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76 Pulsional Revista de Psicanálise

76 Clínica do Social
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, no 142, 76-87

$em?*

Karin Slemenson

presente artigo pretende discutir a ampliação do acesso da comunidade


O à psicanálise. Neste contexto surge a circunstância da falta de dinheiro
como elemento que interroga o conjunto da prática psicanalítica. A reflexão
conduz à idéia de que a possibilidade de uma análise se estabelecer sem dinhei-
ro é admitida em caráter transitório e pelo compromisso do analista com a
psicanálise. É considerado também que ambos critérios de admissão sejam deci-
sivos para o estabelecimento da prática psicanalítica de forma geral, seja sem
ou cem a cunhagem da cifra a ser incluída na experiência analítica.
Palavras-chave: Clínica social, clínica psicanalítica, dinheiro, instituição psicanalítica

T his article presents a discussion on making psychoanalytic procedures more


accessible to the community at large. I this context, the circumstance of lack
of money comes up as an aspect that puts the field of psychoanalytical practice
into question. This discussion leads in turn to the idea that the possibility of
psychoanalysis taking place without money is accepted as a temporary
circumstance and through the analyst’s commitment to the psychoanalysis. The
author also holds that both criteria for admission are decisive for establishing a
psychoanalytic process in general, whether or not money is included in the
psychoanalytic experience.
Key words: Social clinic, psychoanalytic clinic, money, psychoanalytic institute

* Este artigo aborda de forma condensada tema tratado em dissertação de mestrado apresenta-
da à PUC-SP em setembro de 2000, sob o título “Sem ou Cem? Sobre a inclusão e o manejo do
dinheiro numa psicanálise”.
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o contexto contemporâneo, depa- a questão do dinheiro ligada à clínica psi-


N ramo-nos com algumas experiên-
cias institucionais que visaram a possi-
canalítica.
A caracterização do Fórum de Psicaná-
bilitar o acesso à psicanálise a parcelas lise assumida pela Instituição não é a de
mais amplas da sociedade. Inseridas em uma instituição dedicada a uma “espe-
condições culturais ou de trabalho dife- cialidade clínica” – como, por exemplo,
renciadas, estas instituições depararam- tratamento infantil, drogadição... ou clí-
se com a questão da “escassez” de nica sem dinheiro –, mas sim a de uma
dinheiro, uma vez que o tema escassez instituição marcada por uma singularida-
tem demonstrado ser tanto transcultural de, qual seja, a disposição de confron-
como transhistórico, vendo-se, assim, tar-se com particularidades e dilemas da
com a tarefa de produzir um posiciona- clínica psicanalítica.
mento frente à questão. Desta forma, por sua oferta de escuta
É possível considerar que tal posiciona- psicanalítica dirigida à ampla sociedade,
mento em relação à questão da escas- inclusive àqueles com baixa ou mesmo
sez do dinheiro e de seu manejo nestas nenhuma renda, o que o Fórum de Psi-
instituições impôs-se como “questão para canálise pretende instituir, não é um traço
a psicanálise”, em conseqüência de seus identificatório para viabilizar sua prática,
propósitos institucionais, que pretende- mas, como está sugerido desde a esco-
ram sustentar um destino para a clínica lha de seu nome, instituir um fórum de
psicanalítica voltado à sociedade num discussões no qual as questões sobre o
sentido mais ampliado, segundo crité- que é uma psicanálise, o que é um psi-
rios de inclusão/exclusão próprios à psi- canalista e qual a responsabilidade social
canálise. própria à psicanálise e ao psicanalista
Colocando em perspectiva este destino possam manter-se investidas a partir de
da clínica psicanalítica, a inclusão das uma prática.
questões articuladas pelo dinheiro Disso segue a possibilidade de reconhe-
precipita a elaboração de uma trajetó- cer o movimento de levar às últimas
ria que desaloja o dinheiro das conseqüências o compromisso com as
identificações imaginárias, produzidas particularidades envolvidas pela função
no campo social, para inseri-lo no cam- psicanalítica e de constituir um laço so-
po clínico psicanalítico strictu senso, cial entre analistas segundo as exigências
cuja ênfase recai sobre os efeitos Sim- destas particularidades e, a partir disto,
bólicos e do Real que estas questões relançar a questão da inclusão e do ma-
passam a engendrar. nejo do dinheiro como sendo da ordem
É no esteio destas idéias que proponho da função significante para o Sujeito. Ao
tomar o contexto da prática clínica que relançar assim tal questão, ou seja, ao
venho desenvolvendo no âmbito do Fó- pensar o dinheiro como efeito, e não
rum de Psicanálise, instituição fundada causa da especificidade da conjunção em
em 1996, da qual participo, para tratar que se instituiu o Fórum de Psicanáli-
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se, fica inexoravelmente posta a indaga- são/inclusão na experiência psicanalítica


ção sobre o que implica o dinheiro numa e que gerou o confinamento observado
psicanálise para todos aqueles compro- em sua práxis.
metidos em fazer a psicanálise avançar. Ao propor o enfrentamento da questão
O que se configura neste contexto é a da ampliação do acesso à psicanálise, o
pertinência da discussão que aponta para Fórum de Psicanálise considera os ris-
o dilema dinheiro vis a vis a possibilida- cos implicados nessa prática e nesta
de analítica. perspectiva, pretende não recuar diante
Assistimos a um confinamento da psi- dos pedidos de análise que puderem ser
canálise a uma população delimitada, ge- formulados, mesmo em condições onde
ralmente constituída por aqueles de o pagamento seja necessariamente for-
poder aquisitivo alto ou relativamente alto mulado sem a presença da cédula
e por analistas em formação. Este con- monetária. Tal decisão implica questões
finamento tem como efeito uma redução concernentes ao analista, ao analisante e
da experiência psicanalítica, tanto no à própria ética envolvida na psicanálise.
sentido qualitativo – pela imputação de É exatamente esta discussão que enca-
um critério econômico de inclusão ou minho sob o tema dinheiro numa
exclusão – como quantitativo: poucas psicanálise.
pessoas podem submeter-se a uma aná- A perspectiva para esta reflexão é a de
lise num país como Brasil. Assim sen- que o encaminhamento produtivo da
do, se num primeiro momento a práxis questão proposta se faz possível apenas
psicanalítica vem excluindo grande par- através de um duplo deslocamento, a
te da população por este critério (eco- saber, o deslocamento do dinheiro da
nômico), ainda que estabelecido arena socioeconômica para o domínio
lateralmente, num segundo momento, da economia psíquica; e do deslocamen-
esta exclusão induz ao questionamento to da investigação do significado do di-
de sua pertinência e coloca em pauta sua nheiro, para o privilégio da função
própria exclusão como praxis. Particu- significante do dinheiro o que nos reme-
larmente, acredito que é o caso de nos te ao próprio campo da pesquisa psica-
perguntarmos quais são as possibilida- nalítica.
des da psicanálise se manter “viva” nessa Nestes domínios, o dinheiro – em falta
condição tão restritiva? Saindo desse ou em excesso – é passível de outras
confinamento? Para tanto, parece pre- tantas atribuições. Isto significa dizer
mente pesquisar o que pode ser o fator que, no que mais precisamente interes-
econômico para uma psicanálise e, des- sa ao recorte operado no trabalho, isto
sa forma, procurar meios de ampliação é, a falta de dinheiro, é possível aventar
da experiência analítica que concomitan- que esta falta possa estar referida a toda
temente zele por algo de legítimo que e qualquer sorte de falta, mais exatamen-
possa estar implicado no estabelecimento te toda e qualquer “coisa” que aponte
de tal critério como sendo o de exclu- para a falta.
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Aventa-se aqui que seja possível uma cer- significado comum entre ambos. Então,
ta inclusão e manejo do significante o que circula e faz função é o signifi-
dinheiro que o leve em conta como ca- cante [dinheiro] e não o significado [do
paz de engendrar a série de objetos dinheiro]. Resta saber como operar e
marcados pela castração e que, portan- sustentar este limite pela circulação de
to, se referindo ao ponto de interseção dinheiro, algumas vezes, exclusivamen-
entre necessidade (ou seja, satisfação te na realidade do discurso em análise,
pulsional na imediaticidade do corpo), como seria o caso de uma análise na
demanda (como transcrição do desejo no qual a cédula falta.
plano da linguagem) e desejo (como pres- É imprescindível notar que o que é co-
são da força gerada pela falta-a-ser). locado visa fundamentar uma proposta
Se for assim, a questão do dinheiro cir- que pretende marcar um campo de es-
cunscreve a própria “arquitetura” e a cuta da questão do dinheiro em
própria “economia” do desejo do sujei- psicanálise, sem pretender inscrever-se
to, do ciframento que permite a como uma discussão sobre a essência
construção da condição de deciframen- do dinheiro. Até porque, ao definir-se
to. A idéia envolvida aqui é a de uma aqui por uma doutrina do significante,
operação mais complexa do que uma sim- está-se abdicando da idéia de substân-
ples transposição de campos, de uma cia em benefício da apreensão da
“tradução”, mas de estabelecer parâme- estrutura.
tros para a construção de uma condição Se aceitarmos estas idéias, concordare-
de possibilidade de “deciframento”, tal mos que, na condução de um processo
como concerne a uma psicanálise. analítico, não se pode restringir o dinhei-
Outro ponto importante para a discus- ro à presença física da moeda ou às
são é o de que na relação transferencial quantidades previamente definidas num
estabelecida em uma análise, o dinheiro, contrato ou mesmo ao cumprimento
em sua dimensão significante, circula no pontual do pagamento; menos ainda
espaço entre as partes envolvidas no pro- prescrever segundo tal critério, o da pre-
cesso, não se fixando nem de um nem sença ou ausência da cédula monetária,
de outro lado dessa relação, mas na sua a possibilidade do tratamento psicanalí-
mediação. Tratando-se de uma função tico. É possível considerar que cédula
significante do dinheiro, tal como apon- e pagamento podem não coincidir (sem
tada anteriormente, mediar implica ou cem?). O que está em foco é o que
agenciar, como um terceiro elemento, ir- disso é falado e que está na dependên-
redutível, que intervém e até mesmo cia de uma escuta diferenciada. Como
divide ou faz furo nos dois primeiros en- o dinheiro é incluído e manejado em
volvidos na relação. A circulação do uma análise?
dinheiro marca limites para o analista e Nesta direção, é possível articular o di-
para o analisante, justamente pela impos- nheiro em relação aos deslocamentos de
sibilidade de constituir um sentido, um investimentos entre os diferentes obje-
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tos, dos investimentos pulsionais/libidi- pletude implicada no desejo (Quinet,


nais em sua dimensão de grandeza, os 1991) que marca uma condição de fal-
quais [paradoxalmente] não podem ser ta-a-ser (não completo). Há, no entanto,
quantificados, medidos, ou identificados uma outra vertente que interessa na
aos objetos que evoca. apreensão do dinheiro como metáfora
Nestas circunstâncias, o dinheiro pro- dessa falta-a-ser.
move um ciframento dessa grandeza Se em uma análise o dinheiro é tomado
quantitativa que só é apreensível em sua como um elemento significante da con-
manifestação dinâmica de satisfação dição desejante do analisando, isto é,
realizada de forma parcial, por exemplo, destituído de substância, este será ofe-
no sintoma e na transferência analítica, recido segundo uma referência particular
ou seja, nas operações que incluem os de valor e na medida em que o sujeito
índices do desejo. esteja disposto a livrar-se dos ganhos
A possibilidade de ciframento abre a advindos do sofrimento gerado por seu
perspectiva de pensarmos metaforica- sintoma [seu gozo]. Tal disposição de
mente a idéia de libido como capital e pagar por uma análise envolve, do pon-
do dinheiro como operador do montan- to de vista da economia psíquica do
te das realizações “libidinais” para o sujeito, perda narcísica. Então, em uma
inconsciente (o Outro capitalista). análise, paga-se para perder.
Se o dinheiro oferece-se como signifi- O trabalho de elaboração implicado numa
cante, sobretudo dos deslocamentos do análise incide justamente na modificação
desejo gerados pela condição de falta-a- da economia psíquica (pulsional/libidinal)
ser, em que o desejo é sempre desejo de envolvida na manutenção do sintoma do
outra coisa, seu sentido de valor de tro- paciente. Talvez isso possa dirigir-nos
ca ou de utilidade atribuído pela para a idéia de que, no que tange uma
mercadoria e pelas leis de seu mercado análise, o que importa é que o que o su-
está perdido de vista (ou de escuta). O jeito em análise paga, seja pago desde
que vemos manifestar-se pelos parâme- seu narcisismo.
tros estabelecidos da economia libidinal O que o sujeito perde numa análise é
refere-se ao trabalho gerado pelas ope- parte de seu narcisismo, o que lhe im-
rações pulsionais, cujo valor é de põe uma nova economia libidinal na
inutilidade, já que está referido a um ob- assunção de sua condição “faltante”, de-
jeto (mercadoria?) mítico. sejante. Levando em conta os aspectos
O dinheiro abordado em sua dimensão apontados, é pertinente dizer: se há uma
significante introduz, justamente, o ca- análise em curso, esta é sempre cara,
ráter suplementar da relação de desejo e pelo narcisismo que se perde [ainda que
objeto, quer dizer, ocupando o lugar do no senso comum esta possa ser dita
objeto faltante (fálico) sem preencher a “gratuita”, por não envolver a circulação
falta, a denúncia. da cédula monetária]; o valor a ser pago
O dinheiro, então, metaforiza a incom- é sempre simbólico, pois é dado por um
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ciframento em referência a esta perda; Há algo na idéia de gratuidade que só


e o dinheiro [cifra] é um dado do Real, pode ser escutado na transferência e
pela impossibilidade de efetivar-se como que, portanto, exige seu estabelecimen-
objeto e com isso encerrar a dívida [que to para um posicionamento quanto a
é simbólica]. inclusão e manejo da questão em uma
psicanálise.
DEIXANDO-SE ENGANAR
Certamente não é possível considerar a
Na perspectiva exposta, trata-se de in- idéia de uma psicanálise sem dinheiro de
cluir o dinheiro também através da idéia forma ingênua e apressada. Mas deve-
de gratuidade; inclusão esta que se cons- se considerar que a questão do paga-
titui em um ato. Muitas vezes o ato mento em uma psicanálise não pode ser
inaugural do estabelecimento da transfe- reduzida ao fato e ao momento da en-
rência. O ato de ouvir algo “disso”. Por trega de dinheiro ao analista, uma vez
outro lado, a exclusão da possibilidade que articula questões relevantes para o
de se admitir uma análise segundo uma trabalho psíquico, o qual pretende-se
idéia preestabelecida e definitiva de que seja produzido na relação transferen-
gratuidade1 estaria alinhada à decisão de cial estabelecida. O dinheiro e o paga-
nada querer saber “disso”; da exclusão mento tampouco poderiam ser elimina-
da falta, tal como esta encontra-se arti- dos de tal cenário. Trata-se de que for-
culada pela falta de dinheiro, do limite mas tais elementos se fazem presentes
como aparece colocado, do inaudito e, numa análise.
por que não dizer, da morte. Se é assim, há que se perguntar se as
Então, como sugere Martin (1984): “O questões articuladas pelo dinheiro, apon-
que a morte deve ao dinheiro?” ou “o que tadas aqui, encontram-se lá, sempre que
o dinheiro deve à morte”? Perda narcísi- a cédula esteja e, por outro lado, se há
ca? Supõe-se que do lado do analista este a possibilidade dessas questões ganha-
[seu narcisismo] já tenha sido abalado... rem voz, entrarem em circulação, em
Ora, não seria um engodo tomar qual- circunstâncias nas quais a cédula não es-
quer elemento como preestabelecido e teja, se levamos em conta que o que o
definitivo no estabelecimento de uma pagamento implica é concernente ao
psicanálise? Não seria esta medida cor- analista, ao analisante e à própria ética
relata ao estabelecimento de um candi- envolvida na psicanálise, e não ao mer-
dato ideal para a experiência analítica e, cado. Esta é uma pergunta a ser
conseqüentemente, uma idealização da respondida por uma prática.
própria psicanálise e porque não dizer do Este caminho de reflexão conduz à idéia
psicanalista? de que a possibilidade de uma análise se

1. Não seria isto tomar um significante por significado, gratuidade = não pagar. Por exemplo,
como num possível desdobramento, é possível considerar que “pagar nada” seja o mesmo que
“nada pagar” ou “não pagar”?
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estabelecer sem dinheiro seja admitida dula, ou seja, nos preceitos da ética do
em caráter transitório e pelo compro- desejo que circunscreve a psicanálise.
misso do analista com a psicanálise. É Nesse recorte cabe discernirmos uma
considerado também que tanto o cará- tripla realização, no que tange o que se
ter transitório, quanto o compromisso do realiza como pagamento em uma análi-
analista com a psicanálise sejam elemen- se: a) O que o psicanalisando paga nos
tos decisivos para o estabelecimento da diferentes momentos de sua análise; b)
prática psicanalítica de forma geral, seja O que o psicanalista paga na direção de
sem ou cem a cunhagem da cifra a ser uma análise; e c) O que o psicanalisan-
incluída na experiência analítica. do paga através do psicanalista em uma
análise.
DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA À
É reconhecível numa análise o momen-
TRANSFERÊNCIA DE TRABALHO
to no qual o próprio analisante vê-se
Propõe-se aqui a possibilidade de pen- comprometido com sua análise e não
sarmos que a resposta para a pergunta com o analista; neste contexto vê-se pa-
sobre o que move um psicanalista para gando por sua palavra, por sua análise.
a ação, tal como proposta pelos analis- Mas quem faz possível este pagamento
tas do Fórum de Psicanálise, em cir- à psicanálise é o analista que assumiu um
cunstâncias que incluem a possibilidade “custo” e, portanto, também algo paga:
de não receber dinheiro por sua escuta, paga com sua palavra, com sua pessoa
encontra sua legitimidade na perspecti- e com seu juízo mais íntimo na ação que
va que a excede, ou seja, a de sua pro- vai ao cerne do ser (Lacan, 1958). Tra-
dução do discurso do psicanalista. ta-se do “custo” da própria psicanálise.
É nesse âmbito, o do elo social, que reú- E ainda seria possível pensar que seja na
ne psicanalistas no Fórum de Psicaná- esfera da Transferência de trabalho que
lise, que está fundamentada a circuns- cabe demarcar uma função analítica para
crição de um campo de transmissão, a própria instituição psicanalítica, como
inclusive em seu propósito de admitir o é o Fórum de Psicanálise, a saber, a
para tal a possibilidade de análises sem de implicar, para o analista ligado a esta,
pagamento com dinheiro em certos ca- um limite à sua condição de, por um
sos, fato que, ao meu ver, só pode ser lado, não receber dinheiro por vir a de-
sustentado por uma Transferência de tra- sempenhar a função de analista e, por
balho com a psicanálise. Por uma Trans- outro lado, a de arcar com um custo
ferência de trabalho que visa fazer pro- pago à psicanálise.
gredir ademais do sujeito em uma Constituir-se numa reunião de psicana-
psicanálise, a própria psicanálise. listas, faz das questões concernentes à
Se assim for, faz-se do “valor” entregue formação “pauta do dia”, sobretudo con-
pelo analisante um pagamento à psica- siderando-se que a posição e crítica que
nálise, e este há de ser buscado para cada analista ligado ao Fórum de Psica-
além ou aquém da materialidade da cé- nálise mantém em relação à concepção
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de formação e em relação à sua própria nhum terceiro, pode endossar a cientifici-


formação é implicada nesse momento da dade da experiência. A tal título continua
transmissão marcado por um laço insti- sendo não inefável, mas inverificável.
tucional que pretende dar voz a uma É importante mencionar que o propósi-
outra particularidade da psicanálise: a de to de uma oferta de análise dirigida à
que cada analista responsabiliza-se por ampla população excluída do acesso a
seu desejo de analista. esta experiência, se levada a sério, deve
E qual é o desejo do analista? Uma res- ser considerada segundo as condições
posta possível, embora careça de escla- que lhe são próprias. Isto é dizer: a ex-
recimentos, seria o desejo de fazer valer pectativa da existência de uma “massa”
a diferença. A diferença como sendo a que abraçaria com entusiasmo essa cau-
própria possibilidade de existência do in- sa, a da psicanálise, está fadada à
consciente freudiano. A diferença que o frustração.
pai introduz entre uma mãe e seu bebê. Ao contrário, o próprio fundador do
A diferença que impõe ao psiquismo uma campo analítico, Freud, sempre incluiu
organização, um ponto de âncora, uma em suas considerações os vários níveis
lei. A diferença operada pela linguagem de resistência à psicanálise e, no final de
em suas composições de pura diferença sua vida, teria declarado a Binswanger
das letras, separando desejo e Gozo. A que “não há coisa alguma para a qual o
diferença que estabelece a possibilidade homem, por sua organização, seria me-
de algum acesso ao inconsciente, ao fe- nos apto do que para a psicanálise”
minino, à inconsistência do ser... (Ibid.).
Considera-se que seja desta perspectiva, Se, por um lado, o momento da trans-
que se levada à certa exaustão, desdo- missão da peste aqui recortado pode ser
bra-se uma outra: a de indicar a pensado como o de contaminação da
particularidade segundo a qual seja pos- polis, por outro é também o de “desper-
sível pensar uma responsabilidade social tar”, sobretudo se considerarmos que o
da psicanálise, do psicanalista. propósito de promover uma análise fren-
Se assim for, esta seria movida não por te aos pedidos de ajuda, dirigidos a um
culpa social ou por um furor sanandis, “profissional psi”, geram um campo que
mas por conseqüência de um compro- não pretende ser de utilidade pública,
misso assumido, a saber, o compromis- nem sequer de utilidade do indivíduo,
so de manter a psicanálise em causa. uma vez que este, o indivíduo, implica
O desejo do analista circunscreve uma um sujeito alienado em seu gozo. Visa a
prática cuja origem é reconhecível em expressão de um Sujeito desejante.
um ato analítico do próprio Freud: “Fale Sobre a inaptidão para uma análise, po-
tudo”. Como nos diz Serge Cottet demos acrescentar que a condição de
(1989): desejo que depreende-se da demanda
O laço com Freud, para um analista, é tão gerada pela oferta de um analista signi-
includível que nada, nenhuma garantia, ne- fica uma perda da possibilidade do
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Sujeito manter-se como Indivíduo. Ade- Não é menos instigante para o tema pro-
mais, a transferência analítica provocada posto aqui a proposição de um discurso
por este ato de escuta que dá “voz” ao nomeado como “capitalista”, que evoca
inconsciente, faz obstáculo à intersub- tão prontamente o significante dinheiro.
jetividade, empurrando o Sujeito para Pois bem, no discurso capitalista temos
uma divisão que o separa de seu gozo. um sujeito instrumentalizado, que “não
Inspirar esse duro desejo de despertar, tem nada com que fazer laço social”,
no qual é condição perder para ganhar [assim como não tem “dinheiro” para
e menos... fazer uma análise...]. Em Televisão
Mas do adormecimento despertar para (1979), Lacan aponta como desmonta-
que? Não para a realidade, mas para o gem ou saída do discurso capitalista o
Nada do desejo (wunsh), para a abertu- discurso do analista.
ra do Inconsciente, para o impossível Vale dizer, que se do lado do psicanali-
encontro com o Real? sando o que subjaz a este momento da
Se a psicanálise nos ensina que há no transmissão refere-se à sua finalidade
sintoma um certo adormecimento, e nes- terapêutica, do lado do psicanalista en-
te um decorrente prazer (lust/genuss) volvido no trabalho, é possível, e até
implicado, nos indica também que é por imprescindível, admitir que seu compro-
meio do despertar gerado pelo despra- misso [do analista] com a concepção de
zer (unlust) envolvido no sintoma que finalidade e fim de análise encontrem-se
dá-se a iminência do impossível encon- lá desde o início, ou seja, a disposição
tro com o Real, o que, embora sem do analista para levar a análise ao seu
considerar-lhe condições de possibilida- termo, para além da terapêutica, marca
de, não impede que se faça deste a posição em que este se introduz no
encontro um fim; dito de outra forma, jogo analítico, por seu ato inaugural e na
se o sintoma não cessa de inscrever-se direção do tratamento.
e o Real não cessa de não se inscrever, Então é possível considerar que tais
temos na injunção dessas insistências a questões, a da transferência de trabalho
possibilidade da realização do trabalho com a psicanálise e a do desejo do ana-
analítico. lista sejam de extrema relevância para
A realização (Befriedigung/Erfüllung) pri- admitir a idéia da oferta de análise em
mária de todo discurso é de adormecer, contextos onde dinheiro falta; e esta
uma vez que o significante mestre trás oferta, por sua vez, relevante para con-
esta virtude. Fala-se o tempo todo do que siderarmos o dinheiro como significante
se quer ignorar: a castração. Encontra- para uma psicanálise, o que implica a
mos na teoria lacaniana uma formulação particularidade com que este deve ser in-
na qual esta realização primária é elevada cluído e manejado para e no trabalho de
a um estatuto discursivo: o do discurso transferência.
capitalista. Resta saber que laço social O que se pretende apontar aqui é o com-
se faz possível a partir desse discurso. promisso com as condições para haver
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Clínica do Social

análise. Compromisso de que o que quer três vezes e então dorme. De forma ge-
que esteja em jogo através dessa im- ral sempre acreditava estar esquecendo
possibilidade do dinheiro, aquilo que algo importante. Sentia até pouco tem-
concerne à miséria neurótica, seja toca- po atrás um bolo na garganta, tremor nas
do, tratado. É preciso considerar que o mãos, frio, palpitações; já em tratamen-
que será feito “disso” é responsabilida- to, passa a sentir vontade constante de
de de cada sujeito em análise. Para que fazer xixi, principalmente durante o pe-
uma análise se produza cabe ao analista ríodo em que está na escola. Acreditava
responsabilizar-se pela direção do trata- que chegaria a pedir para a professora
mento e não pela direção do analisante. para ir ao banheiro e que ela não permi-
Enquanto isso... tiria e, então, ele perderia o controle e
Um menino encontra-se em entrevistas faria xixi na calça... portanto, evitava pe-
preliminares há vários meses. Veio com dir para ir ao banheiro... isso também já
a mãe numa primeira vez. É filho do se- não acontece mais, desde há algumas
gundo casamento de seu pai. Vive com semanas. Mas o que se impunha era seu
sua mãe que trabalha como faxineira. medo de morrer. Muitas vezes vem à
Mantém uma relação freqüente e fami- sua cabeça cenas de morte... sua mãe
liar com uma irmã, filha do primeiro ca- morta... ele morto... Quando na cena da
samento do pai. Este casou-se, pela ter- morte ele é o morto, imagina sua mãe
ceira vez, com uma vizinha. Chegou a sofrendo e se vê deitado no caixão...
visitar o pai depois deste ter se separa- procura não pensar nisso. Tenta domi-
do da mãe, mas não fala mais com ele. nar a imagem... imagina-se levantando
Foi deixando de falar com o pai aos pou- do caixão e vivendo. Entende que ir à
cos. Lembra como o pai agredia a mãe igreja e rezar são providências que o pro-
quando moravam juntos. Estuda em tegem e o livram da culpa de imaginar a
uma boa escola técnica pública, trata-se mãe morta...
com acupuntura numa instituição, mora O gás que escapava, o xixi que escapa-
só com a mãe, com quem aprendeu o va, ainda depois, nas idéias de sofrer um
caminho da igreja. Toma quatro ônibus derrame, o sangue que escapava, derra-
para chegar ao consultório o que, infor- mava... as coisas que escapavam
ma a mãe, significa para a família um convergiam para a crença na existência
gasto importante. Decido prosseguir do exercício de num controle capaz de
com as entrevistas admitindo a possibi- situá-lo na posição de um senhor da
lidade de não receber dinheiro por estas. morte, que também lhe escapa. O san-
Tem 15 anos, menino de poucas pala- gue, o xixi, o gás... Fala de suas
vras... fantasias de se sentir culpado pelas mor-
Toda noite antes de dormir vai à cozi- tes das quais tomava conhecimento... de
nha verificar o gás. Trata de se certificar um cantor sertanejo, um corredor de
que este não está escapando. Até con- Fórmula Um, um tio.
vencer-se faz a tal operação uma, duas, Então, certa vez, pouco antes dos assun-
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tos de morte serem trazidos mais expli- ça na ausência do pai? Riscos de estar
citamente, comentou que havia partici- na casa com a mãe...
pado de uma cerimônia religiosa onde Três reais... passa a pagar três reais a
entregam-lhe uma medalha que simboli- cada sessão. Vinha duas vezes na sema-
za a posição do fiel em relação àquela na. Vinha sempre. Foi pegando gosto
igreja... estava ansioso por recebê-la... pela palavra. Algumas vezes se apressa-
sua mãe já havia recebido a sua. Havia va achando que a sessão ia terminar. A
passado o domingo com o grupo da analista sempre dizia: há tempo...
igreja. Uma confraternização. Ônibus E chegou um tempo de poder mover-se
fretado, um almoço... Esses eventos do lugar onde se encontrava... de estar
sempre acontecem, uma vez por mês. na sala fechada do cinema, jogar vôlei
Então a analista pergunta: sem morrer, passar pela morte da avó
— O que se faz para participar da ceri- materna... os sintomas foram caindo e
mônia? questões se erguendo. Curiosamente sur-
— Tem que pagar. gem novas formas de presença do pai.
— E para a confraternização você tam- O pai é aquele com quem tem medo de
bém paga? encontrar pela rua, a quem poderia es-
— Pago. crever, aquele que envia dinheiro para
— Quanto? conta bancária da mãe todos os meses
— O ônibus é 5 e o almoço é 10. há onze anos... cento e cinqüenta reais...
— Que outras coisas você paga? O que dá para fazer com isto?... Algu-
— Isso e o inglês. mas vezes ele mandou menos. Certa vez
— E aqui, po rque é que você não paga? noventa, certa vez setenta e cinco... Por
— Eu não sei, eu também acho estra- que será?... Será que ele não tinha...
nho. Eu achei que porque eu não pago Um menino na escola estava conversan-
eu fico pouco tempo e a única coisa é do com uma menina e logo depois eles
que vai demorar mais para eu ficar ficaram... como se faz isso? Nunca co-
bom... mentou com ninguém e até se esforça
— A partir da próxima sessão você paga. para não pensar nisso, mas tem dúvidas
— Quanto? se gosta mesmo de menina. Às vezes
— É verdade... quanto?... é importante pensa em meninos...
falar sobre isso... (corte da sessão). Não seriam perguntas comparáveis às
Quando o pai foi embora, a mãe com- questões próprias ao desejo? Qual é meu
prou um fogão. Ele se lembra da caixa objeto? Qual é meu sexo? Qual é meu
grande chegando. O pai morava perto e desejo?
brigas aconteciam no portão. As brigas Diante de muitas das questões que fo-
anunciavam as ameaças. O pai ameaça- ram possíveis de serem formuladas por
va pôr fogo na casa com mãe e filho ele, o testemunho de um percurso que
dentro. O fogão, o gás, a ameaça, o pai... só posso reconhecer como pertencen-
Formas de presença, ausência, presen- do ao escopo de uma psicanálise.
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Clínica do Social

Uma vez contou a seguinte história: re- Psicanálise, cujo critério de inclusão e
solveu falar com uma menina que estu- manejo do dinheiro foi ponto capital para
dou com ele na escola há muito tempo seu estabelecimento. Critério pautado
e que de vez em quando toma o mesmo por um mercado diferente do habitual,
ônibus que ele. Quando estudavam jun- a saber, o mercado aberto para o incons-
tos achava ela bonitinha e tudo. Sabe o ciente. Neste sentido, a quantidade de
horário que ela toma o ônibus, então cal- dinheiro que vem sendo entregue à ana-
culou a hora e foi para o ponto. Ela de- lista só pode ser visto como uma, entre
veria entrar no ônibus dois pontos muitas, particularidades desta análise,
depois. Tomou o ônibus e ficou atento, assim como existem particularidades em
pensando que desta vez ia sentar ao lado qualquer análise.
dela e puxar assunto. Quando o ônibus Acredito que o que este fragmento clí-
parou no ponto que ela deveria subir... nico presentifica no atual contexto é o
interrompe a narrativa e pergunta à ana- fato de que um dos fatores que mais exi-
lista: “Imagina quem entrou!... (suspen- ge consideração na decisão de produzir
se)... minha mãe (risos) acho que errei a elaboração que procuro estabelecer
no cálculo... nesta discussão é, precisamente, o fato
A história foi contada como um chiste. de que há análises acontecendo nas con-
Na possibilidade do chiste, a possibilida- dições propostas pelo Fórum de
de de se incluir em outra posição ao Psicanálise; e que qualquer impedimen-
incluir uma terceira, a de um Outro, a to que se impusesse à produção de uma
do Inconsciente. dessas análises não seria a expressão de
A esta altura da apresentação deste frag- uma restrição imposta pela psicanálise à
mento trazido da clínica, poderia ser condição cultural ou patrimonial do can-
perguntado: mas qual a relevância da in- didato a analisante, mas sim a imposição
clusão e do manejo do dinheiro nesta de uma restrição, provavelmente tam-
análise? Ou ainda, qual a relevância da bém legítima, que deve ser reconhecida
apresentação deste trabalho clínico para em outra instância. „
a discussão sobre inclusão e manejo do
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
dinheiro numa psicanálise?
Ao meu ver, trata-se de um tratamento QUINET, A. As 4 + 1 condições da análi-
viabilizado pela proposta do Fórum de se. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

Artigo recebido em novembro/2000


Revisão final recebida em janeiro/2001

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