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XXX Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP, 27 a 30 de julho de 2021
Resumo: O artigo analisa o discurso sobre a depressão no jornalismo evidenciando de que forma
alguns imperativos neoliberais aparecem nos dizeres das vozes de autoridade do campo da
psiquiatria e nas vozes de vítimas da doença. Tomamos como objeto de análise a série de
reportagem, de três episódios, Não tá tudo bem, mas vai ficar (2019), veiculada pelo programa
Fantástico, na Rede Globo. As discussões sobre a depressão tiveram como aporte teórico os estudos
de Kehl (2009); Safatle, Silva Junior, Dunker (2019, 2020); e Ortega (2008). A análise discursiva
(FOUCAULT, 2012) mostrou que o discurso de prevenção e orientação a respeito da depressão,
ainda que vise à desestigmatização da doença, se alicerça na lógica neoliberal da produtividade,
do individualismo e do incentivo ao consumo dos psicofármacos.
Abstract: The article analyzes the discourse on depression in journalism, highlighting the
neoliberal discursive structure in words of the authority voices in the field of psychiatry and of
other voices called to the discourse. We took as an object of analysis the three episodes series report
Não tá tudo bem, mas vai ficar (2019), broadcast by the program Fantástico, on Rede Globo. The
discussions on depression had as theoretical support the studies of Kehl (2009); Safatle, Silva
Junior and Dunker (2019, 2020); and Ortega (2008). The discursive analysis (FOUCAULT, 2012)
showed that the prevention and orientation discourse about depression, even though it aims at
destigmatizing the disease, is based on the neoliberal logic of productivity, individualism and
encouraging the consumption of psychiatric drugs.
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Sociabilidade do XXX Encontro Anual da Compós,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP, 27 a 30 de julho de 2021.
2 Amanda Borba da Silva: Doutoranda no PPGCom/UFPE, Mestrado,
amanda.borba7@gmail.com.
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1. Introdução
O Brasil é um dos países com alto índice de depressão entre a população, e encontra-se
em primeiro lugar no ranking da América Latina. Cerca de 6% dos brasileiros são vítimas da
doença (PAHO/OMS, 2019), e esse número aumenta quando passamos a considerar os casos
de transtorno de ansiedade. As condições de saúde mental são responsáveis, atualmente, por
cerca de 16% das doenças e lesões, a nível global, em pessoas entre 10 e 19 anos. Dados da
OMS apontam o suicídio como a terceira causa de morte entre adolescentes, de 15 a 19 anos
(PAHO/OMS, 2019). Dentre as motivações listadas está a depressão – juntamente a outras
psicopatologias, como a esquizofrenia e o transtorno afetivo bipolar. Embora seja mais comum
entre adolescentes e jovens, a depressão pode atingir pessoas de qualquer idade. Há quadros
depressivos na infância, na adolescência, na vida adulta e na velhice.
A depressão é uma psicopatologia grave, que necessita, primeiramente, de diagnóstico
para que seja iniciado um tratamento adequado. A mídia, nesse contexto, tem papel
fundamental na disseminação de informação sobre o assunto e no combate aos preconceitos e
estigmas sobre a doença.
Neste artigo, buscamos analisar a construção de um discurso jornalístico sobre a
depressão, utilizando como objeto de análise a série de reportagens Não tá tudo bem, mas vai
ficar (2019), veiculada pela Rede Globo no programa Fantástico, à luz da compreensão de que
o discurso jornalístico depende de suas condições históricas de possibilidade (FOUCAULT,
2012). Assim, sustentamos que a valorização da produtividade e do trabalho, bem como o
enaltecimento de um modelo neoliberal de felicidade no discurso sobre a depressão são frutos
de um contexto social, histórico e político específicos. Defendemos, ainda, que esse modelo
impõe ao sujeito depressivo parâmetros desafiadores e, muitas vezes, inalcançáveis de
adequação, como veremos mais adiante.
Buscamos mostrar que, no discurso jornalístico, o uso dos psicofármacos no tratamento
da depressão é apresentado – legitimado pelos dizeres hegemônicos do campo da psiquiatria –
como um caminho quase que inevitável, embora, como veremos a seguir, esse direcionamento
alinhe-se com uma perspectiva estritamente bioquímica da doença, ignorando o lugar do
sofrimento psíquico frente às exigências sociais e no atrito com as normas sociais hegemônicas
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(FREUD, 2015). Defendemos que essa última dimensão, embora não tenha sido sequer
mencionada na série de reportagens objeto de nossa análise, é fundamental para a compreensão
da depressão não apenas como uma doença, mas como uma patologia do social (SAFATLE;
SILVA JUNIOR; DUNKER, 2018).
Além disso, chamamos a atenção para as implicações da estreita relação entre a ciência
psiquiátrica e a lógica de produção neoliberal, comprometida em não mais expurgar os
inadaptáveis (FOUCAULT, 2014), mas em retificar “fragilidades, inconsistências e
precariedades humanas segundo o critério da produtividade máxima a todo momento”
(SAFATLE; SILVA JUNIOR; DUNKER, 2018, p. 163). Segundo Dardot e Laval (2017), há
uma mudança, neste sentido, da dinâmica da adaptação x exclusão, analisada por Foucault,
para uma dinâmica diferente, que conta com a captura dos desejos individuais e o engajamento
dos sujeitos, que passam a se alinhar à produção de uma ordem social condizente com os
imperativos neoliberais.
No primeiro tópico deste artigo, apresentamos dados estatísticos sobre a depressão no
Brasil e no mundo, os pressupostos de pesquisa e os aportes teóricos que norteiam a nossa
discussão. No segundo tópico, justificamos a escolha do objeto de análise, apontando algumas
características da série que foram relevantes para a seleção desta como foco de nosso estudo.
No tópico 3, “Felicidade compulsória e os discursos da produtividade e da superação”,
procuramos mostrar como os discursos da superação e da produtividade, bem como o modelo
de felicidade neoliberal estão presentes no discurso jornalístico sobre a depressão. O tópico 4
mostra como o incentivo ao uso de psicofármacos no tratamento de depressivos está presente
nos dizeres hegemônicos do campo da psiquiatria, que se estabelece como um verdadeiro
aliado da indústria farmacêutica. Além disso, o quarto tópico aponta a ausência de importantes
vozes no discurso jornalístico sobre a depressão, como psicólogos, psicanalistas e
representantes do poder público, o que têm implicações diretas na construção do discurso sobre
a depressão. Finalmente, no tópico 5, buscamos mostrar como os limites pouco definidos entre
o diagnóstico do transtorno bipolar e da depressão também se inserem na lógica de controle
dos comportamentos e do consumo de psicofármacos.
II. A série de reportagens “Não tá tudo bem, mas vai ficar” (2019)
Lançada em agosto de 2019, a série de reportagens Não tá tudo bem, mas vai ficar, de
três episódios, foi veiculada no Programa Fantástico, da Rede Globo, e tem como
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comuns para construir um argumento sobre a depressão: a de que ela é uma doença, com
sintomas específicos, e que precisa de tratamento. Como mencionamos, a reportagem 1 da série
centrou seus esforços em definir a depressão e apresentar um quadro de sintomas da doença,
valendo-se dos depoimentos de vítimas e do discurso médico sobre o assunto.
A partir dos testemunhos apresentados, é possível fazer algumas generalizações. Nos
relatos de Fernandes, identificou-se, de forma bastante evidente, o discurso da superação; no
músico e rapper Baco Exu do Blues, a depressão aparece como elemento de inspiração, que o
permite compor e, portanto, produzir. Já nos testemunhos das demais vítimas da doença, foi
possível identificar tanto o lugar do trabalho – e da produtividade – como elemento edificador
da vida como o discurso da superação como uma responsabilidade individual, muito coerente
com a noção do sujeito empreendedor de si.
A primeira cena da reportagem 1 da série é um palco vazio, onde deveria estar a artista
Paula Fernandes. Em seguida, a imagem é acompanhada da fala da cantora, em off: “É um
crime contra a própria natureza, porque eu tenho que ir lá sorrir agora, e eu estou chorando
aqui. Tá pesado, eu estou com problema, tá ruim, tá doendo (sic)”. Tanto a cena de um espaço
a ser ocupado (FIG. 1) quanto o depoimento são representativos do impacto que o imperativo
da felicidade – seja no âmbito profissional ou não – tem provocado no sujeito depressivo. A
democratização do espaço social trouxe, com o ideal igualitário de sociedade, a ideia de
felicidade como direito (BIRMAN, 2006), mas, não correspondendo aos anseios do Outro, nas
sociedades regidas por esse imperativo, da predisposição permanente a divertir-se e a gozar
(KEHL, 2009, p. 194), o depressivo recua e se isola.
FIGURA 1- frame da reportagem 1 da série “Não tá tudo bem, mas vai ficar” (2019).
FONTE - Reprodução internet
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A sensação de ser errado (ou infeliz) em um mundo certo (ou feliz) provoca a reclusão
do depressivo. O isolamento por longos períodos é um dos sinais de alerta elencados pelos
profissionais da saúde quando se trata da depressão e das orientações de prevenção ao suicídio
(OPAS/OMS, 2019). Nos tempos atuais, a infelicidade não aparece como opção na gôndola de
possibilidades apresentada pelo neoliberalismo, sendo a felicidade compulsória (DUNKER,
2021).
O isolamento, a solidão, a invasão do trabalho na vida privada, íntima, bem como as
lógicas da competitividade e da superação são fenômenos intensificados pelo neoliberalismo
(SAFATLE, SILVA JUNIOR, DUNKER, 2020) e têm efeitos negativos substanciais no
depressivo. É possível dizer que “quando o neoliberalismo altera nossa relação com o
sofrimento psíquico, tal como ele o faz com os ideais, […] ele produz performativamente novos
sujeitos” (SILVA JUNIOR, 2016). Isso porque os próprios sujeitos são transformados pela
lógica neoliberal e passam a gerir suas próprias vidas, entendendo a si próprios como empresas.
“Trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna” (ORTEGA,
1967, p. 32). Sobre esse aspecto, a psiquiatria vem assumindo papel fundamental a serviço do
consumo de psicofármacos – que abordaremos mais adiante.
Retomando a reportagem, a narração que segue à fala de Fernandes questiona,
retoricamente, “Quem não gosta de ver gente sorrindo?”. O depressivo certamente não se
negaria a um dia ou outro sem encarar a vida polida das supostas pessoas felizes. Fazendo
um paralelo com a experiência do isolamento social imposto pela Covid-19, Dunker (2021)
nota como o período de recolhimento da vida em casa como uma nova ordem representou uma
“trégua” para os depressivos, pois estes passaram a não ter mais a obrigação de sair à rua e
encarnar a sua versão performática da normalidade.
Um dos relatos apresentados pela série de reportagens exemplifica a importância da
performance no contexto social:
Eu sempre fui muito sorridente, muito de bem com a vida, converso com todo mundo,
dou risada… e, de repente, alguém chega e fala: ‘você está com depressão’.
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para ela:
[…] a depressão me ajuda muito a compor, cara. Todas as músicas falam sobre isso.
Inclusive, muita gente tá ali porque se identificou, porque não tá sozinha, não tá
sofrendo sozinha(sic).
Alguns pontos do depoimento merecem atenção: o horizonte da produtividade; a
demanda por identidade; e a discursivização da depressão como potência criativa. Comecemos
pelo último.
A relação entre depressão e genialidade ou criatividade remonta a história da
melancolia3 no ocidente. A melancolia pode ser entendida como uma psicopatologia-mãe, pois
foi uma das primeiras descrições de um estado de espírito que sinalizava uma desistência da
vida, do existir. O melancólico foi descrito por Hipócrates, na Antiguidade, como um sujeito
que estabelecia uma relação com a vida marcada pela dor, pelo sofrimento (DUNKER, 2021).
Aristóteles, em seus escritos, deu outra dimensão a melancolia, quando afirmou que
[…] os que possuem um temperamento levemente melancólico são pessoas comuns,
mas os que o têm em alto grau são bem diferentes da maioria das pessoas. Pois se a
condição deles é muito completa, eles são muito deprimidos; mas se possuem um
temperamento misto, são homens de gênio.
(ARISTÓTELES, 1971, p. 954-a-b)
Podemos inferir que a melancolia, estando nas origens da história dos sofrimentos
psíquicos, é uma prima distante da depressão. Dessa forma, alguns dizeres que circulam na
3 Embora não se possa confundir depressão e melancolia, defendemos que a história dos
melancólicos atravessa as origens da história da depressão enquanto sintoma social (FREUD, 2010).
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sociedade que atribuem à depressão certo grau de elitismo guardam relação com esse status
passado dos melancólicos. Tal compreensão da doença é responsável pelo estigma da depressão
como “doença de rico”4, o que implica na falta de visibilidade das ocorrências da doença nas
periferias e, consequentemente, na falta de assistência a essas vítimas.
Na reportagem analisada, a potência criativa da depressão é colocada, no relato do
rapper Baco, como garantia de produtividade esperada, ou imposta, já que o trabalho do artista
depende da composição de músicas, que, em sua maioria, trazem a depressão como tema. Em
“En tu mira” (2017), ele diz: “Baco, cadê o ano lírico/ o CD do ano/ Eles estão me cobrando/
Eu tô trabalhando”, e, mais adiante, o artista se indigna: “eu tô me matando, você está
aplaudindo”. Não por coincidência, o artista define a depressão como uma “corda bamba”.
Há um polo narcísico (DUNKER, 2021) na depressão que é potencializado por
experiências muito presentes na nossa cultura. Quanto mais o indivíduo foca em si mesmo,
ocupando-se em julgar suas atitudes, seu comportamento, medir-se e avaliar-se, mais se
aproxima de uma espiral de angústia. Na contemporaneidade, o imperativo da produtividade
cria sujeitos de avaliações de desempenho que incorporam a racionalidade do sucesso, que, por
sua vez, induz à criação de uma imagem de si cada vez mais bem-acabada.
Os relatos, ao longo das reportagens são intercalados com falas de especialistas (vozes
de autoridade) – em sua maioria, psiquiatras – que apresentam informações e dados estatísticos
sobre a doença. São essas informações, alicerçadas nos depoimentos, que direcionam a
construção do discurso sobre a depressão, centrado, na reportagem 1, em estabelecer um quadro
de sintomas da doença.
Assim, tristeza, desânimo, incapacidade de sentir prazer em atividades que, outrora,
davam prazer (anedonia 5 ), angústia, dor de cabeça, taquicardia, cólica, sensação de luto 6 ,
vontade de não viver, culpa, tremor corporal, falta de ar, queda de cabelo, perda de peso,
dificuldade de se relacionar, perda de apetite, insônia são alguns dos sintomas elencados na
reportagem. Varella, ainda, em uma passagem da narração, refere-se à depressão como um
FIGURA 2 – Frame da reportagem 1 da série “Não tá tudo bem, mas vai ficar” (2019).
FONTE – Reprodução Internet
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7 Dunker (2020, p. 201) lista algumas delas: distimia (transtorno depressivo persistente),
transtorno disruptivo da desregulação de humor, transtorno depressivo induzido por substância ou medicação,
depressão sazonal, entre outras.
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ajustada, como também azeitada, aperfeiçoada, de forma não apenas a continuar produzindo,
mas produzindo melhor. Na história das doenças mentais, a psiquiatria, como mostrou Foucault
(2014), desde sua origem, atuou como dispositivo teórico e prático de disciplinamento daqueles
que reagem ou não se adéquam à ordem do trabalho.
Se, no século XVII, o destino dos inadaptados era o confinamento em instituições
específicas – centros de internação, ou hospícios, para os loucos; cárcere, para os criminosos;
hospitais, para os doentes etc. (FOUCAULT, 2014a, 2014b) –, hoje podemos falar que o
horizonte reservado para o depressivo pelo campo da psiquiatria é o consumo dos
psicofármacos. Neves et al. (2020, p. 127) alerta que essas mudanças têm como pano de fundo
as transformações nas “matrizes psicológicas da episteme neoliberal e [são] delas
indissociáveis”.
Retomemos a narração da reportagem:
Se a doença [a depressão] se mostrar leve, geralmente a psicoterapia dá conta do
recado, mas com os casos moderados ou graves não se brinca. Para eles foram
criados os antidepressivos. A missão da maior parte desses medicamentos é melhorar
a comunicação entre os neurônios, as células do cérebro, para que volte a existir uma
quantidade adequada de substâncias químicas que geram bem-estar, como a
dopamina, a serotonina e a noradrenalina. Os antidepressivos prologam a ação
dessas substâncias na sinapse, que é justamente o espaço por onde os impulsos
nervosos são transmitidos de um neurônio para outro. (grifos nossos)
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O primeiro ponto que chama a atenção no excerto é o médico ter se referido aos
psicofármacos como medicamentos do psiquiatra. De fato, se entendemos o consumo dessas
drogas associado ao discurso da psiquiatria sobre os transtornos mentais, fica evidente que o
campo psiquiátrico não apenas ministra esses medicamentos como também lança as bases
discursivas que amparam essas prescrições, o que torna a fala do médico bastante alinhada com
o campo ao qual pertence. Os psicofármacos não apenas são prescritos, mas originários e
legitimados no interior da psiquiatria. Sobre isso, Neves et. al (2020, p. 143) afirma:
O que ocorre tacitamente, porém, é que tanto a comunidade científica como a
sociedade civil passam a operar com a crença de que transtornos mentais são
transtornos fundamentalmente biológicos e, assim, impossíveis de serem
compreendidos por heurísticas pautadas em um aporte histórico, sociológico,
relacional etc.
promovido por antidepressivos, ao mesmo tempo que viabiliza a adaptação aos horizontes de
uma ordem social do trabalho, promove um assujeitamento do depressivo.
Voltando à matéria, ainda sobre o consumo de psicofármacos, Mattos diz:
Mesmo quando o indivíduo não falta ao trabalho, existem estudos mostrando que a
produtividade dele cai muito. Então a depressão, ela custa para o indivíduo como
custa para a sociedade também. (grifos nossos)
Eu não tenho nenhum receio de dizer que eu enfrento a grande luta contra a depressão.
Eu continuo com o auxílio dos remédios e, sobretudo, com uma consciência muito
iluminada para perceber aquilo que na minha vida ainda é um gatilho para aquilo que
me adoece. (Depoimento do Padre Fábio de Melo – grifos nossos)
Como aqui não nos interessa adentrar na discussão sobre a bipolaridade, mas identificar
em quais aspectos ela se assemelha à depressão, alguns pontos chamam a atenção no trecho
destacado: a centralidade do papel do psiquiatra no diagnóstico da doença; os comportamentos
compulsivos; e a orientação ao tratamento que conjuga medicação, terapia regular e disciplina.
Os três pontos estão inequivocamente relacionados, mas centraremos nossa atenção, mais uma
vez, na orientação quanto ao tratamento.
Já exploramos anteriormente a atuação da psiquiatria e a relação desta com o consumo
de psicofármacos nos tratamentos da depressão. No contexto da bipolaridade, mais um
elemento agrega-se à discussão, os comportamentos compulsivos e a euforia, comuns entre as
vítimas de transtorno bipolar. Esses comportamentos, assim como a anedonia – típica dos
quadros depressivos – colocam os pacientes bipolares na categoria de inadaptados (SAFATLE,
SILVA JUNIOR, DUNKER, 2020). Note que as vítimas de transtorno bipolar são inadaptados
em duas frentes: na fase depressiva e na fase eufórica ou compulsiva. E é justamente por isso
que a prescrição do tratamento para esses pacientes não é tão simples. Observemos o
depoimento de uma vítima do transtorno apresentado na reportagem:
Tenho problema de relacionamento com as pessoas com as quais eu convivo. Por
uma explosão, solto um palavrão ou bato na mesa, não consigo manter o controle.
Por causa dessas situações, dessas reações de depressão, de choro, de não poder
encarar uma turma. (Professor universitário diagnosticado com transtorno bipolar –
grifos nossos)
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A proposta de tratamento do transtorno bipolar, ainda que não seja exatamente a mesma
da depressão, segue uma lógica similar de normalização do comportamento e das emoções com
vistas à adequação do sujeito a uma ordem social. Com isso, não queremos dizer que o
sofrimento e a dor não existem. Mas queremos chamar a atenção para o perigo do entendimento
dos fenômenos psíquicos como simples portadores de uma justificativa ou explicação
bioquímica. O próprio termo reguladores de humor, que são drogas utilizadas no tratamento
da bipolaridade, convida-nos a refletir sobre o norte dessas intervenções propostas pelo campo
da psiquiatria. Se antes a medicina estava centrada no esforço curativo, hoje a adaptação do
paciente à ordem social vigente é o horizonte de tratamento.
É importante inserir nessa discussão a racionalidade reformatória que marca o
neoliberalismo. Ela explica não apenas o uso de psicofármacos como reguladores de humor,
por exemplo, mas também a mudança das categorias diagnósticas das doenças mentais para a
eufemização através do termo transtorno (Ibidem). Tal mudança facilita a identificação do
paciente com sua condição na medida em que apaga ou dissocia o transtorno mental dos
estigmas da loucura.
O caso particular da substituição do termo psicose maníaco-depressiva para transtorno
afetivo bipolar é emblemático, pois promoveu uma ruptura com o passado, repleto de estigmas,
não apenas da loucura, mas das psicoses, que remetem às internações compulsórias
(FOUCAULT, 2014a). A mudança da nomeação para transtorno afetivo bipolar retirou o peso
de uma bagagem histórica e possibilitou a abertura de um prognóstico mais favorável para a
doença.
A partir da análise da série Não tá tudo bem, mas vai ficar (2019), buscamos mostrar
que o discurso sobre a depressão vem sendo construído de maneira hegemônica pelo campo da
psiquiatria. A principal implicação disso é uma compreensão da doença do ponto de vista
estritamente bioquímico e, portanto, que ignora a dimensão histórica, social e política da
doença.
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A discussão sobre o uso de medicamentos esteve presente nas três reportagens da série
e sobressaiu como alternativa de tratamento frente as psicoterapias ou outros itinerários
terapêuticos, mostrando-se ausentes, na matéria, alguns posicionamentos que entendemos
como fundamentais na disputa discursiva sobre a depressão: psicólogos, psicanalistas e
representantes do poder público.
Referências
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