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A caixa de brinquedos

Há muito tempo os medos de infância de Clarice não a visitavam. Estava metida agora numa
trama em que precisaria mentir, barganhar, dissimular. As perguntas de quando era menina se
repetiam, embora com uma máscara nova: “Como escondo o que fiz?” Não queria ser
castigada. Mesmo aos quarenta e sete anos estava sempre na corda bamba temendo ser posta
para fora do coração de alguém. Amava os sobrinhos, não queria ser xingada ou enxotada.
Teria apenas algumas horas para se livrar de qualquer prova, qualquer rastro deixado na casa.
Teria de resolver sozinha, como quarenta anos atrás, a confusão na qual havia se metido.

Recuperando o fôlego, apoiada na pia de mármore da cozinha, abriu a torneira, deixou a água
jorrar por cima do pescoço e arquitetou rapidamente o que seria feito. Prendeu os cabelos,
enxugou o rosto com um pano de prato, fechou as abas da caixa sem olhar e afastou-a
vagarosamente com o pé; esconderia a caixa atrás da porta, ao lado do fogão para que as
crianças não notassem.

Quando moveu a caixa com o pé, uma pontada forte de vergonha paralisou Clarice. Pensou
em Milady. Talvez o espírito dela estivesse vendo tudo e jamais deixasse a mulher em paz.
Milady a assombraria durante a noite, atirando miaus fumarentos nos seus sonhos
transformando as noites em insônia e medo, afinal uma mãe jamais esquece. Clarice devorava
as unhas procurando pela cozinha o espírito de Milady.

Depois da vergonha veio um sentimento mais constrangedor, algo que Clarice não sabia
nominar. Como seria horrível se Milady não tivesse morrido no parto e estivesse viva para
sentir a dor de perder os filhotes! Seria impossível as suas vidas juntas depois daquilo. Milady
ficaria triste para sempre. Clarice ficou assombrada com o que sentia e chutou a caixa que
escorregou pelo piso até a porta. A velocidade fez a caixa se agitar, uma aba abriu. Clarice se
apressou, fechou a caixa mas não conseguiu escapar do que viu, ainda que numa fração
(infinita) de segundos: os filhotes imóveis, os corpinhos molengas repousando como se
dormissem tranquilamente. Um deles morrera de olhos abertos. Clarice não suportou ver
aqueles olhos azuis sem nenhum brilho, estáticos. Eles ficariam pousados nela eternamente. E
os de Milady também. Os filhotes tinham os seus olhos.
***

Depois de esconder a caixa, Clarice vasculhou por toda a casa até encontrar todo o veneno
que havia distribuído. Debaixo do sofá, debaixo do armário da cozinha, debaixo da máquina
de lavar e do fogão. Havia pedacinhos de pão com veneno por todos os cantos. Às vezes,
encontrava um rato morto e, por um instante, se alegrava, afinal o veneno não tinha sido tão
inútil. Mas logo se recordava da catástrofe, da destruição em massa que aquele maldito
veneno para ratos havia provocado. Recolheu tudo, passou desinfetante na casa inteira. Não
deixou rastro, exceto a caixa com os gatinhos mortos que preferiu esconder até ter coragem
de pedir para Otávio jogá-los fora. Disto não dava conta. Estava envergonhada demais, sabia
que não deveria ter colocado o veneno tendo filhotes em casa, era arriscado, mas os ratos
estavam comendo tudo, havia fezes por todos os lados, Milady morreu e eles tomaram conta
da casa.

Clarice limpou tudo e tomou banho. Desceu com o estômago na mão, quando ouviu as
crianças chegarem. Elas sempre faziam muito barulho ao voltarem da escola, atiravam as
mochilas no chão, se empurravam. Clarice sempre dava as ordens: “Recolham essa bagunça,
vão tirar o uniforme, já para o banho!” Naquela tarde fez diferente: ofereceu um guaraná, fez
pudim de coco, não precisariam fazer as tarefas antes de sair para brincar. As crianças
fizeram festa ao seu redor: “Viva a tia Clarice, viva!” Agarraram-na pela cintura e quase
derrubaram a tia que sorria aliviada por ninguém ter se lembrado dos filhotes.

***

Faltava pouco para Otávio chegar, as crianças já haviam feito a lição. Queriam sempre
brincar. “Deixa a gente sair, tia, deixa.” Clarice deixaria sem resistência alguma. “Deixo sim,
meus amores, vão brincar, podem ir.” Ela folheava tranquilamente uma revista, sentada no
sofá usando suas pantufas. O espírito de Milady não era mais um problema, afinal tinha mais
medo dos vivos, pois eles sim poderiam deixar de amá-la. As crianças não suspeitavam de
nada, Otávio chegaria em algumas horas para finalizar tudo, não havia com o que se
preocupar. Mergulhou na leitura tranquila de sua revista sobre vinhos. As crianças entravam e
saíam correndo, cada hora precisavam de alguma coisa da casa: “Vim buscar meu baralho” ─
disse Aninha, a mais velha e abriu a gaveta da mesinha da sala. Clarice quase não a viu;
depois Paulinho, o sobrinho do meio: “Tia, posso pegar minha bicicleta na garagem?” Ela
permitiu. Otávio ligou, estava quase chegando, passaria no shopping antes. “Um vinho, que
tal?” Clarice adorou a ideia, agradeceu a gentileza e, imersa na conversa, pouco percebeu
quando Renatinha, a mais nova, passou correndo: “Preciso da minha caixa de brinquedos, tia,
preciso dela urgente, urgente”. Clarice fez um gesto de consentimento, mas era na voz de
Otávio que sua atenção estava. A menina então correu até o pátio, atravessando a porta da
cozinha como um foguete. Não achou a caixa. Parou um instante na porta entre o pátio e a
cozinha. Com a mão no minúsculo queixo refletiu, refez seus passos nos últimos dias: onde
deixou a caixa da última vez? Procurou na cozinha e, se achando uma boba que nunca sabia
onde deixava as próprias coisas, pegou a caixa atrás da porta, ao lado do fogão: “Arrá!
Achei”.

Renatinha voltou depressa, embora o peso da caixa a fizesse adequar os passos à necessidade
de equilíbrio. Passou pela sala soltando um beijo para a tia. Clarice, que já havia desligado o
telefone e folheava novamente sua revista, devolveu o beijo estalado dizendo: “Coisa linda da
tia”. Renatinha saltitou pela porta gritando para que as outras crianças na calçada viessem
escolher um brinquedo da sua caixa. A menina sorria, glorificada por possuir uma espécie de
caixa mágica da diversão. Logo uma chusma de crianças a recebeu na calçada, as pequenas
mãos estendidas. Eufóricas, gritavam vorazes pela brincadeira: “Eu quero um, eu quero um,
me dá um”. Clarice, da sala, ao ouvir a alegria das crianças, sentiu o corpo estremecer de
pavor.

Autora: Taylane Cruz

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