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JOÃO PESSOA – PB
2014
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JOÃO PESSOA – PB
2014
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UFPB/BC CDU:
316(043)
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Simone Magalhães Brito por mais uma vez ter-me
possibilitado uma orientação pautada na atenção, dedicação, carinho e respeito próprios de um
processo de construção intelectual onde prevaleceu a aprendizagem mútua, o que me levou,
assim como ocorrido na ocasião do mestrado,a buscar de forma incessante um mundo pelo
qual a ciência nos ajuda a entender o que é o homem em sua relação com os outros e as
formas de ser e estar no mundo.
Gostaria de agradecer imensamente aos professores Adriano de León, Rogério
Medeiros e Nildo Avelino, todos da UFPB, pela valiosa contribuição dispendida durante a
banca de qualificação desta pesquisa, bem como, pelo aceite em participar da banca final.
Some-se a eles, os meus sinceros agradecimentos ao Profº Leonardo Damasceno de Sá, da
Universidade Federal do Ceará, pela presteza e atenção com que aceitou participar da banca
final.
Em especial à minha saudosíssima irmã Elizabeth, a quem não pude dizer adeus para
agradecer-lhe por todo o empenho dedicado à educação que recebi quando criança e
quandojovem, a qual foi imprescindível para que eu pudesse chegar a este momento. Sua
imagem é concreta em meu coração e a saudade um sentimento que me faz querer vencer para
enaltecer o meu amor diante de sua ausência.
A Rubens Elias, pela presença constante em minha vida. Para além da amizade, pelo
rico amadurecimento que foi fomentado por uma dupla biografia que a vida preservou com
muito esmero e respeito. Pelo fato de termos criado laços fraternais que nos constroem e
protegem até hoje.
À Verônica, por sua amizade, sutileza e sinceridade na hora de me engrandecer com as
palavras mais caras que me ajudam a guiar-me por um caminho traçado com muitos percalços
e alegrias.
Ao meu sempre presente “brother” Do Monte, cuja distância não é capaz de apagar a
saudade que invade o coração nos momentos de reflexão e cujo jeito militante de encarar o
mundo faz dele meu pequeno-grande herói desta passagem ditada pela raridade de grandes
amizades.
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RESUMO
Este trabalho de Tese teve por finalidade analisar a implantação do projeto de policiamento
solidário na cidade de João Pessoa, Estado da Paraíba. Para tanto, partiu-se da hipótese de que
esse programa governamental (o Polícia Solidária) trata-se, na verdade, de formas mais
sofisticadas de controle social por parte do Estado em relação às comunidades onde o
policiamento atua. Desse modo, o problema de tese fundamentou-se em questionar como
novas relações de poder se estabelecem no exercício de uma forma de sociabilidade que não
mais diz respeito ao modo repressivo da Polícia Militar atuar, e sim por formas consideradas
mais democráticas e cidadãs. Nesse percurso, contextualizamos historicamente como emergiu
o discurso sobre o policiamento comunitário e a suposta falência do modelo tradicional de
polícia, de cunho reativo e repressivo. Mostramos também como se configura o modelo
comunitário de policiamento cunhado de solidário em João Pessoa (desde as políticas
governamentais às características dos postos de policiamento que foram implantados). Assim,
com base na perspectiva teórica foucautiana, em diálogo com autores como Norbert Elias,
David Garland e Giorgio Agamben, chegamos à conclusão de que o projeto trata-se, na
verdade, de uma forma de atuação biopolítica que, ao mesmo tempo em que desenvolve
modos de normalização das populações envolvidas, cria o discurso de proteção das
comunidades das classes consideradas perigosas. Ainda mais, demonstramos haver uma
relação intrincada entre o que chamamos de distinção policial militar e os mecanismos
biopolíticos. A partir da análise de documentos diversos e dos dados etnográficos (observação
participante e entrevistas), concluímos que nesse processo, dada a complexidade de sua
configuração, os envolvidos desconhecem a “estratégia” que suas ações articulam, as quais
possibilitam o exercício de relações de poder que a partir das políticas estatais mantêm um
controle social mais efetivo sobre a vida das pessoas nas comunidades. Esse controle enseja
uma vigilância policial maior das mesmas e fortalece a dinâmica de manutenção do Estado, da
distinção entre policiais e sociedade e a permanência de um status quo pautado nas
desigualdades sociais e controle dos desfavorecidos socialmente.
ABSTRACT
This thesis work aims at examining the project implementation of solidarity policing in the
city of João Pessoa, State of Paraiba. To do so, we started with the hypothesis that this
government program (the Solidarity Police) it is actually more sophisticated forms of social
control by the State in relation to policing communities where it operates. Thus, the problem
of the thesis was based on the question how new power relations are established to exercise a
form of sociability that no longer concerns the way repressive military police work, but in
ways considered more democratic and citizen. Along the way, we contextualize historically
how emerged the discourse on community policing and the alleged failure of traditional
policing model, reactive and repressive nature. We also show how to set up community
policing model of solidarity coined in João Pessoa (from government policies to the
characteristics of police stations that were deployed). So based on foucautiana theoretical
perspective in dialogue with authors like Norbert Elias, David Garland and Giorgio Agamben,
we conclude that the project it is actually a form of biopolitics acting at the same time
develops ways of standardizing the populations involved, creates the discourse of protecting
communities of classes considered dangerous. Further, we demonstrate to be a intricate
relationship between what we call the military police distinction and thebiopolitical
mechanisms. From the analysis of various documents and ethnographic data (participant
observation and interviews), we conclude that in this process, given the complexity of your
setup, those involved are unaware of the "strategy" their actionsarticulate, which enable the
exercise of relations power from government policies maintain a more effective social control
over people's lives in communities. This control entails greater police surveillance of them
and strengthens the dynamic maintenance of the state, the distinction between police and
society and the permanence of a status quo ruled in social inequalities and control of socially
disadvantaged.
LISTA DE QUADROS
LISTA DE SIGLAS
LISTA DE FIGURAS
Figura 53 (Abaixo, à direita): Memorial com placas que indicam a morte de policiais
militares em serviço------------------------------------------------------------------------------------190
Figura 54: Cadetes da PMPB em um baile de debutantes com o traje de gala. Todos seguram
o Espadim Tiradentes ----------------------------------------------------------------------------------195
Figura 55 (Acima – esquerda): 2º Tenente da PMPB e o uso da luva (insígnia) por sobre os
ombros em ambos os lados como forma de demonstrar que ele faz parte do círculo dos
Oficiais---------------------------------------------------------------------------------------------------196
Figura 56 (Acima – direita): Luvas ou insígnias usadas pelos Oficiais das Polícias Militares
como forma de distingui-los institucionalmente dos Praças--------------------------------------196
Figura 57 (Abaixo): 2º Tenente da PMPB vestido com o uniforme de passeio---------------197
Figura 58 (Acima): 3º Sargento da PMPB com a divisa correspondente à sua posição
hierárquica no quadro funcional da instituição. As divisas se encontram em ambos os braços--
------------------------------------------------------------------------------------------------------------198
Figura 59 (Abaixo): As divisas que representam as graduações (posições hierárquicas), dos
Praças nas Polícias Militares--------------------------------------------------------------------------198
Figuras 60 (Acima) e 61 (Abaixo): Policiais da PMPB, uma Tenente e um Soldado, com o
uniforme da tropa especializada de choque---------------------------------------------------------199
Figura 62: Insígnias usadas pelos Aspirantes e Cadetes das Polícias Militares---------------223
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO-----------------------------------------------------------------------------------------15
CONSIDERAÇÕES FINAIS-----------------------------------------------------------------------200
REFERÊNCIAS----------------------------------------------------------------------------------------204
ANEXOS------------------------------------------------------------------------------------------------221
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15
INTRODUÇÃO
Como a ordem, aqui traduzida pelos organismos policiais militares em nosso país, está
desenvolvendo modelos de policiamento que possam ser reconhecidos pelo viés do discurso
democrático? Para responder a essa indagação, este trabalho visa analisar sociologicamente a
implantação do policiamento chamado de “solidário”, na cidade de João Pessoa, o qual se
fundamenta na perspectiva de uma polícia de “aproximação” com a comunidade. Tal
problemática objetiva, nesse sentido, buscar entender como se consolidou o distanciamento
entre Polícia Militar e sociedade e quais são as “estratégias” que estão sendo utilizadas pelos
órgãos policiais, em nome do Governo do Estado da Paraíba, para garantir essa suposta
reaproximação.
Desse modo, partimos da hipótese de que esses novos padrões de sociabilidade entre
policiais militares e moradores de comunidades podem estar sendo pautados por relações de
poder sustentadas por processos de “governamentalidade” (FOUCAULT, 1979). Buscamos
demonstrar como o projeto de policiamento solidário cria certo distanciamento entre o que
está sendo apresentado como proposta e a real atuação policial nas ruas.
O programa de policiamento solidário que está sendo implantado na cidade de João
Pessoa faz parte de uma tendência nacional que está ocorrendo em diversos Estados, com
destaque para a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP‟s) adotada no Rio de
Janeiro. Assim, nossas primeiras observações foram direcionadas para as campanhas sobre a
instauração de uma polícia mais cidadã em João Pessoa, a qual pode ser compreendida como
sendo solidária e democrática. A visibilidade desse novo modelo de policiamento passou a ser
percebida em vários contextos: a mídia televisiva, impressa e radiofônica; através de slogans
publicitários e panfletos distribuídos nas comunidades; nas viaturas policiais que se tornaram
visíveis com a estampa do nome “Polícia Solidária”; na realização de eventos como pequenas
formaturas militares nos bairros onde estão sendo implantadas as UPS‟s (Unidades de
Policiamento Solidário).
Assim, indicamos que o problema da tese diz respeito a como se estabelecem essas
novas sociabilidades entre moradores e policiais militares. Se até agora, com o policiamento
tradicional, tínhamos relações de conflito, onde o PM enquanto agente de segurança do
Estado impunha medo ao cidadão devido à violência ilegal exercida, com a busca de novas
formas de sociabilidade por parte da Polícia Militar como podemos compreender as relações
de poder presentes na interação entre os agentes do Estado e moradores de comunidades?
Destacamos tal problemática devido à existência de uma cultura policial militar distintiva
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(MUNIZ, 1999; SILVA, 2002) em relação ao paisano, o que nos leva a analisar, a partir dessa
cultura, como são reelaboradas as dissimetrias entre policiais militares e moradores das
comunidades já que a lógica do policiamento solidário busca afirmar que o policial também
faz parte da comunidade que ele vigia e protege.
De todo modo, gostaríamos de começar este percurso ao mostrar que nossos estudos
sobre Polícias Militares e, em específico, a Polícia Militar da Paraíba, tiveram início em outro
momento1 no qual nossas inquietudes empírico-teóricas conduziram-nos a adentrar os muros
da caserna e empreender uma pesquisa no quartel de formação policial militar, o Centro de
Educação, localizado na cidade de João Pessoa. Constatamos que, a implantação e utilização,
de modo formal e informal, de saberes humanizadores no processo pedagógico PM se trata de
uma forma mais sofisticada de controle dos alunos policiais por parte da instituição, o que
caracteriza novas relações de poder que configuram um processo que chamei de
“humanização disciplinada”. Pudemos observar como os alunos criam resistência a uma
educação para os Direitos Humanos. Uma vez que, a cultura disciplinar da formação na PM
não enxerga os direitos dos alunos devido à naturalização do ethos militarista voltado para a
hierarquia e disciplina, os discentes não conseguem apreciar criticamente as propostas de
mudanças organizacionais implementadas. Tem-se, então, uma humanização que apenas
enaltece a instituição para que a mesma possa supostamente apagar a imagem negativa
herdada dos tempos ditatoriais.
Nessa pesquisa, estávamos no plano em que “o regime de materialidade dos
enunciados é da ordem da instituição, isso leva o pesquisador a considerar a relação entre
prática discursiva e instituição, que abarca regras determinadas historicamente” (NAVARRO,
2011, p. 139). E, se a pesquisa anterior nos revelou que diante de uma formação policial
militar baseada em uma humanização que não abre mão do disciplinamento como forma de
dominação, o qual permanece na construção de uma distinção entre policiais militares e
paisanos, a partir de então nossas reflexões foram conduzidas para tentar entender como esses
policiais formados passavam a atuar no projeto de policiamento solidário, projeto esse
lançado pelo Governo do Estado da Paraíba e a Polícia Militar no ano de 2011.
Assim como ocorrera na feitura da Dissertação de Mestrado, algumas considerações
devem ser feitas em relação ao nosso posicionamento frente ao objeto de pesquisa. Neste
ponto, a discussão metodológica nos possibilita contextualizarmos alguns esclarecimentos,
sem o medo de descrever o percurso deste trabalho em primeira pessoa, dado o fato de eu ser
1
Ver França (2012a).
17
atualmente um Capitão da Polícia Militar da Paraíba. Só que, desta vez, munido de certo
amadurecimento teórico, e depois da experiência de ter conduzido pesquisas sobre minha
profissão e ter refletido sobre a dimensão sociológica da experiência policial (FRANÇA,
2012a, 2012b, 2013) que envolvem recortes empíricos sobre a Polícia Militar, conduzi a
pesquisa com mais segurança em relação ao problema de uma suposta neutralidade científica,
que no seio das ciências sociais é motivo de debates e muitas contraposições.
De toda forma, ao contrário do que destaca Villela (2010), não creio que estudar um
mundo institucional no qual se está inserido se trate de uma atitude apologética, militante ou
internalista que podem ser compreendidas pelo que os ingleses chamam de halfie, ou seja,
quando o pesquisador encontra-se entre o objeto que ele estuda e a antropologia. Por esse
viés, com toda implicação epistemológica que tal problemática possa suscitar, acredito na
validade dos trabalhos que já foram desenvolvidos a partir da questão anteriormente posta e
ainda acrescento que, em certo sentido, ser um pesquisador nativo pode ajudar na construção
de parâmetros metodológicos melhor orientados dada a existência de uma “experiência”
prévia sobre do que se observa. E estudar o universo policial militar enquanto nativo tem-se
revelado objeto de muito trabalho e dedicação.
Assim, o contato e o conhecimento de campo antropológico, dado o diálogo entre a
Sociologia e a Antropologia, permitiram-me compreender que não só era possível, mas fazia
parte da legitimidade científica das disciplinas humanas fazer o caminho oposto ao
preconizado pelos precurssores da etnografia e assim, ao invés de treinar apenas “o olhar e o
ouvir” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998) para observar e analisar uma cultura estranha, eu
poderia tornar “o familiar em exótico” (DA MATTA, 1978). Por esse parâmetro, sigo também
as considerações expostas por Gilberto Velho (1981) quando ele afirma que mesmo que seja
familiar aquilo que vemos e encontramos, isso não garante conhecer-se o que se observa.
Além disso, o mesmo autor esclarece que,
E de acordo com essa “objetividade relativa”, podemos dizer que, “o fato de sermos
policiais e sociólogos ou “policiais-sociólogos” não implica, necessariamente, que devamos
ter o conhecimento da instituição e mesmo da profissão policial como um todo”
(MENDONÇA, 2010, p. 106). Nesse caminho, mesmo existindo poucos trabalhos nas
ciências sociais que pousaram a curiosidade científica sobre a cultura policial militar, mais
ainda àquela que pode ser percebida a partir do ambiente intramuros do quartel de formação
pedagógica policial militar, outros estudos realizados por policiais militares ou ex-policiais
(SILVA, 2002; SILVA, 2011; SOUZA, 2012, STORANI, 2008, MENDONÇA, 2010) que
resolveram fazer de sua profissão uma exploração acadêmica, me ajudaram a mostrar que essa
área de estudos não inviabiliza minha posição de policial e sociólogo. As palavras de Souza
(2012) também ajudam a justificar meu trabalho quando, ao ter desenvolvido pesquisa na
Polícia Militar do Estado de Sergipe sobre representações sociais e violência policial militar e
ter realizado entrevistas fardado por uma questão de escolha metodológica, já que à época era
policial, ele afirma que “as escolhas na academia não estão distantes das demais que tomamos
constantemente nos diversos campos da vida. Elas estão relacionadas a elementos de nossas
demandas e experiências pessoais” (p. 25).
Nesse sentido, também, a sociologia compreensiva weberiana (WEBER, 2003) dá-me
o suporte adequado para meu posicionamento em relação ao objeto que abordo, de forma que
a mesma possibilita-me estabelecer o momento devido para utilizar critérios objetivos que
ratifiquem o caráter científico do problema. Por esse aspecto, segundo a perspectiva
weberiana, os valores que conduzem nosso olhar para a observação de um objeto de pesquisa
acabam por ceder espaço para a compreensão objetiva desse mesmo objeto, de modo a
permitir a construção de “tipos ideais” que expliquem de modo aproximado a realidade
estudada. Não estou afirmando que me tornei sociólogo a partir do contato com as
informações que a profissão PM me proporcionou, ao contrário, foi a formação como
sociólogo (a qual adquiri depois de oito anos como policial militar) que me fez passar a
enxergar a PM de outro modo, com reflexão que acabou por direcionar o olhar crítico à
análise de uma hipótese inicial que se descortinou na apreensão de um objeto de pesquisa que
poderia ser abordado sociologicamente. No final, a minha busca tem finalidades científicas e
objetivas, as quais direcionaram minhas impressões subjetivas como primeiro passo para
sistematizar a validade do problema que eu aqui analiso.
Para Muniz (1999), existem similitudes entre o trabalho etnográfico do antropólogo e
o trabalho policial nas ruas. Só que, no segundo caso, fala-se de uma etnografia policial
voltada para o trabalho prático em que o PM preocupa-se em mostrar “a suposta verdade dos
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fatos”, ao contrário do antropólogo que busca desvendar a “realidade dos fatos”. Para o
policial importa aguçar o olhar e a intuição para descobrir na atitude suspeita quem pertence
ao mundo do crime. Bittner (2003) corrobora com essa ideia e afirma que o conhecimento
policial das ruas é “etnográfico”, pois, “ele é metódico e semelhante, de muitas maneiras, ao
conhecimento dos sociólogos e dos antropólogos sociais” (p. 185). No meu caso, afirmo ter
utilizado de ambas as técnicas para obter minhas observações e informações, pois, neste
sentido, enquanto policial-pesquisador, foram as diversas situações de rua que me
possibilitaram abrir caminho para o olhar sociológico. Munido das técnicas policiais que me
faziam estar presente nas ruas para desempenhar as funções que me cabiam como
profissional, também já me eram conhecidas as técnicas de observação etnográficas, o que, de
certa forma, torna-se um fato positivo na coleta de dados fundamentais para a pesquisa, visto
a situação não usual de um sociólogo na investidura do pesquisador estar numa viatura de
polícia rondando nas ruas para cumprir outro papel.
Nesse contexto, o percurso metodológico que desenvolvi pautou-se numa pluralidade
de caminhos que sistematizo a partir de quatro dimensões: a primeira seria a análise de
documentos governamentais (planos de governo que envolve a Polícia Militar paraibana,
dados estatísticos implementados pela cúpula da Polícia Militar do Estado da Paraíba, mapas
que demonstram a setorização cartográfica dos lugares onde se encontram os postos de
policiamento solidário, Decretos lançados no Diário Oficial da Paraíba); a segunda diz
respeito ao material propagandístico utilizado pelo Governo da Paraíba e pela Polícia Militar
da Paraíba para legitimar o novo modelo de policiamento que segue a filosofia de polícia
comunitária; a terceira dimensão centrou-se em observar os policiais militares trabalhando nos
postos comunitários, de modo que eu pudesse comparar o que se encontra entre o dito e o
oculto na práxis dos policiais envolvidos no projeto de Polícia Solidária e, por fim, participei
da reunião dos gestores das Polícias Militares envolvidos com o projeto de policiamento
solidário, situação essa que nos força a apenas indicar esse encontro e analisar as falas e
observações apreendidas. A necessidade de se ocultar qual foi essa reunião diz respeito ao
fato de que a mesma se trata de situação onde são debatidas questões de políticas estatais de
Segurança Pública que sistematizam informações do Governo da Paraíba. No entanto, fica a
ressalva de que essa reunião contou com a participação da imprensa.
Sobre a primeira dimensão, reconheço que a coleta de material foi facilitada pelo fato
de eu ser policial militar, especialmente Oficial da PMPB. Através do contato com amigos
que trabalham diretamente na Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social da
Paraíba, pude ter acesso aos documentos que demonstram as estratégias do Governo do
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locais devidamente fardado, com uma guarnição de policiais em uma viatura, com colete à
prova de balas e armado com pistola. Essa atitude também me orientou no sentido de ter que
realizar as entrevistas fardado, como forma de ganhar a confiança dos policiais.
Além do exposto, construí reflexões no sentido de entender a ideia de que, se a Polícia
Militar busca uma “aproximação” com a sociedade, é porque existe um distanciamento
prévio, como já mencionei anteriormente, mas qual seria o fator desencadeador desta lacuna
entre policiais e sociedade? Para tanto, cito um exemplo que foi aguçado por meu olhar de
sociólogo quando eu estava em um casamento de um amigo policial militar, ou melhor, um
Tenente da Polícia Militar. Sempre em cerimoniais desta natureza (pois eu já tinha observado
outros casamentos de policiais), os Oficiais realizam um rito conhecido por “teto de aço”,
onde o policial e sua noiva passam por debaixo de espadas que são alçadas para o ar formando
um corredor, e as mesmas são batidas, “tilintadas”, em pares, pelas pontas, causando um
barulho que, de certa forma, denota respeito ou talvez boa sorte aos recém-casados. Sempre,
até aquele momento, eu tinha achado aquele rito esteticamente bonito, mas depois percebi o
quanto aquele cerimonial representava positivamente para quem dele participava, ou seja: o
policial que estava a casar e seus amigos policiais que participavam da execução do rito.
Ainda mais quando da festa após o cerimonial religioso, novamente o “familiar” se
transformava em “exótico” quando percebi que, em cima do bolo dos noivos tinha dois
bonecos que simbolizavam o casal, porém o homem era a imagem do meu amigo com a
túnica para eventos de gala da Polícia Militar, só que ele estava “pagando flexões”. Essa
situação me fez conseguir fotos de outros casamentos e também me despertou o olhar para
uma lógica que, por eu ter naturalizado para mim mesmo devido à profissão, não tinha
percebido anteriormente, ou melhor, que existe uma racionalidade própria aos policiais
militares que os fazem atribuírem a si mesmos o que passo a denominar de “distinção policial
militar” (BOURDIEU, 2007a). E por esse âmbito, no Capítulo IV tentarei mostrar como essas
experiências podem ser entendidas enquanto uma categoria.
Nesse contexto, passei a estabelecer a correlação que existe entre a distinção policial
militar, a violência policial e o distanciamento que se configurou historicamente entre
agências policiais e sociedade, num olhar próximo da abordagem que Reiner (2004)
desenvolveu ao falar de uma “cultura policial”. Só que, pela ausência de estudos que
esmiúcem essa “configuração”, fui em busca dos pormenores que caracterizam a “distinção
policial militar” nas diversas nuances do cotidiano, ao modo como Elias (2001) nos descreveu
o significado que tinha a Sociedade de Corte para os nobres que participavam do reinado de
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Luís XIV.2 Fotografei desde símbolos incomuns para os “paisanos” como as espadas que os
Oficiais usam depois que se formam no Curso de Formação de Oficiais (CFO) aos diversos
uniformes utilizados nas mais variadas atividades policiais militares, como forma de
enaltecimento simbólico, pois, como nos diz Giddens (2002), “a roupa é muito mais que um
simples meio de proteção do corpo – é manifestamente um meio de exibição simbólica, um
modo de dar forma exterior às narrativas da auto-identidade” (p. 62). Além disso, acrescentei
como parte das entrevistas aos policiais que trabalham no policiamento solidário questões
relativas ao histórico deles na instituição PM, de modo que eu pudesse apreender as nuances
que caracterizam essa distinção.
Todos os dados coletados levaram-me a entender que, pela existência própria da
“distinção policial militar”, que acaba por configurar exatamente o distanciamento entre
“militares e paisanos” (CASTRO, 2004), sendo os últimos uma condição pejorativada assim
vista pelos militares, como as instituições policiais militares podem afirmar a existência de
um “policiamento de proximidade” com a sociedade, já que em sua própria natureza os
policiais militares sentem-se diferentes daqueles que são por eles vigiados? Por essa
consideração, procurarei mostrar que a preocupação não seria perguntar “Quem vigia os
vigias?” (LEMGRUBER et al., 2003), mas a indagação a ser feita é: “Como os vigias
sofisticam sua vigilância para não serem vigiados?”.E por esse aspecto, se estamos a tratar de
“estratégias” de poder que consolidam formas de controle social mais sofisticadas,
procuraremos mostrar que existe uma correlação entre a distinção policial militar e
mecanismos biopolíticos (FOUCAULT, 1999).
Nessa perspectiva, no que tange aos elementos etnográficos, podemos dizer que nossa
análise aproxima-se da perspectiva adotada por Elias (2000) quanto à forma de apreensão dos
dados, os quais nos ajudam a demonstrar que, entre policiais militares e moradores, “um
grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração diferencial
contribui substancialmente para seu excedente de poder” (p. 22). No entanto, a abordagem
que adotamos neste trabalho não se resume a analisar o poder enquanto algo excedente
apropriável por um grupo, mas como uma relação que possibilita o controle e a
“normalização” de toda uma população pelos cálculos político-estratégicos vinculados ao
Estado. Nesse foco, a perspectiva foucaultiana foi utilizada (FOUCAULT, 1988, 1999, 2009)
2
Aludo a esta comparação com os trabalhos de Norbert Elias sobre a Sociedade de Corte pelo fato desta Tese
visar explicar relações de poder que se estabelecem entre policiais e moradores. No caso de Elias, é demonstrado
como a etiqueta funciona como um dos mecanismos de diferenciação entre a nobreza e os outros segmentos
sociais. Em relação às Polícias Militares, a disciplina se desenvolve como elemento semelhante e, por isso,
mostraremos ao longo deste trabalho como a disciplina diz respeito a uma das facetas da biopolítica.
24
nosso país. A partir dessa apreciação, nos reportaremos às características identitárias dos
policiais militares para analisarmos os elementos simbólicos e culturais que constroem o “ser
militar” ou, baseado no que considera Castro (2004) sobre o “espírito militar”, o que
conforma o “espírito policial militar” e as distinções que surgem com base nesse processo
identitário tanto entre os policiais como, especialmente, entre policiais e civis. O foco na
identidade simbólica policial militar será abordado como forma de mostrarmos que a
distinção policial militar faz parte das estratégias biopolíticas e de “governamentalidade”
(FOUCAULT, 1979), que veremos tratarem-se da configuração do antigo sonho descrito por
Foucault (1987), o qual teria se desenvolvido juntamente com o sonho iluminista do século
XVIII de termos uma sociedade regida pela razão, ou seja, de termos também uma sociedade
guiada pelos princípios militaristas.
Assim, este trabalho visa enriquecer o debate no mundo científico, no sentido de
ampliar as discussões em áreas como a Sociologia do Poder, da Violência e do Controle
Social. Além disso, torna-se evidente que esta pesquisa busca esclarecer a existência de
formas ocultas de poder que acabam por minar a apreciação crítica e a resistência dos
dominados, o que nos conduz a vislumbrar a importância dos resultados aqui discutidos para a
sociedade e para a compreensão da forma de atuação das Polícias Militares em nosso país.
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CAPÍTULO 1
3
No capítulo 3 faremos uma digressão histórica para retomarmos a origem dos organismos policiais a partir do
período feudal. Tal análise será empreendida de forma diferente do contexto por ora adotado porque, neste
momento, tentamos explicar o que sustenta o discurso de implantação do policiamento comunitário e, adiante,
recorreremos à exposição histórica para mostrar como os organismos policiais surgiram na Modernidade como
uma das facetas do processo de governamentalidade (FOUCAULT, 1979, 2008), o que suscita relações de poder
para controlar, a partir dessas instituições, as populações.
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A polícia londrina criada por Robert Peel em 1829 traduz, de certa forma, um modelo
de organização policial que buscou vencer a desconfiança dos ingleses em relação à
4
Durante a Banca de Qualificação desta Tese, no ano de 2014, o Profº Nildo Avelino levantou a interessante
hipótese de que os primeiros rudimentos de uma polícia comunitária poderiam ter surgido na França absolutista
com o regime de lettres de cachet, através do qual o soberano agia para solucionar os pedidos feitos pela
população (conflitos entre pais e filhos, confrontos entre vizinhos, brigas entre casais, enfim). Se comparadas as
situações que eram solucionadas mediante o poder soberano pelo sistema de lettres de cachet, ver-se-ão
acontecimentos análogos aos que preconizam as teorias sobre o policiamento comunitário no que tange à
resolução de pequenos conflitos que envolvem a comunidade, porém, a ideia sobre uma polícia de cunho
comunitário, acreditamos, aproxima-se mais do modelo inglês por este ter surgido com respeito às liberdades
individuais numa política de cunho liberal e não por imposição soberana como ocorreu na França. No entanto, o
sistema de lettres de cachet pode ser um indicativo histórico para uma melhor compreensão de como ocorreu a
transição de um modelo de segurança privada no período feudal para um modelo público de segurança. Além de
que, segundo Foucault, o sistema de lettres de cachet é um caso particular da França. Para maiores
esclarecimentos ver FOUCAULT, Michel. “A vida dos homens infames”. In.: Ditos & escritos IV: estratégia,
poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. p. 203-222.
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autoridade estatal que, segundo a população, poderia retirar as liberdades civis conquistadas,
ainda mais se fosse uma instituição baseada em princípios militaristas (BATITUCCI, 2010;
MUNIZ, 1999). No entanto, os diversos eventos populares que eclodiram em Londres durante
a década de 20 do século XIX propiciaram a reformulação das forças policiais da cidade. Tais
conflitos populares, somados ao crescente número de crimes brutais representam, de certa
maneira, os resultados de uma cidade afetada pela industrialização e pela urbanização. Além
disso, o que existia era a atuação de forças policiais de cunho particularista, ou seja, que não
eram formadas por agentes públicos pagos pelo Estado, e cujo modus operandi baseava-se na
tortura e em alguns privilégios, além de não exercerem suas atividades de forma
regulamentar. Destacava-se ainda a ineficiência do Exército em conter as insurgências
populares, dado o grau de brutalidade próprio às Forças Armadas.
Nessa conjuntura, fala-se então na construção da “legitimidade” (REINER, 1992) da
polícia londrina que, para conquistar o respeito e a confiança dos ingleses (tanto da burguesia,
quanto das classes proletárias), teve nas reformas empreendidas por Robert Peel o caminho
que provasse ser a polícia capaz de manter a paz e a ordem social interna, bem como o
combate à criminalidade, respeitando os direitos civis assegurados aos cidadãos. Por esse viés,
tal legitimação da polícia londrina foi assegurada por uma série de situações.
O estabelecimento do consenso, ou melhor, da aceitação da polícia pela sociedade
ocorreu principalmente depois da incorporação das classes proletárias nas instituições
políticas e econômicas da Inglaterra. Além disso, o consenso pode ser percebido como parte
do “processo civilizador” das condutas que permitiu a harmonização das relações sociais
(ELIAS, 1993, 2011). Concomitante ao consenso, a nova polícia profissionalizou-se passando
a ter agentes trabalhando em tempo integral, que passaram a ser promovidos com base no
mérito e não mais por influências partidárias, visto que o modelo de organização centrou-se
numa hierarquia burocratizada. As normas legais foram incorporadas como forma de
orientação da atuação dos policiais, o que passou a prescrever a discricionariedade das ações
dos guardas, ou melhor, a escolha de decisões que orientem a conduta policial para a prática
de comportamentos na hora de atuar mediante as Leis. E a ausência no uso de armas tornou-se
um elemento fundamental como estratégia do uso da força mínima e para a obtenção do apoio
popular, tanto que apenas o cassetete deveria ser usado nas atuações (ainda assim, de forma
velada), e se possível como o último recurso. Outro ponto dizia respeito à polícia distanciar-se
da política, o que garantiria a responsabilização dos atos dos policiais pela Corte Britânica e
por uma certa proximidade com o povo e não com o Estado. Essa proximidade com a
sociedade caminhava próximo ao fato da polícia também desempenhar outros serviços que
31
De uma instituição odiada e temida, a polícia passou a ser vista como a incorporação
da autoridade impessoal, seguidora da lei, aplicando democraticamente a legislação
aprovada, no interesse da maior parte da população e não de quaisquer interesses
partidários, e mantendo-se estritamente dentro das exigências do devido processo
legal. Tal conquista é devida a uma variedade de estratégias organizacionais da
polícia, mas essas só tiveram sucesso por causa da maior inserção da classe operária
no contexto social (REINER, 2004, p. 97).
De todo modo, a origem da polícia londrina criada por Robert Peel, dado o fato, como
constatamos, da história da mesma servir de mote para compreendermos os motivos que
levaram o Estado a criar uma força pública que legitimasse o uso da violência legal, propiciou
debates nos estudos históricos sobre as polícias que colocou em lados opostos pesquisadores
considerados “ortodoxos” e “revisionistas” (REINER, 2004). Os primeiros defendem a
análise da criação da polícia londrina como produto do consenso entre burguesia e classes
proletárias. Os segundos argumentam pela criação de uma polícia que ideologicamente
protege os privilégios burgueses em detrimento das classes pobres. Além disso, em meio aos
debates que posicionam pontos de vista divergentes quanto aos motivos pelos quais as
polícias foram criadas, emerge também a síntese, que vincula ao mesmo tempo resultados que
se imbricam. Analisemos, então, estes debates a partir do que nos expõe Reiner (2004).
Sob o ponto de vista “ortodoxo”, teriam sido os problemas advindos da
industrialização e urbanização que incidiram diretamente na manutenção da ordem social que
garantiu a busca pelo estabelecimento de uma polícia profissional e permanente por parte do
Governo inglês, isto porque os sistemas policiais anteriores a 1829 eram fragmentados,
amadores e privatizados, o que acabava por fazer os seus agentes incorrerem em atos de
corrupção. Assim, a reforma da polícia inglesa foi motivada pelo “medo do crime”, que era
alicerçado pelo desregramento moral. No entanto, houve oposição à implantação da nova
polícia que se baseava no discurso de que as liberdades tradicionais dos ingleses poderiam ser
suprimidas, tanto do ponto de vista dos aristocratas quanto dos trabalhadores. Só que, tal
oposição foi rapidamente abolida quando os valores positivos da nova polícia passaram a ser
reconhecidos. E por esse liame, os pesquisadores ortodoxos defendem a ideia de que a
novidade por trás do policiamento que surgiu “consistia na instituição de uma organização
32
modelo de administração. Além disso, é possível afirmar que tanto as classes alta e média
como as classes trabalhadoras se opuseram à implementação dos novos órgãos policiais. As
primeiras por não aceitarem perder as liberdades civis, pagar os impostos advindos com os
custos de uma polícia pública e pela interferência do governo em assuntos locais por meio da
ingerência policial. Quanto às classes operárias, receava-se a intromissão da polícia em
momentos de recreação e nas formas de atuar no controle das reformas políticas e industriais.
Ainda mais,
Em resumo, embora fosse pequeno seu impacto inicial em qualquer coisa que não
fosse a economia casual das ruas e suas ilegalidades marginais, no final a polícia
estava envolvida em um amplo processo de pacificação ou integração da sociedade
vitoriana. Apesar de ser difícil estabelecer o peso de sua contribuição característica,
sem dúvida ela foi significativa (Ibidem, p. 76).
O que se está a admitir pelo exposto é que, o surgimento da nova polícia inglesa
acabou por conformar um certo grau de legitimidade com base no consenso (TAVARES DOS
SANTOS, 1997), mas de modo a se ter conhecimento que a ordem social capitalista está
eivada pelo conflito, o que poderá suscitar momentos alternados de pacificação e opressão na
relação entre polícia e sociedade. O que percebemos é que a polícia inglesa tornou-se uma
representação do lado mais comunitário de policiar que influenciou as polícias ocidentais,
inclusive a brasileira. De todo modo, por não encontrarmos nas explicações de Reiner (2004)
argumentos suficientes para entendermos o que propomos no nosso problema de tese,
importa-nos compreender como se estruturam relações de poder no momento em que as
instituições policiais visam uma “proximidade” com a sociedade, por meio da afirmação de
um discurso mais democrático.
Por esse prisma, se tivemos até aqui na história da relação entre polícias e sociedades
no Ocidente, a partir de um contexto histórico exemplificado pelo modelo inglês de polícia,
na modernidade, uma espécie de pêndulo (HELLER; FEHÉR, 1995) entre o consenso pela
permanência da organização social e a arbitrariedade policial para a manutenção da ordem,
nos posicionamos, neste sentido, para buscar entender relações de poder que indicam ser o
poder “uma forma de exercício da dominação caracterizado pela legitimidade, e por sua
capacidade de negociar o conflito e estabelecer o consenso” (TAVARES DOS SANTOS,
2009, p. 39). Diríamos, nesse contexto, que estamos a falar de relações de poder que se
coadunam com formas de governamentalidade (FOUCAULT, 1979), ou com modos de
conduzir estrategicamente populações, fortalecendo o próprio poder e sofisticando as
35
dissimetrias entre os agentes que participam da relação (o que, para nós, tratar-se-ia de
observar de um lado a polícia e do outro a sociedade). Estamos, neste sentido, no plano da
biopolítica5 e do biopoder, ou melhor, na situação a partir da qual a vida das populações no
Estado-moderno tornou-se alvo de regulamentações estatais sustentada por uma relação de
saber-poder (FOUCAULT, 1988, 1999). Por essa percepção, temos que “todos os tipos de
domínio residem na mediação institucional do poder, mas são canalizados pelo uso de
estratégias definidas de controle, que dependem, em grau significativo, da forma de
dominação de onde são geradas” (GIDDENS, 2008, p. 36).
Nesse foco, recobramos Foucault (1987) quando o mesmo nos diz que tais estratégias
se fortalecem a partir da emergência de saberes, pois, “o poder produz saber. Poder e saber
estão diretamente implicados. Não há relação de poder sem constituição correlata de um
campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de
poder” (p. 27). Vejamos abaixo, como exemplo, a propaganda (saberes), utilizada pela Polícia
Militar da Paraíba para divulgar o policiamento solidário na cidade de João Pessoa.
Mas, antes que possamos compreender esse processo envolto por estratégias que
sustentam um novo modelo de policiamento mais próximo da sociedade, mostremos,
portanto, como se fundamentou a suposta falência do modelo profissional e tradicional de
polícia que serve de mote para o discurso de implementação do policiamento comunitário e
solidário.
5
Para um melhor conhecimento acerca do debate atual sobre biopolítica ver a coletânea de textos organizada por
Campbell &Sitze (2013).
36
6
Nome popular como ficaram conhecidos os policiais da Polícia Metropolitana de Londres.
37
politicamente ativos. A força policial ganhava o nome do prefeito que estivesse no poder”
(LANE, 2003, p. 23). Existiam modelos de policiamento descentralizados sob a influência dos
particularismos locais, mas entre as décadas de 1850 e 1880, talvez pela demanda sobre o
controle das atividades policiais que se tornara preventivo e permanente, massificou-se a
uniformização dos policiais em todo o país. Outra vertente defende a ideia de que tal
massificação de homens fardados tenha seguido o ritmo da racionalização dos serviços
públicos, como os policiais, que antes eram de caráter particular (BATITUCCI, 2010).
Esse processo, pois, engendra o afastamento das polícias norte-americanas dessa
aproximação com os políticos locais o que fez com que, no transcorrer do século XX, as
instituições policiais nos Estados Unidos passassem por inúmeras transformações que
acabaram por consolidar um policiamento baseado no patrulhamento de cunho reativo. Essas
modificações foram implementadas não só no serviço de atendimento aos cidadãos, mas na
dinâmica interna das instituições policiais, bem como na relação que as polícias mantêm com
os ambientes externos, como as estratégias criadas para combater a corrupção policial. As
mudanças ocorridas basearam-se, como já pontuamos anteriormente, no estabelecimento de
uma burocracia quase militar que se desenvolveu para configurar-se como “legalista e
tecnocrática”, a qual gerou implicações no sentido de que, quanto ao sistema de controle
hierárquico os policiais passaram a obedecer ao comando policial, ao invés do poder das
autoridades políticas como ocorria no século XIX. Passou a existir uma confiança legal na
polícia (REISS JR., 2003), devido aos parâmetros de organização que foram adotados. A
burocratização dos serviços policiais também possibilitou a divisão entre os que trabalham na
linha de frente e os profissionais de escritório, além de afastar também do apadrinhamento
político a formação policial, que se realizou a partir de então “por um sistema de mérito
baseado em testes de qualificação e um sistema de promoções baseado em patentes” (Ibidem,
p. 86). Por fim, a burocratização das funções policiais consolidou uma divisão institucional do
trabalho que especializou as tarefas e fixou os locais de jurisdição.
Assim, as mudanças na estrutura da organização policial norte-americana estiveram
vinculadas às modificações ocorridas na sociedade como o aumento populacional das cidades,
a transformação nas políticas governamentais em relação às comunidades, além das
implementações tecnológicas. Sobre as últimas, o impacto da utilização dos novos aparatos
tecnológicos (o uso de veículos no patrulhamento, o rádio como mecanismo transmissor e o
telefone) acabou por consolidar o que passamos a conhecer como policiamento tradicional ou
profissional. Sobre as consequências da efetivação dessas políticas de mudança institucionais
no âmbito das polícias estadunidenses
39
Ainda mais, pode-se afirmar que uma das maiores perdas diz respeito ao isolamento
das polícias em relação à sociedade, pois, “o oficial de patrulha, em um carro com ar
condicionado e aquecimento, não saía mais dele para fazer patrulha preventiva ou saber mais
sobre a comunidade que estava policiando” (Ibidem, p. 67), o que significa dizer que a
confiança da população nas polícias para resolver seus problemas se exauriu e, no tocante a
certos segmentos sociais como alguns grupos minoritários, o sentimento foi de hostilização
por parte dos policiais.
As observações sobre o fracasso, em certo sentido, do modelo inglês e norte-
americano de polícia nos acenam para o surgimento, na atualidade, da tentativa de se
remodelar as formas de atuação policial que visem à reaproximação entre polícia e sociedade,
mas antes vejamos como o modelo policial brasileiro seguiu a mesma lógica do policiamento
tradicional, mas de acordo com características próprias ao modo como as polícias se
desenvolveram em nosso país.
7
Ver Constituição Federal de 1988.
40
8
Inclui-se, nesse sentido, o Distrito Federal.
41
força militar voluntária. De todo modo, ao abolir a Guarda Real, devido a sua participação em
agitações políticas, criou-se “em seu lugar uma corporação com caráter também militar, mas
com distinções fundamentais, como o recrutamento entre os pobres e subordinação a uma
autoridade civil” (MELO, 2009, p. 40). Nesse contexto, em 1831 surge o Corpo de Guardas
Municipais Permanentes no Rio de Janeiro, o qual foi fundado
promulgada no Estado Novo, não fez alusão às Polícias Militares, o que voltou a ocorrer com
a Constituição de 1946 onde em seu Art.183 lê-se que “As polícias militares instituídas para a
segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal,
são consideradas, como forças auxiliares, reservas do Exército”.
Com o advento do golpe militar de 1964, foi promulgada a Constituição de 1967, na
qual as Polícias Militares permaneceram como forças auxiliares e reservas do Exército (Art.
13, parágrafo 4). O único acréscimo coube à inserção do Corpo de Bombeiros Militares na
redação do mesmo artigo referente às Polícias Militares. Tal fato se esclarece quando se
observa que “as ações cívicas constituem uma estratégia militar que tem por objetivo garantir
uma boa imagem das instituições militares para com a população” (KROK, 2008, p. 42).
Nesse contexto político, a profissionalização das Polícias Militares consolidou-se mediante a
subordinação ao Exército, ratificando o que prescrevia as Constituições de 1934 e 1946 e sua
função baseava-se na manutenção da ordem e da segurança interna nos Estados, nos
Territórios e no Distrito Federal. Com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, a Segurança
interna foi retirada como prerrogativa constitucional sendo de competência das Polícias
Militares, de modo que permaneceu apenas a manutenção da ordem na referida Emenda
Constitucional.
Nesse contexto, por terem ficado incumbidas da manutenção da ordem pública, as
Polícias Militares tiveram relevante papel na ditadura militar, a qual vigorou sob o enfoque da
“Ideologia de Segurança Nacional” (COMBLIN, 1978) e foi mantida diretamente pelas
condições ideológicas impostas pelo National War College, a Escola Superior de Guerra
Americana (ESG). Segundo Teles (2010), o que legitimou a perpetuação do Estado de
exceção foram os anos de Guerra Fria, pois os princípios da Doutrina de Segurança Nacional
surgiram ainda na Segunda Guerra Mundial no contato entre os militares norte-americanos e a
Força Expedicionária Brasileira (FEB). Antes mesmo do golpe empreendido em 1964, já
eram articuladas aproximações entre militares e empresários pela intermediação da ESG e,
desses contatos, foi criado posteriormente o Serviço Nacional de Informações (SNI), que se
tornou elemento fundamental na manutenção do Estado militarizado no Brasil.
O regime de exceção consolidou-se como tempos difíceis que marcaram o imaginário
popular do brasileiro. As instituições que eram responsáveis por promover um regime político
que assegurasse aos cidadãos seus direitos fundamentais, entre eles, a segurança, percorreram
o caminho inverso. Através das Forças Armadas e dos organismos policiais implementou-se
um regime de perseguição a todos que denunciavam e eram contra o sistema político-social
imposto. Nessa realidade, as palavras insegurança, medo e morte denotam em quais princípios
46
Esse medo fazia parte de nós que tínhamos algum nível de informação durante os
anos sessenta e começo dos setenta e contaminava o nosso cotidiano. Como você
deveria reagir se a operação OBAN lhe abordasse? Você deveria visitar o seu amigo
ou amiga na cadeia e ser identificado como o amigo dele ou dela? Você deveria ir
assistir ao julgamento de um amigo ou amiga no Tribunal Militar? Apresentar sua
identidade a alguma autoridade não era uma experiência neutra. Se você fosse uma
pessoa minimamente informada, com certeza se sentiria apreensiva ao retornar do
exterior ao país e ver seu passaporte desaparecer em um buraco de uma parede,
sabendo que seria examinado por um anônimo e não tendo certeza se seu documento
seria devolvido ou que tipo de informação estava sendo extraída dele. Todos esse
fatos podiam ser totalmente inofensivos mas também podiam ser perigosos porque
os critérios utilizados pelos policiais não eram conhecidos, ou seja, pelo próprio
arbítrio vivido (p. 250).
FIGURAS 3 (Esquerda) e 4 (Direita): Instrução do Exército sobre revista a pessoas e veículos no 16º RCMEC
em Bayeux (Paraíba).
FONTE: Tenente Dutra da PMPB (2007).
Essa violência excessiva, porém legítima, já que respaldada e garantida pelo governo
militar, deixou marcas profundas em nossa sociedade, pois “torturar e matar para depois
desaparecer com os corpos foi um dos primeiros atos da ditadura e a presença dessa memória
na vida pública brasileira é signo da mudez da democracia em relação a sua herança
autoritária” (TELES, 2010, p. 309). Desse modo, após vinte anos de ditadura, o Brasil chegou
ao seu novo contexto democrático onde a promulgação da Carta Constitucional de 1988
tornou-se o ícone maior desse processo de transição. Mas, enquanto as Polícias Militares
preparavam-se para se adaptarem à realidade democrática pós-ditadura, restou também a
herança não só da memória coletiva sobre as atrocidades que foram cometidas, mas a cultura
48
policial militar ratificou seu modo autoritário de atuar, dado o fato do modelo organizativo
sobrevindo do Exército não ter sido descartado mesmo com a aprovação da Constituição de
1988.9
Portanto, de acordo com o percurso histórico adotado por meio de uma perspectiva
comparada entre as polícias da Inglaterra, Estados Unidos e Brasil, no tocante ao processo de
profissionalização das mesmas, vimos que o modelo profissional adotado em cada um dos três
países acabou por gerar problemas que distanciaram polícias e sociedade. De qualquer modo,
mesmo sendo a violência praticada pelos policiais um dos problemas mais graves e presentes
nos três países, nas Polícias Militares brasileiras a violência ilegal exercida pelos PM‟s
sempre esteve atrelada à construção de um profissional que obedece aos ritos e à cultura
militarista. Desse modo, talvez possamos afirmar que o legado autoritário e o modelo de
formação profissional herdados pelas Polícias Militares constituem um dos maiores dilemas
para a consolidação de nossa democracia. No entanto, os debates sobre a reformulação dos
organismos policiais teem ocorrido em todos os continentes como forma de se construir uma
“polícia cidadã” pelos princípios do que foi conhecido como policiamento comunitário.
9
Segundo o § 5º do Artigo 144 da Constituição Federal de 1988, “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva
e a preservação da ordem pública” e, no § 6º, especifica-se que “As polícias militares e corpos de bombeiros
militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos
Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Ver Constituição Federal de 1988.
49
10
Para o conhecimento de outras experiências ao redor do mundo ver Wisler & Onwudiwe (2009).
51
terceiro diz respeito às casas do policiamento de bairro onde os policiais “realizam ronda a pé,
fazem reuniões com os moradores do bairro, ensinam crianças em um programa educacional,
trabalham com o SSP etc. Andam armados para combater problemas e servem uma área
relativamente circunscrita e designada” (Ibidem, p. 48). Na Grã-Bretanha, o policiamento
comunitário se constitui como uma miscelânea de programas que não possuem centralidade
estratégica, porém, 5% dos oficiais da MET participam das “rondas de moradias”, que se
configura na busca da prevenção do crime, no patrulhamento a pé e na tentativa de estreitar os
laços da polícia com a comunidade. Na Ásia, o Japão possui o modelo mais antigo de
policiamento comunitário conhecido, o qual apresenta os elementos que caracterizam esse
tipo de policiamento (SKOLNICK & BAYLEY, 2002). E, em Cingapura, ao imitar o modelo
do Koban japonês em detrimento do modelo reativo herdado da Grã-Bretanha, foram
implantados os “Postos de Polícia de Bairro”, os quais representam o melhor exemplo na
mudança de uma força policial reativa ao modelo comunitário de policiar. Por fim, nos
Estados Unidos, observam-se diversas experiências pelo país, mas que se traduzem em
“aspiração” ao invés de “implementação” (Ibidem, 2002).
Pelas considerações apontadas, podemos dizer, pois, que o policiamento comunitário
se trata de uma “cooperação maior entre a polícia e a comunidade” (SKOLNICK &
BAYLEY, 2002, p. 69). No entanto, várias implicações surgem dessa constatação principal
sobre o que seja o policiamento comunitário, o que nos leva a destacar uma definição mais
ampla com as principais características que são teorizadas para fundamentar esse tipo de
policiamento.
Diversos autores (TROJANOWICZ & BUCQUEROUX, 1994; MOORE, 2003;
SKONICK & BAYLEY, 2002; SKOGAN, 2002; GREENE, 2002; ROSENBAUM, 2002;
CERQUEIRA, 1999) colaboram para que possamos compreender que o policiamento
comunitário trata-se de uma filosofia e de uma estratégia organizacional que possibilita uma
nova parceria entre a polícia e a população. Por meio de um trabalho conjunto, podem-se
resolver problemas relativos ao crime, drogas, medo do crime, os que ocasionam desordens
físicas e morais, além da decadência do bairro, de modo que se busque a melhoria na
qualidade de vida dos locais onde exista esse tipo de policiamento. Para tanto, é necessário
que exista o comprometimento de todos os policiais com um olhar voltado para a prevenção e
com ênfase na descentralização do patrulhamento, dando-se maior autonomia e liberdade aos
policiais em contato com as pessoas nas ruas. Esse contato visa à aproximação entre policiais
e moradores, inclusive pelo fato do policiamento comunitário privilegiar o patrulhamento a
pé, ao invés do uso da viatura tradicional de rádio-patrulhamento. Essas condições exigem a
52
permanência do policial comunitário nas áreas em que atua. Por esse escopo, “o policiamento
comunitário impõe uma responsabilidade nova para a polícia, ou seja, criar maneiras
apropriadas de associar o público ao policiamento e à manutenção da lei e da ordem”
(SKOLNICK & BAYLEY, 2002, p. 18). De modo sintético, poderíamos dizer que o
policiamento comunitário se baseia na crença que o caracteriza como,
Durante as entrevistas realizadas para este trabalho, alguns policiais militares quando
indagados sobre o que viria a ser o policiamento comunitário, ou até mesmo solidário,
inclusive aqueles que não têm o curso de polícia comunitária promovido pela PM paraibana,
nos responderam que: “É um contato com a sociedade. É você saber quais os problemas da
comunidade. O que é que realmente a comunidade precisa” (Tenente, UPS de Mandacarú);
“Policiamento solidário é aquela polícia que trabalha junto com a comunidade” (Soldado,
UPS São José); “Seria esse contato, esse elo de ligação entre a polícia e a sociedade através
dos seus policiais capacitados com curso de polícia comunitária” (Cabo, UPS Jaguaribe); “Na
verdade o policiamento comunitário é tudo aquilo que nós estamos junto com a população, ou
seja, a comunidade na hora que precisa, nós estamos pronto pra ter uma solução informando o
tipo da solicitação e nós tamo dando um apoio [sic]” (Sargento, UPS Róger); “O policiamento
11
Community policing is, in essence, a collaboration between the police and the community that identifies and
solves community problems. With the police no longer the sole guardians of law and order, all members of the
community become active allies in the effort to enhance the safety and quality of neighborhoods. Community
policing has far-reaching implications. The expanded outlook on crime control and prevention, the new emphasis
on making community members active participants in the process of problem solving, and the patrol officers‟
pivotal role in community policing require profound changes within the police organization. The neighborhood
patrol officer, backed by the police organization, helps community members mobilize support and resources to
solve problems and enhance their quality of life. Community members voice their concerns, contribute advice,
and take action to address these concerns. Creating a constructive partnership will require the energy, creativity,
understanding, and patience of all involved (tradução nossa).
53
solidário é essa proximidade, esse convívio com a sociedade buscando um contato direto pra
diminuir a distância entre a polícia e a comunidade “ (Soldado, UPS São José); “É o policial
conhecer a problemática da comunidade e visualizar por ângulos diferenciados, não agir
apenas como polícia, mas agir como um agente social” (Sargento, UPS Mandacarú).
Se olharmos para o nosso país, por exemplo, podemos dizer que o policiamento
comunitário está mais próximo da democracia, pois rege a nossa Constituição de 1988 em seu
Artigo 144 que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é
exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio”. Isso significa dizer que, mesmo com a abertura político-democrática em nosso
país não se efetivou um modelo de polícia pautado em princípios constitucionais. Dessa
forma, “a solução da crise da polícia passaria pela reaproximação entre a polícia e a sociedade
e pelo desenvolvimento de instituições e práticas capazes de assegurar a prestação de contas
aos cidadãos e o atendimento das expectativas dos cidadãos por parte da polícia”
(MESQUITA NETO, 2011, p. 75).
O que se percebe é que o conceito de policiamento comunitário busca a atuação da
polícia para além do campo estritamente reativo. Ou seja, sai de uma caracterização no papel
da polícia como sendo uma atividade centrada no combate direto ao crime e na manutenção
da ordem, através da ação ensejada pela solicitação telefônica dos moradores após a
ocorrência do crime ou durante a presença nas ruas das viaturas policiais exercendo o
patrulhamento. Ao contrário, a maioria dos atendimentos policiais são emergências de cunho
social como a resolução de conflitos domésticos, atendimento a crianças e pessoas
desaparecidas, problemas com alcoolismo e perturbação do sossego devido ao uso no excesso
de som, situações com usuários de drogas e doentes mentais, socorro médico, atos de
vandalismo, problemas gerados no trânsito, enfim (MOORE, 2003, DIAS NETO, 2002).
Nesse sentido, os policiais que entrevistamos também apontam quais seriam os principais
problemas a serem solucionados que surgem no projeto de policiamento solidário: “Deter,
conduzir à delegacia, conversar, aconselhar. Problema familiar, um marido alcoólatra, ou
agrediu a mãe, ou pequenos furtos. A polícia solidária da forma que foi implantada no bairro
ela serviu ao bairro” (Cabo, UPS do Bola na Rede).
Dessa maneira, pode-se dizer que os movimentos que impulsionaram a implementação
de diversos projetos de policiamento comunitário pelo mundo e, particularmente nos Estados
Unidos, visam não apenas a busca de um modelo de policiamento mais próximo da
população. Torna-se também importante para a implantação de um policiamento comunitário
o trabalho preventivo de combate ao crime bem como, a valorização do trabalho policial que
54
não deve estar pautado na atuação violenta e repressora contra as minorias e as populações
afro-descendentes. Somam-se a essas condições, ainda para fortalecer a criação de uma
polícia comunitária, elementos como o aumento da criminalidade, o medo em consequência
desse aumento e a desordem provinda da deterioração dos bairros. Nesse sentido, destacou-se
como justificativa a “teoria das janelas quebradas” proposta por Wilson e Kelling (1982), que
nos demonstra que, caso exista uma janela quebrada e ela não seja consertada, certamente o
resultado será mais janelas quebradas, o que significa dizer que essa deterioração pode
estimular a prática de atividades criminosas sérias estabelecendo uma correlação entre crime e
desordem. Assim, ao sintetizar as conclusões de algumas pesquisas que correlacionam crime e
desordem e o consequente aumento no medo do crime, Rosenbaum (2002) expõe que
Essas considerações nos fazem retomar os propósitos que originaram as teorias sobre o
policiamento comunitário e a destacar a solução de problemas como um fato que se traduz
como o “cerne da teoria do policiamento comunitário” (Ibidem, p. 39). O “Policiamento
orientado para a solução de problemas” foi proposto por Hermann Goldstein (DIAS NETO,
2002; SKOLNICK & BAYLEY, 2002; BRODEUR, 2002; MOORE, 2003; GREENE, 2002)
e se diferencia do policiamento comunitário em sua aplicação, porém, corrobora em muitos
princípios, propósitos e objetivos com o policiamento comunitário. Segundo Palmiotto
(2011), além das considerações propostas por Goldstein, o policiamento orientado para a
solução de problemas também sofreu influência da proposta criada por Eck e Spelman
cunhada de incident-driven policing. De todo modo, ambos os modelos aproximaram-se em
uma abordagem que,
12
Was an attempt to go beyond the limitations of the professional model by focusing on the ends of policing
rather than the means; encouraging police initiative in addressing community problems; attempting to solve
persistent problems by analyzing their causes; assessing the appropriateness of current strategies; developing
new solutions and monitoring their effectiveness; and engaging community resources and input (tradução nossa).
56
criminalidade como tema de política pública. O último ponto se concretiza por dois eixos: o
primeiro demonstra a persistência do conflito entre dois principais modelos de políticas de
controle da criminalidade, que seriam o crime enquanto efeito de “macropolíticas sociais” e o
outro baseado nos custos advindos da vitimização a curto prazo, o que acaba por favorecer o
discurso de autonomia das políticas que envolvem a Segurança Pública. O segundo eixo
analisado diz respeito à segurança militarizada e o controle dessa esfera estatal pelo viés
democrático, o que também incide em reconhecer a autonomia desse processo. Como nos
relata a autora, é neste ponto que podemos localizar as problemáticas que envolvem as
polícias, especialmente sobre a violência institucionalizada e o decurso das ilegalidades que
surgem do reconhecimento dessa legitimação.
É nessa configuração que reconhecemos a dinâmica das conflitualidades institucionais
que passaram a envolver as PM‟s,que favorecem atualmente o debate acercada organização de
uma polícia militarizada, porém democrática. É esse discurso que encaminha a tendência atual
das políticas públicas de segurança à concepção de uma polícia mais cidadã, por fim, com
laços mais estreitos com as comunidades nas quais os policiais atuam.
O que podemos notar, de acordo com o contexto exposto por Zaluar (1999) naquele
momento, é uma incipiente coleta de dados e informações sobre o que foi caracterizado pela
autora como uma terceira fase dos estudos sobre a polícia, que seria o aparecimento das
primeiras experiências de polícia comunitária, com análise sobre as tentativas de implantação
dos primeiros projetos. De todo modo, os pequenos conflitos (familiares, entre vizinhos,
pequenos desentendimentos entre os moradores nos bairros) passavam a ganhar visibilidade
analítica. Segundo as primeiras análises sociológicas, essa busca pela nova filosofia policial
centrou-se em políticas públicas que passaram a privilegiar um “Estado social” em desfavor
de um “Estado penal” em nossa sociedade. Articularam-se os primeiros discursos na agenda
das políticas públicas com a concepção de parcerias entre policiais e moradores, com ênfase
na prevenção e participação popular na resolução dos problemas de Segurança Pública.
Decorre desse fato um certo protagonismo popular, que talvez foi interpretado como a
possibilidade de controle por parte da sociedade sobre as instituições estatais oficialmente
legitimadas para manter a ordem pública. Vê-se o nascedouro, pelo menos no plano
discursivo, de um espaço para se criar a visão da prevenção frente à criminalização da
desordem, que deveria ser tratada com o rigor repressivo. Só que, ao mesmo tempo em que se
iniciou o debate para a implantação da polícia comunitária, a relevância da lei e da ordem foi
enaltecida, dados os problemas conjunturais de aumento gradativo do crime em suas variadas
facetas (PASSOS, 2011).
58
Por esse âmbito, as PM‟s passaram a ser objeto de estudo e especulação sobre as
práticas de seus agentes e sobre as particularidades próprias a uma instituição com modelo
específico de socialização vinculado às doutrinas militares, o que acaba por acarretar
sociabilidades advindas dessa socialização provida pelo ethos guerreiro (ELIAS, 1997;
FRANÇA, 2012a; SILVA, 2011, MUNIZ, 1999) e que atinge diretamente o contato dos
profissionais policiais com a sociedade. Com base nesse dilema, passou-se a divulgar o slogan
de uma forma comunitária de policiar. Essa maneira contrapõe-se nos preceitos doutrinários e
na execução ao modo tradicional de polícia, que ficou conhecido como policiamento
profissional, resguardado no nosso país especificamente por basear-se no modelo que alia o
fazer policial com o policiamento ostensivo fardado e o respeito às características simbólicas
do ser militar. Tal modelo constrói identidades que carregam a hierarquia e disciplina como
elementos fundamentais e característicos do modo de organização.
Nesse contexto histórico-sociológico sobre o novo paradigma de policiamento
comunitário no Brasil, destacamos que as primeiras pesquisas estiveram voltadas para a
análise do desempenho dos primeiros programas (ZALUAR, 1999), especialmente em São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Nesse sentido, o trabalho de Beato (2002), já apontava
que, na implementação do projeto de “Polícia de resultados” em Belo Horizonte, em meio a
alguns avanços como a criação de Conselhos Comunitários de Segurança Pública, havia um
distanciamento entre a teoria sobre policiamento comunitário e a prática. Surgiram
dificuldades como maior participação dos estratos superiores das Polícias Militares ao invés
dos policiais que trabalhavam diretamente no contato com as pessoas nas ruas, já que esses
últimos criavam resistência em mudar as formas tradicionais de atuação. Por uma perspectiva
análoga, Souza (1999) constata que nos cinco primeiro anos (1993-1997) de implantação do
policiamento comunitário em Belo Horizonte, mesmo com a parceria entre associações
comunitárias e Polícia Militar, o que houve foi a tensão entre as políticas preventivas do
modelo comunitário de policiar e as formas de policiamento tradicional. Nesse foco,
destacam-se as ações reativas na resolução de crimes por parte da polícia a partir do
policiamento comunitário aliado à valorização da estrutura organizacional de cunho
militarista.
No mesmo caminho, Muniz et al. (1997), demonstram as dificuldades observadas na
implantação do projeto de polícia comunitária no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Participaram da implantação do projeto setores progressistas da Polícia Militar em parceria
com o movimento Viva Rio, mas o lócus de atuação resumiu-se apenas à esfera do 19º BPM
da Polícia Militar. Esse trabalho é uma das primeiras análises na década de 1990 sobre as
59
encontram-se presentes duas racionalidades distintas: uma de cunho neoliberal, que propugna
a criação de parcerias preventivas por uma lógica de “cultura do controle” (GARLAND,
2001) e outra que efetiva a atuação do Estado na prestação de segurança à sociedade, próxima
da lógica do estado assistencialista.
No entanto, o que se percebe nos estudos até então realizados sobre policiamento
comunitário é a permanência da cultura policial militarista como componente que dificulta
processos de mudança nas organizações policiais militares, além da resistência no uso do
policiamento tradicional realizado em viaturas. Por esse parâmetro, Passos (2011) nos mostra
que no projeto de polícia comunitária em Aracajú, Sergipe, prevalece o patrulhamento
motorizado e, em bairros de classe média, os moradores preferem confiar nos seus
“condomínios fechados” ao invés de criarem vínculos com a polícia militar. Para Batitucci et
al.(2011) importou analisar os dados e referências sobre as experiências até então realizadas
no que diz respeito ao sistema de policiamento comunitário em Minas Gerais. Ao ter como
fonte de informações pesquisas sobre a evolução dos programas de policiamento comunitário
no estado mineiro, os autores destacam criticamente que, mesmo com as primeiras
experiências iniciadas no final da década de oitenta, atualmente persiste o distanciamento
entre os aspectos doutrinários do modelo comunitário de policiamento e a própria execução
do programa; a presença marcante da atuação dos policiais comunitários com base no modelo
de policiamento profissional reativo e repressor; a falta de motivação dos policiais
comunitários devido à ausência de incentivos e recompensas para os mesmos, ou seja, em 15
anos, a tentativa de manter o policiamento comunitário em Minas Gerais esbarra nas
dificuldades culturais e institucionais.
Gottardo e Silva (2011) discorrem sobre a implementação do programa de polícia
comunitária no Estado de Rondônia. Com proposta que foi iniciada no ano de 2003, e a
implantação da filosofia comunitária de policiamento ocorrendo na cidade de Cacoal, tal
estudo apresenta um olhar positivo dos resultados alcançados que precisa ser compreendido.
Não que esses resultados não possam realmente condizer com a realidade, mas por tratar-se de
uma pesquisa de campo, os autores, que afirmam terem realizado entrevista com policiais
vinculados ao projeto e com moradores do bairro, não expõem as falas dos sujeitos
entrevistados, além de apresentarem uma amostra que nos deixa dúvidas no que concerne ao
modo como foi utilizada a metodologia aplicada. De qualquer modo, o estudo nos informa da
existência da preocupação da Polícia Militar de Rondônia em querer fazer uso da nova
filosofia de policiamento.
62
policiais nos GPAE, o qual, mesmo tendo alcançado resultados como a redução “na
incidência de confrontos armados” nas favelas onde se aplicou o projeto, ao mesmo tempo
não se distanciou de uma prática voltada para uma cidadania excludente em relação aos
jovens considerados “suspeitos e bandidos”. Ao lançar um olhar sobre o mesmo projeto, o
GPAE, Melo (2009) chega à conclusão de que o policiamento comunitário trata-se, na
verdade, de uma forma mais sofisticada de “controle social”, pois
urbana”. Tem-se novamente aqui uma “policialização” que torna legítimo o uso da militarização
implicada com uma segurança preventiva.
De todo modo, os debates mais recentes que têm conquistado notoriedade,
especialmente por conta da mídia, dizem respeito à implantação das UPP‟s no Rio de Janeiro,
ocorrida a partir do final de 2008. No entanto, pelo fato de terem se passado apenas cinco
anos desde a implantação das UPP‟s, identificamos alguns trabalhos produzidos e discutidos
em importantes Congressos científicos como o da ANPOCS.13 Por esse viés, os temas
debatidos têm se estruturado com base em argumentos teóricos que localizam as UPP‟s como
um “campo” onde o Estado exerce sua soberania distante da normatividade jurídica em um
“estado de exceção”, de modo a criar estratégias de criminalização da pobreza nas favelas
(MATTOS, 2012), ou ainda, pela mesma perspectiva, de “militarizar a Segurança Pública”, o
que acaba por criar um “estado policial” nas favelas (SANTOS FILHO, 2013). Estaríamos a
falar de um Estado que legitima sua atuação exatamente pela ausência da lei, que garante
assim a politização e controle sobre o homo sacer e a “vida nua” (AGAMBEN, 2010). Em
outro contexto, Misse (2013) demonstra, também com análise sobre as UPP‟s no Rio de
Janeiro que o decréscimo nos índices de crimes como homicídios pode estar vinculado, além
da implantação das UPP‟s, à política do Sistema Integrado de Metas desenvolvido pela
Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro, que se iniciou em 2009. Isso significa
dizer que, concomitante com a diminuição dos homicídios houve o aumento de crimes como o
de desaparecimento. Essa constatação dificulta na afirmação de causas e efeitos na diminuição
da criminalidade nas favelas cariocas, devido ao processo complexo que envolve tal temática,
mas o que pode se notar é a não exclusividade da pacificação através das UPP‟s como
responsável pela queda no índice de crimes letais como os homicídios.
Assim, pelo levantamento das pesquisas sobre policiamento comunitário realizado, no
campo da sociologia, podemos asseverar que as principais análises centram-se principalmente
nas dificuldades para a implantação e realização do programa, devido a questões como: a
cultura policial repressora, tradicional e militarista, a burocratização do serviço de polícia, a
ausência de um certo “padrão de civilização” na atuação policial, bem como, mais
recentemente, pelas “formas de governar” do Estado que se baseiam numa política excludente
com o discurso da inclusão. Visualiza-se o policiamento comunitário como uma forma de
controle social mais eficaz por parte do Estado em relação às classes menos favorecidas, que
precisam ser vigiadas. Em continuidade, conheçamos como se desenvolveu a implantação do
policiamento comunitário em nosso país e, em específico, no Estado da Paraíba.
13
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais.
65
14
Ver em Policiamento comunitário: experiências no Brasil 2000 – 2002. São Paulo: Página Viva, 2002.
15
Referimo-nos aqui especificamente às Polícias Militares.
66
Policiamento Ostensivo Volante (POVO) no Pará; Polícia Cidadã na Bahia; Polícia Solidária
na Paraíba e, atualmente a Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro.
No contexto das políticas governamentais, foi lançado no ano 2000, durante o segundo
mandato do então Presidente Fernando Henrique Cardoso o Plano Nacional de Segurança
Pública (PNSP) que, “elaborado a partir de consultas ao Gabinete de Segurança Institucional,
governos estaduais, universidades e organizações da sociedade civil, definiu pela primeira vez
uma política nacional de segurança pública” (MESQUITA NETO, 2011, p. 390). Dentre o
conjunto de 124 ações que prescreviam medidas no âmbito do Governo Federal, desse último
com os Governos Estaduais, além de medidas de natureza normativa e institucional, no
Compromisso nº 12, que ressalta a Capacitação Profissional e o Reaparelhamento das
Polícias, tem-se que “É hoje consenso em todo o mundo que a eficiência da polícia está
diretamente ligada a sua proximidade da população e ao grau de confiança alcançado junto à
comunidade” (PNSP, 2000). De acordo com esse preceito, temos a Ação de nº 94 que
sintetiza o “Apoio à Capacitação das Polícias Estaduais e Incentivo às Polícias Comunitárias”,
ou seja, “Apoiar e padronizar a capacitação das polícias estaduais, particularmente na gestão
de segurança pública, [...] e, especialmente, na implantação de polícias comunitárias, além de
promover a integração entre as academias de polícia civil e militar” (PNSP, 2000). O PNSP
ainda previa na Ação de nº 93 a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) que
acabou por ser instituído em 14 de fevereiro de 2001 mediante a Lei nº 10.201, após ter sido
criado mediante a Medida Provisória nº 2.029, de 20 de junho de 2000. De acordo com o Art.
1º da referida lei deveria-se “apoiar projetos de responsabilidade dos Governos dos Estados e
do Distrito Federal, na área de segurança pública, e dos Municípios, onde haja guardas
municipais”. Nesse sentido, o Art. 4º, Inciso IV, relaciona o apoio a programas de polícia
comunitária.
Nesse percurso, no ano de 2009, ao ser lançada pelo Ministério da Justiça e pela
Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), a Matriz Curricular Nacional (MCN),
que consiste num compêndio que congrega ações formativas para os profissionais da área de
Segurança Pública, inclusive os policiais militares, traz em seu conjunto a Malha Curricular,
que diz respeito a “um núcleo comum de disciplinas, agrupadas por áreas temáticas, que
congregam conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, com o objetivo de garantir a
unidade de pensamento e ação dos profissionais da área de Segurança Pública” (MCN, p. 35).
Como forma de nortear, pois, os currículos dos cursos de formação dos policiais militares e
cursos à distância promovidos pela SENASP, encontramos na Malha Curricular (quando se
leva em consideração a distribuição das disciplinas de acordo com a natureza dos conteúdos),
67
Curso de Formação de Soldados (CFSD), a disciplina Polícia Comunitária foi incluída pela
primeira vez em 2002.
O Plano Estadual de Segurança Pública do Governo da Paraíba (PESP) entre os anos
de 2003 e 2006 enfatiza em vários pontos de suas diretrizes a utilização da polícia e do
policiamento comunitário como meta de governo. Para tanto, de acordo com um “Quadro
Diagnóstico Indicativo de Problemas”, para superar a mobilização comunitária deficiente
propunha-se como medida necessária o Curso de Polícia Comunitária assim como, com a
intenção de investir no aperfeiçoamento técnico-científico de recursos humanos estipulou-se
“capacitar, dentro das instituições, agentes multiplicadores nas áreas de Direitos Humanos,
Polícia Comunitária e Relações Interpessoais” (PESP, 2003, p. 19). Assim, para destacar a
prevenção como prioridade, o PESP visou implantar a Polícia Comunitária e elencou esse
objetivo como medida institucional observando “a Polícia Comunitária como filosofia,
estratégia e política de governo, transformando as polícias em instituições democráticas e
mais próximas da comunidade” (Ibidem, p. 31). O PESP ainda acentuava o Programa de
Desenvolvimento do conceito de Polícia Comunitária explicitando que
ideia para a cidade de Sousa e, de acordo com suas palavras, ao recordar sobre a notícia
exposta por uma repórter de um jornal local que dizia: “Polícia Comunitária na Paraíba
começa por Sousa”, ele afirma que tal manchete gerou problemas com seus superiores
hierárquicos.
Ainda pelas palavras do Tenente-Coronel Sobreira, o objetivo do projeto em Sousa era
“aproximar a polícia do cidadão. Gerar confiança. Estreitar os laços da polícia com os
moradores locais para que esse estreitamento venha nos trazer detalhes, informações das
situações de problemas existentes naquele bairro” (Entrevista em 17/10/2013). O projeto foi
aplicado em quatro bairros periféricos (Jardim Planalto, Cangote do Urubú - Nossa Senhora
de Fátima -, Várzea da Cruz e Mutirão) e um central (Frei Damião), e contou com o apoio
principalmente das comunidades e de profissionais liberais como médicos, empresários e
professores. As comunidades recebiam serviços gratuitos como corte de cabelo, que eram
custeados pelos empresários locais. Na época, a cidade de Sousa tinha uma média de 20
(vinte) homicídios por ano. Uma rádio emissora da cidade também apoiou o projeto, ao
contrário do Comando da PM paraibana, que apoiou de forma mínima, segundo o Tenente-
Coronel.
Após a experiência de Sousa, poucos anos depois, em 2002, tivemos as experiências
do policiamento comunitário nos bairros de Paratibe e Mussumago, em João Pessoa. Os dois
bairros, à época, tinham conjuntamente uma população de 13.016 habitantes e apresentavam
características de comunidades rurais, visto a falta de estrutura urbana como ruas asfaltadas e
redes de esgoto e o subemprego temporário era a realidade para a maioria dos moradores. Os
projetos surgiram com base nas exigências do Sistema Único de Segurança Pública já que, o
Governo Federal, através da SENASP, fomentou o aumento das experiências de policiamento
comunitário (LIMA & MATIAS DA SILVA, 2010; MATIAS DA SILVA, 2007).
No período de 16 de julho a 16 de agosto de 2001 foi iniciada a formação, com o
primeiro Curso de Gestão em Policiamento Comunitário, com recursos do Fundo de Amparo
ao Trabalhador (FAT), que contou com a participação de policiais militares e membros das
comunidades por meio de convênio entre a UFPB e a PMPB. O projeto foi coordenado pelo
Centro de Ensino da PMPB e a Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, a
Comissão de Direitos Humanos e a Fundação de Apoio à Pesquisa e à Extensão da UFPB.
Ainda apoiaram o projeto o 5º Batalhão de Polícia Militar, a Secretaria de Segurança Pública,
o Núcleo de Defesa da Vida, o Centro Profissionalizante Deputado Antônio Cabral e as
Comunidades de Paratibe e Santana. Essas últimas apoiaram o projeto juntamente com
igrejas católicas e evangélicas que cediam seus espaços para os encontros entre policiais e
70
moradores e para outras atividades que diziam respeito à polícia comunitária. Após a
implantação do policiamento comunitário 11 (onze) policiais foram designados para trabalhar
nas comunidades e houve divulgação do programa por parte da comunidade, inclusive com a
utilização de uma rádio difusora (LIMA & MATIAS DA SILVA, 2010; MATIAS DA
SILVA, 2007). Assim como ocorreu na cidade de Sousa, atualmente o programa está extinto.
A última experiência na Paraíba anterior ao atual policiamento solidário foi
implementada na cidade de Campina Grande entre os anos de 2002 e 2010. Assim como o
relato do projeto ocorrido em Sousa, realizamos entrevista com o Major Simão, que era
Capitão à época do início do projeto e foi um dos idealizadores do mesmo. Semelhante ao
histórico das experiências anteriormente citadas, o Major Simão participou de um Curso sobre
Polícia Comunitária em 2002, no então Centro de Ensino da PMPB que durou praticamente
um mês, compondo-se de 120 horas/aula. Após o curso, e ao retornar para Campina Grande, o
Comandante do 2º Batalhão de Polícia Militar (BPM) resolveu implementar algumas Bases de
policiamento comunitário na cidade que se iniciou, segundo o citado Major, no bairro carente
do Mutirão e depois no bairro do José Pinheiro, que era um local de alta incidência criminal.
Em 2005, com a chegada de um novo Comandante, foram implementadas mais duas Bases.
Por essa perspectiva, o projeto organizou-se de modo que foram estabelecidas a Base de
Polícia Comunitária da Zona Oeste (bairro do Mutirão), Zona Leste (bairro do José Pinheiro),
na Zona Norte e na Zona Sul da cidade.
No plano das dificuldades, destaca o Major Simão que “obviamente a gente tem que
dizer que não seguiu a teoria tendo em vista que nós tínhamos várias dificuldades. Primeiro
porque era algo muito novo e também a necessidade do Comandante de fundar aquelas Bases
e colocar o seu nome, vamos dizer assim, até porque não houve uma preparação pra aqueles
policiais que iam trabalhar. Não houve uma capacitação adequada” (Entrevista em
17/10/2013). Inclusive o próprio Comandante do 2º BPM queria que a primeira Base
Comunitária fundada tivesse um “xadrez”16, o que foi motivo de não-aceitação por parte do
Major que acreditava que “aqueles policiais que iam fazer essa relação com a comunidade
local fizesse a prisão de alguém, apreendesse alguma pessoa, teria que encaminhar pra
Delegacia e não para a Base local. A Base local seria um local de discussão, de ampliar esse
contato com a comunidade local”.
O trabalho inicial era sempre de “sensibilização das comunidades”. De início houve
desconfiança por parte das comunidades e dos policiais, mas afirma o Major que com o tempo
16
Nome popular no seio policial para denominar as celas onde são colocadas as pessoas que são presas pela
Polícia Militar e entregues à Polícia Civil nas Delegacias.
71
17
O entrevistado se refere ao atual Governo da Paraíba, sob a direção do Governador Ricardo Coutinho.
72
CAPÍTULO 2
do Mateus.18 Ainda durante o ano de 2011 foram instaladas as Unidades de Polícia Solidária
(UPS‟s) nos bairros Mandacarú, Oitizeiro (Comunidade Bola na Rede) e São José.19 No dia
16 de setembro de 2012 o Jornal da Paraíba20 divulgava através da internet o suposto sucesso
na implantação do policiamento comunitário em João Pessoa ao trazer como título da
reportagem: “‟Polícia Solidária‟ ajudar a reduzir violência em JP”. Ademais, destacava-se a
informação de que “estratégia de aproximação dos policiais com a população está ajudando a
diminuir os índices de homicídio na capital”. Assim, a reportagem enaltecia o fato de que as
UPS‟s tratam-se de mais uma arma na redução do crime, além de proporcionar, segundo as
palavras de um Tenente comandante de uma UPS a satisfação dos moradores, já que são
desenvolvidas ações de integração com a população através de palestras em escolas, creches,
com líderes comunitários sobre assuntos voltados à violência doméstica, alcoolismo, doenças
sexualmente transmissíveis.
Tal reportagem foi divulgada dois meses depois do lançamento do Programa de
policiamento solidário pelo Governo do Estado da Paraíba e pela Polícia Militar. Pouco mais
de um ano após a implantação do projeto, por meio de notícia encontrada no site da Polícia
Militar da Paraíba21 no dia 15 de julho de 2013, veicula-se a comemoração desse primeiro ano
do Programa de Polícia Solidária com a entrega de comendas às autoridades, inclusive ao
governador do Estado da Paraíba. O que se destaca na notícia é que “O Polícia Solidária é
mais uma ferramenta importante do Governo de promover a aproximação entre a polícia e a
sociedade. É a oportunidade de mostrar ao cidadão qual o seu papel perante os órgãos de
segurança pública”.
Desse modo, através do material divulgado pela imprensa, podemos sintetizar quais
são os objetivos da criação da Polícia Solidária em João Pessoa segundo o discurso oficial, ou
seja, reduzir o crime e garantir a aproximação entre polícia e sociedade. De acordo com esses
parâmetros, foram lançados alguns documentos pelo Governo do Estado da Paraíba e
ratificados pela Polícia Militar que oficializam a implementação e funcionamento das
Unidades de Polícia Solidária. Esses documentos baseiam-se estritamente no Plano Nacional
de Segurança Pública. No Diário Oficial do Estado da Paraíba nº 15.115, do dia 15 de
dezembro de 2012, foi criada a Lei Complementar nº 111, de 14 de dezembro de 2012. Nessa
lei, ficou estabelecido o Sistema de Segurança Pública e Defesa Social da Paraíba o qual está
18
Disponível em <http://inforsurhoy.com/cocoon/saii/xhtml/pt/features/saii/features/main/2011/06/08/feature-
01>.
19
Disponível em <http://1bpmnorte.blogspot.com.br/p/ups-bola-na-rede-mandacaru-e-ilha-do.html>.
20
Disponível em <http://www.jornaldaparaiba.com.br/noticia/91914_policia-solidaria-ajuda-a-reduzir-violencia-
em-jp>.
21
Disponível em:<http://www.pm.pb.gov.br/pagina_noticia_8270.htm>.
74
Para fins desta Lei Complementar, consideram-se Territórios Integrados de Segurança Pública
e Defesa Social22:
22
Faz parte do Sistema de Segurança Pública e Defesa Social do Estado da Paraíba não apenas a Polícia Militar,
mas também a Polícia Civil, o Corpo de Bombeiros Militares e o Instituto de Polícia Científica, por isso o fato
do projeto ter a designação de “integrado” nas diversas disposições geográficas, pois, neste caso, a intenção
principal é aproximar o conjunto de ações realizadas pelas polícias militar e civil visando a aproximação com a
sociedade. Segundo o Plano Nacional de Segurança Pública (2003, p. 32), “a experiência cooperativa servirá
para derrubar tabus corporativistas e para demonstrar as virtudes da integração entre as diversas etapas do ciclo
policial”.
75
2001 36
2002 42
2003 15
2004 42
2005 -
2006 08
2007 -
2008 70
2009 179
2010 173
2011 360
2012 679
2013 652
Total 2.306
FONTE: Estado Maior Estratégico da PMPB
No entanto, durante as visitas, observamos que existe um fluxo constante dos policiais
que trabalham nas UPS‟s. Muitos são ou já foram transferidos para outras Unidades.
Misturam-se policiais que possuem o curso de policiamento comunitário com outros que não
possuem, além de que o efetivo é formado por policiais com pouco tempo de serviço com
outros que aguardam poucos meses para se “reformarem”, ou seja, no seio policial militar
quer dizer aposentarem-se. Alguns policiais que pertencem a outras Unidades de trabalho
passam a “tirar serviço”23 nas UPS‟s pela escala extra, que diz respeito a um policiamento
remunerado que propicia ao policial militar trabalhar em suas horas de folga podendo
escolher, até certo ponto, em qual local gostaria de desempenhar o seu serviço. Inclusive
podendo deslocar-se para trabalhar em Batalhões ou Companhias de policiamento em outra
cidade diferente de sua circunscrição. Tal fato enseja que, o policial que trabalha pelo extra
não fica necessariamente de forma fixa nas UPS‟s. Em outra situação, Um Tenente nos relata:
Às vezes um militar entra de férias aí encaixa outro que é de outro setor que não tem
nada a ver com polícia comunitária, e quando esse militar volta de férias já não cabe
ele aqui, já joga ele pra outro canto. Problema de tapar buraco na polícia militar.
Aqui muitas vezes quando uma pessoa faz uma atitude negativa pra o Batalhão, ela é
transferida pra aqui, pra base de Mandacarú, já vem aqui como se fosse um castigo
(Entrevista em 15/10/2014).
23
Na linguagem policial militar é o mesmo que trabalhar. Como quando se indaga “Você vai tirar serviço
onde?”, ou seja, qual será seu local de trabalho.
79
Como informa o entrevistado, alguns policiais são colocados para trabalhar nos postos
como forma de castigo, ou seja, pelas palavras do mesmo Tenente da UPS de Mandacarú: “Se
aquele militar cometeu uma atitude negativa pra o Batalhão e a Companhia entender que um
trabalho ostensivo como é o trabalho aqui é negativo pra ele, ele não gosta, mandam ele pra
aqui, como uma forma de punição. E aquele que gosta de trabalho ostensivo vai ser tirado
daqui, botar numa custódia24 ou na permanência”. Um Cabo, que afirmou ter o curso de
polícia comunitária, da UPS de Jaguaribe também nos disse: “Nós sabemos que o serviço
extra você tem o direito de escolher aonde você quer trabalhar pelo menos é o que diz o papel
e quando a gente estava colocando, e lá na observação a gente colocava voluntário para tirar
serviço na UPS de Jaguaribe, estava sendo remanejado para custódia, para guarda do presídio
e eu me aborreci e deixei de colocar”. De todo modo, vejamos como podemos compreender
melhor cada um dos postos pesquisados.
24
Tipo de policiamento no qual os policiais ficam no acompanhamento de presos que se encontram internos em
hospitais.
80
Segundo os dados coletados nas entrevistas, para que a UPS Mandacarú/Alto do Céu
fosse inaugurada, foi preciso, cerca de dois meses antes da fundação, uma “mega operação”
por parte das forças policiais para a “retomada” do controle do bairro. Inclusive utilizaram um
helicóptero da Polícia Militar de Pernambuco. Segundo as palavras de um Sargento
“Mandacarú estava sem controle. As áreas comerciais aqui no mínimo eram assaltadas duas
vezes ao dia, o mesmo estabelecimento. E no toque de recolher as ruas ao invés de serem
tomadas pela polícia estavam sendo tomadas pelos vândalos, pelos delinquentes. Foi um dia
de operação, agora foi uma operação que começou pela madrugada e se prolongou o dia todo”
(Entrevista em 30/10/2014).
Após a suposta “tomada” do bairro, foi deslocado o primeiro efetivo para trabalhar na
UPS. De acordo também com informações dos entrevistados, esse efetivo inicial (cerca de
70% dele) foi deslocado do Rancho do 1º Batalhão de Polícia, ou seja, o local que funcionava
81
como cozinha da Unidade Militar, que hoje se encontra desativado. Os policiais não possuíam
o curso de polícia comunitária. Ainda mais que o prédio utilizado para a UPS tinha sido
invadido por três famílias desabrigadas. Inicialmente os policiais montaram uma tenda no
terreno e passaram a conviver com as famílias, de modo que depois foram conseguidas casas
por parte do município para as mesmas, fazendo com que a Polícia Militar assumisse o posto
e o reformasse, o qual se encontra atualmente com as características físicas observadas nas
fotos expostas acima. No que concerne à atuação policial na área, os bairros de
Mandacarú/Alto do Céu, de acordo com as estatísticas do Governo do Estado, são dois dos
locais que apresentam os maiores índices de homicídio em João Pessoa. Como nos expõe um
Capitão que trabalha na UPS:
Esta UPS cuida dos dois bairros: Mandacarú e Alto do Céu. E nós tivemos uma
redução, em relação ao ano passado, até agora está em 33% referente a 2013-2012.
Então a nossa expectativa é que nós possamos cada vez mais baixar esses números.
Tivemos, durante o ano de 2012, 27 homicídios em Mandacarú e estamos tentando
bater esses números mês a mês. Apresentamos uma redução, agora no mês de
setembro, em relação aos meses de 2012, uma redução de 33%. A nossa perspectiva
é que fechemos o ano de 2013 com pelo menos 20 homicídios. Aí nós estaríamos,
pelo menos, batido a nossa meta. Se assim nós fecharmos com 20 homicídios, aí sim
a gente vai reduzir em pelo menos 30% a relação anual do número de homicídios,
que são os CVLI‟s (Entrevista em: 17/09/2013).
Vavá e disse que se visse a polícia lá mais uma vez ele ia matar Seu Vavá. A barraca existe há
muito tempo e uma coisa que a polícia já fazia há muito tempo, hoje a gente não pode mais
por causa desse tipo de atitude” (Entrevista em: 15/10/2014).
FIGURA 11: Uma rua inteira abandonada em Mandacarú por conta da violência.
FONTE: Dados do autor.
FIGURAS 12 e 13: Inscrições com siglas que identificam as Facções que atuam nos bairros de Mandacarú/Alto
do Céu.
FONTE: Dados do autor (2013).
Um Tenente da UPS também nos esclarece de quem se trata esses traficantes, pois, ao
invés de chefes do tráfico, os mesmos são utilizados pelos verdadeiros chefes que não se
encontram no bairro e utilizam moradores locais para vender e distribuir a droga, de modo
que “Exemplo é o Daniel, que é o chefe aqui do Beco de Zé Borges, se diz chefe, na verdade
não é chefe de coisa nenhuma. É um cara que não tem onde cair morto. Em um local que tem
um tráfico tão intenso como em Mandacarú um chefe do tráfico de droga não tem nem uma
roupa pra usar direito. Há dez meses que eu tô aqui, há dez meses ele usa a mesma roupa, ou
seja, não tem uma condição financeira pra um chefe do tráfico” (Entrevista em: 15/10/2014).
84
FIGURAS 14, 15, 16, 17: Imagens da periferia do bairro de Mandacarú, locais onde, segundo os policiais
militares da UPS, atuam os traficantes.
FONTE: Dados do autor.
O bairro São José tinha uma concentração geográfica de crime muito alta. Chegou a
ter, em 2011, 37 homicídios num ano. Se a gente fosse colocar em termo de taxa
seria uma das taxas mais altas do Estado, talvez do Nordeste como um todo. Uma
população muito pequena. Um bairro que sofria dessa incidência específica de
homicídio e não se tinha a problemática nem de furto nem de roubo era mais
homicídio mesmo e também a situação do tráfico e do consumo de drogas. É um dos
exemplos. Foi uma das primeiras Unidades de Polícia Solidária implementadas que
passaram a ter os excelentes resultados que a gente pode citar como exemplo
(Entrevista em: 09/10/2014).
FIGURAS 18 e 19: Frente da UPS do bairro São José (esquerda). Sala de recepção da UPS (direita).
FONTE: Dados do autor.
25
Como havíamos afirmado antes, não existem mulheres trabalhando nas UPS‟s, essa fala foi obtida da Tenente
que no dia trabalhava como Coordenadora de Policiamento do Distrito Integrado de Segurança Pública de
Manaíra, ao qual a UPS do São José está subordinada.
87
Nessa UPS, também foi realizada por parte da Polícia Militar uma “tomada” do bairro
antes da instalação do posto. Segundo informações dos entrevistados, foi necessário um
trabalho de dois meses desenvolvido pelo setor de inteligência da PM, o qual foi finalizado
com a operação que os policiais denominaram de “gol de placa”. Até então, nem ao menos
existia a denominação de Unidade de Policiamento Solidário. Esse nome passou a ser adotado
para todo o projeto com a inauguração da UPS do Bola na Rede. Segundo um Tenente
entrevistado, ao falar da operação de tomada do bairro dos traficantes: “Ao todo foram em
torno de 200 a 300 homens que participaram dessa operação. Depois dessa implantação nós
chegamos lá aí começou o trabalho de saturação na área, então a gente contou com o apoio do
Bope26, da Rotam, das tropas especializadas, foi elas [sic] que ficaram durante um mês
saturando a área” (Entrevista em: 13/12/2013). Um Cabo da UPS ainda acrescentou: “Depois
dessa invasão foi quando a UPS foi ser instalada porque até então quem mandava no local, um
26
Batalhão de Operações Policiais Especiais.
88
tal de Alexandre Neguinho, ele tava bem armado. Era 12, 15 homens, 20 homens. Aí qualquer
viatura que viesse pra aí tinha que vir no mínimo com reforço. Dois homens não resolvia.
Com a tomada, com a instalação da UPS a população teve uma melhor condição de vida”
(Entrevista em: 22/10/2014).
Aqui também os policiais se revezam na escala entre a permanência e as viaturas. O
serviço dura nas duas formas de policiamento 24 horas com uma folga de três dias. Dois
policiais trabalham na permanência e, segundo eles, os policiais da permanência vieram
transferidos do presídio do Róger e não possuem o curso de polícia comunitária. Muitos
também trabalham pelo serviço extra remunerado, de modo que alguns policiais da
permanência disseram que chegam a trabalhar 24 horas por outras 24 horas de folga por conta
do extra.
No tocante aos policiais das viaturas, uma informação a se destacar é que no dia 13 de
outubro de 2013 os policiais da Força Tática (um grupamento de polícia especializada), que
trabalham especialmente de forma reativa, adotaram o posto da UPS como sede. Mas ao
contrário dos policiais da permanência quase todos eles têm o curso de polícia comunitária, o
que pode ser identificado pelo emblema (brevê) relativo ao curso que eles carregam nos
uniformes. Segundo informaram-nos, foi dada a ideia ao Capitão Comandante da Força Tática
para que os policiais desse grupo fizessem o trabalho de polícia comunitária, pois “polícia
comunitária é aproximar policiais e moradores, coisa que não acontece” porque os policiais da
permanência não podem se ausentar do posto. Um Cabo da Força Tática contou-nos que, após
a chegada da Força Tática na UPS, os homicídios no bairro reduziram em 70% e depois
explicou-nos que “Nós abordamos, abordamos todo mundo (falou com uma certa ênfase),
para evitar que aconteça”, ou seja, os moradores, indistintamente, ainda mais aqueles
reconhecidos pela ótica policial por apresentarem as características que os colocam como
possíveis suspeitos de serem traficantes ou delinquentes, passam a sofrer constantes revistas
pessoais.
O Bola na Rede também é um bairro caracterizado pela violência segundo relatos dos
policiais. Essa violência teria diminuído após a fundação da UPS e, principalmente com a
chegada da Força Tática. Segundo as palavras de um Cabo que trabalha de permanente, houve
uma situação na qual “duas jovens foram esquartejadas vivas”. Um Sargento acrescentou
sobre a mesma história: “Ele cortou o corpo delas ainda vivas”. No entanto, o Cabo continuou
seu relato ao dizer que “O culpado foi preso no bairro e, foi extremamente violentado pelos
policiais. Foi chute por todo canto, todo mundo deu a sua. E quando se falou para parar, não
adiantou”. Um Sargento narrou uma outra situação na qual “uma jovem foi violentada com
89
água quente por um traficante, mas o mesmo foi preso”. Um Cabo da Força Tática disse-nos
que “Uma Senhora que mora naquela casa (apontou para o imóvel que fica de frente ao
posto), disse que um traficante falou que queria sair com a filha mais nova dela. E quinze dias
depois queria sair com a mais velha. Um dia depois ocorreu a “ocupação”, que foi a salvação
da Senhora”. Um Tenente também nos revelou que: “Uma vez a gente conseguiu salvar a vida
de uma pessoa, o camarada ia tocar fogo num cara vivo. Esse camarada que ia matar esse
outro era foragido de três estados: de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Pernambuco”. Ele
ainda relatou que,
Na verdade a gente colocou a comunidade bola na Rede no mapa. Ela não existia e
quando a polícia ia pra lá, a gente ia com duas, três viaturas porque uma viatura só
não entrava lá porque o risco era muito grande de um confronto, uma troca de tiros.
Atendia a ocorrência e depois saía. Quando saía o tráfico reinava do mesmo jeito. O
pessoal andava armado, até com arma longa, parecia favela do Rio de Janeiro, o
crack era servido na bandeja, entre outras coisas que aconteciam. A iluminação era
precária, calçamento não existia. Os traficantes ditavam suas leis. Então, pra um
cidadão passar por lá de moto ele tinha que tirar o capacete, desligar o farol e seguir
seu caminho. Várias pessoas foram mortas lá só porque erraram o caminho e
estavam perdidos e como desconheciam essas regras, eles (os traficantes) atiravam.
Essa era uma regra da comunidade (Entrevista em 13/12/2013).
horas de serviço. Isso implica dizer que fica apenas um policial fixo no posto por dia.
Geralmente nas visitas que fizemos o portão do posto sempre estava fechado de cadeado. Por
outro lado, pelo menos na nossa presença, a UPS do Róger foi a que observamos o maior
contato entre os policiais da permanência e pessoas da comunidade. Quando o policial da
permanência vai embora à noite, os policiais da viatura ficam na UPS e saem apenas para
atender ocorrências.
familiar e nós somos convocados. Tudo o que foi repassado pra gente perante os oficiais, foi
tudo aceito, tudo aproveitado” (falando acerca dos conhecimentos sobre policiamento
comunitário). No entanto, não existe qualquer tipo de policiamento a pé no bairro, ficando a
cargo da viatura a resolução de todas as ocorrências.
Como nos afirmou um Soldado: “A gente conhece todos os pontos comerciais que teem aqui:
padaria, mercadinho, cabeleireiro e já tem uma noção praticamente de ocorrência que tem pra
gente poder passar mais vezes naquele local ou não. Justamente porque a gente sabe que é um
bairro nobre de classe média e antigo. Vinte e uma horas o pessoal tá todo dormindo. O índice
mais alto que tem aqui hoje é furto a celular. A comunidade fala com você” (Entrevista em:
22/10/2014).
Quanto aos problemas enfrentados pela comunidade, os policiais relataram-nos que se
destaca a violência e o uso de drogas nas escolas. Como narrou um Cabo sobre a presença das
drogas no bairro: “Nós temos pessoas aqui na comunidade que nós sabemos que são
dependentes químicos, mas nós não temos a quem recorrer. Hoje nós não temos nenhum
órgão que seja responsabilizado por isso” (Entrevista em: 17/10/2014).
Um ponto a se ressaltar em comum em relação às UPS‟s são as tentativas
empreendidas pela Polícia Militar para consolidar uma imagem do projeto condizente com os
preceitos do policiamento comunitário. Na UPS de Jaguaribe, uma Tenente coordenadora
falou-nos que: “O que tem dado certo é o contato com as escolas. A gente tá sempre com o
diretor. O diretor tem o telefone da gente. A gente faz palestra. Tem um militar que ele é
cantor; eu tenho levado ele pras palestras. Ele toca umas músicas. E a questão de tentar
melhorar a imagem do policial militar. Eu percebo que o que tem dado mais certo ainda é essa
integração nas escolas” (Entrevista em: 18/09/2013). Na UPS do Bola na Rede tivemos as
seguinte experiências contadas por um Tenente:
A gente começou a manter contato com os colégios, a gente fazia palestras nos
colégios, uma atividade preventiva. Começou também um trabalho nas igrejas. Isso
tudo são estratégias pra tentar uma aproximação, pra ganhar confiança das pessoas.
Então, tinha um sopão lá a gente começou a ajudar nesse sopão. A gente organizou
um sopão, um culto, a gente convidou um pastor pra fazer um culto na frente da
UPS. Foi bom que você vai se aproximando mais das pessoas e ganhando a
confiança delas (Entrevista em: 13/12/2013).
Na UPS de Mandacarú, desde 2011, foi desenvolvido o projeto “Uma nota musical
que salva”, o qual funciona na casa de um casal residente do bairro. Tem por objetivo ensinar
música, culinária e canto a crianças e adolescentes com o intuito de afastá-los das drogas. Os
professores são voluntários, inclusive sendo alguns deles policiais da Banda de música da PM
paraibana. No bairro São José desenvolveu-se o projeto “Caminho certo”, onde um Sargento
ensina futebol e voleibol a crianças e jovens dos oito aos 16 anos.
93
Zaluar (2007) nos traz uma interessante discussão para pensarmos nas causas que
estão por trás do aumento da violência em nosso país nas três últimas décadas e, em especial,
no crescente número de homicídios que vitima geralmente jovens pobres, ou melhor, homens,
nas periferias das grandes cidades. Segundo a autora, podemos destacar dois paradoxos e um
94
enigma. O primeiro paradoxo diz respeito ao fato de que a democratização do país, iniciada
em 1978, teria ocorrido exatamente com o crescimento nas taxas de homicídios de homens
jovens. O segundo paradoxo centra-se na ideia de que, se o Brasil foi uma nação construída
com base na “cordialidade” (HOLANDA, 1995) e na “conciliação”, tais preceitos teriam
cedido espaço para a ausência de cidadania, pois, “os mecanismos de vingança pessoal e os
impulsos agressivos incontroláveis tomaram o seu lugar, visto que nem o perdão nem a
pacificação foram discutidos publicamente no término do regime militar” (ZALUAR, 2007, p.
2). Sobre o enigma, voltamos à informação de que essa violência desencadeada juntamente
com o processo de redemocratização quase não afetou as mulheres, mas como dito, na sua
quase totalidade, apenas homens jovens. Pode-se situar a partir desses fatos levantados por
Zaluar (2007) dados que nos indicam que entre os anos 1980 e 1990, as taxas médias de
homicídios entre homens jovens que se situam na faixa etária dos 15 aos 29 anos aumentaram
em todo o país. No ano 2000, na faixa etária indicada, morreram 93% de homens para apenas
3% de mulheres. O que se constata com essas condições é que esses jovens, não importa se
situados como vítimas ou autores de homicídios, participaram de tais atos em locais públicos
envolvendo pessoas que não se conheciam e não tinham laços de intimidade.
Em meio à complexidade no aumento da violência no Brasil em períodos de
redemocratização, pode-se falar de diversos fatores que contribuem para esse crescimento e,
no caso das taxas de homicídios, acreditamos que elas não seriam apenas causas, mas também
resultados da dinâmica que envolve a criminalidade. Nesse sentido, destaca-se a “a indústria
do crime”, que está estritamente vinculada ao tráfico de drogas ilegais e ao tráfico de armas.
E, para os jovens pobres, o fato de entrar para o crime passou a significar mudanças nos
valores culturais que se traduzam na busca por padrões de consumo que acabaram por formar
subjetividades voltadas para o individualismo mercantil que corroeu as condições morais
socialmente construídas. Nesse âmbito, juntamente com as crises de legitimidade familiar dos
jovens cooptados pelo tráfico de drogas, “surgiu, então, uma nova organização complexa,
diversificada e muito bem armada, na qual os conflitos comerciais e pessoais foram resolvidos
com armas de fogo, e na qual foram criados um culto viril e exibições violentas de poder”
(Ibidem, p. 10). Foram as correlações anteriormente citadas que acabaram por atrair jovens
pobres para situações baseadas no conflito e não na “lealdade”. Nesse jogo que enseja a
criação de uma hierarquia no tráfico e a condizente participação das agências policiais, tem-se
a consolidação de elementos estruturais e subjetivos que servem de atrativo aos homens
jovens das favelas, pois
95
Atraídos por essa identidade masculina, os jovens, nem sempre os mais destituídos,
incorporam-se aos grupos criminosos em que ficam à mercê das rigorosas regras que
proíbem a traição e a evasão de quaisquer recursos, por mínimos que sejam. Entre
esses jovens, no entanto, são os mais destituídos que portam o estigma de eternos
suspeitos, portanto incrimináveis, quando são usuários de drogas, aos olhos
discriminatórios das agências de controle institucional. Com uma agravante:
policiais corruptos agem como grupos de extorsão, que pouca diferença guardam
com os grupos de extermínio que se formam com o objetivo de matar os eternos
suspeitos. Quadrilhas de traficantes e assaltantes não usam métodos diferentes dos
primeiros, e tudo leva a crer que a luta pelo butim entre eles estaria levando à morte
os seus jovens peões. Entre os rapazes ou meninos, o principal motivo de orgulho
advém do fato de que fazem parte da quadrilha, portam armas, participam das
iniciativas ousadas de roubos e assaltos, adquirem fama por isso e podem, um dia,
caso mostrem “disposição para matar”, ascender na hierarquia do crime (ZALUAR,
1998, p. 294-295).
Podemos dizer que, em síntese, essa realidade posta sobre a morte de homens jovens e
o seu entrelaçamento com a lógica do tráfico de drogas disseminou-se pelo país, de acordo
com graus variados por Estados e regiões, mas de maneira acentuada nos grandes centros
urbanos como as capitais estaduais. Então, se nosso objetivo é entender os motivos que
ensejam a criação do policiamento solidário em João Pessoa, na Paraíba, podemos dizer a
princípio que esse projeto direciona-se não apenas para reaproximar comunidades e policiais
onde esses últimos atuam, mas também criar políticas operacionais de combate à
criminalidade. Segundo as palavras de um Capitão coordenador do projeto entrevistado por
nós:
Cada Unidade de Polícia Solidária tem um Tenente à frente e o Tenente está ligado à
questão operacional. E a minha função é justamente coordenar todas essas Unidades.
Qual a necessidade específica de cada uma. Por exemplo, eu faço junto ao Tenente o
levantamento da área dele. Tua área deu três homicídios este mês. O que foi que
promoveu estes homicídios: tráfico de drogas? Tem um levantamento das bocas de
fumo da área?27 Não temos, vamos fazer. A gente faz um levantamento das bocas de
fumo que tem na área. Faz um levantamento, o registro fotográfico, dos marginais
que têm naquela área de UPS e aí a gente vai passar a focar o nosso policiamento
com base naquelas informações que a gente tem das bocas de fumo. Então, este é o
papel que a gente vem fazendo à frente da Coordenação: apoiando os Comandantes
de UPS, orientando o norte pra eles seguirem e dando suporte também à questão
administrativa (Entrevista em: 28/08/2013).
27
No jargão policial, diz respeito aos locais de venda ilegal de entorpecentes.
96
O nosso foco hoje está voltado no acompanhamento desses jovens que são drogados,
são dependentes químicos. E o nosso trabalho está também voltado à outra frente,
não somente a frente da prevenção a estes jovens, mas a frente também da repressão.
Nós reconhecemos uma série de adolescentes, crianças envolvidas com as drogas.
Acabam esses jovens morrendo. Hoje em Mandacarú o índice de morte é muito alto,
principalmente a faixa etária de 15 a 20 anos. E nós reconhecemos que essas mortes
são normalmente resultados dessas disputas territoriais por pontos de droga
(Entrevista em: 17/09/2013).
28
Entre os anos de 1979 e 1995 foi utilizada a 9ª revisão ou CID-9. A partir de 1996 passou a ser utilizada a 10ª
revisão ou CID-10. Ver Cano e Ribeiro (2007).
98
De todo modo, os parâmetros adotados em nosso país para a aferição das taxas de
homicídio são os que atualmente têm sido utilizados não só para o conhecimento acadêmico,
mas também para as políticas públicas. Para uma melhor compreensão, a seguir mostramos o
panorama quantitativo das taxas de homicídio em nosso país e na região Nordeste e, dentro
desse universo, localizaremos o principal segmento responsável pelo aumento nesses índices,
ou seja, os jovens masculinos na faixa etária dos 15 aos 24 anos. Tal intento se explica pelo
fato de que são esses segmentos sociais formados pelos jovens citados que se tornam os
principais grupos visados pelos policiais militares no combate à criminalidade, especialmente
nas áreas onde existe o projeto de policiamento solidário.
Nesse caminho, se formos considerar os dados obtidos segundo o atual mapa da
violência no Brasil (WAISELFISZ, 2013) através de séries históricas por nós relacionadas
observaremos que, em 1980 tivemos em nosso país 13.910 homicídios, o que equivale a uma
taxa de 11,7 mortes por 100 mil habitantes. Se compararmos a taxa de homicídios com as
outras duas variáveis que indicam a estrutura da mortalidade segundo causas externas teremos
que os acidentes de trânsito foram responsáveis por 20.365 mortes (17,1 por 100 mil hab.) e
os suicídios tiveram como número o total de 3.896 mortes (3,3 por 100 mil hab.). Em 1990, os
homicídios no Brasil computaram o total de 31.989 mortes (22,2 por 100 mil hab.), o que
condiz a uma porcentagem de aumento de 130% em relação à1980. Quanto aos acidentes de
trânsito tivemos um total de 29.089 mortes (20,2 por 100 mil hab.), ou seja, um aumento de
42,8% e, quanto aos suicídios, computaram-se 4.845 mortes (3,4 por 100 mil hab.),
correspondente a um acréscimo de 24,4%.
Pelo viés dos dados até o ano de 1990, entre as mortes externas catalogadas pelo
Ministério da Saúde, os homicídios foram as que apresentaram o maior aumento nos índices,
mais que dobrando o total em relação aos dados anteriores apresentados em 1980. Em
sequência, o ano 2000 nos demonstra que ocorreram no Brasil um total de 45.360 homicídios
(26,7 por 100 mil hab.). Os acidentes de trânsito foram responsáveis por 29.645 mortes (17,5
por 100 mil hab.) e os suicídios representaram 6.780 óbitos (4,0 por 100 mil hab.). De forma
99
60.000
50.000
40.000 1980
30.000 1990
20.000 2000
2011
10.000 2000 2011
0 1990
Homicídios 1980
Acidentes de trânsito
Suicídios
29
Nesse sentido, considera-se não jovem as pessoas com menos de 15 anos de idade, que assim não atingiram a
juventude e aqueles que ultrapassaram os 24 anos de idade. Ver WAISELFISZ (2013).
101
20.000
18.000
16.000
14.000
12.000 Série 1
10.000 Série 2
8.000
Série 3
6.000
4.000 Série 4 Série 4
2.000 Série 3
0 Série 2
Homicídios Série 1
Acidentes
Suicídios
de trânsito
Assim, como já expomos, a nossa intenção é destacar quais são os motivos que
justificam a criação de formas de controle social por parte do Estado que caminhem, segundo
o discurso estatal, no sentido de combater as causas que veem contribuindo para o aumento da
criminalidade, especialmente urbana, neste caso traduzida no aumento dos índices de morte
por homicídio. Se os dados sobre as mortes por homicídio no Brasil e o recorte específico
sobre a faixa etária entre 15 e 24 anos revelam aumentos gradativos no quantitativo das
vítimas, a região Nordeste não foge à regra e ajuda a manter as estatísticas com números que
possibilitam averiguar tal afirmação.
Com olhar específico sobre a morte de jovens entre os 15 e 24 anos, com série
histórica entre os anos de 1980 e 2011, temos que a região Nordeste ocupa a 3ª posição nos
índices de aumento das mortes por causas externas com uma taxa de 66,9% de aumento. No
entanto, com base nesse índice, os homicídios representam a primeira posição em relação às
demais regiões do Brasil com 47,3% de aumento, enquanto os acidentes se configuram numa
taxa de 16,7% e os suicídios 2,9%. O gráfico abaixo ajuda a situar a região Nordeste num
quadro comparativo em relação às demais regiões brasileiras.
102
50
45
40
35
30
25
20
15 Homicídios
10
5 Acidentes de trânsito
0 Suicídios
armas, além da construção subjetiva de novos atores sociais envolvidos nesse processo. Por
essa lógica, a Paraíba segue o aumento gradual da violência ocorrido em todo o território
nacional e, quando demonstrados os dados que nos permitem verificar essa condição. De
acordo com as palavras do Capitão coordenador de uma das UPS,
homicídios de jovens. Já quanto ao índice por 100 mil habitantes, em 2001 a taxa era de 27,6
mortes, o que colocava a Paraíba como o quinto Estado do Nordeste e o 19º do Brasil. Só que
esse quadro se modificou em 2011 quando a Paraíba passou a apresentar um índice de 88,2
homicídios de jovens por 100 mil habitantes, ou seja, passou a ocupar também o 2º lugar no
Nordeste (atrás de Alagoas com 156,4) e o 3º no país (atrás de Alagoas e Espírito Santo, esse
último com taxa de 115,6).
Esse aumento nos números quanto aos homicídios reflete-se também na cidade de
João Pessoa, pois em 2001, em números absolutos, a cidade era a sexta mais violenta do
Nordeste com 251 homicídios, fato que se alterou em 2011 quando os dados revelam que
ocorreram 633 homicídios, ou seja, mesmo se tornando a quinta capital mais violenta do
Nordeste, os números demonstram acentuado aumento das ocorrências de homicídio. No
entanto, se em 2001, João Pessoa ocupava a quarta posição no que diz respeito ao índice de
homicídios relativo a cada grupo de 100 mil habitantes com 41,3, em 2011 a cidade passou a
localizar-se como a segunda capital mais violenta tanto no Nordeste como no Brasil com um
índice de 86,3 homicídios por 100 mil habitantes, deixando-a atrás apenas de Maceió com
111,1 tanto em âmbito regional como nacional (WAISELFISZ, 2013).
Sobre o homicídio de jovens em João Pessoa, em 2001 tivemos 105 óbitos
computados, o que resultou na colocação da cidade como a 6ª capital nordestina mais violenta
e a 17ª do Brasil. Em 2011, os números constatam um total de 289 mortes de jovens, de forma
que João Pessoa localiza-se assim como a 5ª cidade do Nordeste e a 10º do Brasil. Os dados
se tornam mais crônicos para evidenciar o aumento da violência contra os jovens em forma de
homicídios quando considerados os índices por 100 mil habitantes. Nessa perspectiva, em
2001, o índice era de 81,8 mortes por 100 mil habitantes, de modo que a cidade era a 4ª
colocada no Nordeste e a 11ª do Brasil. O quadro se alterou em 2011 com a elevação do
índice para 215,1 homicídios para grupos de 100 mil habitantes, o que deixa João Pessoa
como a segunda cidade do Brasil e do Nordeste nesta aferição, atrás apenas de Maceió com
288,1 homicídios.
Segundo Lima (2010), a violência e a criminalidade urbana na cidade de João Pessoa
têm crescido devido a vários fatores. Um deles seria o aumento populacional da capital
paraibana, pois a cidade passou de um contingente populacional de 221.546 habitantes em
1970 para 693.082 habitantes no ano de 2008, o que equivale a um aumento de 124,6% para o
período referendado. O que ocorre é que, no início do período citado esse aumento aconteceu
devido ao êxodo rural, o qual acabou por perder força para o crescimento vegetativo e para a
chegada de pessoas oriundas de outras regiões do país. E, nesse contexto,
105
Foi para compreender esse fenômeno que comparecemos a uma reunião realizada pela
cúpula de Segurança Pública do Estado da Paraíba, no Palácio do Governo, no dia 28 de
fevereiro de 2014. O que despertou nossa atenção foram os comentários feitos pelos
presentes, de maneira informal. Um Tenente-Coronel da Polícia Militar comentou
sarcasticamente (aplaudindo), ao fazer alusão à forma como é encarada a persecução para a
redução de homicídios: “Quantos homicídios ocorreram em sua área? Houve diminuição?
Parabéns!”. Após o início da reunião, o então vice-governador do Estado declarou: “Gostaria
106
30
Neste caso, preferimos resguardar, inclusive, o seu posto e função na Polícia Militar.
107
processo e, a resposta que obtivemos (ainda falando muito baixo) foi que para a Secretaria o
que importava eram os números. O que importa para a Secretaria é a repressão.
De acordo com nossas observações, a busca por esses resultados na redução dos
índices de criminalidade tem direcionado as práticas policiais para a produção de números,
com a busca constante de resultados através de critérios gerenciais próprios da administração
empresarial e privada (GARLAND, 2001). Foi assim, por exemplo, que o Governo da Paraíba
lançou neste ano de 2014 o “Prêmio Paraíba Unida pela Paz”, o qual passa a premiar os
policiais militares cujos locais de atuação consigam reduzir os números de CVLI, numa
política de metas de premiação semestral. Esse prêmio foi oficialmente lançado no Diário
Oficial da Paraíba nº 15.502, de 04 de abril de 2014, através da Medida Provisória nº 223, de
03 de abril de 2014, a qual destaca em seu Art. 1º que,
Fica instituído, no âmbito do Estado da Paraíba, o Prêmio Paraíba Unida pela Paz -
PPUP, parcela de caráter eventual, correspondente a uma premiação por resultados,
destinado a policiais civis, policiais militares e bombeiros militares do Estado
lotados nos órgãos operativos da Secretaria da Segurança e da Defesa Social, em
função de seu desempenho no processo de redução dos Crimes Violentos Letais
Intencionais – CVLI - nos Territórios Integrados de Segurança e Defesa Social -
TISPs, instituídos pela Lei Complementar n.º 111/2012 (p. 5).
Desse modo, todo o processo que envolve a criação do policiamento solidário em João
Pessoa faz parte de um projeto de maior abrangência que foi diretamente copiado do modelo
adotado no Estado de Pernambuco intitulado “Pacto pela Vida”. Através da criação do Núcleo
de Análise Criminal Estatística, vinculado à Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa
Social, foi possível a criação de um banco de dados que passou a fornecer as informações que
demonstram os indicadores sobre os principais crimes. Como nos diz o Capitão responsável
pelo referido Núcleo:
O CVLI que é o nosso indicador estatístico, que é prioridade dessa gestão, são os
crimes violentos letais intencionais mais comumente conhecidos como os
homicídios dolosos. No Brasil, como um todo, é uma metodologia que também é
aplicada em Pernambuco, mas ela foi introduzida pela própria Senasp constando
inicialmente o homicídio doloso, o latrocínio e a lesão corporal seguida de morte.
Com base nesse referencial a gente começou a fazer esses relatórios e já em abril de
2011 eles foram só agregando valor. Depois das compatibilizações foram nomeados
gestores específicos para cada área dessa e, tivemos outros avanços como a lei da
bonificação por apreensão de arma de fogo, a premiação pelo resultado e assim por
diante (Entrevista em: 09/10/2014).
108
O interessante a se observar é que o mesmo Capitão nos disse, ao falar sobre as UPS‟s,
que “ele (o projeto de policiamento solidário) é uma das vertentes dentro desse grande projeto
da Secretaria que também tem seu mérito por entender que não é só uma responsabilidade da
Polícia Militar ou nem mesmo só da polícia essa consecução de uma segurança pública
melhor”. No entanto, o entrevistado mostrou desconhecer, por exemplo, que existe um
distanciamento entre policiais militares e moradores no bairro São José. Mesmo assim, esse
último é o bairro que apresenta um dos melhores resultados na diminuição dos índices de
CVLI após a implantação das ações da Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social,
segundo as palavras do Capitão. Nesse sentido, acreditamos que esse complexo jogo
estratégico que envolve o policiamento solidário está enredado em mecanismos biopolíticos
para normalizar a vida das comunidades envolvidas, mas nesse sentido vejamos como garantir
a vida implica dizer também em regulamentar as vidas que se deve deixar morrer para se
“proteger a sociedade”.
109
CAPÍTULO 3
fato esse explicado pela dimensão teórica foucaultiana, que dimensiona a polícia como um
“mecanismo de segurança”.
Por fim, observaremos como se contextualiza a atuação das Polícias Militares de modo
a dimensionarmos o que vem a ser uma “sociabilidade estratégica”. Importa melhor entender
como as instituições policiais militares participam de relações estabelecidas por formas
específicas de governar que se baseiam em sociabilidades que engendram relações
estratégicas de poder e que conformam uma dissimetria mais sofisticada entre grupos
humanos, neste caso, entre policiais militares e sociedade.
Buscaremos, pois, desenvolver uma forma de análise que descortine o caminho entre
sociabilidade e relações de poder, onde a “vida nua” (AGAMBEN, 2010), ou aquela que
merece ser extinguida, ganha notoriedade no processo de implantação do policiamento
solidário. Segundo nossa perspectiva, o que está em jogo são formas de controle social mais
eficazes por parte daqueles que dominam, onde se revela uma lógica em que, por meio do
discurso da cidadania, todos ajudam a tornarem-se agentes imbuídos de seu próprio controle
(PASSETTI, 2003), ao mesmo tempo que lutam para limpar a sociedade daqueles que se
distanciam desse processo.
todo, bem como, o exercício da autoridade mediante a força. Ou seja, administração política e
coerção caminham juntas para caracterizar a atuação policial antiga como mecanismo político
de dominação.
Chegado o final da Idade Média retoma-se, na Europa, a noção de polícia, que
reaparece juntamente com a redescoberta do direito romano que passa a ser lecionado nas
diversas universidades. Na França e na Alemanha, em meio à aristocracia, o termo polícia
ganha significância ao direcionar-se para traduzir um “bom governo” que edita “boas leis”
que são aplicadas no corpo social.
A abrangência do termo consolida-se, de forma moderna, com a promulgação da
Assembleia Constituinte francesa pós-revolução em 1791, onde além da função de vigiar a
sociedade em nome da segurança, polícia também ganhou o sentido voltado para a atuação de
outras instituições que passaram a garantir os recém-adquiridos direitos sociais, políticos e
econômicos, tanto na esfera privada como na pública. De todo modo, dado que a força
diretiva do modelo das polícias modernas e profissionalizadas é algo recente no contexto
histórico, pois data da implantação do regime absolutista e de sua transição para o Estado-
nação31, passamos a destacar as transformações históricas que, segundo o propósito que
adotamos neste trabalho, tornam-se relevantes para melhor compreendermos o surgimento das
instituições policiais modernas, se interpretadas pelo prisma sociológico. Nesse sentido, os
estudos de Norbert Elias sobre o processo civilizador enquanto um empreendimento histórico
que se configura ao longo do tempo e que, de modo análogo, enseja mudanças internas nos
indivíduos ao mesmo tempo em que conforma as estruturas sociais será o caminho escolhido.
Tal percurso se deve ao fato desse autor mostrar uma interrelação existente entre as mudanças
nos comportamentos dos indivíduos e como essas transformações refletiram para a
consolidação dos Estados modernos.
Segundo Elias (1993, 1994a, 2006, 2008, 2011), as dinâmicas sociais são estruturadas
pelas interdependências que os indivíduos desenvolvem no meio social, ou melhor, pelos
diversos elos e imbricações que, por se complexificarem no transcorrer histórico devido ao
aumento das funções desempenhadas pelos indivíduos, acabam por formatar um contexto
social que independe das vontades ou da intenção de cada indivíduo em particular. O que
passa a importar para a compreensão do todo social é como através de processos de “longa
duração”, por meio de integrações que surgem de tensões e conflitos entre os próprios
31
Mostramos no Capítulo 1 que a polícia moderna surgiu tendo como modelo a Polícia Metropolitana de
Londres fundada por Robert Peel, no entanto, a polícia londrina tornou-se a consolidação de um processo que se
estruturou a partir do Absolutismo, onde forças estatais remuneradas passaram a ter a responsabilidade pela
segurança interna e externa dos Estados nacionais que surgiram com a derrocada do regime feudal na Europa.
112
As análises de Elias sobre essa formatação social centram-se nas eras medieval e
moderna como modelo para demonstrar como ocorrem as mudanças entrelaçadas nos campos
psicológicos e sociais das redes de convivência desenvolvidas pelos indivíduos em meio a
novas configurações de poder que são exercidas nessas mesmas redes. E é nessa época que o
processo civilizador se mostra com mais concretude se analisados os tempos anteriores ao
período humano historicamente conceituado de moderno. Nesse foco, para Elias (2006), o
processo de civilização se descortina desde a aparição humana na Idade da Pedra, o que nos
ensina que todas as sociedades possuíram ou possuem seus padrões determinados de coações
externas e internas em níveis que oscilam de acordo com as exigências sociais, o que pode
colocar a civilização dos costumes e comportamentos em fases de desenvolvimento e
regressão. De todo modo, na análise histórica de longo tempo, Elias (1993) relata que a
imposição de códigos sociais apreendidos para harmonizar as relações coletivas tiveram nas
cortes aristocráticas da passagem da Idade Média para a moderna os espaços par excellence
criadores das novas atitudes que fomentaram a perpetuação do processo civilizador baseado
na internalização do controle externo.
Nessa esfera, segundo Elias (2011), podemos entender o processo civilizador ao
reportarmo-nos à teoria do jogo esboçada por ele mesmo, a qual enseja a compreensão das
relações de poder entre os indivíduos e grupos na sociedade, além do próprio conceito do que
vem a ser a sociedade. Falamos, pois, da concepção das relações que os indivíduos
estabelecem entre si a partir da interdependência recíproca e dos laços de interconexão entre
as diferentes posições que assumem no meio social. Nesse sentido, para Elias (2008), os
indivíduos – “jogadores” – assumem caminhos que não foram antecipadamente planejados ou
pensados por nenhum deles, mas o desenrolar do “jogo” acaba por influenciar de forma
constante as atitudes individuais de todos os participantes. Assim, o processo civilizador pode
ser entendido, no que tange ao seu desenvolvimento, como o modelo em que
cumprir os ditames reais, delegava-lhes o exercício das funções judiciárias e policiais, assim
como funções militares que os colocavam na posição de guerreiros que duelavam contra as
ameaças dos inimigos externos. Mas, na verdade, esses homens que assumiam o comando das
ações de governo eram agricultores e, só em tempos de imprevisibilidades e em épocas
estabelecidas, exerciam o poderio da guerra como oficiais. Nesse estágio, que Elias identifica
como uma fase constante de duelos entre forças articulam-se centralizações e
descentralizações - estas últimas com maior predominância - que fazem as relações de poder
basearem-se nas conquistas e manutenções dos territórios feudais. Era comum às classes
guerreiras feudais utilizarem do artifício do embate físico como estratégia de sobrevivência e
dominação.
O que percebemos no processo de feudalização é que não existiam instituições de
controle social para coibir a prática da violência, pois essa fazia parte das interações sociais
cotidianas próprias ao período de modo que, “o prazer de matar e torturar era socialmente
permitido. Até certo ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção,
fazendo com que parecesse necessário e praticamente vantajoso comportar-se dessa maneira”
(ELIAS, 2011, p. 185). Só que, o desenvolvimento a longo prazo das estruturas de conquistas
caminhou na direção do monopólio territorial centralizado no rei, com a crescente
fragmentação das classes guerreiras independentes e, ao mesmo tempo, com o surgimento das
cortes feudais que exigiam a utilização de comportamentos refinados e o controle dos afetos
que se traduzem na courtoisie. Com as modificações das condições sociais não só a courtoisie
caiu em desuso para ceder espaço à civilidade dos costumes, mas no século XVIII, com o
surgimento das monarquias absolutistas, consolida-se o conceito de civilização.
O que aqui buscamos demonstrar é como, nesse decurso histórico, o monopólio
administrativo gerou instituições de controle social. Ocorre que a transição entre a cortesia e a
civilização se deu com elementos da aristocracia feudal que se mantiveram, até certo período,
nas monarquias absolutistas, até serem extintos por completo. Nesse sentido, os antigos
guerreiros independentes da estrutura feudal transformaram-se em cortesãos e passaram a
viver sob o regime da nobreza sendo subsidiados pelo rei e esse fato se desenvolveu
concomitante às pressões exercidas pelos estratos burgueses emergentes que buscavam
ascensão social. O que se destaca nesse ponto é que a criação da nobreza cortesã, onde os
nobres disputavam a primazia da proximidade com o soberano e não exerciam nenhum tipo
de atividade profissional a não ser participarem da corte e receberem privilégios reais, foi um
ato estratégico por parte do monarca. Assim agia o rei para manter todos sob seus olhares e
impedir a ascensão burguesa através da adoção de mecanismos sociais de distinção inerentes à
116
A pressão constante exercida a partir de baixo e o medo que induzia em cima foram,
em uma palavra, algumas das mais fortes forças propulsoras – embora não as únicas
– do refinamento especificamente civilizado que distinguiu os membros dessa classe
superior das outras e, finalmente, para eles se tornou como que uma segunda
natureza. Isto porque a principal função da aristocracia de corte – a função que
desempenhava para o poderoso suserano – era exatamente distinguir-se, conservar-
se como uma formação social à parte, um contrapeso à burguesia. Tinha inteira
liberdade para gastar o tempo refinando a conduta social distintiva, das boas
maneiras e do bom gosto (ELIAS, 1993, p. 251-52).
habitualmente sido excluída da vida comum tem-se que esses profissionais, como
representantes do monopólio da força, adquirem a missão de vigiar o corpo social e controlar
a conduta dos indivíduos. Percebe-se, nessa situação, que o autocontrole dos indivíduos torna-
se um mecanismo real de condução no meio social e, “a concentração de armas e homens
armados sob uma única autoridade, torna mais ou menos calculável o seu emprego e força os
homens desarmados, nos espaços sociais pacificados, a controlarem sua violência mediante
precaução e reflexão” (Ibidem, p. 201).
32
Ver Foucault (2008b).
120
pretensão de humanizar as formas de punir. No entanto, afirma Foucault (1987, 2003) que, na
modernidade, essa configuração que modificou o regime penal dos principais Estados
europeus no início do século XIX não se trata de uma humanização das penas, pois o que
ocorreu foi o estabelecimento de instituições que passaram a adotar uma “ortopedia social”.
Por esse viés, a prisão passou a ser adotada como modelo único para prevenir e reprimir os
diferentes tipos de delitos praticados em sociedade e serve-nos de exemplo para
compreendermos essa ortopedia social. Nesse sentido, Foucault (1987) nos diz que as
instituições na modernidade, na verdade, tratam-se de instituições disciplinares, onde novas
relações de poder, diferentes do regime de soberania, não se reportam para os corpos e à
violência sobre eles, mas para o disciplinamento e o controle dos mesmos nas nascentes
instituições modernas.
Ocorre, pois, um processo que se expande para prisões, quartéis, asilos, manicômios,
escolas, fábricas, hospitais, enfim, onde o que importa é a produção de corpos “úteis” e
“dóceis” que serão adestrados e treinados para determinadas produtividades que, no final das
contas, acabarão por conformar as engrenagens do sistema capitalista de produção. Nessa
perspectiva, Foucault (2003) nega a tese marxista de que o poder estaria presente no modo
como uma classe social detém os meios de produção e expropria uma outra explorando-a, pois
para o sistema capitalista funcionar é necessário que se adestre primeiro os operários. Outra
situação a se considerar é que o poder não estaria no topo, representado pelo Estado, segundo
uma concepção jurídica, mas, ao contrário, estaria nas diversas relações vivenciadas pelos
indivíduos, em baixo, distante das esferas estatais. Só que esses embates não deixam de
influenciar a configuração estatal, o que leva a buscarmos uma análise de poder ascendente.
Desse modo, Foucault (1987) demonstra, ao contrário do poder soberano e da
violência atrelada a ele, que se formata, pois, nas citadas instituições um poder disciplinar,
visto que o mesmo utiliza-se das disciplinas como técnica para moldar e domesticar os corpos
dos indivíduos. Só que esse poder funciona de forma positiva. Não é um poder que reprime.
Ao invés de violência o poder disciplinar funciona de forma produtiva, de maneira que ele
naturaliza as dissimetrias existentes nas diversas hierarquias institucionais fazendo com que
exista um aumento para a aptidão às regras das instituições, o que acaba por acentuar a
dominação, ou seja,
O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele
não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz
coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considera-lo como
uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma
instância negativa que tem por função reprimir (FOUCAULT, 1979, p. 8).
121
Nesse sentido, Foucault (1987) nos faz perceber que, se o poder disciplinar oculta a
apreciação dos sujeitos sobre os processos que os subjetivam nas instituições disciplinares,
elas, neste caso, também funcionam como “instituições de sequestro”, por construírem uma
subjetividade pautada na ausência de autonomia pelo fato dos indivíduos estarem presos a
uma lógica disciplinar que busca uniformizar e padronizar não só procedimentos, mas
especialmente condutas. O ambiente disciplinar condena as idiossincrasias em prol da
uniformidade, estabelecendo um lugar para que cada um ocupe seu espaço respeitando as
hierarquias com o controle efetivo do tempo de todas as atividades desempenhadas no dia a
dia com o dispêndio de força que possa ser útil e produtiva. Pelas palavras do próprio autor
podemos sintetizar para entender o deslocamento empreendido por ele sobre a passagem da
soberania à disciplina:
Neste caso, o tipo de poder estudado por Foucault se entrelaça com um campo de
saber específico, pois, “o poder produz saber. Poder e saber estão diretamente implicados.
Não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não
suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 1987, p. 27).
Essa constatação diz respeito à ingerência dos ditames especialmente das ciências humanas e
do saber médico no campo do direito penal e da justiça, o que conforma técnicas de
normalização dos indivíduos. Normalizar significa dizer que aqueles que não se adéquam às
correções impostas pelos diversos mecanismos disciplinares passam a ser vistos como
anormais e, o saber que se acumula a respeito desses transgressores nas instituições é quem
propicia o fortalecimento do discurso das ciências humanas e do campo médico (psiquiatria) e
de seus técnicos habilitados. Gera-se uma “vontade de verdade” (FOUCAULT, 2007) por
parte de quem detém o saber, já que essa verdade se constrói numa relação entre quem fala e
quem escuta.
É por esse prisma que Foucault situa (1987) as polícias surgidas ainda no período
absolutista como instituições disciplinares. No interior das Forças Armadas e das polícias, o
soldado torna-se algo que se fabrica por meio do adestramento dos gestos corporais e através
de diversos instrumentos (vigilância hierárquica, sanção normalizadora e exame) que passam
a fortalecer a lógica disciplinar.
Em suma, a polícia do século XVIII, a seu papel de auxiliar de justiça na busca aos
criminosos e de instrumento para o controle político dos complôs, dos movimentos
123
o que Foucault (1979, 2007) entende ser o “dispositivo de sexualidade” e como seu exemplo
serve-nos de parâmetro para compreendermos a posteriori o dispositivo de disciplinarização.
Nesse percurso, assim como a medicina em fins do século XVIII e início do XIX
tornou-se uma estratégia biopolítica, fazendo do corpo uma realidade biopolítica, o sexo, ou
melhor, a conduta sexual da população passou a ser algo administrável para sofrer
intervenções estatais. O sexo passava a funcionar numa relação direta com o poder, suscitando
saberes sobre as diferentes formas do sexo ser apreendido. Para tanto, Foucault (2007) parte
do princípio de que a hipótese repressiva sobre o sexo deve ser refutada, pois não se deve
compreender o poder em termos de repressão ou interdição. Como já dito neste trabalho
acerca do poder, ele se investe sobre os corpos de maneira produtiva e, no caso do sexo,
induzindo prazeres que constroem discursos sobre o sexo. Soma-se a essa constatação de um
poder não repressor e sim produtivo a hipótese de que o poder não estabelece a paz e a ordem
social por meio das Leis, e sim que o poder deve ser pensado enquanto uma guerra contínua
que funciona para “defender a sociedade”.
Então no primeiro caso, no qual o poder não age repressivamente, a história da
sexualidade no Ocidente deve ser revista. Isso porque se acreditava que o sexo passou a ser
reprimido entre a burguesia devido ao seu concomitante desenvolvimento com o capitalismo,
que transformou em condições incompatíveis a lógica da produção pelo trabalho e o dispêndio
de energia sexual por parte dos indivíduos. Em contrapartida à hipótese repressiva, o que deve
ser observado é a proliferação de discursos sobre o sexo e as práticas sexuais, o que
desencadeou uma “vontade de saber” e de “verdade” sobre o sexo. Na verdade, houve uma
grande obstinação em se falar sobre o sexo, só que esses discursos não ocorreram no seio da
licenciosidade popular ou nas brincadeiras infantis, houve uma forma específica do sexo ter
sido posto em forma de discurso que se desenvolveu a partir da tecnologia cristã da confissão
e acabou por alcançar outras instâncias. Uma verdadeira polícia dos enunciados sobre o sexo
se prolifera para fazer dele um assunto de saúde pública, pois todos os desejos, perversões,
sonhos e prazeres ocultos que habitam as regiões proibidas do pensamento de cada indivíduo
devem ser confessados. Nesse contexto, o século XVIII serve de palco para o surgimento de
uma “polícia” do sexo, já que o sexo deve ser publicamente regulado e não proibido para que
haja uma intervenção em termos políticos e econômicos, pois, “é necessário analisar a taxa de
natalidade, a idade do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a
freqüência das relações sexuais, a maneira de torná-las fecundas ou estéreis, a incidência das
práticas contraceptivas” (FOUCAULT, 2007, p. 32), enfim,
125
Que o Estado saiba o que se passa com o sexo dos cidadãos e o uso que dele fazem
e, também, que cada um seja capaz de controlar sua prática. Entre o Estado e o
indivíduo o sexo tornou-se objeto de disputa, e disputa pública; toda uma teia de
discursos, de saberes, de análise e de injunções o investiram (Ibidem, p. 33).
Desse modo, passou-se a falar ainda mais do sexo, mas por meio de outras instâncias
que se consolidam pelo que Foucault denomina de scientia sexualis, ou seja, no Ocidente, o
sexo tornou-se objeto para a ciência, ao contrário do que teria ocorrido em civilizações como
a Índia, a China, a Roma Antiga, o Japão, as nações árabe-muçulmanas onde prevaleceu uma
arte sexual (ars erotica) que visou o prazer como forma de intensificar os atributos sexuais.
Portanto, a história da sexualidade para Foucault (2007) localiza o sexo como objeto
constante de saber que passa a ser atravessado por mecanismos de poder. É essa relação
saber-poder que torna a sexualidade um dispositivo que possibilita a intervenção médica e
pedagógica sobre a masturbação infantil, a psiquiatrização de sexualidades periféricas
(homossexualismo), a histerização da mulher que assume o papel de mãe e procriadora e do
casal monogâmico que assume a função social de incitar ou frear a fecundidade, devido à
responsabilidade que se assume perante toda a sociedade.
Desenvolvem-se processos de normalização que asseguram o disciplinamento da
conduta sexual dos indivíduos para consigo por meio de técnicas específicas que estabelecem
o poder enquanto uma relação dissimétrica entre aquele que exterioriza através da fala o sexo
proibido que carrega em si para aquele que escuta e que possui o conhecimento técnico
necessário para diagnosticar a anormalidade sexual confessada. O dispositivo de sexualidade,
pois, trata-se de uma construção histórica que cria a noção de “sexo” para garantir o
funcionamento do próprio dispositivo. Essa proposição nos alude ao fato de que “na junção
entre o “corpo” e a “população”, o sexo tornou-se o alvo central de um poder que se organiza
em torno da gestão da vida, mais do que da ameaça da morte” (FOUCAULT, 2007, p. 160),
pois,
Nessa perspectiva, no campo do biopoder o qual, além de agir, assim como o poder
disciplinar, de modo produtivo, diz respeito a um cálculo político de governo das populações.
E no ponto de encontro entre o poder disciplinar que atua sobre o corpo e o biopoder que
regulamenta as populações encontra-se a “norma” (FOUCAULT, 1999), enquanto um
mecanismo que não se trata da generalização das disciplinas no corpo social, mas do elemento
que possibilita o encontro entre a docilidade corporal e a regulamentação da vida, vista como
processo biológico que deve sofrer intervenção das tecnologias de poder. No entanto, mesmo
em meio às especificidades das tecnologias disciplinares e das regulamentações
normalizadoras da população, não se trata também de se enxergar essas instâncias de modo
absoluto como ressalta Foucault (1999), mas exatamente de descobrir na consolidação da
norma através da junção entre disciplina e controle sobre a vida enquanto espécie como o
Estado e as instituições se imbricam fazendo com que as disciplinas ultrapassem a esfera
institucional, já que essa é sua tendência. É por esse âmbito que Foucault (1999) situa a
polícia como um aparelho de disciplina e, ao mesmo tempo, um aparelho de Estado, pois “a
polícia, enquanto detentora do poder de criminalizar, ultrapassa o poder soberano do Estado e
antecipa o anonimato do biopoder (ROSA, 2012, p. 14).
No caso da polícia solidária em João Pessoa, observei esse processo durante a pesquisa
de campo. Eu estava na viatura policial juntamente com três policiais militares. Pelo rádio, o
comandante da guarnição informou ao Centro de Operações (CIOP) que iria realizar um
“trabalho comunitário”. Esse trabalho comunitário baseou-se essencialmente no
patrulhamento ostensivo com a viatura pelas ruelas e becos do bairro de Mandacarú. Durante
o trajeto das incursões pelas comunidades carentes do bairro, estava no período da tarde, o
comandante perguntou-me se eu gostaria de ir com ele fazer uma “visita solidária”. E então
surgiu a pergunta de minha parte sobre o que era fazer uma visita solidária. A resposta que
obtive foi que uma mulher teve a vida do filho ameaçada por traficantes e, a visita solidária
seria um auxílio para expor esse problema. Ele ainda acrescentou que tinha uma diferença
entre “visita comunitária”, que seria “pedir um cafezinho a alguém, fazer as rondas nos
bairros. Enquanto a “visita solidária” seria auxiliar as pessoas em suas casas”. Ele ainda disse
que nem sempre as visitas solidárias são bem aceitas. Contou-me o caso de uma menina que
levou um tiro e sua mãe não quis receber a polícia. Ele afirmou que aprendeu a diferença
entre os dois tipos de visita no curso de polícia comunitária. Em outro momento, acompanhei
com o mesmo comandante uma visita solidária a uma senhora que tinha supostamente sido
espancada por seu marido. Observei como o policial militar se mostrou solícito em despender
conselhos à senhora em nome da Polícia Militar.
127
O que está em jogo é a impossibilidade das pessoas não terem condição, segundo a
ótica dos policias militares, de gerenciar seu próprio mundo familiar, de modo a abrirem as
portas de suas casas para ouvirem os conselhos do policial solidário que carrega consigo a
“cartilha das boas maneiras” a partir de suas visões como profissionais imbuídos do senso de
responsabilidade e moral. Sobre o que o comandante diz ser uma “visita comunitária”, quando
da realização da pesquisa de campo no Bairro São José, eu tinha chegado ao posto pelas
dezenove horas e obtive o apoio da viatura até a sede da UPS. A guarnição era formada por
três policiais militares. Ao chegar ao posto, perguntei ao comandante se eles tinham jantado e
ele respondeu-me que “não, estou indo agora”. Falei que iria também e ele passou a relutar
que eu não fosse, pois onde ele iria comer era fornecida quentinha. Eu argumentei que não
tinha problema quanto a isso. Então me antecipei e entrei na viatura, enquanto o comandante
ficou conversando com os três policiais que estavam no posto policial, inclusive pedindo
ainda que eu não fosse. Eu disse então que “eles poderiam falar a verdade, de que não se
preocupassem”. Então, o comandante me confidenciou que eles iriam pegar as quentinhas.
Chegamos a um restaurante no Bairro de Manaíra e dois seguranças nos receberam com muita
cordialidade. Um deles era guarda municipal e o outro era morador do Bairro São José.
Quanto ao segundo, o comandante me disse que eles (os policiais) evitavam falar com o
segurança no bairro. Na frente do restaurante, à espera das quentinhas, o comandante quis se
justificar para mim dizendo que eles tinham que prestar auxílio aos policiais da UPS, levando
as quentinhas para os mesmos. Eu apenas disse que não estava ali “para fazer julgamento
moral de ninguém”. Quando saímos de lá, pedi à guarnição de policiais que parassem numa
conhecida lanchonete para que eu pudesse comprar minha comida. Fui sozinho e, ao fazer o
pedido, uma das vendedoras me olhou e perguntou se era para consumo (lembrando que eu
estava fardado). Fiquei sem entender de imediato e depois compreendi. Eu falei que era para
consumo e que eu iria pagar. Ela me disse que “os três policiais já passaram mais cedo e
pegaram. Nós damos três lanches por dia.” Após o constrangimento, a vendedora pediu-me
desculpas pelo infortúnio. Quando cheguei ao posto, peguei o caderno de campo e comecei a
descrever os eventos que tinham ocorrido momentos antes, o comandante da viatura ao ver
me perguntou: “O Senhor vai colocar no relatório (referindo-se à história das quentinhas)? Eu
respondi que “não”. Quando retornamos à viatura, o comandante disse-me que “Capitão,
muda só o nome, mas o policiamento comunitário permanece a mesma coisa, é um posto
policial”.
O que deve ser ressaltado nesse processo não são as práticas policiais enquanto
concepções morais dotadas de sentido para eles e para o observador das mesmas, mas como
128
Leite (2012), ao analisar a implantação das UPP‟s no Rio de Janeiro ressalta que o
processo de “pacificação" não diz respeito apenas ao uso da força reativa para garantir o
controle das favelas nem de resolver as emergências sociais dos morros, mas também de
disciplinar os favelados para torná-los cidadãos. No entanto, o que essa autora chama de
“dispositivo de disciplinarização” está vinculado a “discursos, regulamentos, medidas
administrativas e atividade policial que reprimem o que é considerado não civilizado (como
bailes funk, música alta, encontros e festas nas ruas)” (LEITE, 2012, p. 384). Aliam-se
também a esse dispositivo atividades de filantropia que ensejam formas de sociabilidade que
passam a serem aceitas ao mesmo tempo em que enfraquece as reivindicações dos moradores.
Acontece que, quando estamos falando de um dispositivo de disciplinarização tornam-se
evidentes a proximidade do dispositivo de disciplinarização estudado por Leite (2012), porém,
neste trabalho, o que estamos mostrando é o ponto de imbricação entre o poder que disciplina
os policiais militares em suas instituições e como essa lógica chega ao mundo social
permeado por uma relação de saber-poder (FOUCAULT, 1987) presente no discurso de
policiamento solidário. Ao invés da repressão policial que busca civilizar os jovens
reprimindo bailes funk, o que temos é um tipo de sociabilidade que visa convencer os
130
A disciplina faz com que nós policiais nos tornamos pessoas mais capazes porque a
disciplina é um dos pilares da polícia militar. A disciplina faz com que quem olhe
para mim, uma criança, um adolescente, queira seguir essa disciplina porque é na
disciplina que se forma um homem. Se numa casa, pai e mãe e dois filhos, não
houver uma disciplina, não houver uma rigidez, não houver uma condição: acorda
de tal horário, almoça de tal horário, toma banho de tal horário, vá ao colégio de tal
forma, se não houver disciplina não se cresce. Se a polícia realmente seguir a
disciplina do policiamento comunitário porque a polícia vai servir de modelo porque
a sociedade é feita de vários parâmetros e nós sabemos que na comunidade as
condições de vida são outras. E que a relação entre pai e filho não é uma relação que
nós vemos na classe alta, na classe média, a relação é outra. A formação em si, se
fosse levada como mostra a polícia solidária serviria muito pra essa comunidade
porque a comunidade teria uma base de como proceder (Cabo da UPS Bola na Rede,
entrevista em: 22/10/2014).
O policial em si serve de exemplo, ele tem que dá exemplo. Como nós somos
formado [sic] nós temos que dar exemplo. Ele tem que dá exemplo, ele é instruído
pra isso. Muitas vezes tem pessoa lá frente que nunca teve algum exemplo e o
policial em si, apesar de ser um ser humano igual a qualquer um, mas ele é instruído
com formação tanto através dos oficiais, intelectual, transmite pra gente. Quando
nós vê que alguém lá fora precisa do apoio da gente e tudo que eu aprendi que
transmito pra ele eu não aprendi sozinho. É como um receptor. Eu me esforço,
sempre me esforçarei para dar exemplo porque eu aprendi de minha maneira através
do meu comando e eu transmito boas coisas pra qualquer um que precisar de apoio
da minha pessoa (Sargento da UPS Róger, entrevista em: 15/10/2014).
Nós, para reprimirmos a gente em primeiro lugar tem que se dar o exemplo. Se eu
não sou um bom profissional, como vou exigir que o cara seja um bom cumpridor
dos deveres? (Sargento da UPS mandacaru, entrevista em: 30/10/2014).
Observamos nas falas dos policiais como a disciplina militar serve de parâmetro para
os policiais nortearem suas visões de mundo e como essa mesma disciplina acaba também por
servir como regulador social para as pessoas na sociedade, ou melhor, “a formação em si, se
fosse levada como mostra a polícia solidária serviria muito pra essa comunidade porque a
comunidade teria uma base de como proceder”; ou ainda, “é como um receptor. Eu me
esforço, sempre me esforçarei para dar exemplo porque eu aprendi de minha maneira através
33
No tocante à esfera da repressão policial presente nesses modelos de policiamento preventivo, discorreremos
ainda neste capítulo sobre a visão de Agamben (2004, 2010) sobre o que ele considera o Estado de Exceção e sua
relação com a vida nua, o que acreditamos ser um diálogo interessante com a perspectiva foucaultiana para
demonstrarmos o dispositivo de militarização num contexto biopolítico.
131
do meu comando (os superiores hierárquicos)”; ou seja, “se eu não sou um bom profissional,
como vou exigir que o cara seja um bom cumpridor dos deveres?”.
Nesse ponto é que podemos considerar um tipo específico de sociabilidade presente na
interação entre moradores e policiais, a partir da qual a disciplina apreendida nas casernas
pelos policiais pode funcionar, segundo a crença policial, como norteador moral para os
moradores se espelharem para melhor conduzir suas vidas. Neste trabalho, resolvemos cunhar
tal processo de “sociabilidade estratégica”. Para Simmel (2006), os indivíduos vivem em
sociedade por meio de interações recíprocas, as quais são mediatizadas pelo conjunto de
impulsos e finalidades que os impelem a realizar contatos e relações de convívio com os
outros. O que ocorre é a conexão entre matéria e conteúdo do que Simmel (2006) define por
sociação, ou seja, seria a superação da condição particular dos instintos e motivações (fome,
trabalho, amor, enfim) para se construir formas de ser e estar com o outro gerando interações.
Assim, a sociação é a forma múltipla a partir da qual os indivíduos agem conforme seus
interesses, o que garante a existência da sociedade. No que tange ao conteúdo da sociação, é a
partir dele que elaboramos os elementos que absorvemos do mundo para consolidar o sentido
de nossas vidas. Só que, o conteúdo da sociação (nossos interesses e finalidades) em certo
momento torna-se autônomo ao ponto de sua exteriorização não mais corresponder de forma
exclusiva à realização dos propósitos de quem os adquiriu. Como exemplo, segundo Simmel
(2006), podemos citar o conhecimento e o seu sentido na luta pela existência, o qual pode ser
usado para preservarmos e aprimorarmos a vida. No entanto, a praticidade do conhecimento
cedeu espaço para a ciência enquanto um valor em si mesmo, pois a instrumentalização e o
pragmatismo científico delimitam seus objetos para a própria ciência, para a própria
realização científica e suas necessidades. No mesmo esteio temos a arte que “cria a si mesma,
simultaneamente, pela segunda vez. E no entanto as formas por meio das quais ela cria e nas
quais ela consiste se criaram nas exigências e na dinâmica da vida” (SIMMEL, 2006, p. 62).
Nessas condições, vê-se operar a transmutação da matéria que engendra a forma (a
ciência, a arte, o direito) no seu contrário, pois a forma passa a determinar um valor definitivo
para si mesma, o que, para Simmel (2006), diz respeito a um jogo. Então, se nossos impulsos
e forças morais que antes produziam as formas de nossos comportamentos se autonomizam
ditando as regras do jogo que nos conformamos a seguir, temos, pois, que tal processo pode
ser compreendido também como a sociabilidade. Nesse caso, a sociabilidade é uma forma de
“sociação lúdica”, ou seja,
132
Só que, falar de “estratégia” nos conduz a falar das resistências que surgem na lógica
do poder, pois, para Foucault (2007, 2010b), não existe poder sem resistência. Aliás, o poder
só mantém a sua lógica exatamente porque admite o contrapeso da resistência e esta última é
tão real como a presença das relações de poder. Nesse âmbito, “o que torna a dominação de
um grupo, e as resistências às quais ela se opõe, é o fato de manifestarem, em uma forma
global e maciça, o entrelaçamento das relações de poder com as relações estratégicas e seus
efeitos de interação recíproca” (FOUCAULT, 2010b, p. 295).
Sobre as relações de poder e as resistências a elas, devemos deixar claro que nossa
pesquisa não se ateve a observar como as mesmas se posicionam e se desenvolvem no projeto
de policiamento solidário visto que nosso foco foram os policiais militares e suas
participações no projeto. Não pudemos, por exemplo, como já falei anteriormente na
introdução desta pesquisa, observar o cotidiano das comunidades envolvidas com a polícia
solidária ou ao menos realizar entrevistas devido ao risco de eu ser além de pesquisador,
policial militar. De todo modo, gostaríamos de pontuar um fenômeno apreendido em campo.
No Bairro José, os policiais me relataram que as pessoas dificilmente procuram o posto de
polícia solidária. Segundo um policial militar “Nós evitamos comprar lanche aqui, vamos pra
Manaíra. Os moradores não teem contato com a gente. Teve um caba [sic] aqui que me vendia
lanche, foi ameaçado. Vendeu a casa e foi morar em Mangabeira”. Outro policial me disse:
“Acho estranho, até uma senhora passa aqui e não dá bom dia”. Em outro momento me
confidenciou um PM: “Até as enfermeiras (pois existe um posto de saúde vizinho da UPS)
têm medo, atendem a gente rápido e falam pouco”. Alguns policiais da UPS também me
narraram alguns atentados sofridos pelo posto, onde não foi possível descobrir a autoria como
quando jogaram um gato morto de frente ao prédio ou quando quebraram a placa que leva o
nome da UPS. O discurso dos policiais, todavia, baseia-se na afirmação de que esse
distanciamento dos moradores diz respeito ao medo vivenciado por conta dos traficantes, pois
ser amigo de policial é ser ameaçado de morte. No entanto, não podemos afirmar
peremptoriamente tal condição, pois poderíamos também descobrir que o não contato dos
moradores com os policiais deve-se à relação de violência empreendida contra os moradores
do bairro pelas forças policiais. O que fica marcado é que em nenhum momento que estive
fazendo a pesquisa de campo algum morador do bairro São José cumprimentou os policiais ou
procurou a UPS. Observei situação análoga em Mandacarú, onde um policial militar disse-me
que “Aqui, as pessoas não falam conosco”.
Então, para se restabelecer, segundo o discurso policial militar a paz social, é preciso
“defender a sociedade” contra as classes perigosas. Dessa forma, Foucault (1999, p. 322)
134
expõe que “sob os esquecimentos, as ilusões e as mentiras que nos fazem crer em
necessidades naturais ou nas exigências fundamentais da ordem, deve-se encontrar a guerra:
ela é a cifra da paz”. Nessa apreciação, o biopoder revela sua outra face: o de que ele se
configura com base na guerra. Como afirma Foucault (1999), ao inverter o princípio de
Clausewitz, a política seria a guerra continuada por outros meios e, nesse sentido, o poder não
diz respeito à instauração da ordem por meio de mecanismos jurídicos e sim através de uma
guerra continuada.
Por esse escopo, Foucault (1999, 2007) nos explica que, enquanto o regime de
soberania se baseava na máxima de “fazer morrer e deixar viver”, a partir do século XVIII,
quando a biopolítica entra em cena, pouco depois dos mecanismos disciplinares (século
XVII), o que passa a vigorar é um poder sobre a vida que se traduz no princípio que se deve
“fazer viver e deixar morrer”. A vida passa a ser regulamentada, como já ressaltamos, por
meio de mecanismos de controle que passam a reger a conduta das populações.
Assim, para compreender a dimensão do biopoder pelos princípios da guerra, Foucault
(1999) analisa um discurso histórico que teria surgido no final da Idade Média, mais
precisamente entre os séculos XVI e XVII. Por meio desse novo discurso histórico, abandona-
se o discurso da soberania e emerge o discurso de embate e luta entre as raças. Esse discurso
pode ser observado na Inglaterra e suas lutas políticas de reação popular eclodidas no século
XVII. Tempos depois, vemos o mesmo discurso na “reação nobiliária” francesa contra o
reinado de Luís XIV. No século XIX, tal discurso histórico serviu como ideal para a
colonização dos povos descobertos e da visão que se criou de que eles seriam raças inferiores.
Nesse caminho, o que Foucault (1999) destaca criticamente é que a guerra em termos de
relações políticas estaria no plano das representações para um autor como Hobbes, pois no
estado de natureza a guerra nunca acontecerá. Não existem disputas reais no estado de
natureza hobbesiano. Ao contrário da filosofia política, Foucault (1999) parte da análise dos
escritos de Boulainvilliers sobre como o discurso histórico ensejou a reação da nobreza a Luís
XIV. Os estudos de Boulainvilliers sobre a economia e as instituições francesas denota o
posicionamento de um sujeito que se utiliza do discurso histórico numa perspectiva onde é
possível se perceber como o poder trata-se de uma relação, visto que esse discurso funciona
como uma estratégia política para provar que a nobreza deve ser vista como uma “nação”, a
qual se diferencia de outros grupos e instâncias políticas da França Absolutista. Assim, o
discurso histórico, enquanto um campo de saber específico e diferentemente de uma análise
linear voltada para grandes acontecimentos passa a ser utilizado em lutas políticas que
alcançará a Revolução eclodida em 1789. Nesse sentido, se antes o discurso histórico foi o
135
catalisador das guerras externas próprias da Idade Média passando pela vontade de afirmação
da nobreza francesa, com a ascensão burguesa temos um deslocamento do princípio da guerra
vinculado ao discurso histórico. Ocorre, então, que a guerra, no plano histórico, deve ser
realizada internamente para defender a sociedade dos perigos que lhe assaltam. Por esse mote,
a ideia de nação é reelaborada pela burguesia de forma que o discurso histórico passa a ser
utilizado nas lutas políticas burguesas. Nessa consideração histórica, a biopolítica surge
atrelada à ascensão burguesa fazendo da guerra interna uma maneira da sociedade se proteger
contra seus perigos, o que faz fortalecer o racismo como um processo que transita da
dimensão histórica para a biológica. Por meio do racismo, o biopoder, que age em função da
regulamentação da vida, torna-se “a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade
de normalização. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado
funcione no modo do biopoder, pelo racismo” (FOUCAULT, 1999, p. 306).
Nessa conjuntura, onde aqueles que devem morrer têm que ser selecionados para
garantir a vida dos que se permitem seguir a lógica biopolítica da normalização, a
criminalidade também pode ser vista em termos de racismo, pois, a relação entre
criminalidade e racismo surgiu “igualmente a partir do momento em que era preciso tornar
possível, num mecanismo de biopoder, a condenação à morte de um criminoso ou seu
isolamento” (Ibidem, p. 308). Dessa forma, por mais que a biopolítica esteja voltada para o
controle estatal da população, por um lado, o dispositivo de disciplinarização, por meio de
uma sociabilidade estratégica, garante esse controle pela perspectiva do discurso do
policiamento comunitário/solidário. Por outro lado, quanto aos que estão fora das malhas da
normalização, resta a repressão policial, num estado de coisas em que a ordem se legitima
selecionando a “vida que se pode deixar morrer” (ROSA, 2012).
quebra das normas jurídicas que regem legalmente a sociedade. Esse papel de uma ordem
socialmente higienizadora já tinha sido descrito por Freud (1978), quando o mesmo descreveu
que a civilização moderna desenvolveu-se de forma paradoxal na busca de segurança pessoal
para os indivíduos em troca do controle dos instintos, pulsões sexuais e agressividade. Essa
segurança teria gerado menos liberdade ao homem moderno, vinculando-se a “ordem” a dois
outros elementos que completam as exigências da civilização, ou seja, a “beleza” e a
“limpeza”. Ao falar também da ordem associada à pureza, Douglas (1976) nos diz que a
impureza caminha num sentido contrário à ordem e, eliminar o que é impuro trata-se de um
fator positivo, de modo que ordenar as coisas diz respeito a repelir o que não seja apropriado.
Assim, manter-se na ordem é não incluir as impurezas que estão fora do seu devido lugar e
todas as sociedades (primitivas e modernas), de certo modo, possuem o seu sistema de ordem
estabelecido. Um padrão a ser seguido. Mas, para Bauman (1998a), ao analisar o que ele
considera “o sonho da pureza”, o problema reside quando são os seres humanos que passam a
ser categorizados como “sujeira” e que são colocados como um empecilho na ordenação dos
espaços. Nesse sentido, em tempos de pós-modernidade, onde prevalece a lógica neoliberal,
baseada na desregulamentação do Estado provedor e na privatização de seus serviços, emerge
o discurso da “lei e ordem” como elemento propagandístico de como se agir para se repelir,
agora, os “estranhos” do mundo do consumo, ou os “consumidores falhos”, que se
transformam em “refugos humanos” (BAUMAN, 1998a). O que está em jogo é a
incriminação de problemas socialmente produzidos como nos relata um Tenente por nós
entrevistado na UPS de Mandacarú, ao falar sobre a condição social de um traficante o qual,
segundo o entrevistado, ainda torna-se vítima de uma hierarquização do próprio tráfico que o
absorve, além da certeza da existência de um tráfico organizado que deve ser a realidade a se
combater:
34
What is striking about both the Reagan and the Thatcher election victories is that they owed less to the appeal
of their economic policies –which at that stage were conspicuously underdeveloped- than to their ability to
articulate popular discontent. Hostility towards „tax and spend‟ government, undeserving welfare recipients, „soft
on crime‟ polices, unelected trade unions who were running the country, the break-up of the family, the
breakdown of law and order -these were focal points for a populist politics that commanded widespread support.
Appealing to the social conservatism of „hard-working‟, „respectable‟ (and largely white) middle classes, „New
Right‟ politicians blamed the shiftless poor for victimizing „decent‟ society – for crime on the streets, welfare
138
expenditure, high taxes, industrial militancy- and blames the liberal elites for licensing a permissive culture and
the anti-social behavior it encouraged (tradução nossa).
139
tona novas modalidades criminais e agravando a condição social das populações menos
assistidas pelas políticas estatais. Desse modo, essa cultura do controle em nosso país teria
começado a partir do final da década de 1990, especialmente após a criação da Secretaria
Nacional de Segurança Pública (SENASP) e pautada no modelo de segurança cidadã previsto
no Plano Nacional de Segurança Pública, datado de 2000, além do modelo punitivo que tem
como foco o combate à criminalidade atrelado ao Plano Nacional de Política Penitenciária.
Assim, os estudos de Garland (2001) quando aplicados ao Brasil identificam
Aquela vida nua natural que, no antigo regime, era politicamente indiferente e
pertencia, como fruto da criação, a Deus, e no mundo clássico era (ao menos em
aparência) claramente distinta como zoé da vida política (bíos), entra agora em
primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se aliás o fundamento terreno de sua
legitimidade e da sua soberania (p. 124).
Nesse limiar de indistinção entre fato e direito, vida e norma, não se caracteriza
homicídio eliminar a vida nua, visto que, no Estado de Exceção torna-se legítimo matar
aquele que se torna matável, já que a norma jurídica foi suspensa para garantir o exercício da
141
soberania (entenda-se o Estado), ou seja, o direito é deixado de lado para manter ele mesmo.
De todo modo, essa situação não se caracteriza como caos ou anarquia, já que mesmo com a
suspensão da ordem por uma concepção jurídica o Estado se faz presente para legitimar a
vontade soberana, pois, “a decisão soberana do Estado por si mesmo liberta-se de todos os
laços normativos e torna-se verdadeiramente absoluta. O Estado suspende a lei na exceção
sob a justificativa de que esta suspensão é necessária para que ele se auto-preserve”
(SANTOS FILHO, 2013, p. 21). É por esse prisma que podemos avaliar, assim como
aconteceu com a invasão das favelas no Rio de Janeiro para a implantação das UPP‟s, o que
nossos interlocutores narraram quanto às operações realizadas nos bairros de Mandacarú,
Bola na Rede e São José. Para que as UPS‟s fossem implantadas e passassem a funcionar foi
necessário antes que a Polícia Militar e outros órgãos de segurança se empenhassem para
“limpar” a área dos traficantes.
A força tática veio para a Bola na Rede no momento em que a Bola na Rede foi
tomada e foram expulsos os grandes marginais que tavam [sic] naqueles locais. A
UPS veio na tomada. No momento que foi tomado o bairro a população teve aquela
sensação de segurança e paulatinamente conseguiu essa segurança devido aos
bandidos que viviam nesse local foram expulsos. Com a chegada da força tática o
policiamento se tornou mais intenso e uma condição melhor de serviço. Com a UPS
tinha só uma viatura e no máximo três motos e dois homens rondando dentro do
bairro. Com a força tática nós tínhamos quatro viaturas com quatro homens e a
constância do policiamento era diuturnamente. As viaturas paravam e faziam aquele
patrulhão e passavam por dentro de todos os bairros e todas as vielas, todas as ruas,
retirando do meio da população aquelas peças que não deveriam estar ali (Cabo da
UPS Bola na Rede, entrevista em: 22/10/2014).
Como observamos nas falas dos entrevistados, a “tomada” dos bairros dos traficantes
locais propiciou se “fazer aquela limpeza da área”, de modo que, foi possível se retirar “do
meio da população aquelas peças que não deveriam estar ali”. O discurso higienizador em
relação aos traficantes torna-se claro nas palavras dos policiais e, para alcançar o êxito da
operação, a ordem jurídica teve que ser suspensa, pois “as viaturas paravam e faziam aquele
patrulhão e passavam por dentro de todos os bairros e todas as vielas, todas as ruas”. Essa
142
CAPÍTULO 4
Neste capítulo, procuraremos demonstrar como a violência policial ilegítima, sob certa
perspectiva, na verdade surge como efeito do distanciamento que é criado entre policiais
militares e sociedade devido ao processo de socialização pelo qual passam os policiais em
formação. Para tanto, demonstraremos as consequências advindas da violência policial, a qual
se tornou um problema a ser observado principalmente desde que voltamos a viver em um
regime democrático.
O que deve ser ressaltado é como a cultura profissional apreendida nas casernas
propicia o exercício de uma autoridade policial baseada em valores como o machismo, por
exemplo. Segundo Bretas (1997), por existir concordância nos estudos que reconhecem uma
“cultura policial” que regimenta uma “identidade policial”, estaríamos a identificar que uma
importante característica que acompanha os organismos policiais seria “a resistência a
inovações”, a qual acompanha a sociabilidade entre policiais militares e comunidades no
projeto de policiamento solidário.
Na verdade, mostraremos como a distinção policial militar faz parte do “dispositivo de
disciplinarização”, ou seja, funciona como mecanismo biopolítico que garante a socialização
dos policiais e os tornam os veiculadores do ideal militarista de construir uma sociedade nos
moldes militares só que através de um controle social com base no policiamento solidário.
Assim, não se trata de “inovações” do policiamento, mas de “estratégias” pelas quais a
distinção policial militar seria um dos instrumentos de manutenção do poder.
Em meio a essa discussão, seguiremos adiante para demonstrar que, antes que se
configure a violência policial, neste caso, a militar, mostraremos quais são os elementos que
perpetuam não só a violência policial, mas o distanciamento entre policiais e sociedade.
Ademais, ao considerarmos a presença de um ethos voltado para uma práxis belicista por
parte dos policiais militares devido à formação militarista que assim os condiciona,
identificamos a importância de uma “honra policial militar” específica, que acaba por gerar
uma crença coletiva que, segundo o vocabulário nativo se traduz como o “espírito de corpo”.
144
Em 1995, a polícia matou 358 civis em confrontos armados. Para se ter idéia da
magnitude desses números, as polícias norte-americanas mataram 385 civis em
1990. Ou seja, na cidade do Rio de Janeiro, com aproximadamente 5,5 milhões de
habitantes, as polícias mataram quase o mesmo número de civis que todos os
departamentos de polícia dos EUA, país com aproximadamente 240 milhões de
habitantes (COSTA apud CANO, 2004, p. 85).
principais de violência policial, ou seja, a tortura, detenções violentas, mortes sob custódia,
abuso da força letal, controle violento de manifestações públicas, operações policiais e
intimidação e vingança.
Nessa consideração, se a sociedade brasileira esperava, com a transição democrática,
garantir um controle maior sobre as instituições policiais, já que as Forças Armadas tiveram
seus papéis restabelecidos de garantir a defesa externa do país, as forças políticas fizeram-se
aparecer para engendrar o limite necessário do controle das instituições repressivas do Estado
pela população através de seus representantes legais. E estratégias de Segurança Pública
passaram a ser elaboradas. Como exemplo das políticas de Segurança Pública desenvolvidas,
em 1995, no governo estadual de Marcelo Alencar, do PSDB, no Rio de Janeiro, foi
implementada uma política de enfrentamento contra a criminalidade com o uso do aparato
policial. Como forma de incentivo à ação policial o secretário de Segurança Pública à época, o
General Newton Cerqueira criou uma gratificação e promoção por bravura que ficou
conhecida como “gratificação faroeste”, a qual tinha o objetivo de gratificar policiais que
participassem de ações e ocorrências violentas. O resultado de tal política governamental foi
que, só nos primeiros quinze meses de vigência da nova gratificação a polícia matou 486
civis, enquanto nos vinte e oito meses anteriores ao referido programa tinham morrido 456
civis mortos por policiais (COSTA, 2004).
Dados mais atuais mostram que, a política de implantação das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro também foi eivada pela utilização ostensiva da
violência policial. O processo caracterizou-se inicialmente pela invasão conjunta das favelas
por policiais e militares. De acordo com a situação participavam das operações o Bope e a
PM, que foram apoiados pela Força Nacional de Segurança Pública, o Exército e a Marinha.
Após a instalação física da UPP o policiamento militarizado tornava-se presente e, “os
moradores passam a conviver cotidianamente com abordagens e revistas constantes, invasões
de moradias por PM‟s em busca de possíveis armas, drogas ou traficantes, e um convívio,
muitas vezes hostil, com as forças de ocupação” (ALVES & EVANSON, 2013, p. 20). Em
entrevista coletada por Alves e Evanson (2013), uma professora de uma escola em um dos
morros onde foi instalada uma base da UPP relatou:
As formas de coibir a violência policial através de mecanismos legais podem ser por
meio do controle interno (Corregedorias de Polícia e Justiça Militar) ou externo (Ouvidorias
de Polícia, Ministério Público). No entanto, segundo a análise de Zaverucha (2010) sobre a
aprovação da Lei nº 9.299, de 1996, que legitima a competência da Justiça Comum para
apurar e julgar casos que envolvam crimes dolosos contra a vida praticados por militares
contra civis, houve um retrocesso. Mesmo sendo eliminada a competência dos próprios
militares para apurar as irregularidades policiais militares nos crimes dolosos contra a vida,
ainda ficaram sob a alçada da Justiça Militar crimes mais corriqueiros cometidos por PM‟s
como àqueles “contra o patrimônio, abuso de autoridade, espancamento, prisão ilegal,
extorsão, sequestro, prevaricação etc.” (ZAVERUCHA, 2010, p. 60).
Neste caso, excluídos os crimes dolosos contra a vida, as demais infrações penais
cometidas pelos policiais militares são investigadas e solucionadas por suas respectivas
instituições. Se as infrações constituírem crimes militares próprios ou impróprios, da forma
em que são elencados e entendidos pela legislação penal militar, utiliza-se o Código Penal
Militar (CPM) e o Código de Processo Penal Militar (CPPM), nas considerações respectivas
do uso que é feito de ambos os códigos. Nesse contexto, segundo o CPM, 35 existem crimes
que podem ser praticados em tempos de paz ou em época de guerra, mas o mesmo código é
aplicado tanto para as Forças Armadas como para as PM‟s, visto que as últimas são Forças
Auxiliares do Exército brasileiro. O que deve ser questionado neste sentido é até que ponto
existe corporativismo nos julgamentos de policiais militares que cometem crimes, já que são
os próprios PM‟s que julgam os casos desviantes nas instituições policiais militares.
Assim, quando os policiais militares sofrem sanções que não constituem crime, eles
cometem transgressões disciplinares, as quais são normatizadas pelo Regulamento Disciplinar
da Polícia Militar (RDPM). O campo de aplicação desse código prescritivo institucional
compete em apurar as transgressões disciplinares que consistem em “qualquer violação dos
princípios da ética, dos deveres e das obrigações policial-militares, na sua manifestação
elementar e simples e qualquer omissão ou ação contrária aos preceitos estatuídos em leis,
regulamentos, normas ou disposições, desde que não constituam crime”.36 Assim, fica
estabelecido que os crimes militares devem ser apurados formalmente por meio de Inquérito
Policial Militar (IPM). Caso ocorram transgressões disciplinares, o processo formal para
35
Ver Código Penal Militar.
36
Ver Decreto nº 8.962, de 11 de março de 1981, que dispõe sobre o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar
do Estado da Paraíba e dá outras providências.
148
37
De acordo com as normas regulamentares policiais militares, o quadro organizativo das instituições PM‟s
comportam dois quadros funcionais distintos: o de Oficiais e o de Praças. Apesar de ambos os quadros terem
divisões hierárquicas que distinguem as diversas localizações dos servidores policiais militares dentro das
organizações PM‟s, a divisão basilar permite especificar que aos Oficiais cabem as funções de comando e às
Praças às funções de execução. Para conhecimento do Quadro Hierárquico da Polícia Militar do Estado da
Paraíba ver Lei nº 3.909, de 14 de julho de 1977.
149
farda”. Além disso, se existe uma legislação penal específica para os militares, é também
porque estamos tratando de uma profissão que demonstra a existência de diferenças entre os
policiais militares e a sociedade, a qual é sancionada pela Justiça Comum.
Por esse escopo, o que está em jogo é a regulamentação da conduta dos policiais
militares, pois, “tais normas têm por finalidade disciplinar a atuação dos policiais em diversas
situações, sobre as quais a legislação penal não é muito clara. Visam, portanto, estruturar a
relação entre a polícia e a sociedade” (COSTA, 2004, p. 103). O que deve ser observado, no
entanto, é que o RDPM tem por princípio a correção de atitudes e comportamentos com fins
de fortalecimento da disciplina e da hierarquia pouco se atendo a regular as ações que dizem
respeito ao policiamento nas ruas, ou seja, “como o policial será avaliado pelas normas
ditadas pelo RDPM e não por sua atitude com a população, freqüentemente “bons” policiais
(do ponto de vista da hierarquia e disciplina) são flagrados em cenas de abuso de autoridade e
violência contra cidadãos” (Ibidem, p. 104). Então, se os desvios praticados pelos policiais
militares quando dizem respeito à quebra da disciplina e hierarquia têm mais relevância para a
instituição do que a violência praticada por seus agentes contra a sociedade, como se
estrutura, então, essa crença na importância da disciplina e hierarquia como forma de tornar
os policiais militares distintos da população civil?
38
A participação no Curso de Especialização em Segurança Pública é obrigatória para os policiais militares que
estão no posto de Capitão, pois o referido curso funciona como requisito institucional para a promoção ao posto
subsequente de Major.
150
atenção. Um dos capitães do curso exigiu que a camisa branca usada pelos alunos do CESP
tivesse sua cor modificada para que eles não fossem confundidos com os alunos do CHO
(Curso de Habilitação de Oficiais), já que esses últimos também usavam cotidianamente no
curso que frequentavam uma camisa branca como fardamento, só que eles são
hierarquicamente inferiores aos capitães,39 pois quando se formam podem ser promovidos a 2º
Tenente, dois postos anteriores ao de Capitão.
A partir dos fatos narrados podemos começar a explicar o que passamos a conceituar
por “distinção policial militar”. Para tanto, também serão discutidos aspectos da literatura que
podem ajudar a compor um modelo “típico-ideal” da experiência e identidade de PM. Em
“Memórias de um Sargento de Milícias”, livro lançado em 1854 por Manuel Antônio de
Almeida, o autor nos traça um perfil do que era ser um meirinho “nos tempos do rei”,40 já que
eram esses os homens responsáveis por manter a ordem social, ou seja,
Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram
originais, eram tipos: nos seus semblantes transluziam um certo ar de majestade
forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda
casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo
aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja
significação ignoramos, e coroavam tudo isso por um grave chapéu armado.
Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava
de sua posição (ALMEIDA, 2012, p. 13-14).
Observamos nas palavras do autor um tipo de descrição que lembra a forma como
Foucault (1987) nos mostra que, durante o século XVIII o soldado passou a ser algo
fabricável. Só que, enquanto Foucault se volta a explicar a modelação corporal, as
características apresentadas por Manuel Antônio de Almeida prendem-se com mais afinco ao
uniforme usado pelos meirinhos e como o uso do “distinto traje” possibilita ao meirinho ser
“original”, de modo a deixar transparecer em seu semblante “um certo ar de majestade
forense”. De qualquer forma, estamos a tratar aqui de um conjunto de fatores que constroem
de “corpo e alma” (ROSA; BRITO, 2010) o ser militar, além de acrescentarmos a aparência
construída com base em elementos simbólicos, como os uniformes, que denotam a presença
dessa distinção.
Machado de Assis (2002) em seu conto “O espelho: esboço de uma nova teoria da
alma humana” retrata as memórias do personagem Jacobina, que relata a outros quatro
39
Para um melhor entendimento do quadro hierárquico da Polícia Militar da Paraíba ver Anexo A.
40
Entenda-se o período da presença da família real portuguesa no Brasil que aportou em nosso país em 1808,
quando da fuga das tropas de Napoleão Bonaparte que invadiu Portugal.
151
companheiros de conversa sobre como se deu a sua nomeação para alferes da Guarda
Nacional. O que se destaca é quando da visita a uma tia, a qual pediu a Jacobina que fosse
visitá-la, mas que levasse sua farda de alferes. Em meio aos carinhos e atenções dispendidos
ao alferes, o mesmo acabou por se transformar de maneira que,
O personagem Jacobina, “no fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era
exclusivamente alferes” (Ibidem, p. 29). Só que o adoecimento da filha de sua tia fez essa
última correr ao auxílio daquela, deixando o estimado alferes sozinho no sítio, pois os
escravos aproveitaram o momento oportuno para fugir. Restando como companhia para si a
solidão, o alferes decidiu então olhar-se no espelho que a tia depositara no quarto do sobrinho,
chegando-lhe a ideia de vestir a suntuosa farda de alferes. O acontecimento proporcionou-lhe
encontrar a si mesmo novamente, mesmo com a ausência das pessoas, pois “o vidro
reproduziu a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu
mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior” (Ibidem, p. 32).
FIGURA 28 (esquerda): Cadete da PMPB usando o azulão, uniforme que se destaca pelo uso de apetrechos
como a barretina, ou seja, cobertura adornada com penachos vermelhos que remetem aos tempos do Império
brasileiro.
FIGURA 29 (direita): Espadim Tiradentes: espada em miniatura que simboliza a passagem dos cadetes pelo
Curso de Formação de Oficiais.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
152
FIGURA 30: Chegada ao casamento de um cadete da PMPB de um convidado policial militar vestido
com a túnica utilizada em momentos solenes como a comemoração referida. Os cadetes se colocam no corredor
da igreja vestidos com o azulão e empunhando o espadim.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
Sinto-me mais próximo de Norbert Elias, mas por outras razões. Não tenho em
mente o Elias das grandes tendências históricas, do “processo de civilização” etc.,
mas, antes, aquele que, como em La société de cour, capta mecanismos ocultos,
baseados na existência de relações objetivas entre os indivíduos. A corte, tal como
Elias a descreve, é um belíssimo exemplo do que chamo um campo em que, como
num campo gravitacional, os diferentes agentes são arrastados por forças
insuperáveis, inevitáveis, num movimento perpétuo, necessário para manter as
hierarquias, as distâncias, os afastamentos (BOURDIEU apud MARQUI JR., 2007,
p. 7).
41
Castro afirma que “‟paisano‟ é normalmente usado em lugar de “civil” mas, embora pareça ser a mesma coisa,
não é. “Paisano” é um termo claramente depreciativo”. In: CASTRO, Celso. O espírito militar: um antropólogo
na caserna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. p. 41-42.
154
42
Acreditamos que a expressão “grupos de status” seja mais adequada para caracterizar, ao invés do conceito de
classe, mais próximo da perspectiva marxista, os segmentos sociais que compõem os quadros que formam os
profissionais policiais militares. Esse fato decorre da condição de que, por uma análise weberiana, grupos de
status seriam aqueles que lutam institucionalmente por outros valores que não apenas de origem econômica, ao
contrário, se destacam a honra, o poder e o prestígio, além de existir um senso de comunidade que se atrela à
busca de um mesmo fim e de uma visão de mundo compartilhada por parte de quem se situa no mesmo grupo de
status. Ver Collins (2009) e Weber (1982).
155
preceitos no convívio social. O processo civilizador, pois, não foi planejado, mas a
modificação nas formas de ser e agir dos indivíduos influenciou diretamente nos valores
culturais que determinaram a distinção entre eles.
Elias (1994b) nos mostra que padrões de etiqueta eram bem delineados em manuais
específicos de disciplinamento estético para com o corpo como, quando ele nos diz que, sobre
as maneiras de agir à mesa: “Não conserve sempre a faca na mão, como fazem camponeses,
mas pegue-a apenas quando dela precisar” (1994b, p. 105). Essa distinção dos modos de agir
era clara nesses livros, mas o importante é perceber a maneira explícita de como esses códigos
evidenciavam o distanciamento entre aqueles que deviam necessariamente adquirir esses
hábitos e os que serviam de referência negativa como não possuidores de tais predileções:
É sempre educado usar o garfo para levar carne à boca, pois o bom tom não permite
que se toque com os dedos qualquer coisa gordurosa. Se alguém faz isso, não pode
deixar de cometer depois várias incivilidades [...] o que não é permitido a pessoas
refinadas, bem-nascidas (Ibidem, p.106, grifo do autor).
militar e pelo uso da etiqueta de corte. E pelas palavras do próprio Elias, podemos indagar: “o
que os mantinha unidos, o que os caracterizava, justamente dessa maneira?” (2001, p. 65). E
ainda com o acréscimo de buscarmos entender, especialmente a partir da etiqueta de corte,
como esse mecanismo funcionava para os indivíduos exercerem e manterem a distinção
relativa a outros segmentos sociais. O que a perspectiva sociológica eliasiana nos revela sobre
a sociedade de corte é que esse mundo social se equilibrava sustentado por tensões e conflitos
entre nobres e burgueses para privilégio da posição assumida pelo rei que de certa forma
alimentava essas oposições em proveito próprio. No entanto, quanto ao que nos interessa
sobre o que caracterizava as formas de distinção podemos afirmar que,
Nesse entendimento, a lógica social em torno do rei, ao qual eram dedicados atos de
submissão e reverência pelos cortesãos como aqueles que diziam respeito ao despertar do
monarca em seu quarto, bem como no da rainha, faz parte de uma organização a partir da qual
tais atos, mesmo não tendo objetivos práticos, ensejavam a busca e manutenção de prestígio.
Dessa forma, “o que dava a tais atos seu significado grandioso, sério e grave era tão somente a
importância que eles atribuíam aos participantes no seio da sociedade de corte, a posição de
poder relativa a cada um, o nível e a dignidade que manifestavam” (Ibidem, p. 103). E se
assim podemos nos expressar, o mecanismo responsável pelo padrão de conformidade e
estabilidade das posições de privilégio de cada um que compunha a noblesse, em meio às
tensões era a etiqueta, pois, para quem estava inserido nesta configuração social que era a
corte, a etiqueta possibilitava não só o prestígio, mas a própria existência social.
Com a etiqueta também se estabeleciam os vínculos hierárquicos na corte já que,
mudanças na hierarquia ensejavam mudanças nos padrões de etiqueta além de que alterações
nas regras de etiqueta condicionavam transformações na disposição social da corte e da
sociedade de corte. Tais condições faziam com que cada indivíduo se tornasse “extremamente
sensível a toda e qualquer alteração na engrenagem, vigiando com atenção as mínimas
nuances para que o estado de equilíbrio hierárquico vigente fosse conservado – quando não se
empenhavam em alterá-lo em benefício próprio” (Ibidem, p. 106). Nessa conjuntura, podemos
perceber que a sociedade de corte estava sedimentada num tipo de racionalidade particular
que se baseava na passagem das coerções externas para as internas, ou seja, no autocontrole
das emoções, de modo que desse processo surgiam comportamentos que estabeleciam as
diversas distinções entre os indivíduos. Assim, essa racionalidade era pautada no
“planejamento calculado da estratégia de comportamento em relação a possíveis perdas e
ganhos de status e prestígio sob a pressão de uma competição contínua pelo poder” (Ibidem,
p. 110). E mais, para se obter e manter esse capital cultural expresso na prática mediante o
corpo o que se tinha era o exercício dessa racionalidade de corte mediante o uso da elegância.
Eis, pois, no que consistia a distinção a partir da realidade encontrada na sociedade de corte
francesa esboçada por Elias (2001) na qual,
158
O refinamento da conduta diária nunca perde de todo, nem mesmo neste período,
sua importância como instrumento de diferenciação social. Mas, desde essa fase, não
desempenha o mesmo papel que na fase precedente. Mais do que antes, o dinheiro
torna-se a base das disparidades sociais. E o que as pessoas concretamente realizam
e produzem torna-se mais importante que suas maneiras (Ibidem, p. 115).
Para complementar a nossa análise, Bourdieu também observa, assim como Elias, um
elemento estruturador que objetiva os costumes para fazer com que esses, através da
incorporação de disposições necessárias pelos indivíduos, acabem se refletindo no meio social
com um papel estruturante através da homologia de comportamentos dos agentes sociais.
Nossa intenção é mostrar, pois, como as formas de diferenciação entre grupos, como o são as
Polícias Militares e a sociedade onde os PM‟s atuam, se estruturam em um mundo fechado
(assim como Elias observou no universo da corte) e se refletem no mundo exterior (o que para
Bourdieu caracteriza a “distinção”). No caso de Bourdieu, a distinção entre os grupos se
consolida quando os gostos e costumes surgem das relações estabelecidas entre os indivíduos
em sociedade, mas através de escolhas que ocorrem mediante uma autonomia exercida pelo
habitus. Nesse sentido, o habitus trata-se de disposições que duram e que surgem devido a um
processo de estruturação advindo do meio social, que o autor denomina de “campo”. Assim,
Bourdieu (2009) nos delega o conceito de habitus que seriam,
freios econômicos é acompanhada pelo fortalecimento das censuras sociais que interditam a
grosseria e a grossura em benefício da distinção e da finura” (Ibidem, p. 176).
Para Bourdieu (2007a), a representação do antagonismo de classes se dá mediante a
prática dos gostos de luxo (ou de liberdade) e gostos de necessidade. Os primeiros são
próprios dos indivíduos que possuem as condições de acesso aos bens materiais e simbólicos
e que estão distanciados dos mecanismos de necessidade; eles garantem o acesso aos capitais
próprios de seu campo. Os segundos dizem respeito aos indivíduos que realizam suas
vontades atreladas à necessidade de realizá-las, distanciando-se da liberdade de escolha,
mesmo que numa percepção bourdieusiana a liberdade seja uma condição estruturada
vinculada ao habitus. Portanto, assim como a aristocracia de corte seguia costumes
específicos (os padrões de etiqueta), para denotar sua nobreza como modo de ser, condições
que eram exteriorizadas através da corporeidade, Bourdieu (2007a) afirma que,
A propósito das classes populares, seria possível falar de comer sem formalidades,
do mesmo modo que se diz falar sem papas na língua. A refeição é colocada sob o
signo da abundância. São preparados pratos “elásticos” e “em fartura”. Ao “comer
sem formalidades” popular, a burguesia opõe a preocupação em comer nos
conformes. Nunca se deve dar a impressão de precipitar-se sobre a comida. A pessoa
deve proceder com discrição (p.185-186, grifo do autor).
Mas como essas características distintivas dos policiais militares são construídas?
específica a ela vinculada. Isso quer dizer que, falar da socialização policial militar é
descrever diversos aspectos da formação profissional (gênero, cultura, honra, entre outros).
Nesse contexto, partamos a partir da compreensão dos valores sociais baseados no machismo
e na dominação masculina (BOURDIEU, 2002) que podem ser percebidos em sua
manifestação no tipo de formação e cultura profissional encontrados na Polícia Militar, visto
que essa instituição herdou o modelo de organização do Exército. Nesse sentido, a obra de
Falconnet e Lefaucheur intitulada “A fabricação dos machos” (1977) torna-se esclarecedora.
Ao descortinarem as diversas nuances que fortalecem a cultura machista e masculinizada que
projetam o homem como sujeito dominador e ativo na sociedade capitalista, o que
consequentemente delega à mulher o papel de subalternidade que a acompanha no transcorrer
histórico do Ocidente, os autores reportam-se às características militares como um dos vetores
que privilegiam a manutenção da ideologia masculina. Quando o “ser homem” diz respeito a
atributos específicos que emergem da competição própria entre os machos. Para se ter uma
vida de homem deve-se seguir o mundo simbólico de estar sempre pronto a guerrear, a
utilizar-se de armas e de lutar com afinco pelo poder. A “virilidade” é algo estreitamente
relacionada aos militares e, como a hierarquia é um princípio basilar da vida da caserna,
afirmam os autores que os homens “gostam de ganhar, de dominar, e não questionam a
hierarquia social quando esta joga em seu benefício. Não procuram escapar às relações de
domínio senão quando estas lhes são desfavoráveis” (FALCONNET; LEFAUCHEUR, 1977,
p. 57). Nesse contexto, o sistema militar demonstra como se configuram as relações sociais de
domínio e como essas são fortalecidas pelo reconhecimento de que atividades sem sentido
podem ganhar importância para provar o exercício da autoridade:
velhos. Com o recrutamento obrigatório a partir de fins do século XVIII que estipulou a
conscrição entre os 20 e 25 anos, a virilidade masculina passou a ser um componente
norteador do “espírito militar” e ela era buscada nas formas de educar os soldados física e
moralmente. Essa educação para a virilidade baseada no recrutamento para o combate
adquiriu ritualidade existencial e, o campo de guerra tornou-se local de prova sexual, por
sancionar a inserção dos jovens na fase viril de suas vidas.
No tocante à realidade das Polícias Militares brasileiras, acrescentamos que um
exemplo par excellence na construção dessa identidade masculina pode ser vista no constante
exercício dos corpos nos cursos de formação. Para além das atividades físicas que fazem parte
do currículo, alguns ritos informais aceitos e defendidos pela cultura militarista como as
flexões de braço, que no seio policial militar é comumente chamado de “pagar”, acompanha
os alunos em todos os momentos e lugares que fazem parte do Centro de Educação. Isso
implica dizer que, caso um superior hierárquico ordene ao aluno que ele “pague”, não
importando o local ou circunstância, ele terá que cumprir a “missão”. Essa situação acontece
em muitos casos quando um superior hierárquico ou aluno precedente43 se utiliza desse
recurso corporal que exige um certo esforço físico, e até mesmo psicológico, para fazer o
subordinado ser retaliado por algo que fez de errado, ou ainda pode acontecer em situações
que servem para destacar o brio, a força, o vigor, o orgulho pelo fato de ser um policial
militar.
43
Entre os alunos do Curso de Formação de Oficiais, o qual funciona durante um período de três anos, o que
existe entre eles é a precedência hierárquica, ou melhor, o aluno do 3º Ano, que está prestes a concluir o curso e
se formar, deve ser obedecido pelos alunos do 2º e 1º Ano, assim como os do 1º obedecem aos do 2º. Nesse caso,
se diz que os alunos precedentes são mais antigos em relação aos seus inferiores de anos anteriores, os quais são
chamados de mais modernos. A mesma lógica funciona entre alunos de outros cursos como o de soldados e
sargentos, onde os últimos em contato com aqueles podem prescrever-lhes ordens. Além disso, esse tipo de
classificação hierárquica acompanha os policiais militares durante toda a permanência na instituição, desde o
ingresso até a ida à reforma (aposentadoria), em todos os postos e graduações.
167
FIGURA 31: Cadetes do 1º Ano “pagam flexões” com os do 3º Ano durante a semana de adaptação dos recém-
egressos na Polícia Militar.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
de “pagar flexão”, pois, para aqueles que fazem isso com os punhos fechados (ou melhor, na
expressão nativa “punhos cerrados”), ao invés de fazerem com as mãos abertas com as palmas
voltadas para o chão, denota mais resistência e força, o que se torna motivo de orgulho para os
que conseguem. O que deve ficar claro é que essas práticas se consolidam durante os cursos
de formação. Só que é nesta fase na vida profissional dos alunos policiais que eles começam a
interiorizar o habitus que os ensinam o sentido da distinção entre ser um policial militar e um
paisano.
169
FIGURA 32 (Acima): Os cadetes pagam flexão durante uma aula de tiro. A cadete que por motivos de saúde não
pode fazer o exercício fica com os braços distendidos paralelos ao solo.
FIGURA 33 (Centro): Os cadetes recebem instrução debaixo de chuva, pois nem os fatores climáticos devem
abater um policial militar.
FIGURA 34 (Abaixo): Um cadete mais antigo ordena que um aluno mais moderno pague flexão dentro da sala
de aula.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
Para Oliveira (2010a), o que está em jogo é a visão que se cria em relação ao corpo
pela sociedade e, em particular, pelos policiais militares, pois, para os últimos, é algo
corriqueiro a assertiva que se traduz num corpo que “quanto mais malhado e forte, mais
disposição o possuidor deste demonstra ter para enfrentar a criminalidade. Nesse sentido, é
comum a associação entre o corpo e um ideal de masculinidade comum à instituição policial”
(OLIVEIRA, 2010a, p. 2). Ainda alude o mesmo autor para o fato de que “para muitos
policiais, um corpo malhado é um ideal que precisa ser atingido através de um duro trabalho.
Por outro lado, o corpo malhado mostra a classe social dos indivíduos” (Ibidem, p. 2). Está-se
a falar de um corpo, pois, que paradoxalmente se encontra entre uma condição atrelada à
natureza humana e, ao mesmo tempo, é resultado de uma construção social. Para Foucault
(1987), a partir do século XVIII, o soldado tornou-se algo que se fabrica e, o corpo,
especialmente em locais como os quartéis, passou a ser um elemento de “docilização” e
“utilidade”, ou seja, transformou-se no alvo de técnicas disciplinares que acabaram por
fortalecer o que Foucault (1987, 2003) conceituou de “poder disciplinar”. Enquanto um
elemento de transmissão do poder disciplinar, o corpo tornou-se um alvo da disciplina, pois
essa última trata-se de uma tecnologia política dos corpos que deve passar a adestrá-los.
Como afirma Mauss (2003), para o corpo ser tecnicamente adestrado, não é preciso que essa
técnica seja mediada por um instrumento, basta apenas que o corpo se vincule a atos e ritos
que sejam transmitidos com base na tradição (assim como o é a disciplina militar), pois o
adestramento, como a construção de uma máquina, visa à aquisição de um rendimento. Nessa
busca, o corpo é ensinado a evitar o erro seguindo o exemplo e a ordem.
FIGURAS 37 (Esquerda) e 38 (Direita): Alunos e alunas policiais realizam exercício na barra fixa.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
171
FIGURA 39: Alunos policiais militares pagam flexão com roupas civis.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
por parte dos policiais militares em relação à sociedade e aos diversos segmentos que a
compõem, num tipo de relação baseada
No que concerne às questões de gênero, as relações intra corporis também fazem parte
do arcabouço cultural construído para legitimar a distinção policial militar. Na crença de que
estamos a defender o ponto de vista a partir do qual essa distinção própria aos policiais
militares se consubstancializa por meio de variados elementos, forte se torna então, pela
existência da masculinidade PM, uma masculinização das profissionais femininas que atuam
nas Polícias Militares. Assim, sobre a construção da diferença entre policiais masculinos e
mulheres policiais, Oliveira (2010b, p. 4) relata essa contradição na Polícia Militar do Rio de
Janeiro que, “opondo masculinidade a feminilidade, muitos policiais acreditam que as
mulheres não estão preparadas para combater a criminalidade que se encontra nos morros e
favelas, sendo que essa atividade deve ser desempenhada pelos „homens de verdade‟”. O que
ocorre na construção desse imaginário é que, além da estigmatização para com as mulheres no
que concerne ao desempenho do serviço ordinário nas ruas, para as mesmas destacarem-se
como “policiais de verdade”, ou devem adotar posturas masculinizadas no seio dos ritos
cotidianos inerentes ao uso de símbolos e posturas corporais exigidos pelo disciplinamento
militar, ou devem agir nas ruas para conquistar espaço entre os homens como policiais
operacionais, ou seja, imitando o ethos guerreiro para o combate tão enaltecido pelos policiais
masculinos. Ou melhor,
44
Academia de Polícia Militar.
45
Forma abreviada de feminino e expressão comum para os policiais militares se referirem às mulheres policiais.
173
festa após a cerimônia religiosa. Até então eu tinha participado de outros casamentos de
militares, mas não tinha “desnaturalizado” algumas situações exatamente por ainda não
possuir o olhar do sociólogo. Foi então que um elemento que para todos da festa pode ser
considerado simples, por ser algo comum em comemorações de casamento, aguçou minha
curiosidade, pois o bolo, que sempre fica em lugar de destaque, trazia no seu topo bonecos
que simbolizavam os noivos, sendo que o boneco que representava meu amigo estava vestido
com a túnica militar, um uniforme usado pelos policiais militares para solenidades especiais e
festas como as formaturas dos cadetes. Além disto, o boneco estava fazendo “flexão” em cima
do bolo. Esse fato me levou a buscar fotos de outros casamentos que revelassem essa atitude
por parte dos nubentes policiais militares e, minha percepção se constatou. Ou melhor, passei
a enxergar que utilizar bonecos vestidos de policial em cima de um bolo de casamento denota
que esses profissionais precisam mostrar o quanto são diferentes em relação aos modos de ser.
175
FIGURA 40: Bolo de casamento de dois policiais militares da PMPB (Acima, à esquerda).
FIGURA 41: Bolo de casamento de um Tenente da PMPB (Acima, à direita).
FIGURA 42: Bolo de casamento de um policial da PMPB (Abaixo, à esquerda).
FIGURA 43: Bolo de casamento de um Tenente da PMPB (Abaixo, à direita).
FONTE: Arquivos do autor (2013).
Além disso, o casamento do amigo ao qual compareci ainda me revelou outra fonte de
dados interessante para que eu percebesse o significado do que passei a conceituar como
“distinção policial militar”. É próprio aos Oficiais policiais militares, quando da saída dos
noivos de uma igreja, serem saudados por amigos de profissão, exclusivamente Oficiais, num
rito cerimonial denominado institucionalmente de “teto de aço”. Esse rito consiste num
corredor formado pelos policiais, todos trajados com um uniforme adequado para a ocasião e
armados com uma espada que simboliza o fato de se pertencer ao ciclo dos Oficiais. Ao
passar pelo corredor, os recém-casados são saudados com as espadas erguidas ao alto e, em
pares, dispostos à frente e um ao lado do outro, os policiais fazem as espadas tilintarem,
exibindo um som promovido pelas lâminas e que simbolizam aquele ato festivo com o modo
distinto reservado à cerimônia de casamento de um Oficial policial militar.
O que se observa nessa construção cerimonial, que vai desde o uso de elementos
simbólicos, como bonecos vestidos de policial militar em cima de um bolo de casamento até à
forma peculiar de usar trajes de gala da caserna para adentrar a uma igreja no ato majestoso
do enlace matrimonial (não importa se Oficial ou Praça), é que ser um policial militar diz
respeito a vivenciar plenamente de modo indiscernível a profissão e a vida privada. Nesse
sentido, “até a morte, seu nome (o do policial militar) será sempre associado ao posto
exercido na hierarquia de poder do seu grupo, sendo o nome forjado nas e pelas relações
domésticas e de parentesco, lançado a um plano secundário no contexto da própria identidade
pessoal” (SÁ, 2002, p. 15). Isso quer dizer que, o alcance dessa configuração social se estende
aos familiares a partir do momento que são reconhecidos como filho do Coronel A, ou esposa
do Tenente B, ou ainda sobrinho do Sargento C.
177
FIGURA 46: Espada utilizada pelos Oficiais policiais militares que demarca simbolicamente a
posição no Posto de Oficiais.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
Assim como Elias (2001) nos mostrou a construção social de uma racionalidade
específica da sociedade de corte francesa, estamos a considerar a mesma proposição sobre a
Polícia Militar e suas idiossincrasias culturais e simbólicas. O que observamos é a presença,
no seio das relações entre os policiais militares, de uma crença que é introjetada
cognitivamente e que passa a orientar a construção social desses profissionais (BOURDIEU,
2007b, 2009), no entanto, como mecanismo biopolítico presente no dispositivo de
disciplinarização. Primeiro domestica-se e adestra-se os agentes policiais militares para que os
mesmos naturalizem o ideal militarista de ser. Depois, garante-se pela legitimidade
governamental de manter a ordem pública a presença policial nas ruas levando consigo o
modo militar de ser. Assim, torna-se conhecido da sociedade e do senso comum que os
militares, inclusive os policiais militares, são identificados pelos elementos simbólicos,
corporais e gestuais que os caracterizam. Basta lembrarmos dos desfiles cívicos em nosso país
e da semana da pátria quando vemos esses profissionais exibirem o “orgulho da nação” com
seus veículos, uniformes e maneira sincronizada de marchar (DA MATTA, 1990). O que não
se conhece com a devida profundidade, inclusive no meio acadêmico, é como esse habitus, no
sentido bourdieusiano, se constrói a partir de práticas cotidianas que passam a ser seguidas e
disseminadas pelos policiais militares, de modo a fazer com que eles creiam que a vida militar
e policial se confunda com as suas existências sociais, configurando o jargão próprio do seio
178
policial militar, ou seja, de que “eles são policiais militares vinte e quatro horas por dia”. De
certa forma, o que está em jogo nesse mundo de distinções é a “honra policial militar”.
46
Ver Lei nº 3.909, de 14 de julho de 1977, contida na CLPM.
47
Ver Decreto nº 2.243, de 03 de junho de 1997, da Presidência da República.
179
seu próprio valor ou dignidade, pretensão ao orgulho, mas também o reconhecimento dessa
pretensão, sua excelência reconhecida pela sociedade” (p. 149, grifo do autor). Nesses termos,
a honra se configura com base em modelos hierarquizados, pois ela só pode ser conquistada
de acordo com a observância de comportamentos que se coadunem, por exemplo, segundo o
status de quem a possui. Para Elias (2001), como já frisamos em momento anterior, a honra
na sociedade de corte orientava os nobres, de acordo com um ethos próprio, ao
distanciamento de camadas sociais consideradas inferiores, o que acabava por legitimar a
existência da nobreza vista como a “boa sociedade”. A honra presente na nobreza de corte
mantinha-se como um atributo moral vinculada à posição que se ocupava e fazia com que seu
reconhecimento só existisse mediante as recíprocas opiniões que os nobres criavam na relação
de uns para com os outros. As opiniões reciprocamente criadas funcionavam como uma forma
de controle social na sociedade de corte e “por isso, nenhum de seus membros podia escapar à
pressão da opinião sem pôr em jogo sua qualidade de membro e sua identidade como
representante da elite, parcela essencial de seu orgulho pessoal e de sua honra (ELIAS, 2001,
p. 113).
No caso da honra policial militar, podemos dizer que a mesma se constrói a partir da
chegada de um novo integrante nos cursos de formação policial militar, não importa se no
nível dos Praças ou dos Oficiais. Estaríamos a tratar, neste sentido, de um fenômeno que, por
ser fortalecido por prescrições regulamentares, acaba por se caracterizar como um dos
principais fatores de distinção nas ruas entre policiais militares e paisanos. E para que o
policial militar exerça atributos distintivos que o diferencie e o enalteça perante o público
interno e, especialmente externo, “parece ser preciso se manter vigilante, em uma espécie de
estado existencial de prontidão, jamais perdendo de vista o comprometimento de sempre
“honrar a farda” “em cada ação realizada”, “em cada ideal alcançado”, “em cada exemplo
deixado” (MUNIZ, 1999, p. 100). Ainda mais,
Nesse caminho, a honra policial militar nos leva a observar que existem
regulamentações formais que, aliadas a condições simbólicas próprias à instituição PM, como
os diversos ritos que sustentam sua cultura e elementos distintivos como o fardamento,
concretizam um fenômeno que passa a ser interiorizado por cada membro criando uma rede
de coerções mútuas (ELIAS, 2001). Essa rede funciona nas cobranças formais e informais
entre os diversos segmentos hierárquicos como entre os próprios pares de mesmo posto ou
graduação, criando um controle social recíproco entre todos, de modo que os desvios e erros
de comportamento passam a atingir o “pundonor policial militar”. A honra aqui também opera
como fator articulador de manutenção do status de cada membro da Corporação, que evita a
reprovação do olhar alheio (dos demais companheiros de farda, não importa se subordinados,
pares ou superiores) para manter o orgulho de pertencer àqueles que honram a farda que veste
e, ao mesmo tempo, de manterem a distinção perante o público externo, com o diferencial de
também evitar as diversas punições com força de lei e que perseguem a todo o instante os
policiais militares. Por esse mote, os policiais militares, “durante a maior parte de suas vidas
na atividade, vestem as fardas, portam as armas e usam os distintivos de suas corporações,
estando neles expressa a dignidade autoproclamada do grupo” (SÁ, 2002, p. 67).
Conheçamos, pois, alguns dos principais atributos que fortalecem a honra policial militar,
todos encontrados no Estatuto da Polícia Militar.48
48
Tomamos como referência o Estatuto da Polícia Militar do Estado da Paraíba. No entanto, pelo fato das
Polícias Militares do Brasil serem regidas por códigos normativos e culturais análogos, como podemos observar
quando Nummer (2010) destaca alguns princípios éticos da Brigada Militar no Rio Grande do Sul, acreditamos
que, com poucas variações, esses atributos sejam utilizados por todas as Polícias Militares.
181
“suportar”, “obedecer”, “sacrificar-se” e “acabar de vez com” (GROS, 2009). Para nós,
importa demonstrarmos os três primeiros na intenção de explicar a diferença entre o guerreiro
antigo e medieval e o soldado moderno.
Assim, Gros (2009) explica-nos que a superação para o cavaleiro e para o guerreiro,
por exemplo, significa usar da força para fazer da morte algo incomum, visto que, no
combate, busca-se proeza e glória para que uma narrativa seja contada e que fique marcada na
memória dos homens. Essa vontade de alcançar a fama leva o ato heróico à coragem, a qual se
baseia na exposição pública do guerreiro no campo de batalha. Além disso, fazia parte da
ética bélica antiga a promessa como tradução de responsabilidade que se assume perante si
mesmo, ou seja, não uma ética jurídico-moral de cumprir um acordo formalmente
estabelecido, mas o cumprimento no futuro de uma palavra que se traduz em atos
heroicamente realizados. E esses atos também estão relacionados ao propósito de servir. Não
enquanto um exercício de submissão, mas sim como uma liberdade construída pela vontade
espontânea de servir a um rei, a Deus ou a um amigo. Nesse sentido, a honra opera quando o
guerreiro passa a construir sua imagem de acordo com o olhar alheio, pois é necessário que a
imagem construída de si de acordo com os atos realizados se coadune com a narrativa que
descreve a memória das batalhas. Nesse contexto também o que deve ser observado é que
para a ética guerreira o inimigo deve ser reconhecido em dignidade como um adversário, pois
“é preciso encontrar um adversário de sua qualidade e de sua força, do contrário não há senão
vitórias indignas; pois é meu adversário (do guerreiro) que detém a verdade de meu poder.
Impossível desprezá-lo; ele me exalta como eu o exalto” (GROS, 2009, p. 25).
Quanto ao ato de “suportar”, pode-se dizer, segundo Gros (2009), que existe uma
transição nesse princípio a partir dos duelos travados individualmente em busca de reputação
ou de glória pelo uso da força e da coragem, ou ainda com o apoio de um Deus. Como
exemplo, temos o surgimento das falanges gregas onde os homens passam a duelar unidos,
como em uma massa de corpos onde cada um guarda seu lugar mantendo a fileira. Todos se
protegem. A coragem adquire outro significado, pois quando se suporta a um ataque e o corpo
padece, ao contrário, a alma é enaltecida. É um exercício de constância onde a coragem surge
da paciência em suportar e fazer o sujeito eticamente defender suas convicções. Vê-se aí uma
coragem que entre os gregos antigos adquire um ideal de beleza e que, para os cristãos, se
traduz na capacidade em resistir às adversidades do mundo. Suportar, pois, como sinônimo de
coragem é ter que dominar a si mesmo de modo que “a superioridade moral daquele que se
mantém firme é que ele sente o medo e ao mesmo tempo o supera, ao passo que aquele que
ataca não faz senão afogá-lo num excesso de energia. Ser corajoso não é ignorar o medo”
184
(GROS, 2009, p. 41). Em acréscimo a essa consciência do medo e ao domínio de si, destaca-
se também outra dimensão que se relaciona à honra que sustenta a ética do guerreiro antigo,
ou seja, o cuidar do outro porque, neste sentido,
Com seu grande escudo redondo sustentado por seu braço esquerdo e posto no
ombro, enquanto que com a mão direita segurava a lança, o hoplita protegia o lado
direito contra seu adversário e ele mesmo recebia de seu companheiro de armas da
esquerda a proteção de seu próprio flanco direito, que de outro modo teria ficado a
descoberto. Eis porque era preciso conservar sua fileira e avançar em ordem. Era
preciso guardar seu lugar, manter seu posto porque a fuga ou a retirada significavam
imediatamente pôr em perigo o outro. E os que dessa maneira, unidos, avançavam
juntos em cadência, sentindo a espessura trêmula dos corpos, eram muitas vezes
irmãos, primos, pais e filhos, vizinhos próximos, familiares. E entre eles, o general
visível a todos, na primeira fila (Ibidem, p. 44).
Era o general, pois, que em nome da honra primeiro se expunha para que sua estima e
prestígio não fossem perdidos diante de seus companheiros de batalha. Era a imagem perante
o outro que estava em jogo e, por esse mote, o cuidado com o outro adquire uma face
negativa. Por outro lado, não abandonar o combate para salvar o outro era a essência da
coragem o que foi perdido com o advento da ordem moderna. Neste ponto, a honra do
guerreiro antigo se sedimenta como valor ético pela solidariedade e pelo senso recíproco de
proteção, onde o outro se torna mais importante do que a própria vida de quem quer proteger.
Ao contrário, os exércitos modernos podem ser compreendidos pelo princípio da obediência,
juntamente com mecanismos como a disciplina, a ordem, a submissão e o “automatismo
cego”.
É nesse contexto que podemos melhor entender como a distinção policial militar
funciona como um instrumento do dispositivo de disciplinarização ao condicionar os
profissionais policiais a interiorizarem a disciplina, a hierarquia e a ordem como elementos
que se coadunam à honra policial militar e como depois os princípios militaristas são levados
para a sociedade através dos policiais numa estratégia biopolítica através do policiamento
solidário. Estamos a discorrer neste momento sobre uma honra condicionada, construída com
base na disciplina, hierarquia, submissão, condicionamento e o automatismo a uma ordem
recebida. Como nos explica um Tenente entrevistado por nós:
Os praças não foram treinados a ter esse tipo de preocupação em fazer um trabalho
de polícia comunitária até porque a filosofia do praça de polícia é você mandar ele
fazer. Se você não manda ele fica na inércia até você mandar. Ele é treinado pra isso.
Ele não é treinado pra ter atitude. Ele é treinado pra você mandar e ele fazer. Se você
não manda ele não faz. E vai ficar rondando e atendendo ocorrência. Não vai ter essa
preocupação: “rapaz vamos parar aqui pra ver se a gente consegue estocolmizar esse
185
pessoal aqui, esse pessoal vire amigo da polícia”. Ele não tem esse interesse, a não
ser que você mande. “Rapaz, comece a ir naquela vendinha pra ficar frequentando
pra fazer amizade com aquele pessoal”. O treinamento do praça vai de encontro a
isso aí (Entrevista em 15/10/2014).
FIGURAS 47 e 48: Alunos policiais militares na posição de sentido de frente a seus superiores hierárquicos.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
186
Assim, o soldado moderno recebe treinamento para que possa receber ordens sozinho
ou em grupo, devido ao fato dos exercícios contínuos o terem habituado a executar
movimentos idênticos juntamente com outros soldados. Na busca da perfeição pelos
movimentos e ações realizadas com presteza e sincronização, o soldado moderno vive
constantemente na iminência de sanções decorrentes de transgressões insignificantes, o que o
faz evitar a todo momento incorrer em erros e realizar ações proibidas, pois ele torna-se “um
prisioneiro que se adaptou a seus muros; um prisioneiro satisfeito por sê-lo e que se opõe em
tão pouca medida a sua situação que os muros lhe moldam a forma” (CANETTI, 1995, p.
313). Esses muros passam a ser reconhecidos como sua nova natureza.
O que está em jogo, ao recobrarmos os princípios que caracterizam a batalha
apontados por Gros (2009), é a obediência. Essa terceira característica é própria do soldado
moderno e é um dos elementos principais que fortalecem sua honra, mas que nesse sentido
trata-se de uma honra construída com base na passividade e na docilidade. Nesse aspecto, os
combates individuais ou o modelo das falanges são substituídos pela busca do homem capaz
de produzir a guerra racional e perfeita. Essa “revolução militar” ocidental surgiu com o
advento dos pensadores das Luzes que iluminaram a razão na modernidade, desenvolvendo-se
entre os combates dos cavaleiros no final do século XV até o surgimento dos exércitos
modernos do início do século XVII. Tem-se assim, um contínuo processo de “racionalização”
nos modos de guerrear que inclui também uma nova subjetivação e socialização dos soldados,
onde tal processo engloba três dimensões, ou seja, a “intelectualização”, a “burocratização” e
a “disciplinarização” (GROS, 2009).
Segundo Gros (2009), a “intelectualização” pode ser vista como um modelo italiano,
onde a profissionalização do soldado é acompanhada por um movimento pelo qual a guerra
passa a ser vista como objeto de saber e de apreensão científica, ou melhor, a partir de
critérios racionais. Emerge desse fato a figura do general, que deixa de estar em destaque na
frente de seus homens para servir-lhes de exemplo e passa agora a elaborar planos e
estratégias fora de combate ou na retaguarda com seus Oficiais. O Exército transforma-se
assim numa máquina, num autômato que deve ser conduzido pelo general que se torna seu
cérebro e que usa do saber científico como a geometria e a matemática para elaborar os
modelos táticos de guerra. Não basta apenas na guerra moderna a coragem dos guerreiros,
importa principalmente o uso da técnica e da teoria com aporte científico, pois “a ciência
substitui a moral” (Ibidem, p. 54). A guerra passa a acontecer para se administrar as perdas
humanas, já que o enfrentamento direto é esquecido em nome de planos racionais que visam
187
estudar estrategicamente o inimigo como num jogo de xadrez onde o alvo principal é a
imobilidade dos movimentos do adversário ao invés de fazer-lhe perder suas peças.
Do modelo francês temos a “burocratização“. Essa consiste no atrelamento dos
exércitos à racionalidade estatal, ou melhor, vê-se descortinar nesse processo o surgimento do
Estado moderno como continuidade do Exército que garante não só a defesa do território por
meio das guerras, mas também a arrecadação de impostos que possibilitam a administração
estatal. Em contrapartida, essa mesma administração estatal passa a garantir também a
organização dos milhares de homens que compõem os exércitos com os recursos que os
mantêm bem vestidos e alimentados, além de se ter cavalos bem tratados e armas adequadas.
Em síntese, a burocratização militar permitiu uma centralização nas decisões que
conformaram dois quadros: uma minoria de planejadores e a maioria de executantes. Entre
esses, desenvolveu-se uma hierarquia graduada de superiores e inferiores com
responsabilidades determinadas pela posição que se ocupa e, a disciplina proporcionou uma
uniformização generalizada das regras que passaram a ser cumpridas por todos através dos
mesmos princípios. Articulam-se desse modo não só a vida aquartelada dos exercícios e
treinamentos, mas com ela o devotamento à função e o “espírito de sacrifício”, que faz da
obediência um componente imprescindível da honra do soldado moderno.
E como terceira dimensão da obediência, a “disciplinarização” é herdada do modelo
prussiano. A disciplina como técnica de adestramento dos militares age como um condutor
moral e como forma do soldado dominar a si mesmo no automatismo dos atos, na
proficuidade dos exercícios e na correção dos erros. Weber (1982) nos diz que foi a disciplina
do exército que deu origem aos processos disciplinares como o da fábrica moderna, visto que
ela é a essência do exército (CANETTI, 1995). Foucault (1987) também nos mostra que a
disciplina serve para tornar os corpos “úteis” e “dóceis”. E é pelo princípio de “docilidade dos
corpos” e da “obediência automática” (GROS, 2009) que a disciplina é um componente
fundamental na elaboração da honra do soldado moderno, pois,
Ao soldado não se pedem senão vigilância cega e mínima dos automatismos e dos
hábitos, a obediência irrefletida: que ele atire quando se lhe pedir, que se volte etc.
Já que a havia sido pensada como ciência, a batalha como objeto de cálculo físico, o
exército como máquina, então não se podia mais pedir ao soldado senão que fosse a
engrenagem passiva dessa gigantesca equação e que não consagrasse suas
faculdades morais senão à obediência cega, absoluta àquilo que lhe era ordenado e
cuja razão última não podia perceber (GROS, 2009, p. 63).
188
FIGURA 49: Aluna policial militar durante exercício de aprendizagem na semana de adaptação.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
Nesse percurso, por um mesmo viés explicamos que o aspecto heróico da honra
sedimenta-se no imaginário social policial militar, depois de consolidada pela formação e
socialização inerentes à profissão e reforçadas pelos valores, ética e deveres, os quais se
disseminam culturalmente nas relações intramuros e no trabalho de rua. É nesse sentido que
podemos falar de tipos diferenciados de policiais militares como o “rambo” (SILVA, 2002)
ou o “operacional (FRANÇA, 2012a), que são aqueles que experienciam o trabalho de rua
189
com mais afinco e desenvolvem um “ethos guerreiro” na luta que empreendem com os
considerados bandidos, marginais ou vagabundos. Esse modelo de policial consubstancializa-
se de modo particular nas tropas de operações especiais, os quais passaram a fazer parte do
imaginário nacional após a exibição do filme “Tropa de Elite” em nosso país, que retrata o
cotidiano da formação e atuação dos policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais
do Rio de Janeiro (BOPE). No universo do mundo real Storani (2008), ao etnografar
exatamente a formação de uma turma do BOPE no Rio de Janeiro demonstra-nos, ao
fotografar a tatuagem de um integrante do BOPE, a assimilação do ideal da honra heróica
entre esses profissionais, pois a inscrição tatuada no braço do policial destaca “Vitória sobre a
morte”. Tal inscrição pode ser encontrada na canção do BOPE que descreve “Vitória sobre a
morte é a nossa glória prometida”. Portanto,“o cumprimento das normas da corporação é um
fator necessário para que os policiais reforcem o compromisso com o ethos guerreiro, que se
sustenta na coragem e no compromisso com a unidade de seu grupo” (SOUZA, 2012, p. 246).
A dedicação total ao serviço, reforçada para além das prescrições institucionais, pelo
ideal culturalmente construído, interiorizado e incorporado, de forma que o risco no trabalho
se transforma, no caso mesmo da morte, em “glória imperecível”, oculta as relações de poder
presentes (FOUCAULT, 1987), as quais funcionam para reforçar o dispositivo de
disciplinarização, onde o mesmo adestra e controla aqueles que obedecem. Honra e disciplina,
pois, nas instituições policiais militares caminham juntas entrelaçando-se, já que policiais
disciplinados serão capazes, audazes e corajosos de manter seu compromisso de honrar a
profissão mesmo com o risco da própria vida.
190
FIGURA 50 (Acima, à esquerda): Escultura encontrada no Centro de Educação simboliza a honra policial militar
com a morte de um PM.
FIGURA 51 (Acima, à direita): Placa aos pés da escultura do policial morto ratifica discursivamente o valor da
honra policial militar que sacrifica a vida em defesa da sociedade.
FIGURA 52 (Abaixo, à esquerda): Frase que enaltece a honra policial militar.
FIGURA 53 (Abaixo, à direita): Memorial com placas que indicam a morte de policiais militares em serviço.
FONTE: Arquivos do autor (2013).
O que resulta desse processo é uma atitude de resignação que se traduz na honra
policial militar. Como exemplo, Gros (2009) nos leva a observar que, sobre a “Solução Final”
que exterminou milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial Arendt (1999)
demonstra que quando do julgamento de Eichmann, na verdade, esse último afirmou não ter
culpa do que aconteceu, pois agiu apenas porque recebeu ordens. Seria o que Arendt (1999)
denominou de a “banalidade do mal” onde a monstruosidade do sujeito moderno reside “nessa
renúncia a todo espírito crítico e um abandono de si. Tudo o que faz que um sujeito possa
dizer: „Eu não sou culpado, já que apenas obedecia‟” (GROS, 2009, p. 72). Bauman (1998b),
ao analisar o mesmo fenômeno afirma que a sociedade moderna carrega em si a dialética do
progresso e de suas consequências devido à racionalidade burocrática que possibilitou a
existência do holocausto. Ocorre então a coordenação, por parte da burocracia moderna, das
ações de indivíduos morais que agem com a intenção de atingir qualquer que seja o objetivo,
inclusive imoral. Seria “a produção social da indiferença moral” (BAUMAN, 1998b), já que a
ação moral não teria valor intrínseco em si e sim seria externamente analisada por critérios
diferentes dos que conduziram à ação realizada. Bauman (1998b) ainda nos explica que os
nazistas não se tratavam nesse contexto de pessoas “anormais”, tanto que foi preciso combater
os que queriam agir emocionalmente de modo que as ações individuais fossem transformadas
em atitudes impessoais, práticas e eficientes, pois o que importava era a rotina da organização
que deveria levar à realização da tarefa sanguinária com lealdade por meio da disciplina. A
presença da disciplina é o que faz com que o funcionário, por uma acepção weberiana, se
191
Um último aspecto da honra policial militar diz respeito agora à distinção a partir do
modo pelo qual os policiais militares constroem-se para serem vistos especificamente pelo
público externo e, como eles se movimentam para fazer funcionar essa distinção. Por esse
escopo, os elementos de construção desse contato seriam a posição ocupada na escala
hierárquica, o uso do fardamento, com todos os aparatos simbólicos que ele carrega, e o
próprio comportamento dos policiais. O que estamos a propor agora é um caminho de retorno
ao início deste capítulo, após termos discorrido sobre o argumento de que é a distinção
policial militar como mecanismo biopolítico que propicia o distanciamento dos policiais da
sociedade, sendo a violência não o elemento direto desse apartamento, como geralmente se
afirma devido à herança ditatorial, e sim consequência provinda dessa diferenciação.
49
Curso de Formação de Praças.
192
que os civis se comportem como os policiais militares que aprendem a ter uma
postura e compostura rígida desde os primeiros dias na escola de formação. Assim
como os PMs de baixa ou nenhuma graduação têm que se submeter aos oficiais ou
ao praça de maior graduação, assim também os PMs quando em serviço,
principalmente operacional, esperam que os paisanos folgados se submetam a eles
com o mesmo respeito e submissão (SILVA, 2002, p. 26-27, grifos do autor).
Nessas condições, Souza (2012, p. 246) nos relembra que “como um espelho, a
sociedade reflete a polícia e o que a instituição deseja ver, ou seja, a sua própria imagem,
íntegra e altiva diante de si, como o fez Jacobina, personagem de Machado de Assis”. Assim,
seguimos os passos de Leirner (1997), que enfatiza ser a hierarquia não apenas um princípio
legal através do qual os militares do Exército cotidianamente expressam os sinais de respeito
e de comando, de acordo com a posição que ocupam no regime intramuros da caserna, mas
também ela é determinante na estruturação das relações com o mundo civil. Por essa
perspectiva, podemos dizer que a hierarquia está presente no contexto histórico de surgimento
dos Exércitos modernos, na Europa, sem no entanto considerarmos, assim como Leirner
(1997), que a origem do problema no uso da hierarquia tenha respaldo nesse momento
histórico. Só que, no nosso caso, estamos a observar a hierarquia nas Polícias Militares e
como a mesma funciona vinculada à honra que se exterioriza do ambiente interno das
casernas para o mundo das ruas no contato com a sociedade e, de modo mais específico, situar
historicamente, ainda que de modo sucinto, explicações sobre a honra policial militar e
hierarquia e os mecanismos de distinção daí advindos. A partir de um olhar sobre os Exércitos
torna-se possível analisar as instituições policiais que em muito passaram a se organizar nos
moldes militares do Exército e, no Brasil, até hoje, as polícias estaduais responsáveis pelo
policiamento ostensivo e pela ordem pública carregam formalmente em suas organizações o
emblema distintivo do “ser militar”.
Essa problemática nos remete a observar o que nos relata Elias (1993) sobre a relação
entre o processo civilizador e a formação do Estado Moderno. Ocorre que, com a
fragmentação do sistema feudal, deixou de existir um sistema hierárquico de suserania e
vassalagem baseado na propriedade da terra que legitimava uma nobreza que se distinguia
socialmente pela linhagem, além desse mesmo estrato exercer o papel de classe guerreira, em
defesa das terras do rei, o que estipulava um vínculo de lealdade para a manutenção da
posição que se ocupava como nobre. Essa situação se alterou com o Absolutismo, pois, como
vimos, a sociedade de corte se estabeleceu sob a égide do monarca que centralizava o poder
em suas mãos mantendo uma tensão entre a nobreza (que perdeu o status de classe guerreira)
193
e a burguesia emergente. É nesse período que se inicia também a centralização estatal para a
defesa territorial e sem determinar um período preciso, podemos dizer a partir de Elias (1993)
que principalmente foram os nobres recrutados a exercer as funções de comando nas Forças
Armadas quando do estabelecimento do Estado-nação sob os auspícios de um mundo regido
pelo capitalismo.
Nossa intenção aqui não é aprofundar esse processo histórico que ressalta
particularmente o modo como a hierarquia se consolidou no Exército brasileiro nos padrões
vigentes de uma dita modernidade nacional50, mas apenas pontuar como as Polícias Militares
são herdeiras dessa forma característica de organização que alia formalizações burocráticas
impessoais com uma cultura informal baseada em aspectos de distinção. Então, por essa ótica,
mesmo tendo Portugal passado da Idade Média à Era Moderna pela consolidação de um
capitalismo politicamente orientado, já que a nação lusitana orientou-se por condições sócio-
econômicas pautadas num estamento patrimonialista comandado pelo rei e subsidiado pela
nobreza (FAORO, 2008), tem-se que, no decorrer do século XV, o Exército português
formou-se de modo análogo aos outros exércitos da Europa, pois com a diminuição da renda
da nobreza, em contrapartida aumentava o poder régio. Surge, assim, a “Oficialidade” e,
subordinada à mesma vê-se também surgir os não-nobres dos Concelhos que eram “burgueses
que, na sua maioria, procuravam através de feitos de guerra adquirir títulos de nobreza, ou
então, em caso de guerra, eram convocados por meio da força. De toda forma, o núcleo desse
“exército profissional”era composto pela “nobreza destituída” (LEIRNER, 1997, p. 56).
O decorrer histórico viu o modelo de distinção militar lusitano ser importado para o
nosso país onde adquiriu características próprias com o passar da colonização e do Império,
inclusive chegando às Polícias Militares, de modo que as condições culturais perpetraram-se e
desenvolveram-se até nossos dias criando uma certa “naturalização” no uso dos símbolos que
fortalecem o ideal da honra policial militar e do que conceituamos neste trabalho de
50
Para tal intento ver Leirner (1997), especialmente o Capítulo segundo intitulado “Breve História da Hierarquia
Militar”.
194
“distinção policial militar”. Nesse sentido, estamos a destacar a consolidação de uma certa
autonomia institucional que se distancia, por exemplo, da centralização absolutista na Europa
ou até mesmo no Império brasileiro, onde o monarca dirigia as forças da ordem sem a
presença de uma burocracia institucional efetiva. Está-se a falar, assim, de uma herança
cultural que se tornou regra nas Polícias Militares, pois,
Fernandes (2006) ainda nos explica que, no Brasil, em particular, ao lado dos cadetes
existia outra forma de instituição de origem nobre, que era a dos soldados particulares, que
eram oriundos de uma “nobreza civil”, ou melhor, filhos de profissionais liberais. Assim, o
recrutamento militar em nosso período imperial comportou um favorecimento na entrada para
o oficialato de pessoas pertencentes às classes sociais dominantes, o que acabou por gerar a
distinção entre Oficiais e Praças. Com o passar do Império, prevaleceu o recrutamento da
nobreza militar em detrimento da civil e, quanto aos Praças, até 1916, eram recrutados
principalmente das classes baixas. Até o fim do Império brasileiro, porém, a maioria dos
generais ainda carregavam a distinção de possuírem o título de “nobreza sanguínea”. Segundo
Silva (2011), no período republicano após a Revolução de 1930, houve um resgate da
categoria cadete no Exército brasileiro pelo General José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque,
ele mesmo sobrinho do ex-presidente da República Epitácio Pessoa. O General foi o
idealizador da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), local de formação atual dos
cadetes do Exército e, para ele, retomar o termo cadete para os alunos em preparação ao
Oficialato do Exército representou a busca por uma nova elite social, uma aristocracia
baseada no mérito, não mais herdada de uma origem sanguínea como o foi no passado. Ao
citar Castro, Silva (2011) ainda explicita que a reforma da Escola Militar do Exército que
prepara os cadetes ocorreu especialmente e de forma estratégica no plano simbólico, pois, ao
“Corpo de Cadetes” se acresceu “o uniforme de gala que remontava às fardas do exército
imperial, o “Espadim de Caxias” que era cópia em menor escala da espada de Caxias, o novo
Regulamento Disciplinar do Corpo de Cadetes etc.” (SILVA, 2011, p. 72). No que tange às
195
Polícias Militares, a do Rio de Janeiro pode ser ilustrativa desse processo de incorporação dos
elementos simbólicos do Exército que conformam um sentimento de honra e distinção entre
os policiais militares, pois, em 1956 foi instituído o “Espadim de Tiradentes”, para uso dos
cadetes da Escola de Formação de Oficiais do Rio de Janeiro (SILVA, 2011).
FIGURA 54: Cadetes da PMPB em um baile de debutantes com o traje de gala. Todos seguram o
Espadim Tiradentes.
FONTE: Arquivos do autor (2004).
51
O Colégio da Polícia Militar funciona dentro das instalações do Centro de Educação da PMPB (local de
formação dos policiais militares paraibanos) e nele estudam filhos de policiais militares e de pessoas das
196
comunidades adjacentes ao referido Centro. O Colégio da Polícia Militar funciona nos nível fundamental e
médio.
197
FIGURA 55 (Acima – esquerda): 2º Tenente da PMPB e o uso da luva (insígnia) por sobre os ombros em ambos
os lados como forma de demonstrar que ele faz parte do círculo dos Oficiais.
FONTE: Arquivos do autor (2014).
FIGURA 56 (Acima – direita): Luvas ou insígnias usadas pelos Oficiais das Polícias Militares como forma de
distingui-los institucionalmente dos Praças.
FONTE: Regulamento de uniforme da PMPB.
FIGURA 57 (Abaixo): 2º Tenente da PMPB vestido com o uniforme de passeio.
FONTE: Arquivos do autor (2014).
FIGURA 58(Acima): 3º Sargento da PMPB com a divisa correspondente à sua posição hierárquica no quadro
funcional da instituição. As divisas se encontram em ambos os braços.
FONTE: Arquivos do autor (2014).
FIGURA 59 (Abaixo): As divisas que representam as graduações (posições hierárquicas), dos Praças nas
Polícias Militares.
FONTE: Regulamento de uniforme da PMPB.
199
FIGURAS 60 (Acima) e 61 (Abaixo): Policiais da PMPB, uma Tenente e um Soldado, com o uniforme da tropa
especializada de choque.
FONTE: Arquivos do autor (2014).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos aqui a uma resposta, que não se pretende definitiva, para a indagação
inicial suscitada na introdução deste trabalho, ou seja, como a ordem, aqui traduzida pelos
organismos policiais militares em nosso país, está desenvolvendo modelos de policiamento
que possam ser reconhecidos pelo viés do discurso democrático? Assim, o que pretendemos é
responder a esse questionamento ao considerar que, no tocante à implantação do policiamento
solidário na cidade de João Pessoa, o qual se baseia na perspectiva de um policiamento de
aproximação com a comunidade (policiamento comunitário), o que temos é a consolidação de
uma estratégia biopolítica que conforma uma relação de saber-poder pautada no discurso da
democracia.
Para tanto, o nosso percurso procurou mostrar como o policiamento considerado
moderno surgiu na Europa, a partir de características que o notabilizaram como o elemento de
manutenção do Estado-moderno como uma força ao mesmo tempo preventiva e coatora, que
passou a garantir por meio do consenso com os cidadãos a ordem pública e a paz social.
Nesse contexto, importou aos governos criarem organismos policiais eivados por uma
organização burocrática no melhor sentido weberiano, incorporando elementos da
administração militarista como princípios organizativos para a gestão dos homens de arma,
para assim evitar a corrupção e o desvio de conduta daqueles que passaram a receber um
salário para agir em nome do povo através da manutenção da segurança pública. A violência
institucionalizada passa a ser utilizada como forma de garantia da harmonia social contra os
pretensos desviantes de um modelo ideológico de contrato social que garante a democracia.
Esse modelo desdobra-se para outros países como os Estados Unidos, a partir da Inglaterra,
mas falar das instituições policiais é destacar uma complexa miscelânea de fatores culturais
que oscila entre a formalidade e a informalidade, mas que garante a existência institucional a
partir dessa paridade. É por esse âmbito que tivemos, por exemplo, uma polícia francesa
herdada do Absolutismo monárquico que privilegiou uma instituição de cunho mais
militarista, dadas as propensões hierárquicas do modelo político vigente. Nesse esteio, as
polícias brasileiras surgem como um modelo híbrido, mas que se desenvolveu de acordo com
características próprias a partir de um modelo histórico-político que delegou a manutenção da
ordem pública a instituições que fez da repressão sua tônica central, especialmente a partir do
Império.
Nesse sentido, demonstrando a persistência da violência policial militar no Brasil,
chegamos à atualidade para analisar que a abertura democrática pós-regime militar trouxe
201
consigo a tentativa de outra forma de policiar a sociedade, a partir de modelos importados que
carregam a assertiva de uma polícia que trabalha juntamente com a população, ou seja, a
polícia comunitária. Assim como ocorrera principalmente em alguns países da Europa e nos
Estados Unidos, o modelo tradicional (profissional) de polícia passa a ser questionado
também no Brasil. Desse modo, fomos a campo pesquisar essa realidade a partir do recorte
analítico propiciado pela Polícia Militar da Paraíba, como dito, na cidade de João Pessoa, de
maneira que pudéssemos compreender o que se configura “sob a aparência da ordem”.
Analisamos documentos governamentais e da própria Polícia Militar. Entrevistamos os
policiais militares que trabalham diretamente nos postos de policiamento solidário e outros
que estão nos bastidores, na administração formal do projeto. Entrevistamos também policiais
militares que nos propiciaram um conhecimento não presente em referências bibliográficas
acerca do histórico da persecução na Paraíba do que vem a ser a polícia comunitária.
Conhecemos o cotidiano dos postos de policiamento solidário e analisamos também a
propaganda criada pelo governo do Estado da Paraíba e pela Polícia Militar para divulgar o
suposto sucesso do projeto. Observamos ainda uma reunião daqueles que administram a
Segurança Pública na Paraíba.
Com base nos dados, constatamos, a partir da visão dos próprios policiais, já que
abrimos mão da aproximação com as comunidades envolvidas por uma questão de segurança
pessoal, visto a posição assumida por este pesquisador em ser também um policial militar, que
o policiamento solidário está envolto por uma complexa rede de poder que cria efeitos e
consequências desconhecidas pelos policiais militares. Tem-se, pois, a partir do projeto de
policiamento solidário um poder que investe sobre a vida das comunidades, garantindo a
existência de um saber presente nas estatísticas oficiais do Estado e repassado em forma de
novos conceitos que garantem a legitimidade do processo. O que está em jogo é a afirmação
de um Estado atuante no campo da Segurança Pública oferecendo os serviços de uma Polícia
Militar agora não mais truculenta, e sim democrática e cidadã. Ainda mais com o acréscimo
de ser uma polícia assistencialista que se propugna a ajudar a comunidade a reconhecer os
seus problemas na tentativa de solucioná-los. Para tal, importa à comunidade ajudar os
policiais a combater o crime que amedronta a todos, legitimando um processo de higienização
pública contra aqueles que não aceitam transformarem-se em cidadãos sob os auspícios do
Estado e sua malha normalizadora aqui entendida pelo olhar foucaultiano.
Para além da “defesa da sociedade” das classes perigosas, há que existir o
consentimento das comunidades em aceitar a constante presença policial nas ruas, visto que o
policiamento solidário não se faz com policiais que visitam a vizinhança e cria laços
202
permanentes de confiança, mas com policiais fixos nos seus postos deixando àqueles que
rondam nas viaturas o trabalho de sociabilidade com as pessoas nas ruas. Ademais, o policial
solidário se vê na situação de oferecer regras morais aos moradores após as ocorrências e na
solução de situações conflituosas. Essa visita solidária, que faz funcionar o que passamos a
denominar nesta Tese de “sociabilidade estratégica”, é um tipo de aproximação entre policiais
e moradores que, segundo nossa ótica faz parte de um “dispositivo de disciplinarização”, ou
melhor, é a disciplina militar própria das casernas e que socializa os policiais na
aprendizagem de sua profissão que chega às ruas como modelo de adequação dos
comportamentos anormais. Enquanto os policiais militares participam de cursos de formação
onde o processo de socialização a partir da lógica militar se estende por meses ou anos (se
para Praças ou Oficiais respectivamente), os cursos de polícia comunitária duram entre uma
ou duas semanas e passam a afirmar a mudança dos policiais quanto a ser um profissional
comunitário, cidadão ou mais “humano”.
Essa lógica, pois, se desdobra por um duplo efeito, no qual a disciplina não se confina
aos ambientes de muros fechados e extrapola, pelo menos em sua idealização os quartéis,
deixando aos policiais mostrarem à sociedade o quão profícuo pode ser o adestramento de
condutas no meio social. Some-se a isso a “normação” biopolítica por meio dos cálculos e
táticas estatais, o que conforma um duplo processo disciplinador-normalizador vinculado ao
projeto de policiamento solidário.
A condição principal desse processo é que as comunidades devem atuar para sua
própria vigilância e, o poder nesse sentido se fortalece pela crença de que temos uma polícia
mais cidadã, mais democrática e mais humana. Aos que são perseguidos por serem
socialmente incompatíveis (e aqui não podemos fechar os olhos para as consequências
geradas pelos atos violentos das ditas classes perigosas), resta o embate com as forças
policiais para manterem outras lógicas, presentes neste mundo complexo, como a manutenção
do tráfico de drogas como meio de sobrevivência ou como forma de empoderamento, os quais
são elementos que fogem da nossa alçada analítica. Só que o bandido, delinquente, marginal,
enfim, enquanto um homo sacer que carrega sua vida nua e matável é aquele que deve ser
perseguido para legitimar a existência de um Estado que deixa a cargo das polícias militares a
incumbência de minorar as desigualdades sociais com programas assistemáticos como o
sopão da comunidade ou a escolinha de música e futebol que arrebata alguns jovens fazendo-
os distanciarem-se das drogas. Entre “parcerias preventivas” (o policiamento solidário) e as
medidas de “segregação punitivas”, desenvolve-se uma “cultura do controle” como nos
ensinou Garland (2001).
203
REFERÊNCIAS
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221
ANEXO A
Soldado
QUADRO 2: Divisão hierárquica da PMPB.
FONTE: Dados do autor.
222
ANEXO B
a) Coronel PM Comandante-Geral: Três estrelas com oito pontas, sendo cada uma das
pontas da estrela em formato resplendor, composto por nove lâminas em amarelo-ouro
(dourado), dispostas em forma de triângulo equilátero. Cada estrela contém em seu centro um
escudo formado por duas circunferências, sendo o círculo central vermelho com contorno
amarelo-ouro (dourado), contendo uma estrela simples de cinco pontas dourada. A
circunferência externa é na cor azul contendo cinco estrelas de cinco pontas na cor dourada;
na parte superior, escudo vazado em forma de gota na cor azul com vinte e sete estrelas
prateadas; em seu chefe, uma estrela dourada de cinco pontas sobreposta a um círculo
vermelho, tudo ladeado por ramos de louros, estilizados em forma de pentágono, com
contorno e preenchimento em amarelo-ouro (dourado).
b) Coronel PM Subcomandante-Geral: Três Estrelas com oito pontas, sendo cada uma das
pontas da estrela em formato de resplendor, composto por nove lâminas em amarelo-ouro
(dourado), dispostas em linha reta, ladeadas em ambos os lados por ramos de louros, com
caules cruzados na cor amarelo-ouro (dourado).
c) Coronel PM: Três Estrelas com oito pontas, sendo cada uma das pontas da estrela em
formato de resplendor, composto por nove lâminas em amarelo-ouro (dourado), dispostas em
linha reta.
d) Tenente-Coronel PM: Duas Estrelas com oito pontas, sendo cada uma das pontas da
estrela em formato de resplendor, composto por nove lâminas em amarelo-ouro (dourado),
uma estrela com quatro pontas, na cor prata, sendo cada uma das pontas da estrela em formato
de resplendor composto por nove lâminas, dispostas em linha reta.
e) Major PM: Uma Estrela com oito pontas, sendo cada uma das pontas da estrela em
formato de resplendor, composto por nove lâminas em amarelo-ouro (dourado), duas estrelas
com quatro pontas, na cor cinza escuro (prata), sendo cada uma das pontas da estrela em
formato de resplendor composto por nove lâminas, dispostas em linha reta.
f) Capitão PM: Três estrelas com quatro pontas, na cor cinza escuro (prata), sendo cada uma
das pontas da estrela em formato de resplendor composto por nove lâminas, dispostas em
linha reta.
223
g) 1° Tenente PM: Duas estrelas com quatro pontas, na cor cinza escuro (prata), sendo cada
uma das pontas da estrela em formato de resplendor composto por nove lâminas, dispostas em
linha reta.
h) 2° Tenente PM: Uma estrela com quatro pontas, na cor cinza escuro (prata), sendo cada
uma das pontas da estrela em formato de resplendor composto por nove lâminas, dispostas em
linha reta.
FIGURA 62: Insígnias usadas pelos Aspirantes e Cadetes das Polícias Militares.
USO DAS DIVISAS DOS PRAÇAS DAS POLÍCIAS MILITARES DE ACORDO COM
AS RESPECTIVAS GRADUAÇÕES:
224
a) Subtenente PM: Triângulo equilátero representado em seu contorno, nas cores cinza
escuro (prata), medindo 30mm de base e 30mm de laterais.
b) Sargento PM: Conjunto formado pelo distintivo do Quadro, e acima do distintivo, pelas
divisas correspondentes às graduações de 1°, 2° ou 3° Sargento, bordadas com linha100%
poliéster 120 na cor cinza escuro (prata); Sobrepostas em uma escudete na cor preta.
c) Cabo PM: Conjunto formado pelo distintivo do Quadro, e acima do distintivo, pelas
divisas correspondentes a graduação, bordadas com linha 100% poliéster 120 na cor cinza
escuro (prata); Sobrepostas em uma escudete na cor preta.
d) Soldado PM: Conjunto formado pelo distintivo do Quadro, e acima do distintivo, pela
divisa correspondente a graduação, bordada com linha 100% poliéster 120 na cor cinza escuro
(prata); Sobrepostas em uma escudete na cor preta.
225
ANEXO C
____________________________________________________
Assinatura do entrevistado