que
existe entre eles é a precedência hierárquica, ou melhor, o aluno do 3º Ano, que está prestes a concluir o curso e
se formar, deve ser obedecido pelos alunos do 2º e 1º Ano, assim como os do 1º obedecem aos do 2º. Nesse caso,
se diz que os alunos precedentes são mais antigos em relação aos seus inferiores de anos anteriores, os quais são
chamados de mais modernos. A mesma lógica funciona entre alunos de outros cursos como o de soldados e
sargentos, onde os últimos em contato com aqueles podem prescrever-lhes ordens. Além disso, esse tipo de
classificação hierárquica acompanha os policiais militares durante toda a permanência na instituição, desde o
ingresso até a ida à reforma (aposentadoria), em todos os postos e graduações.
167

FIGURA 31: Cadetes do 1º Ano “pagam flexões” com os do 3º Ano durante a semana de adaptação dos recém-
egressos na Polícia Militar.
FONTE: Arquivos do autor (2013).

As “pagações” podem ser individuais ou em grupo sempre com um superior à frente


ordenando o exercício. Como exemplo, recordamos de uma situação na qual estávamos na
condição de aluno no CFO no ano de 2006 e fomos convidados a participar dos Jogos
Esportivos Internos na Universidade Federal da Paraíba. Na partida final do futebol de salão
masculino entre o Curso de Educação Física e o CFO, inicialmente os cadetes chegaram ao
ginásio, para torcer, e ficaram todos juntos e isolados em uma parte da arquibancada oposta ao
público civil que assistia ao evento e, todos estavam uniformizados de forma igual com um
agasalho de passeio que identifica o curso. Após uma situação que envolveu os jogadores na
quadra, os cadetes na arquibancada esqueceram que existiam árbitros para normalizar a
partida e invadiram a quadra para lutar contra os jogadores da equipe do curso de Educação
Física. Depois do tumulto ser resolvido e, após as pessoas deixarem o ginásio, restando
apenas a permanência dos cadetes que só poderiam ir embora mediante a ordem superior do
Capitão que estava responsável, esse mesmo Oficial elogiou a atitude da invasão tomada
pelos cadetes e os últimos para demonstrar a força e virilidade do que é ser um cadete e um
policial militar foram ao chão para pagar flexões. Para além do ato violento e da afirmação
masculina inerente à profissão PM, o que se destaca exatamente é a distinção existente entre o
“nós”, policiais militares e, o “eles”, os paisanos. E ainda existe um componente sobre o ato
168

de “pagar flexão”, pois, para aqueles que fazem isso com os punhos fechados (ou melhor, na
expressão nativa “punhos cerrados”), ao invés de fazerem com as mãos abertas com as palmas
voltadas para o chão, denota mais resistência e força, o que se torna motivo de orgulho para os
que conseguem. O que deve ficar claro é que essas práticas se consolidam durante os cursos
de formação. Só que é nesta fase na vida profissional dos alunos policiais que eles começam a
interiorizar o habitus que os ensinam o sentido da distinção entre ser um policial militar e um
paisano.
169

FIGURA 32 (Acima): Os cadetes pagam flexão durante uma aula de tiro. A cadete que por motivos de saúde não
pode fazer o exercício fica com os braços distendidos paralelos ao solo.
FIGURA 33 (Centro): Os cadetes recebem instrução debaixo de chuva, pois nem os fatores climáticos devem
abater um policial militar.
FIGURA 34 (Abaixo): Um cadete mais antigo ordena que um aluno mais moderno pague flexão dentro da sala
de aula.
FONTE: Arquivos do autor (2013).

Em meio ao enaltecimento de uma cultura de valorização da virilidade, o sofrimento


surge como outra característica importante na formação PM (FRANÇA, 2014) para a
consolidação do ethos guerreiro, pois, como nos diz Bertaud (2013) sobre se conseguir um
“brevê de virilidade militar”, “os recrutados não o obtêm senão após um rude aprendizado em
que não faltam nem os sofrimentos físicos nem as dores morais. Os ritos de passagem aos
quais são submetidos transformam seu corpo e marcam para sempre seu espírito” (p. 80).

FIGURAS 35 (Esquerda) e 36 (Direita): Um cadete e uma cadete se arrastam em exercício noturno.


FONTE: Arquivos do autor (2013).
170

Para Oliveira (2010a), o que está em jogo é a visão que se cria em relação ao corpo
pela sociedade e, em particular, pelos policiais militares, pois, para os últimos, é algo
corriqueiro a assertiva que se traduz num corpo que “quanto mais malhado e forte, mais
disposição o possuidor deste demonstra ter para enfrentar a criminalidade. Nesse sentido, é
comum a associação entre o corpo e um ideal de masculinidade comum à instituição policial”
(OLIVEIRA, 2010a, p. 2). Ainda alude o mesmo autor para o fato de que “para muitos
policiais, um corpo malhado é um ideal que precisa ser atingido através de um duro trabalho.
Por outro lado, o corpo malhado mostra a classe social dos indivíduos” (Ibidem, p. 2). Está-se
a falar de um corpo, pois, que paradoxalmente se encontra entre uma condição atrelada à
natureza humana e, ao mesmo tempo, é resultado de uma construção social. Para Foucault
(1987), a partir do século XVIII, o soldado tornou-se algo que se fabrica e, o corpo,
especialmente em locais como os quartéis, passou a ser um elemento de “docilização” e
“utilidade”, ou seja, transformou-se no alvo de técnicas disciplinares que acabaram por
fortalecer o que Foucault (1987, 2003) conceituou de “poder disciplinar”. Enquanto um
elemento de transmissão do poder disciplinar, o corpo tornou-se um alvo da disciplina, pois
essa última trata-se de uma tecnologia política dos corpos que deve passar a adestrá-los.
Como afirma Mauss (2003), para o corpo ser tecnicamente adestrado, não é preciso que essa
técnica seja mediada por um instrumento, basta apenas que o corpo se vincule a atos e ritos
que sejam transmitidos com base na tradição (assim como o é a disciplina militar), pois o
adestramento, como a construção de uma máquina, visa à aquisição de um rendimento. Nessa
busca, o corpo é ensinado a evitar o erro seguindo o exemplo e a ordem.

FIGURAS 37 (Esquerda) e 38 (Direita): Alunos e alunas policiais realizam exercício na barra fixa.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
171

FIGURA 39: Alunos policiais militares pagam flexão com roupas civis.
FONTE: Arquivos do autor (2013).

Essa realidade na construção corporal dos policiais militares como mecanismo de


distinção nos remete a Wacquant (2002) quando o mesmo etnografou uma Academia de boxe
e constatou que, sobre o fato de se tornar um boxeador ocorre uma imbricação entre práticas
corporais e disposições mentais que conforma um modelo adequado às exigências do campo.
Em um sentido bourdieusiano temos que, “o salão de boxe é o vetor de uma desbanalização
da vida cotidiana, porque ele faz da rotina e da remodelagem corporal o meio de acesso a um
universo distintivo, em que se misturam aventura, honra masculina e prestígio”
(WACQUANT, 2002, p. 32, grifos do autor). E ainda se estabelecem similitudes entre o
mundo policial militar e o universo pugilístico quando os próprios boxeadores acreditam que
a Academia de boxe funciona como uma instituição quase total, à semelhança do Exército, já
que, o que se pretende no treinamento é “regulamentar toda a existência do boxeador – seu
uso do tempo e do espaço, a gestão de seu corpo, seu estado de espírito e seus desejos”
(Ibidem, p. 75).
Essa construção da virilidade masculina atrelada a uma cultura militarista encontra nas
Polícias Militares terreno fecundo para concretizar-se e, pelo fato das instituições policiais
militares reforçarem a crença dos valores masculinos, a violência policial então surge como
um valor intrínseco a esse “estilo de masculinidade” (OLIVEIRA, 2010a). Nesse âmbito
descortina-se, a partir de um saber prático adquirido nas ruas, e orientado pelo senso de
distinção aprendido durante as fases iniciais de inserção no mundo policial militar, um olhar
172

por parte dos policiais militares em relação à sociedade e aos diversos segmentos que a
compõem, num tipo de relação baseada

Na “lógica da desconfiança” e da “confiança” comum em ambos os lados. É comum


os policiais identificarem corpos de traficantes a partir de características ligados aos
estilos juvenis de masculinidade das classes populares. Nesse sentido, os policiais
normalmente abordam homens negros que estejam com os cabelos pintados de loiro
A princípio essas associações não têm nenhuma razão para o leigo, mas no “saber
das ruas” elementos que a priori não tem nada em comum, ganham significados
diferentes e assim um sentido especial que é utilizado para classificar o público, as
coisas, os gestos, as ações, enfim, a sociedade (OLIVEIRA, 2010a, p. 5).

No que concerne às questões de gênero, as relações intra corporis também fazem parte
do arcabouço cultural construído para legitimar a distinção policial militar. Na crença de que
estamos a defender o ponto de vista a partir do qual essa distinção própria aos policiais
militares se consubstancializa por meio de variados elementos, forte se torna então, pela
existência da masculinidade PM, uma masculinização das profissionais femininas que atuam
nas Polícias Militares. Assim, sobre a construção da diferença entre policiais masculinos e
mulheres policiais, Oliveira (2010b, p. 4) relata essa contradição na Polícia Militar do Rio de
Janeiro que, “opondo masculinidade a feminilidade, muitos policiais acreditam que as
mulheres não estão preparadas para combater a criminalidade que se encontra nos morros e
favelas, sendo que essa atividade deve ser desempenhada pelos „homens de verdade‟”. O que
ocorre na construção desse imaginário é que, além da estigmatização para com as mulheres no
que concerne ao desempenho do serviço ordinário nas ruas, para as mesmas destacarem-se
como “policiais de verdade”, ou devem adotar posturas masculinizadas no seio dos ritos
cotidianos inerentes ao uso de símbolos e posturas corporais exigidos pelo disciplinamento
militar, ou devem agir nas ruas para conquistar espaço entre os homens como policiais
operacionais, ou seja, imitando o ethos guerreiro para o combate tão enaltecido pelos policiais
masculinos. Ou melhor,

O universo da APM44 é representado como um espaço social essencialmente


masculino, no qual a mulher eventualmente sobrevive. Esta percepção tem gerado
algumas estratégias de comportamento por parte das cadetes femininas, como a de
tentar apresentar as mesmas expressões marciais com as quais o cadete masculino é
representado. Isso se torna mais fácil de observar, à medida que a FEM 45 se
apresenta com trejeitos masculinos, como, por exemplo, a impostação grave da voz,
a prestação automática da continência, enfim, com atitudes viris exigidas pelo
militarismo. Esses fatos contrariavam “outros objetivos” que orientaram o ingresso
das mulheres nas PMs brasileiras, “o de modernizar as PMs e „humanizar‟ sua

44
Academia de Polícia Militar.
45
Forma abreviada de feminino e expressão comum para os policiais militares se referirem às mulheres policiais.
173

imagem social, fortemente marcada pelo envolvimento com a ditadura” (SILVA,


2011, p. 164-165).

Por esse viés, segundo Bourdieu (2002), ao descrever etnograficamente o processo de


dominação masculina entre os berberes da Cabília, o exercício da “coragem”, exigido e
aplicado pelas forças armadas ou pelas polícias, legitima-se de forma contraditória no medo
que existe para não se perder a estima ou a consideração do grupo, o que pode negativamente
suscitar o reconhecimento por uma atitude de ordem feminina, como categorias que remetem
a “fracos”, “delicados”, “mulherzinhas” ou “veados”. Nesse entendimento, “o trabalho da
polícia é guiado por uma ética interna que valoriza aspectos da masculinidade e atitudes
sexistas com o lugar diminuto das mulheres, não só do ponto de vista numérico, mas também
simbólico” (SOUZA, 2012, p. 220). Essa realidade ainda se amplia no contato mais íntimo
que possa existir entre homens e mulheres nas Polícias Militares, que se traduz no fato das
últimas buscarem evitar essa aproximação para não serem identificadas pejorativamente por
terem mantido relacionamentos amorosos com mais de um militar e passarem a ser apontadas
como “mulheres fáceis”, ou que se tornaram troféus que foram alcançados pela cobiça
masculina e viril dos policiais (SOUZA, 2012; OLIVEIRA, 2010b).
Para Bourdieu (2002), essa legitimação está calcada num processo de socialização do
biológico e de biologização do social que produz corpos e mentes conjugados numa relação
invertida de causa e efeito que destaca a naturalização do que seja masculino e feminino por
meio de uma visão socializada. Assim, essa construção revela os “gêneros” como habitus
sexuados, em que o princípio de naturalização constrói a divisão de gêneros na realidade bem
como na representação dela. O que essa dinâmica institucional demonstra é que a lógica
presente nas relações de gênero entre os policiais militares caminha no sentido da
conformação, naturalização e reforço da distinção policial militar, pois ao se adequarem aos
papéis masculinos estabelecidos, as mulheres também, quando nas ruas tenderão a manter o
distanciamento da sociedade construído com base nos símbolos militaristas e reforçados pelo
ideário cultural do policial enquanto um “ser distinto” do paisano ou do bandido.
Na tentativa de melhor entender como se constrói o reconhecimento do policial militar
como um profissional que introjeta uma visão de mundo a partir de sua profissão que
dimensiona seu distanciamento da sociedade habitada pelos paisanos, fui “perturbado” em um
certo momento pelo “estranhamento” comum aos antropólogos em meio ao meu próprio
universo profissional. Quando convidado para o casamento de um casal de amigos, ele
Tenente da Polícia Militar e ela cadete, o olhar do cientista foi despertado quando eu estava na
174

festa após a cerimônia religiosa. Até então eu tinha participado de outros casamentos de
militares, mas não tinha “desnaturalizado” algumas situações exatamente por ainda não
possuir o olhar do sociólogo. Foi então que um elemento que para todos da festa pode ser
considerado simples, por ser algo comum em comemorações de casamento, aguçou minha
curiosidade, pois o bolo, que sempre fica em lugar de destaque, trazia no seu topo bonecos
que simbolizavam os noivos, sendo que o boneco que representava meu amigo estava vestido
com a túnica militar, um uniforme usado pelos policiais militares para solenidades especiais e
festas como as formaturas dos cadetes. Além disto, o boneco estava fazendo “flexão” em cima
do bolo. Esse fato me levou a buscar fotos de outros casamentos que revelassem essa atitude
por parte dos nubentes policiais militares e, minha percepção se constatou. Ou melhor, passei
a enxergar que utilizar bonecos vestidos de policial em cima de um bolo de casamento denota
que esses profissionais precisam mostrar o quanto são diferentes em relação aos modos de ser.
175

FIGURA 40: Bolo de casamento de dois policiais militares da PMPB (Acima, à esquerda).
FIGURA 41: Bolo de casamento de um Tenente da PMPB (Acima, à direita).
FIGURA 42: Bolo de casamento de um policial da PMPB (Abaixo, à esquerda).
FIGURA 43: Bolo de casamento de um Tenente da PMPB (Abaixo, à direita).
FONTE: Arquivos do autor (2013).

Além disso, o casamento do amigo ao qual compareci ainda me revelou outra fonte de
dados interessante para que eu percebesse o significado do que passei a conceituar como
“distinção policial militar”. É próprio aos Oficiais policiais militares, quando da saída dos
noivos de uma igreja, serem saudados por amigos de profissão, exclusivamente Oficiais, num
rito cerimonial denominado institucionalmente de “teto de aço”. Esse rito consiste num
corredor formado pelos policiais, todos trajados com um uniforme adequado para a ocasião e
armados com uma espada que simboliza o fato de se pertencer ao ciclo dos Oficiais. Ao
passar pelo corredor, os recém-casados são saudados com as espadas erguidas ao alto e, em
pares, dispostos à frente e um ao lado do outro, os policiais fazem as espadas tilintarem,
exibindo um som promovido pelas lâminas e que simbolizam aquele ato festivo com o modo
distinto reservado à cerimônia de casamento de um Oficial policial militar.

FIGURA 44: Cerimonial do teto de aço.


FONTE: Arquivos do autor (2013).
176

FIGURA 45: Casamento de um Soldado da PMPB.


FONTE: Soldado Varela da PMPB.

O que se observa nessa construção cerimonial, que vai desde o uso de elementos
simbólicos, como bonecos vestidos de policial militar em cima de um bolo de casamento até à
forma peculiar de usar trajes de gala da caserna para adentrar a uma igreja no ato majestoso
do enlace matrimonial (não importa se Oficial ou Praça), é que ser um policial militar diz
respeito a vivenciar plenamente de modo indiscernível a profissão e a vida privada. Nesse
sentido, “até a morte, seu nome (o do policial militar) será sempre associado ao posto
exercido na hierarquia de poder do seu grupo, sendo o nome forjado nas e pelas relações
domésticas e de parentesco, lançado a um plano secundário no contexto da própria identidade
pessoal” (SÁ, 2002, p. 15). Isso quer dizer que, o alcance dessa configuração social se estende
aos familiares a partir do momento que são reconhecidos como filho do Coronel A, ou esposa
do Tenente B, ou ainda sobrinho do Sargento C.
177

FIGURA 46: Espada utilizada pelos Oficiais policiais militares que demarca simbolicamente a
posição no Posto de Oficiais.
FONTE: Arquivos do autor (2013).

Assim como Elias (2001) nos mostrou a construção social de uma racionalidade
específica da sociedade de corte francesa, estamos a considerar a mesma proposição sobre a
Polícia Militar e suas idiossincrasias culturais e simbólicas. O que observamos é a presença,
no seio das relações entre os policiais militares, de uma crença que é introjetada
cognitivamente e que passa a orientar a construção social desses profissionais (BOURDIEU,
2007b, 2009), no entanto, como mecanismo biopolítico presente no dispositivo de
disciplinarização. Primeiro domestica-se e adestra-se os agentes policiais militares para que os
mesmos naturalizem o ideal militarista de ser. Depois, garante-se pela legitimidade
governamental de manter a ordem pública a presença policial nas ruas levando consigo o
modo militar de ser. Assim, torna-se conhecido da sociedade e do senso comum que os
militares, inclusive os policiais militares, são identificados pelos elementos simbólicos,
corporais e gestuais que os caracterizam. Basta lembrarmos dos desfiles cívicos em nosso país
e da semana da pátria quando vemos esses profissionais exibirem o “orgulho da nação” com
seus veículos, uniformes e maneira sincronizada de marchar (DA MATTA, 1990). O que não
se conhece com a devida profundidade, inclusive no meio acadêmico, é como esse habitus, no
sentido bourdieusiano, se constrói a partir de práticas cotidianas que passam a ser seguidas e
disseminadas pelos policiais militares, de modo a fazer com que eles creiam que a vida militar
e policial se confunda com as suas existências sociais, configurando o jargão próprio do seio
178

policial militar, ou seja, de que “eles são policiais militares vinte e quatro horas por dia”. De
certa forma, o que está em jogo nesse mundo de distinções é a “honra policial militar”.

4.2.3 – Sobre a Honra Policial Militar


Para os policiais militares, ser um policial é agir em conformidade com o orgulho
pessoal de usar a farda e de participar de uma instituição na qual todos também sentem a força
de que “a camaradagem estrita e a solidariedade fraternal são ensinadas nos quartéis, objeto
de regulamentação disciplinar e reforçadas nas ruas” (MUNIZ, 1999, p. 98). Como exemplo,
Nummer (2010), ao estudar a Brigada Militar do Rio Grande do Sul, e ao demonstrar o
corporativismo entre os policiais militares gaúchos nos diz, pela fala de um policial militar
que “Nós somos como uma família. Fez para um, é como se tivesse feito para todos” (Ibidem,
p. 199, grifos da autora). Essa ideia de corporativismo nas Polícias Militares se traduz na
crença de que existe entre os profissionais policiais militares um “espírito de corpo”. No
Estatuto dos Policiais Militares do Estado da Paraíba46 encontramos no Art. 26, Inciso IV,
elencado como uma das manifestações essenciais do valor policial militar o espírito de corpo,
que é definido como o “orgulho do policial militar pela organização policial-militar onde
serve” (CLPM, p. 50). Além disso, no Manual de Campanha do Exército C 22-5, que
juntamente com o Regulamento de Continências47 prescreve os exercícios de ordem unida, ou
seja, aqueles que ensinam a aplicabilidade da disciplina nos diversos âmbitos da vida militar,
e o qual é utilizado pelas Polícias Militares brasileiras, como forma de averiguar o índice de
eficiência da tropa, observa-se essa última mediante o espírito de corpo “pela boa
apresentação coletiva e pela uniformidade na prática de exercícios que exigem execução
coletiva” (MANUAL DE CAMPANHA, 2000, p. 5).
Desse modo, percebemos que descrever o espírito de corpo entre os policiais militares
é falar, em certo sentido, de um atributo moral que é compartilhado por todos na instituição
PM, o qual adquire um “senso prático” que externaliza uma crença coletiva, mas que deve ser
seguida por cada policial militar em particular. Se a disciplina como técnica, contida nos
regulamentos policiais militares e executada na prática sob diversos enfoques, é o que garante
a interiorização desse “orgulho” de cunho coletivo, estamos a destacar, pois, que existe uma
“honra policial militar”.
Para Souza (2000), ao partir da definição proposta por Pitt-Rivers, “honra é o valor de
uma pessoa aos seus próprios olhos, mas também aos olhos da sociedade. É a estimativa de

46
Ver Lei nº 3.909, de 14 de julho de 1977, contida na CLPM.
47
Ver Decreto nº 2.243, de 03 de junho de 1997, da Presidência da República.
179

seu próprio valor ou dignidade, pretensão ao orgulho, mas também o reconhecimento dessa
pretensão, sua excelência reconhecida pela sociedade” (p. 149, grifo do autor). Nesses termos,
a honra se configura com base em modelos hierarquizados, pois ela só pode ser conquistada
de acordo com a observância de comportamentos que se coadunem, por exemplo, segundo o
status de quem a possui. Para Elias (2001), como já frisamos em momento anterior, a honra
na sociedade de corte orientava os nobres, de acordo com um ethos próprio, ao
distanciamento de camadas sociais consideradas inferiores, o que acabava por legitimar a
existência da nobreza vista como a “boa sociedade”. A honra presente na nobreza de corte
mantinha-se como um atributo moral vinculada à posição que se ocupava e fazia com que seu
reconhecimento só existisse mediante as recíprocas opiniões que os nobres criavam na relação
de uns para com os outros. As opiniões reciprocamente criadas funcionavam como uma forma
de controle social na sociedade de corte e “por isso, nenhum de seus membros podia escapar à
pressão da opinião sem pôr em jogo sua qualidade de membro e sua identidade como
representante da elite, parcela essencial de seu orgulho pessoal e de sua honra (ELIAS, 2001,
p. 113).
No caso da honra policial militar, podemos dizer que a mesma se constrói a partir da
chegada de um novo integrante nos cursos de formação policial militar, não importa se no
nível dos Praças ou dos Oficiais. Estaríamos a tratar, neste sentido, de um fenômeno que, por
ser fortalecido por prescrições regulamentares, acaba por se caracterizar como um dos
principais fatores de distinção nas ruas entre policiais militares e paisanos. E para que o
policial militar exerça atributos distintivos que o diferencie e o enalteça perante o público
interno e, especialmente externo, “parece ser preciso se manter vigilante, em uma espécie de
estado existencial de prontidão, jamais perdendo de vista o comprometimento de sempre
“honrar a farda” “em cada ação realizada”, “em cada ideal alcançado”, “em cada exemplo
deixado” (MUNIZ, 1999, p. 100). Ainda mais,

O uso parcimonioso, formal e autorizado do expediente discursivo – encenado


principalmente na presença de oficiais superiores, autoridades e cidadãos
prestigiados pela força – é apresentado para o mundo externo como uma das muitas
demonstrações do caráter sedutor da etiqueta e da cortesia militares. Somam-se a
essa negociação peculiar com a palavra os inúmeros sinais emitidos pela linguagem
corporal. Certos movimentos milimetricamente desenhados no espaço, tais como a
forma impávida de caminhar; o jeito exaustivamente ensaiado de deixar o corpo
“descansar”; o modo vigilante, observador e, ao mesmo tempo, discreto do olhar; a
pose ereta, fazendo sempre um invejável ângulo de 90º com a base; a gesticulação
econômica e precisa evidenciam, entre outras coisas, o apego afetivo e moral à
similitude estética. Anunciam que toda essa teatralidade retrata o amor aprendido
pela disciplina – valor em boa medida reiterado no corpo por uma espécie de
obsessão pela correção postural (MUNIZ, 1999, p. 91-92).
180

Nesse caminho, a honra policial militar nos leva a observar que existem
regulamentações formais que, aliadas a condições simbólicas próprias à instituição PM, como
os diversos ritos que sustentam sua cultura e elementos distintivos como o fardamento,
concretizam um fenômeno que passa a ser interiorizado por cada membro criando uma rede
de coerções mútuas (ELIAS, 2001). Essa rede funciona nas cobranças formais e informais
entre os diversos segmentos hierárquicos como entre os próprios pares de mesmo posto ou
graduação, criando um controle social recíproco entre todos, de modo que os desvios e erros
de comportamento passam a atingir o “pundonor policial militar”. A honra aqui também opera
como fator articulador de manutenção do status de cada membro da Corporação, que evita a
reprovação do olhar alheio (dos demais companheiros de farda, não importa se subordinados,
pares ou superiores) para manter o orgulho de pertencer àqueles que honram a farda que veste
e, ao mesmo tempo, de manterem a distinção perante o público externo, com o diferencial de
também evitar as diversas punições com força de lei e que perseguem a todo o instante os
policiais militares. Por esse mote, os policiais militares, “durante a maior parte de suas vidas
na atividade, vestem as fardas, portam as armas e usam os distintivos de suas corporações,
estando neles expressa a dignidade autoproclamada do grupo” (SÁ, 2002, p. 67).
Conheçamos, pois, alguns dos principais atributos que fortalecem a honra policial militar,
todos encontrados no Estatuto da Polícia Militar.48

DO VALOR POLICIAL MILITAR

- O sentimento de servir à comunidade estadual, traduzido pela vontade inabalável de cumprir


o dever policial militar e pelo integral devotamento à manutenção da ordem pública, mesmo
com o risco da própria vida;
- O civismo e o culto das tradições históricas;
- O espírito de corpo, orgulho do policial militar pela organização policial militar onde serve;
- O amor à profissão policial militar e o entusiasmo com que é exercida; e
- O aprimoramento técnico-profisional.

48
Tomamos como referência o Estatuto da Polícia Militar do Estado da Paraíba. No entanto, pelo fato das
Polícias Militares do Brasil serem regidas por códigos normativos e culturais análogos, como podemos observar
quando Nummer (2010) destaca alguns princípios éticos da Brigada Militar no Rio Grande do Sul, acreditamos
que, com poucas variações, esses atributos sejam utilizados por todas as Polícias Militares.
181

DA ÉTICA POLICIAL MILITAR

- Amar a verdade e a responsabilidade como fundamento da dignidade pessoal;


- Exercer com autoridade, eficiência e probidade as funções que lhe couberem em decorrência
do cargo;
- Respeitar a dignidade da pessoa humana;
- Cumprir e fazer cumprir as leis, os regulamentos, as instruções e as ordens das autoridades
competentes;
- Ser justo e imparcial no julgamento dos atos e na apreciação do mérito dos subordinados;
- Zelar pelo preparo próprio, moral, intelectual, físico e também pelos dos subordinados,
tendo em vista o cumprimento da missão comum;
- Empregar todas as suas energias em benefício do serviço;
- Praticar a camaradagem e desenvolver permanentemente o espírito de cooperação;
- Ser discreto em suas atitudes, maneiras e em sua linguagem escrita e falada;
- Abster-se de tratar, fora do âmbito apropriado, de matéria sigilosa relativa à Segurança
Nacional;
- Acatar as autoridades civis;
- Cumprir seus deveres de cidadão;
- Proceder de maneira ilibada na vida pública e na particular;
- Observar as normas de boa educação;
- Garantir assistência moral e material a seu lar e conduzir-se como chefe de família modelar;
- Conduzir-se mesmo fora do serviço ou na inatividade, de modo que não sejam prejudicados
os princípios da disciplina, do respeito e do decoro policial militar;
- Abster-se de fazer uso do posto ou da graduação para obter facilidades pessoais de qualquer
natureza ou para encaminhar negócios particulares ou de terceiros;
- Abster-se o policial militar na inatividade do uso das designações hierárquicas quando: em
atividades político-partidárias, em atividades comerciais, em atividades industriais e para
discutir ou provocar discussões pela imprensa a respeito de assuntos políticos ou policiais
militares, excetuando-se os de natureza exclusivamente técnica, se devidamente autorizado; e
- Zelar pelo bom nome da Polícia Militar e de cada um dos seus integrantes, obedecendo e
fazendo obedecer aos preceitos da ética policial militar.
182

DOS DEVERES POLICIAIS MILITARES

- A dedicação integral ao serviço policial militar e a fidelidade à instituição a que pertence,


mesmo com sacrifício da própria vida;
- O culto aos Símbolos Nacionais;
- A probidade e a lealdade em todas as circunstâncias;
- A disciplina e o respeito à hierarquia;
- O rigoroso cumprimento das obrigações e ordens;
- A obrigação de tratar o subordinado dignamente e com urbanidade.

Entre todos os atributos demonstrados destacamos o valor de “servir à comunidade


mesmo com o risco da própria vida” e, o dever também de arriscar a vida “pela dedicação
integral ao serviço” e à “fidelidade à instituição a que pertence”. Nosso olhar se volta para um
dos principais instrumentos que enaltecem a honra policial militar, ou seja, “o compromisso
policial militar”. No Estatuto da Polícia Militar, no Art. 31 destaca-se que “Todo cidadão,
após ingressar na Polícia Militar, mediante inclusão, matrícula ou nomeação, prestará
compromisso de honra, no qual afirmará a sua ACEITAÇÃO consciente das obrigações e
dos deveres policiais e manifestará sua firme disposição de bem cumprí-los”. E, para
exemplificar, entre os compromissos existentes na Polícia Militar, tem-se aquele que diz
respeito à promoção de um Oficial ao primeiro posto de sua carreira, o qual, em uma
solenidade especialmente programada declara: “Perante a bandeira nacional e pela minha
honra, prometo cumprir os deveres de Oficial da Polícia Militar do Estado da Paraíba e
dedicar-me inteiramente a seu serviço”.
Essa disposição em assumir um compromisso baseado na honra arriscando até mesmo
a própria vida em função do desempenho da atividade profissional nos leva a enxergar mais
uma dimensão que consolida a honra policial militar, ou seja, o seu aspecto heróico. Só que,
neste caso, devemos deixar clara a diferença que existe entre a honra do guerreiro antigo e
medieval e do soldado moderno. Segundo Gros (2009), ao falar das forças morais vinculadas
à guerra, o problema ético do soldado diz respeito ao seu posicionamento diante da morte, ou
melhor, como se pode compreender o desprezo que o soldado cria pela covardia quando está
em combate. Assim, a guerra não estaria simplesmente vinculada ao ato de matar e morrer,
mas sim atrelada a uma condição moral e, nesse âmbito, pode-se destacar cinco princípios
morais que estão presentes ou que desencadeiam as condições de batalha: “superar”,
183

“suportar”, “obedecer”, “sacrificar-se” e “acabar de vez com” (GROS, 2009). Para nós,
importa demonstrarmos os três primeiros na intenção de explicar a diferença entre o guerreiro
antigo e medieval e o soldado moderno.
Assim, Gros (2009) explica-nos que a superação para o cavaleiro e para o guerreiro,
por exemplo, significa usar da força para fazer da morte algo incomum, visto que, no
combate, busca-se proeza e glória para que uma narrativa seja contada e que fique marcada na
memória dos homens. Essa vontade de alcançar a fama leva o ato heróico à coragem, a qual se
baseia na exposição pública do guerreiro no campo de batalha. Além disso, fazia parte da
ética bélica antiga a promessa como tradução de responsabilidade que se assume perante si
mesmo, ou seja, não uma ética jurídico-moral de cumprir um acordo formalmente
estabelecido, mas o cumprimento no futuro de uma palavra que se traduz em atos
heroicamente realizados. E esses atos também estão relacionados ao propósito de servir. Não
enquanto um exercício de submissão, mas sim como uma liberdade construída pela vontade
espontânea de servir a um rei, a Deus ou a um amigo. Nesse sentido, a honra opera quando o
guerreiro passa a construir sua imagem de acordo com o olhar alheio, pois é necessário que a
imagem construída de si de acordo com os atos realizados se coadune com a narrativa que
descreve a memória das batalhas. Nesse contexto também o que deve ser observado é que
para a ética guerreira o inimigo deve ser reconhecido em dignidade como um adversário, pois
“é preciso encontrar um adversário de sua qualidade e de sua força, do contrário não há senão
vitórias indignas; pois é meu adversário (do guerreiro) que detém a verdade de meu poder.
Impossível desprezá-lo; ele me exalta como eu o exalto” (GROS, 2009, p. 25).
Quanto ao ato de “suportar”, pode-se dizer, segundo Gros (2009), que existe uma
transição nesse princípio a partir dos duelos travados individualmente em busca de reputação
ou de glória pelo uso da força e da coragem, ou ainda com o apoio de um Deus. Como
exemplo, temos o surgimento das falanges gregas onde os homens passam a duelar unidos,
como em uma massa de corpos onde cada um guarda seu lugar mantendo a fileira. Todos se
protegem. A coragem adquire outro significado, pois quando se suporta a um ataque e o corpo
padece, ao contrário, a alma é enaltecida. É um exercício de constância onde a coragem surge
da paciência em suportar e fazer o sujeito eticamente defender suas convicções. Vê-se aí uma
coragem que entre os gregos antigos adquire um ideal de beleza e que, para os cristãos, se
traduz na capacidade em resistir às adversidades do mundo. Suportar, pois, como sinônimo de
coragem é ter que dominar a si mesmo de modo que “a superioridade moral daquele que se
mantém firme é que ele sente o medo e ao mesmo tempo o supera, ao passo que aquele que
ataca não faz senão afogá-lo num excesso de energia. Ser corajoso não é ignorar o medo”
184

(GROS, 2009, p. 41). Em acréscimo a essa consciência do medo e ao domínio de si, destaca-
se também outra dimensão que se relaciona à honra que sustenta a ética do guerreiro antigo,
ou seja, o cuidar do outro porque, neste sentido,

Com seu grande escudo redondo sustentado por seu braço esquerdo e posto no
ombro, enquanto que com a mão direita segurava a lança, o hoplita protegia o lado
direito contra seu adversário e ele mesmo recebia de seu companheiro de armas da
esquerda a proteção de seu próprio flanco direito, que de outro modo teria ficado a
descoberto. Eis porque era preciso conservar sua fileira e avançar em ordem. Era
preciso guardar seu lugar, manter seu posto porque a fuga ou a retirada significavam
imediatamente pôr em perigo o outro. E os que dessa maneira, unidos, avançavam
juntos em cadência, sentindo a espessura trêmula dos corpos, eram muitas vezes
irmãos, primos, pais e filhos, vizinhos próximos, familiares. E entre eles, o general
visível a todos, na primeira fila (Ibidem, p. 44).

Era o general, pois, que em nome da honra primeiro se expunha para que sua estima e
prestígio não fossem perdidos diante de seus companheiros de batalha. Era a imagem perante
o outro que estava em jogo e, por esse mote, o cuidado com o outro adquire uma face
negativa. Por outro lado, não abandonar o combate para salvar o outro era a essência da
coragem o que foi perdido com o advento da ordem moderna. Neste ponto, a honra do
guerreiro antigo se sedimenta como valor ético pela solidariedade e pelo senso recíproco de
proteção, onde o outro se torna mais importante do que a própria vida de quem quer proteger.
Ao contrário, os exércitos modernos podem ser compreendidos pelo princípio da obediência,
juntamente com mecanismos como a disciplina, a ordem, a submissão e o “automatismo
cego”.
É nesse contexto que podemos melhor entender como a distinção policial militar
funciona como um instrumento do dispositivo de disciplinarização ao condicionar os
profissionais policiais a interiorizarem a disciplina, a hierarquia e a ordem como elementos
que se coadunam à honra policial militar e como depois os princípios militaristas são levados
para a sociedade através dos policiais numa estratégia biopolítica através do policiamento
solidário. Estamos a discorrer neste momento sobre uma honra condicionada, construída com
base na disciplina, hierarquia, submissão, condicionamento e o automatismo a uma ordem
recebida. Como nos explica um Tenente entrevistado por nós:

Os praças não foram treinados a ter esse tipo de preocupação em fazer um trabalho
de polícia comunitária até porque a filosofia do praça de polícia é você mandar ele
fazer. Se você não manda ele fica na inércia até você mandar. Ele é treinado pra isso.
Ele não é treinado pra ter atitude. Ele é treinado pra você mandar e ele fazer. Se você
não manda ele não faz. E vai ficar rondando e atendendo ocorrência. Não vai ter essa
preocupação: “rapaz vamos parar aqui pra ver se a gente consegue estocolmizar esse
185

pessoal aqui, esse pessoal vire amigo da polícia”. Ele não tem esse interesse, a não
ser que você mande. “Rapaz, comece a ir naquela vendinha pra ficar frequentando
pra fazer amizade com aquele pessoal”. O treinamento do praça vai de encontro a
isso aí (Entrevista em 15/10/2014).

As palavras de um Sargento da UPS de Mandacarú, captada em entrevista, ratificam a


observação do Tenente; “Qualquer superior meu pode determinar, nem se preocupe que a
partir do momento que o Senhor me determinou aquilo ali a minha visão é concluir, cumprir e
bem feito” (Entrevista em 30/10/2014). Para Canetti (1995), a ordem funciona de modo a não
se admitir nenhuma resistência. Ela também não permite espaços para explicações,
ponderações e jamais deve ser colocada em dúvida. Além disso, a ordem deve ser
compreendida claramente para que seja de pronto executada, visto que, caso haja algo que lhe
interrompa a comunicação sua força pode ser prejudicada. No caso do soldado moderno, a
ordem o faz agir em nome do cumprimento de um dever, de modo que ele renuncie à sua
vontade e esteja sempre na expectativa de cumprir o que lhe foi mandado fazer. Sua ação é
sempre condicionada de maneira sincronizada com os demais soldados. Como exemplo, “uma
sentinela em pé em seu posto durante horas é o que melhor expressa a constituição psíquica
do soldado. Não lhe é permitido abandonar tal posto; ele não pode adormecer ou mover-se, a
não ser que certos movimentos delimitados com precisão lhe tenham sido prescritos”
(CANETTI, 1995, p. 312). Ainda como observa Canetti (1995), estar na posição de sentido
diante de um superior torna-se o momento vital na vida de um soldado. Como já
mencionamos, o soldado moderno é algo que se fabrica (FOUCAULT, 1987).

FIGURAS 47 e 48: Alunos policiais militares na posição de sentido de frente a seus superiores hierárquicos.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
186

Assim, o soldado moderno recebe treinamento para que possa receber ordens sozinho
ou em grupo, devido ao fato dos exercícios contínuos o terem habituado a executar
movimentos idênticos juntamente com outros soldados. Na busca da perfeição pelos
movimentos e ações realizadas com presteza e sincronização, o soldado moderno vive
constantemente na iminência de sanções decorrentes de transgressões insignificantes, o que o
faz evitar a todo momento incorrer em erros e realizar ações proibidas, pois ele torna-se “um
prisioneiro que se adaptou a seus muros; um prisioneiro satisfeito por sê-lo e que se opõe em
tão pouca medida a sua situação que os muros lhe moldam a forma” (CANETTI, 1995, p.
313). Esses muros passam a ser reconhecidos como sua nova natureza.
O que está em jogo, ao recobrarmos os princípios que caracterizam a batalha
apontados por Gros (2009), é a obediência. Essa terceira característica é própria do soldado
moderno e é um dos elementos principais que fortalecem sua honra, mas que nesse sentido
trata-se de uma honra construída com base na passividade e na docilidade. Nesse aspecto, os
combates individuais ou o modelo das falanges são substituídos pela busca do homem capaz
de produzir a guerra racional e perfeita. Essa “revolução militar” ocidental surgiu com o
advento dos pensadores das Luzes que iluminaram a razão na modernidade, desenvolvendo-se
entre os combates dos cavaleiros no final do século XV até o surgimento dos exércitos
modernos do início do século XVII. Tem-se assim, um contínuo processo de “racionalização”
nos modos de guerrear que inclui também uma nova subjetivação e socialização dos soldados,
onde tal processo engloba três dimensões, ou seja, a “intelectualização”, a “burocratização” e
a “disciplinarização” (GROS, 2009).
Segundo Gros (2009), a “intelectualização” pode ser vista como um modelo italiano,
onde a profissionalização do soldado é acompanhada por um movimento pelo qual a guerra
passa a ser vista como objeto de saber e de apreensão científica, ou melhor, a partir de
critérios racionais. Emerge desse fato a figura do general, que deixa de estar em destaque na
frente de seus homens para servir-lhes de exemplo e passa agora a elaborar planos e
estratégias fora de combate ou na retaguarda com seus Oficiais. O Exército transforma-se
assim numa máquina, num autômato que deve ser conduzido pelo general que se torna seu
cérebro e que usa do saber científico como a geometria e a matemática para elaborar os
modelos táticos de guerra. Não basta apenas na guerra moderna a coragem dos guerreiros,
importa principalmente o uso da técnica e da teoria com aporte científico, pois “a ciência
substitui a moral” (Ibidem, p. 54). A guerra passa a acontecer para se administrar as perdas
humanas, já que o enfrentamento direto é esquecido em nome de planos racionais que visam
187

estudar estrategicamente o inimigo como num jogo de xadrez onde o alvo principal é a
imobilidade dos movimentos do adversário ao invés de fazer-lhe perder suas peças.
Do modelo francês temos a “burocratização“. Essa consiste no atrelamento dos
exércitos à racionalidade estatal, ou melhor, vê-se descortinar nesse processo o surgimento do
Estado moderno como continuidade do Exército que garante não só a defesa do território por
meio das guerras, mas também a arrecadação de impostos que possibilitam a administração
estatal. Em contrapartida, essa mesma administração estatal passa a garantir também a
organização dos milhares de homens que compõem os exércitos com os recursos que os
mantêm bem vestidos e alimentados, além de se ter cavalos bem tratados e armas adequadas.
Em síntese, a burocratização militar permitiu uma centralização nas decisões que
conformaram dois quadros: uma minoria de planejadores e a maioria de executantes. Entre
esses, desenvolveu-se uma hierarquia graduada de superiores e inferiores com
responsabilidades determinadas pela posição que se ocupa e, a disciplina proporcionou uma
uniformização generalizada das regras que passaram a ser cumpridas por todos através dos
mesmos princípios. Articulam-se desse modo não só a vida aquartelada dos exercícios e
treinamentos, mas com ela o devotamento à função e o “espírito de sacrifício”, que faz da
obediência um componente imprescindível da honra do soldado moderno.
E como terceira dimensão da obediência, a “disciplinarização” é herdada do modelo
prussiano. A disciplina como técnica de adestramento dos militares age como um condutor
moral e como forma do soldado dominar a si mesmo no automatismo dos atos, na
proficuidade dos exercícios e na correção dos erros. Weber (1982) nos diz que foi a disciplina
do exército que deu origem aos processos disciplinares como o da fábrica moderna, visto que
ela é a essência do exército (CANETTI, 1995). Foucault (1987) também nos mostra que a
disciplina serve para tornar os corpos “úteis” e “dóceis”. E é pelo princípio de “docilidade dos
corpos” e da “obediência automática” (GROS, 2009) que a disciplina é um componente
fundamental na elaboração da honra do soldado moderno, pois,

Ao soldado não se pedem senão vigilância cega e mínima dos automatismos e dos
hábitos, a obediência irrefletida: que ele atire quando se lhe pedir, que se volte etc.
Já que a havia sido pensada como ciência, a batalha como objeto de cálculo físico, o
exército como máquina, então não se podia mais pedir ao soldado senão que fosse a
engrenagem passiva dessa gigantesca equação e que não consagrasse suas
faculdades morais senão à obediência cega, absoluta àquilo que lhe era ordenado e
cuja razão última não podia perceber (GROS, 2009, p. 63).
188

Portanto, a docilidade sobrepuja a coragem assim como o cálculo estratégico do


comandante torna-se mais valoroso do que a vitória da tropa. Assim, elementos como honra e
a coragem próprios da antiguidade cedem espaço para o hábito e o medo do superior, o que se
transforma na honra do soldado moderno. O corpo passa a ser treinado por exercícios
repetitivos e constantes acompanhados por regulamentos que prescrevem a força da hierarquia
e da disciplina. Estamos a falar, pois, de um conjugado processo jurídico-militar
(FOUCAULT, 1987; GROS, 2009) que se baseia na ideia de que receberá comando aquele
que não pode obedecer a si mesmo. O consentimento e a docilidade fizeram do homem
moderno aquele que faz da sua liberdade uma alienação voluntária na sociedade regida pelo
pacto contratualista, bem como, em tornar-se dócil ao renunciar à liberdade para que seu
corpo se submeta à aprendizagem ditada por um outro que a impõe.

FIGURA 49: Aluna policial militar durante exercício de aprendizagem na semana de adaptação.
FONTE: Arquivos do autor (2013).

Nesse percurso, por um mesmo viés explicamos que o aspecto heróico da honra
sedimenta-se no imaginário social policial militar, depois de consolidada pela formação e
socialização inerentes à profissão e reforçadas pelos valores, ética e deveres, os quais se
disseminam culturalmente nas relações intramuros e no trabalho de rua. É nesse sentido que
podemos falar de tipos diferenciados de policiais militares como o “rambo” (SILVA, 2002)
ou o “operacional (FRANÇA, 2012a), que são aqueles que experienciam o trabalho de rua
189

com mais afinco e desenvolvem um “ethos guerreiro” na luta que empreendem com os
considerados bandidos, marginais ou vagabundos. Esse modelo de policial consubstancializa-
se de modo particular nas tropas de operações especiais, os quais passaram a fazer parte do
imaginário nacional após a exibição do filme “Tropa de Elite” em nosso país, que retrata o
cotidiano da formação e atuação dos policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais
do Rio de Janeiro (BOPE). No universo do mundo real Storani (2008), ao etnografar
exatamente a formação de uma turma do BOPE no Rio de Janeiro demonstra-nos, ao
fotografar a tatuagem de um integrante do BOPE, a assimilação do ideal da honra heróica
entre esses profissionais, pois a inscrição tatuada no braço do policial destaca “Vitória sobre a
morte”. Tal inscrição pode ser encontrada na canção do BOPE que descreve “Vitória sobre a
morte é a nossa glória prometida”. Portanto,“o cumprimento das normas da corporação é um
fator necessário para que os policiais reforcem o compromisso com o ethos guerreiro, que se
sustenta na coragem e no compromisso com a unidade de seu grupo” (SOUZA, 2012, p. 246).
A dedicação total ao serviço, reforçada para além das prescrições institucionais, pelo
ideal culturalmente construído, interiorizado e incorporado, de forma que o risco no trabalho
se transforma, no caso mesmo da morte, em “glória imperecível”, oculta as relações de poder
presentes (FOUCAULT, 1987), as quais funcionam para reforçar o dispositivo de
disciplinarização, onde o mesmo adestra e controla aqueles que obedecem. Honra e disciplina,
pois, nas instituições policiais militares caminham juntas entrelaçando-se, já que policiais
disciplinados serão capazes, audazes e corajosos de manter seu compromisso de honrar a
profissão mesmo com o risco da própria vida.
190

FIGURA 50 (Acima, à esquerda): Escultura encontrada no Centro de Educação simboliza a honra policial militar
com a morte de um PM.
FIGURA 51 (Acima, à direita): Placa aos pés da escultura do policial morto ratifica discursivamente o valor da
honra policial militar que sacrifica a vida em defesa da sociedade.
FIGURA 52 (Abaixo, à esquerda): Frase que enaltece a honra policial militar.
FIGURA 53 (Abaixo, à direita): Memorial com placas que indicam a morte de policiais militares em serviço.
FONTE: Arquivos do autor (2013).

O que resulta desse processo é uma atitude de resignação que se traduz na honra
policial militar. Como exemplo, Gros (2009) nos leva a observar que, sobre a “Solução Final”
que exterminou milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial Arendt (1999)
demonstra que quando do julgamento de Eichmann, na verdade, esse último afirmou não ter
culpa do que aconteceu, pois agiu apenas porque recebeu ordens. Seria o que Arendt (1999)
denominou de a “banalidade do mal” onde a monstruosidade do sujeito moderno reside “nessa
renúncia a todo espírito crítico e um abandono de si. Tudo o que faz que um sujeito possa
dizer: „Eu não sou culpado, já que apenas obedecia‟” (GROS, 2009, p. 72). Bauman (1998b),
ao analisar o mesmo fenômeno afirma que a sociedade moderna carrega em si a dialética do
progresso e de suas consequências devido à racionalidade burocrática que possibilitou a
existência do holocausto. Ocorre então a coordenação, por parte da burocracia moderna, das
ações de indivíduos morais que agem com a intenção de atingir qualquer que seja o objetivo,
inclusive imoral. Seria “a produção social da indiferença moral” (BAUMAN, 1998b), já que a
ação moral não teria valor intrínseco em si e sim seria externamente analisada por critérios
diferentes dos que conduziram à ação realizada. Bauman (1998b) ainda nos explica que os
nazistas não se tratavam nesse contexto de pessoas “anormais”, tanto que foi preciso combater
os que queriam agir emocionalmente de modo que as ações individuais fossem transformadas
em atitudes impessoais, práticas e eficientes, pois o que importava era a rotina da organização
que deveria levar à realização da tarefa sanguinária com lealdade por meio da disciplina. A
presença da disciplina é o que faz com que o funcionário, por uma acepção weberiana, se
191

identifique com a organização e, neste caso, a “responsabilidade moral” é substituída pela


disciplina através da honra. Como consequência tem-se que “o aumento da distância física
e/ou psíquica entre o ato e suas consequências produz mais do que a suspensão da inibição
moral; anula o significado moral do ato e todo o conflito entre o padrão pessoal de decência
moral e a imoralidade das consequências sociais do ato” (BAUMAN, 1998b, p. 45), ou o que
esse autor denomina de “invisibilidade moral”, ou seja, consiste em tornar inumanos os que
serão vítimas. Canetti (1995), em pensamento análogo, analisa a atitude de um carrasco diante
da ordem recebida e explica que, ele tem consciência do que faz, mas ao executar alguém, por
confiar na ordem que lhe foi dada, sabe que nele nada se alterará e agirá sem sentir nenhum
tipo de culpa. Então, nesse conjunto que consolida e, ao mesmo tempo atrela consequências às
ações do soldado moderno a honra é construída com base na obediência, pois,

A resignação passiva e o zelo cego constituem as patologias éticas desse sujeito


político moderno, constituído no cruzamento do consentimento contratual e da
docilidade disciplinar, filhos da revolução militar, sujeito que consente livremente
com o que outros decidiram para ele e que perpetuamente dobra seu corpo, ao longo
das instituições e dos exercícios, da escola à fábrica, segundo os pontos do poder
(GROS, 2009, p. 72).

Um último aspecto da honra policial militar diz respeito agora à distinção a partir do
modo pelo qual os policiais militares constroem-se para serem vistos especificamente pelo
público externo e, como eles se movimentam para fazer funcionar essa distinção. Por esse
escopo, os elementos de construção desse contato seriam a posição ocupada na escala
hierárquica, o uso do fardamento, com todos os aparatos simbólicos que ele carrega, e o
próprio comportamento dos policiais. O que estamos a propor agora é um caminho de retorno
ao início deste capítulo, após termos discorrido sobre o argumento de que é a distinção
policial militar como mecanismo biopolítico que propicia o distanciamento dos policiais da
sociedade, sendo a violência não o elemento direto desse apartamento, como geralmente se
afirma devido à herança ditatorial, e sim consequência provinda dessa diferenciação.

Na relação entre Polícia Militar e comunidade, os PMs constroem estereótipos ou


modelos de comportamento para as pessoas da comunidade, baseando-se nos valores
militares, ou seja, aqueles enfatizados durante o que denominamos chamar de
processo de socialização na Academia de Polícia Militar. Esses estereótipos ou
representações criam certas expectativas nos PMs em relação ao comportamento dos
civis de uma determinada comunidade. Tais expectativas, geralmente, não
correspondem à visão de mundo dos civis, gerando um desnível de comunicação e
relacionamento entre uns e outros, o que pode resultar em violência policial. Essas
representações construídas socialmente durante o CFP 49 referem-se à expectativa de

49
Curso de Formação de Praças.
192

que os civis se comportem como os policiais militares que aprendem a ter uma
postura e compostura rígida desde os primeiros dias na escola de formação. Assim
como os PMs de baixa ou nenhuma graduação têm que se submeter aos oficiais ou
ao praça de maior graduação, assim também os PMs quando em serviço,
principalmente operacional, esperam que os paisanos folgados se submetam a eles
com o mesmo respeito e submissão (SILVA, 2002, p. 26-27, grifos do autor).

Nessas condições, Souza (2012, p. 246) nos relembra que “como um espelho, a
sociedade reflete a polícia e o que a instituição deseja ver, ou seja, a sua própria imagem,
íntegra e altiva diante de si, como o fez Jacobina, personagem de Machado de Assis”. Assim,
seguimos os passos de Leirner (1997), que enfatiza ser a hierarquia não apenas um princípio
legal através do qual os militares do Exército cotidianamente expressam os sinais de respeito
e de comando, de acordo com a posição que ocupam no regime intramuros da caserna, mas
também ela é determinante na estruturação das relações com o mundo civil. Por essa
perspectiva, podemos dizer que a hierarquia está presente no contexto histórico de surgimento
dos Exércitos modernos, na Europa, sem no entanto considerarmos, assim como Leirner
(1997), que a origem do problema no uso da hierarquia tenha respaldo nesse momento
histórico. Só que, no nosso caso, estamos a observar a hierarquia nas Polícias Militares e
como a mesma funciona vinculada à honra que se exterioriza do ambiente interno das
casernas para o mundo das ruas no contato com a sociedade e, de modo mais específico, situar
historicamente, ainda que de modo sucinto, explicações sobre a honra policial militar e
hierarquia e os mecanismos de distinção daí advindos. A partir de um olhar sobre os Exércitos
torna-se possível analisar as instituições policiais que em muito passaram a se organizar nos
moldes militares do Exército e, no Brasil, até hoje, as polícias estaduais responsáveis pelo
policiamento ostensivo e pela ordem pública carregam formalmente em suas organizações o
emblema distintivo do “ser militar”.
Essa problemática nos remete a observar o que nos relata Elias (1993) sobre a relação
entre o processo civilizador e a formação do Estado Moderno. Ocorre que, com a
fragmentação do sistema feudal, deixou de existir um sistema hierárquico de suserania e
vassalagem baseado na propriedade da terra que legitimava uma nobreza que se distinguia
socialmente pela linhagem, além desse mesmo estrato exercer o papel de classe guerreira, em
defesa das terras do rei, o que estipulava um vínculo de lealdade para a manutenção da
posição que se ocupava como nobre. Essa situação se alterou com o Absolutismo, pois, como
vimos, a sociedade de corte se estabeleceu sob a égide do monarca que centralizava o poder
em suas mãos mantendo uma tensão entre a nobreza (que perdeu o status de classe guerreira)
193

e a burguesia emergente. É nesse período que se inicia também a centralização estatal para a
defesa territorial e sem determinar um período preciso, podemos dizer a partir de Elias (1993)
que principalmente foram os nobres recrutados a exercer as funções de comando nas Forças
Armadas quando do estabelecimento do Estado-nação sob os auspícios de um mundo regido
pelo capitalismo.

Dessa maneira, uma das conseqüências da formação de exércitos por parte da


nobreza despojada de suas terras é a incorporação de valores e regras da sociedade
da qual emergia essa nova organização social à qual deve interpor-se. Mais do que
isso, a hierarquia, antes uma característica estruturante do sistema feudal como um
todo, encontra uma nova tradução da sua existência na gênese de novas
organizações. As antigas sociedades estamentais, que tão bem descreve Elias, na sua
lenta dissolução, lançam as sementes para que, numa nova e desconectada forma,
surjam as bases de uma outra comunidade, cujos pilares são a hierarquia e a lealdade
entre seus membros, o Exército Nacional (LEIRNER, 1997, p. 55).

Nossa intenção aqui não é aprofundar esse processo histórico que ressalta
particularmente o modo como a hierarquia se consolidou no Exército brasileiro nos padrões
vigentes de uma dita modernidade nacional50, mas apenas pontuar como as Polícias Militares
são herdeiras dessa forma característica de organização que alia formalizações burocráticas
impessoais com uma cultura informal baseada em aspectos de distinção. Então, por essa ótica,
mesmo tendo Portugal passado da Idade Média à Era Moderna pela consolidação de um
capitalismo politicamente orientado, já que a nação lusitana orientou-se por condições sócio-
econômicas pautadas num estamento patrimonialista comandado pelo rei e subsidiado pela
nobreza (FAORO, 2008), tem-se que, no decorrer do século XV, o Exército português
formou-se de modo análogo aos outros exércitos da Europa, pois com a diminuição da renda
da nobreza, em contrapartida aumentava o poder régio. Surge, assim, a “Oficialidade” e,
subordinada à mesma vê-se também surgir os não-nobres dos Concelhos que eram “burgueses
que, na sua maioria, procuravam através de feitos de guerra adquirir títulos de nobreza, ou
então, em caso de guerra, eram convocados por meio da força. De toda forma, o núcleo desse
“exército profissional”era composto pela “nobreza destituída” (LEIRNER, 1997, p. 56).
O decorrer histórico viu o modelo de distinção militar lusitano ser importado para o
nosso país onde adquiriu características próprias com o passar da colonização e do Império,
inclusive chegando às Polícias Militares, de modo que as condições culturais perpetraram-se e
desenvolveram-se até nossos dias criando uma certa “naturalização” no uso dos símbolos que
fortalecem o ideal da honra policial militar e do que conceituamos neste trabalho de

50
Para tal intento ver Leirner (1997), especialmente o Capítulo segundo intitulado “Breve História da Hierarquia
Militar”.
194

“distinção policial militar”. Nesse sentido, estamos a destacar a consolidação de uma certa
autonomia institucional que se distancia, por exemplo, da centralização absolutista na Europa
ou até mesmo no Império brasileiro, onde o monarca dirigia as forças da ordem sem a
presença de uma burocracia institucional efetiva. Está-se a falar, assim, de uma herança
cultural que se tornou regra nas Polícias Militares, pois,

A origem nobre de muitos oficiais do Exército português à época da Independência


é denunciada pelo fato de vários deles terem passado pelo Colégio dos Nobres de
Lisboa, pela Academia de Marinha ou terem pertencido à instituição do cadetismo.
O Colégio e a Academia exigiam qualidade de nobreza aos que nele quisessem
ingressar. O cadetismo, criado em 1757, tinha por objetivo favorecer a entrada de
nobres no serviço militar através da concessão de privilégios negados a outros
grupos sociais. O sistema foi abolido em Portugal em 1832 por discriminatório e
anticonstitucional, mas sobreviveu no Brasil até o fim da Monarquia, apesar de
padecer aqui dos mesmos vícios (FERNANDES, 2006, p. 200-201).

Fernandes (2006) ainda nos explica que, no Brasil, em particular, ao lado dos cadetes
existia outra forma de instituição de origem nobre, que era a dos soldados particulares, que
eram oriundos de uma “nobreza civil”, ou melhor, filhos de profissionais liberais. Assim, o
recrutamento militar em nosso período imperial comportou um favorecimento na entrada para
o oficialato de pessoas pertencentes às classes sociais dominantes, o que acabou por gerar a
distinção entre Oficiais e Praças. Com o passar do Império, prevaleceu o recrutamento da
nobreza militar em detrimento da civil e, quanto aos Praças, até 1916, eram recrutados
principalmente das classes baixas. Até o fim do Império brasileiro, porém, a maioria dos
generais ainda carregavam a distinção de possuírem o título de “nobreza sanguínea”. Segundo
Silva (2011), no período republicano após a Revolução de 1930, houve um resgate da
categoria cadete no Exército brasileiro pelo General José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque,
ele mesmo sobrinho do ex-presidente da República Epitácio Pessoa. O General foi o
idealizador da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), local de formação atual dos
cadetes do Exército e, para ele, retomar o termo cadete para os alunos em preparação ao
Oficialato do Exército representou a busca por uma nova elite social, uma aristocracia
baseada no mérito, não mais herdada de uma origem sanguínea como o foi no passado. Ao
citar Castro, Silva (2011) ainda explicita que a reforma da Escola Militar do Exército que
prepara os cadetes ocorreu especialmente e de forma estratégica no plano simbólico, pois, ao
“Corpo de Cadetes” se acresceu “o uniforme de gala que remontava às fardas do exército
imperial, o “Espadim de Caxias” que era cópia em menor escala da espada de Caxias, o novo
Regulamento Disciplinar do Corpo de Cadetes etc.” (SILVA, 2011, p. 72). No que tange às
195

Polícias Militares, a do Rio de Janeiro pode ser ilustrativa desse processo de incorporação dos
elementos simbólicos do Exército que conformam um sentimento de honra e distinção entre
os policiais militares, pois, em 1956 foi instituído o “Espadim de Tiradentes”, para uso dos
cadetes da Escola de Formação de Oficiais do Rio de Janeiro (SILVA, 2011).

FIGURA 54: Cadetes da PMPB em um baile de debutantes com o traje de gala. Todos seguram o
Espadim Tiradentes.
FONTE: Arquivos do autor (2004).

De modo geral, não importando o posto (quando Oficiais) ou graduação (quando


Praças), um dos principais elementos que denotam a distinção policial militar e,
consequentemente também, a honra policial militar, é o uniforme usado pelos policiais
militares. Por esse prisma, o uso do uniforme “é coerente com a ordem quotidiana e seu
formalismo é criado pela consciência aguda da ordem” (DA MATTA, 1990, p. 51), ou
melhor, os uniformes servem de comunicação simbólica, se assim podemos nos expressar,
não só entre os próprios policiais militares dentro da hierarquia interna, mas principalmente
com o público externo. Existem cerca de 73 diferentes uniformes na PMPB, excluindo-se os
que são normatizados para os alunos do Colégio da Polícia Militar51, que são regulamentados

51
O Colégio da Polícia Militar funciona dentro das instalações do Centro de Educação da PMPB (local de
formação dos policiais militares paraibanos) e nele estudam filhos de policiais militares e de pessoas das
196

para os homens, mulheres e tropas especializadas como o Pelotão de Choque e a Polícia


Ambiental. A forma para o uso de todos os uniformes encontra-se em partes específicas no
Regulamento de Uniforme da PMPB, o qual é dividido em quatro partes. A quarta parte desse
Regulamento em seu Art. 1º especifica que “O presente Regulamento contém as prescrições
sobre os uniformes da Polícia Militar da Paraíba (PMPB), peças complementares, insígnias,
distintivos e condecorações, regulando sua posse, uso, composição e descrição geral”.

comunidades adjacentes ao referido Centro. O Colégio da Polícia Militar funciona nos nível fundamental e
médio.
197

FIGURA 55 (Acima – esquerda): 2º Tenente da PMPB e o uso da luva (insígnia) por sobre os ombros em ambos
os lados como forma de demonstrar que ele faz parte do círculo dos Oficiais.
FONTE: Arquivos do autor (2014).
FIGURA 56 (Acima – direita): Luvas ou insígnias usadas pelos Oficiais das Polícias Militares como forma de
distingui-los institucionalmente dos Praças.
FONTE: Regulamento de uniforme da PMPB.
FIGURA 57 (Abaixo): 2º Tenente da PMPB vestido com o uniforme de passeio.
FONTE: Arquivos do autor (2014).

Em relação aos Oficiais, as luvas (insígnias) servem para referenciar os postos


(patentes), de acordo com cada posição que se ocupa na escala hierárquica (Ver Anexo B). No
caso dos Praças, os símbolos utilizados para caracterizar a distinção entre as diversas
graduações são conhecidos por divisas (Anexo B).
198

FIGURA 58(Acima): 3º Sargento da PMPB com a divisa correspondente à sua posição hierárquica no quadro
funcional da instituição. As divisas se encontram em ambos os braços.
FONTE: Arquivos do autor (2014).
FIGURA 59 (Abaixo): As divisas que representam as graduações (posições hierárquicas), dos Praças nas
Polícias Militares.
FONTE: Regulamento de uniforme da PMPB.
199

FIGURAS 60 (Acima) e 61 (Abaixo): Policiais da PMPB, uma Tenente e um Soldado, com o uniforme da tropa
especializada de choque.
FONTE: Arquivos do autor (2014).

Portanto, é o conjunto dos elementos simbólicos, éticos e culturais que consolidam a


distinção policial militar que fazem dessa última um mecanismo que fortalece o dispositivo de
disciplinarização. Nesse sentido, para haver a aproximação entre policiais militares e
moradores, a crença dos policiais baseia-se em mostrar a imagem positiva da instituição
traduzida na composição estética dos uniformes, bem como, no conjunto do comportamento
supostamente adotado por todos como seriedade, retitude de caráter, honestidade, de modo
que esses sejam aspectos humanos a serem demonstrados pelos policiais, mas que foram
construídos com base em princípios como a hierarquia e disciplina. Então, se os moradores
das comunidades transgridem a vivência dos aspectos citados, urge a presença da polícia para
ratificá-los e corrigi-los, num exercício de controle social que deve diferenciar os cidadãos
daqueles considerados como sendo das “classes perigosas”.
200

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos aqui a uma resposta, que não se pretende definitiva, para a indagação
inicial suscitada na introdução deste trabalho, ou seja, como a ordem, aqui traduzida pelos
organismos policiais militares em nosso país, está desenvolvendo modelos de policiamento
que possam ser reconhecidos pelo viés do discurso democrático? Assim, o que pretendemos é
responder a esse questionamento ao considerar que, no tocante à implantação do policiamento
solidário na cidade de João Pessoa, o qual se baseia na perspectiva de um policiamento de
aproximação com a comunidade (policiamento comunitário), o que temos é a consolidação de
uma estratégia biopolítica que conforma uma relação de saber-poder pautada no discurso da
democracia.
Para tanto, o nosso percurso procurou mostrar como o policiamento considerado
moderno surgiu na Europa, a partir de características que o notabilizaram como o elemento de
manutenção do Estado-moderno como uma força ao mesmo tempo preventiva e coatora, que
passou a garantir por meio do consenso com os cidadãos a ordem pública e a paz social.
Nesse contexto, importou aos governos criarem organismos policiais eivados por uma
organização burocrática no melhor sentido weberiano, incorporando elementos da
administração militarista como princípios organizativos para a gestão dos homens de arma,
para assim evitar a corrupção e o desvio de conduta daqueles que passaram a receber um
salário para agir em nome do povo através da manutenção da segurança pública. A violência
institucionalizada passa a ser utilizada como forma de garantia da harmonia social contra os
pretensos desviantes de um modelo ideológico de contrato social que garante a democracia.
Esse modelo desdobra-se para outros países como os Estados Unidos, a partir da Inglaterra,
mas falar das instituições policiais é destacar uma complexa miscelânea de fatores culturais
que oscila entre a formalidade e a informalidade, mas que garante a existência institucional a
partir dessa paridade. É por esse âmbito que tivemos, por exemplo, uma polícia francesa
herdada do Absolutismo monárquico que privilegiou uma instituição de cunho mais
militarista, dadas as propensões hierárquicas do modelo político vigente. Nesse esteio, as
polícias brasileiras surgem como um modelo híbrido, mas que se desenvolveu de acordo com
características próprias a partir de um modelo histórico-político que delegou a manutenção da
ordem pública a instituições que fez da repressão sua tônica central, especialmente a partir do
Império.
Nesse sentido, demonstrando a persistência da violência policial militar no Brasil,
chegamos à atualidade para analisar que a abertura democrática pós-regime militar trouxe
201

consigo a tentativa de outra forma de policiar a sociedade, a partir de modelos importados que
carregam a assertiva de uma polícia que trabalha juntamente com a população, ou seja, a
polícia comunitária. Assim como ocorrera principalmente em alguns países da Europa e nos
Estados Unidos, o modelo tradicional (profissional) de polícia passa a ser questionado
também no Brasil. Desse modo, fomos a campo pesquisar essa realidade a partir do recorte
analítico propiciado pela Polícia Militar da Paraíba, como dito, na cidade de João Pessoa, de
maneira que pudéssemos compreender o que se configura “sob a aparência da ordem”.
Analisamos documentos governamentais e da própria Polícia Militar. Entrevistamos os
policiais militares que trabalham diretamente nos postos de policiamento solidário e outros
que estão nos bastidores, na administração formal do projeto. Entrevistamos também policiais
militares que nos propiciaram um conhecimento não presente em referências bibliográficas
acerca do histórico da persecução na Paraíba do que vem a ser a polícia comunitária.
Conhecemos o cotidiano dos postos de policiamento solidário e analisamos também a
propaganda criada pelo governo do Estado da Paraíba e pela Polícia Militar para divulgar o
suposto sucesso do projeto. Observamos ainda uma reunião daqueles que administram a
Segurança Pública na Paraíba.
Com base nos dados, constatamos, a partir da visão dos próprios policiais, já que
abrimos mão da aproximação com as comunidades envolvidas por uma questão de segurança
pessoal, visto a posição assumida por este pesquisador em ser também um policial militar, que
o policiamento solidário está envolto por uma complexa rede de poder que cria efeitos e
consequências desconhecidas pelos policiais militares. Tem-se, pois, a partir do projeto de
policiamento solidário um poder que investe sobre a vida das comunidades, garantindo a
existência de um saber presente nas estatísticas oficiais do Estado e repassado em forma de
novos conceitos que garantem a legitimidade do processo. O que está em jogo é a afirmação
de um Estado atuante no campo da Segurança Pública oferecendo os serviços de uma Polícia
Militar agora não mais truculenta, e sim democrática e cidadã. Ainda mais com o acréscimo
de ser uma polícia assistencialista que se propugna a ajudar a comunidade a reconhecer os
seus problemas na tentativa de solucioná-los. Para tal, importa à comunidade ajudar os
policiais a combater o crime que amedronta a todos, legitimando um processo de higienização
pública contra aqueles que não aceitam transformarem-se em cidadãos sob os auspícios do
Estado e sua malha normalizadora aqui entendida pelo olhar foucaultiano.
Para além da “defesa da sociedade” das classes perigosas, há que existir o
consentimento das comunidades em aceitar a constante presença policial nas ruas, visto que o
policiamento solidário não se faz com policiais que visitam a vizinhança e cria laços
202

permanentes de confiança, mas com policiais fixos nos seus postos deixando àqueles que
rondam nas viaturas o trabalho de sociabilidade com as pessoas nas ruas. Ademais, o policial
solidário se vê na situação de oferecer regras morais aos moradores após as ocorrências e na
solução de situações conflituosas. Essa visita solidária, que faz funcionar o que passamos a
denominar nesta Tese de “sociabilidade estratégica”, é um tipo de aproximação entre policiais
e moradores que, segundo nossa ótica faz parte de um “dispositivo de disciplinarização”, ou
melhor, é a disciplina militar própria das casernas e que socializa os policiais na
aprendizagem de sua profissão que chega às ruas como modelo de adequação dos
comportamentos anormais. Enquanto os policiais militares participam de cursos de formação
onde o processo de socialização a partir da lógica militar se estende por meses ou anos (se
para Praças ou Oficiais respectivamente), os cursos de polícia comunitária duram entre uma
ou duas semanas e passam a afirmar a mudança dos policiais quanto a ser um profissional
comunitário, cidadão ou mais “humano”.
Essa lógica, pois, se desdobra por um duplo efeito, no qual a disciplina não se confina
aos ambientes de muros fechados e extrapola, pelo menos em sua idealização os quartéis,
deixando aos policiais mostrarem à sociedade o quão profícuo pode ser o adestramento de
condutas no meio social. Some-se a isso a “normação” biopolítica por meio dos cálculos e
táticas estatais, o que conforma um duplo processo disciplinador-normalizador vinculado ao
projeto de policiamento solidário.
A condição principal desse processo é que as comunidades devem atuar para sua
própria vigilância e, o poder nesse sentido se fortalece pela crença de que temos uma polícia
mais cidadã, mais democrática e mais humana. Aos que são perseguidos por serem
socialmente incompatíveis (e aqui não podemos fechar os olhos para as consequências
geradas pelos atos violentos das ditas classes perigosas), resta o embate com as forças
policiais para manterem outras lógicas, presentes neste mundo complexo, como a manutenção
do tráfico de drogas como meio de sobrevivência ou como forma de empoderamento, os quais
são elementos que fogem da nossa alçada analítica. Só que o bandido, delinquente, marginal,
enfim, enquanto um homo sacer que carrega sua vida nua e matável é aquele que deve ser
perseguido para legitimar a existência de um Estado que deixa a cargo das polícias militares a
incumbência de minorar as desigualdades sociais com programas assistemáticos como o
sopão da comunidade ou a escolinha de música e futebol que arrebata alguns jovens fazendo-
os distanciarem-se das drogas. Entre “parcerias preventivas” (o policiamento solidário) e as
medidas de “segregação punitivas”, desenvolve-se uma “cultura do controle” como nos
ensinou Garland (2001).
203

Nessa complexa rede, talvez os policiais militares e moradores de comunidade possam


ser vistos todos enquanto cidadãos, mas o cotidiano demonstra uma dissimetria entre os
mesmos por meio de uma distinção própria da profissão PM que deixa entrever que quem está
pronto a aconselhar e mostrar o caminho correto a ser seguido é o policial, não o morador. E
nesse sentido, acreditamos que antes da violência policial eclodir, existe todo um arcabouço
simbólico que a propicia, por meio de uma construção físico-moral que ensina aos policiais
militares que eles são diferentes dos paisanos. Percebemos por esse aspecto uma cíclica
configuração que, ao mesmo tempo em que fortalece a distinção policial militar através de
parâmetros como a honra policial, garante o contexto biopolítico do poder deixando a cargo
dos policiais levarem para a sociedade as regras do disciplinamento e da normalização. Neste
ponto, talvez tenhamos chegado no momento mais propício para afirmar, pela perspectiva
foucaultiana, que o sonho de militarizar a sociedade juntamente com a eclosão da razão
oitocentista não tenha se efetivado pela burocratização das instituições modernas com base na
disciplina, mas que tenha ganhado mais força neste momento quando no recorte que
analisamos, a polícia militar (disciplinada-disciplinadora) se aproxima cada vez mais da
sociedade por meio do discurso do policiamento comunitário ou como se queira denominar.
Por fim, podemos dizer que a ordem se atrela a um poder que funciona por sua positividade (o
policiamento solidário) e não por sua repressão, mas que não abre mão de manter uma guerra
perpétua contra os marginais que legitima, no final das contas, a existência do Estado e das
Polícias Militares, os quais o próprio Estado, de certa forma, passou a produzir.
204

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

______. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

ALBERNAZ, Elizabete R. et. al. Tensões e desafios de um policiamento comunitário em


favelas do Rio de Janeiro: o caso do grupo de policiamento em áreas especiais. In: São Paulo
em perspectiva, São Paulo, Fundação Seade, v. 21, n. 2, p. 39-52, jul/dez de 2007.
Disponível em: <http://www.seade.gov.br>; <http://www.scielo.br>.

ALBUQUERQUE, Carlos Linhares de; MACHADO, Eduardo Paes. Sob o signo de Marte:
modernização, ensino e ritos da instituição policial militar. Sociologias, Porto Alegre, 3 (5):
214-237, jan/jun de 2001.

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. 6 ed. São Paulo:
Martin Claret, 2012.

ALMENDRA, Dinaldo. Paz sem conflito? A UPS como linguagem da dominação e da


segregação urbana. In.:Seminário nacional sociologia e política, IV, 2012. Curitiba-PR.
Disponível em:<>. Acesso em: horas.

ALVES, Maria Helena Moreira; EVANSON, Philip. Vivendo no fogo cruzado: moradores
de favela, traficantes de droga e violência policial no Rio de Janeiro. São Paulo: Editora
Unesp, 2013.

ALVITO, Marcos. A honra de Acari. In.: VELHO, Gilberto; ALVITO, Marcos (Orgs.).
Cidadania e violência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora FGV, 2000. p. 148-165.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São


Paulo: Companhia das Letras, 1999.

ASSIS, Machado de. Os melhores contos de Machado de Assis. Seleção Domício Proença
Filho. 14 ed. São Paulo: Global, 2002.

AZEVEDO, José Eduardo. Polícia militar de São Paulo: elementos para a construção de
uma cartografia social da questão policial no Brasil. Disponível em: Acesso em 27 nov 2013,
às 18:00 horas.
205

BARREIRA, Marcos. Cidade olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência
na cidade do Rio de Janeiro. In.: BRITO, Felipe; OLIVEIRA, Pedro Rocha de. Até o último
homem. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 129-168.

BARREIRA, César; RUSSO, Maurício Bastos. O ronda do quarteirão – relatos de uma


experiência. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 282-297,
ago/set 2012.

BARROS, Lúcio Alves de. Polícia e sociedade: um estudo sobre as relações, paradoxos e
dilemas do cotidiano policial. 2005. Tese (Doutorado em Sociologia) – UFMG, Belo
Horizonte-MG, 2005. 360 f.

BATITUCCI, Eduardo Cerqueira et al. Polícia comunitária na PMMG: evolução e


dificuldades atuais. In.:Congresso brasileiro de sociologia, XV, 2011. Curitiba-PR.
Disponível em:<
file:///C:/Documents%20and%20Settings/Administrador/Meus%20documentos/Downloads/s
bs2011_GT32_Eduardo_Batitucci.pdf>.

______. A evolução institucional da polícia no século XIX: Inglaterra, Estados Unidos e


Brasil em perspectiva comparada. Revista brasileira de segurança pública, Brasília, Ano 4,
(7): 30-47, ago/set de 2010.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,


1998a.

______. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998b.

BEATO, Cláudio. Reinventando a polícia: a implementação de um programa de policiamento


comunitário. In: ______. Policiamento comunitário: experiências no Brasil 2000 – 2002.
São Paulo: Página Viva, 2002.

BELLI, Benoni. Tolerância zero e democracia no Brasil: visões da segurança pública na


década de 90. São Paulo: Perspectiva, 2004.

BERTAUD, Jean-Paul. O exército e o brevê de virilidade. In.: CORBIN, Alain et al.(Orgs.).


História da virilidade: o triunfo da virilidade: o século XIX. Petrópolis-RJ: Vozes, 2013.

BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2003.
206

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

______. A distinção. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007a.

______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007b.

______. O senso prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas-SP: Papirus, 2011.

BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil.


1934.

______. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. 1946.

______. Constituição (1967). Constituição do Brasil. Brasília, DF: Congresso Nacional,


1967.

______. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto nº 667, de 02 de julho de 1969.


Reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares.

______. Decreto nº 88.777, de 30 de setembro de 1983. Aprova o regulamento para as


Polícias Militares e corpos de bombeiros militares (R-200).

______. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto nº 2.243, de 03 de junho de 1997.


Dispõe sobre o Regulamento de Continências, Honras, Sinais de Respeito e Cerimonial
Militar das Forças Armadas.

Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado


Federal, 1988.

______. Plano Nacional de Segurança Pública. Ministério da Justiça, 2000.

______. Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001. Institui o Fundo Nacional de Segurança


Pública – FNSP, e dá outras providências. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia
para assuntos jurídicos.
207

______. (Ministério da Justiça/SENASP). Matriz curricular nacional para ações


formativas dos profissionais da área de segurança pública. 2009. Disponível em:
<http://ensino.senasp@mj.gov.br>.

BRETAS, Marcos Luiz. Observações sobre a falência dos modelos policiais. Tempo social;
Rev. Sociol. USP, São Paulo, 9(1): 79-94, maio de 1997.

BRITO, Felipe; OLIVEIRA, Pedro Rocha de. Até o último homem. São Paulo: Boitempo,
2013.

BRODEUR, Jean-Paul. Policiamento “sob medida”: um estudo conceitual. In: BRODEUR,


Jean-Paul. Como reconhecer um bom policiamento: problemas e temas. São Paulo: editora
da Universidade de São Paulo, 2002. p. 57-79.

BUREAU OF JUSTICE ASSISTANCE. Understanding community police: a framework


for action. Monografia, ago 1994. Disponível em:
<https://www.ncjrs.gov/pdffiles/commp.pdf>.

CAMPBELL, Timothy; SITZE, Adam. Biopolitics: a reader. Durham, London: Duke


University Press, 2013.

CANETTI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

CANO, Inácio; SANTOS, Nilton. Violência letal, renda e desigualdade no Brasil. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2007.

CANO, Inácio; RIBEIRO, Eduardo. Homicídios no Rio de Janeiro e no Brasil: dados,


políticas públicas e perspectivas. In: CRUZ, Marcus Vinícius Gonçalves da; BATITUCCI,
Eduardo Cerqueira (Orgs.). Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 51-
78.

CARDIA, Nancy. O medo da polícia e as graves violações dos direitos humanos. Tempo
social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 9 (1): 249-265, maio de 1997.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever.


In.:______. O trabalho do antropólogo. Brasília, São Paulo: Paralelo Quinze, Editora da
Unesp, 1998.
208

CASTRO, Celso. O espírito militar: um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2004.

CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Do patrulhamento ao policiamento comunitário.


Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.

CLPM. Consolidação de Leis da Polícia Militar. João Pessoa: s/ed. Coletânea de Leis da
Polícia Militar da Paraíba, 2004.

COLLINS, Randall. Quatro Tradições Sociológicas. Trad.: Raquel Weiss. Petrópolis-RJ:


Vozes, 2009.

COMBLIN, Joseph Pe. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América


Latina. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A., 1978.

COSTA, Arthur Trindade Maranhão. Entre a lei e a ordem: violência e reforma nas polícias
do Rio de Janeiro e Nova York. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

COSTA, Cláudio Augusto Lima da. Policiamento comunitário na cidade de Lages/SC:


violência, participação e reconhecimento. 2012. Dissertação (Mestrado em Sociologia) -
UFRGS, Porto Alegre, 2012. 199 f.

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema


brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1990.

______. O ofício de etnólogo, ou como ter “Anthropological Blues”. In.:______. NUNES,


Édson de Oliveira. A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na
pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 23-35.

DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Trad.
Maria Lúcia Machado.São Paulo: Companhia das letras, 2009.

DIAS NETO, Theodomiro. Policiamento comunitário: nova polícia ou mera maquiagem? In:
______. Policiamento comunitário: experiências no Brasil 2000 – 2002. São Paulo: Página
Viva, 2002.

DOS ANJOS, Everaldo Pereira. Controle social, policiamento comunitário e gerencialismo.


In.:Seminário nacional sociologia e política, II, 2010. Curitiba-PR. Disponível
209

em:<http://web01.ufpr.br/seminariosociologiapolitica/html/anais/GT14/Everaldo%20Pereira
%20dos%20Anjos.pdf>.

______. Controle social e policiamento: algumas considerações sobre programas de polícia


comunitária na PMPR. In.: Seminário nacional sociologia e política, III, 2011. Curitiba-PR.
Disponível em:<>. Acesso em: horas.

DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.

DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. MichelFoucault: uma trajetória filosófica.Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 2010.

DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São


Paulo: Martins Fontes, 2005.

DUMONT, Louis. Homo hierarchicus: o sistema das castas e suas implicações. Tradução,
Carlos Alberto da Fonseca. 2ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. v. 2. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

______. A sociedade dos indivíduos. Tradução, Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1994a.

______. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução Ruy Jungman. 2 ed.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994b. v. 1.

______. Os alemães: aluta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

______. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de


corte. Tradução, Pedro Süssekind; Prefácio, Roger Chartier. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2001.

______. Escritos e ensaios: Estado, processo, opinião pública. v. 1. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2006.

______. Introdução à sociologia. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2008.


210

______. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução, Ruy Jungmann. v 1.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.

ELIAS, Norbert; Scotson, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 2000.

FALCONNET, Georges; LEFAUCHEUR, Nadine. A fabricação dos machos. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1977.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 4ª ed.


São Paulo: Globo, 2008.

FERNANDES, Heloísa Rodrigues. A força pública do Estado de São Paulo. In: PINHEIRO,
Paulo Sérgio et. al. O Brasil republicano, v. 9: sociedade e instituições (1889-1930). 8ª ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

FERNANDES, Sílvia dos Santos. O conselho comunitário de segurança de Forquilhinhas


e a filosofia da polícia comunitária: um estudo de caso. 2011. Dissertação (Mestrado
Sociologia Política) - UFSC, Florianópolis, 2011. 128 f.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

______. Vigiar e punir: história das violências nas prisões. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.

______. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

______. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Ed. Nau, 2003.

______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2007.

______. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008a.

______. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2008b.

______. A arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.


211

______. A vida dos homens infames. In.:Ditos & escritos IV: estratégia, poder-saber. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010a.

______. O sujeito e o poder.In.: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault:
uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010b.

FRANÇA, Fábio Gomes de. Disciplinamento e humanização: a formação policial militar e


os novos paradigmas educacionais de controle e vigilância. 2012. Dissertação (Mestrado
Sociologia) - UFPB, João Pessoa, 2012a. 166 f.

______. Segurança pública e a formação policial militar: os direitos humanos como estratégia
de controle institucional. Estudos de sociologia, Araraquara, v. 17, n. 33, p. 447-469, 2º sem.
2012b.

______. Desvio, moralidade e militarismo: um olhar sobre a formação policial militar na


Paraíba. Revista Brasileira de Sociologia das Emoções, João Pessoa, v. 12, n. 36, p. 803-
818,dez. 2013. Disponível em <http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html>.

______. A pedagogia do sofrimento e a construção do ethos guerreiro: uma discussão sobre


segurança pública e direitos humanos. In.:Encontro da ANDHEP, VIII, 2014, São Paulo-SP.
Disponível em: <http://andhep.org.br/anais/arquivos/VIIIencontro/GT15.pdf>. Acesso em: 05
out 2014, às 22:00 horas.

FREUD, Sigmund. O mal-estar da civilização. In.:Cinco lições de psicanálise. São Paulo:


Abril Cultural, 1978.

GARLAND, David. The culture of control: crime and social order in contemporary society.
Chicago: The University of Chicago Press, 2001.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

______.O Estado-nação e a violência: segundo volume de uma crítica contemporânea ao


materialismo histórico. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2007.

GOTTARDO, Lucilene Pedrosa de Souza; SILVA, Pedro Joel Silva da. Proposta de
metodologia de implementação da filosofia de polícia comunitária no Estado de Rondônia.
212

In.:Abordagens atuais em segurança pública.SCHNEIDER, Rodolfo Herberto (Org.). Porto


Alegre: EDIPUCRS, 2011. p. 275-285.

GREENE, Jack R. Avaliando as estratégias planejadas de mudança no policiamento moderno:


implementando o policiamento comunitário. In: BRODEUR, Jean-Paul. Como reconhecer
um bom policiamento: problemas e temas. São Paulo: editora da Universidade de São Paulo,
2002. p. 175-196.

GROS, Frédéric. Estados de violência: ensaio sobre o fim da guerra. Aparecida, SP: Editora
Idéias & Letras, 2009.

GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. . Violência urbana: um problema social.Tempo social;


Rev. Sociol. USP, São Paulo, 10(1): 105-119, maio de 1998.

HELLER, Ágnes; FEHÉR Ferenc. O pêndulo da modernidade. Tempo social; Rev. Sociol.
USP, São Paulo, 6(1-2): 47-82, junho de 1995.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do


século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 1997.

KAHN, Túlio. Velha e nova polícia: polícia e políticas de segurança pública no Brasil atual.
São Paulo: Sicurezza, 2002.

KROK, Jan Tadeusz. O vínculo constitucional entre o Exército e as Polícias Militares:


reflexos na estrutura organizacional, formação e prática profissional (1934-1988). 2008.
Dissertação (Mestrado em História social das relações políticas) – Universidade Federal do
Espírito Santo, 2008. 118 f.

LANE, Roger. Polícia urbana e crime na América do século XIX. In: TONRY, Michael;
MORRIS, Norval (Orgs.). Policiamento moderno. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2003.

LEIRNER, Piero de Camargo. Meia-volta volver: um estudo antropológico sobre a


hierarquia militar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.
213

LEITE, Márcia Pereira. Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”: favelas e


políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública,
São Paulo, v. 6, n. 2, p. 374-389, ago/set 2012. Disponível em
<http://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/viewFile/126/123>.

LEMGRUBER, Julita et al. Quem vigia os vigias?:um estudo sobre controle externo da
polícia no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2003.

LIMA, Ednalva Bezerra de; MATIAS DA SILVA, Joseilton. A experiência de policiamento


comunitário nos bairros de Paratibe e Muçumago em João Pessoa-PB. In: Polícia e
sociedade: práticas e saberes no campo da integração da segurança pública. Rio de Janeiro:
Viva Rio e Konrad Adenauer, 2010.p. 58-70.

LIMA, João Batista de. A segurança pública e a criminalidade violenta em João Pessoa.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) - 2010. UFPB, João Pessoa, 2010. 112 f.

______. A briosa: história da Polícia Militar da Paraíba. João Pessoa-PB: A União, 2013.

LOCHE, Adriana Alves. Segurança e controle social: uma análise do policiamento


comunitário.Tese(Doutorado em Sociologia). 2012. USP, São Paulo, 2012. 199f.

LORIGA, Sabina. A experiência militar. In.: LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude


(Orgs.). História dos jovens. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 17-48.

MACHADO, Eduardo Paes et al. No olho do furacão: brutalidade policial, preconceito racial
e controle da violência em Salvador. Afro-Ásia, 19/20, p. 201-226, 1997.

MARINHO, Karina Rabelo Leite. Mudanças organizacionais na implementação do


policiamento comunitário. Dissertação (Mestrado em Sociologia). 2002. UFMG, Belo
Horizonte, 2002. 106 f.

MARQUI JR., Wanderley. Norbert Elias e Pierre Bourdieu: redimensionando as


possibilidades de aproximações teóricas. In.:Simpósio internacional processo civilizador,
X, 2007. Campinas-SP. Disponível em: Acesso em: 02 set 2012, às 18:00 horas.

MATIAS DA SILVA, Joseilton. Polícia comunitária e democracia - um novo modo de se


fazer segurança pública na Paraíba. In: RATTON, José Luiz; BARROS, Marcelo
(Coordenadores). Polícia, democracia e sociedade. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2007. p. 265-279.
214

MATTOS, Pedro Ivo Gama S. de S. Estado de exceção e vida nua: uma breve análise dos
processos de inclusão e exclusão social na modernidade, à luz da instauração das unidades de
polícia pacificadoras (UPP‟s) no Rio de Janeiro. In.:Seminário nacional sociologia e
política, IV, 2012. Curitiba-PR. Disponível em:<>. Acesso em: horas.

MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In.:Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac


Naify, 2003.

MELO, Thiago de Souza. Policiamento comunitário no Rio de Janeiro: uma estratégia de


ampliação do controle social no contexto do neoliberalismo. 2009. Dissertação (Mestrado em
Sociologia e Direito) - UFF, Niteroi-RJ, 2009. 155 f.

MENDONÇA, Rildo César Menezes. A construção das representações sociais na relação


da polícia militar e a sociedade aracajuana. 2010. Dissertação (Mestrado em Ciências
Sociais) - UFSE, Aracaju – SE, 2010. 122 f.

MESQUITA NETO, Paulo de. Ensaios sobre segurança cidadã. São Paulo: Quartier Latin;
Fapesp, 2011.

______. Violência policial no Brasil: abordagens teóricas e práticas de controle. In.:


PANDOLFI, Dulce et. al (Orgs.). Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1999. p. 130-148.

MINISTÉRIO DA DEFESA. Exército Brasileiro. Estado-Maior do Exército. Manual de


campanha: ordem unida (C 22-5). 3 ed. 2000.

MISSE, Daniel Ganem. UPP e sistema integrado de metas: impacto na redução da


criminalidade violenta? In.: Encontro anual da ANPOCS, 37º, 2013. Águas de Lindóia-SP.
Disponível
em:<http://portal.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=85
84&Itemid=429 >. Acesso em: 21 out 2014, às 23:30horas.

MONET, Jean-Claude. Polícia e sociedades na Europa. São Paulo: Editora da Universidade


de São Paulo, 2002.

MONKKONEN, Eric H. História da polícia urbana. In: TONRY, Michael; MORRIS, Norval
(Orgs.). Policiamento moderno. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
215

MOORE Mark Harrison. Policiamento comunitário e policiamento para a solução de


problemas.In: TONRY, Michael; MORRIS, Norval (Orgs.). Policiamento moderno. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.p. 115-175.

MUNIZ, Jacqueline de Oliveira et al.. Resistências e dificuldades de um programa de


policiamento comunitário. Tempo social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 9(1): 197-213, maio
de 1997.

MUNIZ, Jaqueline. “Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser”: cultura e cotidiano da
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. Tese (Doutorado em Ciência Política) –
IUPERJ, Rio de Janeiro, 1999. 286 f.

NAVARRO, Pedro. Análise do discurso ao lado da língua. In: BARONAS, Roberto Leiser;
MIOTELLO, Valdemir. Análise de discurso: teorizações e métodos. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2011.

NUMMER, Fernanda Valli. “Ser brigadiano” ou “trabalhar na Brigada”: estilos de vida


entre soldados da Brigada Militar. 2010. Tese (Doutorado em Antropologia Social), UFRGS,
Porto Alegre, 2010, 261 f.

OLIVEIRA, Jonas Henrique de. O corpo como significado ou o significado do corpo: poder,
violência e masculinidade na polícia militar. Vivência, n. 35, 2010a, p. 101-117.

______. Masculinidade na polícia militar: com a palavra os homens. In.: Fazendo gênero 9:
diásporas, diversidades, deslocamentos, 2010b.

PALMIOTTO, Michael J. Community policing: a police-citizen partnership. New York:


Routledge, 2011.

PARAÍBA (Estado). Plano Estadual de Segurança Pública 2003-2006.

______. (Estado). Lei Complementar nº 111, de 14 de dezembro de 2012. Dispõe sobre o


Sistema de Segurança Pública e Defesa Social do Estado da Paraíba, a teor do § 1º do Art. 43
da Constituição Estadual, definindo os Territórios Integrados de Segurança Pública para o
Estado da Paraíba, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado. Poder Executivo. João
Pessoa, PB. 15 dez. 2012, nº 15.115. p. 1.

______. (Estado). Portaria nº 222, de 11 de outubro de 2013. Dispõe sobre as abrangências


territoriais das REISPs, AISPs e DISPs, conforme preconiza o parágrafo único do art. 1º do
Decreto nº 34.003, de 05 de junho de 2013. Diário Oficial do Estado. Poder Executivo. João
Pessoa, PB. 17 out. 2013, nº15.365, p. 12-14.
216

PASSETTI, Édson. Anarquismos e sociedades de controle. São Paulo: Cotez Editora, 2003.

PASSOS, Gleise da Rocha. “Segurança pública não é só polícia!”: segurança e participação


social em relação ao policiamento comunitário na cidade de Aracajú. 2011. Tese (Doutorado
em Sociologia) – UFBA, Salvador-BA, 2011. 236 f.

PINHEIRO, Antônio dos Santos. Polícia comunitária e cidadã: entre velhas e novas
práticas policiais. 2008. 212f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do
Ceará, 2008.

POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DA PARAÍBA. Disponível em:


<http://www.pm.pb.gov.br>.

REINER, Robert. A política da polícia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2004.

REISS JR., Albert J. Organização da polícia no século XX. In: TONRY, Michael; MORRIS,
Norval (Orgs.). Policiamento moderno. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2003.

RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes. O nascimento da polícia moderna: uma análise dos
programas de policiamento comunitário implantados pela PMERJ. In: Encontro anual da
ANPOCS, 36º, 2012, Águas de Lindóia-SP.

ROSA, Alexandre Reis; BRITO, Mozar José de. “Corpo” e “alma” nas organizações: um
estudo sobre dominação e construção social dos corpos na organização militar. RAC,
Curitiba, n. 2, art. 1, p. 194-211, mar/abr 2010. Disponível em:
<http://www.anpad.org.br/rac>. Acesso em: 23 abr 2013, às 17:00 horas.

ROSA, Susel Oliveira da. A biopolítica e a vida „que se pode deixar morrer‟. Jundiaí: Paco
Editorial, 2012.

ROSENBAUM, Dennis P. A mudança no papel da polícia: avaliando a transição para


policiamento comunitário. In: BRODEUR, Jean-Paul. Como reconhecer um bom
policiamento: problemas e temas. São Paulo: editora da Universidade de São Paulo, 2002. p.
27-55.
217

SÁ, Leonardo Damasceno de. Os filhos do Estado: auto-imagem e disciplina na formação


dos oficiais da polícia militar do Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Núcleo de
Antropologia da Política/UFRJ, 2002.

SANTOS FILHO, Júlio Cesar de Mendonça. A militarização da segurança pública e a vida


nua: o caso das UPP‟s. In.:Encontro anual da ANPOCS, 37º, 2013. Águas de Lindóia-SP.
Disponível em:<>. Acesso em: horas.

SAPORI, Luís Flávio. Segurança pública no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007.

SILVA, Agnaldo José da. Praça Velho: um estudo sobre o processo de socialização policial
militar. 2002. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de Goiás,
Goiânia.

SILVA, Jorge da. Controle da criminalidade e segurança pública na nova ordem


constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

SILVA, Robson Rodrigues da. Entre a caserna e a rua: o dilema do “pato”: uma análise
antropológica da instituição policial militar a partir da Academia de Polícia Militar D. João
VI.Niterói, RJ: Editora da UFF, 2011.

SILVA JÚNIOR, Dequex Araújo. Segurança pública como cultura do controle. Revista
Brasileira de Segurança Pública, ano 4, edição 7, p. 72-85, ago/set 2010. Disponível em
<http://www.institutoelo.org.br/site/app/webroot/files/file/revista%20Brasileira%20de%20Se
guran%C3%A7a%20P%C3%BAblica7_FINAL.pdf>.

SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Trad. Pedro


Caldas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

SKOGAN, Wesley G. Participação da comunidade e policiamento comunitário. In:


BRODEUR, Jean-Paul. Como reconhecer um bom policiamento: problemas e temas. São
Paulo: editora da Universidade de São Paulo, 2002. p. 119-138.

SKOLNICK, Jerome H.; BAYLEY, David H. Policiamento comunitário: questões e práticas


através do mundo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

SOARES, Gláucio Ary Dillon. A criminologia e as desventuras do jovem dado. In:


Segurança, justiça e cidadania/Ministério da Justiça, Ano 3, n. 6. Brasília: Secretaria
Nacional de Segurança Pública (SENASP), 2011.p. 11-30.
218

SOUZA, Elenice. Avaliação do policiamento comunitário em Belo Horizonte. 1999.


Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de Minas Gerais.

SOUZA, Marcos Santana de. A violência da ordem: polícia e representações sociais. Sâo
Paulo: Annablume, 2012.

STORANI, Paulo. “Vitória sobre a morte: a glória prometida: o “rito de passagem” na


construção da identidade dos operações especiais do BOPE. 2008. Dissertação (Mestrado em
Antropologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.169f.

TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A arma e a flor:formação da organização policial,


consenso e violência.Tempo social; Rev. Sociol. USP, São Paulo, 9 (1): 155-167, maio de
1997.

______. Violências e conflitualidades. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2009.

______. A agonia da vida: mortes violentas entre a juventude do país do futuro. In: CRUZ,
Marcus Vinícius Gonçalves da; BATITUCCI, Eduardo Cerqueira (Orgs.). Homicídios no
Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 11-24.

TELES, Edson; SAFATLE, Vladímir (Orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo:
Boitempo, 2010.

TROJANOWICZ, Robert; BUCQUEROUX, Bonnie. Policiamento comunitário: como


começar. Rio de Janeiro: Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, 1994.

VELHO, Gilberto. “Observando o familiar”. In: Individualismo e cultura: notas para uma
antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981.

VILLELA, Jorge Mattar. Apresentação. In.: ______. BIONDI, Karina. Junto e misturado:
uma etnografia do PCC. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2010. p. 11-21.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

______. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002.
219

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2013: homicídios e juventude no Brasil.


Brasília, 2013. Disponível em: <www.juventude.gov.br>.

WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Hans Gerth; C. Wright Mills (Orgs.). Trad. Waltensir
Dutra. 5. ed., Rio de Janeiro: Guanabara, 1982.

______. Ensaios sobre a teoria das ciências sociais. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2003.

WILSON, James Q.; KELLING, George L. Broken windows. 1982. Disponível em:
<http://www.manhattan-institute.org/pdf/_atlantic_monthly-broken_windows.pdf>.

WIEVIORKA, Michel. A O novo paradigma da violência.Tempo social; Rev. Sociol. USP,


São Paulo, 9 (1): 5-41, maio de 1997.

WISLER, Dominique; ONWUDIWE, Ihekwoaba D. Community policing: international


patterns and comparative perspectives. Boca Raton, London, New York: CRC Press, 2009.

WRIGHT MILLS, C. A elite do poder.4 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

ZALUAR, Alba. Violência e crime. In.:O que ler na ciência social brasileira.MICELI,
Sérgio (Org.). São Paulo: Editora Sumaré: ANPOCS; Brasília, DF: CAPES, 1999. p. 13-107.

______. Para não dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil. In:
NOVAIS, Fernando A.; SCHWARCZ, Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil:
contrastes da intimidade contemporânea. v. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.
245-318.

______. Democratização inacabada: fracasso da segurança pública. Estudos avançados. São


Paulo, v. 21, n 61, set./dez. de 2007.

ZAVERUCHA, Jorge. A crescente inserção das Forças Armadas na segurança pública. In:
CRUZ, Marcus Vinícius Gonçalves da; BATITUCCI, Eduardo Cerqueira (Orgs.).
Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 25-50.

______. Relações civil-militares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In.:


TELES, Edson; SAFATLE, Vladímir (Orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo:
Boitempo, 2010. p. 41-76.

Sites Consultados
220

<http://inforsurhoy.com/cocoon/saii/xhtml/pt/features/saii/features/main/2011/06/08/feature-
01>.

<http://1bpmnorte.blogspot.com.br/p/ups-bola-na-rede-mandacaru-e-ilha-do.html>.

<http://www.jornaldaparaiba.com.br/noticia/91914_policia-solidaria-ajuda-a-reduzir-
violencia-em-jp>.

<http://www.pm.pb.gov.br/pagina_noticia_8270.htm>.

<www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/.../0000000490.xls>.
221

ANEXO A

QUADRO HIERÁRQUICO DA PMPB

Coronel Oficiais superiores


Tenente Coronel
Círculo de Major
Oficiais Postos Oficiais intermediários
Capitão
Primeiro Tenente Oficiais subalternos
Segundo Tenente
Aspirante a Oficial (estagiário depois que conclui o Passam ao posto de 2º
curso para Oficial). Tenente após o término do
Praças Especiais estágio.
Aluno Oficial (conhecido como cadete enquanto está Tornam-se Aspirante a
no curso para Oficial). Oficial quando concluem o
CFO.
Subtenente
Círculo de Praças Primeiro Sargento
Graduações Segundo Sargento
Terceiro sargento
Cabo

Soldado
QUADRO 2: Divisão hierárquica da PMPB.
FONTE: Dados do autor.
222

ANEXO B

USO DAS INSÍGNIAS DE OFICIAL DAS POLÍCIAS MILITARES DE ACORDO


COM OS RESPECTIVOS POSTOS:

a) Coronel PM Comandante-Geral: Três estrelas com oito pontas, sendo cada uma das
pontas da estrela em formato resplendor, composto por nove lâminas em amarelo-ouro
(dourado), dispostas em forma de triângulo equilátero. Cada estrela contém em seu centro um
escudo formado por duas circunferências, sendo o círculo central vermelho com contorno
amarelo-ouro (dourado), contendo uma estrela simples de cinco pontas dourada. A
circunferência externa é na cor azul contendo cinco estrelas de cinco pontas na cor dourada;
na parte superior, escudo vazado em forma de gota na cor azul com vinte e sete estrelas
prateadas; em seu chefe, uma estrela dourada de cinco pontas sobreposta a um círculo
vermelho, tudo ladeado por ramos de louros, estilizados em forma de pentágono, com
contorno e preenchimento em amarelo-ouro (dourado).
b) Coronel PM Subcomandante-Geral: Três Estrelas com oito pontas, sendo cada uma das
pontas da estrela em formato de resplendor, composto por nove lâminas em amarelo-ouro
(dourado), dispostas em linha reta, ladeadas em ambos os lados por ramos de louros, com
caules cruzados na cor amarelo-ouro (dourado).
c) Coronel PM: Três Estrelas com oito pontas, sendo cada uma das pontas da estrela em
formato de resplendor, composto por nove lâminas em amarelo-ouro (dourado), dispostas em
linha reta.
d) Tenente-Coronel PM: Duas Estrelas com oito pontas, sendo cada uma das pontas da
estrela em formato de resplendor, composto por nove lâminas em amarelo-ouro (dourado),
uma estrela com quatro pontas, na cor prata, sendo cada uma das pontas da estrela em formato
de resplendor composto por nove lâminas, dispostas em linha reta.
e) Major PM: Uma Estrela com oito pontas, sendo cada uma das pontas da estrela em
formato de resplendor, composto por nove lâminas em amarelo-ouro (dourado), duas estrelas
com quatro pontas, na cor cinza escuro (prata), sendo cada uma das pontas da estrela em
formato de resplendor composto por nove lâminas, dispostas em linha reta.
f) Capitão PM: Três estrelas com quatro pontas, na cor cinza escuro (prata), sendo cada uma
das pontas da estrela em formato de resplendor composto por nove lâminas, dispostas em
linha reta.
223

g) 1° Tenente PM: Duas estrelas com quatro pontas, na cor cinza escuro (prata), sendo cada
uma das pontas da estrela em formato de resplendor composto por nove lâminas, dispostas em
linha reta.
h) 2° Tenente PM: Uma estrela com quatro pontas, na cor cinza escuro (prata), sendo cada
uma das pontas da estrela em formato de resplendor composto por nove lâminas, dispostas em
linha reta.

COMPOSIÇÃO E DISPOSIÇÃO DAS INSÍGNIAS DOS PRAÇAS ESPECIAIS:

a) Aspirante-a-Oficial PM: Estrela de cinco pontas, representada em seu contorno,na cor


amarelo-ouro (dourado);
b) Cadete PM 3° Ano: Estrela de cinco pontas, representada em seu contorno, na cor
amarelo-ouro (dourado) e três barretas dispostas em linha.
c) Cadete PM 2° Ano: Estrela de cinco pontas, representada em seu contorno, na cor
amarelo-ouro (dourado) e duas barretas dispostas em linha;
d) Cadete PM 1° Ano: Estrela de cinco pontas, representada em seu contorno, na cor
amarelo-ouro (dourado) e uma barreta em linha.

FIGURA 62: Insígnias usadas pelos Aspirantes e Cadetes das Polícias Militares.

USO DAS DIVISAS DOS PRAÇAS DAS POLÍCIAS MILITARES DE ACORDO COM
AS RESPECTIVAS GRADUAÇÕES:
224

a) Subtenente PM: Triângulo equilátero representado em seu contorno, nas cores cinza
escuro (prata), medindo 30mm de base e 30mm de laterais.
b) Sargento PM: Conjunto formado pelo distintivo do Quadro, e acima do distintivo, pelas
divisas correspondentes às graduações de 1°, 2° ou 3° Sargento, bordadas com linha100%
poliéster 120 na cor cinza escuro (prata); Sobrepostas em uma escudete na cor preta.
c) Cabo PM: Conjunto formado pelo distintivo do Quadro, e acima do distintivo, pelas
divisas correspondentes a graduação, bordadas com linha 100% poliéster 120 na cor cinza
escuro (prata); Sobrepostas em uma escudete na cor preta.
d) Soldado PM: Conjunto formado pelo distintivo do Quadro, e acima do distintivo, pela
divisa correspondente a graduação, bordada com linha 100% poliéster 120 na cor cinza escuro
(prata); Sobrepostas em uma escudete na cor preta.
225

ANEXO C

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, ____________________________________________________, de forma livre e


espontânea, aceito participar da pesquisa intitulada SOB A APARÊNCIA DA ORDEM:
sociabilidade e relações de poder na implantação da polícia solidária em João Pessoa – PB,
realizada nos postos comunitários de polícia solidária localizados sob a circunscrição do 1º
Batalhão de Polícia Militar do Estado da Paraíba.
Declaro que fui informado (a) pelo pesquisador responsável pela investigação, o aluno
do Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, Fábio Gomes de França.
Estou ciente de que, após a assinatura do Termo de Consentimento, manifesto legalmente
minha anuência à participação nesta pesquisa, de modo voluntário, embora possua liberdade
de, em qualquer fase da pesquisa, retirar o meu consentimento sem nenhuma penalização ou
prejuízo.
Entendo que me é garantido o sigilo que assegure a minha privacidade e anonimato e
que terei direito à indenização diante de eventuais danos decorrentes desta pesquisa. Assim,
autorizo o pesquisador a divulgar e publicar em eventos científicos, inclusive periódicos, os
resultados advindos desta pesquisa.

João Pessoa, ____/____/____

____________________________________________________
Assinatura do entrevistado

Você também pode gostar