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Esse trabalho discute alguns aspectos das chamadas lutas de libertação ocorridas na
África Austral, nas últimas quatro décadas do século XX. Confrontos convencionais ou
guerras civis tiveram, via de regra, o seu legado disputado além de insidiosas consequências
são objeto de investimento do Estado na tentativa de imobilizar uma narrativa nacional mítica,
como, a partir daí, a trincheira escolhida pelos sujeitos – de forma coagida ou não – tornou-se
critério para distribuir mais ou menos direitos em sociedades que, além de tudo, contam com
nacionalistas de oposição que tateavam sua construção há não mais do que duas décadas. Com
beligerância na região. Esse quadro vigora até 1989, quando finda a Batalha de Cuito
Civil Angolana e mais longa batalha em território africano desde a Segunda Guerra Mundial
(MINTER,1998).
* Doutorando em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista FAPESB.
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Africano, e a retirada das tropas militares cubanas e sul-africanos da região. Estava posto,
desta forma, um quadro em que todos poderiam se considerar vencedores. Por um lado, os
cubanos alegavam ter dado a independência a um país africano e o golpe final no apartheid,
visto que Nelson Mandela seria libertado em 1990 e o regime cairia em 1994; por outro, os
Africano ao poder, enquanto que Angola ainda frequentaria longos anos de guerra civil
(UNITA), partido de oposição que constituiu uma base em Jamba, no sudeste do país, até
2002.
No âmbito do mestrado, comentei uma parte dessa infinda luta de memória (COSTA,
2015). Na ocasião, escolhi três autores que publicaram relatos de memória sobre suas
DURAND, 2012; HOLT, 2005; KORFF, 2009;) . Esses sujeitos relataram como a sociedade
sul-africana era altamente violenta e havia uma profunda ansiedade causada pela certeza de
que aquele regime tinha seus dias contados (CRAPANZANO, 1985). Esses jovens também
sobre o Vietnã, por exemplo. Alguns desses sujeitos buscaram o exílio e atualmente pedem
perdão, sentem-se traumatizados e injustiçados ao serem tratados como vilões por ter lutado
um guerra na qual não queriam ter participado, em nome de um país que não existe mais e
contra inimigos demonizados que agora estão no poder. Saliento, no meu trabalho, que as
como certos aspectos evidenciados nos relatos de guerra nos remetem ao histórico da
ocupação branca da região, do medo em relação aos negros - apesar da necessidade de tê-los
organizados para o trabalho (KENNEDY, 1987) – afinal, para os soldados brancos – sejam
eles do exército ou das forças policiais - a guerra era chamada de Bush War (guerra do mato),
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termo que explicita que, para lutar essa guerra, era preciso abandonar um código de conduta
da cidade e aderir a um código de conduta “do mato”, onde as leis eram diferentes e a
É possível observar algumas reações nessa adaptação à Bush War, a primeira é uma
progressiva aceitação do seu papel como combatente, como nessa passagem do livro “At thy
call we did not falter” de Clive Holt (2005:32) “nós estávamos começando a aceitar que havia
um trabalho sujo para fazer”, e que “alguém” – esse sujeito de identidade não definida –
“tinha que fazer isso”. Tais ideias de “dever a ser cumprido” ou de automatização como “você
nem mesmo precisa pensar” remetem a uma perda da autonomia do sujeito, e aparecem sob
vestes diferentes ao longo dos textos. Os autores reforçam essa noção por meio de metáforas,
imagens acerca de sentir-se parte do meio e apelo à sensações viscerais, animalescas ou, em
outra face: automáticas, robóticas. Um estudo muito apropriado sobre esses mecanismos foi
publicado por Alessandro Portelli, que analisou depoimentos publicados de ex-combatentes da
Guerra do Vietnã. Ele afirma que as metáforas estão ligadas à relação entre culpa e
absolvição:
O indivíduo pode se ver livre das provas impressas, mas não da memória.
Assim, as narrativas de veteranos utilizam um sem-número de dispositivos,
fórmulas e metáforas para lidar com aquelas imagens, delimitar suas
diferenças com aquilo que se tornaram, e tentar absolver a si mesmos pelo
que fizeram. ‘Você é metade fera’' dizia um partigiano italiano, a imagética
animal é uma metáfora recorrente dessa diferença total; representando a
perda da humanidade causada pela guerra. (PORTELLI, 2010:202).
aqueles de origem inglesa, com repertório cultural mais vasto e uma rede de relações
internacionais que não se compara aos de origem africâner, muito mais contidos, temerosos e
enraivecidos. A terceira temporalidade se refere aos anos em que esses livros são publicados.
Nos anos 2000, percebemos uma ascensão da direita, muito crítica dos governos liderados
pelo Congresso Nacional Africano. Editoras foram criadas com o objetivo de divulgar uma
“nova versão da história”, que tem sido ocultada pela narrativa do partido do poder.
minorias brancas pela retomada de parte do poder com base numa reconstrução da narrativa
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nacional a seu favor. Esse movimento apresenta semelhanças com o que assistimos no Brasil,
recrudescimento da direita.
encarada muito mais como uma “construção” feita de palavras em colaboração com editores,
em vez de um relato de eventos que transmitem o “real”, apesar da sua reivindicação da
verdade. Os narradores buscam dar forma e significado através da linguagem à “experiência e
à memória”, tentando reconstruir uma estrutura mais ampla. Ele mantém as dimensões
lacunares, seu caráter de inacabamento, o descompasso entre a experiência e o alcance da
experiência, ele é per se um ato histórico. “O tempo mesmo se torna humano na medida em
que é articulado sobre um modo narrativo” (ARFUCH:112).
[…] para além de todos os jogos de simulação possíveis, esses gêneros, cujas
narrativas são atribuídas a personagens realmente existentes não são iguais; que
inclusive, mesmo quando estiver em jogo uma certa “referencialidade”, enquanto
adequação aos acontecimentos de uma vida, não é isso que importa. Avançando uma
hipótese, não é tanto o “conteúdo” do relato por si mesmo – a coleção de
acontecimentos, momentos, atitudes –, mas precisamente as estratégias – ficcionais
– de autorrepresentação o que importa. Não tanto a “verdade” do ocorrido, mas sua
construção narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o vaivém da vivência ou da
lembrança, o ponto de olhar, o que se deixa na sombra; em última instância que
história (qual delas) alguém conta de si mesmo ou de outro eu. E é essa qualidade
autorreflexiva, esse caminho da narração, que será, afinal de contas significante. No
caso das formas testemunhais, tratar-se-á, além disso, da verdade, da capacidade
narrativa do “fazer crer”, das provas que o discurso consiga oferecer, nunca fora de
suas estratégias de veridição, de suas marcas enunciativas e retóricas (grifos da
autora).
Todas as motivações acima abordadas nos conduzem à avaliação que o exame dessas
fontes autobiográficas traz à baila questões sobre a subjetividade, a narração e memória.
Exige portanto a articulação de conceitos de alguns campos do conhecimento, como a
Linguística, a Psicanálise e a História Oral.
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ideia que visa justificar sua posição política com base na ignorância das estruturas mais
amplas em que estavam inseridos, é interessante observar certas expressões que indicam
ressalvas, uma escrita prudente, eventualmente usando a voz passiva, “[…] eu sempre fui
levado a acreditar”. O livro de Granger Korff, em especial, é rico em expressões desse tipo
para tratar de questões polêmicas: “[…] Como eu sabia até então, qualquer um dos partidos
políticos negros que foram banidos à época, tinham ligações com estados comunistas, que
estavam apenas esperando para colocar suas garras em nosso país” (KORFF, 2009:21), ou
“[…] Nós estávamos indo para sermos a ponta de lança na luta contra o inimigo comum.
Bem, ao menos foi isso que eles nos contaram” (KORFF, 2009:77). Em alguns momentos ele
Clive Holt, embora de forma menos recorrente, usa artifícios dessa natureza, como na
frase: “[…] Era amplamente acreditado que o líder cubano, Fidel Castro, tinha a intenção de
ganhar o controle da estratégica rota do Mar do Cabo” (HOLT, 2005:3).
O livro memória de Sisingi Kamongo, “Shadows in the sand: a koevoet tracker’s story
os an insurgency war”, organizado Leon Bezuidenhou, é a única publicada por um
participante negro que lutou a Bush War pelo lado do apartheid. O livro é um compilado de
histórias escritas em folhas de cadernos primeiramente em kavango afrikaans, depois
traduzida para Afrikaans padrão e em seguida traduzida para o inglês. Ele era apelidado de
“Shorty” (baixinho) e se encontra em cadeira de rodas em virtude das feridas da guerra. Ele
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também afirma servir à polícia do apartheid não era o mesmo que concordar com todas as
suas premissas:
Nunca tivemos inclinação política e, quando a polícia começou a recrutar
policiais especiais, a decisão de nos alistar foi simples. Apartheid e esse tipo
de coisas não eram fatores no mato de Kavango. Outras pessoas estavam
dispostas a guerrear por causa disso, mas não era um fator em nossas vidas.
Um trabalho remunerado era melhor do que política, o que nós não
entendíamos em nenhum caso.
‘[…] Se o CNA tomar o controle do governo, o país está fodido’ meu pai disse com
o sentimento de como se estivesse limpando seu rifle FN, seu ritual de domingo pela
manhã […]'. '[…] Esses caras querem nacionalizar todas as minas de ouro e a grande
indústria do país. No próximo minuto nós seremos comunistas’.
‘Mas nós não podemos mantê-los submetidos para sempre, pai’. Eu argumentei,
fazendo o papel de advogado do diabo. Os negros vivem melhor aqui do que em
qualquer lugar na África; nós nos esforçamos ao máximo para ajudá-los com postos
de trabalho e moradia, e eles simplesmente fodem tudo… mas eles são a maioria.
A liderança de uma equipe de combate tem muito a ver com quem está disponível.
Comumente o comando dos quatro carros era dividido entre o líder da equipe branca
em seu Casspir e três outros brancos. Os comandantes dos carros eram todos brancos
– em teoria. Na prática, era uma questão totalmente diferente. Koevoet era uma
organização dinâmica. Comandantes brancos saíam de licença para a África do Sul,
ou quando ficavam doentes ou feridos. Às vezes não havia membros brancos
suficientes para preencher as posições de liderança. A unidade não parava porque os
brancos não estavam lá. A guerra continuava (KAMONGO, Kindle Edition, 2012,
Loc. 646-651).
Dois dos mais interessantes relatos de guerra foi escrito por Arn Durand (2011; 2012).
Uma das particularidades é sua origem, ou melhor, como ele a mobiliza. Numa sociedade
investida, pelo Estado, em identidades fixas, Durand usa sua origem francesa para ocupar o
papel que mais lhe convém, ora criticando a falta de raízes dos ingleses com a região, ora
ironizando a falta de racionalidade africâner. Outra característica desse autor é que ele não
serviu pelo exército pelas Forças de Defesa Sul-africanas (SADF) ou pela Força Territorial do
Sudoeste Africano (SWATF), da Namíbia, mas sim pelo batalhão policial KOEVOET
visto que parte a remuneração de seus combatentes era o chamado head money, ou seja,
recebiam por prisões e assassinatos – formado no final dos anos setenta e que contou com
grande presença negra no seu contingente, sendo Sisingi Kamongo, já citado, um deles. O
Koevoet ou Special Ops K surgiu como uma unidade de força especial que teve como
referência o Selous Scouts – unidade composta majoritariamente por negros na Rodésia (atual
fundador do Koevoet. A partir de então, essa unidade funcionou como uma força paramilitar e
designada como uma unidade de polícia. Essa designação teve uma importante consequência
política e jurídica porque, de acordo com os termos da Resolução 435 das Nações Unidas, as
forma que agrupamentos como esses operariam até 1990 se responsabilizando por manter a
segurança do processo eleitoral que, por fim, garantiu a independência da Namíbia em 1989
Koevoet era exagerada, que eles eram muito organizados e não apenas máquinas de matar.
Ambos também afirmam terem sidos abandonados pelo país. A diferença é que Kamongo
expõe as desigualdades existentes mesmo entre aqueles que estavam do mesmo lado da
trincheira, a difícil situação de pobreza em que ele vive hoje é só mais uma demonstração
disso:
Mas também houve muitas perguntas. Aqueles de nós que tinham que proteger o
país também tinham que comer. Colocamos nossas vidas em risco por muito pouco
dinheiro. Os brancos recebiam bush pay, mas nós, membros negros, tínhamos que
viver com um salário miserável. Se não fizéssemos contato por uma ou duas
semanas no mato, não recebíamos nada extra. Se não estivéssemos em patrulha por
causa de problemas de saúde ou outras circunstâncias, também não receberíamos
nada. Contratualmente, éramos tratados como diaristas. Quando entramos em
contato com a SWAPO, recebíamos head money: quer o nosso contato estivesse vivo
ou morto, o número de rifles, minas terrestres, canos de morteiro, morteiros,
uniformes etc. recuperados foi pago. Mas todo o dinheiro foi dividido entre os
membros da equipe e às vezes entre membros de outras equipes que ajudaram.
Ainda era muito pouco. O máximo que ganhei foi R370 ($ 50) quando encontramos
um canhão B10 e balas. Na maioria das vezes, era apenas R10 ou R20 por contato.
Fomos roubados pela polícia (KAMONGO, 2012, Kindle Edition, Loc. 548-562).
Referências Bibliográficas:
DURAND, A. Zulu Zulu Golf: life and death with koevoet [Kindle Edition]. Zebra Press,
2011.
CARDOSO, I. O passado que não passa: lugares históricos dos testemunhos. In: Varella, F. et
al. Tempo presente & usos do passado. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2012. p.125-142.
COSTA, I. de C. G. da. Defender-se na memória: estratégias e significados em narrativas de
sul-africanos brancos que combateram em Namíbia e Angola. 2015. 126 f. Dissertação
(Mestrado em Estudos Étnicos e Africanos) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
CRAPANZANO, V. Waiting: the Whites of South Africa. Nova York: Random House, 1985.
HARTOG, F. Evidência da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
KAMONGO, S; BEZUIDENHOUT, L. Shadows in the Sand: a Koevoet tracker's story of an
insurgency war. Durban: 30 Degrees South Publishers, 2012
HOLT, C. At thy call we did not falter. Paarl: Zebra Press, 2005.
KENNEDY, D. K. Islands of white: settler society and culture in Kenya and Southern
Rhodesia, 1890-1939. Durham: Duke Univesity Press, 1987.
KORFF, G. 19 with a bullet: a south african paratrooper in Angola. Johannesburg: 30º South
Publishers, 2009.
LEVI, P. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
MINTER, W. Os contras do apartheid: as raízes da guerra em Angola e Moçambique,
Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 1998.
PENNA, J. C.. Este corpo, esta dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispano-americano.
In: SELIGMANN-SILVA, M (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na era das
catástrofes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p.299-354.
PORTELLI, A. Como se fosse uma história: versões do Vietnã. In: PORTELLI, A. Ensaios de
História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. p. 185-207.