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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXX Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP, 27 a 30 de julho de 2021

Felicidade compulsória, produtividade e superação:


horizontes do depressivo no mundo neoliberal 1

Compulsory happiness, productivity and overcoming:


depressive horizons in the neoliberal world
Amanda Borba da Silva 2

Resumo: O artigo analisa o discurso sobre a depressão no jornalismo evidenciando de que forma
alguns imperativos neoliberais aparecem nos dizeres das vozes de autoridade do campo da
psiquiatria e nas vozes de vítimas da doença. Tomamos como objeto de análise a série de
reportagem, de três episódios, Não tá tudo bem, mas vai ficar (2019), veiculada pelo programa
Fantástico, na Rede Globo. As discussões sobre a depressão tiveram como aporte teórico os estudos
de Kehl (2009); Safatle, Silva Junior, Dunker (2019, 2020); e Ortega (2008). A análise discursiva
(FOUCAULT, 2012) mostrou que o discurso de prevenção e orientação a respeito da depressão,
ainda que vise à desestigmatização da doença, se alicerça na lógica neoliberal da produtividade,
do individualismo e do incentivo ao consumo dos psicofármacos.

Palavras-chave: Depressão. Neoliberalismo. Consumo de psicofármacos.

Abstract: The article analyzes the discourse on depression in journalism, highlighting the
neoliberal discursive structure in words of the authority voices in the field of psychiatry and of
other voices called to the discourse. We took as an object of analysis the three episodes series report
Não tá tudo bem, mas vai ficar (2019), broadcast by the program Fantástico, on Rede Globo. The
discussions on depression had as theoretical support the studies of Kehl (2009); Safatle, Silva
Junior and Dunker (2019, 2020); and Ortega (2008). The discursive analysis (FOUCAULT, 2012)
showed that the prevention and orientation discourse about depression, even though it aims at
destigmatizing the disease, is based on the neoliberal logic of productivity, individualism and
encouraging the consumption of psychiatric drugs.

Keywords: Depression. Neoliberalism. Consumption of psychotropic drugs.

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Sociabilidade do XXX Encontro Anual da Compós,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP, 27 a 30 de julho de 2021.
2 Amanda Borba da Silva: Doutoranda no PPGCom/UFPE, Mestrado,
amanda.borba7@gmail.com.

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1. Introdução
O Brasil é um dos países com alto índice de depressão entre a população, e encontra-se
em primeiro lugar no ranking da América Latina. Cerca de 6% dos brasileiros são vítimas da
doença (PAHO/OMS, 2019), e esse número aumenta quando passamos a considerar os casos
de transtorno de ansiedade. As condições de saúde mental são responsáveis, atualmente, por
cerca de 16% das doenças e lesões, a nível global, em pessoas entre 10 e 19 anos. Dados da
OMS apontam o suicídio como a terceira causa de morte entre adolescentes, de 15 a 19 anos
(PAHO/OMS, 2019). Dentre as motivações listadas está a depressão – juntamente a outras
psicopatologias, como a esquizofrenia e o transtorno afetivo bipolar. Embora seja mais comum
entre adolescentes e jovens, a depressão pode atingir pessoas de qualquer idade. Há quadros
depressivos na infância, na adolescência, na vida adulta e na velhice.
A depressão é uma psicopatologia grave, que necessita, primeiramente, de diagnóstico
para que seja iniciado um tratamento adequado. A mídia, nesse contexto, tem papel
fundamental na disseminação de informação sobre o assunto e no combate aos preconceitos e
estigmas sobre a doença.
Neste artigo, buscamos analisar a construção de um discurso jornalístico sobre a
depressão, utilizando como objeto de análise a série de reportagens Não tá tudo bem, mas vai
ficar (2019), veiculada pela Rede Globo no programa Fantástico, à luz da compreensão de que
o discurso jornalístico depende de suas condições históricas de possibilidade (FOUCAULT,
2012). Assim, sustentamos que a valorização da produtividade e do trabalho, bem como o
enaltecimento de um modelo neoliberal de felicidade no discurso sobre a depressão são frutos
de um contexto social, histórico e político específicos. Defendemos, ainda, que esse modelo
impõe ao sujeito depressivo parâmetros desafiadores e, muitas vezes, inalcançáveis de
adequação, como veremos mais adiante.
Buscamos mostrar que, no discurso jornalístico, o uso dos psicofármacos no tratamento
da depressão é apresentado – legitimado pelos dizeres hegemônicos do campo da psiquiatria –
como um caminho quase que inevitável, embora, como veremos a seguir, esse direcionamento
alinhe-se com uma perspectiva estritamente bioquímica da doença, ignorando o lugar do
sofrimento psíquico frente às exigências sociais e no atrito com as normas sociais hegemônicas
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(FREUD, 2015). Defendemos que essa última dimensão, embora não tenha sido sequer
mencionada na série de reportagens objeto de nossa análise, é fundamental para a compreensão
da depressão não apenas como uma doença, mas como uma patologia do social (SAFATLE;
SILVA JUNIOR; DUNKER, 2018).
Além disso, chamamos a atenção para as implicações da estreita relação entre a ciência
psiquiátrica e a lógica de produção neoliberal, comprometida em não mais expurgar os
inadaptáveis (FOUCAULT, 2014), mas em retificar “fragilidades, inconsistências e
precariedades humanas segundo o critério da produtividade máxima a todo momento”
(SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2018, p. 163). Segundo Dardot e Laval (2017), há
uma mudança, neste sentido, da dinâmica da adaptação x exclusão, analisada por Foucault,
para uma dinâmica diferente, que conta com a captura dos desejos individuais e o engajamento
dos sujeitos, que passam a se alinhar à produção de uma ordem social condizente com os
imperativos neoliberais.
No primeiro tópico deste artigo, apresentamos dados estatísticos sobre a depressão no
Brasil e no mundo, os pressupostos de pesquisa e os aportes teóricos que norteiam a nossa
discussão. No segundo tópico, justificamos a escolha do objeto de análise, apontando algumas
características da série que foram relevantes para a seleção desta como foco de nosso estudo.
No tópico 3, “Felicidade compulsória e os discursos da produtividade e da superação”,
procuramos mostrar como os discursos da superação e da produtividade, bem como o modelo
de felicidade neoliberal estão presentes no discurso jornalístico sobre a depressão. O tópico 4
mostra como o incentivo ao uso de psicofármacos no tratamento de depressivos está presente
nos dizeres hegemônicos do campo da psiquiatria, que se estabelece como um verdadeiro
aliado da indústria farmacêutica. Além disso, o quarto tópico aponta a ausência de importantes
vozes no discurso jornalístico sobre a depressão, como psicólogos, psicanalistas e
representantes do poder público, o que têm implicações diretas na construção do discurso sobre
a depressão. Finalmente, no tópico 5, buscamos mostrar como os limites pouco definidos entre
o diagnóstico do transtorno bipolar e da depressão também se inserem na lógica de controle
dos comportamentos e do consumo de psicofármacos.

II. A série de reportagens “Não tá tudo bem, mas vai ficar” (2019)
Lançada em agosto de 2019, a série de reportagens Não tá tudo bem, mas vai ficar, de
três episódios, foi veiculada no Programa Fantástico, da Rede Globo, e tem como

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apresentador/narrador o médico cancerologista Drauzio Varella. Na emissora, ele já participou,


como voz de autoridade, de diversas entrevistas sobre saúde, bem como outras séries sobre o
corpo humano, primeiros socorros, tabagismo, planejamento familiar, gravidez na adolescência
etc.
Atualmente, Varella é um dos médicos mais famosos do Brasil. Ele ficou conhecido
principalmente por seu trabalho de pesquisa, iniciado em 1989, sobre a circulação do HIV entre
a população carcerária da Casa de Detenção do Carandiru, onde trabalhou como voluntário até
2002. A experiência com os detentos reuniu material para a publicação do livro Estação
Carandiru (1999), que ganhou o Prêmio Jabuti em 2000 e veio a se tornar um filme em 2003,
intitulado Carandiru. Como voz de autoridade reconhecidamente notável tanto pela
comunidade científica quanto pela população brasileira, Varella conduz, como apresentador e
narrador, a série de reportagens Não tá tudo bem, mas vai ficar (2019), que se propõe a falar
sobre a depressão em três episódios que têm, por ordem de estreia, os seguintes grandes eixos
temáticos:
a. Sintomas e definição(ões) da depressão;
b. Tratamentos e consumo de psicofármacos;
c. Aproximações entre a depressão e o transtorno bipolar.
As reportagens foram estruturadas a partir dos depoimentos de vítimas da depressão –
celebridades e pessoas comuns – e das vozes de especialistas, privilegiadamente psiquiatras.
Os relatos das vítimas são intercalados com dizeres médicos e com uma narração que preza
pelo didatismo, valendo-se, ainda, de recursos de animação, de modo a facilitar o entendimento
do expectador.
A escolha do nosso objeto de análise foi balizada pelo alcance do veículo de
comunicação, a Rede Globo, no qual a série de reportagens foi veiculada, e pelo protagonismo
do médico Drauzio Varella, que, acreditamos, goza de credibilidade na sociedade brasileira, o
que julgamos importante para o apelo à audiência. Além disso, foi considerado o esforço
didático das reportagens, que denotam uma evidente intenção de tratar do tema da depressão
de forma acessível ao grande público.

III. Felicidade compulsória e os discursos da produtividade e da superação


A primeira reportagem, que foi ao ar no dia 03 de agosto de 2019, utilizou-se dos relatos
da cantora Paula Fernandes, do músico Baco Exu do Blues e de testemunhos de pessoas

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comuns para construir um argumento sobre a depressão: a de que ela é uma doença, com
sintomas específicos, e que precisa de tratamento. Como mencionamos, a reportagem 1 da série
centrou seus esforços em definir a depressão e apresentar um quadro de sintomas da doença,
valendo-se dos depoimentos de vítimas e do discurso médico sobre o assunto.
A partir dos testemunhos apresentados, é possível fazer algumas generalizações. Nos
relatos de Fernandes, identificou-se, de forma bastante evidente, o discurso da superação; no
músico e rapper Baco Exu do Blues, a depressão aparece como elemento de inspiração, que o
permite compor e, portanto, produzir. Já nos testemunhos das demais vítimas da doença, foi
possível identificar tanto o lugar do trabalho – e da produtividade – como elemento edificador
da vida como o discurso da superação como uma responsabilidade individual, muito coerente
com a noção do sujeito empreendedor de si.
A primeira cena da reportagem 1 da série é um palco vazio, onde deveria estar a artista
Paula Fernandes. Em seguida, a imagem é acompanhada da fala da cantora, em off: “É um
crime contra a própria natureza, porque eu tenho que ir lá sorrir agora, e eu estou chorando
aqui. Tá pesado, eu estou com problema, tá ruim, tá doendo (sic)”. Tanto a cena de um espaço
a ser ocupado (FIG. 1) quanto o depoimento são representativos do impacto que o imperativo
da felicidade – seja no âmbito profissional ou não – tem provocado no sujeito depressivo. A
democratização do espaço social trouxe, com o ideal igualitário de sociedade, a ideia de
felicidade como direito (BIRMAN, 2006), mas, não correspondendo aos anseios do Outro, nas
sociedades regidas por esse imperativo, da predisposição permanente a divertir-se e a gozar
(KEHL, 2009, p. 194), o depressivo recua e se isola.

FIGURA 1- frame da reportagem 1 da série “Não tá tudo bem, mas vai ficar” (2019).
FONTE - Reprodução internet

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A sensação de ser errado (ou infeliz) em um mundo certo (ou feliz) provoca a reclusão
do depressivo. O isolamento por longos períodos é um dos sinais de alerta elencados pelos
profissionais da saúde quando se trata da depressão e das orientações de prevenção ao suicídio
(OPAS/OMS, 2019). Nos tempos atuais, a infelicidade não aparece como opção na gôndola de
possibilidades apresentada pelo neoliberalismo, sendo a felicidade compulsória (DUNKER,
2021).
O isolamento, a solidão, a invasão do trabalho na vida privada, íntima, bem como as
lógicas da competitividade e da superação são fenômenos intensificados pelo neoliberalismo
(SAFATLE, SILVA JUNIOR, DUNKER, 2020) e têm efeitos negativos substanciais no
depressivo. É possível dizer que “quando o neoliberalismo altera nossa relação com o
sofrimento psíquico, tal como ele o faz com os ideais, […] ele produz performativamente novos
sujeitos” (SILVA JUNIOR, 2016). Isso porque os próprios sujeitos são transformados pela
lógica neoliberal e passam a gerir suas próprias vidas, entendendo a si próprios como empresas.
“Trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna” (ORTEGA,
1967, p. 32). Sobre esse aspecto, a psiquiatria vem assumindo papel fundamental a serviço do
consumo de psicofármacos – que abordaremos mais adiante.
Retomando a reportagem, a narração que segue à fala de Fernandes questiona,
retoricamente, “Quem não gosta de ver gente sorrindo?”. O depressivo certamente não se
negaria a um dia ou outro sem encarar a vida polida das supostas pessoas felizes. Fazendo
um paralelo com a experiência do isolamento social imposto pela Covid-19, Dunker (2021)
nota como o período de recolhimento da vida em casa como uma nova ordem representou uma
“trégua” para os depressivos, pois estes passaram a não ter mais a obrigação de sair à rua e
encarnar a sua versão performática da normalidade.
Um dos relatos apresentados pela série de reportagens exemplifica a importância da
performance no contexto social:
Eu sempre fui muito sorridente, muito de bem com a vida, converso com todo mundo,
dou risada… e, de repente, alguém chega e fala: ‘você está com depressão’.

No depoimento, a depressão se apresenta como um obstáculo à felicidade, que estava


posta e foi impedida, ou descontinuada, pelo anúncio da doença. É importante notar que o
anúncio, e não a doença em si, é colocado como o elemento perturbador no relato. Em outras
palavras, o diagnóstico marcou o ponto a partir do qual a felicidade passou a não mais existir.

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Segundo Dunker (2020, s/p),


[…] a versão que faço de mim, e dos outros em relação a mim, altera quem eu sou e
como eu sofro. […] na saúde mental, ao contrário de outras áreas médicas, a descrição
que o paciente faz dos sintomas altera ou constitui os sintomas eles mesmos, mais ou
menos como acontece na hipocondria.

Nessa perspectiva, o psicanalista alerta sobre a tendência negativa – e de efeitos práticos


– que o paciente pode ter de reproduzir em suas falas e comportamentos as descrições médicas
e diagnósticos, em detrimento de relatar, em primeira pessoa, o que sente ou compartilhar a sua
vivência com a doença. A partir do momento em que o vivido é compartilhado, a experiência
ganha sentido ao ser relatada, o que “permite ao sujeito apossar-se do vivido e extrair dele um
saber comunicável” (KEHL, 2009, p. 224). O diagnóstico não deveria impor uma condição,
sob o risco de se criar uma doença para, então, curá-la (DUNKER, 2021).
Voltando à reportagem, o depoimento do músico brasileiro Baco Exu do Blues traz à
tona o discurso que relaciona a depressão com fraqueza:
Eu não fui programado para ser fraco, para falar que estou fraco. Eu tive que quase morrer
para entender que pedir ajuda é melhor do que você morrer (grifos nossos).

Chama atenção o uso do termo programado, que remete ao vocabulário da técnica e à


ideia de infalibilidade da máquina. Se ele não foi programado para ser fraco, tal qual uma
máquina não é programada para deixar de funcionar, ele não deveria estar se sentindo dessa
forma. A fraqueza, no caso do indivíduo, remete à inoperância diante da vida.
Essa mentalidade tecnicista trazida pela modernidade se alia, de maneira muito
profunda, ao discurso da produtividade neoliberal. Se no passado moderno, o risco pairava
sobre as fábricas e suas capacidades de obtenção de lucros e de evitar a falência, hoje temos
que entender a própria vida como uma empresa e evitar correr o risco de esta parar de funcionar,
sendo a “iniciativa individual a unidade de medida da pessoa” (EHRENGER, 1998, p. 10 apud
BERARDI, ANO, p. 120).
As implicações dessa autoimposição da infalibilidade são inúmeras não apenas para o
depressivo, pois a ela podemos relacionar as ocorrências do burnout entre profissionais de
diversas áreas, que se caracteriza pelo esgotamento físico e mental, além de exaustão emocional
(VIEIRA; RUSSO, 2019); afastamentos devido a estresse laboral; e a medicalização para
atingir níveis de desempenho inalcançáveis.
Mais adiante, continuando seu relato, Baco Exu do blues diz que, apesar de não ter
conseguido resolver a depressão sozinho, como ele achava que deveria, arrumou uma utilidade

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para ela:
[…] a depressão me ajuda muito a compor, cara. Todas as músicas falam sobre isso.
Inclusive, muita gente tá ali porque se identificou, porque não tá sozinha, não tá
sofrendo sozinha(sic).
Alguns pontos do depoimento merecem atenção: o horizonte da produtividade; a
demanda por identidade; e a discursivização da depressão como potência criativa. Comecemos
pelo último.
A relação entre depressão e genialidade ou criatividade remonta a história da
melancolia3 no ocidente. A melancolia pode ser entendida como uma psicopatologia-mãe, pois
foi uma das primeiras descrições de um estado de espírito que sinalizava uma desistência da
vida, do existir. O melancólico foi descrito por Hipócrates, na Antiguidade, como um sujeito
que estabelecia uma relação com a vida marcada pela dor, pelo sofrimento (DUNKER, 2021).
Aristóteles, em seus escritos, deu outra dimensão a melancolia, quando afirmou que
[…] os que possuem um temperamento levemente melancólico são pessoas comuns,
mas os que o têm em alto grau são bem diferentes da maioria das pessoas. Pois se a
condição deles é muito completa, eles são muito deprimidos; mas se possuem um
temperamento misto, são homens de gênio.
(ARISTÓTELES, 1971, p. 954-a-b)

Na Itália renascentista, a associação entre melancolia e genialidade era destacadamente


mais presente quando comparada a outros países da Europa Ocidental. O homem seria mais
inspirado quanto mais melancólico fosse, e essa tradição de pensamento encorajou muitos
indivíduos a acreditarem em sua própria genialidade devido à experiência de quadros
sintomáticos que sugeriam o acometimento pela melancolia. Alguns chegavam a fingir
sofrimento a fim de serem identificados como mentes brilhantes (SOLOMON, 2018). Dessa
forma, o sul da Europa foi sendo varrido pelas ideias aristotélicas românticas e, pouco a pouco,
a figura do gênio melancólico foi ganhando espaço e se fortalecendo como tendência:
Ingleses que viajavam à Itália e viam aquele ambiente voltavam para casa gabando-
se de uma sofisticação manifesta através de deus atributos melancólicos. E uma vez
que só os ricos podiam arcar com despesas de viagens, a melancolia logo se tornou,
aos olhos dos ingleses, uma doença da aristocracia. (Ibidem, p. 286)

Podemos inferir que a melancolia, estando nas origens da história dos sofrimentos
psíquicos, é uma prima distante da depressão. Dessa forma, alguns dizeres que circulam na

3 Embora não se possa confundir depressão e melancolia, defendemos que a história dos
melancólicos atravessa as origens da história da depressão enquanto sintoma social (FREUD, 2010).
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sociedade que atribuem à depressão certo grau de elitismo guardam relação com esse status
passado dos melancólicos. Tal compreensão da doença é responsável pelo estigma da depressão
como “doença de rico”4, o que implica na falta de visibilidade das ocorrências da doença nas
periferias e, consequentemente, na falta de assistência a essas vítimas.
Na reportagem analisada, a potência criativa da depressão é colocada, no relato do
rapper Baco, como garantia de produtividade esperada, ou imposta, já que o trabalho do artista
depende da composição de músicas, que, em sua maioria, trazem a depressão como tema. Em
“En tu mira” (2017), ele diz: “Baco, cadê o ano lírico/ o CD do ano/ Eles estão me cobrando/
Eu tô trabalhando”, e, mais adiante, o artista se indigna: “eu tô me matando, você está
aplaudindo”. Não por coincidência, o artista define a depressão como uma “corda bamba”.
Há um polo narcísico (DUNKER, 2021) na depressão que é potencializado por
experiências muito presentes na nossa cultura. Quanto mais o indivíduo foca em si mesmo,
ocupando-se em julgar suas atitudes, seu comportamento, medir-se e avaliar-se, mais se
aproxima de uma espiral de angústia. Na contemporaneidade, o imperativo da produtividade
cria sujeitos de avaliações de desempenho que incorporam a racionalidade do sucesso, que, por
sua vez, induz à criação de uma imagem de si cada vez mais bem-acabada.
Os relatos, ao longo das reportagens são intercalados com falas de especialistas (vozes
de autoridade) – em sua maioria, psiquiatras – que apresentam informações e dados estatísticos
sobre a doença. São essas informações, alicerçadas nos depoimentos, que direcionam a
construção do discurso sobre a depressão, centrado, na reportagem 1, em estabelecer um quadro
de sintomas da doença.
Assim, tristeza, desânimo, incapacidade de sentir prazer em atividades que, outrora,
davam prazer (anedonia 5 ), angústia, dor de cabeça, taquicardia, cólica, sensação de luto 6 ,
vontade de não viver, culpa, tremor corporal, falta de ar, queda de cabelo, perda de peso,
dificuldade de se relacionar, perda de apetite, insônia são alguns dos sintomas elencados na
reportagem. Varella, ainda, em uma passagem da narração, refere-se à depressão como um

4 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-44400381. Acesso em: 31/03/2021.


5 O termo, muito utilizado na psiquiatria, refere-se à incapacidade de experienciar prazer e à
perda da relação com o desejo.
6 Para a psicanálise, o paradigma do luto é de extrema importância para a compreensão da
depressão, já que esta é entendida como um luto mal elaborado, que não foi reconhecido como uma perda. Esse
luto não se refere-se apenas a perda de pessoas pela morte, mas engloba o luto por fases da vida, relacionamentos,
amizades etc. O luto, para a psicanálise, é um processo de renúncia de um objeto que implica a reconstituição de
uma nova relação com essa ausência (KEHL, 2009).
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“fardo pesado e invisível”.


Os sintomas são apresentados tanto pelas vítimas da depressão quanto pelos psiquiatras
convocados a falar sobre o assunto. É a presença destes últimos que confere ao discurso
jornalístico um caráter didático, que privilegia descrição dos fenômenos bioquímicos
relacionados à depressão, como se pode perceber no seguinte trecho da narração da reportagem:
A depressão é uma alteração da química do cérebro que distorce a forma de pensar
e de sentir as emoções. Até pouco tempo atrás, acreditava-se que isso acontecia
apenas pela baixa produção de substâncias químicas que ajudam a transportar os
sinais do cérebro de uma célula para a outra, os neurotransmissores, entre eles a
serotonina, a dopamina e a noradrenalina, responsáveis pela sensação de bem-estar.
Mas estudos recentes mostraram que os hormônios do estresse também prejudicam o
equilíbrio químico dos neurônios a ponto de reduzir o tamanho do hipocampo, uma
estrutura do cérebro que constrói a memória e controla as emoções. Não é preguiça,
não é frescura nem falta de força de vontade. Depressão é doença. (grifos nossos)

O trecho da narração destacado anteriormente é acompanhado de uma animação


esquemática que explica o funcionamento dos neurotransmissores no cérebro e as áreas de
atuação dessas substâncias (FIG. 2).

FIGURA 2 – Frame da reportagem 1 da série “Não tá tudo bem, mas vai ficar” (2019).
FONTE – Reprodução Internet

É importante notar que Varella define a depressão como um fenômeno essencialmente


bioquímico, orgânico (endógeno) e, portanto, individual, ignorando seu lugar de sintoma social,
o que é potencialmente problemático, pois deixa de trazer à discussão a depressão frente aos
imperativos neoliberais, que já mencionamos. Nas palavras de Bruckner (2002, p. 77), “nós
construímos provavelmente as primeiras sociedades da história a tornar as pessoas infelizes por
não serem felizes”.
Ignorar a subjetividade depressiva frente aos imperativos neoliberais de felicidade,
produtividade, empresariamento de si, consumo, é entender a depressão apenas do ponto de

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vista endógeno. É ignorar o quanto a precariedade, um dos pilares do neoliberalismo, fertiliza


o terreno das chamadas depressões episódicas 7 , que não param de se proliferar na
contemporaneidade e que são exploradas por discursos hegemônicos da psiquiatria que
incentivam a medicalização da vida.

IV. A psiquiatria a serviço do consumo de psicofármacos


A segunda reportagem da série analisada, inicialmente, empenha-se em diluir
preconceitos em torno da depressão e inserir as doenças mentais no rol de reconhecimento do
público. Para tanto, a narração estabelece comparativos entre a condição depressiva e outros
tipos de doença/condições físicas, colocando-as em patamar de igualdade, como se pode
observar no trecho da narração destacado a seguir:
A sociedade não aprendeu a respeitar as doenças da mente como respeita as do corpo.
[…] Você diria para alguém que está com febre alta deixar de ser preguiçoso e sair
da cama? […] Você pensaria que uma pessoa com a perna quebrada só não corre
porque está faltando força de vontade?[…] E para um amigo que vomitasse sem parar
e que recusasse, mais uma vez, seu convite para sair, você diria “para de frescura,
tanta gente com problema pior que o seu”? (grifos nossos)

O excerto apresenta alguns dos muitos estigmas associados ao depressivo na atualidade.


Os termos preguiça, força de vontade e frescura visam resgatar e diluir discursos
preconceituosos que circulam na sociedade. Varella propõe questionamentos para sensibilizar
o público; as perguntas intencionam levar o público a uma reflexão que culmine no
estabelecimento de certo grau de paridade entre as doenças/condições físicas (visíveis) e a
depressão (não apreensível no campo visual).
Essa soberania do visível na tradição biomédica, segundo Ortega (1967, p. 102),
provoca “a invasão de um conhecimento objetivante [que] produz um deslocamento do self do
corpo para uma relação mecanicista com o próprio corpo, o modelo do corpo-máquina, ou do
corpo-cadáver, dissociado do eu pensante”. Nesse sentido, o próprio diagnóstico da depressão
é um desafio para a medicina, já que, conforme a narração de Varella: “Não existe exame de
sangue ou de imagem que comprove a depressão”, sendo o diagnóstico clínico.
A compreensão do corpo como uma máquina encontra eco nos imperativos neoliberais
da produtividade e da superação, já que a máquina (ou o corpo) pode não apenas ser consertada,

7 Dunker (2020, p. 201) lista algumas delas: distimia (transtorno depressivo persistente),
transtorno disruptivo da desregulação de humor, transtorno depressivo induzido por substância ou medicação,
depressão sazonal, entre outras.
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ajustada, como também azeitada, aperfeiçoada, de forma não apenas a continuar produzindo,
mas produzindo melhor. Na história das doenças mentais, a psiquiatria, como mostrou Foucault
(2014), desde sua origem, atuou como dispositivo teórico e prático de disciplinamento daqueles
que reagem ou não se adéquam à ordem do trabalho.
Se, no século XVII, o destino dos inadaptados era o confinamento em instituições
específicas – centros de internação, ou hospícios, para os loucos; cárcere, para os criminosos;
hospitais, para os doentes etc. (FOUCAULT, 2014a, 2014b) –, hoje podemos falar que o
horizonte reservado para o depressivo pelo campo da psiquiatria é o consumo dos
psicofármacos. Neves et al. (2020, p. 127) alerta que essas mudanças têm como pano de fundo
as transformações nas “matrizes psicológicas da episteme neoliberal e [são] delas
indissociáveis”.
Retomemos a narração da reportagem:
Se a doença [a depressão] se mostrar leve, geralmente a psicoterapia dá conta do
recado, mas com os casos moderados ou graves não se brinca. Para eles foram
criados os antidepressivos. A missão da maior parte desses medicamentos é melhorar
a comunicação entre os neurônios, as células do cérebro, para que volte a existir uma
quantidade adequada de substâncias químicas que geram bem-estar, como a
dopamina, a serotonina e a noradrenalina. Os antidepressivos prologam a ação
dessas substâncias na sinapse, que é justamente o espaço por onde os impulsos
nervosos são transmitidos de um neurônio para outro. (grifos nossos)

O termo missão relacionado aos antidepressivos, na fala de Varella, remete a uma


incumbência, um encargo, uma obrigação de cumprir alguma tarefa, ou, para utilizar um termo
muito caro ao neoliberalismo, um propósito. O uso do vocábulo missão não nos parece fruto
do acaso. Há, implícita nesse consumo de psicofármacos, também a produção de uma
discursividade sobre um modo de subjetividade que diz respeito à capacidade de gestão do
sofrimento (NEVES et al, 2020).
Em seguida, na reportagem, é convocada ao discurso a voz de uma vítima da depressão,
que compartilha sua experiência com psicofármacos:
[Eu disse] “Doutor, não é possível, o senhor me deu o remédio errado”. E ele falava
assim: “É o melhor remédio do mercado. Ele vai funcionar, eu tenho pacientes que
não saíam da cama e depois foram dançar o conga”. (grifos nossos)

Pelo depoimento, nota-se que há uma expectativa da paciente com relação à


infalibilidade da medicação. A vítima, como se pode constatar por meio da expressão não é
possível, utilizada no relato, antes de duvidar da eficácia da medicação, cogita a possibilidade
de prescrição equivocada por parte do psiquiatra. Isto é, ela admite a possibilidade de falha

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humana (médico), mas não da técnica/ciência (o remédio).


Ainda no depoimento mencionado, chama a atenção a promessa de eficácia da
medicação feita pelo médico segundo uma escala muito particular de evolução do paciente: da
cama ao conga. O grau 0 dessa escala, a cama, representa um estágio de
apatia/tristeza/inoperância diante da vida (anedonia), que se contrapõe ao grau máximo, aquilo
que se deseja alcançar, que é a cura – aqui entendida como um estado de felicidade. Para o
psiquiatra, curiosamente, a imagem da felicidade seria vazia de sentido: dançar o conga.
Retomando à matéria, o psiquiatra Paulo Mattos, da Universidade de São Paulo, afirma:
Os medicamentos do psiquiatra são aqueles que mais têm estigma. É muito comum
que o indivíduo tenha o receio de se tornar dependente do remédio e ele diga assim:
“Mas, Paulo, eu vou ficar prisioneiro desse remédio?”. O que o remédio vai fazer é
exatamente o oposto, ele vai lhe libertar de uma prisão da qual você não consegue
sair sozinho.

O primeiro ponto que chama a atenção no excerto é o médico ter se referido aos
psicofármacos como medicamentos do psiquiatra. De fato, se entendemos o consumo dessas
drogas associado ao discurso da psiquiatria sobre os transtornos mentais, fica evidente que o
campo psiquiátrico não apenas ministra esses medicamentos como também lança as bases
discursivas que amparam essas prescrições, o que torna a fala do médico bastante alinhada com
o campo ao qual pertence. Os psicofármacos não apenas são prescritos, mas originários e
legitimados no interior da psiquiatria. Sobre isso, Neves et. al (2020, p. 143) afirma:
O que ocorre tacitamente, porém, é que tanto a comunidade científica como a
sociedade civil passam a operar com a crença de que transtornos mentais são
transtornos fundamentalmente biológicos e, assim, impossíveis de serem
compreendidos por heurísticas pautadas em um aporte histórico, sociológico,
relacional etc.

A fala de Mattos é conclusiva ao afirmar a impossibilidade do paciente sozinho, ou seja,


sem o consumo de antidepressivo, libertar-se depressão, que ele vai comparar com uma prisão.
A liberdade seria, para o médico, promovida pelo uso do medicamento, que livraria o indivíduo
dos sintomas da depressão. Mas é sabido que o tratamento com psicofármacos não promove a
cura, mas uma espécie de tamponamento das emoções, na medida em que atuam na regulação
do funcionamento cerebral. Se essas drogas, em verdade, agem “enganando” o cérebro, pode-
se então questionar essa noção de liberdade que cria uma dependência entre o indivíduo e a
medicação e restringe sua capacidade de atuação diante do sofrimento.
Segundo Freud (2015), para pensar o sofrimento psíquico é preciso levar em conta a
moral civilizada, que pressupõe atuações sobre o social. O efeito de apagamento dos conflitos
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promovido por antidepressivos, ao mesmo tempo que viabiliza a adaptação aos horizontes de
uma ordem social do trabalho, promove um assujeitamento do depressivo.
Voltando à matéria, ainda sobre o consumo de psicofármacos, Mattos diz:
Mesmo quando o indivíduo não falta ao trabalho, existem estudos mostrando que a
produtividade dele cai muito. Então a depressão, ela custa para o indivíduo como
custa para a sociedade também. (grifos nossos)

Um ponto especialmente relevante para a inscrição da psiquiatria na lógica neoliberal


é a tentativa – com êxito, até o momento – de naturalização dos pilares da ideologia neoliberal.
É possível identificar a produtividade, o desempenho e o custo como termos-chave para a
construção do entendimento da depressão na fala do psiquiatra, apresentada anteriormente. O
que se vê, portanto, é um alinhamento entre o discurso da psiquiatria e os discursos
empresariais, que, atualmente, não apenas cobram o compromisso com a jornada de trabalho,
mas tentam alinhar o desejo do trabalhador – agora, colaborador – com os objetivos da empresa
(DARDOT & LAVAL, 2016). Ou seja, é preciso que o próprio funcionário se mobilize à
produtividade e à retidão, que “vista a camisa” da empresa, encontre o gozo em sua própria
performance laboral.
Quem tem a ganhar com essa mudança da relação com o trabalho, do sofrimento ao
gozo, é o sistema econômico, que seduz cada vez mais os trabalhadores valendo-se do discurso
da autossuperação, como se pode ver no depoimento de uma das vítimas da depressão
convocada pela série analisada: “É difícil? É. Mas é possível. Eu venci, estou aqui. Tenho um
apartamento legal, tenho uma profissão boa” (grifos nossos).
Nesse sentido, o depressivo, como um inadaptado a essa ordem do trabalho e da
produtividade, encontra no consumo de psicofármacos uma solução rápida para um problema
complexo. Aqui se evidencia como a ciência encontra ancoragem na economia e vice-versa.
Nesse contexto, as histórias de superação têm espaço cativo nos discursos que se
apoiam na racionalidade do sucesso e do desempenho. Na série de reportagens, a busca pelo
resgate do tônus da vida está bem exemplificado no testemunho da cantora Paula Fernandes:
Eu sou o exemplo de que a gente pode vencer a depressão sim, de que a gente pode
ser feliz sim. Eu renasci uma, duas três, e ainda vou renascer várias vezes. (grifos
nossos)

Para mobilizar as pessoas à ação, é necessário apresentar a elas histórias de sucesso. É


preciso dar provas de que a autossuperação é garantia do gozo. Os discursos de produtividade
e superação atuam na ordem da sedução e possuem as mesmas bases, conjugando interesses
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comuns alinhados à lógica de produção e consumo neoliberal.

V. Nem euforia nem depressão


O início da terceira reportagem da série retoma a discussão sobre o tratamento
medicamentoso da depressão, validando-o por meio de depoimentos de celebridades vítimas
da doença, como se pode ver nas transcrições das falas a seguir:
Eu vivo do humor, vivo de fazer rir, mas doença não escolhe profissão. Eu tenho
depressão. Eu tomei remédio durante 25 anos, eu fiz terapia… (Depoimento da atriz
e comediante Heloísa Perissé – grifos nossos)

Eu não tenho nenhum receio de dizer que eu enfrento a grande luta contra a depressão.
Eu continuo com o auxílio dos remédios e, sobretudo, com uma consciência muito
iluminada para perceber aquilo que na minha vida ainda é um gatilho para aquilo que
me adoece. (Depoimento do Padre Fábio de Melo – grifos nossos)

Entretanto, o foco de discussão da terceira reportagem da série analisada são as


aproximações e distanciamentos entre o diagnóstico da depressão e do transtorno bipolar 8,
outrora conhecido como psicose maníaco-depressiva, e como isso determina as prescrições de
tratamentos. Na matéria, o transtorno bipolar é definido pelo psiquiatra e neurocientista Diogo
Lara como
[…] uma oscilação do humor que não está de acordo com o que está acontecendo na
vida. Essas pessoas passam por fases depressivas e por fases eufóricas, com
aceleração de pensamento, impulsividade, irritabilidade, de maneira muito
desproporcional ao que está acontecendo na vida dessa pessoa. (grifos nossos)

O gancho para adentrar o assunto transtorno bipolar, na matéria, é justamente o


tratamento com psicofármacos, já que a reportagem mostra que o uso de antidepressivos nos
casos diagnosticados de transtorno bipolar podem agravar o quadro do paciente. Segundo a
reportagem, por terem quadros sintomáticos similares, os diagnósticos das duas enfermidades
podem ser confundidos, o que poderia implicar na prescrição equivocada de antidepressivos
para vítimas de transtorno bipolar.
Segundo a OPAS/OMS (2021), o transtorno afetivo bipolar
[…] afeta cerca de 60 milhões de pessoas em todo o mundo. Consiste tipicamente em
episódios de mania e depressão, separados por períodos de humor normal. Os
episódios de mania envolvem humor elevado ou irritado, excesso de atividade,
pressão de fala, autoestima inflada e uma menor necessidade de sono. As pessoas
que têm episódios de mania, mas não experimentam episódios depressivos, também

8 O transtorno bipolar é cientificamente chamado de transtorno afetivo bipolar (TAB) ou


perturbação afetiva bipolar (PAB). Seguiremos utilizando, neste artigo, a expressão transtorno bipolar por ser a
forma como a condição foi referenciada na série de reportagens em análise e também por ser o termo mais
popularmente disseminado.
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são classificadas como tendo transtorno bipolar. Estão disponíveis abordagens


eficazes para o tratamento da fase aguda do transtorno bipolar e para a prevenção de
novas crises. Trata-se de medicamentos que estabilizam o humor. O apoio
psicossocial é um componente importante na linha de tratamento.(grifos nossos)

A reportagem se alinha à definição da OPAS/OMS, pois destaca as características do


transtorno bipolar – em especial, as oscilações de humor – e alerta o público sobre a existência
de tratamento, que prevê o uso de psicofármacos, mais especificamente os chamados
reguladores de humor. A matéria está centrada em evidenciar as diferenças entre os quadros
depressivos e os quadros de transtorno bipolar, conforme se vê na narração de Varella:
Cabe ao psiquiatra investigar em profundidade o histórico do paciente para descobrir
se, ao longo da vida, ele teve o outro lado do transtorno bipolar, episódios que a
medicina classifica como euforia. Em casos mais graves de bipolaridade, a euforia
leva a uma excitação exagerada nas áreas do cérebro relacionadas às recompensas.
E aí é comum surgirem comportamentos compulsivos por álcool, comida, sexo,
gastos ou drogas. O tratamento adequado envolve estabilizadores de humor,
associados ou não a antidepressivos, terapia regular e muita disciplina dos hábitos do
dia a dia. (grifos nossos)

Como aqui não nos interessa adentrar na discussão sobre a bipolaridade, mas identificar
em quais aspectos ela se assemelha à depressão, alguns pontos chamam a atenção no trecho
destacado: a centralidade do papel do psiquiatra no diagnóstico da doença; os comportamentos
compulsivos; e a orientação ao tratamento que conjuga medicação, terapia regular e disciplina.
Os três pontos estão inequivocamente relacionados, mas centraremos nossa atenção, mais uma
vez, na orientação quanto ao tratamento.
Já exploramos anteriormente a atuação da psiquiatria e a relação desta com o consumo
de psicofármacos nos tratamentos da depressão. No contexto da bipolaridade, mais um
elemento agrega-se à discussão, os comportamentos compulsivos e a euforia, comuns entre as
vítimas de transtorno bipolar. Esses comportamentos, assim como a anedonia – típica dos
quadros depressivos – colocam os pacientes bipolares na categoria de inadaptados (SAFATLE,
SILVA JUNIOR, DUNKER, 2020). Note que as vítimas de transtorno bipolar são inadaptados
em duas frentes: na fase depressiva e na fase eufórica ou compulsiva. E é justamente por isso
que a prescrição do tratamento para esses pacientes não é tão simples. Observemos o
depoimento de uma vítima do transtorno apresentado na reportagem:
Tenho problema de relacionamento com as pessoas com as quais eu convivo. Por
uma explosão, solto um palavrão ou bato na mesa, não consigo manter o controle.
Por causa dessas situações, dessas reações de depressão, de choro, de não poder
encarar uma turma. (Professor universitário diagnosticado com transtorno bipolar –
grifos nossos)

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A narração de Varella, em off, complementa a fala do personagem da matéria:


Foram muitos rompantes desmedidos até que Pablo não conseguiu ir mais ao trabalho.
Professor universitário em João Pessoa [PB], Pablo passou 13 anos se tratando com
antidepressivos até receber o diagnóstico de transtorno bipolar. […]

A proposta de tratamento do transtorno bipolar, ainda que não seja exatamente a mesma
da depressão, segue uma lógica similar de normalização do comportamento e das emoções com
vistas à adequação do sujeito a uma ordem social. Com isso, não queremos dizer que o
sofrimento e a dor não existem. Mas queremos chamar a atenção para o perigo do entendimento
dos fenômenos psíquicos como simples portadores de uma justificativa ou explicação
bioquímica. O próprio termo reguladores de humor, que são drogas utilizadas no tratamento
da bipolaridade, convida-nos a refletir sobre o norte dessas intervenções propostas pelo campo
da psiquiatria. Se antes a medicina estava centrada no esforço curativo, hoje a adaptação do
paciente à ordem social vigente é o horizonte de tratamento.
É importante inserir nessa discussão a racionalidade reformatória que marca o
neoliberalismo. Ela explica não apenas o uso de psicofármacos como reguladores de humor,
por exemplo, mas também a mudança das categorias diagnósticas das doenças mentais para a
eufemização através do termo transtorno (Ibidem). Tal mudança facilita a identificação do
paciente com sua condição na medida em que apaga ou dissocia o transtorno mental dos
estigmas da loucura.
O caso particular da substituição do termo psicose maníaco-depressiva para transtorno
afetivo bipolar é emblemático, pois promoveu uma ruptura com o passado, repleto de estigmas,
não apenas da loucura, mas das psicoses, que remetem às internações compulsórias
(FOUCAULT, 2014a). A mudança da nomeação para transtorno afetivo bipolar retirou o peso
de uma bagagem histórica e possibilitou a abertura de um prognóstico mais favorável para a
doença.

VI. Considerações finais

A partir da análise da série Não tá tudo bem, mas vai ficar (2019), buscamos mostrar
que o discurso sobre a depressão vem sendo construído de maneira hegemônica pelo campo da
psiquiatria. A principal implicação disso é uma compreensão da doença do ponto de vista
estritamente bioquímico e, portanto, que ignora a dimensão histórica, social e política da
doença.
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A psiquiatria se inscreve na lógica de produção e consumo neoliberal e desempenha


hoje papel fundamental na gestão do sofrimento psíquico. Segundo Dunker (2020, p. 182), ao
instrumentalizar os discursos psiquiátricos, o sofrimento “pode ser metodicamente produzido
e administrado para aumentar o desempenho, e é isso que caracteriza o neoliberalismo no
contexto das políticas do sofrimento: individualização, intensificação e instrumentalização”.

A análise da série de reportagens mostrou, ainda, um esforço de desestigmatização


centrado no uso de psicofármacos nos tratamentos de transtornos mentais, entre eles a
depressão e o transtorno bipolar – antidepressivos e reguladores de humor, respectivamente .
Esse tipo de tratamento desloca a prática da medicina de um esforço em direção à cura para um
esforço focado na adaptação do paciente à ordem social vigente. Nesse sentido, os horizontes
do depressivo na contemporaneidade passam a ser o consumo de psicofármacos com vistas à
superação e à produtividade.

A discussão sobre o uso de medicamentos esteve presente nas três reportagens da série
e sobressaiu como alternativa de tratamento frente as psicoterapias ou outros itinerários
terapêuticos, mostrando-se ausentes, na matéria, alguns posicionamentos que entendemos
como fundamentais na disputa discursiva sobre a depressão: psicólogos, psicanalistas e
representantes do poder público.

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