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Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci - 43

Capítulo 4

Uma breve genealogia do


pensamento enquanto forma de vida
Então disse Jesus: “...por esta razão nasci e para isto
vim ao mundo: para testemunhar da verdade.
Todos os que são da verdade me ouvem”.
Respondeu-lhe Pilatos:
“o que é a verdade?”
Evangelho segundo João 18.37-38

U ma das primeiras lições que recebemos em


nossas aulas de filosofia ou de história do
pensamento ocidental é a fórmula: “conhece a ti mesmo”. Esta
prescrição está gravada no pátio do Templo de Apolo, em Delfos
na Grécia. Ela tornou-se famosa principalmente pelos diálogos
filosóficos de Platão e pela figura de Sócrates. Mais do que isso,
ela se transformou no lema que ditou certo modo de pensar, viver
e criar cultura que perdura até hoje, chegando até a modernidade
através de figuras da estirpe do poeta britânico Alexander Pope,
o taxonomista Carl von Linné, o diplomata Benjamin Franklin e,
contemporaneamente, os irmãos Lana e Andy Wachowski, que
utilizaram-se da mesma inscrição em seus filmes The Matrix (1999)
e The Matrix Revolutions (2003) – também gravado acima da porta
da casa do Oráculo. Tudo isso parece indicar que na história das
ideias no Ocidente, o “conheci a ti mesmo” é, sem dúvida, a
fórmula que sintetiza as questões entre o indivíduo consigo mesmo
e em relação à verdade.
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Minha hipótese é que, originalmente, a prescrição


“conhece a ti mesmo” não tinha todo esse valor que ela assumiu
ao longo da história do Ocidente. O filósofo francês Michel Foucault
nos informa que, no contexto da religião délfica, essa prescrição
significava apenas o seguinte: “no momento em que vens colocar
questões ao oráculo, examina bem em ti mesmo as questões que
tens a colocar, que queres colocar; e, posto que deves reduzir ao
máximo o número delas e não as colocar em demasia, cuida de
ver em ti mesmo o que tens precisão de saber”. 1 Ou seja, o
“conhece a ti mesmo” referia-se apenas a um cuidado que todos
os frequentadores do Templo de Apolo deveriam ter ao ir se
consultar com o oráculo. Tratava-se do cuidado necessário de
formular exatamente, e em poucas palavras, as suas dúvidas
que seriam saciadas pelo oráculo – a mesma situação que o
personagem Neo enfrenta na casa do Oráculo no filme The Matrix.
Neste sentido, quem fez da prescrição “conhece a ti
mesmo” a fórmula que deveria determinar nosso modo de escrever,
pensar e produzir cultura, o fez com uma intenção diferente daquela
que originou propriamente o dito. Vemos aqui claramente uma
ênfase no trabalho intelectual sobre todas as outras esferas da
vida. Segundo esse modo de encarar a existência, todos os
movimentos no mundo da vida deveriam ser pautados por um
conhecimento teórico e rigoroso de nós mesmos. Seja para
escrever uma tragédia grega ou para tomar uma decisão sobre a
condução de nossas vidas, era preciso possuir conhecimento
intelectivo de nós mesmos. Está formado, portanto, novamente
uma das polaridades centrais que dominará toda a existência
ocidental: uma vida pautada na teoria, no pensamento e nas
questões transcendentais. Contrário senso é verdadeiro, ao
elegerem o “conhece a ti mesmo” como princípio norteador de
toda a vida, imediatamente surgiram aqueles que optavam por
um estilo mais experimental, prático e imanente de conduzir a
existência.
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O propósito dessa segunda sessão será reconstruir


minimamente a trajetória, até os nossos dias, da desconexão entre
teoria e prática, mostrando que essa oposição é falsa – ou, na
melhor das hipóteses, artificial. A oposição entre pensamento e
ação tem uma história, um momento em que surgiu e que não
mais deixou de se transformar, até chegar à aversão irreconciliável
entre teóricos e ativistas que conhecemos hoje. Procedendo dessa
maneira, reconheço a proficuidade da metodologia histórica do
professor Mark A. Noll de “se obter uma compreensão geral da
história cristã (embora existam muitas outras) examinando momen-
tos críticos de transição dessa história. A identificação desses
momentos críticos é um exercício subjetivo, pois as decisões de
um observador sobre quais são esses pontos de transição
importantes depende inevitavelmente daquilo que o observador
considera importante”. 2 Para os propósitos do presente livro,
acredito estar claro que as decisões pelo “momento Aristóteles”,
o “momento Tomás de Aquino” e assim por diante, tem valor para
esclarecer a desconexão entre teoria e prática na missão cristã,
bem como seus desdobramentos teológicos contemporâneos.
Para começarmos essa
trajetória, a figura mais famosa da
“A oposição entre
história que é relacionada com o
teoria e prática é falsa
lema “conhece a ti mesmo” é o ou, na melhor das
filósofo grego Sócrates. Contudo, hipóteses, artificial.”
nos diálogos platônicos em que Sócrates aparece sugerindo o
preceito délfico “conhece a ti mesmo” para outras pessoas, ele
não o faz de um ponto de vista meramente intelectual. Na verdade,
Sócrates encarava o “conhece a ti mesmo” apenas como uma
parte de um princípio de vida maior: o “cuida de ti mesmo”. Na
verdade, esse era o modo como Sócrates enxergava sua missão
no mundo: “apresenta-se como aquele que, essencialmente,
fundamental e originariamente, tem por função, oficio e encargo
incitar os outros a se ocuparem consigo mesmos, a terem
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cuidados consigo e a não descurarem de si”. 3 Em meio a uma


sociedade formada por pessoas que estavam preocupadas em
cuidar de tantas coisas – como de sua reputação, dos seus
interesses e até da sua fama – Sócrates enxergava como sendo
sua missão incentivar as pessoas a cuidarem de si mesmas. Ele
era aquele indivíduo que, através de perguntas e diálogos com
seus concidadãos, visava despertar neles a inquietação que os
colocaria ocupados tão somente consigo mesmos. Isso era tão
claro para ele que uma vez o filósofo se comparou a um inseto
tavão, uma mosca que quando picava o gado ou as pessoas os
incomodava e os fazia ficar agitados de tanta dor. 4
Com tudo isso, quero mostrar que a partir de Sócrates, o
“cuida de ti mesmo” aparece como a função geral de toda a
existência. O cuidado de si e não o mero “conhecimento de si
mesmo” deveria ser, não apenas a principal ocupação de todas
as pessoas, como também a função específica do filósofo e da
filosofia. Ao contrário do que ficou conhecido, a tarefa mais alta
do pensamento não era uma atividade cognitiva, mas antes um
conclame a um cuidado integral do ser humano por ele mesmo. O
cuidado de si é identificado como uma arte de viver, uma estética
da própria existência. Isso poderia ser visto na própria vida de
Sócrates, uma vez que ele não ficava restrito a uma sala de aula
ou montanha filosófica distante das pessoas. Seus diálogos se
passam nas ruas de Atenas, nas casas, no mercado e nos
ambientes mais cotidianos das pessoas. Pensamento e vida, teoria
e prática não estavam desconectados. 5 Antes, só era possível
chegar a um pensamento verdadeiro e a uma teoria correta se a
vida prática dos indivíduos fosse bem conduzida e cuidada. Não
é sem motivo, por exemplo, que Sócrates não tenha deixado
nenhuma linha escrita de sua filosofia. Isso ele fez, na crença de
que o filosofar está justamente na interação entre um mestre e os
seus discípulos. Sendo assim, “Sócrates é apelidado
frequentemente como aquele sábio singelo da Antiguidade, alguém
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que mesmo sem possuir a verdade possuía o caminho que pode


dirigir a ela, pois seu modo de viver, pensar e agir, ou não agir,
incluía uma atitude de honestidade e uma intenção ética que não
deixavam desperdiçar a vida”. 6
Essa tendência de encarar a atividade do pensamento
de maneira integral, tendo no lema do “cuidado de si” o princípio
fundamental para caracterizar a atitude filosófica, perdurou por
quase toda a cultura grega, helenística e romana. Por exemplo,
Platão, em sua famosa Alegoria da caverna, fala várias vezes da
necessidade de “conversão” (epistrophç) para alguém poder
chegar à verdade. É claro que, para Platão, a conversão significava
três coisas: desviar-se das aparências, admitir sua ignorância e
voltar-se para o mundo das ideias, onde as verdadeiras essências
poderiam ser encontradas. A revelia dessa proposta filosófica
equivocada, o que fica claro para nós aqui é que o filósofo
acreditava que só poderíamos chegar a um conhecimento
verdadeiro se experimentássemos, na integridade do nosso ser,
uma transformação pessoal, uma conversão. A formação
educacional implicava em uma radical conversão e cuidado de si
integral. 7
Esse princípio não se limitou a Sócrates e Platão. O
cuidado de si e a necessidade de conversão perduraram na cultura
helênica e romana. Pode-se também lembrar de Epicuro e os
epicuristas, Sêneca e os cínicos, bem como Epiteto e os estóicos
como incentivadores do cuidado de si. Contudo, não apenas entre
os filósofos a noção de “cuidado de si mesmo” era fundamental.
O princípio integral de cuidar de si mesmo tornou-se, de modo
geral na antiguidade, o fundamento necessário para a conduta
ética e moral de um indivíduo, bem como a toda forma de vida
ativa que pretendesse constituir uma racionalidade moral. Como
sintetiza Foucault: “a incitação a ocupar-se consigo mesmo
alcançou, durante o longo brilho do pensamento helenístico e
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romano, uma extensão tão grande que se tomou, creio, um


verdadeiro fenômeno cultural de conjunto”. 8
Neste contexto, o cristianismo não foi uma exceção. Toda
a terceira sessão será dedicada à elucidação dessa integralidade
no relacionamento do indivíduo com a verdade do ponto de vista
bíblico. Contudo, posso desde já ressaltar que a propagação da
mensagem do evangelho inseriu-se nesse contexto cultural maior
da antiguidade, também exigindo de seus ouvintes a necessidade
de conversão e transformação integral para ter acesso à verdade.
Através do termo grego metanoia, geralmente traduzido para o
português também por “conversão” ou “arrependimento” (Mt 3.8,11;
Mc 1.4; At 5.31; 13.24; Rm 2.4; 2Co 7.9), a cristandade primitiva
anunciou a necessidade de uma transformação integral daqueles
que ouviam a verdade. Conforme explica o teólogo Herman
Ridderbos, “não se trata tanto de uma questão de pensar no sentido
intelectual, mas de uma nova consciência moral e religiosa, da
nova percepção de quem é Deus e qual é a sua vontade, de acordo
com sua revelação em Cristo, e de permitir-se ser determinado
daquele momento em diante nas manifestações e circunstâncias
de sua vida”. 9 Nesse sentido, a expressão “expansão de
consciência” é uma sugestão mais adequada para a tradução do
termo metanoia. 10
Nas Escrituras e no
“A tendência de cristianismo primitivo, contudo,
encarar a atividade do essa transformação integral de si
pensamento de não se refere a um “estado subjetivo
maneira integral de consciência, mas um modo
perdurou por quase ‘objetivo’ de ser”. 11 Trata-se de uma
toda a cultura grega, convocação ao cuidar de si mesmo,
helenística e romana.” bem como de um convite a uma série
de exercícios e práticas que têm
como objetivo transformar os indivíduos – à semelhança de Cristo.
Posteriormente esses exercícios e práticas ficaram conhecidos
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como “disciplinas espirituais” – tais como oração, estudo da


Palavra, meditação, jejum, solitude, serviço, confissão, adoração
e celebração. É por essa razão que todas as vezes que a noção
de cuidado de si aparece no mundo Antigo, ele tem um caráter
de “concentração de tipo atlético”, isto é, “pensamos na preparação
para a corrida, na preparação para a luta, no gesto com o qual o
arqueiro lançará a flecha em direção ao alvo, etc.”. 12 Imagens
recorrentemente apresentadas pelos autores bíblicos (1Co 9; Fp
3; Hb 12).
Justamente por ter consciência da necessidade de uma
transformação pessoal na nova vida cristã, a noção de “cuidado
de si” continuou aparecendo nas obras de importantes teólogos
da Igreja cristã primitiva como sinônima de uma espiritualidade
ortodoxa e integral. Posso citar, por exemplo, os chamados Pais
Capadócios que foram teólogos cristãos gregos da segunda
metade do século IV d.C. que viveram na Capadócia, região do
oriente da Ásia Menor, que hoje é parte da Turquia. Tanto em
Basílio de Cesaréia, quanto em Gregório Nazianzo e Gregório de
Nissa encontramos a noção do “cuidado de si” como um norte da
espiritualidade enquanto um todo. Certa vez, durante o sermão
de número 25, Gregório Nazianzo elogia um indivíduo chamado
Máximo, o qual era um cristão de origem egípcia que tinha se
retirado por um tempo no deserto, e a quem sua grande reputação
de santidade fez com que fosse notado pelo arcebispo de
Alexandria. Para Gregório, esse cristão chamado Máximo é um
verdadeiro discípulo de Cristo e um herói filosófico, nos moldes
que apresentamos até agora. Em suas próprias palavras: “você é
o melhor e o mais perfeito dos filósofos, por ser o mártir, a
testemunha da verdade”. 13 Com a expressão “testemunha da
verdade” (martyres), que tem sua origem nas Escrituras, Gregório
Nazianzo tinha uma intenção muito clara ao referir-se a Máximo:
“não se tratava simplesmente do testemunho verbal de alguém
que diria a verdade. Trata-se de alguém que, em sua própria vida,
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em sua vida de cão, não cessou, de ser em seu corpo, em sua


vida, em seus gestos, em sua frugalidade, em suas renúncias,
em sua ascese, a testemunha viva da verdade. Ele sofreu,
suportou, privou-se para que a verdade, de certo modo, tomasse
corpo em sua própria vida, em sua própria existência, tomasse
corpo em seu corpo”. 14
Diante de tudo isso, chegamos a um ponto muito
importante. De Sócrates até Gregório de Nissa (fim da Antiguidade
e início da Idade Média), existiu uma forma privilegiada dos
indivíduos se relacionarem com a verdade. A revelia dos
conteúdos específicos de cada escola filosófica e teológica, essa
forma não se limitava a um conhecimento intelectivo dos
conteúdos verdadeiros, mas um verdadeiro “testemunho da
verdade”. Isso significa dizer que, para esses indivíduos, a
verdade é dita e feita visível, em todos os seus gestos, seus
corpos, na maneira de vestir, de se conduzir e de se viver a
própria verdade. A vida como manifestação da verdade, ou ainda,
na abordagem cristã do tema: a ortodoxia como ortopraxia, a
doutrina verdadeira como forma de vida integral.
Em cada um dos adeptos e entusiastas do “cuidado de
si” existia uma pressuposição em comum: as pessoas não são
capazes de acessar a verdade sem passar por alguma
experiência de conversão, de disciplinas espirituais ou
simplesmente através de um cuidado especial consigo mesmos.
Ou seja, não existe acesso à verdade de forma autônoma e
independente da condução de todos os outros aspectos de sua
vida. Conforme explica Foucault:

É um traço geral, um princípio fundamental, que o sujeito


enquanto tal, do modo como é dado a si mesmo, não é capaz
de verdade. E não é capaz de verdade, contudo, a não ser
que ele efetue em si mesmo certas operações, certas
transformações e modificações que o tornarão capaz de
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verdade. Creio que este é um tema fundamental, e que nele o


cristianismo muito facilmente achará seu lugar,
acrescentando-lhe, bem entendido, um elemento novo, não
encontrado na Antiguidade, a saber, que dentre as condições
há a relação com o Texto e a fé em um Texto revelado, o que,
evidentemente, não constava antes. 15

Com essas palavras, Foucault deixa claro que, nas


principais escolas de pensamento e filosofias de vida da
Antiguidade não existia a desconexão entre teoria e prática, entre
pensamento e ação. Seria totalmente absurdo para um pensador
grego, helênico ou romano alguém sustentar determinada filosofia,
mas não viver de acordo com ela. Além disso, na cristandade,
essa dinâmica era idêntica, apenas com uma diferença específica:
o texto Bíblico. Dentre as condições necessárias para termos
acesso à verdade, uma delas é o deixar-se conformar com o texto
sagrado. Ainda que alguns cristãos primitivos pudessem sustentar
que a natureza, bem como todo o mundo criado nos fornecesse
revelação de Deus, era na Escritura que o verdadeiro acesso à
verdade constituía-se. Ou ainda, nas palavras de Foucault: “o ato
da leitura é um ato espiuritual que põe o fiel em presença da palavra
de Deus e que encontra, por conseguinte, nessa iluminação interior,
sua lei e sua garantia... Portanto, aqui também podemos dizer
que o retorno à Escritura, que foi um dos grandes temas de todas
essas contracondutas pastorais na Idade Média, é uma peça
essencial”. 16 Não era possível algum cristão ter em mente as
doutrinas corretas deste texto, mas não viver enquanto uma
“testemunha da verdade”. A ortodoxia era integral.
Tendo tudo isso mente, gostaria de terminar esse capítulo
deixando claro para você o meu objetivo. Reconstruindo
minimamente a trajetória do “cuidado de si”, enquanto fenômeno
cultural da sociedade helênica e romana, temos condições de
perceber “como” os habitantes da Antiguidade responderam o
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mesmo desafio que temos diante de nós. Em busca do


desenvolvimento da relação correta entre vida e pensamento,
doutrina e prática, estes pensadores da Antiguidade, bem como
os principais teólogos da Igreja, nos deixaram um modelo de
sermos coerentes com aquilo que pensamos e fazemos. 17 Trata-
se do testemunho da verdade como forma de vida. Contudo, esta
maneira de pensar, enquanto uma forma de vida integral, em
determinado momento da história deixou de ser a maneira
privilegiada de conduzir a vida. O próximo capítulo se dedicará a
mostrar em que momento da história do pensamento ocidental
deixamos de ser integrais. Tudo isso será feito para mostrar que
o desafio de voltar a professar uma fé ortodoxa e integral encontra
na Igreja sua possibilidade privilegiada de resolução.

Notas
1. FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 6. Em sua pesquisa
histórica, Foucault aprofunda-se e nos mostra que, na verdade, o
“conhece a ti mesmo” era apenas um das outras três prescrições
délficas. Segundo o filósofo francês: “conhecemos os três preceitos.
O Medèn ágan (‘nada em demasia’) quer dizer: tu que vens consultar
não coloques questões demais, não coloques senão questões úteis,
reduzi ao necessário as questões que queres colocar. O segundo
preceito, sobre os engýe (as cauções), significa exatamente o seguinte:
quando vens consultar os deuses, não faças promessas, não te
comprometas com coisas ou compromissos que não poderás honrar.
Quanto ao gnôthi seautón, sempre segundo Roscher, significa: no
momento em que vens colocar questões ao oráculo, examina bem em
ti mesmo as questões que tens a colocar, que queres colocar”
(FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 6).

2. NOLL, Momentos decisivos da história do cristianismo , p. 12.


Novamente, penso ser conveniente esclarecer que fazer uma
genealogia não significa “retirar todas as máscaras, para desvelar
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finalmente uma identidade primeira; significa antes, através de uma


análise minuciosa dos detalhes e dos episódios, das estratégias e das
táticas, das mentiras e das verdades, dos détours e das vias principais,
das práticas e dos saberes” (AGAMBEN, Opus Dei, p. 97), mas antes,
tentar substituir, no caso que nos interessa, a pergunta óbvia: “onde
surgiu a oposição entre teoria e prática?”, pela menos óbvia e mais
importante questão: “o que está em jogo na estratégia que separa a
instância prática e a instância teórica da existência de um indivíduo?”.
Se conseguirmos responder esta questão, teremos realizado com
sucesso o primeiro movimento da Ortodoxia Integral para desarticular
a desconexão entre pensamento e ação, teoria e prática,
transcendência e imanência.
3. FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 7.
4. PLATÃO, Apologia de Sócrates, 30e.
5. Marta Nussbaum comenta que, até mesmo a escolha de Platão pela
escrita filosófica em diálogos é significativa: “antes da época de Platão,
não havia diferença entre a discussão ‘filosófica’ e ‘literária’ dos
problemas humanos práticos. [...] Para o leitor dessa cultura, era natural
supor que textos de muitos tipos diferentes oferecessem instrução em
sabedoria prática; é correto dizer, penso, que não havia escolha de
gênero que sinalizasse ao leitor que o texto em questão não tinha
nada sério a dizer sobre assuntos humanos. [...] parece muito provável
que não houvesse disponível a Platão nada que se assemelhasse à
Ética nicomaquéia de Aristóteles, isto é, uma obra em prosa que se
proponha perguntar e responder as nossas mais importantes questões
sobre a virtude e a boa vida” (NUSSBAUM, A fragilidade da bondade,
p. 109).
6. VALLS, Sócrates oscilando entre Kierkegaard e Nietzsche, p. 30.
Nessa altura da investigação é conveniente ressaltar que a
exemplaridade de Sócrates, enquanto alguém que viveu para incentivar
as pessoas a cuidar de si, nos é importante do ponto de vista do seu
procedimento mais do que do seu conteúdo. Isso porque, Foucault
nos mostrou que essa abordagem do “cuidado de si” de Sócrates
“podia esboçar dois desenvolvimentos possíveis: o de uma metafísica
da alma e o de uma estética da vida” (FOUCAULT, A coragem da
verdade, p. 143). Por um lado, toda a filosofia grega ficou focada em
desenvolver essa metafísica da alma a partir dos motivos-base matéria/
forma e física/metafísica, enquanto a cristandade primitiva desenvolveu
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uma estilística da existência considerável. Isso aconteceu porque a


filosofia grega ainda estava muito influenciada pela religiosidade
apolínio-dionisíaca, enquanto para os cristãos “a redenção não
significava o acréscimo de uma graça especial, mas simplesmente,
em sua essência, a reconstituição do propósito original de Deus”
(CARVALHO, O dualismo natureza/graça e a influência do humanismo
secular, p. 128). Diante do exposto, concordo com Agamben quando
nos diz que: “há, portanto, na tradição ocidental, duas ontologia, distintas
e coligadas [...]. Claramente distintas e, por muitos aspectos, opostas,
as duas ontologias convivem, confrontam-se e, de qualquer modo, não
cessam de entrelaçar-se, hibridizar-se e prevalecer, de vez em vez,
uma sobre a outra na história do Ocidente” (AGAMBEN, Opus Dei, p.
124).
7. Nas suas palavras: “a educação seria, por conseguinte, a arte desse
desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta [strçphein]
a esse órgão, não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez
que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe
os meios para isso” (PLATÃO, A república, livro VII, 518a-e).
8. FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 13. Vale ressaltar que, no
caso da sabedoria romana, a conversão e o cuidado de si não
aconteciam à semelhança de Platão. Ao invés de lançar os indivíduos
no mundo das ideias, para os romanos “trata-se de um retomo que se
fará, de certo modo, na própria imanência do mundo [...] conduz a nos
deslocarmos do que não depende de nós ao que depende de nós.
Trata-se, antes, de uma liberação no interior deste eixo de imanência,
liberação em relação a tudo aquilo que não dominamos, para
alcançarmos, enfim, aquilo que podemos dominar” (FOUCAULT, A
Hermenêutica do sujeito, p. 258).
9. RIDDERBOS, A teologia do apóstolo Paulo, p. 255.
10. É bastante importante a diferenciação que Foucault estabelece
entre o cuidado de si cristão e o platônico. Na verdade essa diferença
resultará em duas formas distintas de encarar o mundo (ontologias).
Comentando o trabalho de Pierre Hadot, ele diz: “a conversão tem
estes dois grandes modelos na cultura ocidental, o da epistrophé e o
da metánoia. A epistrophé, diz ele, é uma noção, uma experiência da
conversão que implica o retorno da alma em direção a sua fonte,
movimento pelo qual ela retoma à perfeição do ser e se recoloca no
movimento eterno do ser. De certo modo, a epistrophé tem o despertar
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como seu modelo, e a anámnesis (a reminiscência) como modo


fundamental do despertar. Abrimos os olhos, descobrimos a luz e
retornarmos à própria fonte da luz que, ao mesmo tempo, é a fonte do
ser. Isto, sobre a epistrophé. Quanto à metánoia, diz ele, concerne a
outro modelo, obedece a outro esquema. Trata-se de uma reversão do
espírito, de uma renovação radical e de uma espécie de re-procriação
do sujeito por ele mesmo, tendo ao centro a morte e a ressurreição
como experiência de si mesmo e de renúncia a si. Epistrophé e metanoia,
com sua oposição, são apresentadas corno uma polaridade permanente
no pensamento, na espiritualidade e na filosofia ocidentais”
(FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 266). Essa diferença de
modos de subjetivação antigos foi pouco observada na história da
filosofia, fazendo com que prevalecesse a visão nietzscheana de que
o cristianismo era “platonismo para o povo”. Na noção de “cuidado de
si”, “tem um sentido inteiramente particular e distinto do ‘conhece-te a
ti Mesmo’ platônico e do ‘examina-te a ti mesmo’ da espiritualidade
monástica” (FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 268).
11. RIDDERBOS, A teologia do apóstolo Paulo, p. 249.
12. FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 272.
13. NISSA apud FOUCAULT, A coragem da verdade, p. 150.
14. FOUCAULT, A coragem da verdade, p. 150.
15. FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 234.
16. FOUCAULT, Segurança, território e população , p. 282. Essa
especificidade do texto bíblico será muito importante logo a seguir em
meu raciocínio, quando criticarei um modo de fazer teologia chamado
de “teologia natural” ou “teologia da glória” (Tomás de Aquino), que
está em oposição à teologia da Cruz e a teologia bíblica dos
reformadores. Nas palavras de João Calvino: “o mesmo Profeta, onde
trouxe a lembra que a glória de Deus é proclamada pelos céus, que as
obras de suas mãos são anunciadas pelo firmamento, que sua
majestade é apregoada pelas sequência regular dos dias e das noites
[Sl 19.1,2], em seguida desce à menção da Palavra: ‘a lei do Senhor’,
diz ele, ‘é sem defeito, reanimando as almas; o testemunho do Senhor
é fiel, dando sabedoria aos pequeninos; os atos de justiça do Senhor
são retos, alegrando os corações; o preceito do Senhor é límpido,
iluminando os olhos’ [Sl 19.7.8]. Ora, embora ele inclua ainda outros
usos da lei, contudo assinala, de modo geral, porquanto em vão Deus
convida a si a todos os povos pela contemplação do céu e da terra,
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afirmando que esta é a escola especial dos filhos de Deus: a Escritura”


(CALVINO, As Institutas, I.VI.4, p. 74). A compreensão clássica da
teologia antiga, bem como sua recuperação moderna pela Reforma
Protestante, privilegiavam o texto sagrado em detrimento da
contemplação racional do mundo circundante.
17. Do ponto de vista filosófico, Foucault coloca a questão da seguinte
forma: “parece-me que a aposta, o desafio que toda história do
pensamento deve suscitar, está precisamente em apreender o momento
em que um fenômeno cultural, de dimensão determinada, pode
efetivamente constituir, na história do pensamento, um momento
decisivo no qual se acha comprometido até mesmo nosso modo de ser
de sujeito moderno” (FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 13).

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