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Narrativas de guerra que cruzam África do Sul, Angola e Cuba e Namíbia

IGOR DE CARVALHO GONÇALVES DA COSTA*

Esse trabalho discute alguns aspectos das chamadas lutas de libertação ocorridas na

África Austral, nas últimas quatro décadas do século XX. Confrontos convencionais ou

guerras civis tiveram, via de regra, o seu legado disputado além de insidiosas consequências

sociopolíticas. No continente africano, em particular, não apenas essas disputas de memória

são objeto de investimento do Estado na tentativa de imobilizar uma narrativa nacional mítica,

como, a partir daí, a trincheira escolhida pelos sujeitos – de forma coagida ou não – tornou-se

critério para distribuir mais ou menos direitos em sociedades que, além de tudo, contam com

histórico de violência e de frágil ou desigual condição econômica.

Até os anos 70, o regime ditatorial português e o regime do apartheid, na África do

Sul, mantinham um arcabouço repressivo que foi capaz de sufocar as organizações

nacionalistas de oposição que tateavam sua construção há não mais do que duas décadas. Com

a queda do regime salazarista e a ascensão da Frente Popular para Libertação de Moçambique

(FRELIMO) e do – embora contestado – Movimento Popular para Libertação de Angola

(MPLA), a África do Sul lançou as noções de “engajamento construtivo” e “estratégia total”,

com o apoio do governo estadunidense de Ronald Reagan. Essas articulações políticas

menosprezavam a questão dos direitos humanos e estimulavam a desarticulação desses

governos “pró-soviéticos” nascentes e ainda vulneráveis com base no aumento progressivo da

beligerância na região. Esse quadro vigora até 1989, quando finda a Batalha de Cuito

Cuanavale, na província de Cuando Cubango, sudeste de Angola, a maior batalha da Guerra

Civil Angolana e mais longa batalha em território africano desde a Segunda Guerra Mundial

(MINTER,1998).

Os Acordos de Nova Iorque, assinados por representantes de Angola, África do Sul e

Cuba, estabeleceram o reconhecimento da independência da Namíbia, então Sudoeste

* Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista FAPESB.
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Africano, e a retirada das tropas militares cubanas e sul-africanos da região. Estava posto,

desta forma, um quadro em que todos poderiam se considerar vencedores. Por um lado, os

cubanos alegavam ter dado a independência a um país africano e o golpe final no apartheid,

visto que Nelson Mandela seria libertado em 1990 e o regime cairia em 1994; por outro, os

militares sul-africanos afirmavam terem expulsado o terror comunista da África e garantido

uma transição democrática e liberal na África do Sul e em Namíbia, contra a provável

ditadura comunista. A Namíbia viu então a ascensão da Organização do Povo do Sudoeste

Africano ao poder, enquanto que Angola ainda frequentaria longos anos de guerra civil

opondo principalmente o MPLA à União Nacional para Independência Total de Angola

(UNITA), partido de oposição que constituiu uma base em Jamba, no sudeste do país, até

2002.

No âmbito do mestrado, comentei uma parte dessa infinda luta de memória (COSTA,

2015). Na ocasião, escolhi três autores que publicaram relatos de memória sobre suas

experiências de guerra entre o sul de Angola e o norte da Namíbia (DURAND, 2011;

DURAND, 2012; HOLT, 2005; KORFF, 2009;) . Esses sujeitos relataram como a sociedade

sul-africana era altamente violenta e havia uma profunda ansiedade causada pela certeza de

que aquele regime tinha seus dias contados (CRAPANZANO, 1985). Esses jovens também

performavam uma masculinidade estereotipada alimentada pelos filmes de guerra americanos

sobre o Vietnã, por exemplo. Alguns desses sujeitos buscaram o exílio e atualmente pedem

perdão, sentem-se traumatizados e injustiçados ao serem tratados como vilões por ter lutado

um guerra na qual não queriam ter participado, em nome de um país que não existe mais e

contra inimigos demonizados que agora estão no poder. Saliento, no meu trabalho, que as

narrativas são resultado da incidência de três temporalidades. Em primeiro lugar, observo

como certos aspectos evidenciados nos relatos de guerra nos remetem ao histórico da

ocupação branca da região, do medo em relação aos negros - apesar da necessidade de tê-los

organizados para o trabalho (KENNEDY, 1987) – afinal, para os soldados brancos – sejam

eles do exército ou das forças policiais - a guerra era chamada de Bush War (guerra do mato),
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termo que explicita que, para lutar essa guerra, era preciso abandonar um código de conduta

da cidade e aderir a um código de conduta “do mato”, onde as leis eram diferentes e a

humanidade testava seus limites.

É possível observar algumas reações nessa adaptação à Bush War, a primeira é uma
progressiva aceitação do seu papel como combatente, como nessa passagem do livro “At thy
call we did not falter” de Clive Holt (2005:32) “nós estávamos começando a aceitar que havia
um trabalho sujo para fazer”, e que “alguém” – esse sujeito de identidade não definida –
“tinha que fazer isso”. Tais ideias de “dever a ser cumprido” ou de automatização como “você
nem mesmo precisa pensar” remetem a uma perda da autonomia do sujeito, e aparecem sob
vestes diferentes ao longo dos textos. Os autores reforçam essa noção por meio de metáforas,
imagens acerca de sentir-se parte do meio e apelo à sensações viscerais, animalescas ou, em
outra face: automáticas, robóticas. Um estudo muito apropriado sobre esses mecanismos foi
publicado por Alessandro Portelli, que analisou depoimentos publicados de ex-combatentes da
Guerra do Vietnã. Ele afirma que as metáforas estão ligadas à relação entre culpa e
absolvição:

O indivíduo pode se ver livre das provas impressas, mas não da memória.
Assim, as narrativas de veteranos utilizam um sem-número de dispositivos,
fórmulas e metáforas para lidar com aquelas imagens, delimitar suas
diferenças com aquilo que se tornaram, e tentar absolver a si mesmos pelo
que fizeram. ‘Você é metade fera’' dizia um partigiano italiano, a imagética
animal é uma metáfora recorrente dessa diferença total; representando a
perda da humanidade causada pela guerra. (PORTELLI, 2010:202).

A segunda temporalidade que influi na narrativa é a dos anos oitenta sul-africanos, de

grande violência interna e que evidenciava as clivagens na própria sociedade branca. Há

aqueles de origem inglesa, com repertório cultural mais vasto e uma rede de relações

internacionais que não se compara aos de origem africâner, muito mais contidos, temerosos e

enraivecidos. A terceira temporalidade se refere aos anos em que esses livros são publicados.

Nos anos 2000, percebemos uma ascensão da direita, muito crítica dos governos liderados

pelo Congresso Nacional Africano. Editoras foram criadas com o objetivo de divulgar uma

“nova versão da história”, que tem sido ocultada pela narrativa do partido do poder.

Aprofundadamente, essas publicações são um epifenômeno da disputa corrente por

minorias brancas pela retomada de parte do poder com base numa reconstrução da narrativa
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nacional a seu favor. Esse movimento apresenta semelhanças com o que assistimos no Brasil,

tendo em vista o revisionismo histórico da ditadura militar e o contemporâneo

recrudescimento da direita.

A minha pesquisa se concentrou em textos autobiográficos publicados. Apesar de não


produzir essas entrevistas, esses livros apresentam traços que podem ser bem estudados com
metodologias da História Oral (PORTELLI, 2010). De uma forma geral, escritas de natureza
testemunhal têm se expandido e nessa categoria se enquadram um universo de gêneros
discursivos: diários íntimos, confissões, memórias e autobiografias. Esse movimento foi
chamado por Leonor Arfuch (2010) de “espaço biográfico”, algo transversal – que pode
coexistir com diversos gêneros, em roupagens diferentes – e que deve ser considerado um
“horizonte de inteligibilidade e não como mera somatória de gêneros já conformados em
outro lugar” (ARFUCH, 2010:16). A autora reforça que ele se tornou um fenômeno midiático
na cultura contemporânea, na medida que envolve tanto as indústrias culturais quanto a
pesquisa acadêmica, além de indicar uma “tonalidade particular” da subjetividade
contemporânea. Nos Estados Unidos, essas publicações estão ligadas a necessidade de
combater o antissemitismo nascente e de refutar os negacionistas, mas sobretudo porque o
holocausto se tornou o único denominador comum da identidade dos judeus norte-
americanos, apesar da crítica interna a essa indústria (HARTOG, 2011: 209). Na Alemanha,
somente nos anos oitenta que o tema do Holocausto se tornou central, graças, em parte, à
divulgação dos textos de Primo Levi (1988), e o consequente debate entre os historiadores
(CARDOSO, I., 2012:127). No caso da América Latina, o testemunho deve ser entendido
como parte de um movimento de solidariedade em face às guerras civis e da repressão na
Argentina (PENNA, 2003). Segundo Penna (2003:209-301), o interesse no testemunho faz
parte de um modelo latino-americano de política identitária, que propõe uma forma de
expressão ligada aos movimentos sociais, além de marcar a “irrupção (midiática, comercial,
política e acadêmica) de sujeitos de enunciação tradicionalmente silenciados e subjugados,
diretamente ligados aos grupos que representam, falando e escrevendo por si próprios”
(PENNA, pp.300-301).

Outro problema teórico-metodológico se refere ao gap entre evento e discurso que


marca a narrativa autobiográfica. Uma forma de “resolver” esse tema foi proposta por Portelli
(2010:185-187), a partir da reflexão sobre a história oral; esse tipo de narrativa deve ser
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encarada muito mais como uma “construção” feita de palavras em colaboração com editores,
em vez de um relato de eventos que transmitem o “real”, apesar da sua reivindicação da
verdade. Os narradores buscam dar forma e significado através da linguagem à “experiência e
à memória”, tentando reconstruir uma estrutura mais ampla. Ele mantém as dimensões
lacunares, seu caráter de inacabamento, o descompasso entre a experiência e o alcance da
experiência, ele é per se um ato histórico. “O tempo mesmo se torna humano na medida em
que é articulado sobre um modo narrativo” (ARFUCH:112).

A autobiografia remete portanto a questões como a representação do real, da


identidade narrativa e da relação entre história e ficção, muito caras há mais tempo, na crítica
literária, mas que geraram muitas polêmicas âmbito da disciplina “história”: na medida que o
centro das atenções foi deslocado de uma concepção referencial de verdade para a escrita.
Segundo Arfuch (2010:117-119), no que se refere ao biográfico, “na medida que os ‘fatos’ da
vida de alguém exigem igualmente uma historicidade do ‘acontecido’”, os gêneros canônicos
– como as autobiografias e memórias – jogarão um “jogo duplo”, ao mesmo tempo história e
ficção, “entendida essa última menos como ‘invenção’ do que como obra literária (grifo da
autora)”, operando, simultaneamente como testemunho, arquivo, documento, “tanto para
história individual quanto de época”. Ainda sobre a relação entre os gêneros biográficos e os
de “ficção”, Arfuch (2010:73) defende que eles remetem a regimes de verdade e horizontes de
expectativas diferentes, diz:

[…] para além de todos os jogos de simulação possíveis, esses gêneros, cujas
narrativas são atribuídas a personagens realmente existentes não são iguais; que
inclusive, mesmo quando estiver em jogo uma certa “referencialidade”, enquanto
adequação aos acontecimentos de uma vida, não é isso que importa. Avançando uma
hipótese, não é tanto o “conteúdo” do relato por si mesmo – a coleção de
acontecimentos, momentos, atitudes –, mas precisamente as estratégias – ficcionais
– de autorrepresentação o que importa. Não tanto a “verdade” do ocorrido, mas sua
construção narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o vaivém da vivência ou da
lembrança, o ponto de olhar, o que se deixa na sombra; em última instância que
história (qual delas) alguém conta de si mesmo ou de outro eu. E é essa qualidade
autorreflexiva, esse caminho da narração, que será, afinal de contas significante. No
caso das formas testemunhais, tratar-se-á, além disso, da verdade, da capacidade
narrativa do “fazer crer”, das provas que o discurso consiga oferecer, nunca fora de
suas estratégias de veridição, de suas marcas enunciativas e retóricas (grifos da
autora).

Todas as motivações acima abordadas nos conduzem à avaliação que o exame dessas
fontes autobiográficas traz à baila questões sobre a subjetividade, a narração e memória.
Exige portanto a articulação de conceitos de alguns campos do conhecimento, como a
Linguística, a Psicanálise e a História Oral.
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A relação com o legado do apartheid é ambíguo. Através das narrativas é possível

identificar estratégias de delegação de atos e opiniões ao senso comum. A construção de uma

ideia que visa justificar sua posição política com base na ignorância das estruturas mais

amplas em que estavam inseridos, é interessante observar certas expressões que indicam

ressalvas, uma escrita prudente, eventualmente usando a voz passiva, “[…] eu sempre fui

levado a acreditar”. O livro de Granger Korff, em especial, é rico em expressões desse tipo

para tratar de questões polêmicas: “[…] Como eu sabia até então, qualquer um dos partidos

políticos negros que foram banidos à época, tinham ligações com estados comunistas, que

estavam apenas esperando para colocar suas garras em nosso país” (KORFF, 2009:21), ou

“[…] Nós estávamos indo para sermos a ponta de lança na luta contra o inimigo comum.

Bem, ao menos foi isso que eles nos contaram” (KORFF, 2009:77). Em alguns momentos ele

apresenta certo desinteresse ou um compromisso parcial com a ideologia dominante, note-se o

as partes em destaque, grifos nossos:


Nós todos vagamente sabíamos que o sistema do apartheid na África do Sul era
errado e haveria de mudar um dia; mas, como todo mundo também sabia que, na
medida que se aderisse ao regime de maioria, então o banido Congresso Nacional
Africano iria certamente governar. Eles e seu líder encarcerado, Mandela, tinham
conexões diretas com os comunistas. Seu pequeno grupo de “lutadores da
liberdade”, ou “terroristas” – ou tanto faz como vocês queiram chamá-los – estavam
sendo treinados e apoiados por um monte de países comunistas que davam
retaguarda a toda a luta contra o apartheid. (KORFF, 2009:53)

Clive Holt, embora de forma menos recorrente, usa artifícios dessa natureza, como na
frase: “[…] Era amplamente acreditado que o líder cubano, Fidel Castro, tinha a intenção de
ganhar o controle da estratégica rota do Mar do Cabo” (HOLT, 2005:3).

O livro memória de Sisingi Kamongo, “Shadows in the sand: a koevoet tracker’s story
os an insurgency war”, organizado Leon Bezuidenhou, é a única publicada por um
participante negro que lutou a Bush War pelo lado do apartheid. O livro é um compilado de
histórias escritas em folhas de cadernos primeiramente em kavango afrikaans, depois
traduzida para Afrikaans padrão e em seguida traduzida para o inglês. Ele era apelidado de
“Shorty” (baixinho) e se encontra em cadeira de rodas em virtude das feridas da guerra. Ele
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também afirma servir à polícia do apartheid não era o mesmo que concordar com todas as
suas premissas:
Nunca tivemos inclinação política e, quando a polícia começou a recrutar
policiais especiais, a decisão de nos alistar foi simples. Apartheid e esse tipo
de coisas não eram fatores no mato de Kavango. Outras pessoas estavam
dispostas a guerrear por causa disso, mas não era um fator em nossas vidas.
Um trabalho remunerado era melhor do que política, o que nós não
entendíamos em nenhum caso.

Granger Korff tem um segundo método perspicaz nessa estratégia de delegação: é o


uso da voz de outros personagens para tratar de assuntos que se tornaram moralmente
condenáveis após a ascensão de Mandela. Ao longo do livro, o narrador sucede diálogos com
outros personagens, muitas vezes de posição hierárquica superior, como seu pai ou o
Comandante do Batalhão, na tentativa de mostrar como o seu pensamento foi forjado e que
tais concepções “condenáveis” eram amplamente aceitas e conversadas prosaicamente. A
começar com a conversa com o seu pai (KORFF, 2009:53-54):

‘[…] Se o CNA tomar o controle do governo, o país está fodido’ meu pai disse com
o sentimento de como se estivesse limpando seu rifle FN, seu ritual de domingo pela
manhã […]'. '[…] Esses caras querem nacionalizar todas as minas de ouro e a grande
indústria do país. No próximo minuto nós seremos comunistas’.

‘Mas nós não podemos mantê-los submetidos para sempre, pai’. Eu argumentei,
fazendo o papel de advogado do diabo. Os negros vivem melhor aqui do que em
qualquer lugar na África; nós nos esforçamos ao máximo para ajudá-los com postos
de trabalho e moradia, e eles simplesmente fodem tudo… mas eles são a maioria.

Em conversa com o Comandante do 1º Batalhão, James Lindsay, descrito como um


sujeito que não tinha nada a ver com a vida na cidade, e adorava fazer parte da guerra, disse
(em língua africâner), o Comandante: “[…] Nós estamos aqui para encontrar e matar caras
para a segurança do nosso país”; em seguida: “Nós somos o time A, e nosso objetivo é trazer
tantas cabeças quanto nós pudermos, e pôr a SWAPO fora do nosso negócio […]” (KORFF,
2009:79). Em outra ocasião, depois da descrição dos conflitos sociais e raciais, que
envolviam, segundo o autor, o aumento nas estatísticas de estupro e ataques à bomba em
pontos de ônibus na cidade, Korff responsabiliza os negros pelos confrontos se valendo da
voz de sua empregada negra, responsável pelo veredito (durante o livro, apenas duas vezes é
dada a voz para pessoas negras), o uso que ele faz das aspas não deve ser desprezado, grifo
nosso:
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Estudantes estavam frequentemente na linha de frente desses tumultos, se a polícia


ocasionalmente atira neles, seria um clamor global. Se você cai no caminho deles no
momento em que eles estiverem em um tumulto, esses “estudantes” atirariam um
tijolo em você, para a sua morte, e dançariam e cantariam em cima do seu corpo.
[…] Nossa empregada negra da fazenda balançava a sua cabeça e dizia que eles
eram maus, loucos, e que se o povo negro dirigisse o país, isso viraria uma bagunça
e que ela iria embora. (KORFF, 2009:28)

Kamongo narra em diversas oportunidades a relação entre brancos e negros na guerra.


Sua postura em geral é a de ressaltar que o batalhão era uma mais horizontal do que parecia e
que havia certa irmandade desenvolvida entre eles, essa afinidade já foi pontuada na
bibliografia como um dos elementos explicativos para a permanência dos soldados na guerra,
diz (BOLLIGER, 2018):

A liderança de uma equipe de combate tem muito a ver com quem está disponível.
Comumente o comando dos quatro carros era dividido entre o líder da equipe branca
em seu Casspir e três outros brancos. Os comandantes dos carros eram todos brancos
– em teoria. Na prática, era uma questão totalmente diferente. Koevoet era uma
organização dinâmica. Comandantes brancos saíam de licença para a África do Sul,
ou quando ficavam doentes ou feridos. Às vezes não havia membros brancos
suficientes para preencher as posições de liderança. A unidade não parava porque os
brancos não estavam lá. A guerra continuava (KAMONGO, Kindle Edition, 2012,
Loc. 646-651).
Dois dos mais interessantes relatos de guerra foi escrito por Arn Durand (2011; 2012).

Uma das particularidades é sua origem, ou melhor, como ele a mobiliza. Numa sociedade

investida, pelo Estado, em identidades fixas, Durand usa sua origem francesa para ocupar o

papel que mais lhe convém, ora criticando a falta de raízes dos ingleses com a região, ora

ironizando a falta de racionalidade africâner. Outra característica desse autor é que ele não

serviu pelo exército pelas Forças de Defesa Sul-africanas (SADF) ou pela Força Territorial do

Sudoeste Africano (SWATF), da Namíbia, mas sim pelo batalhão policial KOEVOET

(alavanca, em africâner), um agrupamento muito conhecido pelos seus crimes de guerra –

visto que parte a remuneração de seus combatentes era o chamado head money, ou seja,

recebiam por prisões e assassinatos – formado no final dos anos setenta e que contou com

grande presença negra no seu contingente, sendo Sisingi Kamongo, já citado, um deles. O

Koevoet ou Special Ops K surgiu como uma unidade de força especial que teve como

referência o Selous Scouts – unidade composta majoritariamente por negros na Rodésia (atual

Zimbábue). Hans Dreyer, um coronel da polícia da província de Natal, é considerado o


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fundador do Koevoet. A partir de então, essa unidade funcionou como uma força paramilitar e

designada como uma unidade de polícia. Essa designação teve uma importante consequência

política e jurídica porque, de acordo com os termos da Resolução 435 das Nações Unidas, as

polícias continuariam suas atividades durante o processo de transição e independência, de

forma que agrupamentos como esses operariam até 1990 se responsabilizando por manter a

segurança do processo eleitoral que, por fim, garantiu a independência da Namíbia em 1989

(ACCOUNTABILITY…, 1992; COSTA, 2015).

Tanto Durand quanto Kamongo se igualam ao afirmar que e a propaganda contra

Koevoet era exagerada, que eles eram muito organizados e não apenas máquinas de matar.

Ambos também afirmam terem sidos abandonados pelo país. A diferença é que Kamongo

expõe as desigualdades existentes mesmo entre aqueles que estavam do mesmo lado da

trincheira, a difícil situação de pobreza em que ele vive hoje é só mais uma demonstração

disso:
Mas também houve muitas perguntas. Aqueles de nós que tinham que proteger o
país também tinham que comer. Colocamos nossas vidas em risco por muito pouco
dinheiro. Os brancos recebiam bush pay, mas nós, membros negros, tínhamos que
viver com um salário miserável. Se não fizéssemos contato por uma ou duas
semanas no mato, não recebíamos nada extra. Se não estivéssemos em patrulha por
causa de problemas de saúde ou outras circunstâncias, também não receberíamos
nada. Contratualmente, éramos tratados como diaristas. Quando entramos em
contato com a SWAPO, recebíamos head money: quer o nosso contato estivesse vivo
ou morto, o número de rifles, minas terrestres, canos de morteiro, morteiros,
uniformes etc. recuperados foi pago. Mas todo o dinheiro foi dividido entre os
membros da equipe e às vezes entre membros de outras equipes que ajudaram.
Ainda era muito pouco. O máximo que ganhei foi R370 ($ 50) quando encontramos
um canhão B10 e balas. Na maioria das vezes, era apenas R10 ou R20 por contato.
Fomos roubados pela polícia (KAMONGO, 2012, Kindle Edition, Loc. 548-562).

Referências Bibliográficas:

ACCOUNTABILITY IN NAMIBIA: Human rights and the transition to democracy. Human


Rights Watch. U.S. 1992.
BOLLIGER, L : Chiefs, Terror, and Propaganda: The Motivations of Namibian Loyalists to
Fight in South Africa’s Security Forces, 1975–1989, South African Historical Journal, 2018.
DURAND, A. Zulu Zulu Foxtrot: to hell and back with koevoet [Kindle Edition]. Cape
Town: Penguin Random House South Africa, 2012.
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DURAND, A. Zulu Zulu Golf: life and death with koevoet [Kindle Edition]. Zebra Press,
2011.
CARDOSO, I. O passado que não passa: lugares históricos dos testemunhos. In: Varella, F. et
al. Tempo presente & usos do passado. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2012. p.125-142.
COSTA, I. de C. G. da. Defender-se na memória: estratégias e significados em narrativas de
sul-africanos brancos que combateram em Namíbia e Angola. 2015. 126 f. Dissertação
(Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
CRAPANZANO, V. Waiting: the Whites of South Africa. Nova York: Random House, 1985.
HARTOG, F. Evidência da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
KAMONGO, S; BEZUIDENHOUT, L. Shadows in the Sand: a Koevoet tracker's story of an
insurgency war. Durban: 30 Degrees South Publishers, 2012
HOLT, C. At thy call we did not falter. Paarl: Zebra Press, 2005.
KENNEDY, D. K. Islands of white: settler society and culture in Kenya and Southern
Rhodesia, 1890-1939. Durham: Duke Univesity Press, 1987.
KORFF, G. 19 with a bullet: a south african paratrooper in Angola. Johannesburg: 30º South
Publishers, 2009.
LEVI, P. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
MINTER, W. Os contras do apartheid: as raízes da guerra em Angola e Moçambique,
Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 1998.
PENNA, J. C.. Este corpo, esta dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispano-americano.
In: SELIGMANN-SILVA, M (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na era das
catástrofes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p.299-354.
PORTELLI, A. Como se fosse uma história: versões do Vietnã. In: PORTELLI, A. Ensaios de
História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. p. 185-207.

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