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PLATÃO

DEFESA DE SÓCRATES

XENOFONTE

OI.TOS E FEITOS
M EM O RÁV E1·S D E SÓ C .RAT ES
*
· APOLOGIA DE SÓCRATES

ARISTÓFANES

AS NUVENS

EDITOR: VICTOR CIVITA


Títulos originais:

'Arrot..o,,Ca Toli 2;wKpá.roll5 (Defesa de Sócrates)


l\=µVl')µovEúµaTa(Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates)
'ArroÀo/'í.a roü 2;wKpá.roV5(Apologia de Sócrates)
NE'f'ÉÀa,(As Nuvens)

1. ª edição - Dezembro 1972

@ - Copyright desta edição, 1972,

Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.


Traduçõ~s publicadas sob licença de:
Editora Cultrix Ltda.: São Paulo (Defesa de &Scrates)
Cia. Brasil Editora, Rio de Janeiro (Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates
e Apologia de Sócrates)
Difusão Européia do Livro, São Paulo (As Nuvens)
SUMÁRIO

DEF~SÁiP SÓCRATES ............................. . ......... 9


DITOS
~ -
fi~J'r:ÓS ~ - ..·· ·
' MEORÁVTS DE SÓCRATES 35
APóLOG<X'.Â
. - DE SÓCRATES
- ~ ; . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . -- 167
As NüV$:.Ns . . . . . . . . . . . .- . . . . . . . . . . . . . .· . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175
NOTA DO EDITOR

Sócrates não deixou nenhum escrito. Tudo o que sabemos sobre ele - sobre
sua vida e sobre seu pensamento -provém de depoimentos de discípulos ou de
adversários. Os historiadores da filosofia são unânimes em considerar que os
principais testemunhos sobre Sócrates são fornecidos por Platão e Xenofonte,
que _o exaltam, e por Aristófanes, que o combate e satiriza. Do confronto desses
diferentes retratos é que se pode tentar extrair a verdadeira fisionomia de
Sócrates.
Como outros textos de escritores antigos, os de Platão, Xenofonte e Aristó-
fanes são tradicionalmente divididos em passagens identiflcadas, em todas as
edições, através de números e/ ou letras colocadas nas margens laterais.
PLATÃO

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< DEFESA . ·- .

DE SÓCRATES

Tradução de JAIME BRUNA

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I

Exórdio

t7a Não sei, Atenienses, que influência sito confiança na justiça do que digo;
exerceram meus acusadores em vosso nem espere outra coisa quem quer de
espírito; a mim próprio, quase me fize- vós. Deveras, senhores, não ficaria
ram esquecer quem sou, tal a força de bem, a um velho como eu, vir diante de
persuasão de sua eloqüência. Verdade. vós plasmar seus discursos como um
porém, a bem dizer, não proferiram rapazola. Faço-vos, no entanto, um
nenhuma. Uma, sobretudo, me assom- pedido, Atenienses, uma súplica pre-
brou das muitas aleivosias que assaca- mente; se ouvirdes, na minha defesa, a
ram: a recomendação de cautela para mesma linguagem que habitualmente
não vos deixardes embair pelo orador emprego na praça, junto das bancas,
b formidável que sou. Com efeito, não
onde tantos dentre vós me tendes escu-
corarem de me hayer eu de desmentir
tado, e noutros lugares, não a estra-
prontamente com os fatos, aos mos-
nheis nem vos amÕtineis por isso.
trar-me um orador nada formidável,
Acontece que venho ao tribunal pela d
eis o que me pareceu o maior de seus
primeira vez aos setenta anos de idade;
descaramentos, salvo se essa gente
sinto-me, assim, completamente es-
chama formidável a quem diz a verda-
de; se é o que entendem, eu cá admiti- trangeiro à linguagem do local. Se eu
ria que, em contraste com eles, sou um fosse de fato um estrangeiro, sem dúvi-
orador. Seja como for, repito-o, verda- da me desculparíeis o sotaque e o lin-
de eles não proferiram nenhuma ou guajar de minha criação; peço-vos· 'ªª
quase nenhuma; de mim, porém, vós nesta ocasião a mesma tolerância, que
ides ouvir a verdade inteira. Mas não, é de justiça a meu ver, para minha lin-
por Zeus, Atenienses, não ouvireis dis- guagem - que poderia ser talvez pior,
cursos como os deles, aprimorados em· talvez m~lhor - e que examineis com
nomes e verbos, em estilo florido; atenção se o que digo é justo ou não.
e serão expressões espontâneas, nos ter- Nisso reside o mérito de um juiz; o de
mos que me ocorrerem, porque depo- um orador, em dizer a verdade.

Duas Classes de Acusadores

Cumpre, Atenienses, me defenda, acusadores; depois, das recentes e dos


em primeiro lugar, das primeiras alei- recentes. Com efeito, muitos acusado- b

vosias contra mim e dos primeiros res tenho junto de vós, há muitos anos,
12 PLATÃO

que nada dizem de verdadeiro. A esses nomes, salvo quando se trata, porven-
tenbo mais medo que aos da roda çle tura, de um autor de comédias. Os que,
Ânito 1 , posto que estes também são por inveja, ou malquerença, vos procu-
temíveis. Mais temíveis, porém, senho- ravam convencer, mais os que, conven-
res, são aqueles, que, encarregando-se cidos, por sua vez convenciam a
da educação da. maioria de vós desde outros, todos esses são os mais emba-
meninos, fizeram-vos crer, com acusa- raçosos; nem sequer é possível citar
ções inteiramente falsas, que existe aqui em juízo nenlhum deles e refutá-lo;
certo Sócrates, homem instruído, que o defensor é inevitavelmente o brigado
estuda os fenômenos celestes, que a combater como que sombras, a repli-
investigou tudo o que há debaixo da car sem tréplica. Em conclusão, con-
terra e que faz prevalecer a razão mais cordai comigo em que ·meus acusado-
fraca. Por terem espalhado esse boato, res são de duas classes:' os que acabam
Atenienses, são esses os meus acusado- de acusar-me e os de antanho, a quem
res temíveis, porque os seus ouvintes aludi; admiti, também, que destes ine
acham que os investigadores daquelas deva defender em primeiro lugar, pois
matérias não crêem tampouco nos deu- que a suas acusações destes ouvido
ses. Depois, esses acusadores são nu- primeiro e muito mais que às dos
merosos. e vêm acusando há muito últimos.
tempo; mais ainda, falavam convosco Bem, Atenienses, é mister que apre-
na idade em que mais crédulos podíeis sente minha defesa, que empreenda
ser, quando alguns de vós éreis crian- delir em vós os efeitos dessa calúnia, a 19a
ças ou rapazes, e a acusação era feita a que destes guarida por tantos anos, e
inteira revelia, sem defensor algum. De isso em prazo t~io curto. Eu .quisera
d tudo, o que tem menos sentido é não se que assim acontecesse, para o meu e
poderem dizer nem saber os seus para o vosso bem, e que lograsse êxito
a minha defesa; considero, porbm, a
1 Ânito rico industrial e político, fracassou como

general ~o ano 409 a.C. e, processado por isso, sal-


empresa difícil e não tenho a mínima
vou-se corrompendo os juízes. Passando ao partido ilusão a esse respeito. Seja como for,
popular, cooperou na derrubada da tirania dos Trin- que tomem as coisas o rumo que
ta e tornou-se muito influente. Figura, com Meleto e
Licão, entre os acusadores de Sócrates n.o processo. aprouver ao deus, mas cumpre obede-
(N. do T.) cer à lei e apresentar defesa.

·Acusações Antigas

Recapitulemos, portanto, desde o em sua difamação? Como se faz com o


começo, qual foi a acusação donde texto das acus1~õe, leiamos o das
h procede a calúnia contra mim, dando suas: "Sócrates é réu de pesquisar
crédito à qual, me moveu Meleto 2 o indiscretamente o que há sob a terra e
presente processo. Vejamos: que é nos céus, de fazer que prevaleça a
mesmo o que afirmam os caluniadores razão mais fraca e de ensinar aos ou-
2 Meleto, ou Melito, poeta de segunda ordem, cuja tros o mesmo comportamento." É mais e
obra não chegou até nós. (N. do T.) ou menos isso, pois é o que vós pró-
DEFESA DE.SÓCRATES 13

prios víeis na comédia de Aristófanes 3 de Ceos e Hípias de Élis. Cada um


- um Sócrates transportado pela deles, senhores, é capaz de ir de cidade
cena, apregoando que caminhava pelo em cidade, persuadindo os moços -
ar e proferindo muitas outras sandices que podem freqüentar um de seus
sobre assuntos de que não entende concidadãos a sua escolha e de graça
nada. Dizendo isso, não desejo menos- - a deixarem essa companhia e virem 20a
cabar tais conhecimentos, se é que os para a sua, pagando e ficando-lhes,
possui alguém - não será desse crime ainda, agradecidos. Por sinal, encon-
que me há de processar Meleto - mas tra-se entre nós outro sábio, um de
a verdade é que não tenho deles, Paros; veio para uma temporada
d Atenienses, a mais. vaga noção. Invoco segundo soube. Fui, por acaso, visitar
o testemunho da maioria de vós mes- um homem, que tem pago a sofistas
mos, pedindo que vos informeis mu- mais dinheiro que todos os outros reu-
tuamente e digam aqueles que alguma nidos; trata-se de Cálias, filho de
vez ouviram minhas conversas - há Hiponico. Eu lhe perguntava (ele tem
muitos deles entre vós. Dizei-o, pois, dois filhos): "Cálias, dizia eu, se teus
mutuamente, a ver se algum de vós me · filhos fossem potros ou garrotes, sabe-
ouviu alguma vez discorrer, por pouco ríamos a quem ajustar como treinador
que fosse, sobre tais assuntos. Assim para lhes aprimorar as qualidades ade- . h
ficareis sabendo que é do mesmo esto- quadas; seria um adestrador de cava-
fo tudo o mais que por aí se fala de los ou um lavrador; como, porém, eles
mim. são homens, quem pensas tomar como
· Na realidade, não têm fundamento seu treinador? Quem é mestre nas qua-
nenhum essas balelas; tampouco falará lidades.. de homem e de cidadão? Supo-
verdade quem vos disser que ganho
nho que pensaste nisso, por teres
e dinheiro lecionando. Sem embargo,
filhos. Existe algum, - dizia eu - ou
acho bonito ser capaz de ensinar,
não .existe? - Existe, sim, - disse ele.
como Górgias de Leontino 4 , Pródico
- Quem é? - tomei eu; de onde é?
3 Aristófanes, célebre e grande comediógrafo; quanto cobra? - É Eveno, ó Sócrates,
punha em cena personagens e temas da época, pole-
mizando a respeito de política, costumes e idéias. - respondeu ele - de Paros, por
Na comédia das Nuvens, ridiculariza e calunia a cinco minas." Fiquei, então, com inve-
Sócrates, apresentando-o como um charlatão. (N.
do T.)
ja desse Eveno, se é que é senhor dessa
4
Górgias, Pródico e Hípias eram sofistas, isto é, arte e leciona a tão bom preço. Por ·e
professores; propunham-se a tornar seus discípulos mim, bem que me orgulharia e enso-
sophói, ou seja, hábeis, preparados. O primeiro
ensinou fiJosofia e retórica; o segundo, moral e
berbeeeria de ter a mesma ciência!
gramática; o terceiro, de tudo. (N. do T.) Pena é que não a tenho, Atenienses.
14 PLATÃO

Ciência e Missão de Sócrates

Um de vós poderia intervir: "Afinal, voltou conosco. Sabeis o tempera-


Sócrates, qual é a tua ocupação? mento de Querefonte,. quão te:r:iaz nos.
Donde procedem as calúnias a teu res- seus empreendill]entos. Ora, certa vez,
peito? Naturalmente, se não tivesses indo a Delfos, arriscou esta consulta
uma ocupação muito fora do comum, ao oráculo - repito, senhores; não
não haveria esse falatório, a menos que vos amotineis -- ele perguntou se
praticasses alguma extravagância. Di- havia alguém mais sábio que eu; res-
ze-nos, pois, qual é ela, para que não pondeu 'à. Pítia 6 que não havia nin-
façamos nós um juízo precipitado." guém mais sábio. Para testemunhar
d Teria razão quem assim falasse; tenta- isso, tendes aí o irmão dele, porque ele
rei explicar-vos a procedência dessa já morreu.
reputação caluniosa. Ouvi, pois. Al- Examinai por que vos conto eu esse
guns de vós achareis, talvez, que estou fato; é para explicar a procedência da
gracejando, mas não tenhais dúvida: calúnia. Quando soube daquele orácu-
eu vos contarei toda a verdade. Pois lo, pus-me a refletir assim: "Que quer~
eu, Atenienses, devo essa reputação rá dizer o deus? Que sentido oculto
exdq.sivamente a uma ciência. Qual pôs na resposta? Eu cá não tenho
vem a ser a ciência? A que é, talvez, a consciência de ser nem muito sábio
ciência humana. É provável que eu a nem pouco; qu·e quererá ele, então, sig-
e possua realmente., os mestres mencio- nificar declarando-me o mais sábio?
nados há pouco possuem, quiçá, uma Naturalmente, não está mentindo, por-
sobre-humana, ou não sei que diga, que isso lh~ é impossível." Por longo
porque essa eu ·não aprendi, e quem tempo fiquei nessa incerteza sobre o
disser o contrário me estará calu- sentido; por fim, muito contra meu
niando. Por favor, Atenienses, não vos gosto, decidi-me por uma investigação,
amotineis, mesmo que eu vos pareça que passo a expor. Fui ter com um dos e
dizer uma enormidade; a alegação que que passam por sábios, porquanto, se
vou apresentar nem é minha; citarei o havia lugar, era ali que, para rebater o
autor, que considerais idôneo. Para oráculo, mostraria ao deus: "Eis aqui
testemunhar a minha ciência, se é uma um mais sábio qllle eu, quando tu dis-
ciência, e qual é ela, vos trarei o deus se~t que eu o era!" Submeti a exame
de Delfos ~. C,onhecestes Querefonte, essa pessoa - é escusado dizer o seu
decerto. Era meu amigo de infância e nome; era um dos políticos. Eis,
21a também amigo do partido do povo e Atenienses, a impressão que me ficou
seu companheiro naquele exílio de que do exame e da conversa que tive com
5 Em Delfos havia um templo, onde Apolo dava
ele; achei que ele passava por sábio
oráculos, predizendo o futuro. A alusão é ao exílio aos olhos de muita gente, principal-
sofrido pelos partidários da democracia, no ano 4Ó4
a.C., quando se instalou em Atenas a tirania dos 6
Assim se chamava a sacerdotisa do templo de
Trinta. (N. do T.) Delfos, que formulava os oráculos. (N. do T.)
DEFESA DE SÓCRATES 15-

mente aos seus próprios, mas não o tempo, aprendendo deles alguma coisa.
era. Meti-me,· então, a explicar-lhe que Pois bem, senhores, coro de vos dizer a
supunha ser sábio, mas não o era .. A verdade, mas é preciso. A bem dizer,
conseqüência foi tomar-me odiado quase todos os circunstantes poderiam
d dele e de muitos dos circunstantes. falar melhor que eles próprios sobre as
Ao retirar-me, ia concluindo de mim .obras que eles compuseram. Assim,
para comigo: "Mais sábio do que esse logo acabei compreendendo que tam-
homem eu sou; é bem provável que ne- pouco os poetas compunham suas
nhum de nós saiba nada de bom, mas obras por sabedoria, mas por dom ("
ele supõe saber alguma coisa e não natural, em estado de inspiração, como
sabe, enquanto eu, se não sei, tam- os adivinhos e profetas. Estes também
pouco suponho saber. Parece que sou dizem muitas belezas, sem nada saber
um nadinha mais sábio que ele exata- do que dizem; o mesmo, apurei, se dá
mente em não supor que saiba o que com os poetas; ao mesmo tem.po, notei
não sei." Daí fui ter com outro, um dos que, por causa ·da poesia, eles supõem
que passam por ainda mais sábios e ser os mais sábios dos homens em ou-
e tive a mesmíssima impressão; também tros campos, em que não o são. Saí,
ali me tomei odiado dele e de muitos
pois, acreditando superá-los na mesma
outros.
Depois disso, não· parei, embora particularidade que aos políticos.
sentisse, com mágoa e apreensões, que Por fim, fui ter com os artífices;·
me ia tornando odiado; não obstante, tinha ccmsciência de não saber, a bem d
parecia-me imperioso dar a máxima dizer, nada, e certeza de neles desco-
irhportânéia ao serviço do deus. Cum- brir muitos belos conhecimentos.
pria-me, portanto, para averiguar o Nisso não me enganava; eles tinham
sentido do oráculo, ir ter com todos os conhecimentos que me faltavam; eram,
que passavam por senhores de algum assim, mais sábios que eu. Contudo,
27a saber. Pelo Cão, Atenienses! Já que Atenienses, achei que os bons artesãos
vos devo a verdade, juro que se deu co- têm o mesmo defeito dos poetas; por
migo mais ou menos isto: investigando praticar bem a sua arte, cada qual ima-
de acordo com o deus, achei que aos ginava ser sapientíssimo nos demais
mais reputados pouco faltava para assuntos, os mais difíceis, e esse enga- e
serem os mais desprovidos, enquanto no toldava-lhes aquela sabedoria. De
outros, tidos como inferiores, eram os sorte que perguntei a mim mesmo, em
que mais visos tinham de ser homens
nome do oráculo, se preferia ser como
de senso. Devo narrar-vos os meus vai-
sou, sem a sabedoria deles nem sua
véns nessa faina de averiguar o orácu-
ignorância, ou possuir, como eles, uma
lo.
Depois dos políticos, fui ter com os e outra; e respondi, a mim mesmo e ao
poetas, tanto os autores de tragédias oráculo, que me convinha mais ser
como os de ditirambos e outros, na como sou.
esperança de aí me apanhar em fla- Dessa investigação é que procedem,
grante inferioridade cultural. Levando Ateniense-s, de um lado, tantas inimiza-
em mãos as obras em que pareciam ter des, tãoi acirradas e maléficas, que 2Ja

posto o máximo de sua capacidade, deram nascimento a tantas calúnias, e,


interrogava-os minuciosamente sobre de outro, essa reputação de sábio. É
o que diziam, para ir, ao mesmo que, toda vez, os circunstantes supõem
16 PLATÃO

que eu seja um sábio na matéda em existe um tal Sócrates, um grande


que confundo a outrem. O provável, miserável, que corrompe a mocidade.
senhores, é que, na realidade, o sábio Quando se lhes pergunta por quais
seja o deus e queira dizer, no seu orá- atos ou ensinamentos, não têm o que
culo, que pouco valor ou nenhum tem responder; não ~;abem, mas, para não
a sabedoria humana; evidentemente se mostrar seu embaraço, aduzem aque-
terá servido deste nome de Sócrates las acusações contra .todo filósofo,
para me dar como exemplo, como se sempre à mão: "·os fenôme,nos celestes
b dissesse: "O mais sábio dentre vós - o que há sob a terra _i; a descrença
homens, é quem, como Sócrates, com~ dos deuses - ·o preval~cimnto da
preendeu que sua sabedoria é verdadei- razão mais fraca". Porque, suponho,
ramente desprovida do mínimo valor." não estariam dispostos a .confessar a
Por isso não parei essa investigação verdade: terem dlado prova de que fin-
até hoje, vagueando e interrogando, de gem saber, m:as nada sabem. Como
acordo com o deus, a quem, seja cida- são ciosos de honrarias, tenazes, e
dão, seja forasteiro, eu tiver na conta numerosos, persuasivos no que dizem
de sábio, e, quando julgar que não o é, de mim por se confirmarem uns aos
coopero com o deus, provando-lhe que outros, não é ele hoje que eles têm
não é sábio. Essa ocupação não me enchido vossos ouvidos de calúnias
ass.anhadas. Daí a razão de me ataca-
permitiu lazeres para qualquer ativi- rem Meleto, Ânito e Licão - tomando
dade digna de menção nos negócios Meleto as dores dos poetas; Ânito, as 24a
públicos riem nos particulares;· vivo dos artesãos e políticos; e Licão, as
e numa pobreza extrema, por estar ao
dos oradores. Dessarte, como dizia ao
serviço do deus.
começar, eu ficaria surpreso se logras-
Além disso, os moços que esponta- se, em tão curto prazo, delirem vós os
neamente me acompanham - e são os efeitos dessa calúnia assim avolumada.
que dispõem de mais tempo, os das Aí tendes, Atenienses, a verdade; em
famílias mais ricas - sentem prazer meu discurso não vos oculto nada que
em ouvir o exame dos homens; eles tenha algum.a importância, nada vos
próprios imitam-me muitas vezes; nes- dissimulo. Sem embargo, sei que me
sas ocasiões, metem-se a interrogar os estou tornando odioso por mais ou
outros; suponho que descobrem uma menos os mesmos motivos, o que com-
multidão de pessoas que supõem saber prova a verdade do que digo, que é
alguma coisa, ~as pouco sabem, quiçá mesmo essa a calúnia contra mim e
nada. Em conseqüência, os que eles são mesmo essas as suas càusas. É o
examinam se exasperam contra mim e que haveis de descobrir, se investi-
não contra si mesmos, e propalam que gardes agora ou mais tarde.
f
DEFESA DE SÔCRATI'ES 17

A Denúncia de Meleto

Nada mais preciso dizer para defen- fazes o mm1mo caso, como eu disse?
der-me, diante de vós, das mentiras de Vamos, bom rapaz, fala; quem é que e
meus primeiros acusadores. Tentarei, os toma melhores?
em seguida, defender-me de -Meleto, - São as leis.
esse honrado e prestante cidadão, - Não é isso o que estou pergun-
como se proclama, e dos acusadores tando, excelente rapaz; pergunto que
recentes. Novamente, já que se trat.a de homem é, o qual, para começar, sabe
outros acusadores, tomemos também o exatamente isso, as leis.
texto de sua acusação. Reza ele mais - As pessoas presentes, Sócrates;
ou menos assim: "Sócrates é réu de os juízes.
corromper a mocidade e de não crer - Que dizes, Meleto? Os presentes
nos deuses em que o povo crê e sim em são capaz'es de educar os moços e os
e outras divindades no.vas." Essa a natu- tornam melhores?
reza da queixa; examinemo-la parte Sem dúvida.
por parte.
Todos? Ou uns sim e outros
Diz que sou réu de corromper a não?
mocidade. Mas eu, Atenienses, afirmo Todos.
que Meleto é réu de brincar com assun- Boa notícia nos dás, por Hera!
tos sérios; por leviandade, ele traz a Sobejam os benfeitores! Que mais? E 2s0
gente à presença dos juízes, fingindo-se esses da assistência os tomam melho-
profundamente interessado por ques- res ou não?
tões de que jamais foz o mínimo caso. Eles também.
Vou também procurar demonstrar-vos Que dizer dos conselheiros?
que assim é. Também os conselheiros.
- Dize-me cá, Meleto: Dás muita Mas, então, Meleto, acaso os
d importância a que os jovens sejam homens da assembl'éia, o~ eclesiastas
quanto melhores? corrompem a mocidade? Ou eles todos
- Dou, sim. -também a tomam melhor?
- Faze, então, o favor de dizer a - Também eles.
estes senhores quem é que os toma - Logo, não é assim? todos os ate-
melhores; evidentemente o sabes, pois nienses a tomam gente de bem, menos
que te importa. Descoberto o corrup- eu; eu sou o único a corrompê-la! É
tor, segundo afirmas, tu me conduzes à isso o que dizes?
presença destes senhores e me acusas; Exatamente isso é o que digo.
portanto, faze o favor de dizer quem os - Que imensa desdita apontas em
toma melhores; conta-lhes quem é. mim! Responde também a esta per-
Estás vendo, Meleto, que te calas e não gunta: no teu entender, com os cavalos
sabes o que dizer? Com efeito, não sucede o mesmo? Toda gente os h

achas que isso é feio e prova que não melhora. e um só os vicia? Ou se dá


18 PLATÃO

inteiramente o contrário: quem os sabe po, é sem querer; numa suposição


melhorar é um só, ou muito poucos, os como na outra, estás mentindo. Se,
adestradores; a maioria, quando trata porém, corrompo sem querer, a lei não
de cavalos e. os monta, vicia-os? Não é manda trazer-me aqui por semelhante
assim, Meleto, com os cavalos e com erro involuntário, mas tomar-me de
todos os outros animais? Sem dúvida,
parte, ensinar-me, ralhar comigo; evi-
quer o negueis tu e Ânito, quer o afir-
c. meis. Que bom para os moços, se há dentemente, depois de aprender, deixa-
um só a corrompê-los e os outros todos rei de fazer o que sem querer ando
a fazer-lhes bem! Ora, Meleto, estás fazendo. Tu, porém, evitaste, não esta-
dando provas acabadas de que nunca vas disposto a ajudar-me com teus
te preocupaste com a mocidade e reve- ensinamentos e me trouxeste aqui, para
lando claramente a tua indiferença onde a lei manda trazer quem precisa
para com o crime de que me acusas! de castigo e não de lições. Ora,
Por Zeus, Meleto, dize-nos mais uma · Atemenses, está demonstrado que euo
coisa; é melhor habitar entre cidadãos dizia: Meleto jamais fez o mínimo caso·
prestimosos ou entre daninhos? Meu dessa questão. Sem embargo, dize-nos,
caro, responde; minha pergunta é fací- Meleto: por que processo corrompo eu
lima! Não é verdade que sempre os a mocidade, segundo afirmas? Ou é
daninhos acabam fazendo mal a quem claro que, segundo a tua denúncia,
está perto, ·e os prestimosos algum ensinando-os a não crer nos deuses.em
bem? que o povo crê e sim em outras divin-
Decerto. dades novas? Não afirmas que os cor-
d Haverá, então, quem queira re- rompo ensinando isso?
ceber de seus c.ompanheiros antes - É exatamente isso que proclamo
danos que beneficias? Responde, bom em alto e bom som.
homem; a lei manda que respondas. - Então, N.Celeto, por esses mes-
Há quem prefira o dano? mos deuses de que agora se trata, fala e
- Não, é claro. com mais clareza ainda, a mim e a
- Adiante. Trouxeste-me aqui estes senhores;não consigo entender se
como alguém que corrompe e perverte afirmas que ensino a crer na existência
a mocidade por querer ou sem querer? de certos deuses - nesse caso admito
Por querer, ora essa! a existência de deuses, absolutamente
- Como assim, Meleto? Tu na tua não sou ateu, nem é esse o meu crime,
idade me superas tanto a mim na se bem que não sejam os deuses do
minha, que tu sabes que os maus sem- povo, mas outros, e por serem outros é
pre acabam fazendo algum mal a seus que me processas - ou se afirmas que
mais próximos e os bons algum bem, e não creio mesmo em deus nenhum e
eu sou tão ignorante que nem mesmo ensino isso aos outros.
sei que, se tornar malfazejo alguém do - Isso é o que afirmo, que não crês d
meu convívio, me arrisco a receber mesmo em deus nenhum.
dele algum dano? E, segundo dizes, - Meleto, tu és um assombro!
tamanho mal eu o faço por querer? A Com que intuito dizes isso? Então eu
mim não me convences disso, Meleto; não creio, como toda gente, que o sol e
nem cre~o que convenças outra pessoa. a lua são ·deuses?
26a. Não; ou não corrompo, ou, se corrom- - Por Zeus, senhores juízes, ele
DEFESA DE SÓCRATES 19

não crê, pois afirma que o sol é pedra e acreqite na existência de coisas huma-
a lua é terra. nas e não na dos homens? Que ele res-
- Tu supões estar acusando o ponda, senhores, e não levante protes-
Anaxágoras 7 , meu caro Meleto ! Dessa tos sobre protestos! Há alguém que
forma, subestimas os presentes, julgan- não acredite em cavalos e sim na equi-
do-os tão iletrados que ignorem que os taç~o? não creia em flautistas, e sim na
livros de Anaxágoras de Clazômenas é arte de tocar flauta? Não há, excelente
que andam cheios dessas teorias. Logo· homem.; se não queres tu responder, eu
de mim é que os moços aprendem liga- o direi a ti e aos demais presentes. Res-.
ções que eles podem, vez por outra, ponde, porém, à pergunta que vem.
e comprar na orquestra, quando muito após aquelas: há quem acredite em
por três dracmas e depois rir de Sócra- poderes demoníacos, mas não que exis-:- e
tes se as quiser· impingir como suas, tam demônios?
tanto mais umas tão originais! Enfim, - Não há.
por Zeus, é isso o que pensas de mim? - Obrigado por teres respondido,
que não creio em deus algum? embora contrariado, sob a coação· do
- Não crê, por Zeus; ele não crê tribunal. Por conseguinte, afirmas que
em deus algum ! eu acredito e ensino que há poderes
- Tu não mereces fé, Meleto, nem demoníacos; sejam novos, sejam anti-
mesmo a tua própria, ao que parece. gos, segundo dizes, acredito em pode-
Este homem, Atenienses, acho que é res demoníacos; foi o que juraste na
por demais temerário e estouvado e me denúncia. Ora, se acredito em seus
fez esta denúncia apenas por temeri- poderes, força é concluir que acredito
dade e estouvamento de juventude-; ele em demônios. Não é assim? Sem dúvi-
dá a impressão de estar propondo uma da; faço de conta que concordas, já ·d
:?1a. adivinha para p.le experimentar: "Será que não respondes. Os demônios, não é
que o sábio Sócrates vai perceber que verdade que os consideramos deuses
estou brincando e me contradizendo, ou filhos de deuses? Sim ou não?
ou será que o vou lograr com os de- - Por certo.
mais ouvintes?" Penso que ele se con- - Logo, se acredito. em demônios,
tradiz na denúncia, como se dissesse: estes ou são uma sor:te de deuses - e
"Sócrates é réu de crer nos deuses em eu teri3: rp.zão afirmando que estás pro-
vez de crer nos deuses." Isso é de quem pondo uma adivinha por brincadeira,
está brincando. dizendo que eu creio em deuses em vez
Examinai comigo, senhores, por que de crer em deuses,· pois que acredito
penso que ele diz isso; tu, .Meleto, em demônios - ou são filhos" de deu-
responde-nos. Vós, de vossa parte, ses, uma sorte de bastardos, nascidos
lembrai-vos do que vos ·pedi no· come- de ninfas ou de outras mulheres a
ço e não vos amotineis se eu arranjar a quem os atribui a tradição - e que
discussão à minha maneira· habitual. homem pode acreditar em filhos ·de
Existe, Meleto, uma pessoa que deuses.· e não em deuses? Seria a
7 Anaxágoras, filósofo da escola jônica, mestre ~ mesma aberração de quem acreditasse
conselheiro de Péricles, célebre por ter concebido a · serem os machos filhos de éguas e
· existência duma Mente, Naus, ordenadora do Uni- jumentos, sem crer em éguas e jumen-
verso. Por dar explicaÇões naturalistas dos fenôme-
nos celestes, foi condenado por impiedade a áilar- tos. Não, Mdeto, não é admissível que
se de Atenas em 432 a.C. Suas obr.as, como as :de tenhas ,apresentado essa denúncia sem
outros autores, podiam 'ser compradas no local do
teatro destinado ao coro, denomi~ orquestra. o propósito de nos pôr· à prova, salvo
(N. do T.) s'e foi à falta ~e um crime real por que
20 PLATÃO

me processes; de convenceres alguém, Ficai, porém, certos de que é verda-


por estúpido que seja, de que uma de o que eu dizia há pouco, que muita
mesma pessoa possa acreditar em gente me ficou querendo muito mal. O
poderes demoníacos e divinos, mas que me vai condenar, se eu for conde-
sem acreditar em demônios, deuses e
nado, não é Meleto, nem Ânito, mas a
heróis, não existe a mínima possibili-
a
2aa

dade. Por conseguinte, Atenienses, calúnia e o rancor de tanta gente; é o


ausência da culpa a mim imputada na que perdeu muitos outros homens de
denúncia de Meleto não parece deman- bem e ainda os há de perder, pois não é b
dar longa defesa; basta o que foi dito. de esperar que pare em mim.

Justificação de Sócrates

Alguém, talvez, pergunte: "Não te "Morra eu assim que castigue o culpa-


pejas, ó Socrates, de te haveres dedi- do, mas não· fique por aqui, alvo de
cado a uma ocupação que te põe agora risos junto das curvas naus, como um
em risco de morrer?" Eu lhe daria esta fardo da terra." Cuidas que ele se preo-
resposta justa: ·"Estás engançido, cupou com o perigo de morte?" A ver-
homem, se pensas que um varão de dade, Atenienses, é esta: quando a
algum préstimo deve pesar as possibiti- gente toma uma posição, seja por a
dades de vida e morte em vez de consi- .considerar a melhor, seja porque tal foi
derar apenas este aspecto de seus atos: a ordem do comandante, aí, na minha
se o que faz é justo ou injusto, de opinião, deve permanecer diante dos
homem de brio ou de covarde. No teu perigos, sem pesar o risco de morte ou
entender, não teriam méritos os semi- qualquer outro, salvo o da desonra.
deuses que pereceram em Tróia; entre Grave falta, Atenienses, teria come-
,. eles o filho de Tétis 8 , que desdenhava tido eu, que, em Potidéia, em Anfipolis
tanto o perigo em confronto com o e Délio, permaneci, como qualquer e
passar por uma vergonha. Querendo outro, no posto designado pelos chefes
ele matar a Heitor, sua mãe, uma por vós eleitos para me comandar e ali
deusa, . lhe disse parece que mais ou enfrentei a morte, se, quando um deus,
menos estas palavras: "Filho, se mata- como eu acreditava e admitia, me
res a Heitor para vingar a morte de teu mandava levar vida de filósofo, subme-
amigo P átroclo, tu próprio morrerás; tendo a provas a mim mesmo e aos
pois, dizia ela, o teu destino te espera· outros, desertasse o meu posto por
logo depois de Heitor." Ele, apesar de temor da morte ou de outro mal qual-
ouvir a advertência, fez pouco caso do quer. Seria grave e então devera.s côm 29a

d perigo de morte e, porque temia muito justiça me haveriam trazido ao tribu-


mais viver com desonra, respondeu: nal pelo crime de: não crer nos deuses,
8 Tétis, nereida, divindade' marinha, foi mãe de
pois teria desobedecido ao oráculo por
Aquiles, herói da Ilíada; aqui, alude-se a uma cena temor da morte e supondo ser sábio
do canto XVIII, desse poema. (N. do T.) sem que o fosse.
DEFESA DE SÓCRATES 21

Com efeito, senhores, temer a morte to e puder fazê-lo, jamais deixarei de


é o mesmo que supor-se sábio quem filosofar, de vos dirigir exortações, de
não o é, porq~e é supor que sabe o que ministrar ensinamentos em toda oca-
não sabe. Ninguém sabe o que é a sião àquele de vós que eu deparar,
morte, nem se, porventura, será para o dizendo-lhe o que costumo: 'Meu -caro,
homem o maior dos bens; todos a tu, um ateniense, da cidade mais
temem, como se soubessem ser ela o importante e mais reputada por sua
h maior dos males. A ignorância mais cultura e poderio, não te pejas de cui-
condenável não é essa de supor saber o dares de adquirir o máximo de rique-
que não sabe? É talvez nesse ponto, zas, fama e honrarias, e de não te
senhores, que difiro do comum dos importares nem cogitares da razão, da
homens; se nalguma coisa me posso verdade e de melhorar quanto mais a e
dizer mais sábio que alguém, é nisto tua alma?' " E se algum de vós redar-
de, não sabendo o bastante sobre o güir que se importa, não me irei embo-
Hades 9 , não pensar que o saiba. Sei, ra deixando-o, mas o hei de interrogar,
porém, que é mau e vergonhoso prati- examinar e confundir e, se me parecer
car o mal, <leso bedecer a um melhor do que afirma ter- adquirido a virtude e
que eu, seja deus, seja homem; por não a adquiriu, hei de repreendê-lo por
isso, na alternativa com males que estimar menos o que vale mais e mais
conheço como tais, jamais fugirei de o que vale menos. É o que hei de fazer Joa

medo do que não sei se será um bem. a quem eu encontrar, moço ou velho,
Portanto, mesmo que agora me forasteiro ou cidadão, principalmente
dispensásseis, desatendendo ao parecer aos cidadãos, porque me estais mais
de Ânito, segundo o qual, antes do próximos no sangue. Tais são as or-
mais, ou eu não devia ter vindo aqui, dens que o deus me deu, ficai certos. E
ou, já que vim, é impossível deixar de eu acredito que jamais ac~:mteu à ci-
condenar-me à morte, asseverando ele dade maior ~em que minha obediência
que, se eu lograr absolvição, logo ao deus.
todos os vossos filhos, pondo em prá- Outra coisa não faço senão andar
tica os ensinamentos de Sócrates, esta- por aí persuadindo-vos, moços e ve-
rão inteiramente corrompidos; mesmo lhos, a não cuidar tão aferradamente
que, apesar disso, me dissésseis: do corpo e das riquezas, como de
"Sócrates, por ora não atenderemos a melhorar o mais possível a alma,
Ânito e te deixamos ir, mas com a con- dizendo-vos que dos haveres não vem h
dição de abandonares essa investiga- a virtude para os homens, mas da vir-
ção e a filosofia; se fores apanhado de tude vêm os haveres e todos os outros
d novo nessa prática, morrerás"; mesmo, bens particulares e públicos. Se com
repito, que me dispensásseis com essa esses discursos corrompo a mocidade,
condição, eu vos responderia: seriam nocivos esses preceitos; se
"Atenienses, eu vos sou reconhecido e alguém afirmar que digo outras coisas
vos quero bem, mas obedecerei antes e não essas, mente. Por tudo isso,
ao deus que. a vós; enquanto tiver alen- Atenienses, diria eu, quer atendais a
Ânito, quer não, quer me dispenseis, e
9 Segundo criam os gregos, após a morte, iam as quer não, não hei de fazer outra coisa,
almas para o Hades, espécie de limbo, lu_gar escuro
e frio, situado no âmago da terra, onde continuavam ainda que tenha ·de morrer muitas
a viver, como sombras. (N. do T.) vezes.
22 PLATÃO

Quem Perderia Mais com a Condenação

Não vos amotineis, Atenienses; de com essa incumbência de me assen-


mantende o favor que vos pedi, não tar perto, em toda parte, para não ces-
vos amotinando com o que digo, mas sar de vos despertar, persuadir e Jli1
ouvindo-me; acredito que ouvir-me vos repreender um por um. Outro igual
será realmente proveitoso. Estou, é não tereis facilmente, senhores, mas, se
verdade, para dizer outras coisas que me crerdes, vós me poupareis. Bem
talvez vos façam gritar, mas não façais pode ser que, aborrecidos como quem
isso de .modo algum. Ficai certos de dormia e foi despertado, deis ouvidos a
uma coisa: se me condenardes por ser Ânito e, repelindo-me, me condeneis
eu como digo, causareis a vós próprios levianamente à morte; depois, passa-
maior d.ano que a mim. A mim dano reis o resto da vida a dormir, salvo se o
algum podem causar Meleto e Ânito; deus, cuidadoso de vós, vos enviar
eles não têm forças para tanto; não algum outro. Podeis reconhecer que
d creio que os céus permitam que um sou bem um homem dado pelo deus à
homem melhor seffra danos de um pior. cidade por esta reflexão: não é con- b
Eles podem, sim, mandar-me matar, forme à natureza do homem que eu
exilar-me, privar-me dos direitos; tal- tenha negligenciado todos os meus
vez eles e outros pensem que essas são interesses, sofrendo, há tantos anos, as
grandes desgraças; eu não; eu penso conseqüências desse abandono do que
que muito pior é fazer o que ele está é meu, para me ocupar do que diz res-
fazendo, tentando a execução injusta pe_ito a vós, dirigindo-me sem cessar a
de um homem. Neste momento, Ate- cada um em particular, como um pai
nienses, longe de atuar na minha defe- ou um irmão mais velho, para o per-
sa, como poderiam crer, atuo na vossa, suadir a cuidar ela virtude. Se auferisse
evitando que, com a minha condena- proveito, se meus conselhos fossem
e ção, cometais uma falta para com a pagos, meu procedimento teria outra
dádiva que recebestes do deus. Se me explicação; mas vós mesmos o estais
matardes, não· vos será fácil achar vendo: meus acusadores, tão descara-
outro igual, outro que - embora seja dos em todas as outras acusçõe~, não
engraçado dizê-lo - por ordem divina foram capazes da extrema impudência·
se aferre inteiramente à cidade, como a de exibir testemunha de que alguma
um cavalo grande e de raça, mas um vez tenha recebido ou pedido remune- e
tanto lerdo por causa do tamanho e ração. Porque da verdade de minhas
precisado de um tavão que o espevite; alegações exibo:. suponho, uma prova
parece-me que o deus me impôs à cida- cabal: minha pobreza.
DEFESA DE SÓCRATES 23

Abstenção da Política

Pode parecer esquisito que eu me do Conselho. Calhou que a prit"ania 1 0


azafame por todo canto a dar conse- coube ~ minha tribo, a Antióquida,
lhos em particular e não me abalance a quando do processo dos dez capitães
subir diante da multidão para dar con- que deixaram de recolher os mortos da
selhos públicos à cidade. A razão disso batalha naval; vós os queríeis julgar
d em muitos lugares e ocasiões ouvistes em bloco, o que era ilegal, como todos
em minhas conversas: um~ inspiração . reconhecestes depois. Naquela ocasião
que me ·vem de um deus ou de um fui o único dos prítanes que me opus a
gênio, da qual Meleto fez caçoada na qualquer ação ilegal vossa, votando
denúncia. Isso começou na minha
contra; os oradores estavam prontos a
infância; é uma voz que se produz e, procesa~m, a mandar-me prender;
quando se produz, sempre me desvia
do que vou fazer, nu_nca me incita. Ela vós os incitáveis a isso aos brados.
Embora! Achei de meu dever correr
é que me barra a atividade política. E
barra-me, penso, com toda razão; ficai perigo ao lado da lei e da justiça, em
certos, Atenienses: se há muito eu me vez de estar convosco numa decisão
injusta, por medo da prisão ou da
e tivesse votado à política, há muito morte.
estaria morto e não teria sido nada útil
a vós nem a mim mesmo. Por favor, Isso foi ainda no regime democrá-
tico. Doutra feita, após a instauração
não vos doam as verdades que digo;'
da oligarquia, fui ehamado com outros
ninguém se pode salvar quando se
quatro à Rotunda pelos Trinta e estes
opõe bravamente a vós ou a outra mul-
tidão qualquer para evitar que aconte- nos ordenaram que fôssemos a Sala-
çam na cidade tantas injustiças e ilega- mina buscar a Leão Salamínio para
12a lidades; quem se bate deveras pela morrer; .a muitas outras pessoas eles
justiça deve necessariamente, para davam ordens semelhantes, no intuito
estar a salvo embora por pouco tempo, de comprometer o maior número pos-
atuar em particular e não em público. sível. Nessa ocasião, de p.ovo, por atos,
não por palavras, demonstrei que à
Disto vos posso dar provas valiosas;_
morte - desculpai a rudeza da expres- d
não argumentos, mas fatos, que é o que
são - não ligo mais imp.ortância que
acatais. Ouvi o que me sucedeu, para
saberdes que não tenho, por medo da a um figo podre, mas a não cometer
morte," transigência nenhuma com a nenhuma injustiça ou impiedade, a isso
injustiça e que, por não ceder, teria sim dou o máximo valor. A mim, aque-
perecido. O que vou dizer é banl~ é de 10 Os delegados das tribos, em que se dividia o
leguleio, mas é verdade. povo ateniense, ao Conselho dos Quinhentos, espé-
· Com efeito, Atenienses, jamais exer- cie de câmara deliberativa, chamavam-se prítanes.
Alude-se ao processo dos comandantes da batalha
ci um cargo público; apenas fiz parte naval de Arginusas, em 406 a.C. (N. do T.)
24 PLATÃO

le governo, poderoso como era, n~o essa atitude a máxima importância que
conseguiu forçar-me a uma injustiça; lhe é devida? Que: esperança, Atenien-
ao deixarmos a Rotunda, os quatro ses! Nem - eu, :o.em outro homem
seguiram para Salamina e trouxeram nenhum!· Pois bem, em toda minha 33a

Leão, mas eu voltei para casa. Bem vida, em minha pouca intervençã.._ nos
podia ter morrido por isso, se aquele negócios púbiicos, deixei patente que
sou assim, como também sou assim
e governo tardasse a cair. Há muitas
nos negócios. particulares, jamais as-
testemunhas desses fatos. Pensais, sentindo com quem quer que seja no
acaso, que eu teria vivido tantos anos, que quer que seja fora dos limites da
se houvesse tomado parte na política e, justiça, principalmente com qualquer
obrando como homem de bem, me daqueles que os caluniadores chamam
houvesse batido pela justiça, dando a discípulos meus.

A Escola de Sócrates

Eu nunca fui mestre de ninguém, não só através do oráculo, mas. tam-


conquanto nunca me opusesse a moço bém de sonhos e de todas as vias pelas
ou velho que me quisesse ouvir no ·quais o homem recebe ordens dos deu-
desempenho de minha tarefa. Tam- ses. É fácil de comprovar essa verdade;
pouco falo se me pagam, e se não se há moços que estou corrompendo e
pagam, não; estou igualmente à dispo- outros que já corrompi, forçosamente,
sição do rico e do pobre, para que me decerto, alguns deles já amadurecidos
interroguem ou, se preferirem ser inter:- compreenderam que outrora, na sua
rogados, para que ouçam o- que digo. mocidade, eu lhes dera maus conselhos
Se algum deles vira honesto ou não, e podem levantar··se para me acusar e
não é justo que eu responda pelo que punir; se não o quiserem eles fazer,
jamais prometi nem ensinei a ninguém. alguém da família, o pai, os irmãos,
Quem afirmar que de mim aprendeu outros parentes, se os seus familiares
ou ouviu em particular alguma coisa sofreram qualquer má influência
que não todos os demais, estai certos minha, podem lembrá-la agora e pu-
de que não diz a verdade. nir-me. Há um bem grande número
Então, por que será que alguns gos- deles que estou ve:ndo aqui, a começar
tam de se entreter comigo tanto por Críton, que é da minha idade e do
tempo? Vós o ouvistes, Atenienses; eu meu bairro, pai de Critobulo aqui pre-
vos disse toda a verdade; eles gostam sente; em segui.da:. Lisânias de Esfetos,
de me ouvir examinar os que supõem pai Je Ésquir1es, que aí está; depois,
ser sábios e não o são; e isso não deixa Antifonte de Cefisia, pai de Epígenes;
de ter o seu gosto. Mas, repito, faço-o aí estão outros, êujos irmãos freqüen-
por uma determinação divina, vinda taram aqueles entretenimentos: Nicós-
DEFESA DE SÓCRATES 25

trato, filho de Teozótides e irmão de agora, com minha licença, e diga se


Teódoto -Teódoto, por sinal, morreu tem algum testemunho daquela nature-
e não poderia estorvá-lo com sua inter- za. Bem ao contrário, senhores, acha-
cessão; há mais Páralo, filho de Demó- reis todos prontos a acudir-me a mim,
doco, de quem era irmão Teages; esse o corruptor, que faço mal a seus paren-
outro é Adimanto, filho- de Aristão, de tes no dizer de Meleto e Ânito. Talvez
quem é irmão Platão aqui presente; tivessem razões para me apoiar os
J4a esse é Ajantodoro, de quem· é irmão
corrompidos; mas os que não corrom-
Apolodoro, também· presente. Posso
citar muitas outras pessoas, uma das pi, já mais idosos, parentes daqueles,
quais de preferência devia Meleto ter que motivo terão para apoiar-me,
apresentado como testemunha da acu- senão o reto e justo de reconhecerem
sação; se então se esqueceu, faça-o que ~elto mente e eu digo a verdade?

O Estilo da Defesa

Basta, senhores; o que eu poderia não nasci dum carvalho ou dum penedo,
alegar em minha defesa é, em suma, mas de seres humanos; portanto, Ate-
isso mesmo e quiçá argumentos do nienses, tenho parentes e filhos; estes
e mesmo gênero. Algum de vós talvez se são três, um já taludo e dois pequeni-
indigne com a recordação do seu caso, nos. Não obstante, não trouxe nenhum
se ele próprio, às voltas com uma lide, deles para aqui com o fito de vos pedir
embora menos grave que esta, teve de absolvição. Por que razão não hei de
pedir, de suplicar aos juízes com lágri- fazê-lo? Não por presunção, Atenien-
mas copiosas, de trazer, para melhor ses, nem por menosprezo vosso; minha e
movê-los à piedade, os filhos, outros calma ou perturbação em face da
parentes, muitos amigos, ao passo que morte é questão à parte; mas em face
eu -::- não é? - não vou fazer nada da honra, minha, vossa e de toda a
disso, apesar de estar correndo, como cidade, eu considero uma nódoa aquele
posso imaginar, o extremo perigo. procedimento na minha idade e com a
Pode ser que alguém, com esse senti- reputação adquirida; cert~ ou errada,
mento, seja mais duro para comigo e, sempre é opinião corrente que Sócrates Jsa

raivoso do contraste, dê um voto de nalguma coisa se distingue do· comum


d raiva. Se algum de vós estiver nesse dos homens. Se, quem passa por distin-
caso - o que não creio - mas se esti- guir-se entre vós pela sabedoria, pela
ver, eu me ci.charia no direito de lhe coragem ou qualquer outro mérito, é
dizer: "Eu também, meu caro, não uma pessoa daquelas atitudes, que ver-
deixo de ter parentes." Como lá diz gonha! Como vi tantas vezes pessoas,
Homero, embora tidas como homens de valor,
26 PLATÃO

fazer em juízo cenas de causar espan- informá-los e convencê-los. O juiz não


to, persuadidos de que seria· um horror toma assento para dispensar o favor da
terem de morrer, como se houvessem justiça, mas para julgar; ele não jurou·
de ser imortais se vós não os condenás- favorecer a quem bem lhe pareça,. mas
b seis à morte; eles são, a meu ver, uma julgar segundo as leis. Nós não vos
vergonha para a cidade, dando ao devemos habituar ao perjúrio, nem vós
forasteiro a impressão de que os ho- deveis contrair esse vício; seria impie-
mens distinguidos entre os atenienses dade nossa e vossa. Portanto, Atenien-
pelos seus merecimentos e escolhidos ses, não pretendais que eu pratique
por eles para o governo e cargos hono- diante de vós o que não considerá belo,
ríficos erri nada diferem das mulheres. nem justo, nem pio, sobretudo, por
Nós que passamos; nãó importa como, Zeus, quando aí está Meleto acusan- d
por ter algum valor, não devemos, do-me de impiedade! Evidentemente,
Atenienses, adotar aquele procedi- se, com a força de persuasão de· mi-
nhas súplicas, vos levasse ao perjúrio, ·
mento, nem deveis vós consentir nele,
eu vos estaria ensinando a não crer na
caso o adotemos, e sim mostrar-vos
existência dos deuses e, com tal defesa,
mais decididos a condenar. quem, ence- simplesmente me estaria acusando de
nando desses dramas lamurientos, não crer em deuses. Muito ao contrá-
lança o ridículo sobre a cidade, do que rio, Atenienses, eu acredito como ne-
um de comportamento decente. nhum de meus acusadores e espero de
À parte a questão da honra, senho- vós e da divindade que vossa sentença
res, não me parece justo pedir e obter a meu respeito seja a melhor para mim
e dos juízes a absolvição, em vez de e para vós.
27

II
Análise da Votação

Para que eu me conforme com o entanto, parece, com uma transposição


resultado, a minha condenação, con- de apenas trinta votos·, estaria absolvi-
J6a correm muitas razões; entre elas, a: de do. No tocante a Meleto, acho que fui
não se tratar de fato inesperado. Muito absolvido; mais do que isso, quem
mais me espanta o número de votos quer pode ver que, não fosse subirem
contados de cada parte. Eu imaginava Anito e Licão para acusar-me, ele seria
que a decisão seria essa, não por multado em mil dracmas, por não ter
pequena, mas por grande margem; no colhido l_!m quinto dos sufrágios.

Discussão das Penas

Ora, o homem propõe a sentença de mim? Eu que m.e entreguei à procura


morte. Bem; e eu que pena vos hei de de cada um de vós em particular, a fim
propor em troca, Atenienses? A que de proporcionar-lhe o que declaro o
mereço, não é claro.? Qual será? Que maior dos benefícios, tentando persua-
sentença corporal ou pecuniária mere- dir cada um de vós a cuidar menos do
ço eu que entendi de não levar uma que é seu· que de si próprio para vir a
vida quieta? Eu que, negligenciando o ser quanto melhor e mais sensato,
de que cuida toda gente - riquezas, menos dos interesses do povo que do
negócios, postos militares, tribunas e próprio povo, adotado o mesmo princí-
furtçg~s públicas, conchavos e lutas pio nos demais cuidadÕs? Que sen- d

que ocorrem na política, coisas em que tença mereço por ser assim? Algo de
me considero de fato por demais bom, Atenienses, se há de ser a sen-
pundonoroso para me imiscuir sem me tença verdadeiramente proporcionada
perder - não me dediquei àquilo, a ao mérito; não só, mas algo de bom
que se me dedicasse, haveria de ser adequado a minha pessoa. O que é·
completamente inútil para vós e para adequado a um benfeitor pobre, que
28 .·PLATÃO

precisa de lazeres para vos viver exor- pagá-la toda? Daria na mesma, pois,
tando? Nada tão adequado a tal como disse há pouco, não tenho bens
homem, Atenienses, como ser susten- com que pagar. Proporei, então, odes-
tado no Pritaneu; muito mais do que a terro, a que possivelmente me senten-
um de vós que haja vencido, nas Olim- ciaríeis? Muito amor à vida deveria eu
píadas, uma corrida de cavalos, de ter para ficar tão estúpido que não
bigas ou de quadrigas. Esse vos dá a compreendesse qiue, se vós, sendo meus
impressão da felicidade; eu, a felici- concidadãos, não pudestes aturar mi-
. dade; ele não carece de sustento, eu nhas conversas e assuntos, tão impor- d

careço. Se, pois, cumpre que me sen- tunos e odiosos para vós, que neste
tenciem com justiça e em proporção ao momento vos estais procurando livrar
J7a mérito, eu proponho o sustento no deles, outros hão de aturá-los melhor?
Pritaneu. Que esperança, Atenienses!
Dizerido isso pode parecer, como foi Bela vida seria a minha se, homem
a respeito das lamúrias e súplicas, que da minha idade, partisse daqui para
falo presunçosamente. Não é assim, viver expulso de cidade em cidade !
Atenienses; mas é que estou conven- Estou certo de que, aonde quer que vá,
cido de que não faço mal a ninguém os moços me virão ouvir, como aqui;
por querer, mas não consigo conven- se os repelir, eles mesmos darão ouvi-
cer-vos disso. É que conversamos dos aos mais velhos para me expulsar;
durante pouco tempo;. se fosse norma se não os repelir, hão de expulsar-me
entre vós, como em outros povos, não por causa deles seus pais e parentes.
decidir um processo capital num. dia Pode alguém perguntar: "Mas não
b só, mas em muitos, suponho que vos serás capaz, ó Sócrates, de nos deixar e
teria convencido; infelizmente, não é viver calado e quieto?'' De nada eU'
fácil em tempo exíguo escoimar-se de convenceria alguns dentre vós mais
calúnias tão fortes. Convencido, por- dificilmente do que disso. Se vos- disser
tanto, de que não faço mal a ninguém, que assim desobedeceria ao deus e, por
muito menos o farei a mim próprio; isso, imposível(~ a vida quieta, não me
não direi eu próprio contra mim que dareis fé, pensando que é ironia; dou- Jsa

mereça algum mal, nem proporei pena tro lado, se vos disser que para o
alguma. Que posso temer? Sofrer a homem nenhum bem supera o discor-
pena proposta por Meleto, que declaro r.er cada dia sobre a virtude e outros
ignorar se é um bem, se é um mal? Hei temas de que me ouvistes praticar
de preferir e propor em troca uma quando examinava a mim mesmo e a
e daquelas que sei que são males? Por- outros, e que vi.da sein exame não é
ventura a prisão? Para que hei de viver vida digna de um ser humano, acredi-
na cadeia, escravizado ao comando tareis ainda menos em minhas pala-
sempre reformado dos Onze 1 1 ? Ou vras. Digo a pura verdade, senhores,
uma multa, permanecendo preso até mas convencer-vos dela não me é fácil.
11 Os Onze eram autoridades policiais eletivas. (N. Acresce que não estou habituado a jul-
do T.) gar-me merecedor de mal nenhum.
DEFESADE SÓCRATES 29

Propõe Sócrates uma Multa

b Se tivesse dinheiro, estipularia uma ·prata; é quanto estipulo, portanto. Mas


multa dentro de minhas posses; não aí está Platão, Atenienses, com Críton,
sofreria nada com isso. Infelizmente, Critobulo e Apoldr~ mandando que
não tenho mesmo, salvo se quiserdes estipule trinta minas, sob sua fiança.
estipular tanto quanto possa pagar. Estipulo, pois, essa quantia; serão fia-
Talvez vos possa pagar uma mina de dores dâ soma essas pessoas idôneas.
III
Aos que o Condenaram

Por não terdes esperado mais um quer na guerra, não devo eu, não deve
pouco, Atenienses, aqueles que deseja- ninguém lançar mão de todo e qual-
rem injuriar a cidade vos lançarão a quer recurso para escapar à morte.
fama e a acusação de haverdes matado Com efeito, é evidente que, nas bata- 39a

Sócrates, um sábio. Sim, dir-me-ão lhas, muitas vezes se pode escapar à


sábio, embora não o seja, os que vos morte arrojando as armas e suplicando
quiserem malsinar. Se aguardásseis piedade aos perseguidores; em c~da
inais algum tempo, a natureza mesma perigo, tem muitos outros meios de
satisfaria a vossa vontade. Bem vedes escapar à morte quem ousar tudo fazer
a minh~ idade, já distante da vida e e dizer. Não se tenha por difícil esca-
próxima da morte. Não dirijo essas1 par à morte, porque muito mais difícil
palavras ~a todos vós, mas aos que é escapar à maldade; ela corre mais
votaram pela minha morte. ligeira que a morte. Neste momento,
Para esses mesmos, acrescento o fomos apanhados, eu, que sou um
seguinte: talvez imagineis, senhores, · velho vagaroso, pela mais lenta das
que me perdi por falta de discursos duas, e os meus acusadores, ágeis e
com que vos poderia convencer, se na velozes, pela mais ligeira, a malvadez.
minha opinião se devesse tudo fazer e Agora, vamos partir; eu, condenado
dizer para escapar à justiça. Engano! por vós à morte; eles, condenados pela
Perdi-me por falta, não de discursos, verdade a seu pecado e a seu crime. Eu
mas de atrevimento e descaro, po_r me aceito a pena imposta; eles igualmente.
recusar a proferir o que mais gostais de Por certo, tinha de ser assim e penso
ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e que não houve excessos.
dizendo uma multidão de coisas que Sobre o futuro, porém, desejo fazer-
declaro indignas de mim, tais como vos um vaticínio, meus condenadores;
costumais ouvir dos outros. Ora, se com efeito, eis-me chegado àquele
antes achei que o perigo não justifi- momento em que os homens vaticinam
cava nenhuma indignidade, tampouco melhor, quando estão para morrer. Eu
me pesa agora da maneira por que me vos afianço, homens que me mandais
defendi; ao contrário, muito mais folgo matar, que o castigo vos alcançará
em morrer após a defesa que fiz, do logo após a minha morte e será, por
que folgaria em viver após fazê-la Zeus, muito mais duro que a pena
daquele outro modo. Quer no tribunal, capital que me impusestes. Vós o fizes-
PLATÃO

.tes supondo que vos livraríeis de dar homens, evitareis que alguém vos
boas contas de vossa vida; mas o resul- repreenda a má vida, estais enganados;
tado será inteiramente oposto, eu vo-lo essa não é um.a forma de libertação,
asseguro. Serão mais numerosos os nem é inteiramente eficaz, nem honro-
que vos pedirão contas; até agora eu os . sa; esta outra, :sim, é a mais honrosa e
continha e vós não o percebíeis; eles mais fácil; ~m vez de tapar a boca dos
serão tanto mais importunas quanto outros, preparar-se para ser o melhor·
são mais jovens, e vossa irritação será possível. Com este vaticínio, despeço-
maior. Se imaginais que, matando me de vós que me condenastes.

Aos que o Absolveran1

· Com os que votaram pela absolvi- ma ação ou palavra. A que devo atri-
ção, gostaria de conversar a respeito buir isso? Vou dizer-vos: é bem possí-
do que se acaba de passar, enquanto vel que seja um bem para mim o que
estão ocupados os magistrados e antes aconteceu e n~[o é forçoso que acerte-
de seguir para onde devo morrer. Por- mos quantos pensamos que a morte é
tanto, senhores, ficai comigo mais um um mal. Disso tenho agora uma boa
pouco; nada impede que nos entrete- prova, porque: a costumada adver-
nhamos enquanto dispomos de tempo. tência não poderia deixar de opor-se,
Quero explicar-vos, como a amigos, o se não fosse uma ação boa o que eu es-
40a sentido exato do que me sucedeu tava para fazer:
agora. Façamos mais esta reflexão: há
O que me aconteceu, senhores juízes grande esperança de que isto seja um
- a vós é que chamo com acerto juí- bem. Morrer é uma destas duas coisas:
zes - foi uma coisa prodigiosa. A ou o morto é igual a nada, e não sente
inspiração costumada, a da divindade, nenhuma sensação de coisa nenhuma;
sempre foi rigorosamente assídua em ou, então, como se costuma dizer, tra-
opor-se mesmo a ações mínimas, quan- ta-se duma mudança, uma emigração
do eu ia cometer um erro; agora, da alma, do lugar deste mundo para
porém, acaba de suceder-me o que vós outro lugar. Se não há nenhuma sensa-
estais vendo, o que se poderia conside- ção, se é como um son.o em que o
rar, e há quem o faça, como o maior adormeci.çl.o nada vê nem · sonha, que
dos males; mas a advertência divina maravilhosa vantagem seria a morte!
não se me opôs de manhã, ao sair de Bem posso imaginar que, se a gente
casa, nem enquanto subia aqui para o devesse identificar uma noite em que
tribunal, nem quando ia dizer alguma . tivesse dormido tão profundamente
coisa; no entanto, quantas vezes ela me que nem mesmo sonhasse e, contra-
conteve em meio de outros discursos ! pondo a essa as demais noifes e dias de
Mas hoje não se me opôs nenhuma vez sua vida, pensar e dizer quantos dias e
no decorrer do julgamento, em nenhu- noites de sua existência viveu melhor e·
DEFESA DE SÓCRATES 33

mais agradavelmente do que naquela é. Quanto não se daria, senhores juí-


noite, bem posso imaginar que, já não zes, para sujeitar a exame aquele que
digo um particular, mas o próprio rei comandou a imensa expedição contra
da Pérsia acharia fáceis de enumerar Tróia,~· . sm-:·ÜTi~e, "., ou . Sí~ifo -
essas noites entre as outras noites e milhares de outros se poderiam no-
dias. Logo, se a morte é isso, digo q_ue mear, homens e mulheres, com quem
é uma vantagem, porque, assim sendo, seria uma felicidade indizível estar
toda a duração do tempo se apresenta junto, conversando com eles, sujeitan-
como nada mais que uma noite. Se, do do-os a exame ! Os de lá absoluta-
outro lado, a morte é como a mudança mente não matam por uma razão des-
daqui para outro lugar e está certa a sas ! Os de lá são mais felizes que os de
tr·adição de que lá estão todos os mor- cá, entre outros motivos, por serem
tos, que ·maior bem haveria que esse, imortais pelo resto do tempo, se a tra-
senhores juízes? dição está certa.
41~ Se, em chega..'1.do ao Hades, livre Vós também, senhores juízes, deveis
dessas pessoas que se intitulam juízes, bem esperar da morte e · considerar
a gente vai encontrar os verdadeiros particularmente esta verdade: não há,
juízes que, segundo consta, l~ distri- para o homem bom, nenhum mal, quer d

buem a justiça, Minas 1 2 , Radamanto, na vida, quer na morte, e os deuses não


Éaco, Triptólemo e outros semideuses descuidam de seu destino. O meu não é
que foram justiceiros - em vida, não efeito do acaso; vejo claramente que
valeria a. pena a viagem? Quanto não era melhor pàra mim morrer agora e
daria qualquer de vós para estar na ficar livre de fadigas. Por isso é que a ·
companhia de Orfeu 1 3 , Museu, He- advertência nada me impediu. Não me
síodo e Homero? Por mim, estou pron- insurjo absolutamente contra os que
to a morrer muitas vezes, se isso é ver- votaram contra mim ou me acusaram.
dade; eu de modo especial acharia lá Verdade é que não me acusaram e con-
um entretenimento maravilhoso, quan- denaram com esse modo de pensar,
do encontrasse P alamedes 1 4 , Ájax de mas na suposição de que me causavam
Telamão e outros dos antigos, que te- dano: nisso merecem censura. Contu-
nham morrido por uma sentença iní- do, só tenho um pedido que lhes faça:
qua; não me seria desagradável com- qu~do meus fil~os cresm.~(a;i-
parar com os deles os meus g ai-os, atormentai-os com os mesm1s-
sofrimentos e, o que é mais, passar o simos tormentos que eu vos infligi, se
tempo examinando e interrogando os achardes que eles estejam cuidando
de lá como aos de cá, a ver quem deles mais da riqueza ou de outra coisa que
é sábio e quem, não o sendo, cuida que ·da virtude; se estiverem supondo ter
um valor que não tenham, repreendei-
1 2 Minos, rei de Creta, Radamanto, Éaco, Triptó-

lemo, heróis mitológicos, foram, segundo a tradição .


os, como vos fiz eu, por não cuidarem
conservada nos ritos secretos dos chamados Misté- do que devem e por suporem méritos,
. rios, designados juízes das almas no outro mundo. sem ter nenhum. Se vós o fizerdes, eu
(N. do T.)
13 Orfeu e Museu são autores lendários dos hinos e terei recebido de vós justiça; eu, e 42a

cânticos dos ritos dos Mistérios. (N. do T.) meus filhos também.
1 4 Palamedes e Ájax são figuras lendárias; o pri-
Bem, é chegada a hora de partirmos,
meiro teria morrido apedrejado, vítima duma calú-
nia, no acampamento dos gregos em Tróia; o segun- eu para a morte, vós para a vida.
do, herói duma tragédia de Sófocles, além de o· ser Quem segue melhor rumo, se eu, se
da Ilíada, suicidou-se por ter sido fraudado na
herança das armas de Aquiles, que deviam caber ao vós, é segredo para todos, menos para
mais valoroso dos guerreiros. (N. do T.) a divindade. ·
XENOFONTE

DITOS E FEITOS
MEMORÁVEIS
DE SÓCRATES

Tradução de LÍBERO RANGEL DE ANDRADE através da versão francesa de Eugene Talbot


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LIVRO 1 .i.

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CAPÍTULO I

Admirou-me muitas vezes por que revelam os deuses; Sócrates também


argumentos, afinal, lograram os acu- pensava o mesmo. Diz o vulgo que as
sadores 1 de Sócrates persuadir os ate- aves e os encontros ·nos advertem se
nienses de que ele merecia a morte por devemos prosseguir ou retroceder no
crime contra o -Estado. Com efeito, eis que temos de olho: Sócrates falava o
pouco mais ou menos os termos da que sentia, dizendo-se inspirado por
acusação: Sócrates é culpado de não um demônio. E de acordo com as reve-
preitear os deuses que cultua o Estado lações desse demônio aconselhava aos
e introduzir extravagâncias demonía- amigos o fazer certas coisas, o abster-
cas. Culpado ainda de corromper os se de outras. Só tinham a ganhar os 5

Jovens. que o ouviam. Arrependiam-se os que


A que testemunho, afinal, recorre- nele não acreditavam. Claro que não
ram para provar que ele não honrava havia de querer passar por imbecil nem
os deuses do Estado; se fazia sacrifi- por impostor aos olhos de seus discí-
cios freqüentes às abertas, ora em sua pulos. E imbecil e impostor ter-se-ia
casa, ora nos altares públicos; se tomado, se predissesse coisas como
praceiramente recorria à arte divina reveladas por um deus e em seguida
tória? Corria a voz, ateada pelo pró- fosse desmentido. Evidente, portanto, é
prio Sócrates, de que o inspirava um que se absteria de predizer caso não
demônio 2 : eis, sem dúvida, por que o estivesse certo de falar verdade. Ora, o
criminaram de introduzir extrava- que lhe inspiraria esta certeza senão
gâncias demoníacas. No entanto, não um deus? E se tinha fé nos deuses,
introduzia ele mais novidades do que como poderia negar-lhes a existência?
todos aqueles que crêem na adivinha- ~ Por outro lado, eis como se portava
ção e interrogam o vôo das aves, as para com os amigos. Em se tratando
vozes, os signos e as entranhas das ví- de coisas de resultado certo, aconse-
timas: não supõem nas aves nem lhava-os a procederem da maneira que
naqueles com que se encontram ·o melhor lhe parecia.. Quanto às coisas
conhecimento do que buscam, mas de êxito duvidoso, mandava-os consul-
acreditam que por seu intermédio lho tarem os oráculos. Há mister ajudar-se
da adivinhação, dizia, para bem gerir
1 O poeta Meleto, o curtidor Ânito e o orador
Licão. (N. do E.) as casas e os Estados. A arquitetura, a
2 Demônio: gênio bom ou divindade, e não o senti- metalurgia, a agricultura, a política e a
do posterior de gênio do mal. (N. do E.) teoria das ciências que tais, o cálculo,
40 XENOFONTE

a economia, e todos os conhecimentos ou à religião? Abstendo-se, ao revés da


congêneres estão, opinava, ao alcance · maioria dos outros filósofos, de disser-
da inteligência humana, porém, agre- tar sobre a natureza do universo, de
gava, o que de mais eminente encerram indagar a origem espontânea do que os
estas ciências encofram-no os deuses s.ofistas chamam "cosmos" e a que leis
para .si, sequer entremostrando-o aos fatais obedecem os fenômenos celestes,
olhos dos homens. Com efeito, ignora ia a ponto de demonstrar a loucura dos 12

aquele que bem plantou um vergel que vacam a semelhantes especula-


quem lhe colherá os frutos. Quem a ções. Antes de tudlo examinava se eles
capricho construiu uma casa não sabe presumiam ter aprofundado suficiente-
quem a habitará. Tamp0uco sabe o mente os conhecimentos humanos para
general se lhe será vantajoso coman- se ocuparem de tais assuntos, ou se
dar. Tampouco sabe o político se lhe achavam razoável pôr de parte o que
aproveitará governar o Estado. Tam- está ao alcance do homem para intro-
pouco sabe aquele que, esperando ser meter-se no que aos deuses pertence.
feliz, esposa uma bela mulher, se ela Admirava-se de que não vissem serem 13

não será seu tormento. Tampouco sabe tais segredos intangíveis ao homem, de
aquele que se alia aos poderosos do vez que, longe de concordarem entre si,
Estado se dia virá em que por eles seja aqueles mesmos que se gabam de me-
banido. Insensatos ç:hamava Sócrates lhor falar sobre eles se têm mutua-
aos que em tudo isso não vêem provi- mente na conta de loucos. Efetiva- 14

dência divina e tudo sujeitam à inteli- mente, entre os loucos, uns não temem
gência humana. Por igualmente insen- o que é temível, outros temem o que
satos, porém, havia os que consultan:i não é de temer. Uns acham poder-se
os oráculos sobre coisas que os deuses sem pejo tudo dizer e tudo fazer em pú-
nos deram a faculdade de saber por blico, outros, devier-se fugir todo co-
nós prcSprios. Como se fües perguntás- mércio com os homens. Uns não res-
semos a quem confiar nosso carro, a peitam nem· templos nem altares, nem
cocheiro hábil ou inapto. A quem nada do que é divino, outros reveren-
entregar nosso navio, a bom ou mau ciam as pedras e as primeiras árvores e
piloto. Ou sobre coisas que podemos animais que lhes a.parecem pela frente.
saber por meio do cálculo, da medida Quanto aos que se preocupam com a
ou da balança. Reputava impiedade natureza do unive1rso, estes afirmam a
consultar os deuses sobre coisas tais: unidade do ser, aqueles sua multipli-
aprendamos o que nos ·conferiram os cidade infinita. Uns crêem os corpos
deuses a faculdade de aprender, dizia, em perpétuo movimento, outros em
e deles procuremos saber o que nos é inércia absoluta. Aqui se pretende que
velado. Porque eles o revelam aos que tudo nasce e tudo morre, ali que nada
distinguem com seus favores. se criou e nada deve ser destruído. Per- 1s

10 No mais, Sócrates sempre viveu à guntava Sócrates· ainda se, assim como
luz pública. Pela manhã saía a passeio estudando o que concerne ao homem
e aos ginásio·s, mostrava-se na ágora à se espera auferir desse estudo proveito
hora em que r.egurgitava de gente e para ~i e para outros, não imaginam os
passava o resto do dia nos locais de que estudam o que pertence aos deu-
maior concorrência:, o mais das vezes ses, uma vez instruídos nas leis fatais
falava, podenClo ouvi-lo quem quisesse. do mundo poder produzir a seu capri-
n Viram-no ou ouviram-no algunia vez cho os ventos, a chuva, as estações e
fazer ou dizer algo contrário à moral, tudo o de que venham a precisar no, gê-
1
MEMORÁ VEIS-1 41

nero ou se, sem se abalançarem a morte, coletivamente e por um único


· tanto, contentar-se-ão de saber como voto, nove generais, entre os quais Tra-
se processa cada um desses fenômenos. silo e Erasínides, recusou a votação,
16 Eis .o que dizia dos que se ingerem não obstante a cólera .do povo e as
nesta sorte de indagações. Quanto a. ameaças de muitos poderosos. Preferiu
ele, discutia constantemente tudo o que manter-se fiel ao juramento a cometer
ao homem diz respeito, examinando o uma injustiça para comprazer à multi-
que é o piedoso e o ímpio, o belo e o dão e pôr-se a coberto de ameaças. É 19

vergonhoso, o justo e o injusto, a sabe- que, embora diversamente da maneira


o
doria e a loucura, valor e a pusilani- como crê a maior parte dos homens,
midade, o Estado e o homem de Esta- acreditava· que os deuses têm olhos
do, o governo e o governante e mais fitas nas ações humanas. Crê a média
coisas deste jaez, cujo conhecimento dos homens que os deuses sabem cer-
lhe parecia essencial para ser virtuoso tas coisas e ignoram outras. Achava
e sem o qual se merece o nome de Sócrates que de tudo estão ao corrente
escravo. - palavras, ações, pensamentos secre-
17 Não admira5 pois, que seus juízes se tos - que estão em toda parte e tudo
hajam.enganado quanto a seus pensa- nos· revelam que seja de nossa alçada.
mentos íntimos. Porém o que todos Admira-me, pois, hajam crido os 20

sabiam, não é de estranhar que o te- atenienses alimentasse Sócrates opi-


nham sobreolhado? Membro do sena- niões extravagantes sobre os deuses,
do, proferira Sócrates o juramento que ele que jamais coisa alguma disse nem
aos senadores se exige de desincum- praticou de ímpio, ele cujas palavras e
bir-se. de suas funções de conformidade ações sempre foram tais que quem
1s com as leis. Eleito epistata do con- falasse e se portasse do mesmo modo
gresso popular e querendo o povo, seria reputado o mais pio dos huma-
contrariamente· às leis, condenar à nos.
CAPÍTULO II

O que igualmente me assombra é o pedia a menor paga aos que lhe procu-
haver-se embrechado em certos espíri- ravam a companhia. Cria, com esta 6

tos que Sócrates corrompia a juventu- abstenção, melhor resguardar a pró-


de, Sócrates que, à parte o que foi dito, pria liberdade, chamando escraviza-
era ó mais reportado dos mortais nos dores de si mesmos os que reclamam
· ..........__ prazeres dos sentidos como da mesa, o salário por suas palestras, visto se
mais endurecido contra o frio, o calor, imporem a obrigação de conversar
as fadigas de toda espécie e tão sóbrio com os que lhes pagam. Admirava-se
que lhe sobrebastava seu minguado de que um homem que fizesse profis-
pecúlio. Com tais qualidades, como são de ensinar a virtude exigisse remu-
µaderia ter desencaminhado os outros neração e que em vez de ver na aquisi-
à impiedade, à libertinagem, à indolên- ção de um amigo virtuoso a maior das
cia? Pelo contrário, não. divertiu mui- recompensas, temesse que um coração
tos homens desses vícios, fazendo-os tonverso à virtude não pagasse o
amantes da virtude e infundindo-lhes a maior dos benefícios com o maior
esperança de, mediante a fiscalização reconhecimento. Ali.ás, Sócrates nunca
de si mesmos, virem a ser um dia vir- prometeu nada de "seme1hante a nin-
tuosos? Nunca se disse, contudo, mes- guém.. Porém abrigava -a certeza de
tre de sabedoria, posto com seu proce- ganhar, naqueles que lhe seguiam os
dimento fizesse esperar aos que o princípios, bons amigos que o ama-
freqüentaram o dele se aproximarem riam e se estimariam reciprocamente
4 imitando-o. Não descurava do corpo para o resto da vida. Como, pois,
nem aprovava os que o fazem. Rejei- corromperia um homem desses a ju-
tava o comer com excesso para ao de- ventude? A menos que o incitamento à
pois fatigar-se outro tanto, recomen- virtude seja meio de corrupção.
dando um repasto regulado pelo Mas, por Júpiter! - diz o acusador 9

apetite e seguido de exercício modera- - instigava, seus discípulos ao des-


do. Este regime - dizia - conserva a prezo das leis estabelecidas, tachando
saúde do espírito. Ao demais, não era de estupidez o escolher com uma fava
afetado nem refinado, fosse no vestir, os magistrados de uma república,
fosse no calçar, fosse em toda a sua quando ninguém tiraria à sorte um
maneira de viver. Tampouco fazia de piloto, um arquiteto, um tocador de
seus discípulos homens cúpidos, pois flauta, etc., cujos erros são, no entanto,
curando-os das outras paixões não muito menos prejudiciais que os da-
44 XENOFONTE

queles que governam os Estados. Tais rança que lhe solicitavam a conversa-
falas - acresçenta - inspiram nos jo- ção, ou na esperança de, freqüentan-
vens o menosprezo da constituição em . do-o, tornarem-se bons oradores e
la vigor e os tomam violentos. De mim hábeis políticos? A min1 me quer pare- 16
penso que os que praticam a sabedoria cer que se um deus lhes houvesse dado
e se crêem capazes de dar conselhos a escolher entre o viver a vida inteira
úteis a seus concidadãos de modo ne- · como viam viver Sócrates ou morrer,
·nhum são violentos, visto saberem que teriam preferido a morte. Desembu-
a violência atiça o ódio e acarreta per.i- çou-os seu procedimento. Assim se jul-
go, enquanto a persuasão elimina os garam superiores aos c9mpanheiros,
riscos e ·não prejudica a perfeição.· De abandonaram Sócrates para abraçar a
fato, o homem a quem constrangemos política, móvel de sua ligação com ele.
nos odeia como se o houvéssemos lesa- Objetar-me-ão, talvez, que Sócrates 17
do. Aquele a quem persuadimos nos não deveria ter ensinado política aos ~

preza como se lhe tivéssemos feito um que com ele privavam antes de ensi-
beneficio. Não dos que praticam a nar-lhes a sabedoria. Não o nego.
11 sabedoria, pois; é própria a violência, Vejo, porém, que todos aquéles . que
porém, dos que'têm força mas não têm ensinam praticam o que ensinam a: rlDl ' .
razão. Além do que, na violência hão · de edificar pelo exemplo os que apren•
mister numerosos auxiliares. Para per- dem, a passo igual que os estimlilam ·
suadir não se precisa de ninguém: soú- pela palavra. Sei que Sócrates era para
nho pode-se convencer. Demais, nunca seus discípulos modelo vivo de virt:Uo-
tais homens mancharam as mãos de sidade e que lhes administrava a~ m-ai~
sangue. Quem preferir.ia matar seu belas lições acerca da virtude e o ~ :. - ~ - - •.1:. · ·

semelhante a deixá-lo viver e lhe ser que ao homem concerne. Sei que Crr-- "
útil pela persuasão? tias e Alcibíades se portaram prude1l:te-
12 Todavia - prossegue o acusador mente enquanto conviverám com S6-
- Crítias e Alcibíades, que foram crates. Não qu~ temessem ser por ele
discípulos de Sócrates, causaram o castigados ou bati.dos, mas por crerem .
maior mal ao Estado. Crítias foi o então ser a tudo preferível o hábito de
mais cúpido, violento e sanguinário · virtude.
dós oligarcas. Alcibíades o mais in- Quiçá sustentem muitos de nossos 11
temperante e insolente dos democratas . pretensos filósofos que o homem justo
iJ Longe de mim, se estes dois homens jamais se toma injusto nem o sábio
fizeram algum mal à pátria, o propó- insolente. Que uma vez de posse .de . ·
sito de justificá-los. Quais foram suas· uma ciência nunca mais se esquece o ·
relações com Sócrates, eis o que desejo que se aprendeu. De minha parte, estou
11 esclarecer. Eram eles, por natureza, os longe de pensar como eles. Vejo, em.
mais a,mbiciosos ele todos os atenien- efeito, que se não se exercita o corpo a
ses. Qiiefiam tudo feito por eles, que gente se toma inapto para os trabalhos
seu nome não tivesse par. Sabiam Só- corporais, e que, igualmente, se não se
crates contente de pouco, senhor abso- exercita o espírito se toma incapaz dos
luto de todas as suas paixões e capaz trabalhos espirituais, não se podendo
de acaudilhar a seu talante o espírito fazer o que se de\ e nem se abster do
1

1s daqueles com que falava. Sabedores que se deve evitar. Eis por que os pais, 20
disso e com o caráter que já lhes perfi- seja qual for a sab:!doria de seus filhos,
lei, crerá alguém fosse pelo desejo de os afastam dos homens perversos, con-
imitar a vida de Sócrates e sua tempe- victos de que o comércio dos bons
MEMORÁVEIS-I 45

alenta a virtude, e cresta-a o dos maus. de que gozava assim na república como
Testemunham-no os versos do poeta: nas cidades aliadas, por um enxame de
Os homens de bem te ensinarão hábeis aduladores, homrado pelo povo,
boas coisas. alcançando sem esforço o primado do
Os maus te farão perder a pró- poder, Alcibíades relaxou-se tal esses
pria razão. atletas que, triunfando facilmente em
- -E-estoutro: todas as lutas, descuidam de todo exer-
Às vezes o sábio é bom, às vezes c~io. Depois, orgulhosos de seu nasci- 2s
mau. rrie!lto, soberbos de sua riqueza, ébrios
1t1 A esses testemunhos ajunto o meu. do próprio pode;r, amolentados por
Pois vejo que, se pela falta de exercício uma forba de indulgentes, corrompidos
se e•quecem os versos, não obstante o de tantos lados ao mesmo tempo, ad-
recurso da medida, da mesma forma se mira que sua insolência haja trans-
esqutce a palavra do mestre, por causa posto todos os- limites? E a Sócrates é 26
da negligência. Ora, quando se esque- que acha o acusador de imputar as fal-
cem estas ex6rtações; ·se esquecem tas que cometeram?! Entretanto,
também as impressões que induzem a quando eram jovens, numa idade em
a1mA a desejar a sabedoria. E olvida- que mais que nunca deveriam ter sido
das tais impressões, não admira que se desregrados e intemperantes, Sócrates
22 olvide a própria sabedoria. Noto ainda conteve-os na moderação: o que o acu-
que aqueles que se entregam ao vinho e sador não acha digno 9o menor lou-
capitulam aos prazeres dos sentidos vor. Não é esta a praxe do julgador. 27
, sã.eL ..~10s capazes de fazer o que Onde ·o flautista, o citarista ou o mes-
dov;em e de resguardar-se do que cum- tre qualquer a quem se reproche o fato
pre evitar. Muitos há que antes de de seus discípulos, uma vez formados,
·amar sabiam administrar seus bens. se tomarem maus sob outros mestres?
Amando, já não o sabem. E perdidos Onde o pai cujo filho, prudente en-
··, seus haveres, já não se esguardam de quanto manteve relações com um
ganhos de que se mantinham castos amigo, se haja pervertido na sociedade
2J. por considerá-los verg·onhosos. Impli- de outro, que se lembre de acusar o pri-
cará 'é<mtradição, pois, que o sábio de meiro amigo? Pelo contrário,. não o
ontem já não o seja hoje, que o justo se elogiará tanto mais quanto mais vicfo-
tenha feito injusto? Por mim periso que so se tenha tor:-nado seu f'ilho com o
todas as virtudes requerem a prática, segundo? Os próprios pais não são
notá.damente a. temperança. Inatas na responsáveis, ainda qúe a seu pé, seus
alma com o corpo, as paixões incitam filhos enveredem pe1a senda do mal,
a pctr de lado a sabedoria e a satisfazer uma vez que só ll):és dêem bons exem-
ô mâis presto os apetites sensuais. plos. Eis como se devia julgar Sócra- 2s
u :Enquanto conviveram com Sócra:- tes. Cometeu ele próprio algum mal?
tes, tanto Crítias como Alcibíades Merece ser tratado como perverso.
puderam, graças ao seu auxílio, sopear Porém, se j ámais deixou de ser homem
as más paixões. Uma vez longe dele, de bem, s'erá justo acusá-lo de uma
.C:Píitriias, refugiado na Tessália, viveu deprav.açâo que não lhe cabe? Se, em- 29

em companhia de homens mais afeitos l;>ora abstêmio do mal, houvesse assis-


à ilegalidade que à justiça. Perseguido, tido s~m desaprová-los aos atos vergo-
·por causa de sua beleza, por uma mul- nhos,Qs dos outros, estar ia no
tidão de mulheres da mais alta catego- dirníto de censurá-lo. Mas, tendo per-
ria, corrompido por causa do crédito ce})ido que Crítias, enamorado de Euti-
46 XENOFONTE

demo, queria gozá-lo à maneira dos crates a sua presença, mostraram-lhe a


que abusam do próprio corpo para lei e proibiram-lhe· toda palestra çom
satisfazer seus desejos amorosos, for- os jovens. Perguntou-lhes Sócrate~ se 34
cejou por demovê-lo de semelhante lhe era permitido interrogá-los sobre o
intento, dizendo-lhe indigno de homem que nessa proibiç:ão se lhe afigurava
livre e indecente a amigo da virtude ir obscuro, e à sua resposta afirmativa:
como mendicante solicitar algo do ob- - Estou pronto - disse - a obe-
jeto amado, junto ao qual cumpre decer às leis. Mas_ pai:a que não me
sobretudo fazer-se valer, e ainda mais aconteça infringi-·las por ignorância,
30 solidtar coisa oprobriosa. Crítias faziá eis o que claramente ·desejo saber de -
ouvidos de mercador e não dava de si. vós. Que entendeis, quando lhe proibls
Então se pretende haver Sócrates dito a prática, por arte da palavra? O imal
ante numerosa assistência e em pre- ou o bem falar? Porque _se vos refi~' à
sença de Eutidemo que Crítias lhe ar.te de bem falar, evidente é dever abs-
parecia ter tal ou qual semelhança com ter-se de bem falar. Mas se tendes Ç!m 35
um porco, pois queria esfregar-se em vista a má oratória, claro é dever esfor--
Eutidemo como se esfregam os porcos çar-se por bem falar.
31 nas pedras. Desde então Crítias setor- - De vez que és tão bronco, ó Só-
nou inimigo jurado de Sócrates. No- crates - reposfou Cáricles coléríêo,
meado um dos Trinta e monoteta com: - interdizemos-te expressamente, _·o
Cáricles, guardou-lhe rancor e proibiu que é mais claro, o conversar com .ós
por lei o ensino da oratória. Assim ata- moços.
cava Sócrates. Não tendo de que acu- - Para evitar - volveu Sócrates
sá-lo; carregava-o com a censura que - que por equívoco não observe o q-úe ~
de comum se insimula aos filósofos e me é defeso, dizei-me até que idaife
caluniava-o junto à opinião pública. deve ter-se os homens por moços.
Porque de mim nunca ouvi Sócrates - Enquanto não tiverem acesso ao 36
dizer o que quer que fosse que autori- senado - respondeu Cáricles, à mín-
zasse semelhante acusação nem sei de gua de razão suficiente. - Não fales,
32 ninguém que diga tê-lo ouvido. Que a pois, com os jovens de menos de trinta
lei de Crítias era petardo endereçado anos.
contra Sócrates, de sobejo o provaram - Então se quiser comprar alguma
os acontecimentos. Haviam os Trinta coisa de homem de menos de trinta
feito morrer grande número de cida- anos não poderei perglJntar-lhe: Quan-
dãos dos mais ilustres e desgarrado ou- to custa isso?
tros tantos da trilha da justiça. Disse - Sim, isso se: te permite - assen-
Sócrates, de uma feita, que muito tiu Cáricles. - Mas tens a mania, Só-
estranharia que o guarda de um reba- crates, de viver fazendo perguntas
nho que fizesse seus bois diminuírem sobre coisas que sabes, e isso é que te
de número e emagrecerem, não se reco- proibimos. 1
nhecesse mau pastor. Mas que mais - Quer dizer que não poderei res,..
1

estranharia ainda se um homem colo- ponder a um jovem que me perguntar:


cado à testa de um Estado e cujos cida- Onde mora Cáricles? Onde está Crí- 37
dãos tomasse menos numerosos e pio- tias?
res não se envergonhasse de seus atos e - Ainda isso se te permite - disse
não conviesse ser mau magistrado. Cáricles.
33 Indo estas palavras ter aos ouvidos de - Sim, Sócrates - interferiu Crí-
Crítias e Cáricles, estes chamaram Só- tias - é preciso deixar em paz os
MEMORÁVEIS-! 47

sapateiros, carpinteiros e ferreiros. - E que ordena ele que se faça, o 43

Eles estão fartos das tuas parolagens. bem ou o mal?


- Como ! - exclamou Sócrates - O bem, rapaz, por Júpiter! e
- devo, pois, renunciar às conclusões nunca o mal.
de justiça, piedade, etc., que deles - E quando, em lugar do povo, é,
tirava? como numa oligarquia, uma reunião
- Sim, por Júpiter ! - respondeu de algumas pessoas que decreta o que
Cáricles. - E 'renuncia também aos se deva fazer, como se chama isso?
teus vaqueiros. De outra forma arris- - Tudo o que após deliberação or-
cas. diminuir por tua vez o número dos dena o poder que dirige um Estado se
bois. chama lei.
38 Estas palavras denotam claramente - Mas se um tirano que governa
que haviam sido inteirados do propó- um Estado ordena aos cidadãos fazer
sito sobre os bois e estavam abespi- tal ou qual coisa, trata-se ainda de lei?
nhados com Sócrates. - Sim, tudo o que ordena um tira-
no que. detém o poder se chama lei.
39 Vimos, pois, quais eram as relações
- Que é então, Péricles, a violên- 44
entre Crítias e Sócrates e suas disposi-
ções mútuas. Eu não hesito em dizer eia e a ilegalidade.? Não é o ato pelo
impossível aprender com mestre que qual o mais forte, em vez de persuadir
o mais fraco, constrange-o a fazer o
não no~ agrade. Ora, Crítias e Alci-
bíades freqüentavam Sócrates, nao que lhe apraz?
porque este lhes agradasse, mas por - Essa a minha opinião - con-
veio Péricles.
abrigarem a esperança de governar o
Estado. Enquanto se mantiveram a seu - Portanto, toda vez que, em lugar
lado, procuraram aproximar-se sobre- de usar da persuasão, um tirano força
os cidadãos por um decreto, será
tudo dos que se achavam ligados aos
ilegalidade?
40 negócios políticos. Assim, diz-se que

r,
Alcibíades, antes dos vinte anos de - Assim o creio. Errei, pois, dizen-
idade, teve com Péricles seu tutor e pri- do sejam leis as ordens de um tirano
que não emprega a persuasão.
meiro cidadão de Atenas, esta con-
versa em tomo das leis: - E quando a minoria não usa da 4s

persuasão junto à multidão, mas abusa


- Diz-me, Péricles, podes ensi- de seu poder para forjar decretos, cha-
nar-me o que é uma lei?
maremos a isso violência ou não?
- Naturalmente - respondeu Pé- - Tudo o que se exige de alguém
ricles.
sem empregar a persuasão, trate-se ou
- Ensina-me então, em nome dos não de um decreto, parece-me antes
deuses - tomou Alcibíades. - Pois violência que lei.
ouço elogiarem certos homens por seu - E tudo o que, exercendo o poder,
respeito às leis e me parece que sem impuser a multidão aos ricos sem o
saber o que seja uma lei jamais se emprego da persuasão será ainda antes
poderia merecer tal encômio. violência que lei?
42 - Se é isso o que desejas saber, - Bravos ! Alcibíades ! - excla-
fácil é satisfazer-te, Alcibíades - mou Péricles. - Nós também, na tua 46
disse Péricles - : Chama-se lei toda idade, éramos hábeis em Symelhantes
deliberação em virtude da qual o povo matérias. Tomávamo-las por tema de
reunido decreta o que se deve fazer ou declarações e argumentações, tal como
não. presentemente fazes comigo.
48 XENOFONTE

- Lamento, Péricles, não ter podi- quando se está doente ou empenhado


do palestrar contigo nessa época em num processo de nada valem os paren-
que ganhavas a mão a ti mesmo! -.'- tes e sim os médicos ou os advogados.
rematou: Alcibíades. Do mesmo modo, falando dos amigos, 52
47 Apenas se julgaram mais hábeis que dizia que de nada nos serve sua
os administradores da cidade, Crítias e benevolência, :)e não nos aproveita.
Alcibíades deixaram a compànhia de Que só merecem nossa estima os que
Sócrates, com quem nunca simpati- sabem o que é: preciso saber e no-lo
zaram e que os feria fazendo-lhes sen- podem ensinar. E como persuadia os
tir as próprias faltas, e abraçarain a jovens de que e:ra muito sábio e muito
política, motivo de sua ligação com hábil em tomar os outros sábios,
48 ele. Já Críton, Querefonte, Querécra- convencia-os, em proveito próprio, a
tes, Hermócrates, Símias, Cebes, não agasalharem a menor estima a
Fédon e tantos outros· de seus discí- seus semelhantes. Não ignoro usasse 53

pulos dele se acercaram, não para se Sócrates dessa linguagem ~o falar dos
formarem na eloqüência da ágora ou pais, parentes e amigos: aventava que
do tribunal, mas para se tomarem ho- após a deserção da alma devemos
mens virtuosos . e conhecerem seus apressar-nos elh fazer desaparecer o
deveres para com sua família, seus corpo do ente inda o mais querido,
parentes, servidores, amigos, pátria, pois unicamente naquela reside a inte-
concidadãos: e jamais nenhum deles, ligência. Enquanto vivo - dizia - o 54

nem na juventude nem ein idade mais homem corta com as próprias mãos ou
avançada,-praticou o mal nem disso foi faz cortar por outrem o que em seu
acusado. corpo, objeto de sua mais viva afeição,
49 Mas Sócrates - diz seu acusador lhe parece inútil e supérfluo. Assim os
/
- destruía nas criançás o respeito homens cortam de vontade própria as
filial, convencendo seus .discípulos de unhas, os cabelos, as calosidades.
que os tomava mais hábeis que seus Entregam-se aos médicos para que os
pais, dizendo-lhes que a lei permite cortem e queimem, com dores e sofri-

1
encarcerar o pai convicto de loucura, mentos indizíveis e ainda se crêem na
para provar o que dizia que ao homem obrigação de recompensá-los. Afinal
instruído assiste· o direito de encadear cospem a saliva o mais longe possível
50 o ignorante. Longe disso, achava Só- da boca, porque de nada lhes serve o
crates que o indivíduo que sob capa de guardá-la, sendo até prejudicial. Assim 55

ignorância acorrentasse outro, merecia falando, não exortava a enterrar o pai


ser acorrentado a seu turno pelo pri- vivo nem cortar-se a si mesmo em
meiro que soubesse mais que ele. Eis pedaços, mostrando que o que é inútil
· por que examinava de cotio em que di- deve ser desprezado, instava seus discí-
fere a ignorância da loucura, parecen- pulos a envidarem todos os esforços
do-lhe não se proceder erradamente por tomar-se o mais sóbrios e úteis
encarcerando os loucos - em seu pró- possível, a fim de que, se desejassem
prio interesse e de seus amigos - ao granjear a estima dos pais, irmãos ou
passo que os ignorantes devem apren- não importa qu1em, não se fiassem ape-
der o de que necessitam da boca dos nas nos liames parentescos, mas pro-
que sabem. curassem ser úteis àqueles cuja estima
51 Não só ao.s pais - prossegue o acu- ambicionassem .
sador - · mas também aos outros Pretende o acusador que Sócrates 56

parentes ensinava Sócrates seus discí- escolhesse os trechos mais perigosos


pulos a desrespeitarem, dizendo que dos grandes poetas e os utilizasse
·MEMORÁVEIS-I 49

como argumentos para formar seus· pulos, atenienses e estrangeiros, jamais


discípulos no crime e na violência. auferiu proveito algum desse comércio,
Assim, quando citava este verso de transmitindo a todos e sem reserva o
Hesíodo: Não a ação, mas a inação é que sabia. Alguns deles venderam
que· é vergonhosa, seria para mostrar o caríssimo a outros o que dele haviam
poeta animando a não deixar passar recebido gratuitamente e não foram
nenhuma oportunidade, justa ou injus- como ele amigos do povo, atento have-
57 ta, e de tudo aproveitar-se. Longe disso rem recusado suas lições aos que não
,.,.... a verdade. Reconhecendo ser a ação lhas podiam pagar. Assim, muito mais
1
1 útil e honrosa ao homem e a inação exaltou Sócrates a nossa República 61
\
\ /7 prejudicial e vergonhosa, uma um bem que Licas a dos. lacedemônios. Licas
_:-.'\e a outra um mal, dizia que aqueles tinha sua mesq aberta aos forasteiros
' , que praticam· o bem agem e agem que as gimnopédias atraíam à Lacede-
como deve agir-se, enquanto chamava mônia. Sócrates, espargindo seu tesou-
ociosos os que jogam dados ou se dedi- ro durante todo o curso de sua vida,
cam a outras ocupações condenáveis e prestou o maior dos serviços a todos
funestas. Assim compreendido, nada os que dele quiseram quinhoar, devol-
mais verdadeiro que o verso: Não a vendo melhores os que o procuravam.
ação, mas a inação é que é vergonhosa. Senhor de tal caráter, minha convie- 62

5s Acrescenta ainda o acusador que Só- ção é que Sócrates merecia de nossa ci-
crates citava freqüentemente estes ver- dade não a morte, porém, honras. Jul-
sos de Homero, onde se diz de Ulisses gai o fato à luz das leis e haveis de
que Quando via um rei, um herói de concordar comigo. Passível da pena de
escol, detinha-o com palavras de lison- morte, segundo as leis, é quem for
ja: "Filho dos deuses, não fujas como surpreendido roubando, furtando rou-
um covarde, senta-te e faze sentar tua pas, cortando bolsas, arrombando pa-
grosseira falange". Mas se topava com redes, vendendo seus semelhantes, pi-
um reles soldado a vociferar, batia-lhe lhando templos: todos crimes de que
com o cetro e rude e altivamente lhe mais que ninguém se absteve Sócrates.
dizia: "Senta-te! mísero, ouve a pala- Excitou sedições ou ocasionou derro- 63

vra de quem vale mais que tu, raça inú- tas? Maculou-se em alguma traição ou
til e frívola, covarde no combate, zero outro crime qualquer? Esbulhou al-
no conselho!" Tais versos explicá-los- guém de seus haveres? Lançou alguém
ia Sócrates como se o poeta tivesse na desgraça? Não, jamais foi acusado
aprovado que se maltratasse aos ple- de nenhum destes crimes. Como, 64

.59 beus e aos pobres. A verdade, porém, é então, poderia ser submetido a julga-
que Sócrates nunca disse semelhante mento, ele que, longe de pretender a
coisa, do contrário teria crido se deves- .inexistência dos deuses, como o incri-
se maltratá-lo a ele próprio: dizia que mina o auto de acusação, mais que
os homens que nada valem tanto no ninguém foi respeitoso da divindade?
conselho como na ação, incapazes, Longe de corromper os jovens, como
quando necessário, de prestar seu con- lhe censura a acusação, extirpava aos
curso ao exército, ao Estado, à nação olhos de todos as.,paixões de seus discí-
e, não obstante, prenhes de áfrevi- pulos e trabalhava por inspiré\.f-lhes o
mento, devem ser reprimidos por todos amor à virtude, essa deidade tão bela e
60 os meios, - inda que ricos. Muito pelo tão sublime que ·fez florescerem as
contrário, Sócràtes mostrava-se aber- cidades e os. lares. Assim procedendo,
tamente amigo do povo e filantropo . como não mereceu as maiores honras
De feito, cercado de numerosos discí- cie sua pátria?
CAPÍTULO III

Como Sócrates me·parecia ser útil a prazer que as pequenas, pois assim
seus discípulos, já pelo procedimento, mui freqüentemente as didivas cios
j€t pela palavra, eis o que passo a rela- maus lhes seriam mais gratas que as
tar, alinhavando o melhor que possa dos bons. Por sua vez, o homem esti-
minhas recordações. No que se refere maria a vida bem pouca coisa, se os
aos deuses, havia-se e falava de confor- dons das pessoas virtuosas fossem
midade com as respostas que dá a Pítia menos agradáveis aos deuses que os
aos que interrogam sobre como se deve dos maus. Ao contrário, achava· ele
proceder em relação aos sacrifícios, às serem as oferendas das pessoas mais
honras que é vezo render aos antepas- piedosas as que melhor sabem à divin-
sados, etc. Declara a Pítia, por um orá- dade. Por isso louvava este verso:
culo, que quem quer que sobre esse Ofertai aos deuses imortais segundo
ponto proceda conformemente às leis vossas posses. E pretendia ser este um
da pátria procede piedosamente. Ora, excelente preceito que observar para
assim procedia e instigava Sócrates os com os amigos, os hóspedes e em todas
outros a que procedessem, tendo todos as circunstâncias da vida: " ... ofertai
aqueles que se portassem diferente- segundo vossas posses". Se lhe parecia -1

mente na conta de indivíduos excên- receber algum aviso dos deuses, seria
tricos e insensatos. Pedia aos deuses mais fácil decidi-lo a tomar por guia
simplesmente que lhe concedessem os um cego ignorante do caminho em vez
bens, convicto de que melhor que nós de um homem clarividente e conhece-
sabe a divindade quais são eles: pedir- dor do itinerário que fazê-lo proceder
lhes ouro, dinheiro, poder e o mais que contrariamente a esse aviso. Loucos
por aí segue, seria o mesmo, dizia, que chamava aos que, para pôr-se ao abri-
indagar-lhes o resultado de um lanço go ·da má opinião dos homens, vão de
de dados, de um combate ou coisas encontro aos avisos dos deuses, os
incertas que tais. Modesto em suas ofe- quais tinha em muito maior conta que
rendas, modestos como eram seus tudo o que parte d9 homem. Afizera o
haveres, nem por isso julgava ficar corpo a regime tal que, tirante o caso
abaixo dos ricos que, senhores de lar- de intervenção do Alto, quem o se-
gas posses, ofertam vítimas de avanta- guisse viveria completamente isento de
jado tamanho e em grande número. inquietudes e perigos, tendo sempre
Indigno dos deuses, dizia, seria aceita- com que ocorrer a suas modestas
rem as grandes benesses com maior necessidades. Era tão frugal que não
52 XENOFONTE

sei de pessoa que não pudesse traba- Xenofonte para acusá-lo dessa
lhar o bastante para ganhar o que con- maneira?
tentava Sócrates. Não comia senão ~ Pois não teve a temeridade de
enquanto tivesse prazer, fazendo-o furtar um beijo ao filho de Alcibíades,
com disposição tal que o apetite lhe jovem de tamanha beleza e frescor?
servia de condimento. Toda bebida lhe - Ora, isso é ato de temer ária•! -
sabia agràdavelmente, porque jamais retrucou Xenofonte. - Estou que eu li

bebia sem ter sede. Se, convidado, ia a próprio bem poderia cometer seme-
um banquete, facílimo lhe era observar lhante temeridade.
o que à maior parte dos homens se - Desgraçado ! - exclamou Só-
antolha tão penoso, o não entregar-se a crates. - Imaginas o que te sucederia
excessos. Aos que não eram capazes se beijasses uma pessoa jovem e bela?
de fazer outro tanto, aconselhava não Ignoras que de livre, num momento te
comer sem apetite nem beber sem sede. tomarias escravo? Que pagarias caro
São tais demasias - aditava - que prazeres perigosos? Que já. não terias
fazem mal ao estômago, cabeça e espí- ânimo de perquirir o que é o belo e o
rito. E ajuntava, brincando, que Circe 3 bem? Que haverias de dar cabeçadas
empregava a abundância de iguarias como um louco?
para transformar os homens em por-
cos, e que aos conselhos de Mercúrio, - Por Hércules ! - retrucou Xe- 12

à sua natural temperança e à absti- nofonte - que terrível poder empres-


nência dos excessos da mesa devera tas a um beijo !
Ulisses o haver-se furtado à metamor- - Admira-te? - perguntou Sócra-
fose. Assim casava o chistoso ao sério. tes. - Não sabes que as tarântulas,
No tocante ao amor, aconselhava a que não são maiores que u'a moeda de
fugir resolutamente a sociedade das meio óbolo 4 , com o só tocar os lábios
pessoas belas. Não é fácil - dizia - causam ao homem dores tremendas e
manter-se prudente em seu comércio. privam-no da razã.o?
Vindo a saber, certa vez, que Critobu- - Por Júpiter l! bem o sei: - repli-
lo, filho de Críton, roubara um beijo cou Xenofonte - mas é que ao picar a
ao .filho de Alcibíades, mancebo de carne as tarântulas insinuaram-lhe um
rara formosura, teve com Xenofonte, não sei quê.
em presença de Critobulo, esta entrefa- - Insensato! - bradou Sócrates 13

la: - não desconfias haver no beijo de


9 - Dize-me, Xenofonte, não tinhas uma pessoa jovem e bela algo que teus
Critobulo na conta de jovem sábio olhos não vêem? Ignoras que esse
antes que de amoroso indiscreto, monstro que se chama uma pessoa
homem prudente antes que insensato e louçã e formosa (~ tanto mais temível
temerário? que a tarântula, quanto esta fere tocan-
- Certamente - conveio Xeno- do ao passo que a outra, sem tocar,
fonte.
- Pois bem, considera-o, dora- mas, pelo só aspecto, lança à distância
vante como o mais impulsivo e arro- um não sei quê que põe em delírio?
jado dos homens, capaz de desafiar o Talvez até seja porque os jovens belos
ferro e afrontar o fogo. firam de longe que se dá o nome de
10 - Que o viste fazer - indagou archeiros aos amores. Aconselho-te,
3
Cf. a narração de Homero na Odisséia, canto X. 4 Moeda ateniense com o valor de 1/6 da dracma,

(N. do E.) pesando 72 centigramas. (N. do E.)


MEMORÁVEIS-I 53

pois, Xenofonte, que quando vires uma menta. Quanto a ele, estava tão bem
pessoa bela, fujas, sem sequer te volta- armado contra tais delírios, que se
res. E a ti, Critobulo, receito-te viajar afastava das pessoas jovens e bonitas
um ano inteiro: todo este tempo mal com mais facilidade que outros das
dará para curar tua picada. pessoas feias e disformes.
14 Era pois de parecer, em amor, que Eis como se portava em face do 1s
aqueles que não pudessem reprimir seu beber; do comer e dos prazeres dos·
ardor o mitigassem como a tudo a que sentidos. E além de expor-se muito
o espírito só atende em caso de impe- menos aos sofrimentos, cria experi-
riosa necessidade do corpo, necessi- mentar tanto prazer em satisfazer-se
dade cuja satisfação não deve, todavia, como os que compram o gozo ao preço
impor à alma o menor constrangi- de mil tormentos.
CAPÍTULO IV

Se, coma por conjetura muitos es- - Por Júpiter ! os que criam seres
crevem e dizem, crê alguém possuísse animados, desde que tais seres não
Sócrates o maior talento para convidar sejam obra do acaso, mas uma inteli-
os homens a ingressarem na senda da gência.
virtude, porém fosse incapaz de os - Das obras sem destinação mani-
fazer trilhá-la, que examine não só as festa e daquelas cuja utilidade é incon-
questões por que confundia, à· guisa de testável, quais consideras como produ-
correção, os que pretendiam tudo to do acaso ou de uma inteligência?
saber, como também as práticas que - Justo é perfilhar a uma inteli-
diariamente entretinha com seus discí- gência as obras qu.e tenham fim de
pulos, e então, julgue se era ou não utilidade.
capaz de tomar melhores os que com - Não te parece então que aquele s
ele tratavam. Referirei, de começo, a que, desde que o mundo é mundo,
conversa que lhe ouvi ac.erca da divin- criou os homens lhes haja dado, para
dade com Aristodemo, por alcunha o que lhes fossem úteis, cada um dos ór-
Pequeno. Soubera ele que Aristodemo gãos por intermédio dos quais experi-
não oferecia aos deuses sacrificios nem mentam sensações, olhos para ver o
preces, que não · se socorria da adivi- que é visível e ouvidos para ouvir os
nhação e até chufeava dos que obser- sons? De que nos serviriam os olores
vam tais práticas. se não tivéssemos narículas? Que idéia
. - Dize-me, Aristodemo - inter- teríamos do doce, do amargo, de tudo
pelou-o - haverá homens que admires o que agrada ao paladar, se não exis-
pelo talento? tisse a língua para os discernir? Ao
Por certo. demais, não achas dever olhar-se como
- Nomeia-os. ato de previdência que sendo a vista
- Na poesia épica admiro sobre- um órgão frágil, seja munida de pálpe-
tudo Homero, no ditirambo Melanípe- bras, que se abrem quando preciso e se
des, na tragédia Sófocles, na estatuária fecham durante o sono; que para pro-
Policleto, na pintura Zêuxis. teger a vista contra o vento, estas pál-
- Quais são, a teus olhos, mais pebras sejam providas de um crivo de
dignos de admiração, os artistas que cílios; que os supercílios formem uma
fazem imagens sem razão e sem movi- goteira por cima dos olhos, de sorte
mento ou os artistas que criam seres que o suor que escorra da testa não
inteligentes e animados? lhes possa fazer mal; que o ouvido re-
56 XENOFONTE

ceba todos os sons sem jamais encher- que não desprezo a divindade. Mas
se; que em todos os animais os dentes creio-a muito grande para ter necessi- ·
da frente sejam cortantes e os molares dade de meu culto.
aptos a triturar os alimentos que - Contudo - retorquiu Sócrates
daqueles recebem; que a boca, desti- - quanto maior for o ente .que se
nada a receber o que excita o apetite, digna de tomar-te sob sua tutela tanto
esteja localizada perto dos olhos e das mais lhe deves homenagens.
narículas, de passo que as dejeções, -, Pois olha, se achasse que os deu- 11
que nos repugnam, têm seus canais ses se ocupam dos homens, não os
afastados o mais possível dos órgãos negligenciaria.
dos sentidos? Trepidas em atribuir a - Como! Julgá-lo que não, se,
uma inteligência ou ao acaso todas antes de mais nada, só ao homem, den-
essas obras de tão alta previdência? tre todos os animais, concederam a
- Não, por Júpiter ! - respondeu faculdade de se manter de pé, postura
Aristodemo - parece, sem dúvida, que lhe permite ver mais longe, con- .
tratar-se da obra de algum artífice templar os objetos que lhe ficam acima
sábio e amigo dos seres que respiram. . e melhor guardar-se dos perigos ! Na
- E o desejo inspirado às criaturas cabeça colocaram-lhe os olhos, os
de se reproduzirem, e o desejo inspi- ouvidos, a boca. E enquanto aos ou-
rado às· mães de alimentarem o próprio tros animais davam pés que só lhes
fruto, e neste fruto o maior amor .à vida permitem mudar àle lugar, ao homem
e o mais profundo temor da morte? presentearam também com mãos, com
- Evidentemente tudo isso são o auxíiio das quais realizamos a maior
obras de um ente que decidira existis- parte dos atos que nos tomam mais
sem animais. felizes que os brutos. Todos os animais 12
- Crês-te um ser dotado de certa têm língua: a do homem é a única que,
inteligência e negas existir algo inteli- tocando as diversas partes da boca,
gente fora de ti, quando sabes não teres articula sons e comunica aos outros
em teu corpo senão uma parcela da tudo o que queremos exprimir. Deverei
vasta extensão da terra, uma gota da falar dos prazeres do amor, cuja facul-
massa das águas, e que tão-somente dade,.restrita para todos os outros ani-
uma parte ínfima da imensa quanti- mais a uma estaçâlo do ano, para nós
dade dos elementos, entra na organiza- se estende ininterruptamente até a
ção do teu corpo? Pensas haver açam- velhice? Nem se satisfez a ·divindade 13
barcado uma inteligência que em ocupar-se do corpo do homem,
conseguintemente inexistiria em qual- mas, o que é o principal, deu-lhe a
quer outra parte, e que esses seres infi- mais perfeita alma. Efetivamente, qual
nitos em relação a ti em número e o outro animal cuja alma seja capaz de
grandeza sejam mantidos em ordem reconhecer a existência dos deus~
por força ininteligente? autores deste conjunto de corpos imen-
- Sim, por Júpiter ! pois não lhes sos e esplêndidos? Que outra espécie
vejo os autores como vejo os artífices além da humana rende culto à divinda-
das nossas obras. de? Qual o animal capaz tanto quanto
- Tampouco vês tua ~ma, senho- o homem . de premunir-se contra a
ra de teu corpo: de sorte que poderias fome, a sede, o frio, o calor, curar as
dizer nada fazeres com inteligência, doenças, desenvolver as próprias for- ·
mas tudo fazeres ao acaso. ças pelo exercício, trabalhar por adqui-
10 Aristodemo: - Claro, Sócrates, rir a ciência, recordar-se do que viu,
. MEMORÁVEIS-I 57

14 ouviu ou aprendeu?· Não te parece evi- como lhe apraz. Mister é acreditar,
dente que os homens vivem como deu- portanto, tudo dispor a seu grado a
ses entre os outros animais, superiores inteligência que habita o universo.
pela natureza do corpo como da alma? Quê i tua vista pode abranger um raio
Com o corpo de um boi e a inteligência de vários estádios e os olhos da divin-
de um homem não se estaria em me- dade não poderiam tudo abarcar ao
lhor condição que os seres apercebidos mesmo tempo ! Teu espírito pode ocu-
de mãos mas desprovidos de inteli- par-se simultaneamente do que se
gência. Tu, que reúnes essas duas van- · passa aqui, no Egito, na Sicília, e a
tagens tão preciosas, rião crês que os inteligência da deidade não seria capaz
deuses se carpem de ti? Que será preci- de em tudo pensar a um só tempo r
so então que façam para convencer-te? Certo, se obsequiando os homens, Js
Js - Que me enviem, como dizes que aprendes a conhecer os que também
te enviam, avisos sobre que deva ou são suscetíveis de obsequiar-te; se
não fazer. prestando-lhes serviços, vês os que por
- Quando falam aos atenienses seu turno estão dispostos a retribuir-te;
que os interrogam por meio da adivi- se deliberando com eles, distingues os
nhação, julgas que não falam a ti tam- que são dotados de prudência: assim
bém? Da mesma forma, quando por também, rendendo homenagem aos
prodígios manifestam sua vontade aos
gregos, a todos os homens, serás tu o deuses, verás até que ponto estão dis-
16 único esquecido? Pensas que se não. postos a esclarecer os homens sobre o
tivessem poder para tanto, os deuses que nos ocultaram, conhecerás a natu-
teriam incutido nos homens a crença reza e a grandeza dessa divindade que
de poderem distribuir o bem e o mal, e tudo pode ver e ouvir contemporanea-
que os homens, por eles enganados há mente, estar presente em toda parte e
tantos séculos ainda não o teriam per- de tudo ocupar-se ao mesmo tempo.
cebido? Não yês que às instituições Tenho para mim que, assim falando, 19
humanas mais antigas e mais sábias Sócrates ensinava seus discípulos a se
- estados e nações - são também as absterem de toda a ação ímpia, injusta
mais religiosas, que as épocas mais lú- e reprovável, não somente em presença
cidas são também as de maior pieda- dos homens como também na soleda-
n de? Saiba, meu caro, que tua alma de, visto convencê-los de que nada do
aposentada em· teu corpo, governa-o que fizessem escaparia aos deuses.
CAPÍTULO V

Se a temperança é para o homem mas útil a si próprio: ao contrário, se


uma bela e útil aquisição, vejamos se a faz mal aos outros mais ainda o faz a
ela não exortava Sócrates quando si mesmo, pois o que é mais pernicioso
dizia: "Cidadãos, se nos sobreviesse que arruinar, ao mesmo tempo que sua
uma guerra e quiséssemos escolher um casa, o corpo e a alma? No comércio
homem capaz antes de tudo de salvar- da vida, quem gostaria de um homem
nos e subjugar . o inimigo, escolhe- que a seus amigos prefere o vinho e a
ríamos alguém que soubéssemos escra- boa mesa, a seus companheiros as
vo do próprio estômago, do vinho, dos mulheres prostituídas? Não é um
prazeres do amor, da moleza e do dever, para todo aquele que saiba ser a
sono? Como poderíamos esperar que temperança o cimento da virtude, o
semelhante homem nos salvasse e encastoá-la antes de tudo na própria
2 triunfasse do inimigo? Se ao termo da alma? Sem ela, como discernir o bem e s
existência desejássemos confiar a al-
praticá-lo dignamente? O escravo das
guém a educação de nossos filhos, a
próprias paixões não degrada vergo-
honra de nossas filhas, a adminis-
nhosamente o corpo e o espírito? Pare-
tração de nossos bens, veríamos o
intemperante digno de tal confiança? ce-me, por Juno!, que todo homem
Entregaríamos a um escravo intempe- livre deve pedir aos deuses não venha a
rante a guarda de nossos rebanhos, de ter um escravo tal, e todo escravo das
nossos celeiros, a gerência de nossos próprias paixões encontre bons senho-
trabalhos? Aceita-lo-íamos ainda que res;.do contrário estará perdido". Eis o 6

gratuitamente como intendente e pro- que dizia, e suas ações mais que suas
1 vedor? E se não q~etríamos nem se- palavras testemunhavam sua tempe-
quer um escravo intemperante, como rança: sobranceiro não somente aos
não temermos parecer com ele? De prazeres dos sentidos como também ao
fato não se pode dizer que, da mesma que busca a riqueza, achava que rece-
forma que esbulhando os outros de ber dinheiro dó primeiro que aparece é
seus bens crê o avaro enriquecer, seja o comprar um senhor e sujeitar-se à mais
intemperante prejudicial aos outros ignominiosa servidão.
CAPÍTULO VI

Convém não calar a conversação miserável por que minha alimentação


que teve com o sofista Antifão. Certo seja menos sã ou menos nutritiva que a
dia Antifão, que queria tomar a Sócra- ~ua? Porque meus alimentos sejam
tes seus d!scípulos, interpelou-o e dis- E difíceis de obter que os teus, os
se-lhe na presença deles: quais são mais raros e mais delicados?
- Eu pensava, Sócrates, que os Porque os manjares que preparas te
que professam a filosofia, fossem mais saibam melhor ao paladar que os meus
felizes. Muito outro, porém, parece ser a mim? Não sabes que quem come
o fruto que colhes da filosofia. Vives com apetite não tem necessidade de
de tal guisa que não há escravo que de- condimento, que a quem bebe com pra-
seje viver sob tal senhor. Alimentas-te zer, fácil é prescindir da bebida que
das viandas mais grosseiras, bebes as não tem? Quanto às vestes, sabes que
mais vis beberagens. Cobre-te um quem as muda não o faz senão por
manto chamboado, que te serve no causa do frio e do calor; que se se cal-
verão como no inverno. Não tens cal- çam sapatos, é para que os pés não
çado nem túnica. Sem embargo, não sejam impedidos no andar pelo que os
aceitas nenhum oferecimento de di- possa ferir. Viste-me alguma vez ento-
nheiro, por agradável que seja recebê- cado em casa por causa do frio? dispu-
lo e muito embora proporcione vida tar, no verão, a sombra a alguém, ou
mais independente e aprazível. Se, impossibilitado de ir aonde quisesse
pois, como todos os mestres formas os por ter os pés feridos? Ignoras que gra-
teus discípulos à tua semelhança, ças a certos exercícios pessoas fracas
podes considerar-te um professor de de corpo se tornam mais fortes e os
miséria. suportam mais facilmente do que aque-
Ao que Sócrates respondeu las que, nascidas mais fortes, foram
Fazes, cr~io, Antifão, tão triste idéia descuidadas? Não crês que eu, que
de minha existênc~, que preferirias avezei meu corpo a resistir a todas as
morrer a viver como eu. Ora bem, exa- influências, não sofra melhor que tu,
minemos por que achas minha vida tão que não te exercitaste? Se não sou
penosa. Será porque, ao contrário dos escravo do ventre, do sono, da volúpia
, '
que, ~xigndo salário, são obrigados a e porque conheço prazeres mais doces
fazer o que lho rende, eu que nada re- que não deleitam apenas no momento,
cebo não sou forçado a falar com mas fazem esperar vantagens contí-
quem não queira? Achas minha vida nuas. Sabes que sem a esperança do
62 XENOFONTE

sucesso nenhum prazer experimen- que não enganas por cupidez, porém
tamos, de passo que, se se pensa lograr não sábio, já que nada sabes que valha
bom êxito, seja na agricultura, seja na o que quer que seja.
navegação, seja em Ol!-tra profissão Ao que Sócrates respondeu 13

qualquer, a ela nos dedicamos com - Antifãa, não é coisa corrente


tanto júbilo como se já houvéssemos entre nós poder fazer-se tanto da bele-
triunfado. Pois bem, julgas que esta za quanto da sabedoria emprego honesto
felicidade iguale a que nos dá a espe- ou vergonhoso? Quem chatina com a
rança de nos tornarmos melhores a nós beleza com quem lha queira pagar se
próprios e aos nossos· amigos? Tal é, chama um prostituído. Mas aquele
contudo, a opinião em que persisto! Se que, conhecendo um homem amante
da virtude, procura fazer-se seu amigo,
for preciso servir aos amigos, ou à pá-
consideram..:no sensato. O mesmo su-
tria, quem para tanto terá mais lazer,
cede em relaçâto à sabedoria: os que
aquele que vive como eu ou aquele que
com ela trafi.cam com quem lha queira
esposa o gênero ,de vida de que te
pagar se chamam sofistas ou prosti-
vanglorias? Quem fará a guerra mais a tuídos. Aquel~ porém, que reconhe-
seu grado, aquele que não pode dispen- cendo em outrem um bom carát~ lhe
sar · u' a mesa suntuosa ou aquele que ensina tudo o que sabe de· bem e se faz
se contenta com o que tenha à mão? seu amigo, reputam-no fiel aos deveres
Quem capitulará mais depressa, aquele. do bom cidadào. Assim, Antifãa, ao 14
que tem necessidade de igu.arias difí- passo que outros gostam de possuir um
ceis de obter ou aquele que se contenta bom cavalo, um cão, um pássaro,
10
com os alimentos mais triviais? Pare- gosto eu e muito mais, de ter bons ami-
ces, Antifãa, colocar a felicidade nas gos. Ensino-lhes tudo o que sei do berri,
delícias e na magnificência. De mim, aditando tudo o que os possa ajudar a
penso que de nada necessita a divinda- se fazerem virtuosos. Os tesouros que
de. Que quanto menos necessidades se nos legaram os antigos sábios em seus
tenha, mais nos aproximamos dela. E livros, percorro-os de conversa com
como a divindade é a própria perfei- meus amigos. Se encontramos alguma
ção, quem mais se avizinhar da divin- coisa boa, recolhemo-la e regozijamo-
. dade, mais próximo estará da perfei- nos de ser úteis uns aos outros.
ção. Ouvindo estas palavras, eu via em
De outra feita, disse Antifãa a Sócrates um homem feliz que virtuosos
li Sócrates. fazia os que o escutavam.
-·- Sócrates, creio-te justo, mas não De outra vez, perguntando-lhe Anti- 15

de todo sábio. Aliás parece-me comun- fãa por que razão, se se gloriava de
gares comigo nesta opinião. Não acei- tomar os outros hábeis na política, não
tas dinheiro por tuas lições. Entre- se ocupava ele: próprio desta ciência,
tanto, a ninguém darias nem venderias que pretendia conhecer:
por preço inferior ao que yaiem teu "Que será preferível, Antifãa, res-
manto, tua casa nem nada do que pos- pondeu Sócrates, consagrar tão-so-
suis e que reputas de algum valor. mente a minha pessoa à política ou
Claro é que, se estimasses igualmente dedicar meus cuidados a tomar grande
12
tuas lições, far-te-ias pagar o que número de indivíduos capazes de a ela
valem. És, portanto, honesto, de vez vacarem ?" ·
CAPÍTULO VII

Vejamos ainda se, ao desviar seus um homem quisesse passar por hábil
discípulos da fatuidade, Sócrates os le- piloto e bom general sem o ser real-
vava à prática da virtude. Pois costu- mente, vejamos o que lhe aconteceria.
mava dizer que não há mais belo cami- Querendo passar por homem capaz de
nho para a glória que um homem de preencher tais funções . e . não conse-
bem ser o que· realmente deseja pare- guindo convencer ninguém, não seria
cer. Assim provava a verdade de sua infel~z? E convencendo, não o seria
asserção: mais ainda? Com efeito, encarregado
Imaginemos - dizia - um indiví- do comando de um navio ou posto à
duo que quisesse passar por bom toca- cabeça de um exército, perderia aque-
dor de flauta sem o ser de fato. Que les mesmos que quisera salvar e se reti-
faria? Não deveria macaquear os bons raria coberto de vergonha e desprezo.
Demonstrava Sócrates igualmente
flautistas em tudo o que forma o exk-
rior da sua arte? Primeiro, como os nada haver mais perigoso para um
bons artistas possuem belos instrumen- homem que dar-se por mais rico, mais
forte, mais corajoso do que realmente
tos, e cercam-se de numerosos acólitos, é. Se lhe confiam encargos que desbor-
ele faria o mesmo. Depois, como dam de suas forças, não podendo exe-
numerosos encomiadores lhes cele-
cutar o de que parecia ser capaz não
bram os talentos, procurar-se-ia gran- fará jus à menor indulgência. Insigne s
de número de encomiadores_ Que embusteiro chamava àquele que se
nunca, porém, se metesse a tocar flau- apodera do dinheiro ou o que qrn~ que
ta_, do contrário pronto se cobriria de lhe tenha,Jll confiado, mas embusteiro
ridículo e todos se capacitariam ser maior ainda o homem sem valor que
não somente mau artista como impos- empreende ·convencer os outros de ser
tor. E se despendesse muito, nada capaz de dirigir o Estado. Excelente
ganhasse e de inhapa ainda perdesse a para :afastar seus discípulos do charla-
reputação, não viveria vida miserável, tanismo se me afigurava a linguagem
inútil e ridícula? Da mesma forma, se de Sócrates.
LIVRO li
CAPÍTULO I

Antolhava-se-me, ademais, que com E se fosse preciso vencer o sono, 1

semelhantes di$cursos Sócrates afazia ser capaz de deitar tarde, levantar cedo
seus discípulos à abstinência· em face e velar, a qual dos dois o ensina-
da boa carne, do vinho, da lubricidade, ríamos?
do sono, e à resistência ao frio, ao - Ainda ao mesmo.
calor, à fadiga. Sabedor de que um - Pois bem, a quem ensinaríamos
deles. se entregava a rédeas soltas a a abster-se- dos prazeres do amor, para
todos esses excessos. que não o impedissem de agir no
- Dize-me, Aristipo - interpe- momento necessário?
lou-o - se te cometessem a educação - Sempre ao mesmo.
de dois jovens, ~m para se tornar apto - Qual afaríamos a não fugir ao
a governar, outro para ser simples trabalho, mas enfrentá-lo com gosto?
cidadão, como formarias um e outro? ----:- O educado para governar, evi-
Queres que comecemos nosso exame dentemente.
pela alimentação, isto é, pelos primei- ·_ Ora, vejamos, se há uma ciência
ros elementos? que ensine a triunfar dos adversários, a
- Naturalmente respondeu quem conviria ensiná-la?
Aristipo - porquanto a alimentação - Por Júpiter!. ao que se destinasse
me parece ser o princípio da educação ,: a mandar.. Porque sem tal ciência de
sem alimento, impossível viver. · nada lhe valeriam as outras.
- Provavelmente, então à hora das - Não te parece então que um
refeições ambos pediriam de -comer? homem assim educado estaria muito
- Não resta a menor dúvida. menos · exposto a se deixar prender
- Qual habituaríamos, pois, a ocu- pefos inimigos do que o .estão os ani-
par-se de um negócio urgente antes de mais? Efetivamente, uns, engodados
satisfazer o apetite? pela gulodice, atraídos, a despeito de
- P.or Júpiter ! o destinado a go- sua desconfiança, pelo desejo e pelo
vernar, a fim de que os negócios d.o Es- cevo, lançam-se sobre a isca e são pre-
tado não se paralisassem durante sua sos. Outros encontram armadilhas na
gestão. água onde vão beber.
- E quando quisessem beber, não -.- De fato - conveio Aristipo.
seria ainda a esse que acostumaríamos -. - Outros, vítimas de seu calor
a resistir à sede? amoroso, como as codornizes e as per-
- Seguramente. dizes, aliciados à voz da fêmea pelo de-
68 XENOFONTE

sejo e a esperança do prazer, perdem e Recusar-se a si mesmo tantas coisas


caem nos laços. que se desejam e por-se à cabeça do
- Ainda é verdade. Estado para depois ser chamado à
- Não te parece uma vergonha barra do tribunal por não se fazer tudo
rebaixar-se o homem à condição dos o que quer a cidaLde, não é o cúmulo da
mais estúpidos animais? Por exemplo, loucura? Porque:, ao cabo de tudo, pre-
os adúlteros, que penetram em aposen- tendem as cidades servir-se de seus
tos fechados, muito embora saibam governantes como eu de meus escra-
e,xpor-se o delinqüente à ameaça da lei, vos. Quero que meus escravos me pre-
a embarrancar-se em uma armadilha, a parem com abundância tudo o que me
ver-se cobrir de infâmia. A despeito é necessário, mas que em nada toquem.
destes males e deste opróbrio reser- Acham as cidades deverem os gover-
vado ao adultério, a despeito de todos nantes procurar-lhes toda sorte de
os meios por que podem mitigar sem bens, de que eles próprios se absterão.
risco seus apetites amorosos, atiram- Aqueles, pois, que querem dar-se a um
se, cabeça baixa, ao perigo. Não é pro- mundo de serviços e oferecê-los aos
ceder como verdadeiro doido? outros, formá-los-ei como dissemos e
- Assim penso. os alinharei entre as pessoas aptas a
-- De vez que a maior parte das mandar. Quanto a mim, formo com
ocupações obrigatórias do homem se aqueles cujo desejo é levar a vida mais
exercem ao ar livre, como a guerra, a doce e agradável..
agricultura e outras igualmente impor- Então Sócrates: 10

tantes; não achas desmarcada neglí- - Queres, pois, examinemos quem


gência o não se endurecerem muitos leva vida mais agradável, governantes
homens contra o frio e o calor. ou governados?
- Certamente. - Com todo o gosto - respondeu
- Quer dizer que quei;n queira Aristipo.
mandar deve afazer-se a suportar sem - Primeiramente, dentre os povos
pena um e outro? Indubitavelmente. que conhecemos, na Ásia os persas
Então, se alinhamos entre os homens mandam, os sírios, frígios e lídios obe-
capazes para mandar os que sofrem decem. Na Europa mandam os citas,
com constância todas essas incomodi- os meatos lhes estão sujeitos. Na Líbia
dades, não devemos classificar as pes- governam os cartagineses, os líbios são
soas incapazes de fazê-lo entre as inap- governados. Desi)es povos, quais julgas
tas para o mando? vivam mais agradavelmente? E dentre
De acordo. os gregos, entre os quais te encontras,
- Pois bem, já que conheces o quais parecem levar vida mais agradá-
lugar que merece cada uma dessas vel, os que mandam ou os que obede-
duas classes de homens, já examinaste çem?
em qual delas te colocarias? - Mas - disse Aristipo - tam /1

- Quanto a mim - disse Aris- pouco entendo :reduzir-me à escravi-


tipo - estou longe de formar entre os dão. Parece-me existir um caminho
que aspiram ao mando. Quando já é intermédio, que forcejo por trilhar,
tão penoso provermos a nossas pró- entre o poder e a servidão: a liberdade,
prias necessidades, parece-me redonda que mais seguramente conduz à felici-
insensatez o não nos contentarmos dade.
com isso e ainda nos impormos o fardo - Muito bem - disse Sócrates. -
de prover às de nossos concidadãos. Se esse caminho que não passa entre o
MEMORÁVEIS-II 69

poder e a servidão tampouco passasse mente o direito de entrar e sair que


através dos homens, talvez tivesse acalentas essa confiança? Ou crês que
12 algum valor o que dizes. Mas se, viven- a nenhum senhor seria útil um escravo
do entre. os homens, não quiseres nem de tua espécie? Quem quereria, com
mandar, nem obedecer, nem servir de efeito, ter em casa um homem que
bom grado os que mandam, penso não nada quer fazer e se compraz corb a
ignorares que os mais fortes sabem vida mais suntuosa? Vejamos, a pro-
fazer gemerem os mais fracos, seja em pósito, como procedem os senhores em 16

massa, seja um a um, e escravizá-los. relação a tais servidores. Não lhes cor-
13 Não vês os que colhem as searas que rigem a gulodice pela fome? Não os
outros semearam, cortam as árvores impedem de furtar pondo sob chave
que outros plantaram, infligem toda tudo o que poderiam surrupiar? De
espécie de violência aos fracos e aos fugir, carregando-os de cadeias? A
que recusam servir, até fazê-los prefe- preguiça não a reduzem ao trabalho a
rir a escravidão à luta com mais for- chicotadas? Que fazes tu mesmo quan-
tes? E entre os particulares, não sabes do percebes ter um doméstico dessa.
que os corajosos e os fortes avassalam laia?
a seu proveito os poltrões e os impo- - Inflijo-lhe todas as correções até
tentes? constrangê-lo a servir-me. M-as Sócra- 17
- Para não passar por isso não me tes, os que são educados para o oficio
fixo em nenhuma cidade, mas em toda de rei, que pareces considerar a felici-
parte sou estrangeiro. dade, em que diferem dos que padecem
14
Então Sócrates: por necessidade, se voluntariamente se
- Propões-me, certo, um artificio condenam a suportar a fome, a sede, o
maravilhoso. Porque desde que Sínis, frio, as vigílias e outras fadigas? Por
Cirão e Procusto morreram, os foras- mim não vejo que diferença há entre
teiros não são maltratados por nin- ter eu a pele rasgada por um vergalho
guém. Mas hoje os governantes dão a bem ou a mal de meu grado, e que
leis a sua pátria para se porem ao abri- meu corpo, queira-o eu ou não, padeça
go da injustiça. Criam, além do que se toda espécie de violências. Não é ser
chamam os laços naturais, amigos que além de louco fazer voluntariamente
lhes servem de auxiliares. Cintam as cabeça baixa a estes sofrimentos?
cidades de muralhas, reúnem exércitos - Com que então, Aristipo - , vol-
para repelir as agressões injustas e até veu Sócrates - não vês esta diferença 18

cuidam de alianças no exterior: não entre os males voluntários e os que não


obstante nem todas estas precauções o são, que aquele que consente em pas-
os preservam do insulto. E tu qye nada sar fome desde que o queira pode
15 disso tens, que passas quase todg o comer, que quem se condena à sede
tempo nos longos caminhos onde se desde que o queira pode beber, e assim
comete o maior número de assaltos, tu para o mais que segue, de passo que o
que em qualquer cidade a que chegues homem que padece por necessidade,
és mais pequeno que o último dos cida- poderá ele, quando o quiser, cessar de
dãos, tu que enfim te encontras nu:rpa sofrer? Demais, quem sofre voluntaria-
situação em que mais que em outra mente se consola de seus males com
qualquer a gente está exposto à injusti- uma doce esperança, como vemos os
ça, imaginas a ela subtrair-te graças a caçadores suportarem bizarramente as
tua qualidade de forasteiro? Será por- fadigas pela esperança de uma captura.
que as cidades te assegurem publica- Semelhante recompensa é bem pouca 19
70 XENOFONTE
coisa para suas penas. Mas os que tra- cente e nobre, o corpo ornado de sua
balham para ter bons amigos ou para natural pureza, os olhos grávidos de
triunfar dos inimigos, para robustecer pudor, o exterior modesto, as vestes
o corpo e a alma e assim bem gerir suá brancas; a outra toda nediez e moleza,
casa, fazer bem aos amigos, prestar a pele caiada a fim de aparentar cores
serviços à pátria, como não crer que mais brancas e mais vermelhas, procu-
com tais alvos diante dos olhos supor- rando, na postura, parecer mais esbelta
tem com prazer todas as fadigas e do que naturalmente o era, os olhos
vivam felizes, contentes de si próprios, escancelados; um adereço estudado
louvados e invejados dos outros ho- para realçar seus encantos, mirando-se
20 mens? Mais: os hábitos de indolência e sem cessar, observando se a contem-
os prazeres fáceis não ·podem, no dizer plavam e a todo momento voltando a
dos ginastas, .;,dar boa compleição ao cabeça para admirar a própria sombra.
corpo nem fazer penetrar no espírito Aproximando-se de Hércules, · en, 23

nenhum conhecimento apreciável. Ao quanto a primeira conservava o


invés, os exercícios que querem cons- mesmo andar, a segunda, querendo
tância nos conduzem à prática de belas antecedê-la, correu para :o jovem herói
e boas ações, como dizem os grandes e disse-lhe:
homens. Disse algures Hesíodo 5 : O "Vejo-te, Hércules, incerto do cami-
vício é sedutor e fácil, seu caminho nho a seguir na vida. Se me quiseres
lhano e breve. Antes da virtude, porém, tomar por amiga, conduzir-te-ei pela
colocaram os deuses o suor, e a vereda estrada mais agradável e fácil, prova-
que leva ao cimo é áspera, fragosa e rás todos os prazeres e viverás livre de
árdua: ganhando-se o alto, todavia, pena. Primeiro não te ocuparás de 24

aplaina-se. o caminho. · guerras nem negócios, mas não cessa-


O mesmo testemunho presta Epi- rás de examinar que iguarias e que
carmo neste verso: A felicidade é um bebidas melhor te sabem ao . paladar,
bem que nos vendem os deuses. Dif, os objetos que possam deleítar-te os
ainda alhures: Malvado, foge à indo- olhos e os ouvidos, acariciar-te o olfa-
lência ou.teme a dor. to ou o tato, que afeição terá mais
21 As mesmas idéias exprime o sábio encantos para ti~ como dormirás mais
Pródico sobre a virtude em sua obra docemente, como poderás procurar
sobre Hércules, de que fez diversas lei- todos estes -prazeres com o· menor
esforço. Se rece.ias v.enha a faltar-te o 25
turas públicas. Eis, ao que me lembra, necessário para te dares tais. doçuras,
pouco· mais ou menos o qúe diz. Conta
não temas que eu te obrigue a traba-
que Hércules~ apenas dobrara a infân- lhar e a penar de corpo ·e espírito para
cia, nessa idade em que os jovens, já os adquirires; aproveitarás do trabalho
senhores de si, deixam ver se entrarão alheio e não te absterás do que quer
na vida pelo caminho da virtude ou do que possa proporcionar-te ganho: por-
vício, ºretirou-se para a solidão e ~en­ que dou aos que. me seguem a facul-
tiu-se incerto quanto à via a escolher. dade de em toda parte .obter vanta-
22 Duas mulheres de avantajada estatura gens". .
apresentaram-se-lhe ao olhar: uma de- Hércules, após ouvir estas palavras, 26

indagou-lhe:
5 Poeta dos meados do século VIII a. C.; com sua

poesia didática de inspiração religiosa (Teogonia) e


"Mulher, qual é teu nome?"
moral (Trabalhos e Dias) exerceu profunda in- "Meus amigos - respondeu ela
fluência no mundo grego dos séculos seguintes. - chamam-me a Felicidade, e meus
MEMORÁVEIS-II 71

inimigos, para dar-me nome odioso, farta de tudo antes de ter desejado
chamam-me a Perversidade". coisa alguma, comes antes da fome,
27 Aí a outra mulher, adiantando-se, bebes antes da sede. Para comer com
disse-lhe: prazer, vives à caça de cozinheiros.
"Eu também venho a ti, Hércules; Para beber com prazer, procuras beber
conheço os que te deram à luz e desde vinhos caríssimos e no verão corres a
tua infância penetrei-te o caráter. toda parte em busca de neve. Para dor-
Assim espero que se tomares o cami- mir agradavelmente, procuràs cobertas
nho que traz a mim, serás um dia autor macias e leitos flexíveis. Porque não é
ilustre de belos e gloriosos feitos e eu o cansaço e sim a ociosidade que te faz
própria me verei mais honrada e consi- desej_ar o sono. Em amor, provocas a
derada dos homens virtuosos. Não te necessidade antes de senti-la, usas de
' iludirei com promessas de prazeres: mil artificias e te serves tanto de ho-
expor-te-ei o que existe com verdade e mens como de mulheres. Assim é, em
2s tal qual o dispuseram os deuses. Do verdade, que formas teus amigos. À
que há realmente honesto e belo, nadâ noite os degradas e de dia os adorme-
concedem os deuses aos homens sem ces durante os instantes mais precio-
sacrifício e diligência. Queres que os sos. Imortal, foste rechaçada pelos 31

deuses te sejam propícios? Preiteia-os. deuses e os homens de bem te despre-


Ambicionas a estima de teus amigos? zam. Nunca te acariciou os ouvidos o
Beneficia-os. Desejas que uma nação mais adulador dos sons, o de um lou-
te honre? Serve-a. Queres que a Grécia vor, nem jamais contemplaste uma boa
inteira admire teu valor? Procura ser- ação praticada por ti. Quem daria fé a
lhe útil. Desejas que a terra te prodiga- tuas palavras? Quem te socorreria na
lize seus frutos? Cultiva-a. Preferes precisão? Qual o homem de bom senso
enriquecer com rebanhos? Apascenta- que ousaria misturar-se a teu bulhento
"os. Aspi(as a fazer-te grande pela guer- cortejo? Os que te seguem, se jovens,
ra? queres tornar livres teus amigos e são impotentes de corpo; velhos, têm a
triunfar de teus inimigos? Aprende a alma ~mbrutecida. Nédios na juventu-
arte da guerra com aqueles que a de, por via da ociosidade, emagrecem
conhecem, exercita-te em pôr-lhes em ao peso de trabalhosa velhice. Enver-
prática as lições. Desejas adquirir gonhados do que fizeram, atormen-
força física? Habitua o corpo ao impé- tados ·do que têm de fazer, borbole-
rio da inteligência e tempera-o no tra- tearam na primavera da vida de prazer
balho e no suor". em prazer e diferiram as penas para o
29 Aí a Perversidade retomando, no outono da existência. Eu, ao contrário, 32

dizer de Pródico: estou com os deuses, estou com os ho-


"Compreendes, Hércules - dis~­ mens de bem: entre os deuses como
lhe - quão penoso ~ longo é o cami- entre os mortais nenhuma bela ação se
nho da felicidade que te propõe essa faz sem mim. Mais que ninguém, rece-
mulher? Enquanto eu, é por estrada bo eu dos deuses e dos homens legíti-
fácil e breve que te conduzirei à ventu- mas honras, companheira querida que
ra". sou do trabalho do artesão, guardiã fiel
30 Então a Virtude: da casa do senhor, protetora benévola
"Mísera! - exclamou - que bens do servidor, gentil associada nos traba-
possuis? Que prazeres podes conhecer, lhos d_a paz, aliada constante nas labu-
tu que nada queres fazer para comprá- tas da guerra, intermediária devotada
los? Sequer deixas nascer o desejo: da ami~de. Meus amigos saboreiam 33
72 XENOFONTE

com prazer e sem confeição alimentos honra, mas sua memória esplende cele-
e bebidas, porque esperam o desejo - brada de evo em evo. Aí está, Hércu-
para comer e beber. O sono lh·es é mais les, filho de pais virtuosos, como,
agradável que aos ociosos; interrom- trabalhando, podes alcançar a suma
pem-no sem pesar e não lhe sacrificam felicidade".
seus negócios. Jovens, sentem-se feli- Eis pouco mais ou menos como
zes dos elogios dos anciãos. Velhos, narra Pródico a lf:ção dada a Hércules
recebem ditosos os respeitos da juven-
tude. Recordam com deleite as ações pela Virtude, conquanto ornasse seus
pretéritas e realizam prazerosos o que pensamentos de. expressões mais no-
lhes resta fazer. Por virtude minha, são bres que as por mim usadas neste
amados dos deuses, caros aos amigos, momento. Reflete, Aristipo, e trabalha
honrados da pátria. Ao soar a hora por gizar a conduta que observarás
fatal, não dormem em olvido sem para o resto da exnstência.
CAPÍTULO II

Tendo percebido que Lâmprocles, o - Pois bem! quem mais cumulado


mais velho de seus filhos, andava às de benefícios que os filhos o são dos
testilhas com a mãe: pais? São os pais que os fazem transi-
- Dize-me, filho - perguntou-lhe tar do nada ao ser, aó espetáculo de
- sabes existirem certos homens a que tantas maravilhas, à fruição de tantos
se chama ingratos? bens com que nos presentearam os
- Sei - respondeu o jovem. deuses: bens que se nos figuram tão
- Sabes também por que recebem preciosos que nosso maior temor é
este nome? perdê-los. Por isso estatuíram as cida-
- Sim. Chamam-se ingratos aque- des a pena de morte contra os maiores
les que receberam benefi'cios e que-, crimes, como o castigo mais tremendo
podendo-o não testemunham re.conhe- para suster a injustiça. Sem dúvida não
cimento. crerás ser unicamente pelos prazeres
- Não sabes que se classificam os do amor que os homens procuram ter
ingratos entre os homens injustos? filhos, pois as ruas e as casas regurgi-
- Sei-o. tam de meios de se satisfazerem.
- Por ventura te perguntaste a ti Longe disso, vêem-nos considerar quais
mesmo, se assim como é injusto escra- as mulheres que nos darão os mais
vizar os amigos e justo avassalar os belos filhos, e é a elas que nos unimos
inimigos, será injusto ser ingrato para para realizar nossa esperança. Então o s
com os amigos e justo sê-lo aos esposo tem de sua m.ão aquela que o
inimigos? ajuda a tomar-se pai; acumula previa-
- Naturalmente. E. tenho por in- mente para os futuros filhos tudo o que
justo quem não se esforça por dar crê lhes seja útil na vida, fazendo a
prova de reconhecimento a um benfei- mais ampla provisão possível. A mu-
tor, seja amigo ou inimigo. lher recebe e carrega esse fardo que a
- Pois bem ! se assim é, então a faz pesada e lhe põe os dias em perigo;
ingratidão é pura injustiça. dá ao filho parte da própria substân-
Lâmprocles conveio. cia; depois, ao cabo de gestação e de
-. E não será um homem tanto parto cheio de dores, cria-o e desvela-
mais injusto quanto mais ingrato se se, sem nenhuma tenção, sobre um
mostrar ao receber mais benefícios? filho que não sabe de quem lhe vêm
Ainda uma vez Lâmprocles concor- tais cuidados que sequer pode dar a
dou. entender o de que necessita, de passo
74 XENOFONTE

que ·a mãe ·procura adivinhar o que lhe diz por mal, mas quereria ver-te feliz
convém, o que pode agradá-lo, e que como ninguém, te irritas contra ela?
ela fomenta dia e noite, ao preço.de mil Pensas então seja tua· mãe para ti uma
fadigas e sem saber qual será a paga de inimiga? .
seus sofrimentos. E não é só o alimen- - Claro que :o.ão. 10

to: Logo que os julgam em idade de Aí Sócrates:


aprender alguma coisa, comunicam- - Então, esta mãe que te ama, que
lhes os pais todos os conhecimentos · quando enfermas te dispensa todos' o"s
úteis que possam ou os confiam aos cuidados· para devolver-te à saúde, que
cuidados de alguém que creiam mais se desvela para que nada te falte, que
capazes de ensiná-los, não poupando pede aos deuses te prodigalizem seus
despesas nem cuidados para que seus benefícios e cumpre os votos que por ti
filhos s.e tomem os melhores possíveis. fez, queixas-te de seu mau humor?
Ao que retorquiu o jovem:· Quero crer que se não suportas seme-
- Sim, certo ela fez tudo isso e até lhante mãe o próprio bem te é insupor-
mil vezes mais. Porém não há quem' tável. Mas diz.e-me, achas que se deva li

lhe suporte o mau humor. ter atenções par.a com todos ou não
Volveu Sócrates: procurar comprazer a ninguém, a nin-
-- Não achas o humor selvagem de guém obedecer, nem a um estratego
uma besta mais insuportável que o de nem a não importa que magistrado?
u'amãe? · - Por Júpiter! há obedecer.
- Não, pelo menos de mãe qual a - Pois bem :- disse Sócrates 12

minha. sem dúvida quererás agradar teu vizi-


- Terá te mordido ou dado algu- nho pata que, em caso de necessidade, ·
ma patada, como soem fazer as bes- te acenda o fogo., te faça bons ofícios,
tas? em caso de acidente, acuda de bom
-· Mas, por Júpiter! diz coisas que grado em.teu socorro?
nem ao preço da vida se quereriam - Está visto.
ouvir. - Será indiferente termos por ami-
- E · tu disse Sócrates gos ou inimigos um companheiro de
-quantos dissabores insuportáveis viagem, de navegação ou qualquer que
não lhe causaste desde a infância, já seja? Ou achas que nos devamos dar
com palavras, já com atos, ora de dia, ao trabalho de gallhar-lhe as graças?
ora de noite? Quantas aflições não lhe - Claro que sim. 13

deram tuas doenças? - Como! estás pronto a ter aten-


- Pelo menos nunca lhe disse nem ções para com todos esses estranhos e
fiz nada de que ela tivesse de corar. não crês devê-las à tua mãe, que te
- Quê ! ser-te-á mais penoso ouvir quer mais que a ninguém ! Ignoras que
o que ela diz do que aos comediantes o Estado (az vista grossa a todas as
D\l""YÍI as injúrias que mutuamente se outras ingratidões, não as persegue e
prodigalizam nas tragédias? deixa impunes os obrigados mal agra-
- Mas, penso, como não julgam decidos, porém castiga aquele que não
que aquele que os ofende o faça por respeita os pais, o degrada e exclui das
mal, nem que aquele que os ameaça os magistraturas, persuadido de que se-
ameace seriamente, facilmente supor- melhante indivíduo jamais seria capaz
tam o que lh_e dizem. de oferecer com santidade os sacrifí-
- E tu, que sabes muito bem que cios públicos nem praticar boa e hon-
tua mãe, diga-te o que te disser, não o rada ação? E, por Júpiter! se um cida-
MEMORÁVEIS-II 75

dão não honrou o túmulo dos pais mens, cuidarás em que, sabedores .de
mortos, pede-lhe contas o Estado nos .tua falta de ~espito para com teus
inquéritos abertos sobre os futuros pais, não te desprezem todos e te dei-
14 magistrados. Se, pois, és prudente,
xem sem amigos. Porque se suspei-
filho meu, temeroso que as deidades te
olhem como ingrato e te recusem seus tassem foras ingrato para com teus
favores, rogar-:-lhes-ás te perdoem as pais, quem te creria capaz de reconhe-
ofensas à tua mãe. Quanto aos ho- cer um beneficio?
CAPÍTULO III

Querefonte e Querécrates, dois ir- leite? Quando por mais não fosse, os
mãos, conhecidos seus, não iam lá homens respeitam mais e mais receiam
muito um com o outro. Tendo-o nota- ofender aqueles que têm irmãos do que
do e topando certo dia com Querécra- os que não os têm.
tes, interrogou-o: Ripostou Querécrates:
- Dize-me, Querécrates, acaso - Certo, Sócrates, se a desinteli- s
não serias desses homens que reputam gência fosse pequena, seria justo su-
as riquezas mais estimáveis que os portar o irmão e dele não se afastar
irmãos, muito embora às riquezas fale- por motivos insignificantes: porque
ça razão, enquanto um irmão é ser como dizes, grande bem é um irmão,
razoável; elas precisam ser defendidas, quando tal qual deve ser; mas quando
ao passo que ele pode defender-nos; falta a todos os deveres, quando se
elas são em número infinito e ele mostra de todo em todo o contrário do
único? Coisa não menos estranha é que é de esp~ra, como tentar o
crer-se alguém esbulhado por não pos- impossível?
suir os bens dos irinãos, quando nin- - Vejamos, Querécrates - tornou
guém considera dano as riquezas dos Sócrates - , Querefonte desagrada a
concidadãos, por não possuí-las. Prefe- toda gente como a ti ou há pessoas a
re-se viver cercado de amigos e gozar, quem compraza?
sem temor, de recursos suficientes do - Precisamente por isso, Sócrates,
que viver só e fruir na insegurança. as tenho razão de odiá-lo: sabe agradar
posses de todos os concidadãos:: a. os outros ao passo que a mim em vez
jtanto, ao tratar-se de. irmãos, desco- de me ser útil só sabe desgostar-me
nhece-se esta verdade. De outra parte, com atos e palavras.
os que o podem compram escravos - Não será - prosseguiu Sócra-
para ajudar-se de seus trabalhos, bus- tes - que tal o corcel que derruba o
. cam amigos para ter apoio, porém cavaleiro inábil que tenta montá-lo, re-
negligenciam os irmãos, como se fosse foga um irmão ao irmão sem tato que
possível encontrar amigos entre patrí- dele intenta servir-se?
cios e não o fosse entre os irmãos. Sem - Como - replicou Querécrates
embargo, que melhor título para a ami- - não saberia eu lidar com meu
zade que haver nascido juntos, se até irmão, se a boas palavras sei responder
os animais têm uma espécie de ternura com boas palavrás, a bons ofic.ios com
para os que se alimentaram do mesmo, bons ofícios? Todavia, se alguém toma
78 XENOFONTE

a assinatura contra mim não sei dizer- de que dispõem os homens e deles
lhe· palavra de agrado nem prestar-lhe fazes mistério há tanto tempo! Será
um benefício, e sequer o tento. que crerias desonrar-te, prevenindo teu
Ao que respondeu Sócrates: irmão com bons tratos? Entretanto,
- Estranho tuas pal~vrs, Queré- olha-se como homem digno de todos
crates. Se tivesses um cã6, guarda fiel os elogios o que sabe ser o primeiro em
de teus rebanhos, que festejasse teus estorvar os inimigos e servir os ami-:
.pastores mas rosnasse à tua aproxima- gos. Julgasse eu Querefonte mais apto
ção, em lugar de te pores colérico que tu a dar o exemplo destas boas
procurarias amansá""'.lo com bons tra- disposições, e tê:-lo-ia induzido a dar os
tos; e teu irmão, que reconheces gran- primeiros passos para conquistar tua
de bem desde que bem disposto para amizade; tenho-te, porém, por mais
contigo, tu que campas de reto no falar capaz de encetar esta obra.
e obrar não procuras concitar-lhe a Retorquiu Querécrates: 15
afeição? - Francamente; Sócrates, teus
10 - Receio, Sócrates - disse Que·- conselhos me admiram. Dizes coisas
récrates - não ser suficientemente indignas de ti: queres que eu, o mais
hábil para bem animá-lo ein relação a jovem, tome a iniciativa. No entanto,
mim. entre todos os povos o contrário é que
- Entretanto - volveu Sócrates voga. Em tudo tem o mais velho o pri-
- parece-me não haver necessidade meiro passo, seja para a ação,- seja
de empregares artifícios numerosos .e para a palavra.
extraordinários. Os que conheces serão - Quê ! - exclamou Sócrates - 16

bastante para ganhar-lhe a estima. consoante o uso universalmente esta-


li - Possuirei eu, sem o saber, algum belecido não é o maisjovem que deve
filtro para isso? ceder o caminho ao mais velho, levan-
- Dize-me, que farias se quisesses tar-se se sentado, dar-lhe a honra de
que alguém de teu conhecimento, ofe- um leito mais macio e deixá-lo falar
recendo um sacrifício, te convidasse primeiro? Não tergiverses, meu . caro.
para jantar? Trata de adoçar teu irmão, que pronto
- Evidentemente começaria eu se renderá. Não vês como ele é nobre e
próprio por convidá-lo, quando sacrifi- generoso? As almas tacanhas com-
casse. pram-se com presentes. As almas gene-
12 - E se quisesses levar um de teus rosas. conquistam.,.se com mostras de
amigos a gerir ·teus negócios quando amizade.
viajasses, que farias? Querécrates:
- Quando se ausentasse, seria o . - E se apesar disso ele não se tor- 17

primeiro a encarregar-me dos seus. nar melhor para comigo?


13 - E que farias, se quisesses dispor - Que arriscas com isso? - reto-
um estrangeiro a receber-te quando mou Sócrates -- se não mostras .que és
fosses a sua cidade? um espírito nobre e bom irmão en-
- Obviamente seria o primeiro a quanto ele é vil e indigno _de afeto?
dar-lhe acolhida quando viesse a Ate- Mas não creio que nada disso aconte-
nas; e se quisesse que me auxiliasse a ça .. Apenas se sinta provocado a esta
despachar os _negócios para que fora a luta ele forcejará por vencr-~ em
sua terra, evidentemente seria o pri""' generosidade. De feito, ora estás· como 18
meiro a fazer-lhe outro tanto. estariam as duas mãos, feitas pelos
- Como? conheces todos os filtros deuses para se ajudarem. reciproca-
MEMORÁVEIS-II 79

mente, se esquecessem esta destinação mãos não poderiam pegar ao mesmo


para se atrapalharem uma a outra, ou tempo duas coisas distantes mais de
como estariam os dois pés, pela provi- uma toesa, uma da outra, nem os pés
dência feitos para trabalhar de concer- separar-se um do outro mais de uma
to, se ao revés deste fim· procurassem toesa 6 • Os próprios olhos, que se nos
19 entravar-se mutuamente. Não seria o afiguram de alcance muito mais extn~
cúmulo da ignorância e demência so, não podem ver simultaneamente de
mudar em detrimento nosso o que se frente e de trás os objetos mais próxi-
fez para nossa utilidade? Parece-me mos. Porém dois irmãos que se amem,
que os deuses, em criàndo dois irmãos, seja qual for a distância que os separe,
tiverarh em vista sua utilidade recí- podem obrar de mão comum e servi~­
proca mais ainda que a das mãos, dos se mutuamente.
pés, dos olhos e do mais de que deram 6 Antiga medida de 6 pés, ou seja 1,98 m. (N. do
aos homens a parelha fraternal. As E.)
. 1
CAPÍTULO IV

De outra feita falando Sócrates da quantos têm, embaraçam-se na enume-


amizade, ouvi-lhe dizer coisas utilís- ração, tanto se importam com os ami-
simas para aprender a adquirir amigos gos! No entanto, qual o bem compa- s
e com eles tratar. Dizia ouvir muita rável a um amigo sincero? Qual o
gente estribilhar ser um amigo seguro e cavalo, qual .a parelha tão útil como
virtuoso o mais precioso de todos os um bom amigo? Qual o escravo tão
bens, mas de tudo se ocuparem menos devotado, tão fiel? Qual o bem tão
da aquisição de amigos. Via, dizia, proveitoso? Um bom amigo está sem-
toda gente empenhar-se em adquirir pre pronto a substituir-se ao amigo em
casas, campos, escravos, rebanhos, tudo o que preciso for, seja na gestão
móveis e esforçar-se por conservar o
de seus negócios particulares, seja nos
que possui. Mas um amigo, que se diz
assuntos do Estado; queira este prestar
o mais precioso de todos os bens, não
um serviço a alguém, ele lhe vem em
via ninguém cuidar de adquiri-lo e,
uma vez adquirido, de conservá-lo. auxílio; possua-o algum temor, acode
Adoecesse um escravo, via, dizia, man- em seu socorro, contribuindo para
darem buscar médicos e tudo fazerem suas despesas e com ele laborando, de
para volvê-lo à saúde. Enfermasse um concerto com ele emprega...11.do a per-
amigo, não moviam;· uma palha. Mor- suasão ou a violência, deleitando-o no
resse um escravo, choravam-no e olha- abatimento. Os serviços que a cada um
vam-lhe a morte como uma perda. de nós nos prestam as mãos, o que são
Morresse um amigo e nada creriam ter os olhos para o ver, os ouvidos para o
perdido. Não descuram nenhum de ouvir, os pés para o andar, não sobe-
seus bens, porém negligenciam os ami- jam ao que faz um amigo delicado. E
gos que necessitam de seus cuidados. muita vez o que nós mesmos não fize-
Agregava a isto que a maior parte dns mos, não vimos, não ouvimos, fá-lo
homen·s conhece muito bem, por exten- um amigo por nós. Homens há, não
so que seja, o rol de tudo o que pos- obstante, que por causa do fruto se
suem; quanto aos amigos, por poucos consagram de corpo e alma à cultura
que sejam, não só lhes ignoram o nú- de árvores, sobreolhando, indolentes, o
mero, mas quando se lhes pergunta mais frutuoso dos bens - o amigo.
CAPÍTULO V

Outro dia, ouvi-o usar de linguagem nes. - Há tal homem cuja amizade eu
·capaz de fazer o ouvinte entrar em si preferiria a duas minas, outro por
mesmo e considerar qual o grau. de es- quem não daria meia mina, outro por
tima que merecia de seus amigos. quem daria até dez minas, outro por
Sabedor de que um de seus discípulos quem dari-a todas ~s minhas riquezas e
abandonava um amigo na indigência, rendas.
dirigiu-se a Antístenes em presença - Assim sendo - respondeu Só-
desse amigo indigno e de muitas outras crates - , bem seria que cada um exa-
pessoas: minasse a que preço deve ser estimado
- Dize-me, Antístenes, haverá pelos amigos e se esforçasse por valer·
preço para os amigos como o há para o mais possível, a fim de correr menos
os escravos? Entre os escravos um vale o risco de ser abandonado. A todo ins-
duas minas 7 , outro nem meia; esta tante ouço dizer a um que o amigo o
vale cinco, aquele seis. Diz-se até que traiu, a outro que por uma mina se viu
Nícias, filho de Nicerato pagou um desprezado pelo homem que julgava
talento 8 pelo intendente de suas minas amigo. À vista de tudo isso, pergunto- s
de· prata. Vejamos, pois, se assim como me a mim mesmo se, da mesma forma
existe preço para os escravos, existe que se vende um mau escravo pelo
para os amigos. preço que se encontra, não se deve pôr
- Claro que sim - disse Antíste- à venda e vender um mau amigo desde
que=·ofereçam mais do que vale. Vejo,
7 Mina: moeda de 100 dracmas; 10 minas de·prata porém, que nunca se vendem os bons
fazem 1 mina de ouro; 60 minas de prata, 1 talento.
(N. do E.) escravos e jamais se abandonam os
s Cf. nota 7. (N. do E.) bons amigos.
CAPÍTULO VI

Plenos de bom senso me pareciam - Parece-me pior ainda que o


também os conselhos que dava acerca anterior - disse Critobulo.
dos predicados que se devem procurar - E o aurissedento cuja única
nos amigos, quando dizia: preocupação é excogitar meios de
- Dize-me, Critobulo, se precisás- ganho?
s~mo de um bom amigo, o que deve- - Acho que também deve ser evi-
ríamos considerar em primeiro lugar? tado, pois seria inútil a um amigo.
Antes de tudo, não deveríamos procu- - E o rixoso pronto a criar para os
rar um homem que soubesse dominar o amigos uma legião de inimigos?
próprio ventre, o desejo da bebida, da - E homem de fugir, por Júpiter!
lubricidade, do sono, da indolência? - E o homem que, sem ter nenhum
Porque aquele que obedece a todos desses defeitos, deixa que lhe façam o
estes pendores nada faz de útil nem a si bem sem lembrar-se de retribuir?
mesmo nem a um amigo. - Também seria inútil. Mas então,
- Por Júpiter! seria incapaz. Sócrates, quem devemos procurar para
- Não achas, pois, que se deva amigo?
fugir de homem escravizado por tais - Aquele, penso, que tenha as qua- s
paixões? lidades contrárias: senhor dos apetites
- Acho. sensuais, fiel a seus juramentos, con-
- O perdulário incapaz de bastar- descendente nos negócios, que não
se a si mesmo, sempre necessitado dos fique atrás dos que o beneficiem, pron-
outros, que pede emprestado e não to a servir quem o sirva.
paga, que se ofende se não lhe empres- - Mas como, Sócrates, nele reco-
tam, não te parece também amigo nhecer tais qualidades antes de pô-lo a
muito incômodo? prova?
- Certamente. - Para julgar os estatuários -
- Deveríamos, pois, afastar-nos disse - não vamos atrás de suas pala-
igualmente de tal homem? vras: fiamo-nos em quem haja execu-
- Deveríamos. tado belas estátuas, certos de que ou-
- E aquele que sabe aumentar seus tras fará igualmente belas.
haveres, mas desejoso de· ·entesourar - Queres dizer que se um homem
grande riqueza e por isso mesmo difícil proceder bem com os amigos que já
de tratar nos negócios, mais amigo de teve, de certo procederá da mesma
receber que de devolver? forma com os que vier a ter?
86 XENOFONTE

- Sim. Um picador que eu visse dos, se, para louvá-lo, fôssemos dizer a
montar bem alguns cavalos, crê-lo-ia um homem que se saiba pequeno, feio
capaz de com outros fazer outro tanto. e fraco, que é belo, grande e robusto.
- Seja. Mas tendo um homem nos Mas não conheces outros amavios?
parecido digno de nossa amizade, -·Não. Ouvi dizer, porém, que Pé- 13

conio fazê-lo amigo? ricles conhecia muitos, que usava par·a


- Antes de mais nada - disse Só- fazer-se amado de seus concidadãos.
crates - há mister consultarmos os · - E Temístocles, como fez para
deuses e ver se nos aconselham a fazê- conquistar-lhes a amizade?
lo nosso amigo. - Por Júpiter ! não foi com feitiços
- Pois bem - prosseguiu Crito- mas cumulando-os de benefícios.
bulo - uma vez -confirmada nossa - Sem dúvida, Sócrates, queres 14

escolha pelo consentimento dos deu- dizer que, se quisermos adquirir um


ses, poderás dizer-me como caçaremos bom amigo, devemos ser igualmente
nosso amigo? honestos de palavras e atos?
- Por Júpiter! não será nem cor- - Pensavas então - disse Sócra-
rendo-lhe no encalço, como à lebre, tes - pudesse homem ímprobo procu-
nem com reclamo, como aos pássaros, rar amigos virtuosos?
nem de força, como aos inimigos: - É que vi - disse Crito bulo - 1.5

árdua tarefa seria conquistar um maus retóricos amigos de oradores dis-


amigo contra sua vontade. Nem que o tintos, homens sem conhecimentos mi-
encadeássemos qual escravo, lógra- litares intimamente ligados aos mais
ríamos retê-lo. Semelharite tratamento hábeis generais .
criar-nos-ia antes ip.imigos que amigos. - Mas, voltando ao nosso propó- 16

- Como, então, conseguir amigos? sito, conheces homens inúteis que te-
10 - Dizem existir. certas palavras nham sido capazes de granjear amigos
mágicas, que, sabidas e pronunciadas, úteis?
fazem amigos nossos quem quer que - Não, à. verdade. Todavia, se ao
queiramos, filtros cujo conhecimento perverso é impossível travar amizade
serve para fazer-se amar de quem se com pessoas honestas, gostaria de
queira. saber se será fácil, sendo a gente
- Onde aprender essas receitas? honesto, encontrar amigos entre 'os ho-
11 - Disse-te Homero as palavras mens virtuosos. 17
mágicas que a Ulisse_s disseram as - O que te embaraça, Critobulo, é
sereias. Principiam mais ou menos veres muitas vezes pessoas -que prati-
assim: Aproxima-te, ilustre Ulisses, cam o bem e sé abstêm do mal, longe
honra dos aqueus. de amigos, atacarem-se umas às outras
- Mas, Sócrates, não é o canto e tratarem-se mais indignamente que
com que as sereias retinham os outros os últimos dos homens.
homens e os impediam de fugir-lhes às - E não s:ão os particulares - 18

seduções? disse Crito bulo_ - que assim proce-


- Não. Este canto só o endere- dem. As cidades, até as qu_e mais
çavam aos amigos da virtude. amam tudo o que é belo e mais abomi-
12 - Pareces-me dizer dever-se en- nam tudo o que é vergonhoso, freqüen-
cantar os homens com palavras tais temente estão em guerra umas com as
que não lhes pareça mofa os louvores outras. Quando penso nisso, desespero 19

que ouçam. De outra forma _ganha- completamente de poder adquirir ami-


ríamos um inimigo e seríamos repeli- gos. Vejo que os maus não podem
MEMORÁVEIS-II 87

amar-se uns aos outros: efetivamente, com os amigos e olhando os bens dos
como poderiam seres ingratos, negli- outros como os seus próprios, dirimem 2.f
gentes, cúpidos, sem fé e sem freio tor- todo pretexto de inveja. Não é, pois,
nar-se amigos? Os maus foram feitos natural que, galgando os cargos do
20
antes para odiar-se mutuamente que Estado, longe de se prejudicarem, se
para amar-se. De mais a mais, como tu sirvam mutuamente os homens virtuo-
próprio o dizes, impossível formarem sos? Os que desejam as honras e a
os maus concerto amistoso com os autoridade em sua pátria, a fim de pi-
bons, pois qual a amizade possível lhar livremente os fundos públicos,
entre os que fazem o mal e os ·que o violentar os cidadãos e viver. na indo-
detestam? E s·e até os homens que pra- lência, são corações injustos, perver-
ticam a virtude se dividem para os pri- sos, incapazes de qualquer afeição. 25
meiros postos das cidades, se a mútuo Mas o homem que busca as dignidades
ódio os arrasta a inveja, onde encon- para pôr-se ao abrigo de toda injustiça
trar amigos? em quem a benevolência e prestar legítimo apoio aos amigos;
e a fidelidade? que, feito magistrado, se esforça por
21
- Há em tudo isso, Critobulo - ser útil à pátria, então este"homem será
contestou Sócrates - diversas manei- incapaz de entender-se com outro cida-
ras de encarar os fatos. Os homens têm dão virtuoso como ele? Cercado de ho-
naturalmente o sentimento da amizade. mens virtuosos, ser-lhe-á menos fácil
Necessitam uns dos outros, capitulam servir. aos amigos? Apoiado pelos
à piedade, socorrem-se mutuamente, cidadãos honestos, será menos pode-
26
compreendem-se e se mo·sfram gratos. roso para fazer bem à pátria? Evidente
Mas têm também o sentimento da ini- é que, se nos combates gímnicos fosse
mizade. Quando suas idéias sobre os permitido aos mais fortes reunir-se
bens e os prazeres são as mesmas, contra os mais fracos, sairiam vence-
lutam por alcançá-los. Quando dividi- dores em todas as lutas e obteriam
dos pelas opiniões, combatem-se uns todos os prêmios. Ora, isso não se per-
aos outros: a guerra nasce da disputa e mite. Mas se nas lutas políticas, em
da cólera; a malevolência, dos desejos que os virtuosos levam a palma, não se
22
ambiciosos; o ódio, da inveja. Porém a impede um cida.dão de unir seus esfor-
amizade vence todos os obstáculos ços aos de outro para o bem da pátria,
para unir os corações virtuosos: é que, como não ser vantajoso, quando se
graças à virtude, preferem os homens tem parte no governo, cercar-se de
possuir em paz haveres moderados a excelentes amigos e em tudo tê-los
tudo dominar pela guerra. Com fome antes por associados e colaboradores 27
oú sede, cordialmente dividem os ali- que por antagonistas? Não menos evi-
mentos e a bebida. Cobiçosos de um dente ·é que se há lutas há mister alia-
belo objeto, sabem resistir a si próprios dos, e tantos mais quanto se tenha de
para não afligir aqueles·que devem res- combater contra homens de mérito e
23 peitar. Não tomam das riquezas senão virtude. Ora, necessário é fazer bem
sua parte legítima, sem nenhuma idéia aos que queiram tomar-se nossos alia-
de cupidez, e demais auxiliam-se uns dos, a fim de dar-lhes coragem; e antes
aos outros. Sabem resolver suas diver- beneficiar poucos homens virtuosos
gências não somente sem prejudicar- que um exército de maus, desde.. que os
se, mas ainda com mútua vantagem, e maus saem muito mais caros que as 28
impedir a cólera de ir até o rompi- . pessoas de bem. Fica tranqüilo, Crito-
mento. Enfim, repartindo. suas riquezas bulo; procura fazer-te bom e, uma vez
88 XENOFONTE

bom, põe-te à caça dos corações vir- - Pois bem, meus beijos, endere-
tuosos. Quem sabe possa eu auxiliar-te çando-se aos que são belos, só elegerão
um pouco nessa perseguição, sendo os que forem bons. Tranqüiliza-te,
como sou um coração aberto ao amor. pois, e dize-me a arte de caçar amigos.
Não imaginas, quando cobiço a amiza- Então Sócrates:
de de alguém, como me empenho em - Quando quiseres ligar-te a al-
inspirar-lhe a mesma afeição que por guém, permitirás que eu te denuncie a
ele sinto, em fazê-lo comungar comigo ele, que lhe diga que o admiras e dese-
em meu desejo, em fazê-lo amar aque- jarias ser seu amigo.
29 les que amo. Sei que quando desejares - Denuncia-me - disse Critobu-
travar alguma relação também terás lo. - Sei que ninguém aborréce o
necessidade dessa ciência; não me louvor.
ocultes, pois, os que quiseras ter por - E, se além disso acusar-te de, 34
amigos: a diligência com que procuro atenta tua admiração, estares benevo-
agradar quem me agrada, deu-me, lamente disposto para com ele, não
creio, certa experiência da caça dos crerás que te calunie?
homens. - De forma alguma, pois eu
JU Então Critobulo: mesmo sinto inclinação para quem me
- É, Sócrates, c1encia que há pareça senti-la em relação a mim.
muito tempo anseio por conhecer, - Então poderei dizer tudo isso 35

sobretudo se me servir igualmente em àqueles cuja amizade ambicionares; e


relação às pessoas belas de alma e às se me autorizares a dizer ainda seres
belas de corpo. zeloso de teus amigos, que tua maior
31 - Mas Critobulo - retorquiu Só- felicidade ·é tê-los virtuosos, que te ufa-
crates - minha ciência não vai a nas de suas boas ações como se fossem
ponto de bastar estender a mão para tuas, que te regozijas de sua prosperi-
cativar a beleza. Estou persuadido que dade como da tua própria, que a ne-
os homens fugiam Cila porque usava nhum sacrifício te poupas para assegu-
de f9rça, ao passo que as sereias, ja- rar-lhes o bem, que tens por máxima
mais lançando mão de violência, en- consistir a virtude em vencer os ami-
cantavam toda gente, detinham, diz-se, gos em benefícios e os inimigos em
e seduziam quem quer que as ouvisse. ultrajes, - creio muito poder auxi-
32 - Pois bem ! - disse Cri to bulo - liar-te na caça aos bons amigos.
não usarei de coação com ninguém; se, - Por que, então - replicou Cri- 16
pois, tens algo a dizer-me sobre como to bulo - falar-me assim, como se não
conquistar amigos, fala. pudesses dizer de mim tudo o que
- Jamais - disse Sócrates - quisesses?
porás boca contra boca. - Não, por Júpiter! não o posso,
- Tranqüiliza-te. Não mais com- pois .ouvi dizer um dia Aspásia que as
primirei os lábios aos lábios de nin- boas casamenteir:as, não falando senão
guém, a menos que belo. verdade, são felizes no casar os ho-
- Eis-te logo de saída, Critobulo, mens, ao passo que de nada serviriam
fazendo o contrário do que se deve. Os louvores descabidos, pois os esposos
que são b~los não suportam de bom enganados se detestam mutuamente e
grado essas liberdades, conquanto os maldizem quem os uniu. Ora, estou
tolerem os feios, convencidos de que os convencido que tinha razão e creio não
acham belos de alma. poder, ao falar de ti, presentear-te com
33 Então Critobulo: encômios imerecidos.
MEMORÁVEIS-II 89

37 - Quer dizer, Sócrates, que se eu político, a que males, pensas, não te


os merecer - continuou Critobulo - exporias a ti e ao Estado? Se, enfim,
assaz me queres para ajudar-me a convencesse insuladamente alguns ci-
encontrar amigos, mas que do contrfr- dadãos a te confiarem a gestão de seus
rio nada imaginarias, nada dirias em bens, após haver-lhes dito falsamente
meu interesse? seres administrador econômico e zelo-
- Pensas então, Critol:mlo, que so, uma vez posto a prova não te
melhor te serviria fazendo-te elogios patentearias a um tempo desastrado e
insinceros que instando-te a trabalhar ridículo? Pois bem! Critobulo, tudo 39
38 por ser homem de bem? Se isso não te
fazer por sê-lo - eis o caminho mais
é evidente, julga-o pelo que te vou
curto, mais seguro, mais digno, s.e que-
dizer: suponhamos vá eu fazer de ti um
falso elogio a um piloto de quem deseje res ter fama de probo. Tudo o que os
ver-te amigo, lhe diga seres bom timo- homens chamam virtude - conven-
neiro, e que, confiante em mim, esse pi- cer-te-á a reflexão - aumenta pelo es-
loto entregue seus navios em tuas tudo e exercício. De minha parte, Cri-
mãos, que jamais governaram um tobulo, penso ser por este lado que há
leme: terias alguma esperança de não mister. dirigir nossa caçada. Se és de
perder-te ao mesmo tempo que o outra opinião, dize-mo.
navio? Se da mesma forma, por força Respondeu Critobulo:
de mentiras persuadisse coletivamente - Corariã, Sócrates, de fazer-te
toda a cidade a entregar-se a ti como a qualquer objeção. Nada diria bem nem
bom general, sábio jurisconsulto, hábil verdadeiro.
CAPÍTULO VII

Q~ando, por ignorância, seus ami~ seus como ainda põe dinheiro de lado e
gos se encontravam em apuros_, procu- enriquece, de passo que tu, tendo mui-
rava desempeçá-los por meio de conse- tas pessoas que sustentar temes que
lhos; quando, por pobreza, ensin_ava-os morram todos à falta do necessário?
a auxiliarem-se mutuamente. Referirei - Caramba! ele mantém escravos,
também o que dele sei a tal propósito. eu pessoas livres.
Vendo um dia Aristarco imerso em - Quem reputas mais dignas de
tristeza: . estima, as pessoas livres que tens em .
- Pareces-me, Aristarco - disse- casa ou os escravos de Ceramão?
lhe - ter qualquer coisa que te pesa; é - · Claro, as pessoas livres que
preciso repartir o fardo com os amigos; tenho em casa.
quem sabe possamos aliviar-te .. - Então é uma vergonha viver
- Palavra de honra, Sócrates - Ceramão na abundância com homens
respondeu Aristarco - estou em maus de cacaracá, enquanto tu, com pessoas
lençóis. Desde que a cidade se insurgiu muito mais dignas de estima, estejas na
e inúmeros cidadãos se retiraram para miséria?
o Pireu, minhas irmãs, sobrinhas, pri- - Não, por Júpiter! pois ele ali- s
mas, abandonadas, refugiam~s em menta artesãos e eu pessoas de educa-
minha casa, de modo que somos cator- ção liberal.
ze pessoas de condição livre. Nada
- Artesãos não são os que apren-
retiramos da terra, em poder dos inimi-
deram a fazer alguma coisa útil?
gos, nem de nossas casas, pois a cidade
Sem dúvida.
está quase deserta. Ninguém compra
móveis, não há quem empreste dinhei- A farinha não é coisa útil?
ro; será mais fácil achar dinheiro na Certamente.
rua que alguém que o forneça. É muito E o pão?
triste, Sócrates, ver em tomo de si os Também.
parentes na miséria; impossível, em E as roupas de homens e mulhe..:.
semelhantes circunstâncias, suten~ar res, as túnicas, as clâmides, as exômi-
tanta gente. des 9?
Ao que Sócrates retorquiu: .
- Como é que Ceramão, também 9 Túnica, lit. quitãozinho: túnica curta, sem man-

gas, de uso diário; clâmide: espécie de capa; exômi-


com um mundo de gente para manter, de: espécie de túnica, com mangas, usada pelos
não só encontra o bastante para si e os escravos e povo simples. (N. do E.)
92 XENOFONTE

- Tudo isso é muito útiL a ti: tu porque as olhas como peso;


- E nada disso saberão fazer as elas porque vêem que te pesam. É de
pessoas que tens em casa? recear que a frieza se converta em ódio
- Pelo contrário, presumo. e se entibie o reconhecimento do pas-
- Então, não sabes que exercendo sado. Se porém, lhes impuseres uma
uma destas indústrias, fabricando fari- tarefa, tu as amarás, vendo que te são
nha, N ausícides, não só se sustenta a si úteis, elas te amarão por sua vez perce-
e as seus escravos como ainda dá de bendo que te contentam. Mais agradá-
comer a grande cópia de porcos e bois, vel vos será a lembrança do passado,
além de amealhar boas economias com ·subirá de ponto vosso reconhecimento
que a miúdo provê às prestanças públi- e assim vos tornareis melhores amigos
cas? Fazendo pão sustenta Círebo e melhores parentes. Se se tratasse de 10

toda a sua casa e vive à larga. Deméias ação vergonhosa para elas, antes a
de Cólito fazendo clâmides, Menão, morte. Mas ao que dizes, tuas parentas
clâmides, a maior parte dos megarinos, possuem talentos honrosíssimos, os
exômides, obtêm o com que viver. que melhor convêm à mulher. Ora, o
- Convenho; mas todos eles com- que se sabe faz-se com facilidade,
pram escravos bárbaros que jungem ao prontidão e prazer. Não hesites, pois,
trabalho a sua discrição, ao passo que em propor-lhes partido que te será tão
eu trato com pessoas livres, minhas vantajoso quanto a elas, e que sem dú-
parentas. vida aceitarão prazerosas.
- Como? Por serem livres e paren- - Em nome dos deuses, Sócrates li
tas tuas, achas que nada devam fazer - volveu Aristarco - teu conselho
senão comer e dormir? Julgas tenham parece-me excelente. Não ousava· pedir
melhor existência as outras pessoas li- emprestado, sabendo que após gastar o
vres que vivem em semelhante -ociosi- que recebesse não teria com que resti-
dade? Senão mais felizes que as que se tuir. Agora, para co.rneçar os trabalhos
ocupam das coisas úteis que sabem? creio poder decidir-me a fazê-lo.
Pensas que a preguiça e a ociosidade
ajudem os homens a aprenderem o que Dito e feito. Procuraram-se fundos, 12

precisam saber, a recordar-se do que comprou-se lã. As mulheres jantavam


aprenderam, a dar ao corpo saúde e trabalhando, ceavam após o trabalho e
vigor, a adquirir e conservar tudo o a alegria sucedera à tristeza: em vez de
que à vida é necessário, ao passo que se olharem à esconsa, viam-se com
de nada valham o trabalho e o exercí- prazer; elas amavam Aristarco como
cio? Aprenderam tuas parentas o que protetor. Aristarco queria-lhes por
dizes saberem como coisas inúteis à seus serviços. Por fim, este veio contar
vída e de que não teriam o que fazer; alegremente a aventura a Sócrates,
ou, pelo contrário, para delas ocupar- dizendo-lhe que suas parentas o censu-
se um dia e auferir proveitos? Quais os ravam por ser o único da casa que
homens mais sábios, os que modorram comia sem fazer nada.
na ociosidade ou os que se ocupam das - Eh ! - disse Sócrates - por 13

coisas úteis? Quais os mais justos, os que não lhes contas a fábula do cão? É
que trabalham ou os que sem nada fama que, no tempo em que os animais
fazerem, sonham com os meios de sub- falavam, disse a ovelha para o dono:
sistir? Neste momento, estou certo, "Estranho que a nós que te fornece-
não podes amar tuas paren~s nem elas mos lã, cordeiros, queijo, nada nos dês
MEMORÁVEIS-II 93

que não sejamos obrigadas a arrancar e o medo de morrer não vos deixaria
à terra ao passo que com teu cão, que pastar".
nada te dá, com ele repartes teu pró- Acrescenta-se que aí consentiram as
prio alimento". ovelhas lhes fosse o cão preferido. Vai,
14 Retrucou-lhe o cão, que a ouvia: pois, dizer também a tuas parentas que
"Por Júpiter! ele tem razão, pois as guardas e vigias qual o cão da fábu-
s.ou eu que vos guardo e impeço de ser- la; que graças a ti de ninguém são
des roubadas dos homens ou areb~ insultadas e podem trabalhar jocu:ndas
tadas dos lobos: não velasse eu por vós e em segurança.

CAPÍTULO VIII

Um dia, após longa separação, - Seria duro, Sócrates, suportar a


topou com outro velho camarada. escravidão.
- De onde vens, Eutério? - in- - Sem embargo, nem por isso os
quiriu-lhe. que governam as cidades e dirigem os
- Ao fim dá guerra, Sócrates, negócios públicos são considerados
regressei de uma viagem e agora eis- mais escravos que os .outros homens;
me aqui. Perdi o que possuía ao de lá pelo contrário, são tidos por mais
das fronteiras;. nada me deixou meu livres.
pai na Ática e hoje, de volta, vejo-me - Afinal, Sócrates, de forma algu-
forçado a trabalhar para viver. Antes ma quero expor-me a censuras.
isso que pedir a quem quer que seja, - Certo Eutério, não é fácil encon-
tanto mais que nada tenho para dar em trar trabalho que não exponha a repro-
penhor. ches. O que quer que se empreenda, é
- E quanto tempo calculas poder difícil não incorrer em faltas, e a.inda
trabalhar pelo pão de cada dia? que não se cometam, raro é não encon-
Não muito, está se vendo. trar juízes ineptos. E muito me admira
- Entretanto, velho, é evidente que que no que dizes hoje faze~ fosse fácil
terás despesas, e ninguém quererá pôr-se a forro de exprobrações. Impor-
pagar-:-te por teus serviços manuais. ta-te, pois, evitar os indivíduos biliosos
1
- Dizes verdade. e procurar os de espírito bem formado,
- Então não seria melhor te ocu- encarregares-te de quanto puderes
pares desde já de trabalhos que possam fazer, não te meteres no que não soube-
sustentar-te na velhice, dirigires-te a res e executares o melhor possível e de
alguérµ que possua grandes proprie- boa vontade tudo o que empreenderes:
dades e precise de quem as administre, creio que assim procedendo, muito
feitore os trabalhos, o ajude afazer en- pouco te exporás a censuras, te aperce-
trar as colheitas, a conservar seu patri- berás contra a miséria e deliciarás
mônio, prestando-lhe serviço por servi- tranqüilo, folgado e galhardo o sol-pôr
ço? da existência.
CAPÍTULO IX

Certo dia, eu presente, ouvi Críton ou qualquer provisão das coisas neces-
queixar-se ser a vida difícil .em Atenas sárias que fornece o campo, dava parte
para quem quisesse ocupar-se tranqüi- a Arquidemo, Quando oferecia um
lamente de seus negócios. sacrifício convidava-o e não o esquecia
- Diariamente - dizia - inten- em nenhuma destas ocasiões. Arquide-
tam-me processos. Não que eu atente mo, que via na casa de Críton um refú-
contra os direitos de ninguém, mas por gio seguro, a ele prendeu-se inteira-
imaginarem que prefira dar dinheiro a mente. Bem depressa descobriu serem
ver-me metido em querelas. ·os sicofantas que perseguiam Críton
Replicou Sócrates: indivíduos cobertos de crimes e terem
numerosos inimigos. Citou um em
- Dize-me, Críton, alimentas cães
juízo perante o povo para que fosse
para que afastem os lobos de tuas
condenado a castigo corporal ou
ovelhas?
multa. Consciente das próprias malfei-
- Certamente, e acho-o prudente. torias, tudo fez o acusado para desem-
- Não consentirias, então, em baraçar-se de Arquidemo, porém este
manter também um homem que qui- não o largou enquanto o extorsor não
sesse e pudesse conservar à distância deixou Críton em paz e não lhe deu
os que procurarem prejudicar-te? algum dinheiro. Da mesma sorte pro-
- De boa vontade, se não temesse cedeu Arquidemo em diversas circuns-
que ele próprio se voltasse contra mim. tâncias semelhantes. Então, assim
-. Quê ! não vês ser mais agradável como tendo um pastor um bom ca-
e vantajoso servir um homem como tu chorro se apressam os outros em pôr-
que dele fazer-se inimigo? Sabes que lhe perto seus rebanhos, para que fi-
aqui não faltam homens ambiciosos de quem sob a mesma guarda, assim
tua amizade. pediram os amigos de Críton os puses-
Em seguida a esta conv~rsa encon- se também sob a custódia de Arquide-
traram Arquidemo, cidadão capaz mas mo. Este de bom grado comprazia a
pobre. Longe de ser um aproveitador, Críton, e não só Críton como todos os
amava o bem e possuía a alma seus amigos viviam em paz. E quando
demasiadamente sobranceira para dei- os inimigos de Arquidemo lhe expro-
xar-se corromper pelo dinheiro dos bravam o ter-se feito, por interesse,
sicofantas. Desde logo, sempre que adulador de Críton:
Críton recebia trigo, azeite, vinho, lã - Onde a vergonha - respondia
98. XENOFONTE
, 1
Arquidemo - em entreter com ho- se, ao reves, com os maus, proçurar-
mens virtuosos comércio de serviços lhes a amizade ie preferir seu trato ao
recíprocos, fazê:...los amigos e opor-se das pessoas honestas?
aos maus, ou em tudo fazer por preju- Desde então foi Arquidemo sempre
dicar as pessoas de bem e assim estimado dos amigos de Críton, que de·
atrair-lhes a inimizade, mancorríunar- sua parte o incluiu em o número deles.

CAPÍTULO X

Sei também que teve esta conversa obedecer-te às ordens como a agir de
com Diodoro, um de seus amigos: iniciativa própria, a prevenir e prever
- Dize-me, Diodoro, se um de teus - este homem, creio, valeria uma
escravos fugisse procurarias reavê-lo? legião de escravos. Recomendam os
- Por Júpiter! e pôr-lhe-ia os ou- bons ecônomos que quando uma mer-
tros na pegada, anunciando uma re- cadoria preciosa está a baixo preço se
compensa a quem o capturasse. aproveite a ocasião para comprá-la:
- Se um de teus escravos caísse ora, nos tempos que correm, por pouco
doente não tratarias dele, não chama- custo podem adquirir-se bons amigos.
rias médicos para.salvar-lhe a vida? Respondeu Diodoro: 5

- Sem dúvida. - Tens razão, Sócrates. Dize a


- E se um homem de teU" conheci- Hermógenes que venha ver-me.
mento, muito mais útil que teus .,escra- - Não, essa é boa! nada farei.
vos corresse o risco de morrer à mín- Penso que em vez de chamá-lo, melhor
gua, não achas seria de teu dever farás indo procurá-lo, que com isto ele
socorrê-lo? Ora, sabes que Hermó- não ganhará mais que tu próprio.
genes não é ingrato, que coraria de Apressou-se Diodoro em ir ter com
receber serviços de ti sem por sua vez · Hermógenes e sem grande custo houve
retribuir-te. E um homem que te servi- um amigo que tinha por dever nada
ria de bom grado, com devotamento e falar nem fazer que não para servi-lo e
constância, sempre pronto não só a comprazer-lhe.
1
LIVRO 111
CAPÍTULO I

Como os ·que aspiram às dignidades, toque, chama-se citarista a quem


encontraram em Sócrates guia valioso aprendeu a tocar cítara; se, ainda que
para o fim a que visavam, eis o que ora não exerça, chama-se médico a quem
referirei. Tendo um dia ouvido dizer aprendeu medicina, muito embora nin-
que certo Dionisodoro, recém-chegado guém· o eleja, não deixa este jovem de
a Atenas, se anunciava professor de ser desde já estratego; e, em·que pesas-
estratégia, disse Sócrates a um de seus se aos· votos ·de todos os homens, nem
discípulos, que sabia anelar as honras- estratego nem médico ·seria quem nada
de general da pátria: soubesse. Mas, prosseguiu, a fim de 5

- Vergonhoso para alguém que que, se algum dia um de nós vier a ser
quisesse ser estratego em sua terra, ó oficial sob tuas ordens, esteja melhor
jovem, não seria deixar fugir ocasião instruído nas coisas da guerra, dize-
de aprender a arte militar? Não deve- nos por. onde começou Dionisodoro a
ria ser punido ainda mais severamente ensinar-te a estratégia.
que alguém que se metesse a fazer está- Respondeu o jovem:
tuas sem ter aprendido a estatuária? ·~· Começou por onde terminou.
Que nos perigos da guerra a cidade Ensinou-me a tática e nada mais.
inteira confia no estratego; daí resulta- - Entanto - observou Sócrates
rem seus sucessos em grandes vanta- - isso é parte mínima da arte do gene-
gens e em grandes males, seus revezes. ral. Cumpre-lhe ainda prover a todo o
Como, pois, não seria justo punir um material da guerra e de tudo fornecer o
homem que após sobreolhar o aprendi- soldado. Ser fecundo de expedientes,
zado da arte militar tudo fizesse· por empreendedor, cuidadoso, paciente,
ser eleito? sagaz, indulgente e severo, franco e
Com estes conselhos Sócrates apres- astuto, capaz de defender-se e de
sou o jovem a estudar com Dioniso- surpreender, liberal e rapace, generoso
doro. Estudado, voltou o discípulo e cúpido, prudente e audaz. Enfim deve
para junto do mestre, que exclamou ter, para ser bom estratego, todas as
jocoso: demais qualidades que dão a natureza
- Cidadãos, não achais que assim e a ciência. Glorioso é também conhe-
como a Agamenão titulava Homero cer a arte de ordenar as tropas; vai
venerável, depois das lições de estra- grande diferença entre um exército
tégia não parece este jovem ainda mais bem alinhado e tropas juntas à gan-
respeitável? Pois se, ainda que não daia. Pedras, tijolos, traves, telhas lan-
104 XENOFONTE

çadas a monte aqui e ali para nada ser- examinar como poderemos não nos
vem; se," porém, nos fundamel'l:tos e nas enganar?
sumidades se dispõem os materiais - De acordo - assentiu o jovem.
imputrecíveis e inalteráveis, como as - Fosse, erntão, o caso de pilhar
pedras e as telhas, se de permeio se dinheiro, não faríamos bem colocando
ajustam os tijolos e as traves, ao modo na frente os soldados mais cúpidos?
de edifício, então se tem algo precioso, - Assim penso.
uma casa. - E se se ti:atasse de correr peri-
- O que acabas de dizer, Sócrates gos, não poríamos na primeira linha os
- respondeu o jovem - , é exata- que mais prezam a glória? ·
mente o mesmo que se pratica na guer-
- Sem duvida, pois, de olho na
ra: lá, com efeito, deve colocar-se nas
honra, só querem expor-se. Esses não
primeiras e últimas filas os melhores
são difíceis de descobrir: sempre ,em
soldados e no meio os piores, a fim de
vista, em toda parte estão à mão.
serem arrastados e. impedidos pelos
outros. - Ensinou-te ele apenas a dispor li

- Muito bem - obtemperou Só-· um exército em ordem de batalha, ou


crates - , se te ensinaram a discernir também te ensinou onde e como
os bons dos maus soldados. Se não, de importa usar as diversas maneiras de
que te serviriam teus conhecimentos? ordená-lo?
Houvesse teu mestre te ensinado a dis- - Quê, ensinou o quê !
por o dinheiro' colocando por cima e - Entretanto, há mil circuns-
por baixo as melhores peças e no meio tâncias em que mão se deve formar nem
as piores, de nada. te valeria isso se não conduzir as tropas do mesmo modo.
te tivesse :ensinado a distinguir a - Por Júpiter! não me ensinou
moeda boa da má. nada disso.
10
- Pois olha, não mo ensinou. A - Pois bem, volta e interroga-o: s·e
nós compete distinguir os bons dos souber seu mister e não for impudente,
maus soldados. corará de haver irecebiqo teu dinheiro e
- Bem, mas o que nos impede de ter-te despedido :)em instruir-te.
CAPÍTULO II

Topando de uma feita com um ra a todo o exército, e bom príncipe


homem que acabara de ser e feito· não procurando exclusivamente para si
estratego, perguntou-lhe: os bens da vida, senão assegurando a
- Por que, a teu ver, chama: Ho- felicidade daqueles sobre que reinava?
mero a Agamenão pastor dos povos? De feito, o rei é eleito para zelar não
Não será porque, semelhante ao pas'"" por seu exclusivo bem-estar pessoal,
tor que vela pela conservação das ove- mas pela prosperidade dos que o ele-
lhas e a tudo provê que lhes seja neces- gem. Todos os que se fazem soldados
querem viver felizes, e se escolhem
sário, deve o general zelar por que seus
generais é para terem quem os conduza
soldados gozem boa saúde, tenham
a essa meta. Ao general, pois, cumpre
tudo o de que precisem e estejam em
procurar o bem-estar dos que o elege-
condiçoes de realizar seu escqpo? Ora, ram. E que mais glorioso que o cum-
o escopo dos soldados é triunfar do ini- prir e que mais infamante que o olvidar
migo para viverem ··mais felizes. Aliás, este dever?
quando Homero louva Agamenão, di- Assim é que, indagando qual deve
zendo: Era a um tempo bom príncipe e ser o mérito do bom general, Sócrates
bom guerreiro, não é porque era bom de tudo o mais prescindia e outro fim
guerreiro batendo-se com valor contra não lhe deputava que felizes fazer seus
os inimigos e comunicando sua bravu- comandados.
CAPITULO III

Não me esqueceu ·a conversa que outros, animais tão mal nutridos que
com um cidadão recém-nomeádo bi- nem possam andar; estes, cavalga-;-
parco 1 0 teve Sócrates. . duras tão fogosas que não haja mantê-
- Jovem - interpelou-o - pode- las quietas; aqueles, alimárias tão res-
rias dizer-me por que ambicionaste ser pingas que sequ~r possas dispô-las em
biparco? Sem dúvida não seria para fila, de que te servirá tua cavalaria?
marchar à testa dos ginetes: esta honra Como, à frente. de semelhante corpo,
pertence aos arqueiros montados, que poderás servir a República?
precedem aos próprios biparcos. -.- Tens razão, olharei o mais que
- Tens razão. · puder pelos cavalos.
- Tão pouco seria para te fazeres - Quê! ~ão te esforçarás também s
conhecer: os próprios louros são muito para melhorar os cavaleiros?
conhecidos. · - Está claro que sim.
- Também é verdade. - Não principiarás por habituá-
- Não seria porque esperas melho- los a montarem mais .lestamente a
rar a cavalaria da República e, quando cavalo?
necessários os. préstimos dos cavalei-
- Naturalmente. Assim quando
ros, à sua frente servir o Estado?
algum cair · terá ·mais ensanchas de
-. De fato.
salvar-se.
- Aí está, por Júpiter ! - disse
Sócrates - um alvo glorioso, se fores -· Na hora do combate ordenarás
capaz de atingi-lo. Enfim te elegeram aos inimigos que venham à planície
para comandar cavalos e.cavaleiros? onde estfls acostumado a manobrar, ou
- Justamente. , procurarás exercitar teus cavaleiros eÍn
- Ora bem, .antes de tudo dize-nos toda espécie de terreno onde se possa
o que pretendes fazer para melhorar os e~cbntra o inimigo?
cavalos. . · - Ein verdade será melhor exerci-
-·- Mas· isso não é coisa que me tá-los em todos os terrenos.
incumba. Cada. cavaleiro que trate de -- Não os afarás, outrossim, a lan-
seu cavalo. ç~em o dardo a· cavalo?
- Entanto; se uns te trouxerem - Também será conveniente.
cavalos fracos dos pés ou das pernas, -. Já pensaste em estimular a cora-
senão completamente faltos de forÇas; gem dos. cavaleiros, incitá-los contra o
inimigo, e assim aumentar-lhes a
10 Biparco: comandante de cavalaria. (N. do E.) força?
108 XENOFONTE

- Se ainda nao o fiz, hei de - Então pensavas comandar a ca-


fazê-lo. valaria em silêncio? Não refletiste que
- Sabes como te fazeres obedecer os mais belos conhecimentos, os que
dos cavaleiros? Que, sem isso, cavalos :11os prescrevem as leis, os que nos
e cavaleiros, excelentes e vigorosos ditam os princípios que devem pautar-
nada te adiantarão. nos a vida e todas as outras ciências
- Dizes verdade. Mas qual, Sócra- dignas de nota nos foram comunicados
tes, o melhor meio de submetê-los à pela palavra? Que os melhores mestres
obediência? são também os que melhor se servem
- Notaste, sem dúvida, que em da palavra, os que melhor conhecem as
todas as ocasiões os homens consen- coisas mais úteis são os que delas me-
tem em sujeitar-se aos que reputam lhor sabem falar? Não observaste 12

superiores. Numa doença, de bom igualmente que quando em Atenas se


grado se submetem ao médico que jul- reúne um coro, qual o enviado a Delas,
gam mais hábil, numa travessia, escu- nenhum outro se forma alhures que
tam os que navegam aquele que consi- com o nosso se agermane, cidade algu-
deram melhor piloto. Em agricultura, o ma é capaz de juntar tão belos ho-
que se tiver por agricultor mais experi- mens?
mentado. - É verdade.
- Éjusto. - Contudo, os atenienses não so- 13

- Pois bem, da mesma forma, na brelevam os outros povos tanto pela


cavalaria obedecem os cavaleiros a · beleza da voz, corpatura e vigor quan-
quem lhes pareça melhor saber o que é to pelo amor da glória, que mais que
preciso. tudo excita às coisas belas e honrosas;
10 - Então será suficiente, Sócrates, - Também é verdade.
mostrar-me o melhor dentre eles par.a - Não achas, pois, que se se cui- 14

fazer-me obedecer? dasse igualmente de nossa cavalaria,


- Sim, de vez que lhes ensines muito sobrepujaria ela a todas as
também que da obediência depende outras, assim pela disposição e boa
sua glória e conservação. or_dem d~s armas e cavalos que pela
- Como ensinar-lho? · intrepidez nos perigos, se louvores e
- Muito mais facilmente, por Júpi- glória assim esperasse reportar?
ter ! que se houvesse de ensinar-lhes ser - É bem possível. 1s
o mal preferível ao bem. - Então o que esperas? Faze por
11· - Decerto queres dizer que, além incutir em teus homens hábitos que em
das outras qualidades essenciais, deve teu próprio bem reverter ão e, por ti, ao
o comandante de cavalaria possuir o dos outros cidadãos.
talento da palavra? · - Por Júpiter! hei de tentá-lo!
CAPÍTULO IV

Vendo um dia Nicomáquides, que testa de um coro e outra à frente de um


voltava do congresso popular, inqui- exército.
riu-lhe: - No entanto, muito embora não
- Quais são, Nicomáquides, os saiba cantar nem instruir coros, teve
estrategos eleitos? Antístenes o talento de escolher os
- Ah, Sócrates - respondeu o melhores artistas.
interpelado - não achas que os ate- - Encontrará também no exército
nienses foram injustos? Em lugar de quem por ele ponh·a as tropas· em
eleger-me a mim, que encaneci no ser- ordem de batalha e combata em seu
viço da milícia, fui lócago 1 1 e taiiar- lugar?
ca 1 2 , recebi tantos ferimentos dos ini- - Se souber - respondeu Sócra- 5

migos (e ao mesmo tempo descobria e tes - encontrar e escolher os melhores


mostrava as cicatrizes), escolheram em questões bélicas como o fez com os
um Antístenes que jamais serviu. como coristas, bem poderá levar também a
hoplita, nunca se distinguiu na cavala- palma guerreira. E com certeza terá
ria e só sabe amontoar dinheiro. mais prazer em gastar ·para vencer na
- Mas - retorquiu Sócrates - guerra com toda a República do que
não é qualidade excelente, se lhe serve nos coros tão-somente com sua tribo.
para obter o necessário aos soldados? - Então, Sócrates, dizes poder o
- Os comerciantes - disse Nico- mesmo homem ser a üm tempo bom
máquides - também sã.o bons amea- corego e bom estratego?
lhadores, o que não quer dizer que pos- - Digo que o homem que, na dire-
sam comandar um exército. ção seja do que for, souber fazer e faça
Tornou Sócrates: o que seja de mister, será excelente
- Mas Antístenes é também apai- diretor, ponham-no à cabeça de um
xonado da glória, qualidade necessária coro, casa, cidade, ou exército.
ao general. Não viste que todas as - Por Júpiter ! Sócrates - retor-
vezes que foi corego a todos os demais quiu Nicomáquides - nunca espera-
levou a palma? ria ouvir-te afirmar poder um bom ecô-
- Por Júpiter! Uma coisa é estar à nomo ser bom general.
- Pois bem, examinemos os deve-
1 1 Lócago: entre os gregos, o comandante de com-

panhia de cem homens. (N. do E.)


res de um e outro e vejamos se são os
1 2 Ta:xiarca: comandante de uma divisão de infan- mesmos ou diferentes.
taria. (N. do E.) - Vejamos.
110 XENOFONTE

Cercar-se de subordinados, obe- preciso bater-se, a c1encia econômica.


dientes e dóceis não é o primeiro dever - Até aí lhes sera da maior utilida-
de um e outro? de. Sabendo o bom ecônomo nada
- Certamente. haver mais útil, mais vantajoso que
- Não devem ambos impor a cada vencer o inimigo, nada mais prejudi-
um as funções que melhor lhe qua- cial, mais ruinoso que ser vencido, será
drem? todo zelo em tudo procurar e poupar
- Sem dúvida. que possa contribuir para a vitória,
- Tenho comigo que um e outro todo atenção em desconfiar e preser-
devem castigar os relaxados e recom- var-se de tudo•o que possa levar à der-
pensar os diligentes. rota. todo energia em atacar se se sou-
- Decerto. ber possuidor de todos os truntos àa
- Ambos não farão bem em con- vitória. todo prudência na defensiva se
graçar-se com seus subordinados?
falto de recursos. Não desgabes, pois, 12
- Está claro.·
Nicomáquides, os bons ecônomos.
- Não têm igualmente interesse·
Unicamente em número diferem os
em angariar aliados e auxiliares?
-Têm. negócios particul.ares dos negócios pú-
- Não devem os dois zelar pelos blicos: em tudo o mais se equiparam.
bens presentes? O essencial é que uns e outros, só ho-
- Nada de melhor aviso. 0
mens podem tratá-los. Que não há tais
- Enfim, não devem ser igual- homens encarr-t::gados dos negócios'
mente laboriosos e diligentes em suas particulares e tais outros, dos negócios
/O diversas atribuições? Todos esses de- públicos. Que os. que dirigem os negó-
veres são-lhes comuns. Não assim, cios públicos não empregam certos
porém, o combater; sem embargo, indivíduos e o :mesmo fazem os que
ambos não têm inimigos? administram os negócios privados.
- Não resta a menor dúvida: Ora, quando bem se sabe empregar os
- Então não têm o mesmo inte- homens,_gerem-se tão bem os negócios
resse em vencê-los? privados quanto os públicos. Quando
li - Certamente. Mas o que não me não, nuns e noutros só se descamba em
dizes é a que lhes servirá, quando for erros.
CAPITULO V

Teve um dia com Péricles, filho do mens, qualidades que excitam viva-
grande Péricles, a palestra do teor que mente fazer rosto aos perigos pela gló-
segue. ria e pela pátria. ·
- De mim - disse Sócrates - - Quanto a isso, os atenienses são
choco a esperança, Péricles, que se irreprocháveis.
fores estratego a cidade se fará mais - E, certo, não há povo que com
gloriosa pelas armas e triunfará dos maiores e mais numerosas façanhas se
inimigos. apresente que os atenienses: sua lem-
Respondeu Péricles: brança enaltece o espírito, incita à vir-
- Quisera eu, Sócrates, fosse tude e alenta a coragem.
como dizes. Mas de que jeito conse- - Tudo o que dizes é verdade, Só-
gui-lo, é com que não atino. crates. Mas bem sabes que desde a der-
- Queres - volveu Sócrates - rota dos mil atenienses de Tolmidas
relanceemos os fatores que desde já nos pertos de Lebadia e de Hipócrates
possibilitam esse resultado? em Délio, a glória de Atenas se abateu
- Com todo o gosto. ante os beócios e de tal forma subiu de
- Não ignoras que a população de ponto a audácia dos tebanos para com
Atenas não é menos numerosa que a os atenienses, que, · se outrora não
da Beócia? ousavam medir-se conosco sem os
- Não. lacederilônios e mais povos do Pelopo-
- Onde julgas poder levantarem-se neso, hoje ameaçam cair sem aliados
as melhores tropas, entre os atenienses sobre a Ática, de passo que os atenien-
ou entr-e os beócios? . ses, que antigamente, quando os beó- ·
- Não creio lhes fiquemos atrás a cios estavam sós, assolavam a Beócia,
·este respeito. ora temem que os beócios devastem a
- Entre quem, em tua opinião, me- Ática.
lhor reina a concórdia? - Bem sei - concordou Sócrates. 5

- Entre os atenienses. Porquanto - E por isso mesmo quero crer que


bom número de beócios, oprimidos hoje a República se mostrasse mais
pelos tebanos, estão mal dispostos dócil para com um general digno. Por-
para com eles, e nada disso vejo em que a confiança gera a incúria, indo-
Atenas. lência e indisciplina. O temor toma os
- Mas os beócios são os mais homens mais vigilantes, submissos,
ambiciosos e peremptórios dos ho- disciplinados. Prova está no que suce-
112 XENOFONTE

de a bordo dos navios. Enquanto nada que lhes .valeram a fama de superiores
há que temer, anda tudo à zanguizarra. aos de seu tempo.
Mas teme-se a tempestade ou o inimi- - De fato têm esse renome. 12

go, e não só se obedece a todas as or- - Por outra, enquanto numerosas


dens como se atendem em silêncio às emigrações se faziam na Grécia, eles
instruções do comandante, tal qual permaneceram em sua terra. Muitos
entre os coristas. povos litigantes submetiam-se-lhes ao
- Suposto - disse Péricles - que arbítrio e outro8, oprimidos de mais
os atenienses obedeçam, remanesce fortes, refugiavam-se junto deles.
saber como restituí-los à virtude, glória - Admira-me, Sócrates, como a 13

e proseida~ de antanho. cidade decaiu.


- Se quiséssemos que recupe- - Penso que:, assim como certos
rassem riquezas passadas a outras atletas, vencendo longe os outros pela
mãos, não lhes provaríamos terem per- superioridade de suas forças, se largam
tencido a seus pais e, pois, serem suas, à incúria e cedem a palma aos adversá-
exortando-os assim a reavê-las? Dese- rios, assim também os atenienses,
jando que se esforcem por ser os pri- sentindo-se padrasto dos outros
meiros em virtude, devemos mostrar- povos, desleixaram-se e degeneraram.
lhes que de tempos imemoriais lhes - Que fazer agora para restituir-se u
pertenceu este posto e que, fazendo por da antiga virtude?
reconquistá-lo, se avantajarão a todos - Muito simples: readquiram os
os povos. costumes pretéritos e a eles se aferrem
- Como mostrar-lho? como se aferravam seus antepassados,
- Recordando-lhes os grandes fei- e não lhes ficarão atrás. Senão, ao
tos de seus primeiros avós, cujas virtu- menos acaudalem os povos capitães de
des ouvem celebrar. hoje, adotem-lhes as instituições e ~
lo -.- Quererás falar daquela pendên- elas se apeguem e deixarão de ser-lhes
cia dos deuses, em que por sua virtude inferiores. Tenham mais emulação, e
serviram de árbitros os contempo- logo lhes tomarão a dianteira.
râneos de Cecrops? - Quer dizer que durante muito 15

- Sim, e também do nascimento e tempo ainda a República viverá tres-


educação de Erecteu, da guerra sob seu malhada da virtude. Quando, a exem-
reinado declarada aos atenienses por plo dos espartanos, saberão os atenien-
todo o continente, da que ao tempo dos ses respeitar a velhice, · eles que
Heráclidas tiveram com as gentes do começam por desprezar os próprios
Peloponeso e de quantas sustentaram pais? Quando se' exercitarão como os
sob Teseu, nas quais se revelaram espartanos, eles que, não contentes de
11 superiores a todos os coevos. Se quise- descurar as próprias forças, metem à
res, lembra-lhes também os feitos da bulha os que procuram desenvolvê-
idade subseqüente, não muito distante las? Quando, corno os espartanos, aca··
da nossa: as guerras que sozinhos tarão os magistrados,. eles que se glo-
mantiveram contra os povos senhores riam de_ menoseabá-los? Quando se 16
da Ásia inteira e Europa até a Macedô- penetrarão do mesmo espírito de con-
nia, herdeiros de vasto império e pode- córdia, eles que, às avessas de traba-
rosos recursos e laureados das mais lhar pelo interesse comum, só curam
gloriosas façanhas. As vitórias que de prejudicar-se mutuamente e invejam
mais os filhos do Peloponeso alcança- mais aos próprios concidadãos que aos
ram tanto em terra como no mar, feitos estrangeiros? Eles que, mais que nin-
MEMORÁVEIS-III ll3

guém, se dividem nas reuniões particu- os tocadores de cítara, cantores, dan-


lares como nos congressos públicos e çarinos, lutadores e pancratiastas 1 3 ?
se processam uns aos outros mais que Todos os que os dirigem poderão dizer
em nenhuma outra parte, preferem ga- onde beberam os princípios de sua
nhar uns em detrimento dos. outros a arte, enquanto a mor parte dos gene-
ajudar-se reciprocamente, tratam os rais se fazem da noite para o dia.
negócios do Estado como se lhes fos- Longe de mim agermanar-te a eles. Ao 22

sem estranhos e os tornam motivo de contrário, penso que tão· bem poderás
brigas, nas quais se empenham com o dizer quando te iniciaste na arte da
11 maior ardor? Daí essa malignidade guerra como quando aprendeste a luta.
que eivam a República. Daí essas Demais estou convencido que conser-
dissertações e esse ódio entre os cida- vaste os princípios de estratégia que te
dãos. Flagelos que me fazem temer transmitiu teu pai e que, onde quer que
não se embarranque um dia Atenas em os houvesse, colheste os conheci-
males que lhe faleceriam forças para mentos que um dia pudessem servir-te
sobrelevar. à frente dos exércitos. Tampouco duvi- 2J

1s - Oh! não, Péricles - replicou do que para não ignorares nenhuma


Sócrates - não suponhas os atenien- das práticas úteis à guerra as meditas
ses possessos de perversidade incurá- fundamente e, se percebes faltar-te al-
vel. Não vês a boa ordem reinante guma coisa, buscas os que sabem e não
entre os marinheiros, a obediência dos poupas presentes nem favores para
mestres nos jogos. gínicos. e a mesma deles aprender o que desconheces e
submissão da parte dos coristas para granjear bons auxiliares.
com os coregos? - Compreendo muito bem, Sóc:ra- 2-1
19 - Verdadeiramente maravilhoso é tes, que se assim me falas não é na
ver pessoas desse jaez obedecerem aos convicção de que eu não negligencie
que as dirigem, ao passo que os hopli- nenhum desses cuidados. Procuras,
tas e cavaleiros, que se diriam o escol sim, ensinar-me que o homem que de-
dos bons cidadãos, são os mais indisci- seje comandar precisa atender a tudo
plinados de todos. isso: estou de pleno acordo contigo.
20 - Mas, Péricles, não se compõe o - Já reparaste, Péricles, que para 2s
Areópago de homens escolhidos e de as bandas da Beócia altas montanhas
comprovado mérito? se estendem ao comprido de nossas
- Sem dúvida. fronteiras, as quais não. deixam entrar
- Conheces tribunal mais digno, em nosso território senão por estreitos
íntegro, grave e equânime? e escarpados desfiladeiros, e que ro-
- Nada lhe acoimo. chas inacessíveis resguardam o cora-
- Então não é preciso desesperar ção do país?
dos atenienses como infensos à disr.i-
- Certamente.
plina.
- Não ouviste dizer que os mísios .26
21 - Mas é precisamente na guerra,
e pisídios ocupam na Pérsia regiões de
onde mais necessárias são a esperança,
todo ponto inacessíveis e que armados
ordem e submissão, que não mostram
nenhuma destas virtudes.
à ligeira não só conservam a própria
- Quem sabe - tornou Sócrates liberdade como, em suas incursões,
- sejam comandados por indivíduos 13
Pancratiasta: o que pratica os combates gínico.s
incapazes. Não vês que sem o neces- que compr~end a luta (pale) e o pugilato
sário talento ninguém se propõe dirigir (pygmé). (N. do E.)
114 XENOFONTE

causam enorme dano à nação do gran- - Em verdade, Sócrates, seria 2s


de rei? magnífico.
- Ouvi. - Pois bem - rematou Sócrates
21 - Não achas então que se a destra - já que te agradam tais planos, meu
juventude ateniense se armasse tam- caro, trabalha de levá-los a obra. O
bém à ligeira e se senhoreasse das que conseguires será glorioso para ti e
montanhas limítrofes de sua terra
útil à pátria. Se falhares, não prejudi-
poderia castigar nossos inimigos e
assegurar poderoso baluarte a nossos carás a República nem te envergonha-
concidadãos? rás.
CAPÍTULO VI

Olhos fitos no governo do Estado, - Em nome dos deuses, nada me


Glauco, filho de Aristão, posto não escondas, dize-me qual o primeiro ser-
contasse ainda vinte anos, queria ser viço que esperas prestar-lhe.
orador popular. E embora arrancado Glauco guardava silêncio, procu-
da tribuna, vaiado embora, nem paren- rando por onde começar.
tes nem amigos conseguiram dissuadi- - Não te esforçarás de enriquecer
lo de semelhante loucura. Sócrates, a cidade? - disse Sócrates - como
que em razão de sua amizade a Cármi~ se se tratasse de enriquecer a casa de
des, filho de Glauco, e a Platão, lhe um amigo?
queria bem, logrou. só por só fazê-lo - Sim.
renunciar a tais pretensões. Encontran- - Excogitar maiores rendas não
do-o um dia e querendo fazer-se ouvir, será o meio de tomá-la mais rica?
reteve-o e com ele entabulou conversa - Eyidentemente.
da seguinte maneira: -- Diga-me, pois, de onde se reti-
- Glauco - disse-lhe - então ram hoje as rendas do Estado e qual o
pretendes governar a cidade? seu morttante. Certamente fizeste teus
- É verdade, Sócrates. estudo~ a fim de suprir com os produ-
- Por Júpiter! é o mais belo proje- tos que escassearem e prover aos que
to que se possa arquitetar. Se atingires vierem a faltar.
teu escopo, estarás em condições de - Por Júpiter: ! - respondeu Glau-
obter tudo o que desejares, servir teus co - nunca pensei nisso.
amigos, exalçar a casa de teus pais, - De vez que não pensaste neste
engrandecer tua pátria. Começarás por ponto, dize-me, ao menos, quais são as
criar nome em tua terra, depois em despesas da cidade: porque não resta
toda a Grécia e quem sabe, como dúvida que tens intenção de abater as
Temístocles, até entre os bárbaros. supérfluas.
Enfim, aonde quer que fores, chamarás - Palavra! tãopouco pensei nisso.
os olhares sobre tua pessoa. - Pois bem, deixemos para depois
Ouvindo estas palavras, Glauco en- o projeto de enriquecer o Estado.
tesava de orgulho e deixava-se ficar. Como, com efeito, pensar em tal antes
todo gozoso. Prosseguiu Sócrates: , de conhecer as despesas e as rendas?
. - Não é evidente que se queres - Mas Sócrates - disse Glauco
honras deves servir a República? - também pode enriquc~-s a Repú-
-· Claro. blica c~m o despojo dos inimigos.
116 XENOFONTE

Sim, sem duvída, se formos mais - que não estivestes nas minas de
fortes que eles. Se formos mais fracos, prata, de sorte que não podes dizer por
nós é que seremos despojados ... que produzem menos que outrora.
- De fato. - Efetivamente inda não estive lá.
-·- Quem desejar empreender uma - Diz-se que o ar lá é malsão: aí
guerra precisa, pois, conhecer a força tens boa escusa para quando se vier a
de. sua nação e a dos inimigos, a fim deliberar a respeito.
de, se sua pátria for mais forte, poder Estás mofando de mim, Sócra-
abrir as hostilidades, se mais fraca, tes.
manter-se na defensiva. Mas tenho certeza de que pelo 13

-. Tens razão. menos examinaste cuidadosamente


- Dize-me, primeiro, quais são as quanto tempo pode o trigo colhido no
forças de nossa cidade em terra e mar, · país alimentar a nação, quanto se con-
depois as dos inimigos. some mais cada ano, a fim de que ja-
- Ora, assim de improviso não mais te surpreenda a escassez e possas,
posso responder-te! com tua prev:ldência, preconizar as
- Se tens em casa algum escrito medidas necessárias ao suprimento e
sobre o assunto, esperarei com o maior salvação da cidade.
prazer. . - Falas-me - disse Glauco - de
- Não, nada tenho. tarefa para lá ele árdua, se for preciso
10 - Pois muito bem, espaçaremos ter olhos para tantas minudências.
igualmente nossa primeira deliberação - Sem embargo - retorquiu Só- 14

acerca da guerra. A matéria é vasta, e crates - nem a própria casa será


como só agora te inicias na adminis- capaz de governar quem nã9 lhe
tração talvez inda não pudeste estudá- conhecer todas as necessidades nem
la. Mas sei que já te ocupaste da defesa souber satisfaz{!-las, visto contar a ci-
do país. Sabes quais as guarnições dade mais de dez mil casas e não ser
necessárias e quais as desnecessárias, fácil ocupar-se de tantas famílias ao
em que pontos os guardas são mais mesmo tempo, por que não ensaiaste
numerosos, onde são insuficientes. engrandecer primeiro uma apenas, a de
Aconselharás a que se reforcem as teu tio? Ela necessita-o. Se desses
guarnições necessárias e se suprimam conta da tarefa, então meterias omb_ros
as supérfluas. a empresa de maior monta. Mas se não
li - Por Júpiter ! - disse Glauco - sabes ser prestadio a um indivíduo
sou de parecer que se suprimam logo sequer, como poderias se1 útil a todo
todas, pois guardam o país tão bem um povo? Não é manifesto que, se
que tudo roubam os inimigos. alguém não tem forças para levantar
- Mas não achas que suprimir as um talento, nem deve tentar carregar
guarnições seria entregar a nação à mais de um?
mercê dos pilhantes? Demais, visitaste - Ah ! certo - exclamou Glauco 15

pessoalmente as guarnições·? Como - bons ·serviços prestara eu à casa de


sabes que não cumprem seu dever? meu tio se quisesse dar-me ouvidos !
- Suponho-o. - Como ! -- replicou Sócrates -
- Então, quando tivermos algo não foste capaz de persuadir teu tio e
mais que suposições, aí deliberaremos esperas fazer-te ouvir de todos os
sobre o assunto. atenienses, teu tio entre eles? Veja lá, 16

Talvez seja melhor. Glauco, que não vás, de olho na glória,


12 - Sei, Glauco - ajuntou Sócrates ver-te barba a barba, com coisa muito
MEMORÁ VEIS,.III 117

diferente. Não vês como é perigoso admiração são precisamente os que


dizer ou fazer o que não se saiba? sabem, enquanto opróbrio e desdém é
Pensa em todos os homens de teu. o quinhão dos ignorantes. Se amas a 1s
conhecimento que falam e procedem glória e queres fazer-te admirar da pá-
sem saber: aquistam louvores ou cen- tria, procura bem saber o que desejas
suras? São admirados ou desprezados?
pôr por obra: que se te avantajares aos
n Olha, ao contrário, os homens que
sabem o que dizem, o que fazem, e outros e houveres as rédeas do Estado,
verás que em todas as circunstâncias não me admira que muito facilmente
os que reúnem os sufrágios e atraem a alcn~es o que ambicionas.
CAPITULO VII

Vendo que Cármides, filho de Glau- - Todavia, os que sabem calcular


co, homem de grande mérito ·e muito calculam tão bem em público quanto
superior a todos os políticos do tempo, sozi.t"'1.hos, os que a sós tocam a cítara
não ousava aparecer em público nem com ·perfeição, em público demons-
ocupar-se dos negócios do Estado: tram a mesma habilidade.
- Dize-me, C ármides - inda- - Pois não. Mas não vês serem a s
gou-lhe Sócrates - , que dirias de um vergonha e a timidez inatas em certos
homem que, posto capaz de obter as homens e se manifestarem muito mais
coroas nos jogos e assim adquirir terra nos congressos tumultuosos que nas
na Grécia, recusasse combater? reuniões privadas?
- Claro que seria um efeminado e - Quero mostrar-te não serem os
um covarde. mais sábios que te envergonham nem
- E se um cidadão capaz, em se os mais poderosos que te amedrontam,
dando aos negócios públicos, de en- mas que coras de falar perante os
grandecer a pátria e cobrir-se de glória, menos esclarecidos e os mais fracos.
entretanto recusasse fazê-lo, não se De feito, não é ante pisoeiros, sapatei-
estaria no direito de chamar-lhe covar- ros, pedreiros, caldeireiros, agriculto-
de? res, negociantes, cambistas de praça
Talvez. Mas por que mo pergun- pública, pessoas que procuram :reven-
tas? der o que compraram a vil preço que te
Porque me parece que, mal- sentes tímido? Eis aí de que se compõe
grado teu mérito, hesitas diante dos o congresso do povo. Erp. que, pois,
negócios, e isso quando, em tua quali- acreditas diferir teu procedimento do
dade de cidadão, deles tens obrigação de um homem que, superior aos artis-
de compartir. tas, tivesse medo dos ignorantes? Não
- Quando, diabo, desencavaste em é verdade que, a despeito de tua facili-
mim esse mérito? dade em exprimir-te na presença dos
- Em tuas palestras com nossos cidadãos mais ilustres, alguns dos
políticos. Se te comunicam um negó- quais te desdenham, e tua superiori-
cio, vejo que lhes dás bons conselhos. dade manifesta aos que se metem a
Se· cometem erros, tu os repreendes falar em público, hesitas em tomar a
justamente. palavra ante uma multidão que jamais
- Uma coisa, Sócrates, é conver- cuidou dos negócios e nenhum desdém
sar em particular, outra discutir em te vota, de medo que te ridiculizem?
público. Mas não vês, Sócrates, que bas-
120 XENOFONTE

tas vezes se escamesse nos congressos olhos constantemente fito.s no que


· dos que falam bem? fazem os ·outros, sem nunca volvê-los
- O mesmo fazem teus cidadãos para o que fazem eles próprios. Defen-
ilustres. E assombra-me que tu, que tão de-te de semelhante indolência. Con-
bem sabes levá-los de vencida quando centra todos O:) teus esforços sobre ti
tentam meter-te a ridículo, receies não mesmo e, se puderes se;-lhe útil, não
esqueças o Estado. Com a prosperi-
poder arrastar-te com a turba. Não te
dade da coisa ]pública, imenso serviço
ignores a ti mesmo, meu caro. Não terás prestado não somente aos cida-
caias no erro em que cabeceia a maio- dãos em geral como a teus amigos e a
ria dos humanos: quase todos têm os ti próprio.
CAPITULO VIII

Por Sócrates confundido, Atistípo - Como pode ser ·belo o que do


esgorjava por confundi-lo. Mas Sócra- belo difere?
tes, desejando ser útil a seus ouvintes, - Por Júpiter! como de um bom
não respondia à luz de quem tra:z o lutador difere um bom corredor, como·
olho sobre o ombro e receia lhe refer- da beleza de um venábulo, feito para
tem as palavras, porém, como homem voar com força e velocidade, difere a
convicto de que cumpre seus deveres. beleza de um escudo, feito para a
Perguntou-lhe Aristipo se conhecia defensiva.
algo bom, a fim de que, se Sócrates - Tua resposta é exatamente a
dissesse o alimento, a bebida, a rique- mesma que quando te perguntei se
za, a saúde, a força, a coragem, conhecias algo bom.
demonstrar-lhe que por vezes são - Pensas que uma coisa é o bom,
males. Considerando que antes de tudo outra o belo? Não sabes que tudo o
procuramos livrar-nos do que nos faz que por uma razão é belo, pela mesma
padecer, deu-lhe Sócrates a melhor res- razão é bom? A virtude não é boa em
posta possível: uma ocasião e bela em outra. Assim
- Perguntas-me se conheço algu- também se diz dos homens serem bons
ma coisa boa para febre? e belos pelos mesmos motivos: o que
Não. no corpo humano constitui a beleza
Para a oftalmia? aparente constitui também a bondade.
Tampouco. Enfim, tudo o que aos homens for útil
Para a fome? será belo e bom relativamente ao uso
- - Muito menos. que disso puder fazer-se.
- Se me perguntas se conheço algo Como ! então é belo um cesto de
bom que não seja bom para nada, não lixo?
o conheço nem tenho necessidade de Sim, por Júpiter! e feio Üm escu-
conhecer. do de ouro, já que um foi conveniente-
Outra vez, inquirindo-lhe Aristipo mente feito para seu uso e o outro não.
se conhecia alguma coisa bela: - Dizes, pois, poderem os mesmos
- Sim, conheço muitas coisas objetos ser belos e feios!
belas - respondeu. - Como não ! E podem também
- Serão todas semelhantes? ser bons e maus: muitas vezes o que é
- Tanto quanto possível, há as que bom para a fome para a febre é mau, o
diferem essencialmente. que para a febre é bom é mau para a
122 XENOFONTE

fome; o que é belo para a corrida não o passando, no verão, por cima de nos-
é para a luta, o que para a luta é belo sas cabeças e dos tetos, não nos deixa
não o é para a corrida. Em suma, as na sombra? Portanto, para receberem
coisas são belas e boas para o uso a sol no inverno não hão mister mais
que se d~stinam. Feias e más para usos altos os tetos das galerias voltadas
a que não convenham. para o meio-dia e mais baixos os dos
Da mesma forma, quando Sócrates aposentos voltados para o setentrião, a
dizia que a beleza de um edifício con- fim de ficarem menos expostos aos
siste em sua utilidade, parecia-me ensi- ventos frios? Em uma palavra, o pré- 10

nar o melhor princípio de construção. dio que em qúalquer estação propor-


Eis como raciocinava: cionar o mais aprazível retiro e o depó-
- Quando s~ quer construir uma sito mais seguro para o que se possua,
casa - dizia - não se engenham não pode deixar de ser o melhor e o
meios de fazê-la o mais agradável e cô- mais belo: pinturas e outros ornamen-
moda possível? - Uma vez admitido tos mais desprazem que aprazem.
esse princípio: - Não é de desejar Dizia ainda ser um sítio descoberto e
seja fresca no verão e quente no inver- completamente insulado o melhor
. ·no? - Acordado este segundo ponto: local para os templos e altares. Que
- Pois bem, quando as casas olham grato, ao orar, é não ter a vista atran-
para o meio-dia, o sol não penetra, no cada e aproximar-se dos altares sem
inverno, sob as galerias exteriores, e sujar-se.
CAPÍTULO IX

Perguntaram-lhe um dia S€ a cora- tante, fazem o contrário: - Reputo-as


gem é qualidade adquirida ou natural: - respondeu - não menos despro-
- Creio - disse - que assim vidos de sabedoria que de temperança.
como há corpos que melhor que outros Porque me parece que entre todos os
resistem à fadiga, almas há de natureza partidos possíveis não há homem que
mais enérgica que outras em face das não escolha o mais vantajoso. Nem sá-
. dificuldades: pois vejo homens cresci- bios nem prudentes, pois, acho os que
dos sob as mesmas leis e costumes não se hão com direiteza.
muito diferirem entre si pela coragem. Na sabedoria dizia cifrar-se a justi- s
Sou de opinião, todavia, poder desen- ça e todas as outras virtudes: que a um
volver-se o valor natural pela instrução tempo belas e boas são todas as ações
e o exercício. Certo, não se afoitariam justas e virtuosas. Os que as conhecem
os citas e trácios, com a lança e o escu- nada podem preferir-lhes. Os que não
do, a acometer os lacedemônios, nem as conhecem não somente não podem
tentariam os lacedemônios, com o es- praticá-las como, se o tentam, só
cudo ligeiro e o venábulo, resistir aos cometem erros. Assim praticam os sá-
trácios ou, armados de flechas, fazer bios atos belos e bons enquanto os que
cara aos citas. Observo que em tudo não o são só podem descambar em fal-
naturalmente se diferenciam os ho- tas. E se nada se faz justo, belo e bom
mens uns dos outros, que em tudo pro- que não pela virtude, claro é que na
gridem por via do exercício. Evidente, sabedoria se resumem a justiça e todas
pois, é deverem, assim os homens mais as mais virtudes.
maltratados que os melhores dotados Reputava a loucura contrária à 6

da natureza, quando em alguma coisa sabedoria. Mas não consioerava a


quiserem exceler, tomar lições e exerci- ignorância como loucura, dissesse em-
tar-se. bora vizinhar a demência o não conhe-
Segundo ele, a sabedoria impres- cer-se a _si mesmo e acreditar se saiba o
cinde da temperança. Sábio e repor- que se ignore. Aditava não olhar a
tado considerava aquele que, conhe- multidão como insensatos os que se
cendo o bem e o belo, os pratica e, equivocam em matérias inconhecidas
conhecedor do mal, dele sabe guardar- da maior parte dos homens, ao passo
se. Perguntando-se-lhe se tinha na que trata de doidos os que se enganam
conta de sábio e reportados os que em coisas de toda gente conhecidas.
sabem o que deve fazer-se e, não obs- Exemplo: Creia-se um homem assaz
124 XENOFONTE

grande para não poder passar sem no comando, piloto e todos os outros
abaixar-se sob as portas de uma mura- marinheiros lhe obedecerão. Que assim
lha, assaz forte para querer carregar é na agricultura para os que possuem
casas ·ou empreender coisas cuja im- campos. Na doença, para os doentes.
possibilidade todos reconhecem, cha- Na ginástica, para os que exercitam o
mam-lhe louco varrido. Se só comete corpo. Que, enfim, em tudo o que exige
faltas ligeiras, não o trata de louco· a indústria, se se sabe como haver-se,
multidão. E como não se dá o nome de muito bem, m~ios à obra. Senão, recor-
amor senão a intensa afeição, assim re-se e obedece-se aos que sabem. Que
não se chama loucura senão a demên- na arte de fiar as próprias mulheres
cia. dirigem os homens, pois a conhecem, e
Examinando qual a natureza da disso os homens nada entendem.
inveja, não a dizia esse sentimento Se lhe objetavam ser um tirano se- 12

doloroso causado pelas desgraças de nhor de não se:guir os bons avisos que
nossos amigos ou pela prosperidade de lhe dêem:
nossos inimigos, só apelidando invejo- - Como ! -- retorquia - se o cas-
sos os que se afligem com a felicidade tigo nunca falha? Que em faltas incor-
dos amigos. Estranhando algumas pes- re quem a bom conselho faz ouvidos
soas que se pudesse ter amizade a moucos, e faltas querem punição.
alguém e padecesse de sua felicidade, Se lhe diziam estar nas mãos do tira- 13

observava-lhes muita gente existir in- no matar o conselheiro sábio:


capaz de abandonar os amigos na des- - Pensais -- respondia - ·que em
graça e que os socorre no infortúnio; dando morte a seus mais valiosos
porém se aflige de sua prosperidade. esteios não seria punido e duramente
Acrescentava, todavia, que esse senti- punido? Não vedes que, longe de tra-
mento jamais encontra guarida no zer-lhe segurança, tal procedimento só
coração do sábio, hóspede ordinário faria apressar-lhe a própria ruína?
que é dos espíritos néscios. Perguntou-lhe alguém qual era, a 14

seu ver, a mais bela ocupação do


Refletindo sobre a ociosidade, dizia homem:
ver a maioria dos homens sempre ocu- - Bem fazer - respondeu.
pados em alguma coisa. Que, ao cabo Ajuntou-se:
de contas, até os jogadores de dados e - H;averá processo para bem fazer
.os bufões se ocupam de algo. Tacha- as coisas?
va-os, porém, de ociosos, pois pode- - Não - disse. - Acho que for-
riam fazer coisa melhor. Quando se faz tuna e ação são coisas opostas. Trope- ·
o melhor, não há lazer para o pior e çar com o fortúnio sem procurá-lo, eis
digno de censura é quem aquele deixa o que chamo ter sorte. Alcançar o
por este, pois só o faz quem não tem o sucesso pelo próprio mérito e diligên-
que fazer. cia, eis o que chamo haver-se às d.irej-
10 e
Reis chefes - diria - não são os tas, e vitoriosos me parecem os que
que carregam cetro, elegeu a multidão assim procedem. Estimáveis e caros 15

ou favoreceu a sorte, nem os que pela aos deuses dizia os lavradores que bem
violência ou fraude usurparam o trabalham a terra, os médicos que bem
poder, mas os que sabem mandar. exercem a medicina, os homens de Es-
11 Posto seja o dever do chefe ordenar e o tado que bem dirigem a política. E inú-
do súdito, obedecer, dizia que, se tiver teis aos homens e malqueridos dos
num navio um homem experimentado deuses os que na.da fazem bem.
CAPITULO X

Útil era também seu trato aos artis.- - Será a mesma fisionomia de
tas que vivem do próprio trabalho. quem se interessa e a de quem não se
Entrando certo dia em casa do pintor interessa na felicidade ou desgraça dos
Parrásio, com ele entreteve a seguinte amigos?
prática: - Não, está claro. Na felicidade
-. Dize-me, Parrásio, não é a pin';c. dos amigos brilha a· alegria no olhar,
tura ·representação dos objetos visí- na desgraça mareia-o a tristeza.
veis? Não imitais, com cores, os - Quer dizer que podem represen-
entrantes e salientes,· o claro e o escu- tar-se também estes sentirpentos?
ro, ~ dureza e a moleza, a rudeza e o - Certamente.
lustre, o vigor da idade e a decrepi- . - Pela fisionomia e gestos dos
tude? homens, parados ou em movimento, é
- Assim é! que se exteriorizam altaneria e inde-
- Se quiserdes representar· formas pendência, humildade e baixeza, tem-
de beleza perfeita, como não é fácil perança e razão, insolência e grosseria.
encontrar homem isento de toda im- - Dizes verdade.
perfeição, não reunireis vários modelos - Porque conseguiste não é preci-
e de cada um tomareis o que de mais so reproduzi-los?
formoso possuir, compondo destarte - De acordo.
um todo de perfeita beleza? - E a quem achar agradável de
- É o que fazemos. ver, o indivíduo cujo exterior espelha
- E aquilo que mais atrai, enleva sentimentos elevados, honestos, simpá-
e, seduz él expressão moral da alma, ticos ou o que só deixa ver inclinações
não o imitais? Ou será inimitável? nefandas, perversas e odiosas?
,......_, Como imitá-lo, Sócrates, se não - Por Júpiter! Sócrates, nem há
tem proporção nem cor nem nenhum compará-los.
dos atributos que individuaste? Se, em Foi um dia à casa de Clíton, o esta-
uma palavra, é invisível? tuário, e conversando com ele:
- Quê ! não se nota nos olhos ora -·Vejo e sei, Clíton - disse-lhe
afeição, ora ódio? -. que modelas na. pedra o atleta na
- Nota-se. , carreira, o lutador, o pugilista, o
- Portanto, não há mister retratar pancratiasta. Mas o que mais encanta
estas expressões dos olhos? os olhos, a chama da vid3., como :a
;1
H a. transmites a tuas estátuas?
126 XENOFONTE

E corno Clíton, embaraçado, hesi- - Como faz,es para que uma cou- Jl

tasse em responder: raça bem proporcionada assente a


- Não é modelando tuas obras por corpo que não o seja?
seres vivos -. disse Sócrates - que - Trato de fazê-la assentar. Desde
fazes tuas estátuas parecerem anima- que assente está bem proporcionada.
das? - Pareces-me -. observou Sócra- 12
Exatamente. tes não . entender o termo
Já que as diferentes posturas nos "proporcionadon· em senso absoluto,
fazem elevar ou baixar certos mÚSCl,l- mas relativo ao uso do objeto. Como
los do corpo, contraí-los ou distendê- se dissesses ql1c um escudo é bem
los, fazê-los tensos e lassos, não é proporcionado desde que convenha a
exprimindo tais efeitos que dás a tuas quem dele se sirva. O mesmo poderias IJ
obras mais verossimilitude e naturali- dizer de uma clâmide ou de outro obje-
dade? to qualquer. Mas · talvez haja nesta
- Precisamente. conformidade outra vantagem nada
- Não proporciona esta imitação desprezível.
mesma da ação corporal certo prazer - Ensina,..ma então, Sócrates, se é
aos espectadores? que sabes alguma.
- Assim penso.
- Não importa, pois, pintel;S a - Entre duas armaduras . do
ameaça nos olhos dos combatentes, a mesmo peso, a que -assentar fatigará
alegria na visagem dos vencedores? menos que a que não assentar. Esta,
-·- Sem dúvida. seja por pesar exclusivamente sobre os
- Ao estatuário, portanto, cumpre ombros, seja por comprimir fortemente ·
exprimir por formas todas as impres- alguma outra parte do corpo, será
sões da alma. incômoda e dificil de carregar. A
Outra ocasião foi. Sócrates à oficina outra, distribuindo o peso pelas claví-
do armeiro Pistias, que lhe mostrou culas, espalda, p1~ito, dorso e estôma-
couraças muito bem feitas. go, não será, por assim dizer, um
- Por Juno ! - exclamou - eis fardo, mas parte do próprio corpo.
um magnífico invento! Esta couraça - Acabas de dizer justamente por 14

protege as p~tes que necessitam defe- que vendo tão caras minhas obras. Sei,
sa e não obsta ao movimento dos bra- contudo, muita gente haver que prefere
10 ços. Mas dize-me, Pistias, por que comprar: couraças cinzelad~ ou dou.:.
motivo, não sendo tuas couraças nem radas.
mais sólidas nem mais custosas a ti - Se compram couraças que não 15

que as dos outros fabricantes, as ven- lhes vão com o corpo, parece-me com-
des muito mais caras? prarem uma incomodidade cinze!ada
- Porque, Sócrates, as minhas são ou dourada. Mas de vez que o corpo
mais bem proporcionadas. não permanece sempre imóvel, ora se
- Mas essa proporção será con- inclina, ora se apruma, como poderão
forme a medida ou a balança que fazes assentar couraças demasiadamente
pagá-la mais caro? Porque p~nso não justas?
poderes fazê-las todas absolutamente - Não é possfvel.
iguais nem de todo ponto semelhantes, - Dizes, pois~ que as couraças vão
se quiseres que assentem bem. bem não quando :são justas, mas quan-
Por Júpiter ! é com o tento nisso
e__ do não incomodam?
que as faço. Do contrário não servi- - É o que digo, Sócrates, e com-
riam. preendeste-me muito bem,

J
CAPÍTULO XI

Havia nesse tempo, em Atenas, uma contemplamos, ir-nos-emos mordidos


mulher de rara formosura, chamada no coração, tomados de arrependi-
Teódota, que não fazia cerimônias em mento. Depende, sermos nós escravos
seguir quem quer que soubesse reqües- e ela soberana.
tá-la. Certo dia alguém falava dela e - Por Júpiter ! - disse Teódota
dizia não existirem palavras capazes - se é assim, cumpre-me agradecer-
de exprimir a beleza dessa mulher, que vos por vos ter oferecido o espetáculo.
os pintores iam visitá-la a fim de A este ponto, vendo-a Sócrates
tomá-la por modelo e ela· não fazia soberbamente param·entada e, perto,
mistério de seus encantos. sua mãe, vestida de maneira pouco
- Caramba! só vendo! --,--- excla- comum, depois uni sem-conta de gra-
mou Sócrates. - Não será ouvindo ciosas e ataviadas escravas, por fim
que se há de ter idéía do que rtão expri- uma casa abundantemente provida de
me a palavra. todo o necessário:
- Não percamos tempo:. acompa,.. - . Uma coisa, Teódota - disse-lhe
nha"'"me, - disse o narrador. - , possuis terras?
Dirigiram-se à casa de Teódota e, - Nenhuma.
encontrando-a com um píntor que lhe -· Então tens alguma casa que te.
estudava as formas, puseram-se a forneça rendas?
observá-la. Quando o pintor terminou: Também não.
- Amigos meus ____, disse Sócrates Possuirás escravos?
- - agradeceremos nós a Teódota o Nenhum.
haver-nos deixado admirar sua beleza, De que diabo, então, vives?
ou deverá agradecer-nos ela o termo-la Do que me dão os amigos.
coptemplado? Se mais prazer teve ela Por Juno! cara Teódota, um
exibindo-se, agradeça-nos ela. Se mais amigo é uma aquisição e tanto, e mais
gozamos nós admirando-a, agradeça- . vale uma penca de amigos que um
mos-lhe nós. rebanho de ovelhas, bois e cabras !
Tendo-lhe alguém dado razão: Mas largas-te à fortuna, esperando que
--· Convenho -.- disse - que cie os amigos apareçam como as moscas,
nós não ganha ela senão elogios. Mas ou empregas alguns artifícios?
como os publicaremos à boca grande, ~ Como queres que empregue arti-
ser-lhe-ão utilíssimos. Quantó· a nos, ficio?
presas do ·desejo de · tocar o que -·- Muito mais facilmente que as
128 XENOFONTE

aranhas. Sabes como elas caçam a que não lanço m~io de nenhum desses
presa: tecem uma teia sutil e tudo o meios.
que nela cai lhes serve de alimento. - Entanto, nã.o é indiferente saber li

- Aconselhas-me, pois, a também tratar cada um consoante seu caráter,


tecer uma teia? pois não é pela força que se careia ou
- Não penses que sem arte pos- conserva um amigo: benevolência e
sam caçar-se amigos, a mais preciosa prazer são o visgo que apresa e retém
das presas. Não vês quanta astúcia essa caça.
empregam os caçadores para caçar as - Dizes a verdade.
lebres, presa muito menos prestante? - A uma, não peças aos que te 12

Como as lebres pastem de noite, aper- solicitam mais do que poderiam dar. A
cebem-se eles de cães que enxerguem outra, paga-os iíl.a mesma moeda.
no escuro e põem-se na pista da caça. Assim te amarão mais, permanecereis
De dia as lebres põem sebo nas cane- unidos por mais tempo e f ar-te-ão
las, e então se munem eles de outros maiores larguezas . Para comprazê-los, 13

cães que, ao se recolherem elas do nada melhor que conceder..,lhes apenas


pasto para as tocas, as farejam e o que desejam ardentemente. Vês que,
desemboscam. Tão boas pêmas têm as servidos a quem não tenha apetite, ne-
lebres, que mal as acompanha a vista: nhum sabor apresentam os mais deli-
arranjam-se cães, assaz ligeiros para cados manjares e inspiram desgosto a
alcançá-las na carreira. Contudo algu- convivas fartos enquanto deliciosos
mas há que escapam: armam-se laços sabem os alimentos mais simples a
nas sendas por onde fogem para que quem tem fome.
neles caiam e sejam colhidas. - Como excitar o apetite dos que 14

- Mas qué meio usarei para caçar me visitam?


amigos? - Nada mais lhes oferecendo
- Em vez de -cão é preciso ter quando estiverem saciados, não os
alguém que rasteie os ricaços aprecia- · chamando segunda vez ao repasto
dores da beleza e,. uma vez encontra- antes que, terminada a digestão, se
dos, engenhe meios de os atrair a teus haja reacendido a :necessidade. Depois;
laços. reavivado o desejo, dando-lhes a enten-
- Que laços tenho eu? der ser tua cativante familiaridade e
10
- Um único, é verdade, mas o teu assentimento Ulrh favor todo volun-
mais inextrincável de todos: teu corpo, tário .e por vezes mté fugindo-os para a
e nesse corpo uma alrria que te inspira necessidade tocar o extremo. Muito
perdem os favores de preço quando
o feitiço do olhar, a sedução da pala- precedem o desejo.
vra, te ensina a receber quem te reqües- - Pois bem, Sócrates - disse 15
ta, repelir quem te desdenha, visitar Teódota - por que não me auxilias a·
s~\cita um amigo doente, felicitar com caçar amigos?
calór quem bem se haja portado, reco- - Por Júpiter ! Com todo o prazer,
nhecer de toda a alma as_ homenagens se a tanto me decidlires.
que te rendem. Sei que um amante te - Decidir-te de que jeito?
demonstra tanta ternura quanto bene- - Busca-o tu mesma, e se ·necessi-
volência. E se tens amantes ilustr.es, tas de mim o encontrarás.
menos não os encantam tuas ações que - Vem, pois, ver-me a miúdo.
tuas palavras. - Não será fácil achar tempo 16

- Juro-te - exclamou Teódota - respondeu Sócrates, zombando a pto-


MEMORÁVEIS-III 129

pósito de seus quefazeres - meus abalam de Tebas para ver-me? Fica


numerosos negócios particulares e pú- sabendo que isso não se consegue sem
blicos não me deixam vagares. Depois, filtros, encantamentos, "pastorinhas".
tenho amantes que, graças aos filtros e -·- Empresta-me então uma "pas- 1a
feitiços que lhes ensinei, não me permi- torinha" para conquistar-te.
tem deixá-las nem de dia nem de noite. - Essa é boa! Não quero ser
17 - Quê ! Sócrates, sabes confec- conquistado: prefiro conquistar-te.
cionar filtros? - Então irei ter contigo, mas hás
- Por que, pensas, Apolodoro e de rêceber-me.
Antístenes não me largam um instan- - Receber-te-ia se não tivesses em
te? Como julgas que Cebes e Símias casa alguém a quem amo mais que a ti.
CAPITULO XII

Reparando que Epígenes, um de possuam bom ou mau físico. Saúde e


seus jovens discípulos, era de má vigor é o galardão dos bem consti-
compleição: tuídos de corpo. Muitos por fortes> sal-
- Quão plebeu és de físico, Epíge- vam-se com honra dos azares da guer-
nes ! - disse-lhe. ra, sobrelevam todos os perigos,
- Sei, também não sou mais que socorrem os amigos, prestam serviços
um plebeu! - trocadilhou o outro. à pátria e por esses feitos tomam-se
- Não o são menos os que comba- dignos de reconhecimento, ganham
tem nos jogos olímpicos. Então não fama, alcançaÍ)1 as primeiras honras e
será nada o combate cujo prêmio é a passam o resto da vida ditosos e consi-
vida, caso venham a propô-lo os derados, herdando aos filhos preciosos
meios de existência. Não ordene o Es-
atenienses? Quantos os homens que,
tado praticar publicamente os exercí-
por causa de má constituição fisica,
cios militares, isso não é razão para os
morrem nos campos de batalha, quan-
descurarem os particulares, que a eles
do não compram a vida ao preço da
não devem aplicar-se com menor assi-
desonra! Pelo mesmo motivo muitos duidade. Convence-te que, empenhes-
são feitos prisioneiros e passam o resto te no que te empenhares, faças o que
de seus dias na mais dura escravidão. fizeres, nunca te arrependerás de haver
Ou, pagando resgate superior a suas exercitado o corpo. Em todos os atos
fortunas, vêem-se reduzidos às mais tem o corpo sua utilidade; e no que
tristes necessidades e arrastam o resto quer que o empreguemos, essencial· é
da exjstência na dor e na miséria. Ou- que seja bem constituído. Mais: até nas
tros enfim adquirem má reputação por funções em que o julgas de somenos
sua fraqueza física, passando por co- importância, quero dizer as da inteli-
vardes. Desdenhas destes castigos re- gência,. quem não sabe cometer o cére-
servados à fraqueza? Serias capaz de bro erros freqüentes, em virtude da má
sofrê-los' facilmente? Por mim acho constituição física? Falta de memória,
muito mais suaves as fadigas a que morosidade de espírito, preguiça, a
deve submeter-se quem se propõe for- própria loucura, não raro, são conse-
talecer o corpo. Ou reputas a fraqueza qüências de disposição viciosa dos ór-
para todos os efeitos mais vantajosa gãos, a qual ataca a inteligência a
que a robustez? Entretanto as coisas ponto de fazer-nos esquecer o que
correm muito diferentes para os que sabemos. Ao contrário, são o corpo, o
132 XENOFONTE

homem está seguro de todos esses é envelhecer nessa wc;lolência, sem


males, e frutos de todo opostos, certo, saber o quanto não se poderia acres-
produzirá sua compleição vigorosa. centar à própria força e beleza. Or~,
Que não fará um homem de bom senso isto só se consegue mediante o exercí-
para evitar tamanhos males e alcançar cio, que tais pn~set não nos caem do
tamanhos bens? Ademais, ignominioso céu.
CAPÍTULO XIII

Encolerizando-se alguém certo dia, servidor. Perguntou-lhe Sócrates a


por haver saudado u:q:ia pe~soa que razão:
não lhe retribuiu o cumpri~nfo, dis~ - É o sujeito mais comilão e
se-lhe Sócrates: · madraço que já vi. Só quer saber de
- Simplesmente risível é 11ão inco- dinheiro e de vadiar.
modar-te o encontro com um doente e - Já examinaste quem merece
tanto te agastares de topar cqm um mais ser castigado, se tu, se teu
grosseiro. escravo?
Outro queixava-se de co:mer sem Assombrando-se alguém de ter de s
vontade: viajar a Olímpia:
- Ensina Asmeno - dis.s.e-lhe - - Por que - inquiriu Sócrates -
bom remédio para isso. te assombra essa viagem? Não passas
- Qual é? quase o dia inteiro trançando de um
- Comer menos. Diz que ~om esta lado para outro em tua casa? Viajando
abstinência ganham o paladar,,. bolsa a pase~á, depois almoçarás. Passea-
e a saúde. · rás outra vez, jantarás e repousarás.
3· Terceiro dizia só ter em càs~, para Não sabes que somando-se os passeios
beber, água quente. que deres em cinco ou seis dias facil-
- Não precisarás aquecê-léi quan- mente irás de Atena.s a Olímpia? E me-
do quiseres banhar-te - respqµ~u. lhor farás par~indo um dia antes que
-. É muito fria para o banhq. em deferindo a viagem. Que molesto é
- Queixam-se teus criados de be- ter-se de fazer jornadas muito longas e .
bê-Ia ecom ela banhar-se? · · · agradável levar um dia de vantagem
- Não, por Júpiter! nem me admi- sobre os próprios planos. Antes apres-
ra que o façam com prazer. ' · sar a partida qll;e depois ter de dar tra-
- ·Qual a água mais quente? a tua tos às canelas. ·
ou a do templo de Esculápio? Outro dizia-se fatigado de longa 6
- A de Escµlápio. caminhada que acabara de fazer. Inda-
- Qual a mais fria, a tuª pu Cl: do gou-lhe Sócrates se çarregava algum
templo de Anfiarau? · peso:
- A de Anfiarau. - Não é verdade, nada trazia além
- Vês, pois, seres mais difícil con- do manto.
tentar que os criados e os enferm()s. -.- Viajv~s só ou acompnh~d d~
Um amo maltratara rudemerite seu algum servidor?
XENOFONTE

- Tinha um servidor. - Se tivesses de carregar o fardo


- Vinha ele de mãos abanando ou que carregava teu criado, como te ·
trazia alguma coisa? arranjarias?
- Carregava minha roupa e o - Nem sei. Talvez não o pudesse.
resto da bagagem. - Como! achas digno de homem
E como foi de viagem? livre e exercitado na ginástica suportar
- Melhor que eu, suponho. a fadiga menos que um escravo?

___________________________________ _:__ ___ ___ _


CAPITULO XIV

Quando seus amigos iam cear em muita carne? - perguntou outro.


sua casa e uns levavam pouco, outros - Acho - opinou Sócrates -
muito, Sócrates mandava o criado pôr que também deve chamar-se carnívoro.
em comum o prato mais pequeno ou E quando os outros pedirem aos deu-
reparti-lo fraternalmente entre os cém- ses abundância de frutos, ele deverá
vivas. Os que levavam mais teriam ver- pedir abundância de carne.
gonha de não servir-se do que era Enquanto assim falava Sócrates, o
posto em comum e em comum pôr jovem, percebendo-se o ·alvo da con-
também o próprio prato, sendo assim versaçào, começou a servir-se de pão,
constrangidos a fazê-lo. E como nada mas sem deixar de atafulhar a boca de
tinham que lucrar mais que os que carne. Advertindo-o·, disse Sócrates:
levavam menos, deixaram de levar pra- - Atentai nesse jovem, vós que es-
tos custosos. tais perto dele; serve-se de pão para
Tendo notado que um dos convivas comer carne ou de carne para comer
não comia pão e só se servia de carne, pão?
e encaminhando-se casualmente a con- Notou, outra feita, que a cada boca- s
versa para a propriedade dos termos, a do de pão um dos convivas debicava
que gênero de ações deve aplicar-se diversos pratos.
cada epíteto: - Haverá - perguntou Sócrates
- Poderíamos examinar, amigos - cozinha mais dispendiosa e prejudi-
meus - propôs Sócrates - por que cial aos alimentos que a de homem que
sói chamarem-se certos homens de coma não sei quantas iguarias e use
carnívoros? Toda gente come carne não sei quantos molhos ao mesmo
com pão, desde que a tenha. Mas pare- tempo? Misturando assim mais ali-
ce-me não ser este o motivo por que se mentos do que fazem os cozinheiros,
chamam certas pessoas de carnívoras. não só gasta mais, como, encambu-
- Claro que· não - disse um dos lhando ao reverso do uso, muitas subs-
comensais. tâncias que não se casam e razão têm
- E quem come carne sem pão, os cozinheiros de não mesclar, vai de
não por necessidade, como os atletas, encontro à arte culinária. Não é ridí- 6
mas por prazer, será carnívoro, sim ou culo procurar os mais hábeis cozi-
não? nheiros e, não entendendo patavina do
Quem mais havia de sê-lo? ofício, pôr a perder o que fizeram?
E quem com pouco pão come Outra· inconveniência acarretada pelo
136 XENOFON't'E

vezo de comer muitas viandas juntas é ses o ato de comer por termo que signi-
supor-se a gente na miséria quando fica "bem comer", acrescentando que
menor é o número de pratos e lamen- o vocábulo "bem" junto a "comer" in-
tar-se b cardápio costumado. Ao con- dica que o alimento não deve ser
trário, estando-se habituado a um nocente ao corpo nem ao espírito, nem
único prato, faltando os outros não se de difícil obtenç~i. Em uma palavra,
lastimará de só ter um. por "bem comer':·, entendia ''viver com
Observava expressarem os atenien- moderação".
LIVRO IV
. ' : . ;.

. . . .

1
CAPÍTULO 1

Tão útil era Sócrates em todas as dos animais, se adestrados a preceito,


ocasiõe~ e de todas as maneiras, que tomam-St1 os melhores caçadores,
até as inteligências medíocres facil- porém, se mal ensinados, tomam-se
mente compreendiam nada haver mais estúpidos, furiosos e obstinados. Da 4
vantajoso que seu comércio e freqüen- mesma for~a, se recebem educação
tação. À sua ausência, bastava a sua adequada e aprendem o que devem
só lembrança para muito edificar seus fazer, os melhor dotados dos homens,
discípulos habituais e aqueles que inda os mais bem temperados e enérgicos de
hoje o têm por mestre. Não instruía ânimo em tudo que empreendem, tor-
menos pelos brincos que pelas lições nam-se excelentes, utilíssimos e reali-
2 sérias. Dizia de cotio amar a todos, zam grandes coisas. Porém, se não
mas bem era de ver que, longe de ater- recebem educação nem instrução, tor-
se à beleza do corpo, só se prendia às nani.:o se malíssimos e perigosíssimos.
almas virtuosas. Considerava índice de Incapazes de discernir o que devem
natµral bondoso a prontidão no apren- fazer, vezes muitas tentam empresas
der e reter, o amor de todas as ciências criminosas e fazem-se altaneiros e vio-
que ensinam a bem administrar uma lentos, recalcitrantes e bravios, cau-
casa ou uma cidade, em suma, a tirar sando assim os maiores males. Quanto s
provento dos homens e das coisas. aos que, orgulhosos de suas riquezas,
Assim formado, dizia, o homem não só nenhuma necessidade pensavam ter de
é feliz, capaz de gerir sabiamente sua instrução e imaginavam bastar-lhes
casa, como felizes pede tomar outros serem ricos para realizar todos os seus
3 homens e cidades. Não tratava todos desígnios e fazer-se honrar dos ho-
do mesmo modo. Aos que, acreditan- mens, chamava-os à razão dizendo-
do-se favorecidos da natureza, despre- lhes ser estupidez acreditar que sem es-
zavam o estudo, ensinava que mais tudo se possa distinguir o útil do
ainda que os outros hão mister cultiva- nocivo. Estupidez, quando não se
dos os caracteres aparentemente mais departe o útil do prejudicial, crer-se
felizes. Em abono do quê, dizia que os capaz de alguma coisa útil por ter-se
potros mais generosos, vivazes e fogo- dinheiro para comprar o que quiser.
sos dão as melhores cavalgaduras Estupidez, quando nada sabemos
quando domados desde novos, mas fazer, julgamos poder ser felizes e viver
que, se se descuida de amestrá-los, tor- honestamente. Estupidez, nada saben-
nam-se respingões e imprestáveis. Se- do, presumirmos que a riqueza nos
melhantemente os cães da melhor raça, faça passar por sábios ou que, inúteis,
infatigáveis e ardentes na perseguição nos granjeie estima.
CAPÍTULO II

Contarei agora como Sócrates ata- República alguma deliberação, certa-


cava os que presumiam ter recebido mente Eutid_emo não deixará de dar
ótima educação e se vangloriavam de sua opinião. E já que não quer parecer
sua sabença. Sabia haver o belo Euti- nada ter aprendido de ninguém, decer-
demo reunido copiosa coleção de to tem pronto algum magnífico exórdio
obras dos mais afamados poetas e filó- para seus discursos. Eis, sem dúvida,
sofos e que só por isso se jactava de como principiará: "Jamais, atenienses,
campear em sabedoria aos de sua nada aprendi de ninguém. Jamais,
idade, a todos esperando exceler em quando ouvi falar de homens elo-
eloqüência e feitos. Sem embargo, qüentes e versados nos negócios, lhes
muito jovem ainda para ter mão no procurei a sociedade. Jamais me dei ao
congresso, quando se interessava em · trabalho de tomar professor entre os
alguma questão, sentava-se. na tenda cidadãos esclarecidos. Ao contrário,
de um freieiro, vizinha à praça. Para lá tive sempre o maior cuidado em evitar
se dirigiu Sócrates com alguns amigos. não só receber lições como parecer que
Vai daí lhe perguntou um deles se era as recebia. Não obstante, dar-vos-ei o
ao comércio de algum sábio ou à natu- conselho que me sugeriram as mos-
reza só por só que devia Temístocles cas". Exórdio desta laia conviria igual- .5

tal superioridade a seus concidadãos, mente muito bem a quem desejasse


que sempre que necessitava de um obter o emprego de médico público.
homem de mérito para ele volvia os Começaria assim: "Ninguém, atenien-
olhos a República. Sócrates, que que- ses, me ensinou a medicina. Nunca
ria picar Eutidemo, respondeu que procurei as lições de nenhum de nossos
necedade é acreditar impossível tor- médicos e não só me gµardei de com
nar-se hábil nas artes mais vulgares eles aprender o que quer que fosse,
sem as lições de bom mestre, e crer como ainda não quis parecer haver
brotar espontaneamente no espírito a estudado esta profissão. Não vacileis,
mais importante de todas as ciências, a todavia, em confiar-me o emprego de
do governo. médico. Diligenciarei ~nstrui-me fa-
Outra vez, .advertindo Sócrates que, zendo experimentos em vó"s".
J receoso de passar por admirador de Todos os assistentes desandaram a
sua sabedoria, Eutidemo evitava sen- rir do exórdio. Então Eutidemo entrou
tar-se perto dele, disse: a prestar atenção às palavras de Sócra-
- Quando tiver idade e propuser à tes. Mas se abstinha de falar, ciente de
142 XENOFONTE

que seu silêncio passaria por modéstia. sabedoria. Advertindo-o sensível ao /O

Desejando curá-lo desta idéia, disse elogio, prosseguiu Sócrates:


Sócrates: · - Em que, pois, Eutidemo, preten-
- É simplesmente de espantar que des abalizar-te reunindo tantas obras?
os que desejam tocar cítara ou flauta, Como Eutidemo guardasse silêncio,
montar a cavalo ou adquirir outra à caça de resposta, sugeriu Sócrates:
habilidade qualquer busquem a tanto - Não queres ser um grande médi-
tomar-se aptos mediante ~ontíu co? Há muitas obras escritas por
exercício, tomando por juízes não a si médicos.
próprios, mas os melhores mestres, - Que esperança!
tudo façam e sofram que lhes impo- - Então queres ser arquiteto? A
nham estes, enquanto os que pr:eten- arquitetura também exige instrução.
dem ser bons oradores e bons políticos - Tampouco.
julgam poder consegui-lo por si mes- - Não deseu as ser bom geômetra,
mos e de momento para outro, sem como Teodoro?
7 preparação e sem exercício. No entan- - Quê, geômetra o quê!
to, tal escopo parece muito- mais difícil - Quererás ser astrólogo?
de atingir que o primeiro, tanto que Tendo Eutidemo respondido que
muitos a ele visam e pouquíssimos o nao:
alcançam. Evidente é, portanto, reque- - Ah ! Já sei, queres ser r apsodo?
rer a política muito maior aplicação Pois dizem teres todos os poemas de
que qualquer outra carreira. Homero.
Tais eram de começo, as falas que - Menos ainda. Não ignoro que os
em presença de Eutidemo, simples rapsodos sabem os versos de memória,
ouvinte, proferia Sócrates. Mas logo mas nem por isso são menos idiotas.
que percebeu a boa disposição, e pra- - Não alm~js, Eutidemo - con- li

zer com que o escutava o jovem, foi tinuou Sócrates - , essa ciência que
· sozinho à oficina do seleiro, sentando- torna· os homens aptos a governar as
se Eutidemo a seu lado: casas e 6 Estado, mandar, ser útil a si
- Dize-me, Eutidemo - falou-lhe mesmos e aos demais?
Sócrates - , é certo, éomo ouço dizer, - Sim - respondeu Eutidemo - ,
haveres coligido grande cópia de obras eis o mérito que ambiciono.
de homens famigerados pelo saber? - Por Júpiter! - exclamou Só-
- Sim, Sócrates. E continuarei a crates - visas à maior e mais emi-
· colecioná-las até reunir o maior núme- nente das ciências. É a ciência dos reis,
ro possível. e por isso se chama ciência real. Mas
- Por Juno ! Admiro-te por have- examinaste se é possível, sem ser ju·sto,
res preferido ao ouro e à prata os nela brilhar?
tesouros da sabedoria. Indubitavel- - Sim, e creio imposível~ sem jus- 12

mente sabes que a prata e o ouro não tiça, ser bom cidadão.
tornam os homens melhores, de passo - Como buscar ser justo?
que milionários de virtude fazem as - Em questão de justiça, Sócrates,
sentenças dos sábios aqueles que as penso que ninguém me leva as lampas.
possuam. - Terão os homens justos suas
Eutidemo regozijava-se com tais funções, como os artesãos?
palavras, persuadido de que aos olhos Claro.
de Sócrates estava no vero caminho da - Assim .como os artesãos expõem
MEMORÁVEIS-IV 143

suas obras, nâo podem os justos dizer - Então não cumpre colocar
quais são as suas? igualmente do lado da justiça tudo o
- Como não! - disse Eutidemo. que pusermos do outro lado?
- Que mais fácil que enumerar as coi- - É o que me parece.
sas justas? O mesmo poderia fazer - Queres que, colocando todas 16

com as injustas: haverá coisa mais estas ações do lado que designas, esta-
comum? beleçamos por princípio serem justas
13 - Queres, pois, escrevamos aqui contra inimigos, porém injustas contra
um "J" e ali um "I"? Em seguida colo- amigos, e que em relação a estes deve-
·caremos de baixo do "J" o que nos mos proceder com toda a direitura.?
parecer justo e o injusto de baixo do - Com todo o gosto - anuiu 11

"I" Eutidemo.
- Se o achas necessário ... - Pois bem - prosseguiu Sócra-
11 Após escrever como dissera, prosse- tes-, se, vendo suas tropas desanima-
guiu Sócrates: das, anuncia-lhe falsamente um gene-
- Não existe, entre os homens a ral que lhes chegam auxílios e destarte
mentira? logra devolver-lhes a coragem, de que
Sem dúvida. lado colocaremos esta peta?
De que lado a colocaremos? - Do lado da justiça, creio.
Evidentemente do lado da injus- - E se necessitando uma criança
tiça. de remédio e não ·querendo tomá-lo,
E o embuste, também não exis- seus pais a enganam, impingindo-lhe o
te? remédio de mistura com os alimentos,
Certamente. e assim a restituem à saúde, onde colo-
De que lado colocá-lo? caremos este logro?
Também do lado da injustiça. - Do mesmo lado.
E os maus tratos? - Enfim, se vejo um amigo presa
Igualm~nte. do desespero e recear de que atente
A escravidão? contra a vida, tomo-lhe a espada e
Sempre do lado da injustiça. todas as demais armas, de que lado
1s Mas então nada poremos do colocas semelhante ato? 1s
lado da justiça~ Eutidemo? · - . Por Júpiter ! do lado da justiça.
- Seria estranho. · - Então dizes que devemos proce-
- Como ! se um homem eleito der com toda a retidão no que respeita
general escravizar uma cidade injusta e aos amigos?
inimiga, di-lo-emos injusto? - Não, e, se me for permitido, reti-
Não, por certo. ro o que d is se.
Então procederá justamente? - Antes . isso que perseverar no
Sem dúvida. erro. Mas, para não deixar este ponto 19

E se enganar os inimigos na sem exame, dos homens cujas mentiras


guerra? prejudicam os amigos,. qual o mais
- Ainda serájustiça. injusto, o que engana voluntariamente
- Se talar, pilhar os bens dos ini- ou o que faz sem querer?
migos, não procederá ainda com justi- - Sóc:rates, já não tenho confiança
ça? em minhas respostas. Tudo o que exa-
- Seguramente. Mas pensei que minamos parece-me agora inteira-
tuas palavras só se referissem aos mente diverso do que o imaginava.
amigos. Todavia, seja-me permitido dizer que
144 XENOFONTE

mais injusto que quem engana sem Por não saberem construir?
querer é quem o faz de propósito. Também não.
20 - Pensas haver uma ciência do Então porque não sabem talhar
justo como ah~ da escritura? o couro?
- Sim. - Não é por nada disso. Antes
-· Quem, a teu ver, melhor conhece pelo contrário, porquanto a maioria
as letras, o que escreve ou lê mal dos que exercem tais misteres são pes-
voluntariamente ou o que assim proce- soas servis.
da involuntariamente? - Dá-se este nome, pois, aos que
- O primeiro, pois, desde que o ignoram o que seja o belo, o bom e o
queira poderá fazê-lo bem. justo?
- Então, quem escreve mal volun- - Assim creio. 21
tariamente sa.be escrever, e quem o faz - Então cuidado ! que não nos vão
involuntariamente não? chamar servis.
- Como poderia ser de outra -·- Ah ! pelos deuses, Sócrates, jul-
forma? gava-me muito adiantado em filosofia
- Quem, pois, conhece a justiça: e no verdadeiro caminho da virtude.
quem mente e engana por querer ou Imagina qual não seja minha desilu-
quem o faz sem querer? são, depois de tanto trabalho, vendo-
- O primeiro, evidentemente. me engasgar com perguntas sobre o
- Então dizes o que sabe escrever que mais importa saber e sem atinar
mais letrado que o que não o sabe? como fazer-me melhor !
- Pois é.
- Dize-me, Eutidemo, já estiveste u
- · E o que conhece as regras da
em Delfos?
justiça mais justo que o que não as
- Duas vezes, por Júpiter!
conhece?
- Então leste a inscrição gravada
- Penso que sim, mas nem eu
no templo: Conhece-te a ti mesmo?
mesmo já me entendo.
Li.
21 - Que dirias, Eutidemo, de alguém
que quisesse dizer verdade ·e contudo - Não deste importância ao con-
jamais se explicasse da mesma forma selho ou o aceitaste e diligenciaste
sobre as mesmas coisas? Que, falando saber quem és?
do mesmo caminho, ora dissesse que - Por Júpiter! então não havia de
leva ao Oriente, ora ao Ocidente? conhecer-me a mim mesmo? ! Difícil
Fazendo o mesmo cálculo, já obtivesse me fora aprender outra coisa, se a mim
mais, já obtivesse menos? próprio me ignorasse.
- Evidentemente não saberia . o - Então pensas que conhecer-se a 2s
que presumia saber. si mesmo seja saber como se chama?
- Conheces pessoas a que se cha- Assim como nã.o crêem os compra-
mam servis? dores de cavalos conhecer o animal
22 - Conheço. que desejam comprar antes de verifi-
- Será por causa de sua sabedoria carem se é dócil ou empacador, forte
ou de sua ignorância? ou fraco, ligeiro ou lerdo, enfim, todas
- Claro que por causa de sua as boas ou más qualidades de uma
ignorância. cavalgadura, não deve pesar-se a pró-.
- Chamá-las-ão assim por não pria capacidade para se saber quanta
saberem trabalhar os metais? se vale?
- Não. --- Efetivamente, parece-me que
MEORÁVrs~1v 145

não conhecer o próprio valor é igno- a si próprio. Mas por onde começas o 31

26 rar-se a si mesmo. exarrie? Serei todo ouvidos se quiseres


- Não é evidente ser esse conheci- ensinar-mo.
mento de si mesmo fonte de infinidade - Sabes - perguntou Sócrates -
de bens, enquanto milhares de males quais sao1 os bens e quais são os
acarreta a visão zarolha das próprias males?
possibilidades? Os que se conhecem a - Ora. essa! se não soubesse isso
si mesmos sabem o que lhes é útil e estaria abaixo dos escravos.
distinguem o que podem do que não - Poi:s bem, enumera-mos.
podem fazer. Realizando o que está em - Nada mais fácil. Primeiro, repu-
seu poder, obtêm o necessário e vivem to a saúde um bem e a doença um mal.
felizes. Abstendo-se do que vai além de Depois, considerando as causas desses
suas forças nao resvalam no erro e dois estados, creio as bebidas, os ali-
esquivam o insucesso. Enfim, estando mentos e as ocupações - bens quando
em melhores condições de julgar os trazem sa.úde, males quando trazem
homens, podem, empregando-os pro- doença.
27 veitosamente, angariar grandes bens e - Em conseqüência, saúde e doen- 32

poupar grandes males. Ao contrário, ça serão elas próprias bens se vierem


os que não se conhecem a si mesmos e para bem, males se vierem para mal.
ignoram o próprio valor não julgam - Corno poderia a· saúde vir para
melhor os homens que as coisas huma- mal e a doença para bem?
nas. Não sabem nem o que lhes cum- - Quantas nao sao as pessoas
pre fazer, nem como o fazem. A res- robustas que, tomando parte em sua
peito de tudo iludidos, deixam escapar expedição inglória, uma viagem funes-
28 a felicidade e e~barondm-s na ruína. ta, embarcam para a cidade dos pés
Os que obram com conhecimento de juntos ao passo que as fracas voltam
causa atingem o fim colimado e gran- s.ãs e salvas?
jeiam honra e consideração. Seus - É verdade, mas os fortes fazem-
iguais comprazem-se de sua sociedade. se úteis, enquanto os fracos ficam de
Nos reveses procuram seus conselhos, banda.
entregam-se-lhes nas mãos, neles fun- - Por outra, o que já é útil, já inú-
dam suas esperanças de bom êxito e til, não será antes bem que mal?
29 por tudo isso os estimam mais que a - As~im me parece, pelo menos de 33

ninguém. Já os que vivem às cegas acordo com este raciocínio. Mas não
metem-se a fazer o que não deviam, resta dúvida ser a ciência um bem: em
malogram em todos os empreendi- que não s.e sairá o homem instruído
mentos e, sobre castigados pelo mau melhor que o ignorante?
sucesso, tornam-se em objeto de des- - Como! não ouviste contar que
prezo e ridículo, vivendo escarnecidos por causa de sua indústria Dédalo foi
e desconsiderados. Podes ver igual- aprisionado por Minos, coagido a ser-
mente que dentre as cidades que, igno- vi-lo e privado ao mesmo tempo da pá-
rando as próprias forças, movem guer- tria e da liberdade? Que, tentando
ras a Estados mais poderosos, umas fugir com o filho, perdeu-o e não con-
são destruídas, outras trocam a liber- seguiu salvar-se, indo dar com os cos-
dade pela escravidão. tados em plagas de bárbaros que de
30
- Estou plenamente de acordo, novo o fizeram escravo?
Sócrates - conveio Eutidemo - ser De fato é o que dizem.
da máxima importância o conhecer-se - E Palamedes? Não ouviste falar
146 XENOFONTE .

de suas desventuras? É voz geral que - Os cidadàos pobres.


Ulisses, invejoso de sua sabedoria, fê- - Sabes, então, quais são os Cida-
lo perecer. dãos pobres?
- Assim dizem. - Como não havia de sabê-lo?
- E .quantos outros homens, não é - Sabes também quais são os
verdade?, notáveis pelos talentos, ricos?
foram aprisionados pelo grande rei e ·- Tão bem quanto os pobres.
convertidos em escravos? - A quem chamas pobres e a
34 - Pelo menos, Sócrates, não pade- quem chamas ricos?
ce a menor dúvida que a felicidade é -'- Pobres chamo os que não têm
um bem. com que pagar os impostos, ricos os
~ Sim, Eutidemo, a menos que a que possuem mais do com que pagar
façam consistir em bens equívocos. os impostos.
- · Que pode haver de equívoco no - . Já notaste que, embora com 3s
que constitui a felicidade? pouco, indivíduos há que possuem o
- Nada, contanto que não a po- bastante e 'até fazem economias·, ao
nham em beleza, força, riqueza, glória passo que outros, com muito, sequer
e o mais que segue. têm o necessflrio?
- Sim, e foi bom mo recordares,
- Por Júpiter ! se · é justamente
sei de soberanos a quem, como aos
nisso que a ciframos ! Como ser feliz
mais pobres cidadãos, a necessidade
sem esses bens?
o briga a cometer injustiças.
- Confundis a felicidade com van- - Se é assim, não fazemos bem em 19
tagens não raro funestas. Quantos, por arrolar os soberanos entre o povo e
belos, não são corrompidos po'r infa- colocar na classe dos ricos os que têm
35 mes sedutores da juventude! Quantos, pouco mas sabem economizar?
por fortes, não empreendem coisas - Minha ignorância obriga-me a
sobre-humanas e se tornam infelicís- convir, e acho melhor calar-me. Do
simos! Quantos, vítimas da riqueza contrário correrei o risco de não saber
que os amolenta e·expõe a ciladas onde absolutamente nada! Com isso Euti-
encontram a ruína! Quantos, enfim,
a
não alcançam gló,ria e o poder senão
demo retirou-se todo . acabrunhado,
cheio de desprezo de si próprio e já
para padecer de forma atroz! não se considerando senão como um
36 -' - Se me enganei louvando a felici- escravo.
dade, confesso já não saber o que pedir A maioria dos que Sócrates metia à· 40
aos deuses. bulha fugiam-no, e com isso só lhe
- Talvez não refletiste nestas coi- pareciam mais insensatos. Porém Euti-
sas por te julgares cansado de sabê-las. demo sentiu· que, se quisesse ser gente,
Mas já que pretendes governar um Es- imprescindia do trato de Sócrates. Pas-
tado democrático, decerto sabes o que sou a freqüentá-lo assiduamente e até
seja democracia. imitar-lhe certos hábitos. Sócrates,
37 - Sem dúvida. vendo-o com tais disposições, cessou
- Achas possível conhecer a de- de atormentá-lo e ministrou-lhe as
mocracia sem conhecer o povo? noções mais simples e claras das coi-
Não, por Júpiter! sas que julgava necessário saber e hon-
Que chamas o povo? roso praticar.
CAPÍTULO III

Não se apressava em fazer seus permitindo-nos assim atendermos a


discípulos· hábeis no falar, haver-se e certos guefazeres?
excogitar-se expedientes. Antes de tudo - E verdade.
cria necessário tangê-los à trilha da - Acresce que a Lua não indica
sabedoria. Sem a sabedoria - dizia somente as partes da noite, mas tam-
- os que possuem esses talentos só bém as do m"ês.
podem sêr mais injustos, mais podero- - De fato.
sos para o mal. Em primeiro lugar pro- - Como temos precisão de alimen- 5
curava incutir-lhes idéias sábias no tos, dão-nos frutos da terra. Para isto
concernente aos deuses. Outros já nar- criaram a.s estações próprias que nos
raram as conversações que em sua pre- fornecem com abundância e variedade
sença teve a esse respeito. . não só o necessário como ainda o
Por mim assisti à palestra seguinte agradável.
que entreteve com Eutidemo:
- Efetivamente é muita bondade
- Dize-me, Eutiderrio, já refletiste
da parte deles.
com que carinho nos proporcionam os
deuses o de que necessitamos? - Não nos deram a ·água, esse ele-
- Não, confesso-te. mento precioso que ajuda a terra e as
- Mas pelo menos sabes que antes estações a fazerem nascer tudo o que
de mais nada necessitamos da luz que nos é o i r á s ~ f c e n ou útil, contribui para
nos fornecem? "sustentar-nos e, misturada a todos os
- Por júpiter ! Não a tivéssemos e nossos alimentos, os torna mais fáceis
seríamos como os cegos. de preparar, mais salutares e agradá.-
- Necessitamos, outrossim, de re- veis? e como a necessitamos em abun-
pouso, e os deuses dão-nos a noite, o dância, não no-la concedem com pro-
mais doce dos lazeres. fusão?
- Também é presente digno de - Outra prova de sua providência."
reconhecimento. - Não nos deram o fogo, que nos
- Graças à luz do Sol, distin- preserva de frio, alumia na obscuri-
guimos as horas e os objetos. A noite, dade, coadjuva em todas as artes e tra-
com sua obscuridade, tira-nos a visão balhos cujo fim é o nosso bem-estar?
·das coisas: mas não é que acenderam Para tudo dizer em uma palavra, sem 6
os deuses em meio às trevas esses as- fogo nada fariam os -homens de belo
tros que nos dizem as horas da noite, nem de útil.
148 XENOFONTE

Novo testemunho de sua infinita que não se alimentam dos produtos da


bondade. terra, mas do leite, queijo, carne que
- E o ar espalhado em torno de lhes fornecem os rebanhos. Todas
nós com profusão sem limites, o ar que domesticam, domam os ánimais úteis e
não somente nos entretém e medra a neles encontram auxiliares para a guer-
vida como nos auxilia a vencer os ra e muitos trabalhos.
mares para ir buscar mil produtos - Convenho contigo, pois vejo que
diversos em mil regiões diferentes, não até os animais muito mais fortes que
é um bem inestimável? nós se nos submetem ao império e se
- Certamente. prestam ao que deles exigimos.
- E o Sol ! Ganho o solstício de - Outrossim, como infinita é a li

inverno, arrepia caminho, amadure- variedade de formas que assumem o


cendo certos produtos, dessecando ou- belo e o útil, não nos deram os deuses
tros já sazonados. Depois deste duplo sentidos apropriados às diferentes per-
beneficio, em vez de aproximar-se cepções, mediante os quais fruímos
demasiadamente, volta por detrás a todos os deleites'? Não nos outorgaram
fim de não prejudicar-nos com exces- a inteligência, que com o raciocínio e a
sivo calor. De novo atingindo um memória nos permite apreciar as sen-
ponto além do qual nos mataria de sações, julgar ela utilidade de cada
frio, retorna para nós, avizinha-se-nos objeto, inventar mil coisas, já para
e volta à região do céu onde mais nos maior bem-estar nosso, já para nos
pode benfazer. preservarmos do:) males? Não nos con- 12

- Por Júpiter! parece que todas cederam o dom dla palavra por meio da
essas maravilhas foram feitas especial- qual trocamos benefícios instruindo-
mente para o homem, nos comum e reciprocamente, estabele-
- Demais, já que não poderíamos cemos leis, fundamos Estados?
suportar o calor nem o frio, se· viessem - Não há dúvida, Sócrates, que os
inopinadamente, não se aproxima o deuses olham por nós com o maior
Sol manso e manso e a pouco e pouco desvelo.
se afasta, de sorte que insensivelmente - E quando não podemos prever o
passamos de um extremo a outro de que nos será útil no porvir, ainda aqui
temperatura? não vêm em nossa ajuda, não revelam
- Estou a perguntar a meus botões pela adivinhação os que os consultam
- disse Eutidemo - se velar pelo o que sucederá de futuro e lhes ensi-
homem não seria a única ocupação nam como proceder?
dos deuses. Mas uma coisa me atrapa- - Quer parecer-me, Sócrates, que
lha - quinhoarem todos os animais te foram mais generosos que ao resto
de seus favores. dos mortais, se é verdade que sem os
10
- Ora essa! - retrucou Sócrates interrogares te indicam de antemão o
- não é manifesto que até esses ani- que deves ou não fazer.
mais nascem e são alimentados para o - Reconhecerás tu também a ver- 13

homem? Que outro animal tira tão dade de minhas palavras, se não espe-
grande proveito da6 cabras, ovelhas, rares que os deuses se te apresentem
cavalos, bois, asnos, etc., como o sob forma real, contentando-te em ver
homem? Antolham-se-me até mais suas obras para orar-lhes e honrá-los.
úteis que os vegetais. Não nos alimen- Pensa bem: é assim que os deuses se
tamos e enriquecemos menos de uns manifestam. As deidades menores, de
que outros. Muitas raças humanas há quem recebemos as graças, não se nos
MEMORÁVEIS-IV 149

deparam aos olhos para semear seus Eutidemo - me permitirei o menor


benefícios. E aquele que dispõe e impe- descaso p.ara com ela, estou certo.
ra no universo - congregação de Aflige-me, contudo, pensar que nunca
todas as bondades e bens - aquele homem nenhum poderá agradecer-lhe
que, por amor nosso, o mantém em suficientemente tantos benefícios.
eterna pujança e juventude eterna, o - Não seja por isso, Eutidemo. 16

submete a obediência infalível e mais Sabes responder o deus de Delfos a


pronta que o pensamento, este deus se quem lhe pergunta o meio de ser grato
manifesta no cumprimento de suas aos deuses: "Segue a lei de teu país".
obras mais sublimes, mas tudo o mais Ora, em toda parte ordenam as leis que
14 rege invisível. Vê como o Sol, que cada um honre os deuses consoante
todos os olhos ilumina, não permite suas posses. Haverá culto mais subli-
aos homens o fitá-lo: a quem se põe a me e piedoso que o que prescreve a
olhá-lo de fito, rouba-lhe a vista. Invi- própria divindade? Mas é preciso nada 17

síveis são também os ministros dos omitir do que se possa fazer. Do


deuses. O raio vem do alto, certo, e ful- contrário, :'eria manifesto pouco caso.
mina tudo o que encontra: porém não Importa, pois, tudo fazer por preitear
há vê-lo, nem quando cai, nem quando os deuses, segundo suas posses, ter
fere, nem quando desaparece. Invisí- neles .confiança e deles esperar as
veis são os ventos, porém lhes vemos maiores mercês. Loucura, com efeito,
os efeitos, lhes sentimos a presença. seria esperar mais de outro qualquer
Enfim, mais que tudo o humano, parti- que daqueles que mais podem servir-
cipa da divindade a alma humana. nos. E como esperar ser atendido
Reina em nós, é incontestável, mas não senão buscando comprazer-lhes? E
a vemos. Refletindo em tudo isso, não como melhor comprazer-lhes que obe-
se devem desprezar as forças invisí- decendo-os sem reserva? Com tais 1s

is veis, mas, por seus efeitos, reconhecer- conselhos, tanto quanto pelo exemplo,
lhes o poder e honrar a deidade. fazia Sócra.tes mais pios e mais sábios
- Jamais, Sócrates - respondeu os que com ele se ver~am.
CAPITULO IV

Quanto. à justiça, longe de rebuçar Regresso a Atenas após longa au-


sua opinião, patenteava-a por atos: no sência, Hípias encontrou Sócrates pa-
particular de sua casa era todo eqüi- lestrando com alguns discípulos. Ex-
dade e benevolência; como. cidadão, primia Sócrates sua admiração de ver
todo obed_iência aos magistrados em que, se se deseja fazer de alguém sapa-
tudo o que manda a lei, quer na cidade, teiro, maç:ão, ferreiro, estribeira, é só
quer nos exércitos, onde ó abalizava enviá-lo a ·um bom mestre; diz-se até
seu espírito de disciplina. Presidindo, que em qualquer parte se encontram
na qualidad'e de epistata, aos congres- indivíduos habilitados para domar ca-
sos populares, impediu o povo de votar valos e bois; mas se alguém quer
contra as leis e, nelas arrimado, resis- aprender a. justiça ou fazê-la aprender
tiu à fúria do poul~ch que nenhum a um filho ou criado, não sabe onde
outro teria coragem de enfrentar. ·desencavar quem lha ensine. Hípias,
Quando os Trinta lhe davam ordens que escutava, disse-lhe escarninho:
avessas às leis, não as acatava. Assim, - Como é isso, Sócrates, estás a
quando lhe proibiram o palestrar com repetir o que te ouvi dizer há tanto
os jovens e o encarregaram, junta- tempo?
mente com outros cidadãos, de condu- -· Sim - retorquiu Sócrates - e .
zir um homem que intentavam assassi- o mais estranho, Hípias, é que, não
nar, só ele · se recusou de obedecer, contente de repetir as mesmas pala-
porque tais ordens eram ilegais. Cha- vras, repito-as sobre .os mesmos assun-
mado por. Meleto perante os tribunais, tos. Ao passo que tu, sabichão como
longe de seguir o costume dos acusa-
és, talvez nem sempre digas as mesmas
dos, que, malgrado o proibirem as leis,
palavras sobre as mesmas coisas.
tomam da palavra para ganhar o favor
dos juízes, adulá-los e dirigir-lhes sú- - Claro, procuro dizer sempre coi-
plicas, e assim muitas vezes se fazem sas novas.
absolver, não quis de tal guisa infringir - Quer dizer que se .te interrogám
as leis: posto facílimo lhe fora lograr a a respeito de algo que saiba, sobre as
absolvição, preferiu morrer dentro da letras, poir exemplo, e. te perguntam
lei a transgredi-la para viver. Foi o que quantas tem o nome "Sócrates" e quais
mais de uma vez disse a muita gente, e são, procuras responder, ora de uma
acordo-me da conversa que sobre a maneira, ora de outra? Se, a propósito
justiça teve com Hípias de Eléia. de aritmética, te perguntam se duas
152 XENOFONTE

vezes cinco são dez, não respondes - Pois olha supunha que não que-
1 12

hoje como respondeste outrora? rer ser injusto fosse prova suficiente de
- Nessas questões, Sócrates, faço justiça. Se não és do mesmo parecer,
como tu, respondo sempre o mesmo. vê se isto te satisfaz: digo que justo é o
Porém, sobre a justiça creio poder que é legal.
dizer neste momento coisas a que nem - Queres dizer, Sócrates, que lega:l
tu nem ninguém nada podereis objetar. e justo sejam uma só e mesma coisa?
- Por Juno! falas de grande des- - Sim.
coberta. Só assim os juízes cessarão de - Então não sei o que entendes 13

dividir seus sufrágios, os cidadãos de por legal e justo.


contestar por amor de seus direitos, de Conheces as leis do Estado?
processar-se uns aos outros, de promo- Conheço-as.
ver sedições: as próprias nações já não Que são elas?
terão querelas a propósito de seus O que de comum acordo decre-
direitos nem se guerrearão. Não, não te tam os cidadãos estatuindo o que deve
deixarei enquanto não me desembu- e o que não deve fazer-se.
chares tão admirável intento. - Portanto, legal é o que se con-
- Por Júpiter! nada saberás antes forma com esses regulamentos políti-
de me dizeres o que pensas tu próprio cos, ilegal o que os transgride.
da justiça. Há muito que zombas dos - Muito bem.
outros, interrogando e refutando sem- - Ser justo é obedecer-lhes, inj,usto
pre, sem jamais querer prestar contas a desobedecer-lhes.
ninguém nem sobre nada expor tua - Sem dúvida.
opinião. - Conseqüentemente, justo não é
10 - Como! Hípias, não vês que não quem procede justamente, injusto
cesso de mostrar o que penso ser o quem procede injustamente?
justo? - Poderia ser de outra forma?
Mas afinal como defines a justi- - Logo, justo é quem vive dentro
ça? da lei, injusto quem da lei aberra.
Se não por palavras defino-a por - Mas como, Sócrates, emprestar /4
atos. E não achas a ação mais convin- valor ou crer que se deva obedecer às
cente que a palavra? leis, quando muitas vezes aqueles mes-
- Muito mais, por Júpiter ! Muita mos que as elaboraram as condenam e
gente diz coisas justas e comete injusti- derrogam?
ças, ao passo que, arrimado na justiça, - A miúdo também as cidades en-
não há possibilidade de ser injusto. tram em guerra e depois firmam a paz.
11 - Pois bem: já ouviste dizer que eu - É verdade.
haja prestado falso testemunho, calu- - Censurar os que obedecem às
niado, semeado cizânia entre amigos leis porque podem ser revogadas não é.
ou concidadãos ou cometido outra o mesmo que condenar os soldados
injustiça qualquer? que bem se portam na guerra porque
- Não, nunca. pode concluir-se a paz? Desgabas os
- Não achas que abster-se da cidadãos que, nas guerras, defendem
injustiça é ser justo? corajosamente a pátria?
- Pareces-me, Sócrates, evitar - Não, por Júpiter!
dizer o que opinas da justiça. Pois não - Não achas que se não houvesse 1s
do que fazem os justos mas do que inspirado a Espasta o mais fundo res-
não fazem é que te çmço falar. peito às leis, não a teria o lacedemônio
MEMORÁVEIS-IV 153

Licurgo tomado diferente das outras grado que àquele que, estamos certos,
cidades? Não sabes que dentre os saberá agradecer-nos? De quem mais
magistrados de uma cidade, em todos amaríamos ser amigo e menos ser ini-
os termos melhores são aqueles que migo? Qual o homem a que mais teme-
mais inspiram aos cidadãos a obe- ríamos atacar que aquele de que mais
diência às leis? Que o Estado onde os amaríamos ser amigo e menos ser ini-
cidadãos são mais submissos às leis é migo, cuja amizade fosse de todos
também o mais venturoso na paz e reqüestada e cujo ódio e inimizade nin-
16 invencível na guerra? A concórdia é guém quiBesse incorrer? Eis-te prova- 1s

para as cidades o maior dos bens. do, Hípia:s, ser o legal e o justo uma
Diariamente a recomendam aos cida- única e mesma coisa. Se não estás de
dãos os senadores e homens mais emi- acordo, dize-mo.
nentes da República. Lei existe em - Por Júpiter! Sócrates, como po-
toda a Grécia que manda os cidadãos deria eu discrepar do que acabas de
jurarem viver em harmonia, e em toda dizer dajrnstiça?
parte prestam este juramento. Não - Conheces, Hípias~ leis não-es- 19

creio que tal se faça para que os cida- critas?


dãos comunguem no mesmo juízo - Sim, aquelas que em toda parte
sobre os-coros, aplaudam os mesmos vogam e ti~m o mesmo objeto.
tocadores de flauta, elejam os mesmos - Di-l.as-ás estabelecidas pelos ho-
poetas, tenham os mesmos gostos, mas mens?
sim para que obedeçam às leis: que - Corno, se nem todos os povos
enquanto se lhes mantiverem fiéis as vizinham nem falam a mesma língua?
cidades serão poderosíssimas e felicís- - Quem imaginas, então, formu-
simas. Sem concórdia não há cidade lou tais leis?
bem governada ne.m casa bem admi- - Acho que foram os deuses que
17 nistrada. Na vida privada, qual o meio as inspiraram aos homens. Porque
mais seguro de não incorrer castigos entre todos os povos a primeira lei é
públicos, qual o caminho mais curto respeitar eis deuses.
para as honras do que a obediência às - . O respeito aos pais não é tam- 20

leis? Qual o meio mais certo de não ser bém lei universal?
vencido nos tribunais e ganhar os pro- - Sem dúvida.
cessos? A quem se confiará com mais - Não proíbem as mesmas leis a
gosto fortuna, filhos, filhas? Quem a promiscuidade. de pais com filhos e de
todos preferirá a confiança do próprio filhos com pais?
Estado, senão aquele que respeita as - Quanto a essa lei, Sócrates, não
Ieis 7 De quem esperarão mais eqüi- a creio emanada de um deus.
dade nossos pais, parentes, servidores, Por quê?
amigos, concidadãos e os estrangei- Porque povos há que a transgri-
ros? Com quem preferirão os inimigos dem.
negociar uma suspensão de armas, Transgridem-se muitas outras. 21

uma trégua, condições de paz? Quem Mas os que violam as leis estabele-
granjeará mais aliados? A quem man- cidas pelos deuses são fatalmente puni-
darão com mais gosto esses mesmos dos, enquanto os que pisam aos pés as
aliados seus oficiais e suas tropas? De leis humanas às vezes esquivam a
quem esperará um benfeitor mais grati- pena, seja foragindo-se, seja usando de
dão do que daquele que respeita as violência.
leis? A quem obsequiaremos de melhor - Qual, pois, o castigo que não 12
154 XENOFONTE

podem iludir os pais que vivem de - Ainda aqui estou de acordo


promiscuidade com os filhos, os filhos contigo.
que vivem com os pais? - Dize-me, em toda parte não quer 24

- O maior de todos, por Júpiter! a lei que se testemunhe reconheci-


Pois que haverá mais triste que dar ao mento aos berife:ltores?
mundo filhos doentes? - Sim, porém a transgridem.
- Por que serão seus filhos doen- - Os que a transgridem não são
tes? Nada impede, se forem sadios, que punidos, abandonados que se vêem de
os filhos também o sejam. bons amigos e o brigados a recorrer a
21 - É que não basta o par gerador quem os detesta? Pois não são bons
ser são, é preciso estar no vigor da amigos os que beneficiam quem os
idade. Pensas que o licor prolífico seja procura? Se não se retribuem os servi-
o mesmo nos que se acham na força da ços que deles se receberam, esta ingra-
idade e nos que ainda não atingiram ou tidão não provoca seu ódio? E não faz
já passaram a mocidade? o grande interesse que se tem de
- Está visto que não pode ser o freqüentá-los que se cesse d~ persegui-
mesmo. los?
Qual, pois, a idade mais propí- - Por Júpiter ! Sócrates, tudo isso
eia? me parece vir dos deuses. Obra de
Evidentemente a do pleno vigo'r. legislador superior aos homens se me
Não estarão em condição desfa- afiguram estas leis que trazem consigo
. varável, pois, os que não se acharem a punição dos que as infringem.
nessa idade? - Crês, pois, Hípias, que os deuses 2s
- Claro. estatuem leis j1llstas ou que possam
- E não será bom que não cogitem instituí-las contrárias à justiça?
de procriar? - Não estabelecessem os deuses
- Certamente. leis justas e ninguém as estabeleceria.
- Se o fizerem, não irão de encon- - Logo, Hípias, os próprios deuses
tro à natureza? querem que o j:usto seja o mesmo queo ·
- Assim penso. legal.
- A que chamaremos filhos doen- Assim é que., por palavras e atos,
tes, pois, senão aos frutos dessas fazia Sócrates mais justos aqueles que
uniões defesas? o tratavam.
CAPÍTULO V

Direi agora como Sócrates induzi3: - Creio-os de todo ponto impeli-:-


seus discípulos à prática do bem. Per- dos para o mal e desviados do bem.
suadido de que quem deseje fazer o - Que pensas então desses senho- s.
bem imprescinde da temperança, sobre res que impedem de fazer o bem e obri-
fazê-la assunto constante de suas pa- gam afazer o mal?
lestras, mostrava-se ele próprio modelo Por Júpiter!. é a pior raça.
acabado de sobriedade. Tinha ~empr - E qual a pior das servidões?
presente no espírito os caminhos que - Em minha opinião, a· que nos
conduzem à virtude e não se cansava sujeita aos piores senhores.
de lembrá-'los a quantos o freqüen- - Então os intemperantes pade-
tavam. cem a pior das servidões?
Sei que teve um dia com Eutidemo - Assim acho.
esta prática sobre a temperança: - A intemperança não afasta ç1s
- Dize-me, Eutidemo, não reputas homens da sabedoria, o maior dos
a liberdade bem inestimável e honroso bens para precipitá-los nos piores
tanto para o particular como para o males? achas que, arrastando-os para
Estado? os prazeres, os impede de se aplicarem
- É o mais precioso dos bens. ao estudo dos conhecimentos úteis e,
- Terás por livre o homem que se não raro,. discirnam embora o bem do
deixe dominar pelos prazeres do corpo mal, os obriga a preferirem o pior ao
e assim se veja na impossibilidade. de melhor?
praticar o bem? - É verd.ade.
- De forma alguma. - Quem menos prudente que o
- Não chamas liberdade ao poder intemperante? Pois nada tão avesso
de praticar o bem, servidão à impossi- aos atos da prudência quanto os da
bilidade de praticá-lo? intemperança.
- Justamente. - De fato.
- Quer dizer que a teus olhos os - Que nos apartará mais de nos-
intemperantes não passam de escra- sos deveres que a intemperança?
. vos? - Nada.
- Sim, e com razão. - Quando um vício nos faz prefe.:. s
- Crês que os intemperantes sejam rir o prejudicial ao útil, procurar um e
somente impedidos de fazer o melhor negligenciar o outro e em tudo nos
· ou que sejam também forçados a fazer haver-mos ao reverso dos sábios, não é
o pior? de todos o mais funesto?
156 XENOFONTE

- Seguramente. Nada dq que dizes admite dúvi- 10

- Natural não é produzir a tempe- das.


rança efeitos contrários aos da intem- Demais, aprender a conhecer o
perança? belo e o bem, a governar o próprio
corpo, a bem dirigir sua casa, a ser
- Sem dúvida.
- Igualmente claro não é ser exce- prestadio aos amigos e à pátria e a
lente a causa desses efeitos contrários? vencer os inimigos, todas qualidades
que não somente são úteis como
- Certamente. proporcionam os maiores prazeres:
- Então força é crer, Eutidemo, tais as vantagens práticas que colhem
ser a temperança o mais valioso dos os homens temperantes e de que os
bens. intemperantes sào excluídos. De feito,
- Não ná duvidá-lo, Sócrates. quem menos digno delas que aquele
Já observaste uma coisa, Eutide- que, consagrado aos prazeres fáceis,
mo? nenhuns sacrifícios fez à virtude?
Quê? - Parece-me, Sócrates, conside- /1

Que, pareça embora poder con- rares o homem dominado por prazeres
duzir-nos exclusivamente ao agradá- dos sentidos incapaz de qualquer virtu-
vel, de tanto é incapaz a intemperança, de.
ao passo que a temperança nos propor- - Qual a diferença, Eutidemo,
ciona os mais vivos prazeres. entre o homem intemperante e a besta
mais estúpida? Em que difere dos bru-
- Como assim? tos quem jamais toma o bem por norte
- Porque a intemperança, não nos e só vive para o prazer? Só os tempe-
permitindo suportar a fome, a sede, os rantes podem examinar o que há de
desejos amorosos, a insônia, necessi- melhor em todas as coisas, distribuí-
dades que só elas nos fazem experi- las por gênero na prática e em teoria,
mentar, deleite em comer, beber, amar, joeirar o bem e refogar o mal.
repousar, dormir e que com a espera e Este - dizia Sócrates - o meio de
a privação não fazem senão aumentar tomar os homens melhores, mais feli-
o prazer, a intemperança, digo, impe- zes e mais hábeis na dialética. Ajun-
de-nos de sentir verdadeira doçura no tava vir o nome de "-dialético" do hábi-
satisfazer estes apetites necessários e to de dialogar em comum e distribuir
contínuos. A temperança, ao contrário, os objetos por gêneros; que mister
única capaz de fazer-nos suportar as havia, pois, dar-se com afinco a este
privações, é também a única que nos exercício, de vez que tal estudo forma
permite gozar até pela memória dos os melhores homens, os mais hábeis
prazeres de que falei. políticos e os mais fortes dialéticos.
CAPÍTULO VI

Farei também por contar como Só- -·- Honraríamos os deuses diferen-
crates formava seus discípulos na temente do que cremos de mister?
dialética. Achava que, quando se co- - Não o creio.
nhece berri o que seja cada coisa em - Portanto, não cultuará os deuses
particular, pode-se explicá-la aos ou- legitimamente quem conhecer as leis
tros; mas que, se se ignora, não admira do culto?
que se engane a si mesmo e consigo - Sim.
aos outros. Também não cessava de - Quem cultuar os deuses legiti-
investigar com seus discípulos o que é mamente não os honrará como deve?
cada coisa em particular. Trabalhosa - Seguramente.
empresa seria reproduzir todas as suas - Quem honrar os deuses corho
definições: content.ar-me-ei de referir deve não será piedoso?
as que, a meu ver, melhor caracterizam - Sem dúvida.
seus sistemas. - Então não podemos definir o
Primeiramente vejamos como enca- piedoso como aquele que conhece o
rava a piedade: culto legítimo?
- Dize-me, Eutidemo, ·que achas - De pleno acordo.
da piedade? - Passemos aos homeris. Poderá 5
- Por Júpiter! é a mais formosa cada qual tratar seus semelhantes a seu
das virtudes. bel-prazer?
- Poderias dizer-me qual o - Não. Só procederá legitima-
homem piedoso? mente com respeito a seus semelhantes
- Aquele, penso, que honra os quem conhecer as leis reguladoras das
deuses. relações entre os homens.
- Pode cada um honrar os deuses - Então os que se tratarem reci-
à sua fantasia? procamente segundo essas leis tratar-
- Não, há leis que regulam o se-ão como de dever?
culto. - Sim.
- Saberá quem essas leis conheça - Não se tratarão bem os que se
como adorar os deuses? tratarem como de dever?
- Penso que sim. - Claro.
- Julgará quem saiba honrar os - Quem tratar bem seu semelhante
deuses dever honrá-los de outro modo? não cumprirá seu dever de homem?
- Não, certamente. - Sim.
158 XENOFONTE

Por conseguinte não procederão Não.


consoante ajustiça, os que obedecerem Logo, a ciência é a sabedoria?
às leis? Assim me parece.
- É evidente. Julgas que o homem possa tudo
. - E a justiça, sabes o que é a saber? ·
justiça? - De maneira alguma: penso que
- O que ordenam as leis. só pode saber muito pouco. ·
- Portanto não procederão con- - . Então um homem não pode ser
. forme a justiça e o dever os que fize- sábio em tudo7
rem o que mandam as leis? - Está claro que não.
- Poderia ser de outro modo? - Mas naquilo que sabe, cada um
- Não serão justqs os que se pau- é realmente sábio?
tam pela justiça? - De acordo.
- Serão. - Queres, Eutidemo, que analise-
- Crês que se. possa obedecer às mos do mesmo modo a natureza do
leis sem saber o que ordenam? bem?·
- Não. - Como?
- Crês que a mesma coisa seja útil
- E, sabendo-se o que se deva
a todos?
fazer, julgar-se-á não precisar fazê-lo?
- Não.
- Não creio.
- O que é útil a um, por vezes é
- Conheces homens que se hajam
prejudicial a outro?
diferentemente do que creiam de mis-
· Decerto.
ter?
Julgas o bem distinto do útil?
- Não.
Não.
- Portanto não serão justos os que Logo, unia coisa só será um bem
conhecerem as leis prescritas -relativa- para quem for úti1?
mente aos homens? - Sim.
- Entra pelos olhos. - O mesmo não se dá com o belo?
- Então serão justos os . que. se Quando falas da beleza de um corpo,
pautarem pela justiça? de um vaso ou outro objeto ·qualquer,
- Poderia deixar de ser assim? julgas que tal objeto seja belo para
- Logo, não podemos definir o todos os usos?
justo como aquele que conhece as leis - Não, certo.
prescritas relativamente aos homens? - Quer dizer que cada objeto só é
- É o que penso. belo para o uso a que deve servir?
- E a sabedoria, como a definire- - Exatamente.
mos? Dize-me, serão os sábios somen- - Pode um objeto belo ser belo
te sábios no que sabem ou também no sob outro aspecto que não o do uso
que não sabem? que dele possa fazer:-se?
1
- Claro que a gente é sábio no que - Não. .
sabe. Como sê-lo no que não se sabe? - ·- Então uma coisa só será bela
- Será pela .ciência que os sábios para quem for útill?
são sábios? ·_·- Assim penso.
Como ser sábio senão pela ciên~ - Colocas a coragem, Eutidemo, 10

cm . ?...1 ~ntre as coisas belas?


Então não achas que os sábios - Entre as que mais o são.
possam ser sábios por outra coisa que - Quer dizer que não a consideras
não a ciência? útil somente para ·~s pequenas cofsas?
1
MEMORÁVEIS-IV 159

- Considero-a útil para o que há pelos homens e conforme as leis do


grande. Estado; tiranía, um poder imposto e
- Achas vantajoso, estando-se em sem outras leis que os caprichos do
presença de perigos terríveis, não ter-se chefe. Aristocracia chamava a repú-
noção da ventura que se corre? blica dirigida por cidadãos amigos das
- De forma alguma. leis. Plutocracia, aquela onde domi-
- Então não são corajosos os que nam os ricos. Democracia, aquela
sem o saber arrastam perigos? onde todo o povo é soberano.
- Não, claro; do contrário haveria Se o contradiziam sem apresentar 13

passar atestado de valor a muitos lou- provas terminantes, se afirmavam,, sem


cos e covardes. demonstrá-lo, ser tal cidadão mais ·
- E os que temem até o que nada sábio, mais hábil político, mais corajo-
tem de terrível? · so, etc., que aquele de que falava,
- São piores que aqueles. reportava-se ao fulcro da questão:
- Chamas corajosos, pois, aos que - Dizes ser o homem que louvas N

não têm medo nos perigos iminentes, e melhor cidadão que o que elogio?
covardes aos que o têm? - Sim.
- Precisamente. - Por que não começarmos, então,
11 - Chamarás corajosos a outros por ~xaminr qual o próprio do bom
que não aqueles que se portam com cidadão?
valor em face dos perigos? - Façamo-lo.
Não. - Na administração das riquezas,
E covardes, aos que se portam não ganha por mão o que enriquece a
mal? pátria?
A quem mais dar esse nome? - Sem dúvida.
Entretanto, cada um deles nao - Em tempo de guerra, não leva a
se porta como julga: dever fazê-lo? palma quem a avantaja dos adversá-
- Necessariamente. rios?
- Saberão os que se portam mal -. Certamente.
como deveriam portar-se? - Numa embaixada, não excele
- Não. quem de inimigos faz amigos?
- Poderão portar-se como devem - Não o nego.
os que o souberem? - No congresso do povo, não leva
- Sim, e eles somente. as lampas quem ·apazigua as sedições e
- Portar-se-ão mal em face dos instaura a concórdia?
perigos os que souberem como ·devem - Assim o creio.
haver-se? Deste modo, resumindo a questão,
- Não o creio. tomava a verdade sensível aos contra-
- Logo, os qu·e se portam mal não ditores. Quando discorria sobre um ls
sabem como deveriam haver-se? assunto, procedia pelos princ1p1os
- É evidente. mais geralmente reconhecidos, tendo
- Por conseqüência, corajosos não por infalível este método de raciocínio.
são os que sabem como é mister Também não conheci quem o sobrepu-
haver-.se nos perigos iminentes e covar- jasse no fazer competir sua opinião aos
des os que não o sabem? que o ouviam. Dizia que Homero
- De acordo. chama Ulisses de orador seguro da
12 Considerava a realeza e a tirania própria causa porque sabia deduzir
duas autoridades, com esta diferença: suas razoes das idéias que todos
realeza chamava um poder aceito admitem.
CAPÍTULO VII

Tenho para mim que do que hei dito se de astrologia o bastante pai a,
transluz claramente a simplicidade viajando-se por terra, por mar ou,
com que Sócrates expunha suas opi- estando-se de guarda, reconhecer as
niões a seus ouvintes. Ora direi como divisões da noite, mês e ano e ter pon-
se aplicava a tomar seus discípulos tos de referência para tudo o que se
capazes de bastar-se a si mesmos em faça na noite, no mês ou no ano.
suas respectivas funções. De quantos Acrescentava ser fácil aprender estes
homens tenho conhecido, nenhum pontos com os caçadores noturnos,
como ele se daria ao trabalho de pilotos e todos aqueles que têm inte-
conhecer as qualidades de seus amigos. resse em sabê-los. Quanto à astrono- 5

Tudo o que sabia convír ao homem mia e às indagações tangentes aos glo-
perfeito e que ele ·próprio conhecesse, bos que não consoam com a rotação
apressava-se a ensinar-lhes, e, para do nosso céu, a saber, os astros erra-
fazê-los aprender o que ignorava, re- bundos e sem regra, sua distância da
metia-os a mestres competentes. Ensi- Terra, revoluções e origem, reprova-
nava-lhes também até que ponto deve va-as energicamente, dizendo nenhuma
o homem bem educado versar-se em utilidade ver em tais especulações.
cada ciência. Assim, dizia dever apren- Não era estranho a esses conheci-
der-se de geometria o necessário para, mentos, mas repetia que podem consu-
em caso de precisão, medir-se exata- mir a vida de um homem e apartá-lo de
mente um terreno que se queira com- um sem número de estudos úteis. Em
prar, vender, dividir ou lavrar. O que é geral interdizia o preocupar-se excessi-
tão fácil - acrescentava - que por vamente dos corpos celestes e das leis
pouco que se dedique à agrimensura segundo as quais os dirige a divindade.
pode conhecer-se a grandeza da terra e Havia esses segredos por impene-
a maneira de medi-la. Mas que se tráveis aos homens e considerava ofen-
levasse o estudp da geometria aos pro- sa aos deuses sondar os mistérios que
blemas mais difíceis, eis o que desapro- não lhes aprouve revelar-nos. Aditava
vava: dizia não ver a utilidade disso. que, enfronhando-se em tais especula-
Não que os ignorasse, mas achava que ções, corria-se o risco de perder a
a perquisição de tais problemas pode razão, como a perdera Anaxágoras
consumir a vida de um homem e des- com suas cerebrações para explicar os
viá-lo de um sem número de outros mecanismos divinos. De feito, quando 1

estudos úteis. Recomendava aprender- pretendia que o Sol não passa de fogo
162 XENOFONTE

se esquecia Anaxágoras que os homens úteis. Instava-os vivamente a não des- 9

olham facilmente o fogo, enquanto não cuidarem da saúde, consultarem os


podem olhar o Sol de frente, além de entendidos sobre o regime que deviam
os raios do Sol escurecerem a pele, o seguir, estudarem eles próprios durante
que não faz o fogo. Esquecia-se ser o. todo o curso da vida quais os alimen-
calor do Sol necessário à vida e ao tos, bebidas e exercícios que melhor
crescimento das produções da terra, ao lhes convinham e como usá-los para
passo que o do fogo as mata. Quando gozar de perfeita saúde. Afirmava que
dizia ser o Sol uma pedra inflamada
difícil seria a homem avezado a estu-
ignorava que a pedra, exposta ao fogo,
dar-se assirp encontrar médico que me-
não produz chama nem lhe resiste
muito tempo, de passo-. que o Sol é de lhor qµe ele discernisse o que lhe con-
.todos os tempos o ma.is .brilhante dos vinha à saúde. Se alguém queria 10

corpos... Aconselhavi o estudo· dos nú- elevar-se acima dos conheim~ts


meros.- Mas, como para as outras ciên- humanos, aconselhava-lhe vacar à adi-
cias, recomendava não perder-se em vinhação, assegurando que, quando se
indagações vãs e examinava e discutia sabe por que sinais dão os deuses a
com seus discípulos até que ponto conhecer ao homem sua vontade, ja-
todos os conhecimentos podem ser mais se carece de suas advertências.
CAPITULO VIII

Se se acreditar que a asserção de Só- Vou referir o que ouvi da boca de


crates relativa ao demônio que o Hermógenes, filho de Hipônico. Já
advertia do que devia ou não fazer cai Meleto fizera sua acusação. Vendo Só-
diante da condenação capital pronun- crates discorrer sobre tudo menos
ciada por seus juízes e o convence de sobre o processo, disse-lhe Hermó-
embuste no que respeita esse gênio genes que devia pensar em sua apolo-
familiar, que se reflita nisto: a uma, gia.
Sócrates ia assaz avançado em anos Respondeu-lhe Sócrates:
para não ter mais que pouquíssimo - Não te parece que lhe consagrei
tempo de vida; a outra, não perdeu toda a minha vida?
senão o trato mais penoso da existên- -, Perguntando-lhe Hermógenes de
eia, o do ocaso do espírito .. A ele que maneira, disse-lhe Sócrates que,
renunciando demonstrou todo o vigor vivendo sempre a considerar o que seja
de sua alma, cobrindo-se de glória justo ou injusto, praticando a justiça e
tanto pela verdade, despejo e justiça de evitando a iniqüidade, cria haver pre-
sua defesa quanto pela doçura e cora- parado a mais bela apologia.
gem com que recebeu a sentença ·de · Tomou Hermóg·enes:
morte. É opinião unânime que, ao que -.- Não vês, Sócrates, que, choca- .5

haja memória, homem nenhum enfren- dos com a defesa, fizeram os juízes de
tou a morte com mais valor que ele. Atenas morrer muitos inocentes, assim
Foi obrigado a viver ainda trinta dias como absolveram muitos culpados?
após o julgamento, porque precisa- - Tentei, Hermógenes, preparar
mente nesse mês se realizavam as fes- uma apologia para apresentar a meus
tas de Delos e proíbe a lei executar juízes, porém a tanto se opôs meu
qualquer condenado antes do regresso demônio.
da teoria délia 1 4 • Como até então vive- -·- Espanta-me o que dizes.
ra, durante todo esse tempo viveu sob - Por que, se julgam os deuses
os olhos do~ arµigos. Já granjeara mais vantajoso para mim deixar a vida
admiração pouco comum pela calma e desde jft? Não sabes que, até o presen-
serenidade de sua vida. E qual a morte· te, humano algum viveu melhor e mais
mais bela que a su~? Haverá morte ditosamente que eu? Parece-.me não
mais bela que a do homem que melhor
saiba morrer? Haverá morte mais feliz 1 4 Teoria délia: era a delegação das cidades gregas
que a mais bela? Haverá morte mais às festas solenes no templo de· Apolo de Delos. (N.
grata aos deuses que a mais feliz? do E.)
164 XENOFONTE

poder viver-se melhor que diligen- ou vítimas da ·injustiça. Estou certo


ciando fazer-se melhor; nem mais dito- _ que, morrendo hoje, os sentimentos
sarnente que sentindo tomar-se real- que inspirarei aos homens não serão os
mente melhor. Este efeito tenho-o até mesmos que inspirarão os que me
aqui experimentado em mim mesmo, matam. Render-me-ão, tenho certeza,
vivendo entre os outros homens e a o testemunho de que nunca fiz mal a
eles comparando-me. Nunca tive de ninguém, e, longe de corromper meus
mim próprio outra opinião, e esta opi- amigos, sempre forcejei por tomá-los
nião perfilham meus amigos, não por melhores.
gostarem de mim (se assim fosse todos ·Eis o teor das palestras de Sócrates /1

diriam 6 mesmo daqueles que esti- com Hermógenes e outros. Dentre


mam), mas por verem que em :rríe quantos o conheceram, todos os que
freqüentando se tomavam melhores. amam a virtude não cessam de lamen-
Se vivesse mais, seria forçosamente tá-lo qual o melhor auxiliar à prática
obrigado a pagar meu tributo à velhi-- do. bem. Quanto a mim, que o vi tal
ce. Veria e ouviria menos, a inteli- qual o pintei: piedoso, de nada fazer
gência se me turbaria, mais custoso sem o assentimento dos deuses; justo,
ser-me-ia aprender, mais fácil esquecer de nunca por nunca fazer o menor mal
e assistiria ao definhamento de todas a ninguém, ao contrário prestar os
as minhas prerrogativas. Se não tivesse maiores serviços aos que o freqüen-
o sentimento de todas essas perdas, tavam; morigerado, de jamais preferir
viver já não seria viver. Se o tivesse, o agradável ao honesto; prudente, de
como não se me tornaria a vida triste e nunca enganar-se na apreciação do
desgraçada? Morrendo injustamente, a bem e do mal, capaz de penetrar todas
vergonha cairá sobre os que injusta- estas noções, explicá-las e defin-la~,
mente me mataram: se a injustiça: é hábil no julgar os homens, apontar-
vergonhosa, como não seria vergo- lhes suas faltas, encaminhá-los à virtu-
nhoso um ato injusto? A mim, qual o de e ao bem - figurava-se-me fadado
opróbrio que me pesará de não me a ser o melhor e o mais ditoso dos
terem reconhecido nem feito justiça? humanos. Se alguém houver que comi-
'º Vejo que a reputação dos que me pre- go não concorde:, compare o que foi
cederam passa à posteridade muito Sócrates com o que sãõ os outros ho-
diferente, segundo tenham sido autores mens e julgue!
. ;

·-1
·'~-j
:~;}-'·1

.
XENOFONTE

APOLOGIA
DE SÓCRATES

Tradução de LÍBERO RANGEL


I

Dentre os fatos concernentes a Só- - Por duas vezes - dissera Só-


crates, um há que me pareceu digno de crates - tentei preparar uma apolo-
transmitir-se à memória: sua determi- gia, porém, a tanto se opôs meu
nação, quando submetido a julga- demônio.
mento, no tangente a sua apologia e Estranhando-lhe Hermógenes a lin-
sua morte. Outros, é verdade, trataram guagem, respondera Sócrates:
do assunto e disseram da nobre altivez - Por qu.e te espantas, se julgam s
de sua linguagem, de sorte que não há os deuses mais vantajoso para mim
questionar este ponto. Mas por que Só- deixar a vida desde já? Não sabes que,
crates preferiu a morte, eis o que não até o presente, humano algum viveu
fizeram ver claramente, parecendo melhor que eu? É-me agradável ter
haver certa desrazão na altura de suas vivido toda a minha vida na pie-
palavras. Porém Hermógenes, filho de dade e na justiça. E, experimentando
Hipônico e amigo de Sócrates, deu a viva admiração de mim próprio,
seu respeito pormenores que mostram verifiquei que os mesmos sentimentos
que a altura de sua linguagem se acor- nutriam para comigo todos os
dava plenamente com a de suas idéias. meus amigos. Mas já agora, se
Contava que, vendo-o discorrer sobre for além, sei que terei forçosamente
assuntos completamente alheios a seu de pagar meu tributo à velhice. A vista
processo, lhe dissera: se me enfraquecerá, ouvirei menos,
- Não deverias, Sócrates, pensar minha inteligência se turbará e esque-
em tua apologia? cerei mais depressa o que aprender. Se
Ao que lhe respondeu Sócrates: perceber a perda de minhas faculdades
- Não te parece que lhe consagrei e sentir-me mal comigo mesmo, como
toda a minha vida? aprazer-me da vida? Talvez seja por
Perguntando-lhe Hermógenes de benevolência que me concede a deida-
que maneira: de, como dom especial; terminar a vida
- Vivendo sem cometer a menor não só na época mais conveniente
injustiça, o que é, a meu ver, o melhor como do modo menos penoso. Porque,
meio de preparar uma defesa. sendo condenado hoje, certo ser-me-á
Tomara Hermógenes: permitido firmar pelo gênero de morte
- Não vês que, chocados com a que os homens que se ocuparam desta
defesa, fizeram os juízes de Atenas questão consideram a mais suave, a
morrer muitos inocentes e absolveram que menos faz padecer tanto o moritu-
muitos culpados cuja linguagem lhes ro, como os seus amigos. Verdadeira-
despertara a piedade ou lhes lisonjeara mente digno de inveja não é morrer
os ouvidos? sem deixar nenhuma impressão penosa
170 XENOFONTE

e desagradável no espírito· dos assisten- gem todas as enfermidades. Por Júpi- 9

tes, são de corpo, alma em paz? ter ! Hermógenes, sequer cogitarei


Razão; pois, tiveram os deuses dissua- disso. E se, expondo sem refolhos
dindo-me de preparar minha defesa, todas as vantagens que creio haver dos
quando todos vós acháveis que deveria deuses e dos homens, bem como a opi-
por todos os meios buscar subterfú- nião que faço de mim mesmo, tiver
gios. Fizesse-o eu, e teria refugido o pesar aos juízes, preferirei morrer a
morrer hoje para, sem nenhum conso- mendigar servilmente a vida e fazer-me
lo, vir a findar atormentado de doenças outorgar uma existência mil vezes pior
ou então de velhice, para a qual ver- que a morte.

II

10 Assim resolvido, atesta Hermóge- linguagem mais veraz e mais piedosa


nes, ·quando seus inimigos o acusaram que os que atrilbuem às aves o poder
de não reconhecer os deuses do Esta- dos deuses. A prova de que não minto
do, introduzir extravagâncias demo- contra a divindade, ei-la: jamais, ao
níacas e corromper os jovens, Sócrates anunciar a bom número de amigos os
adiantou-se e disse: desígnios do deus, fu:i apanhado em de-
11 - O que mais me surpreende no lito de impostura.
acusatório de Meleto, cidadãos, é afir- Em ouvindo tais palavras os juízes u
mar ele que eu não reconheça os deu- murmuraram, uns de incrédulo, outros
ses do Estado, ·quando todos vós, Me- de invejoso das preferências que lhe
leto convosco, se o quis, tives~ concediam os deuses. Continuou Só-
ocasião de ver-me sacrificar nas festas crates:
12 solenes e altares públicos. E ·como pre- - Ouvi mais isto, a fim de que os
tender que eu introduza extravag&ricias que o desejam tenham mais um motivo
demoníacas, quando digo advertir-me para não crer no favor com que me
a voz de um deus do que deva fazer? honraram as divindades. Um dia em
Não se guiam por vozes os que tiram que, em presem;a de· numerosa assis-
presságios do canto das aves e das tência, Querefonte interrogava a meu
palavras dos homens? Ninguém nega- respeito o oráculo de Delfos, respon-
rá seja voz o trovão, e até o maior dos deu Apolo inexistir homem mais sen-
augúrios. Pela voz não manifesta a sato, independente, justo e sábio que
sacerdotisa de Pito, na tripode, a von- eu. Como era de esperar, a estas pala- 1s
13 tade do deus? Que esse deus possui o vras os juízes fizeram ouvir murmúrio
conhecimento do futuro e o revela a maior ainda.
quem lhe apraz, eis o que digo e comi- Prosseguiu Sócrates: - Entretanto,
go dizem e pensam todos. Somente que cidadãos, em termos mais magníficos
a isso chamam augúrios, vozes, símbo.: ainda se expressou o deús em relação a
los, presságios, eu lhe chamo demônio. Licurgo, o legislador dos lacedemô-
Com esta denominação creio usar de nios. É fama que, no momento em que
APOLOGIA DE SÓCRATES 171

Licurgo entrava no templo, disse-lhe a. trabalhador, preguiçoso ou escravo de


divindade: "Chamar-te-ei .homem ou outra qualquer má paixãó?
deus?" A mim não me comparou a -- Sim, por Júpiter ! - disse Mele- 20

deus, mas disse que em muito sobre- to · -.- conheço a quem seduziste a
pujo os outros homens. Não creiais . ponto de depositarem mais confümça
levianamente o que disse a deidade: em frque nos próprios pais!
pesai bem cada uma de suas palavras. -.- . Concordo -.· respondeu Sócra-
16 Sabeis de homem menos escravo dos tes - no que respeita à instrução, por-
apetites do corpo que eu? Mais inde~ que sabem que meditei profundamente
pendente que eu, que de ninguém· rece- essa matéria. Quando se trata da
bo presentes nem salário? Quem pode- saúde, os homens têm mais êonfiança
reis, em boa fé, considerar mais justo nos médicos que em seus pais.. Nos
que_ um homem tão acomodado com o congressos, prefere. a .generalidade dos
que tenha que jamais precise do atenienses ater-se aos que falam com
alheio? Quanto à sabedoria, como por mais sabedoria àqueles a que se acham
outro acima de mim, que .desde que unidos pelos laços do sangue. Com
comecei a compreender a língua j a- efeito, não escolheis para estrategos de
mais cessei de inquirir e aprender tudo preferência a vossos pais e irmãos e,
17 o que podia de bem? A prova de que por Júpiter! de preferência a vós mes-
meu labor não foi estéril, não a vedes mos, aqueles que sabem mais experi-
na preferência que a meu trato dão mentados na arte da guerra?
numerosos concidadãos e estrapgeiros - É o uso, Sócrates - replicou 21

amigos da virtude? Por que ·motivo Meleto -·- e esse uso tem sua utilidade.
tanta gente, saiba-me embora demasia- - Pois ·bem - ripostou Sócrates
damente pobre para retribuir, faz tim- -·não te parece estranho que em tudo
bre de enviar-me presentes? Ninguém os melhores sejam considerados não
poderá dizer que lhe haja pedido um somente iguais como superiores aos
servi_ço: entanto qual o motivo de tanta outros, enquanto a mim por causà da
1s gente declarar dever-me gratidão? Por superioridade que me concedem alguns
que, durante o sítio da cidade, jeremia- no tocante ao maior dos bens huma-
vam meus concidadãos sua miséria, nos, a instrução, me carregues com
enquanto eu não padecia mais priva- uma acusação capital?
ções que nos dias de maior prosperi- É .de crer que tanto Sócrates como 22

dade da República?· Por que, quando aqueles· de seus amigos que falaram em
os outros compram a aitos preços, no sua d~fesa dissessem ainda muitas ou-
mercado, fruo gratuitamente os de.lei- tras coisas. Mas não me propus desfiar
tes do espírito, mais purds que os seus? todos os pormenores. do processo; bas-
Se nada podeis negar do que acabo de ta-me ter feito ver que Sócrates tomara
dizer, como não ter eu àireitos legíti- por ponto demonstrar que jamais fora
mos ao beneplácito dos tleuses e dos ímpio para com os deuses nem injusto
19 homens? Entretanto dizes, Meleto, que para com os homens, mas que longe 2J

assim procedendo corrompo a juventu.:. dele pensar rebaixai-se a súplicas para


de? Sabemos, sem dúvida, em que con- escapar à morte: ao contrário, desde
siste a corrupção. Ora, dize-me, conhe- logo se persuadira haver chegado a
ces uih único jovem tomado ímpio; de hora de morrer. Estes sentimentos me-
moderado, violento; de poupado, pró- lhor se patentearam ao pronunciar-se a
digo; de sóbrio, dado ~5 vinho; de condenação. Primeiro convidado a
172 XENOFONTE

fixar a taxa da multa, declinou-o e não nuncia a morte, como a profanação


o permitiu aos amigos, dizendo-lhes dos templos, o roubo com efração, a
que tal fazer seria confessar-se culpa- venda de homens livres, a traição à pá-
do. Depois, querendo seus amigos tria, meus próprios acusadores não
subtraí-lo à morte, recusou-o e, chas- ousam dizer que os haja cometido.
queando, perguntou-lhes se conheciam Surpreso, pois, pergunto a mim mesmo
fora da Ática algu.m lugar inacessível à qual o crime por que me condenais à
morte. morte. Nem por morrer injustamente 26

24 Enfim, proferida a sentença, disse: devo ter-me em menor estima: não


- Cidadãos! Tanto aqueles dentre sobre mim, mas sobre os que me con-
vós que induzistes as testemunhas a denam cairá a ignomínia. Demais,
perjurarem, levantando falso testemu- consolo-me com Palamedes que findou
nho contra mim, quanto os que vos quase como eu. Até hoje ainda lhe can-
deixastes subornar, deveis, de força, tam hinos mais magníficos que a Ulis-
sentir-vos culpados de grande impie- ses, que o fez perecer injustamente.
dade e injustiça. Mas eu, por que have- Estou certo que tanto quanto o passa-
do, me renderá o porvir o testemunho
ria de crer-me empequenecido se nada
de que nunca fiz mal a ninguém, ja-
se comprovou do que me acoimam?
mais tomei ninguém mais vicioso, mas
Jamais ofereci sacrificios a outras servia os que comigo privavam ensi-
divindades que não Júpiter, Juno e os nando-lhes sem retribuição tudo o que
25 demais deuses. Nunca jurei senão por podia de bem.
eles. Jamais nomeei outras deidades. Após assim falar retirou-se sem que 21

Quanto aos jovens, seria corrompê-los, nada lhe desmentisse a linguagem:


habituá-los à paciência e à frugali- olhos, atitude, andar conservavam a
dade? Atos contra os quais a lei pro- mesma serenidade.

III

Reparando que os que· o acompa- senão males posso esperar, minha


nhavam se desfaziam em lágrimas, morte deve ser motivo de alegria para
disse-lhes: todos vós.
- Que é isto ! Agora é que achais Acompanhava-o certo Apolodoro, · .?J'
de chorar? Não sabeis há muito que no alma simples e extremamente afei-
instante mesmo de meu· nascimento çoada a Sócrates, que lhe disse:
pronunciara a natureza a sentença de - Não posso suportar, Sócrates)
minha morte? Se morresse antes da ver-te mor.rer injustamente.
idade, rodeado de todos os .gozos, certo Então se diz que, passando-lhe de
seria o caso de nos afligirmos tanto eu leve a mão pela cabeça, Sócrates
como os que me prezam. Mas se chego respondeu:
ao termo da carreira, quando nada - Como ! Meu caro Apolodoro
!
APOLOGIA DE SÓCRATES 173

então preferias ver-me morrer justa- quero fazer também uma predição.
mente? Faz tempo, encontrei-me alguns mo-
E ao mesmo tempo sorria. mentos com o filho de Ânito, e pare-
29 É voz ainda que, vendo passar ceu-me não carecer de energia de ·cará-
Ânito, disse: ter. Pois predigo que não permanecerá
- Vejam só como vai ufano aquele na condição servil em que o colocou o
homem: crê ter realizado bela façanha pai. Mas, por falta de guia esclarecido,
em me matando, por haver-lhe eu dito será presa de alguma paixão vergo-
certo dia que, uma vez que fora levado nhosa e se esbarrocará na perversi-
dade.
às primeiras dignidades da República,
E assim f alantj.o Sócrates não se J1
não ficava bem elevar o filho ao mister
enganou. Avezando~s ao vinho, o
de tanoeiro. Miserável! Parece ignorar rapaz não parava de beber dia e noite e
que, de nós dois, verdadeiro vencedor é acabou incapacitado de fazer o que
aquele que durante toda a vida não quer que fosse de útil à pátria, aos ami-
cessou de praticar ações úteis e hones- gos e a si mesmo. Quanto a Ânito, a
Jo tas. E já que Homero atribui a alguns má educação que dera ao filho e ·sua
de seus heróis, à hora da morte, o própria ignorância tomaram, até hoje
conhecimento antecipado do futuro, que já não vive, odiosa sua lembrança.

IV

32 À verdade, falando de si mesmo recuara diante dos outros bens, assim


com tam.anha sobranceria perante o não fraquejou à barba da morte e sere-
tribunal, Sócrates ateou o ciúme e con- namente a recebeu e sofreu. Quando 34
tiçou a disposição em que se achavam reflito na sabedoria e grandeza de alma
os juízes a condená-lo. Mas estou que,
deste homem, não posso deixar . de
com afortunado destino, o amercearam
acordar-lhe a memória e a esta lem-
os deuses. Deixou da vida a parte mais
penosa e morreu a morte menos dolo- brança juntar meus elogios. E se dentre
JJ rosa. Ademais, pôs plenamente de os enamorados da virtude alguém hou-
manifesto seu vigor de ânimo. Reco- ver que haja privado com homem mais
nhecendo ser-lhe mais vantajoso mor- prestante que Sócrates, reputo-o o
rer que viver, assim como jamais mais venturoso dos mortais.
ARISTóFANES

AS NUVENS

Tradução e notas de GILDA MARIA REALE STARZYNSKI


PERSONAGENS

ESTREPSÍADES
FIDÍPIDES
EscRAvo de Estrepsíades
DISCÍPULO de Sócrates
SÓCRATES
CoRo das Nuvens
Raciocínio JusTo
·Raciocínio INJUSTO
CREDOR 1

CREDOR II
Dois DISCÍPULOS de Sócrates
Cenário - É noite. Uma praça; no nem esse "belo" rapaz que aí está não
centro uma estátua de Hermes. Duas acorda durante a noite, mas fica pei- 10

casas; uma, paupérrima, de porta dando, encolhido debaixo de cinco


fechada, é a de Sócrates. Na outra, de mantas . . . (Volta-se para os especta-
portas abertas, vêem-se duas camas. dores.) Com sua licença, vamos roncar
Numa, o velho Estrepsíades se agita; bem cobertos ... (Deita-se. Pausa. De
na outra, um rapaz dOrme profunda- repente, salta do leito, jogando longe
mente, coberto até as orelhas. Armá- os cobertores.) Pobre de mim, não
rios, bancos, lamparinas, vasos, etc. A posso dormir, mordido pela despesa,
um canto dois escravos roncam. Ouve- pela estrebaria e pelas dívidas! Tudo
se o canto do galo. por causa desse filho aí; e ele usa cabe-
los compridos, cavalga, guia uma pare- 1s
lha e sonha com cavalos. . . Eu, eu
ESTREPSÍADES morro, vendo que a Lua vai carre-
(Senta-se no leito e começa gando o dia vinte; pois os juros cor-
a resmungar.) 1 rem ... 3 (Desperta um escravo.) Es-
cravo, acenda a lamparina e traga-me
Ai, ai! Ô Zeus soberano! Como são
o livro de contas para eu ver a quantas
compridas as noites! Uma coisa inter-
pessoas estou devendo e calcular os 20
minável ! . . . Nunca mais será dia? E,
juros. (O escravo traz um livro, que
no entanto, já faz muito tempo que
Estrepsíades consulta com cuidado.)
ouvi o canto do galo. . . Os escravos
Vamos ver o que é que devo? Doze
s roncam.·. . Mas não roncariam nos
minas a Pásias. Mas por que doze
tempos de outrora. . . Maldiçoada
minas a Pásias? Para que as usei?
guerra, e por muitas razões, pois não (Pausa.) Foi quando comprei o cavalo
posso nem castigar os meus escra-
de raça ... 4 Ai de mim, antes tivesse
vos ... 2 (Apontando para o filho.) E
3
O mês era lunar, dividido em três décadas. O
1 Prólogo, vv. 1.:274, velho teme os dias apÓs o dia vinte, início da ter-
2
No início da Guerra do Peloponeso (431 a.C.), ceira década, porque no fim do mês se faziam os
na perspectiva da invasão da Atica pelas tropas acertos de juros ou se saldavam as dívidas. Cf. vv.
lacedemônias, muitos proprietários deixaram suas 1134-1222.
terras, refugiando-se dentro dos Grandes Muros. Os 4
Lit. o "koppatias", isto é, o cavalo marcado com
trabalhos nos campos foram abandonados e os a letra "koppa". Era hábito marcar os cavalos de
escravos, que deviam acordar com o canto do galo, raça com letras do alfabeto, ou para indicar-lhes o
podiam dormir sossegados. Os senhores absti- preço ou para assinalar vitórias. Assim também
nham-se de castigá-los e de enviá-los a trabalhar havia o cavalo marcado com a letra "san". Cf. v.
fora da cidade, temendo que desertassem. Apesar 122. Estrepsíades que não entende nada de equita-
disso, as deserções eram freqüentes. Cav., vv. 20 ss.; ção emprega a esmo as palavras que ouve nas con-
Tuc. II, 2, 27. versas do filho. Cf. vv. 120 ss. ·
180 ARISTÓFANES

25 roçado o olho com uma pedra ... 5


Morde-me um meirinho 8 , saído das
cobertas ...
FIDÍPIDES
(Mexe-se no leito e sonha FIDÍPIDES
em voz alta) Homem, deixe-me dormir um
Filão, você está trapaceando! Siga a pouco!
sua raia .. ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES (Acena para o filho, mono-
É esse, é esse mesmo o mal que logando)
acaba comigo ! Até quando dorme, ele Então durma~ mas quanto a essas
sonha com cavalos ... dívidas, fique sabendo que se voltarão 40

todas contra a sua cabeça ...


FIDÍPIDES Irra! Antes tivesse morrido desgra-
Quantas carreiras correm os carros çadamente a casamenteira gue me deu
30 de guerra? ... 6 fumos de casar com a mãe dele! Eu le-
ESTREPSÍADES vava uma vida rústica, agradabi-
A mim, o seu pai, é que você faz líssima, embolorado, sujo e à vontade,
correr por muitas carreiras . . . Mas regurgitando de abelhas, de rebanhos e
então, que dívida me espera depois de de bagaços de azeitona ... 9 Depois, 45

Pásias? Três minas a Amínias por uma casei-me com uma sobrinha de Méga-
boleiazinha e um par de rodas . cles, filho de M~gacles 1 0 ; eu um cam-

ponês, ela, da cidade, orgulhosa, de.:.


FIDÍPIDES lambida, uma perfeita "grã-fina" 11 .
Leve o cavalo para a cocheira, de- No dia do casamento, quando me dei-
. pois de fazê-lo espojar-se ... 7 tei ao seu lado:, eu cheirava a vinho 50

novo, cirandas de figos, lã, fartura; ela,


ESTREPSÍADES por sua vez, rescendia a perfume, aça-
Mas, meu caro, a mim pelo menos frão, beijos de língua, despesas, gulodi-
você Jª me despojou dos meus
bens! ... Já fui condenado a pagar as 8
Lit. O :'demarco", a quem competia convocar as
dívidas, e outros credores afirmam que assembléias, zelar pelo patrimônio do demo conser-
35 vão processar-me por causa dos juros ! var os livros de registros e cadastros e alé~ disso
citar os devedores que não liquidavam ~s dívidas n~
prazo estipulado.
FIDÍPIDES 9
Estrepsíades lembra-se com saudades da vida dos
(Acorda, impaciente) campos, sem peias e farta. Aristófanes gostava de
idealizar a vida simples do meio rural, em contraste
Verdadeiramente, meu pai, por que com os gastos e defeitos das cidades, mas, apesar
disso, os seus camponeses são retratados como indi-
você se aborrece e se mexe a noite víduos broncos, sujos e desleixados, o que corres-
inteira? ponde bem aos sentimentos dos atenienses do século
V a. C. Cf. Acar., vv. 32 ss.; Cav., vv. 805 ss.
ESTREPSÍADES 10
Não se trata de nenhum personagem liistórico.
O poeta procura fazer graça, citando um nome
comulll na importan·~ família dos Alcmeônidas, a
5
Um dos recursos cômicos de Aristófanes são os .que pertencia o próprio Péricles pelo lado materno.
trocadilhos, que procuramos adaptar na medida do Foram célebres o Még;acles que chefiou a expedição
possível. Assim aqui "raça/roçar" e adiante contra a revolta de Cilão (612 a. C.) e o filho do
"espojar-se/despojar". Vv. 33-34. legislador Clístenes, várias vezes vencedor em jogos
6
Carros que concorriam nos jogos públicos, arma- atléticos. Cf. v. 70; Pind., Pit., VU.
dos como para a guerra. 11 Lit. "toda encesirada" - ·referencia a Cesira,
7 Depois da corrida, levavam-se os cavalos· para
mulher muito conhecida da família dos Alcmeôni-
secar o suor, fazendo-os espojarem-se na areia, das, considerada o protótipo da grande dama, rica,
antes de recolhê-los. Cf. Xen., Econ., XI, 18. elegante e pretensiosa Cf. v. 800;Acar., v. 614. ·
AS NUVENS 181

ces e outras luxúrias de Afrodite ... 1 2 lhe ajuntava um "hipo": Xantipo,


Por certo não direi que era preguiçosa, Caripo, ou Calípides. Eu escolhia o 65
mas esbanjava ... (Com a mão debai- nome do avô, Fidônides. E discu-
xo do manto faz um gesto obsceno.) E tíamos sem cessar ! Depois, com o
55 eu, mostrava-lhe este manto aqui, e, a tempo, fizemos as pazes e, de comum
-propósito, costumava dizer-lhe: "Mu- acordo, escolhemos Fidípides. Com o
lher, você desperdiça muita lã ... " filho ao colo, ela o acalentava: "Ah,
ESCRAVO quando você for grande e conduzir um
(Trazendo a lamparina quase apagada.) carro até a cidade, como Mégacles, 10

com a túnica de vencedor!" ... E eu


Não temos mais óleo na lampari- dizia: "Não! Ah, quando você condu-
na ... zir as cabras, vindo do monte Feleu 1 5 ,
ESTREPSÍADES como o seu pai, coberto com uma
Ai! Por que você me a~endu essa pele!". . . Mas ele nem sequer deu
lamparina bebedora? 13 Vamos, venha atenção às minhas palavras e derra-
cá apanhar. ; . mou uma "cavalite" sobre ·os meus
ESCRAVO bens . . . Pois agora, pensando a noite
(Lamentando-se.) inteira sobre um caminho, achei uma
única vereda, diabolicamente excelen- 15
Mas por que vou apanhar?
te. Se eu persuadir esse daí a segui-la,
ESTREPSÍADES estarei salvo! Mas antes quero acor-
Porque pôs na lamparina um desses dá-lo. Então, como é que poderia acor-
pavios muito grossos ... dá-lo de maneira mais suave? (Vai
(O escravo sai. Estrepsíades para junto do filho.) Fidípides !? Fidi-
continua o monólogo.) pidesinho? !
60 Depois disso, quando nós dois tive- FIDÍPIDES
mos esse filho aí (aponta o filho), eu e (Meio acordado.)
minha boa mulher, desde logo brigá- 80
Que é, meu pai?
vamos por causa do nome ... 1 4 Ela
ESTREPSÍADES
12 Lit. "Colíada e Genetílide", dois epítetos de
Afrodite que lembram o membro viril e a união Beije-me e dê-me a su_a mão direita.
sexual, sugerindo, portanto, excessos de sensuali-
.d ade, o que explica o gesto do velho e a exclamação FIDÍPIDES
"Mulher, você desperdiça muita lã", v. 55. Ei-la. Que há?
1 3 Durante a Guerra do Peloponeso o preço do

óleo subira muito, pois muitas oliveiras haviam sido ESTREPSÍADES


cortadas pelos invasores. Além disso, era impos-
sível a colheita da azeitona em regiões circunvizi- Diga~me, você gosta de mim?
nhas. Por economia, evitavam-se as lamparinas de
pavio grosso, que consumiam muito óleo. FIDÍPIDES
1 4 Em geral, o filho mais velho recebia o nome do
Sim, por este Posidão, o deus hípi-
avô paterno. As famílias nobres gostavam de dar
aos filhos nomes compostos. Eram comuns os com-
co 1 6

postos em que intervinha o elemento "hippos", ou


para celebrar alguma vitória dos antepassados ou
para expressar esperanças no futuro da criança, 1 5 Região da Ática, cheia de pedras. Com o tempo,

tanto mais que havia, logicamente, uma associação o nome se tomou comum, passando a designar
de idéias entre "hippos" (cavalo) e "hippeis" qualquer terreno escarpado, onde se apascentavam
(cavaleiros), os nobres que lutavam na Cavalaria. O cabras. ·
nome do pai de Estrepsíades sugere poupança, eco- 1 6 A "jeunesse dorée" de Atenas costumava jurar

nomia, em contraste com o luxo e as grandezas dos por Posidão (Netuno), deus inventor e protetor da
Alomeônidas. Quando o casal chega a um acordo equitação. Já no Hino Homérico Posidão aparece
escolhe um nome cômico: Fidípides, "o poupa-ca- com a ampla atribuição de domar cavalos e salvar
valos". navios.
182 ARISTÓFANES

ESTREPSÍADES convencer de que é um abafador 2 0 ,


Não, de modo algum, nem me fale que está ao nosso redor, e nós ...
s5 nesse hípico ! Esse deus .é o causador somos os carvões !2 1 Se a gente lhes
das minhas desgraças! Mas, se por der algum dinheiro, eles ensinam a
acaso você gosta de mim de verdade, vencer com discursos nàs causas justas
do fundo do coração, meu filho, e injustas 2· 2 •
obedeça!
FIDÍPIDES
FIDÍPIDES Mas quem são eles?
Mas precisamente em que devo
ooedecer-lhe? ESTREPSÍADES
Não sei ao certo seu nome 2 3 • 100

ESTREPSÍADES (Solenemente) São pensadores medita-


Mude logo os seus hábitos e vá bundos, gente de bem !
aprender o que eu aconselhar.
FIDÍPIDES
FIDÍPIDES Ah! Já sei, uns coitados! Você está
Então fale, que ordena? falando desses charlatães 2 4 , pálidos e
descalços 2 5 , entre os quais o funesto
ESTREPSÍADES
Sócrates e Querefonte ... 2 6
90 E você obedecerá um pouquinho?
2 ° Comparação ora atribuída ao filósofo Bipão,
FIDÍPEDES cf. Cratino, Onividentes (Panoptai), ora ao matemá-
Sim, por Dioniso 1 7
, obedecerei. tico Metão, Aves, v. 1001, ora a outros. Provável
lugar-comum na crítica da comédia antiga aos que
ESTREPSÍADES se preocupavam com assuntos de astronomia.
21
Se o céu envolve a terra como um abafador de
Olhe ali (aponta a casa de Sócrates). brasas, riós, os homens, somos os carvões ! . . . A ·
Você está vendo aquela portinha e confusão se justifica, porque filósofos havia, como
aquele casebre? 1 8 Xenófanes, que julgavam que os astros brilhavam
como carvões. Cf. Aécio, II, 13, 14; (Diels-Kranz I,
FIDÍPIDES 124,30).
22
Era notória a venal.idade dos sofistas, principal-
Estou vendo. Papai, de fato o que é mente de Protágoras, que se tomou famoso pelas
aquilo? importâncias recebidas de Evatlo. Cf. Plat., Prot.,
328-B, 348-E; Apol., 19-E. Todavia, Sócrates .não
ESTREPSÍADES aceitava nenhum pagamento e censurava os que o
faziam.
(Declamando) 23 Tanto o pai como o filho e o público sabem

perfeitamente de quem se trata, todavia o autor quer


De almas sábias é aquilo um criar um ambiente de expectativa cômica, enquanto
95 "pensatório" ... 1 9 Lá moram homens o velho procura captar as simpatias do filho, citan-
que, quando falam do céu, querem do os "kaloi kagathoi'', isto é, os nobres, "gente de
bem". Aliás, muitos amigos de Sócrates pertenciam
à aristocracia.
1 1 Atendendo aos protestos do pai, o rapaz invoca 2 4 Os sofistas eram ridicularizados porque se pro-

o deus Dioniso, muito estimado pelo povo. punham a discorrer sobre qualquer assunto, inclu-
1 8 Aristófanes ridiculariza a pobreza e a insignifi- sive sobre as coisas que desconheciam. Eup., fr.
cância da casa de Sócrates. O próprio Sócrates ava- 159. Aliás, a crítica da comédia coincidia com a
liava toda a sua fortuna, inclusive a casa, em cinco constante advertência de Sócrates contra os "que
minas (500 dracmas). Cf. Xen., Econ., 11, 3. aparentam saber o que: não sabem".
1 9 É evidente a intenção de parodiar o linguajar so- 2 5 Sócrates costumava andar descalço, adotando

lene e complicado dos sofistas: A palavra "psyché" um costume espartano. Plat., Banq., 220-B; Xen.,
(alma) sugere a idéia de "fantasmas e almas do Mem., 1, 6, 2.
outro mundo" e é uma alusão à linguagem socrá- · 2 6 Amigo de inlancia de Sócrates que trouxe de
tica. Cf. Plat., Rep., I, 353 E. De outro lado, Delfos o célebre oráculo que afirmava que Sócrates
"phrontisterion'', que traduzimos por "pensatório'', era o mais sábio dos homens. Vítima constante dos
é palavra. cômica, talvez forjada por Aristófanes. poetas cômicos que llh.e ridicularizavam a palidez,
Depois, o termo perdeu o sentido ridículo e foi chamando-o "morcego", "filho da noite". Vesp.,vv.
empregado por Ésquines para designar a escola de 1408-1412; Aves, v. 1554. Eup.,fr. 155, Crat.,fr..
retórica de Rodes. 201.
AS NUVENS 183

ESTREPSÍADES para fora desta casa . .. para o infer-


105 Eh! silêncio! Não diga tolices! Mas no!
se você se preocupa um pouco com o
pão de seu pai, por favor, renuncie à FIDÍPIDES
equitação e torne-se um deles. Mas meu tio Mégacles não há de
deixar-me ... sem cavalos ... 3 0 Ora, 125

FIDÍPIDES vou entrar ! Você pouco me impor-


Não, por Dioniso, não poderia, nem ta. . . (Fidípides entra. O velho sozi-
que você me desse os faisões de nho encaminha-se para a casa de
Leógoras 2 7 . Sócrates)
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
110 Vá, eu imploro ! Você, a mais queri- Bem, mas não é por ter caído que
da das criaturas, vá aprender! ficarei no chão: .. 3 1 Vou invocar os
deuses e instruir-me eu mesmo, fre-
FIDÍPIDES qüentando o "pensatório". (Pára.)
E que irei aprender para o seu bem? Então. como é que eu, um velho esque-
ESTREPSÍADES cido e bronco aprenderei as sutilezas 130

Dizem que no meio deles os raciocí- das palavras precisas? (Põe-se a


nios são dois: o forte, seja ele qual for, andar.) Devo ir. Por que razão todas
e o fraco 2 8 • Eles afirmam que o segun- essas delongas, e não bato à porta?
do raciocínio, isto é, o fraco, discur- (Afinal, decide-se.) Filho, filhinho!
J/5 sando, vence nas causas mais injus- DISCÍPULO
tas ... Ora, se você me aprender esse (Fala de dentro da casa.)
raciocínio injusto, do d_inheiro que
agora estou devendo por sua culpa, Vá para o inferno! Quem bateu à
dessas dívidas eu não pagaria nem um porta?
óbolo a ninguém ...
ESTREPSÍADES
(Solene e apavorado.)
FIDÍPIDES
Não poderia obedecer-lhe. Pois não O filho de Fidão, Estrepsíades de
120 suportaria olhar para os Cavaleiros, Cicina !3 2
com as minhas cores raspadas .
DISCÍPULO
ESTREPSÍADES (Abre-se o ''pensatório" e
Ah, é assim? Por Deméter, ent.ão sai um discípulo, pálido e
você não há de comer dos meus bens, irritado, deixando a porta
nem você, nem o cavalo de trela, nem o entreaberta.)
puro sangue ... 29 Vou expulsá-lo
Por Zeus, só pode ser um ignorante, 13s

2 7 Pai do orador Andócides, amigo do luxo e da você que deu um pontapé na porta,
boa mesa. assim tão estupidamente, e fez abortar
28 Estrepsíades, como grande parte do povo, enten-
um pensamento já encontrado ... 3 3
de mal o princípio retórico segundo o qual há sem-
pre, em qualquer causa, duas teses contraditórias,
uma fraca e outra forte, e acredita que os sofistas 3 °
Chiste; esperava-se "sem casa".
possam dispor de dois raciocínios, um forte, que 3 1 Expressão da linguagem da palestra. O lutador
tem valor por si mesmo, e o outro fraco, que se deve tentava sempre levantar-se ao ser derrubado, pois se
à habilidade e é reservado às causas injustas. Cf., fosse atirado três vezes ao chão seria eliminado. Cf.
Plat. Pedro, 272-D; Apol., 19-A; Cic., Brot., VIII, Esq., Eum., v. 589 .
3 2 A sucessão de nomes próprios é cômica, pois só
30.
2 9 O cavalo de raça, marcado com a letra "san'', nos tribunais se nomeavam os indivíduos citando os
veja nota, v. 23. nomes do pai e do demo. Cf. Dem., Cor., 54.
184 ARISTÓFANES

ESTREPSÍADES DISCÍPULO
Desculpe-me, eu moro longe, nos De fato,. que: diria você se soubesse
campos. Mas fale-me desse negócio de um outro raciocínio de Sócrates?
que está abortado . . . .
ESTREPSÍADES
DISCÍPULO Qual? Conte-me, eu suplico ... 3 6 155

140. Não é lícito dizê-lo, só aos discípu-


los34 DISCÍPULO
QuerefÓnte de Esfétio perguntou-lhe
ESTREPSIÁDES qual a sua opinião, se os mosquitos
Então fale, coragem! Pois eu aqui cantam pela boca ou pela rabadilha.
vim ao "pensatório" para ser um
ESTREPSÍADES
discípulo ...
E que foi que ele disse a respeito do
DISCÍPULO mosquito?
Vou dizê-lo. Mas deve-se conside-
DISCÍPULO
rá-lo um mistério . . . Há pouco, Só-
Ele dizia que o intestino do mos- 160
crates .interrogava Querefonte sobre
quito é estreito; como é. apertado, o ar
uma pulga. Indagava quantas ve~s ela
passa por ele com violência e se enca-
145 pode saltar o tamanho dos seus pró-
minha diretamente para a rabadilha.
prios pés, porque ela mordeu a sobran-
Ora, como é oco e ligado a esse lugar
celha de Querefonte e pulou para a ca-
· estreito, o buracó ressoa por causa da
beça de Sócrates . . . ·
violência do sopro. 3 7
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES
Então, como foi que ele mediu?
Ah, então o irabisteco do mosquito é 165

DISCÍPULO
uma trombeta! Seja ele três vezes
Com a maior habilidade. Dissolveu bem-aventurado, só por essa
150 cera; depois, tomou a pulga e mergu- "intestigação" ... 3 8 De fato, numa
lhou os seus pés na cera. A seguir, defesa, facilmente seria absolvido
quando a pulga esfriou, ficou com quem conhece .a fundo o intestino dos
umas botinhas à moda pérsica; ele mosquitos ...
descalçou-as e mediu a distância 3 5 • DISCÍPULO
Sim, mas há pouco ele foi despojado
ESTREPSÍADES de um grande pensamento por uma
Ó Zeus soberano, que sutileza de lagartixa ...
pensamento!
ESTREPSÍADES
3 3 O susto provoca um aborto mental, como pode De que maneira? Conte-me. 170
fa:z.ê-lo fisicamente. . . Pilhéria que visa direta-
mente à pessoa de Sócrates, filho da parteir.a Fena- DISCÍPULO
rete, de quem se dizia herdeiro na arte de assistir ao Ele investigava os caminhos da Lua
nascimento de novas idéias (maiêutica). Cf. Plat.,
Teet., 149-A.
3 4 A solenidade da linguagem contrasta com a 3 6
Essas questões deviam ser objeto de discussões
puerilidade dos pensamentos e indagações em curso dos filósofos desse tempo. O próprio Aristóteles
no "pensatório". preocupava-se com a explicação do canto dos inse-
3 5 A pulga é considerada um ser humano, com tos. Ar. Hist. An., 1 Y. 9 ss.
dois pés, em que é possível calçar e descalçar botas. 3 7
• Note-se o tom dogmático de explicação socrá-
É provável..que haja um chiste com o preceito de tica, com suas etapas bem precisas e bem imagina-
Protágoras· "O homem é a medida de todas as das.
coisas". 3 8
Palavra cômica que lembra "investigação".
1

1
AS NUVENS 185

e suas evoluções 3 9 • Então, como esta- DISCÍPULO


va de boca aberta, de noite, olhando Por que você se espanta? Em sua 185

para cima, uma lagartixa cagou lá do opinião, com que se parecem?


alto do teto . . . 4 0
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Com os lacedemônios capturados
Gozado que uma lagartixa tivesse em Pilos 4 3 • Mas por que razão esses
cagado em Sócrates! ... fulanos olham para a terra? 4 4
DISCÍPULO DISCÍPULO
175 Ontem mesmo, à tarde, não tínha- Procuram 6. qrie. está debaixo da
mos o que cear ... terra.
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
Puxa! Então que é que ele mano- Ah, com toda certeza estão procu-
brou para conseguir comida? rando cebolas. . . Então, não procu-
rem mais isso, pois eu sei onde as há
DISCÍPULO
grandes e bonitas. . . Pois esses ou- 190
Espargiu sobre a mesa uma cinza tros, que ·estão fazendo, tão inclina-
fina, dobrou o espeto e, depois, usan- dos?
do-o como um compasso . surripiou
o manto da palestra ... 4 1 DISCÍPULO
Esses sondam o Érebo, até debaixo
ESTREPSÍADES do Tártaro 4 5 .
180 Por que então admiramos aquêle fa-
moso Tales? 42 Depressa, abr.a, abra o ESTREPSÍADES
"pensatório", e mostre-me logo esse Por que é que o rabo está olhando
Sócrates, pois tenho vontade de apren- para o céu?
der ! Mas, abra a porta! (Abre-se a
porta. Vêem-se os discípulos de Sócra- DISCÍPULO
tes, em atitudes estranhas, ·olhando Está aprendendo astronomia por
para o chão. No fundo, um leito sua própria conta ... ·4 6 (Aos discí-
estreito e uma mesa com mapas,
esquadros, réguas, etc . .. Do alto do
43
Nobres espartanos que, depois de resistirem a
um demorado assédio, foram obrigados a entregar-
teto um cesto dependurado.) Por Héra- se na ilha de Esfactéria, 425 a.e. Os discípulos, pá-
cles, de onde vieram esses bichos? lidos, macilentos e de cabeça baixa, lembram o esta-
do lastimável e a vergonha daqueles infelizes
prisioneiros.
J s Referência à tradição segundo a qual o sábio Platão relembra que os poetas cômicos foram os
4 4

Tales de Mileto caíra num poço, enquanto obser- primeiros a caluniar Sócrates, acusando-o de pes-
vava os astros. quisar as coisas subterrâneas e celestes, Apol., 19-B.
40 Lit. lagarto malhado, tradicionalmente conside- No entanto, o mesmo Platão nos apresenta Sócrates
rado um animalzinho malicioso. Cf. lat. Stelio. indagando a respeito da localização e natureza do
41 A passagem não é bem clara. Várias hipóteses Hades, Fed., 113-F.
procuram explicá-la: a) Sócrates teria comparecido 4 5
Aristófanes ridiculariza as pesquisas profundas
à palestra e, enquanto distraía os que o rodeavam, que penetravam até o Érebo, debaixo do Tártaro,
surripiara a vítima que se sacrificava a Hermes; b) onde não devia existir absolutamente nada.
enquanto explicava questões científicas, habilmente 4 6
Conforme o testemunho de Xenofonte, Sócrates
conseguira roubar alguma peça de vestuário; c) condenava as investigações abstratas sobre os fenô-
teria distraído a atenção e a fome dos discípulos menos naturais e só admitia os estudos de geometria
discorrendo sobre questões geométricas. Parece-nos e astronomia tendo em vista objetivos práticos. Cf.
a explicação mais razoável. Mem., I, 1, 11; IV, 7, 2, 6. Plat.,Apol. 19-D. Toda-
42 Tales de Mileto, um dos Sete· Sábios, conside- via, ao fazer sua biografia. intelectual, o próprio Só-
rado o fundador da filosofia, o primeiro a preocu- crates afirma que até atingir a maturidade se entre-
par-se com assuntos matemáticos e astronômicos gara a "esse gênero de saber a que se dá o nome de
(século VII). conhecimento da natureza''. Plat., Fed., 96-A, 99-D.
186 ARISTÓFANES

pulos que se aproximaram da porta.) DISCÍPULO


195 Vamos, entrem, para que "ele" não (Tomando um mapa)
encontre vocês. Este é o círculo da Terra 4 8• Está
ESTREPSÍADES vendo? Eis aqui Atenas.
Não, ainda não! Fiquem, para eu
ESTREPSÍADES
conversar com eles sobre um meu
negocinho ... Que diz? Não acredito, pois não
vejo os juízes sentados no tribu-
DISCÍPULO nal. .. 4 9
Mas, eles não podem ficar por muito
DISCÍPULO
tempo ao ar livre ...
Afirmo que este é verdadeiramente o
(Entram todos. Estrepsía- território da Ática.
des aproxima-se
ESTREPSÍADES
da mesa e aponta.)
E onde estão os Cicinotas, meus 210
ESTREPSÍADES companheiros de bairro?
200 Pelos deuses, qu13 é isso? Diga-me.
DISCÍPULO
DISCÍPULO Ei-los aqui. Esta é a Eubéia 5 0 , como
Isto é astronomia. você vê, estendendo-se ao longo, com-
prida, bem· a distância.
ESTREPSÍADES
E isto? ESTJREPSÍADES
Sei, pois foi. bem esticada por nós e
DISCÍPULO
por Péricles . . . E a Lacedemônia,
Geometria. onde está?
ESTREPSÍADES DISCÍPULO
(Toma uma régua) Onde está? Ei-la aqui !
E isto então para que serve?
ESTREPSÍADES
DISCÍPULO Como está perto de nós ! Pensem 215

Para medir a Terra ... bem nisso: afastá-la para bem lon-
ge ...
ESTREPSÍADES
DISCÍPULO
Será por acaso a terra lotea-
da? ... 4 7 Mas não é possível ! ...
ESTREPSÍADES
DISCÍPULO
Não, toda ela! Por Zeus, vocês se arrependerão ...
(Estrepsíades olha para cima e vê o
ESTREPSÍADES cesto· dependurado) Ora vejam só!
205
Você diz uma coisa inteligente. Com
efeito, a idéia é democrática e útil ... 48 Os mapas-múndi e cartas geográficas já deviam

ser comuns em Atenas.


49
Crítica à mania judiciária dos atenienses. Aliás,
4 7 No governo de Péricles as terras dos Estados
logo depois das Nuvens, Aristófanes dedicou uma
vencidos foram medidas com a colaboração de dez comédia a esse assunto: As Vespas.
geômetras e distribuídas aos pobres, reservando-se 50 Eubéia, a maior ilha do mar Egeu. Depois das

um décimo para os 'deuses, Tuc., III, 50. Estrep- guerras pérsicas ingressou na Confederação de
síades entende que se pretende medir a terra para Delas, da qual pretendeu afastar-se em 446, numa
distribui-la ao povo, daí a alusão do v. 205. rebelião esmagada por Péricles. Cf. Tuc., I, 114.
AS NUVENS .187

. Quem é esse homem dependurado num SÓCRATES


cesto, lá em cima? Pois nunca teria encontrado, de
modo exato, as coisas· celestes se não
DISCÍPULO
tivesse suspendido a inteligência e não:
"Ele", em pessoa! 51
tivesse misturado o pensamento sutil 230

ESTREPSÍADES com o ar, o seu semelhante 5 5 . Se,


"Ele" quem? estando no chão, observasse de baixo o
que está em _cima, jamais o encontra-
DISCÍPULO ria. Pois de fato a terra, com violência
Sócrates. atrai para si a seiva do pensamento 5 6 •
Padece desse mesmo mal até o
ESTREPSÍADES agrião .. 5 7
220 Sócrates!? - Vá chamá-lo para
ESTREPSÍADES
mim, e bem alto.
(Muito espantado.)
DISCÍPULO Que diz? O pensamento puxa a 235
Não, chame-o você; eu não tenho seiva para o agrião? Então venha, meu
tempo. (O discípulo desaparece.) Socratesinho, desça aqui para ensinar-
me aquilo que vim procurar.
ESTREPSÍADES
Sócrates ! Socratesinho ! SÓCRATES
(Descendo.)
SÓCRATES
(Do alto.) Mas a que veio você?

Por que me eh ama, ó efêmero 52 ESTREPSÍADES


Porque pesejo aprender a falar. Com
ESTREPSÍADES efeito, estou sendo saqueado, pilhado e 2-10

Em primeiro lugar, eu ·lhe peço, penhorado nos meus bens, por credo-
explique-me o que está fazendo. res e juros muito cacetes .
SÓCRATES SÓCRATES
225 Ando pelos ares e de cima olho o E como você não percebeu que se
Sol 5 3 . endividava?
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
Ah, então você olha os deuses aí de Foi uma doença de cavalos que me
cima, do alto de uma peneira 5 4 ·e não
daqui da terra, se é que se pode ... 5 5
Referência aos filósofos, como Anaxímes~
Anaximandro e Diógenes de Apolônia, que identifi-
cavam a alma com o ar, um sopro.
51 Aristófanes associa o filósofo aos pitagóricos, 5 6
Assim como o vapor de água 'é· novamente
daí a expressão "ele em pessoa'', isto é, o "Mestre". atraído pela terra voltando sob a forma de chuva
52
Sócrates aparece lá do alto como um "deus ex (Diog. Apol., Diels-Kranz II, 54, 28), a terra teria o
machina" e por isso pode usar de linguagem apro- poder de atrair para si a seiva do pensamento,
priada a uma divindade em seu trato com seres perturbando a reflexão. A propósito 'do efeito que
humanos. essas teorias irão produzir no espírito de Estrep-
53
O filósofo afirma que está meditando sobre o síades, veja vv. 1279 ss.
Sol e Estrepsíades, que entende tudo às avessas, 5 7
Aristófanes critica o método socrático de ir bus-
pensa tratar-se do deus Hélio (Febo Apolo) e inter- car comparações em fatos corriqueiros da vida diá-
preta as palavras de Sócrates como uma ofensa, ria: a associação de idéias com o agrião surge natu-
desprezo à divindade e, por conseguinte, prova de ralmente, por tratar-se de uma planta rasteira e
ateísmo. aquática, que vive em meio úmido e sofre bem de
5 4
Na verdade, "ciranda, caniçada"; traduzimos perto a influência dessa atração para baixo, ainda
"'peneira", vocábulo mais conhecido, mais cômico. não definida.
188 ARISTÓFANES

arruinou, terrível, devoradora. . . Mas Pois tome aqui[ esta coroa. 62 255

ensine-me o outro dos seus dois racio-


245 cínios, aquele que não devolve nada. ESTREPSÍADES
Pelos deuses, juro pagar-lhe qualquer Para que um;a coroa? Ai de mim,
salário 5 8 que você cobrar! . Sócrates, contanto que vocês não me
sacrifiquem como ao pobre Atam.an-
SÓCRATES te! 63
(Em· terra.)
isóCRATES
Por quais deuses voe~ pretende Não, mas fazemos tudo isso aos que
jurar? Para começar, em nosso meio se vão iniciar.
os deuses sao moeda fora de circula-
çao
- ... 59 ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES O que é que ganho eu com isso?
c·omo é que vocês juram? Acaso SÓCRATES
será por peças de ferro, como em Tomar-se-á escovado na fala; char- 260
Bizâncio? 60 latão, uma flor de farinha! (Sócrates,
SÓCRATES enquanto fala, esfrega as costas de '
250 Você quer conhecer claramente as Estrepsíades e esparge farinha sobre a
coisas divinas e exatamente o que elas sua cabeça.) Mas, fique quieto !
são? ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Por Zeus, você não me vai enganar:
Sim, por Zeus, se é possível. de fato, polvilha.do, serei uma flor de
farinha ...
SÓCRATES
E travar relações com as Nuvens, as SÓCRATES
nossas divindades 61 , para ~onversa É preciso que o velho fique calado e
com elas? . preste atenção à prece! (Solenemente.)
ESTREPSÍADES Senhor soberano 6 4 , Ar incomensu-
s·im, demais ! rável, que sustentas a Terra suspen:sa
SÓCRATES 62 Paródia das cerimônias de iniciação dos rituais

Então sente-se no leito sagrado. órficos-pitagóricos ou eleusinos. A partir de certa


época, essas cerimônias tornaram-se comuns em
ESTREPSÍADES Atenas, associadas com elementos oriundos de cul-
tos estrangeiros, frígios e egípcios. Era habitual a
Pronto; estou senta.çlo. coroação dos neófitos; ·Como as vítimas dos sacrifí-
cios também eram coroadas, Estrepsíades fica
SÓCRATES apavorado.
(Com uma coroa nas 63
Rei da Beócia, salvo graças à intervenção de
Hércules, no·momento em que ia ser sacrificado por
mãos.) instigação de sua primeira esposa, a deusa Nefele.
Muitas tragédias inspiraram-se nessa lenda, inclu-
5
ª Contradição hilariante, pois o velho matreiro sive o Atamante Coroado de Sófocles. Observe-se a
quer justamente um meio de não pagar nada. · mudança de tom nesta cena preparatória do párodo
59
Alusão ao ateísmo e impiedade de muitos filóso- (vv. 263-274).
fos, como Bipão, cognominado "o ateu". Anaxá- 6 4 Sócrates invoca três divindades próximas umas

goras sofreu processo por crime de impiedade e das outras: Ar, Éter e Nuvens. Era comum associar
Protágoras afirmava que "nada sei.acerca dos deu- três divindades, tanto nas preces como nos juramen-
ses, se existem ou se não existem" (Diels-Kranz I, tos. A divindade do Ar foi sustentada, entre outros,
317-318). por Orfeu (Diels-Kranz I, 5, 6), Diógenes de Apolô-
60
Mencionando as moedas de Bizâncio, de baixo nia (Diels-Kranz II, 61, 7) e Demócrito fr. 6. Os
teor metálico,· Aristófanes lembra a falsidade dessa órficos-pitagóricos consideravam o Éter um deus e
colônia e suas tentativas de defecção. muitas vezes o identificavam com Zeus. Cf. Orfeu:
61
A atribuição de divindade às Nuvens é invenção "O Éter é tudo" (Diels-Kranz I, 46, 18) e também
de Aristófanes. · Eur.fr. 869.
AS NUVENS 189

no espaço ! 6 5 Éter brilhante e venr~­ rochedo nevoso do Mimante 7 2 • Rece-


veis deusas, Nuvens, portadoras do bei o sacrificio, atendei à prece, con-
26s trovão e do raio ! 6 6 Levantai-vos, tentes com as cerimônias sagradas.
Senhoras, mostrai-vos ao pensador,
suspensas no ar ! (Ouve-se ao longe o Coro
das Nuvens. Troam trovões.)
ESTREPSÍADES CORO
Não, ainda não! (Procura cobrir a (Estrofe) 7 3 Nuvens inesgotáveis 7 4 , 275

cabeça com uma ponta do mdnto.) levantemo-nos, visíveis em nossa natu-


Antes vou cobrir-me com isto, para re;z.a orvalhada e brilhante! Longe do
não me encharcar ... 6 7 Desgr,açado pai, o ribombante Oceano 7 5 , vamos
de mim. . . Sair de casa sem nenhum aos cimos nas altas montanhas, enca-
bonezinho ! .. belados de árvores. Contemplemos a 280

distância os picos longínquos, as sea-


ras, a Terra sacrossanta e irrigada,
SÓCRATES
veneráveis, fragorosos rios, e o mar
Então vin'de, Nuvens augustíssimas,
que geme com surdos ruídos. Incan- 285
para mostrar-vos a este homem 6 8 •
sável brilha o olho do Éter 7 6 em
270 Quer vos assenteis nas sagradas cu-
esplêndidos raios! . .. Eia, dissipemos
meeiras do Olimpo 6 9 , batidas pelas a chuvosa névoa de nossa forma imor-
neves, ou estejais nos jardins do vosso tal e, com um olho que de longe vê, 290
pai Oceano 7 0 , compondo um coro contemplemos a Terra.
sagrado. para as Ninfas; quer por
acaso, nas cabeceiras do Nilo, despe- SÓCRATES
jeis de suas águas com jarros de ouro, Nuvens muito veneráveis, é evidente
ou habiteis o lago Meótis 7 1 ou o que me ouvistes a chamar-vos! (A
EstrepsíadesJ Você percebeu a sua voz
6 5
Segundo o testemunho de Plutarco, Mor., 869, junto com os gemidos do trovão,
Anaxímenes fora o primeiro a afirmar que a Terra respeitável como um deus?
estava suspensa e era amparada pelo Ar. Posterior-
mente essa teoria se tornou muito comum.
ESTREPSÍADES
6 6
Epíteto das Nuvens, forjado por Aristófanes
com a inversão da ordem dos elementos de um epí- Sim, eu vos venero, ó augustíssimas,
teto muito conhecido de Zeus. Essa delegação de tanto que desejo responder com peidos
qualificativos corresponde, poeticamente, às novas
teorias de explicação física dos fenômenos naturais, aos vossos trovões. . . Como treme-
antes atribuídos aos poderes de Zeus. Cf. vv. lico diante delas e tenho medo ! E quer
375-411. seja lícito, quer não seja lícito 7 7 , tenho 295
6 7 Estrepsíades logo associa a idéia de Nuvens

com a de chuva e procura proteger-se. vontade de aliviar-me agora mes-


68
Sócrates menciona os quatro cantos do globo: o mo ...
Olimpo representa o norte; Oceano, o oeste; as
cabeceiras do Nilo simbolizam o sul e o lago Meótis
e o Mimante, o leste. 72
Promontório da Ásia Menor, nas proximidades
6 9
Olimpo da Tessália, ponto culmiiiante da penín- de Esmirna.
sula grega: o seu pico, sempre coberto de neve, era 73
Inicia-se o párodo que se compõe de partes líri-
considerado a morada dos deuses. cas, cantadas pelo coro (estrofe e antístrofe), e de
7 0 Da deificação das Nuvens resulta a necessidade partes dialogadas, com algumas intervenções do
· de dar-lhes uma ascendência divina: são invocadas Corifeu (vv. 275-475).
como filhas de Oceano, personificação das águas 7 4
Epíteto adequado às Nuvens, mães das águas.
que envolvem o mundo. Oceano estendia:..se de leste 7 5
Epíteto comum de Oceano, para representar os
a oeste e do norte ao sul da Terra. No extremo estrondos do mar.
oeste, situavam-se os seus jardins, muitas vezes 7 6
Expressão poética para designar o Sol. Cf. Eur.,
identificados com os Jardins da.S Hespérides, as nin- If. Taur., v. 194; Esq.fr. 158.
fas do poente. 7 7
O efeito cômico deriva do contraste entre a sole-
7 1 Lago da Jônia, nos linlites da Europa e Ásia, nidade- das palavras e a grosseira e incontrolável
hoje mar de Azov. necessidade de Estrepsíades.
190 ARISTÓFANES

SÓCRATES SÓCRATES
(Impaciente) De modo algum! Sã0 as Nuvens
Chega de fazer graça e de agir como celestes, deusas grandiosas dos ho-
esses pobres poetas de borra! 7 8 Mas mens ociososª 6 .. São elas que nos
fique quieto, pois um grande enxame proporcionam pensamento, argumen-
de deusas se movimenta, cantando. tação e entendimento, narrativas mira-
bolantes e circunlóquios e a arte de
CORO impressionar e de fascinarª 7 •
(Antístrofe) 7 9 Virgens portadoras ESTRJEPSÍADES
300 da chuva, vamos ver a brilhante cidade Ah, então é por isso que, depois de
de Palasª 0 , terra de heróis, de Cécro- ouvir o seu canto, minha alma esvoa- J20
peª 1 , amável país! É lá que existe a ça, já procura fallar com sutileza e di-
veneração de inefáveis mistériosª 2 , e, vaga na fumaça esbarrando uma sen-
nas cerimônias sagradas, um santuário tença numa sentencinha para refutar
305 aberto aos iniciados, com dádivas aos com outro argumento ... 8 8 Nessas
deuses do céu 83 ; altivos templos, está- condições, se acaso é possível, agora
tuas, sacratíssimas procissões aos quero vê-las claramente.
bem-aventurados, sacrifícios cheios de
coroas, festins em todas as estaçõesª 4 , SÓCRATES
3/0 e, ao chegar a primavera, a festa de Então olhe para lá, para o Parnes 89 .
Bromo 8 5 , a exaltação melodiosa dos Já vejo que elas vêm descendo calma-
coros e o canto das flautas de surdos mente ...
ressôos.
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Deixe ver, onde? Mostre-me!
Por Zeus, Sócrates, eu lhe peço,
SÓCRATES
315. diga-me quem são essas que proferi-
São essas que avançam em grande 325
ram esse canto venerável? Serão por número pelas cavernas e bosques, ali,
acaso alguma assombração? de lado ...
1 a Trocadilho. Aristófanes refere-se aos poetas cô- ESTREPSÍADES
micos, que ainda conservavam vestígi~ dos tempo.s
em que se cobria o rosto de borra ~e vmho p~a ati-
Que negócio é esse, que não vejo ..
rar invectivas contra os participantes e assistentes
do "komos". Traduzimos "poetas de borra", expres- SÓCRATES
são que na linguagem popular portuguesa tem se.ntj- Ao lado da entrada ... 90
do depreciativo: "poetas sem nenhum valor, ordma-
rios".
1 s Os elementos do coro já aparecem a distância, 0
6
Referência àqueles que podem dispor de tempo
mas Estrepsíades só irá vê-los no v. 326. para as especulações do espírito, i.e., os filósofos e
00 Atenas, cuja protetora era a deusa Palas Atena.
poetas.
0 1 Personagem mítico, primeiro rei de Atenas. a 1 Note-se que o próprio Sócrates fala irônica-
s2 Santuários de Deméter e Core, em Elêusis, qu-e
· mente acerca da habilidade de seus pretensos cole-
atraíam peregrinos de toda a Grécia e onde se ~el­ gas (os sofistas), que apelavam a todos os recursos
bravam, anualmente, os Grandes e Pequenos M1ste- para impressionar e enganar.
0 0 Estrepsíades já est~ contagiado pelos sofis-
rios.
tas. . . Nos Acarnianos, Aristófanes usa de frases
aJ Antítese às deusas subterrâneas, cujo culto
semelhantes, para ridicularizar Eurípides. Cf. vv.
acaba de ser mencionado. 444 ss.
0 4 Os atenienses vangloriavam-se de sua piedade; 0s Monte de Atenas, geralmente nublado. Sócrates
durante o ano todos celebravam os deuses com fes- devia apontar para umm direção qualquer, já que o
tas, em que as procissões eram um capítulo muito Parnes, oculto por um canto da Acrópole, não
importante. Cf. Sof., E. C., 250; Isocr., Paneg., 45. podia ser visto do teatro.
0 s As Antestérias, festas dionisíacas da primavera.
Dioniso era invocado com· o epíteto de Brômio, "o s o A entrada da orquestra, por onde devia petjetrar
que estrondeia". o coro. Cf. A v., v. 296. 1
AS NUVENS 191

ESTREPSÍADES de coros cíclicos 9 7 , homens charlatães


Até que enfim ! E assim mesmo com de coisas celestes 9 8 • Sustentam esses
dificuldade ... vadios que não fazem nada, porque
eles· costumam cantá-las em suas
(Entram as Nuvens, mulhe- obras.
res c,om vestes esvoaçantes
e grandes narizes.) ESTREPSÍADES
(Declamando.)
SÓCRATES
Ah, então é por isso que canta- 33s
Agora pelo menos você está venc;lo, vam99
a não ser que tenha umas remelas do
"de úmidas Nuvens de redemoinhos de
tamanho de abóboras ! 9 1
luz a hostil arremetida",
ESTREPSÍADES "as tranças de Tifeu 1 0 0 de cem cabe-
Sim, por Zeus, eu vejo, ó augustís- ças",
simas, pois já ocupam todo o espa- "dos furacões o violento sopro"
ço ... e ainda "aéreos úmidos",
"aduncos que nadam nos ares" e
SÓCRATES "aquosas chuvas de orvalhadas Nu-
E, no entanto, você não sabia que vens".
são deusas, não acreditava nelas? E ainda, em troca de tudo isso,
engoliam
ESTREPSÍADES "fatias de bons e grandes murgens e '
330 Não, por Zeus, mas pensava que carnes voláteis de tordas" 101 .
fossem vapor, orvalho e fumaça.
SÓCRATES
SÓCRATES Sim, é por causa delas. E não é
Por Zeus, nada disso ! 92 É que você justo?
não sabia que elas sustentam a maior
ESTREPSÍADES
parte dos sofistas 93 , adivinhos de Diga-me, então, se realmente são
Túrio 9 4 , artistas da medicina 9 5 ,
340

nuvens, que lhes sucedeu, por que


"vadios de longos cabelos ·que só tra-
parecem mulheres? (Aponta para o
tam de anéis e unhas" 9 6 , torneadores
céuJ Aquelas lá pelo menos não são
91 Expressão proverbial. assim ... J 02
92 Note-se que Sócrates invoca um deus cuja exis-
tência daqui a pouco vai negar. Essas invocações 9 7 Censura aos novos hábitos musicais e rítmicos

haviam perdido toda consistência, reduzidas a sim- dos poetas líricos, principalmente nos coros cícli-
ples exclamações. cos. Cf. vv. 970 ss (Frinis); Tesmof, v. 53 (Agatão);
93 De modo genérico são designados os vários gru-
Rãs, v. 153 (Cinésias).
pos que constituem a classe dos sofistas, Platão 9 8 Anaxágoras, Metão, Hípias de Élis, Diógenes

também faz Protágoras chamar de "sofistas" todos de Apolônia e muitos outros.


os poetas, músicos, ginastas etc. . . Cf. Prol., 9 9 Paródia do estilo· mirabolante da poesia lírica

316-D. do século V.
9 4 Referência a Lampão, amigo de Péricles, cola- 1 °0 Monstro de cem cabeças de dragão, filho da
borador na fundação e colonização de Túrio (443 Terra e do Tártaro, derrotado pelos Titãs. Cf. Hes.,
a.C.), considerada durante muito tempo a Eldorado Teog., 820 ss.
dos atenienses. 1 °1 Alusão às grandes despesas da "coregia",
9 5 Particularmente Hipócrates de Cós (469-399), contribuição voluntária que consistia no preparo
contemporâneo de Sócrates, que visitava Atenas duma representação dramática. Aristófanes cita
com freqüência e que, em suas obras, admitia as duas iguarias caras e apreciadas para lembrar que
influências dos ventos e das Nuvens sobre a saúde e 'ao "corego" competia sustentar os coreutas, os mú-
também as relações da astronomia com a arte de sicos, e até o próprio poeta.
1 02 Examinando o coro, Estrepsíades observa que
curar.
9 6 Aristófanes forja uma longa palavra cômica, ou as Nuvens são representadas por mulheres bem
para criticar a vaidade do sofista Hípias de Élis narigudas e aponta para o céu, onde vê as verda-
(veja Plat., Hip. Men., 368-D), ou então para ridicu- deiras nuvens (cirros) que se parecem com flocos de
larizar o luxo e os atavios dos citaredos. lã.
192 ARISTÓFANES

SÓCRATES ESTREPSÍADES
V amos ver, como são? Ah, .então foi por isso que ontem, .
quando ·viram Cleônimo 1 0 7 , aquele
ESTREPSÍADES covarde que jogou fora o escudo,
Não sei bem, mas é certo que têm quando viram esse superpoltrão, logo
aparência de flocos de lã desenrolada e se tornaram veados ...
não de mulheres. Não, por Zeus, nem
um pouquinho ! . Estas aqui têm SÓCRATES
narizes ... E agora, você está vendo, viram
SÓCRATES Clístenes 1 0 8 e por c·ausa disso muda- 355

Então responda ao que eu pergun- ram-se em mulheries ...


tar,º 3.
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Então viva, minhas senhoras! E,
345 Pois diga logo o que quer. agora, se alguma vez já-o fizestes a
algum outro, soltai a mim também
SÓCRATES essa voz que cobre os céus, ó todo-so-
Alguma vez, olhando para o céu, beranas !
você já não viu uma nuvem semelhante
a um centauro, a um leopardo, a um CORO
lobo ou a um touro? Salve, velho dos antigos tempos,
admirador de palavras queridas das
ESTREPSÍADES
Musas. (Voltando-se para Sócrates) E
Sim, por Zeus, já vi. E que quer
você, sacerdote de tolices sutilíssimas,
dizer isso?
conte-nos ó de que está precisando,
SÓCRATES pois não atenderíamos a nenhum outro
Elas se transformam em tudo o que dos atuais sofistas de coisas celestes,
desejam 1 0 4 . Se vêem um fulano de com exceção· de Pródico 1 0 9 • A este J6o

longa cabeleira, um desses selvagens por causa da ciência e saber e a você


peludos, como o filho de Xenofan- porque se pavoneia pelas estradas,
350 to 1 0 5 , para ridicularizar a "mania" lança -0s olhos de lado, anda descalço,
dele, tomam forma de centauros. suporta muitos males, e, por nossa
causa, finge importância ... 1 1 o
ESTREPSÍADES
Pois . se. vêem lá de cima um ladrão BSTREPSÍADES
dos bens públicos, como Simão 1 0 6 , o ó Terra, que voz.! Como { ·s agrada,
que é que elas fazem? solene e formidável !
SÓCRATES 10 7
Vítima constante de Aristófanes. Cf. Acar.,
Para representar a natureza dele, 844, Paz, 446, 1295, Vesp., 19-20 etc. O veado é o
lago viram lobas . . . símbolo da covardia.. Cf. Hom .,IL, I, 225.
10
ª Pederasta, devasso, freqüentemente criticado
- Acar., 118; Lís., 122; Av., 831; Cav., 1374;
1 03 Sócrates inicia a prática das perguntas e res- Vesp., 1187, etc. Não é absolutamente necessário
postas, levando o interlocutor às suas próprias que estivesse assistindo à representação, embora se
conclusões. tratasse, como em outras passagens, de pessoá bas-
1 0 4 Cúmulos, nuvens acinzentadas que tomam for- tante conhecida que o público podia apontar com o
mas variadas, conforme a nossa imaginação. dedo.
1 0 5
Hierônimo, poeta ditirâmbico, acusado de 109
Pródico de Céos, célebre sofista, contempo-
pederastia. É comparado aos centauros que tinham râneo de Sócrates.
a parte inferior de um animal (cavalo), eram pelu- 11 0
No Banquete (221-B), Platão rememora esta
dos e lascivos. Cf. Sof., Traquínias. passagem, interpretando-a de maneira favorável a
10 6
Desconhecido historicamente. Todavia é criti- Sócrates~ que viveria atento a tudo o que se passava
cado também por Eúpolis ..fr. 220. ao seu redor. Cf. Fed., 117-B. 1 ·
AS NUVENS 193

SÓCRATES SÓCRATES
365 Pois de fato só elas é que são deu- Elas é que trovejam, quando são
sas, todo o resto são lorotas! roladas ..
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
(Assustado) (Muito espantado)
Epa ! E Zeus, em nome da Terra! De que jeito, homem de todas as 375
Para vocês o Olímpio não é um deus? audácias ...
SÓCRATES SÓCRATES
Que Zeus? Não diga tolices! Nem Quando se enchem de muita água e
sequer existe um Zeus ! são obrigadas a mover-se, cheias de
chuva, forçosamente, ficam dependu-
ESTREPSÍADES
radas para baixo, e, a seguir, pesadas,
Que diz? Mas quem é que
caem umas sobre as outras, arreben-
chove? 111 Explique-me isto antes de
tam e estrondeiam.
mais nada.
ESTREPSÍADES
SÓCRATES
Mas quem é que as o briga a mo ver-
Elas, é claro ! 112 Mas eu vou
se; por acaso não é Zeus?
310 demonstrá-lo com sólidas provas. Ve-
jamos, pois onde, alguma vez, você já SÓCRATES
viu Zeus chover sem Nuvens? E, no Absolutamente. É o turbilhão eté-
entanto, ele deveria chover num céu reo,, 4
límpido, sem a presença das Nu-
vens·11 3 .
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES
(Estupefato)
(Confuso) Turbilhão? Isso me tinha escapa- 3·so

Sim, por Apolo, de fato você o com- do . . . Zeus não existe, e no lugar dele
provou muito bem com esse raciocínio. agora reina o Turbilhão! ... Mas você
E, no entanto, antes eu acreditava ainda não me ensinou nada a respeito
verdadeiramente que era Zeus que uri- do estrondo e do trovão .. ·.
nava através de um crivo ... Mas,
diga-me, quem é que troveja, coisa que SÓCRATES
me faz estremecer? Então você não me ouviu dizer que
as Nuvens, cheias de água, quando
1 ; 1 . O nome de Zeus estava intimamente relacio- caem umas sobre as outras, estron-
nado com os fenômenos da natureza, tais como o deiam por causa da densidade?
vento, as chuvas, os raios e os trovões. Zeus era
invocado nas secas, como o reunidor das nuvens e
11 4 Aristófanes cria uma situação cômica, a partir
protetor das chuvas. Assim se explicam a expressão
"Zeus chove" e a correspondente invocação dos de um qüiproquó com a palavra "turbilhão" (dinos),
atenienses: "Chove, chove, ó caro Zeus". que tanto podia significar o movimento que dera
112 Vfrrios físicos já haviam procurado explicação
origem ao universo (cf. Plat., Fed., 99-B; Aristóte-
racional da chuva. Cf. Anaxágoras (Diels-Kranz,fr. les, Do Céu, II, 13, 295-A), como o movímento da
19, II, 41, 11); Hipócrates, Ar. 533; e principal- rotação do céu ao redor da Terra ou ainda "vórtice,
mente Anaxímenes (Diels-Kranz I, 94, 8); Plut., voragem". Eurípides popularizou o termo, aplican-
Mor., 894-A: "Quando o ar se toma muito espesso, do-o ao movimento das nuvens, e é êsse o sentido
formam-se as nuvens, e quando ainda mais se con-
densa, arrebentam as chuvas." das· palavras de Sócrates. Como a mesma palavra
113 Veja Lucrécio VI, v. 400: "Pois então, por que grega, dinos, também pode significar qualquer obje-
Zeus nunca atira o raio sobre a terra com um céu to torneado, um vaso, surge um mal entendido que
límpido?" terá seqüência no fim da peça, vv. 1471 ss.
194 ARISTÓFANES

ESTREPSÍADES SÓCRATES
Está bem, mas como acreditar Mas como, in:~esato, velho tonto,
nisso? cheirando a mofo 1 1 8 , seu arcaico !1 1 9
SÓCRATES Se atira nos· perjuras, como é que não
385 • Vou explicar-lhe partindo de você fulminou nem Simão nem Cleôni-
mesmo. Nas Panatenéias 11 5 , quando mo 120 nem Teoro? E, no entanto, bem
você se encheu de caldo, depois nunca que são perjuros . . . Mas Zeus atira 400

ficou com o ventre desarranjado? E, de sobre o seu próprio templo, sobre o


repente, um reboliço não o fez crepi- "Sunio 1 2 1 , promontório de Atenas", e
tar? · sobre os altos carvalhos! Por quê?
Pois de fato um carvalho não pode
ESTREPSÍADES jurar falso ...
Sim, por Apolo, e logo ele me faz
um alvoroço terrível e se des-arran- ESTREPSÍADES
ja ... O caldinho estrondeia como um (Hesitante.)
390 trovão e berra terrivelmente. Primeiro
Não sei, mas apesar de tudo você
devagar, "pa-pa, pa-pa", depois conti-
parece ter razão ... Pois, .afinal, que é
nuando, "pa-pa-pa, pa-pa-pa", e, quan- ·
o raio?
do eu me desaperto, ele troveja de uma
vez, "pa-pa-pa-pa-pa", assim como as SÓCRATES
Nuvens. Quando um vento seco, alçado nos
SÓCRATES ares, fica preso nas Nuvens, lá de den- 405

Bem, pense bem como você peidou tro fá-las inchar como uma bexiga, e
por causa desse ventrezinho tão peque- depois, arrebenta-as à força e se preci-
nino. . . E este ar, incomensurável, pita para fora, cheio de ímpeto por
não é razoável que troveje intensa- causa da densidade. Em vista do ruído
mente? e da velocidade, ele se incendeia por
própria conta 1 2 2 ..
ESTREPSIÁDES
Ah ! Então é por isso que até os ESTREPSÍADES
nomes são parecidos, trovão e pei- Sim~por Zeus'., sem saber eu mesmo
dão ... 1 1 6 Mas, ensine-me isto, de já padeci desse mal, certa vez, nas Diá-
395 onde provém o raio relampeando fogo, sias. Ao assar um bucho para minha
ele que, quando nos fere, fulmina al- família, distraído não lhe fiz uma
guns e por outros passa de raspão, fenda; então ele inchou, depois, de
deixando-os viver? Pois esse raio, por repente, estourou, emporcalhando-me 410
certo é Zeus quem o atira contra os
perjuas~ .. 1 1 7 1 1 8 Entenda-se "velho tonto que cheira aos tempos

de Crono". O antigo deus Crono muitas vezes é


1 1 5 Um dos mais importantes' festivais de Atenas.
símbolo de "velho, bobo, gagá".
1 1 9 Aristófanes empre,ga uma palavra intradu.zíveJ,
Realizado anualmente no dia 28 do Hecatombeu n;iais ou menos equivalente ao nosso
Gulho-agosto) e de quatro em quatro anos com "antediluviano".
maior pompa (Grandes Panatenéias). Dedicada a 1 2 ° Criticado em muitas passagens, ora como
Atena, a festa comportava procissão, sacrifícios e
jogos. A carne das vítimas era distribuída ao povo impostor, ora como ímpio ou adulador. Cf. Acar.,
que se regalava com esse alimento, caro e pouco 134 ss., 1608; Vesp., 42, 47, 418, 519 etc ...
121 Cf. Horn., Od., 278. Promontório no extremo
acessível.
11 6 Trocadilho forçado, talvez uma pilhéria com sul da Ática, onde havia as ruínas de um templo jô-
os gramáticos (Rima). nico de Atena e um templo de Posidão.
11 7 Zeus também era invocado como "protetor dos 122 Paródia de alguma explicação dos físicos. Cf.

juramentos"; por conseguinte, Sócrates está des- Anaxágoras (Diels-Kranz II, 25, 21): "Quando o
pindo a divindade de mais uma das suas atribui- quente cai no frio, com o ruído, produz o trovão, e,
ções. com o pêso e grandeza da luz, o raiá."
AS NUVENS 195

até os olhos e queimando-me o ros- se. . . Nem faria sacrifícios, libações,


to ... ou ofertaria incenso !
CORIFEU CORIFEU
(A Estrepsíades.) Então, coragem ! Diga-nos o que lhe
Ô homem que deseja em nosso con- devemos fazer, pois você não há de
vívio a grande sabedoria! Como você falhar, se nos honrar e admirar e pro-
será feliz em Atenas e na Grécia, se curar ser correto.
tem memória, sabe pensar, tem a des- ESTREPSÍADES
graça na alma e não se cansa, nem de ·Bem, minhas senhoras, eu vos peço
pé, nem parado! Se não se irrita exces- esta coisinha bem pequenina; que eu
41s sivamente com o frio, não deseja almo- seja, no meio dos gregos, o mais hábil
çar e se abstém de vinho, de exercícios no falar, com cem milhas de vanta- 430
e de outras bobagens 1 23 , e se pensa gem p 2 7
que o melhor, como convém a um
homem correto, é vencer, agindo, deli- CORIFEU
berando e combatendo com a lín- Mas vai consegui-lo de nós! Tanto
gua! 1 2 4 assim que, daqui em diante, nas deci-
sões da Assembléia ninguém terá mais
ESTREPSÍADES vitórias do que você ...
410 Mas se se trata de uma alma dura,
de uma preocupação de tirar o sono e ESTREPSÍADES
de um estômago parco, acostumado às Não, não me faleis de decisões
privações e que só janta manjericão 1 2 5 importantes; pois não as ambiciono,
não vos preocupeis, porque, se é por mas só quanto me baste para virar a
isso, corajosamente poderia oferecer- justiça para o meu lado e escapar dos
me como bigorna ... credores! ...

SÓCRATES CORIFEU
Não é verdade que você, agora, não Então encontrará o que almeja, pois 435

aceitará nenhum outro deus a não ser não quer grandes coisas. Coragem,
os nossos, o· Caos, as Nuvens e a Lín- entregue-se aos nossos ministros! 1 28
gua 1 2 6 , só estes três?
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Vou fazê-lo, porque confio em vós;
m Realmente, nem sequer conversaria pois a necessidade me aperta, por
com os outros, ainda que os encontras- causa dos cavalos de raça e desse casa-
mento que me arruinou. (Declamando
'1 2 3 Exigia-se dos iniciados, notadamente entre os enfático.)1 2 9
órficos e pitagóricos, a renúncia ao conforto físico
como condição do aperfeiçoamento do espírito.
1 2 7 Estrepsíades considera a eloqüência uma coisa
Sobre Sócrates, cf. Xen., Mem.,11, 1, e IV, 1, 2.
1 2 4 A essência do ensinamento sofistico, isto é, a concreta, avaliando-a com medida itinerária. Cf.
capacidade de falar diante do povo, nas assem- Rãs, 91. A mesma pilhéria aparece em Eúpolis. Fr.
bléias, nos tribunais. 94, referindo-se a Péricles. Lit. "cem estádios". O
12 5 Lit. Segurelha (Satureia hortensis), que pelo estádio media 600 pés gregos, i. e., 177 ,6 metros.
1 2 8 Os sacerdotes que servem às deusas Nuvens,
sabor acre serve como condimento. Trata-se pois de
um jantar muito pobre, feito só de ervas amargas. aqui evidentemente identificados com Sócrates e
12 6 Quanto à invocação de três divindades, veja seus discípulos.
129 Inicia-se o "pnigos ", trecho que devia ser
nota v. 264. Caos segundo Hes., Teog., 116, é o es-
paço vácuo que tudo pode conter e que a tudo pre- pronunciado num só Íolego. Estrepsíades, constran-
cedeu. ·A divinização da Língua corresponde bem gido pela necessidade, entrega-se de mãos atadas ao
ao preceito sofistico: procurar sempre vencer com destino. Tudo fará, contanto que não seja obrigado
palavras. Cf. v. 419. a pagar as dívidas (vv. 439-456).
196 ARISTÓFANES

Agora então façam ESTREPSÍADES 460


exatamente o que desejam. Que será de mim? 132
440 Este corpo que é meu
CORIFEU
eu lhes entrego,
para apanhar, sofrer fome ou sede, Eternamente em minha. companhia,
ficar sujo, você passará a mais invejável das
enregelado ou esfolado, vidas humanas.
se é verdade
ESTREPSÍADES
que vou escapar das dívidas
Então, acaso verei isso um dia? 465
e, diante do mundo,
parecer atrevido, CORIFEU
445 linguarudo, ousado, resoluto, Muita gente sempre se assentará à
velhaco, colàdor de mentiras, sua porta, querendo fazer-lhe confidên- 170
pàroleiro, cias, conversar sobre processos e defe-
superco~ad nos tribunais, sas de grande valor, para pedir conse-
tábua de leis 1 3 0 , lho sobre assuntos à altura do seu 115
charlatão, raposa, intelecto ...
afiado em chicanas, macio na fala,
dissimulador, viscoso e fanfarrão, (A Sócrates)
digno do chicote, Mãos à obra, trate de· praticar o que
450 canalha, retorcido, vai ensinar ao velho em primeiro lugar.
chato e fila-bóia. Movimente-lhe o intelecto e experi-
Se me-.chamam assim mente o seu pensamento.
os que se encontram comigo,
façam exatamente SÓCRATES
o que lhes apraz V amos, revele-me o seu caráter,
e, se querem, para que eu saiba como ele é, e, além 4so
sim, por Deméter, disso, já faça avançar contra você
ofereçam-me aos pensadores, novos "engenhos" 1 33.
455 como um prato de tripas ... 1 3 1
ESTREPSÍADES
(Espantado)
CORIFEU Quê? ! Pelos deuses, você pretende
A r~soluçã deste homem não é sem tomar-me de assalto?
audácia, mas audaciosa. Fique saben-
do, quando você aprender comigo, terá S()CRATES
entre os mortais uma glória que se Não, mas quero fazer-lhe umas
eleva aos céus! perguntinhas. Por acaso você tem boa
memória?
1 3 0 As leis de Sólon foram originalmente inscritas

em placas móveis de madeira, que desapareceram 1 3 2 Esta cena sugere uma paródia de tragédia ou

durante a invasão d.os persas. Preservaram-se as có- de rituais de iniciaçíio em mistérios religiosos. To-
pias gravadas em lajes de pedra, que permaneciam mada a resolução, vêm as dúvidas, o pavor do
expostas ná. Acrópole, embora incompletas e muti- desconhecido (vv. 461-4 71).
133 Cena de transição. Exame micial do novo can-
ladas.
1 31 As enumerações são um recurso cômico que já didato ao "pensatório" (vv. 478-509). Note-se o qüi-
aparece em Epicarmo,frs. 42, 94. Aristófanes com- proquó. Sócrates f alaL dos novos expedientes da edu-
praz-se em citar todos os nomes que poderiam cação sofistica e o velho pensa em máquinas de
caracterizar os amantes de chicanas e processos. guerra.
AS NUVENS 197

ESTREPSÍADES SÓCRATES
Sim, por Zeus, de dois jeitos. Quan- Está bem. Então, tire o manto !1 3 5

do me devem alguma coisa, tenho


muito boa memória, mas, ai de mim, ESTREPSÍADES
quando devo, sou completamente des- Fiz algum crime.?
485 memoriado . : . ·
SÓCRATES
SÓCRATES Não, mas a lei é que se entre sem
Bem, você tem aptidões natµrais manto.
para falar?
ESTREPSÍADE5
ESTREPSÍADES Mas não vou entrar para procurar
Para falar, não, mas para fa ... lhar coisas roubadas ...
sim ...
SÓCRATES
SÓCRATES
Tire ! Por que tagarela?
Então como será capaz de apren-
der?
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES (Obedecendo)
Sossegue, muito bem ! Então pelo menos diga-me o seguin- soo
te: se eu for diligente e aprender com
SÓCRATES vontade, com que discípulo ficarei
Bem, quando eu lhe propuser ~gu- parecido?
490 ma questão erudita sobre as coisas
celestes, trate de surripiá-la bem de- SÓCRATES
pressa ... No aspecto, você será igualzinho a
ESTREPSÍADES Querefonte ...
Quê? Vou comer sabedoria, como
um cachorro? ESTREPSÍADES
Ai,- infeliz de mim ! Ficarei meio
SÓCRATES morto!
Esse daí é um homem ignorante, um
bárbaro·! Eu temo, meu velho, que SÓCRATES
você precise dumas pancadas . . . Ora Chega de tagarelices r Mas trate de 505

vejamos, qlle faz quando alguém lhe seguir-me. Vamos, logo, depressa, por
bate? aqui ...

ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
m Apanho. Depois espero um pouco e Então antes dê-me aqui nas mãos ao
chamo testemunhas; depois, deixo pas- menos um bolinho de mel . . . Como
sar ainda mais um momentinho e vou tenho medo, descendo aí dentro . . . É
aos tribunais 13 4 .
1 3 5 Prática habitual nas cerimônias de iniciação.
1J 4 Alusão à mania judiciária dos atenienses. Com Como a vítima de um roubo, para procurar objetos
esse argumento, Estrepsíades acaba convencendo roubados nas casas dos suspeitos, devia apresentar-
Sócrates a aceitá-lo como discípulo. se "sem manto", nasce.novo mal-entendido.
198 ARISTÓFANES

como se fosse à caverna de Trofô- depois, bati em retirada, vencido por 525

nio. . , 3 6 homens grosseiros, eu que não o mere-


cia 1 41 • É isso que vos censuro, a vós
SÓCRATES
que sois inteligentes, em cuja homena-
V amos, ande. Por que você fica per- gem tanto me esforcei. Mas nem
dendo tempo ao redor da porta? mesmo assim, espontaneamente, nunca
(Entram ambos no hei de trair os espertos. Desde que,
''pensatório ") neste mesmo lugar o Virtuoso e o
Pervertido 1 4 2 receberam os maiores
CORO
elogios de homens aos quais é até doce
510 Então 1 3 7 vá, seja bem sucedido por falar, e eu - por ser ainda virgem e
sua coragem! Boa sorte a este homem, não ter o direito de parir - expus a 53.0
que j ti. bem ava.Ilçado nos limites da minha criança, que uma outra donzela
515 idade, pinta a própria natureza com recolheu e adotou 1 43 e vós generosa-
ações juvenis e cultiva a sabedoria! mente nutristes e educastes; desde esse
CORIFEU tempo, tenho penhores sinceros da
(Ao público) 1 3 8 vossa opinião.. Agora então, como
aquela famosa Electra 1 4 4, esta comê- 535
Espectadores, vou dizer-vos a verda- dia veio ver se poderá encontrar em
de sem rebuços. Sim, em nome de algum lugar espectadores tão inteligen-
520 Dioniso 1 3 9 , o que me criou. Tomara tes. De fato, quando vir, h~de reconhe-
eu possa vencer e ser considerado um cer os cachos do seu irmão . . . Obser-
bom poeta, assim como é verdade que
vai como esta comédia é naturalmente
vos julguei espectadores sagazes e esta sensata; pela primeira vez não se apre-
a mais engenhosa de minhas comédias
sentou depois de costurar diante de si
e achei conveniente fazer-vos prová-la um penduricalho de couro grosso e de
em primeiro lugar, esta peça que me ponta vermelha 1 4 5 para provocar o
deu o maior dos trabalhos 1 4 0 • Mas,
1 41
Os rivais premiados: Amípsias (Canos) e Cra-
13 6 Filho de Ergino, rei de Orcômeno. Segundo a tino (Garrafa).
lenda, foi tragado por uma fenda do solo e, de sua 1 42
Alusão à sua primeira comédia Convivas,
morada subterrânea, em Leobadéia da Beócia, pas- representada em 427 a.C., com a segunda classifica-
sou a proferir oráculos. O consulente, vestindo ape- ção. Nessa peça já era abordado o proplema da edu-
nas uma túnica, após vários ritos de purificação, cação contemporânea, de suas afinidades com as
penetrava na caverna e descia por uma abertura Nuvens (cf. vv. 534-535).
afunilada por onde só podia passar um corpo huma- 1
43
Muito jovem, Aristófanes não quis desde logo
no, levando em cada mão um bolinho de mel a fim enfrentar rivais mais velhos e de grande fama; por
de apaziguar as serpentes e outros animais selva- isso produziu -a peça com o nome de Calístrato ou
gens. de Fidônides. A· tradição de uma lei que exigia a
1 3 1 Inicia-se a Parábase, o intermezzo não dramá-
idade mínima de trinta anos para o poeta cômico
tico em que o poeta fala diretamente aos esP,ectado- parece-nos sem consistência. Embora a exposição
res. A parábase tinha uma.estrutura mais mi menos de crianças fosse condenada pelo povo como uma
rígida e o seu primeiro movimento eram es~ pou- ofensa a Zeus, protetor das famílias, não era proi-
cos versos que serviam de elemento de ligaÇão com bida por lei e era comum em Atenas, tendo-se torna-
a cena anterior (vv. 510-517). do ainda mais freqüente no IV século a.C., con-
1 J e Parábase propriamente dita. forme se pode verificar na Comédia Nova.
1 3 9 É perfeitamente natural a invocação a Dioniso,
1 4 4
Reminiscência dias Coéforas de Ésquilo (vv.
deus protetor da arte dramática, e, portanto, dos 168 ss.) em que El~ctra reconhece o irmão por uma
poetas cômicos. mecha de cabelos. Eurípedes na Electra faz uma crí-
1
4 ° Referência ao insucesso das Nuvens em sua
tica dessa passagem esquiliana (vv. 590 ss.)
primeira representação, quando Aristófanes só lo- 1 4 5
Os atores de comédia apresentavam simula-
grou obter o terceiro lugar. O poeta não pôde ocul- cros de falos dependurados debaixo da túnica curta.
tar o desapontamento, pois esperava melhor aco- O próprio Aristófanes não aboliu esse hábito, mas
lhida em vista dos novos recursos cômicos que provavelmente limitou a um ou dois os atores qué
havia criado: originalidade do assunto, citações e usavam o falo. Cf. v. '734 e também Acar., pp. 158,
pastichos de doutrinas filosóficas, etc. 592; Vesp., l343;Lis., 991, 1077.
AS NUVENS 199

540 riso das crianças. Não ridiculariza os meus Cavaleiros, acrescentando uma
carecas 1 4 6 e não dança o velha bêbada por causa do "kórdax", 555
"kórdax" 1 4 7 ; nem se trata de um velho aquela que Frínico 1 5 3 tinha apresen-
que recita os versos e bate com o bas- tado outrora, aquela que a baleia ia
tão no parceiro, disfarçando gracejos comer. . . Depois Hermipo 1 5 4 fez
indecentes 1 4 8 nem se precipita em novamente uma peça contra Hipérbola
cena carregando tochas, nem grita uh!, e já todos se encarniçam contra Hipér-
uh ! ... 1 4 9 Mas veio confiada em si bola, imitando as minhas imagens das
545 mesma e nos seus versos. E eu, sendo enguias ... 1 5 5 Nessas condições,
um poeta dessa categoria, não me qu~m ri desses gracejos que continue 560

envaideço nem procuro enganar-vos não se divertindo com os meus. Mas se


representando duas ou três vezes os achais alguma graça em mim e nas mi-
mesmos assuntos, mas sempre me nhas invenções, pára o futuro haveis de
adestro com habilidade, introduzindo parecer homens de bom senso 1 5 6 •
novos recursos, totalmente diversos
uns dos outros e todos engenhosos. Eu,· PRIMEIRO SEMICORO
quando Cleão 1 5 0 era poderoso, gol- (Estrofe) 1 5 7 Zeus, senhor dos céus,
peei-o no ventre, mas não tive a audá- poderoso, soberano dos deuses, neste 565
550 cia de pisoteá-lo de novo, quando se coro eu invoco em primeiro lugar; e o
achava prostrado no chão ... Mas os possante guardião do tridente 1 5 8 , sel-
outros, porque Hipérbola 1 51 uma vez vagem sacudidor da Terra e do mar
recebeu um golpe, sempre espezinham salgado; e o nosso pai famosíssimo,
o coitado e a sua mãe ... Primeiro Êu- venerando Éter 1 5 9 , nutridor de tudo; e 570
polis, o perverso, puxou para cena o o condutor de cavalos 1 60 , que, com
seu Maricas 1 52 depois de estropiar os raios multiluminosos, envolve a planí-
cie da Terra, poderosa divindade entre
1 4 6 Era hábito zombar da calVície; além disso, o deuses e mortais.
próprio Aristófanes era calvo (cf. Paz, 767).
1 4 1 Dança provavelmente originária do Pelopo-
neso, impregnada de elementos licenciosos e burles- 1 53
Poeta cômico que estreou em 429 a.C.
cos. O próprio Aristófanes faz Filocleão dançar o 1 5 4 Po.eta cômico que teve a primeira vitória em
"kórdax", nas Vespas, vv. 1516 ss. 435. Na peça Vendedoras de Pão, atacou direta-
1 48 Prov~el alusão ao ator Hermão.
mente Hipérbola e sua mãe.
1 4 9 Crítica das grosserias da farsa megariana.
Nota-se que Aristófanes apelou para esse recurso 1
5 5
Cf. Cav" vv. 864 ss.
1 5 6 Na parábase eram comuns os elogios aos
nesta mesma peça: cf. cena final do incêndio da
casa de Sócrates (vv. 1485 ss.). espectadores (cf. vv. 520 ss.) e as promessas de feli-
1 so Demagogo que sucedera a Péricles e adquirira
cidade (cf. vv. r115 ss.).
1 5 1 Ode, cantada pelo primeiro semi coro: versos
grande prestígio após a captura de Esfactéria (cf.
nota v. 186)- Cf. Tuc. II e IIl,passim. Aristófanes líricos (vv. 563-574). Observe-se que tanto na ode
atacara-o violentamente já nos Babilônios e depois corno na antode são as próprias Nuvens que invo-
nos Cavaleiros (424 a.C.). cam os deuses olímpicos. Como a parábase emitia a
1 51 · Demagogo ateniense que começou a vida opinião pessoal do poeta, este se julga na obrigação
como fabricãnte de lâmpadas, tendo conquistado de retratar-se de uma possível acusação de impie-
grandes posÍ~e entre os populistas. É criticado dade após as censuras dirigidas aos deuses, muitas
nos Cavaleiros (vv. 734 e 1315) e condenado em das quais haviam ficado sem resposta.
termos viole:rÍtos por Tucídides, VIII, 13. O próprio 1 58
Posidão (Netuno), deus dos terremotos e das
Aristófanes ridiculariza a mãe de Hipérbola, tida águas.
como usurária. Cf. Tesmof., vv. 842 ss. 1 5 9 Identificado com o Ar. É a única divindade
1 5 2 Eupolis, um dos três grandes da comédia, sati-
sofística invocada pelo coro.
rizou Hipérbola, chamando-o "Maricas'', assim
1 60 Hélio, personificação da divindade do Sol,
corno Aristóf~e atacara Cleão corno
"Paflagônio';. É possível que houvesse grandes venerado também como o condutor da carruagem
serne!hanças entre as duas peças. Todavia, nos Bap- ·que diariamente percorria o céu, de leste a oeste,
tas, Eupolis refuta essa acusação, a.Imnando que portadora da luz. Às vezes identificado com Apolo
havia colati8rado na composição dos Cavaleiros. (cf. vv. 225 ss.).
200 ARISTÓFANES

CORIFEU 1 61 SEGUNDO SEMICORO


575 Espectadores sapientíssimos, _·volvei (Antístrofe) E tu também ao meu 595

a atenção para cá. Injustiçadas, nós lado, Senhor Délio 1 6 7 , que habitas a
vos censuramos, aqui em vossa presen- C{ntia, rochedo de altos cornos; e tu,
ça. Pois embora prestemos à cidade bem-aventurada, que moras em
mais serviços do que todos os outros Éfeso 1 6 8 numa casa toda feita de ouro,
deuses, só a nós, dentre as divindades, onde as donzelas da Lídia te veneram 600

nem ofereceis sacrifícios nem fazeis com grandeza; e a nossa deusa nacio-
· libações, nós que velamos por vós. De nal, regente da égide 1 6 9 , Atena prote-
fato se houver alguma expedição total- tora da cidade; e o senhor da rocha do
580 mente sem juízo, logo, ou trovejamos Pamaso 1 7 0 , reluzente com as suas
ou chuviscamos 1 62 • No momento em tochas, notável entre as Bacantes de 605

que elegíeis estratego o curtidor Pafla- Delfos 1 71 , amigo do komos 1 7 2 , Dio-


gôn1o, odioso aos deuses, nós fran- niso.
zíamos as sobrancelhas e protestá-
vamos: "o trovão irrompeu em meio CORIFEU
aos relâmpagos" 1 ·6 3 , a Lua abandonou Quando estávamos prontas para vir
os seus caminhos, o Sol logo puxou para cá, a Lua encontrou-se conosco e
585 para si a sua centelha e dizia que não pediu-nos que vos disséssemos, inicial-
se mostraria diante de vós, se Cleão mente, que saúda os atenienses e os
fosse estratego 1 6 4 • E, apesar disso, vós seus aliados 1 7 :3 • Depois, disse-nos que
o elegestes. Dizem que as más resolu- está irritada, pois sofreu tratamentos 610

ções são próprias desta cidade 1 6 5 , e indignos, embora vos auxilie a todos,
que, no entanto, os deuses convertem não com palavras, mas de modo claro.
no melhor todas essas bobagens que Em primeiro lugar, porque vos faz eco-
590 fazeis ... Facilmente demonstraremos nomizar todos os meses não menos de
como mais este erro vos poderá ser uma dracma de tochas, tanto que todos
útil. Se condenardes Cleão, o gavião, dizem, quando saem à noite: "Escravo,
por roubo e corrupção e amordaçardes não compre a tocha 1 7 4 , pois é bela a
o pescoço dele com o afogador 1 6 6 , luz do luar". Ela diz ainda que vos faz
novamente, como de costume, embora
1 6 7 Apolo, que possuía na planície de Delos, lugar
cometêsseis um erro, o negócio há de de seu nascimento, um templo famoso, ao pé do
reverter no melhor para a cidade! monte Cinto.
1 6 8 Ártemis, a quem fora consagrado um grande

1 61 Epirrema: -
templo em Éfeso, região da Ásia Menor, às vezes
o coro dirige-se novamente aos
confundida com a Lídia.
espectadores. Agora fala em nome das Nuvens (vv. 1 69 Epíteto de Atena usado só nesta passagem.
575-594). 1 7 0 Ponto extremo da cadeia de montanhas que se
1 6 2 Referência à superstição de que trovoadas e situa ao norte de Ddfos. Era consagrado a Apolo e
chuvas eram sinal do desagrado de Zeus, determi- também a Dioniso, desde tempos muito antigos.
nando o adiamento das reuniões da Assembléia. Cf. 1 71 As mênades, mulheres acompanhantes do sé-
Acar.. v. 171. quito de Dioniso.
1 63 Paródia de versos do Teucro de Sófocles. 1 7 2 Lembramos que os "komoi" eram as festas
1 6 4 Houve um eclipse da Lua em 425 (outubro) e agrárias que deram origem à comédia.
um do Sol em 424 (março), por conseguinte durante 1 7 3 Crítica à saudação usada por Cleão em seus

o governo de Cleão. documentos oficiai:;, e, especialmente, na carta em


1 6 5 Era proverbial a insensatez ateniense, todavia que comunicava a vitória de Esfactéria - cf.
sempre favorecida pela boa vontade dos deuses. Cf. Escol., v. 612 - Eup.,fr. 322. A saudação é exten-
Cav., 1055,Ass., 473. siva aos aliados que normalmente assistiam às
1 6 6 Referência ao hábito de prender o pescoço dos Grandes Dionisíacas (mas não às Lenéias. Cf.
ladrões c·om o afogador óu golilha, para impedir Acar., vv. 505 ss.).
que engolissem objetos de valor. Aristófanes insiste . 1 7 4 Tochas resinosas, utensílio indispensável nas
nas críticas dos Cavaleiros, em que acusava Cleão viagens e saídas noturnas para alumiar os cami-
de peculato e concussão. Cf. Cav., v. 956,passim. nhos.
AS NUVENS 201

615 outros benefícios, e vós contais os dias ços, desajeitado e esquecido! Um indi-
de modo totalmente errado e fazeis víduo que, quando estuda algumas 630

uma atrapalhada de alto a baixo. Nes- bagatelas escolhidas, já se esquece


sas condições, ela afirma que os deuses delas ainda antes de aprendê-las. Não
a ameaçam, quando são esquecidos importa, vou chanf á-lo aqui para a luz
num banquete, e voltam para casa sem do dia, para fora da porta. Onde está
ter encontrado a sua festa, de acordo Est:repsíades? Trate de sair com o leito
620 com o cálculo dos dias 1 7 5 • Assim, ~agrdo! 1 82

quando deveis fazer sacrifícios, tortu-


rais e julgais 1 7 6 • Muitas vezes, quando ESTREPSÍADES
nós, os deuses, jejuamos 1 7 7 , lamen- (Vem carregando um ban-
tando Memnão ou Sarpedão 1 7 8 , vós quinho.)
fazeis libações e dais risadas; e foi por l\.fas os percevejos não me deixam
isso que Hipérbola, sorteado para ser levá-lo para fora!
deputado em Delfos 1 7 9 , depois foi des-
625 pojado de sua coroa por' nós, os deu- SÓCRATES
ses, pois assim saberá melhor que é Rápido, ponha isso no chão e preste
preciso contar os dias da vida de acor- atenção.
do com a Lua 1 8 0 •
ESTREPSÍADES
SÓCRATES Sim. 635
(Saindo do ''pensatório ".)
. Não, pela Respiração! Não, não, SÓCRATES
pelo Caos e pelo Ar! 1 81 Nunca vi um Então vamos, o que é que você dese-
homem tão bronco, cheio de embara- ja aprender agora mesmo, em primeiro
lugar, daquelas coisas que nunca lhe
1 7 5 Crítica à confusão em que redundou a reforma
ensinaram.? 1 83 · Diga-me, serão por
do calendário, baseada em estudos do matemático acaso as medidas, os versos ou os
Metão 1 que procurava adaptar os meses lunares ao ritmos?i 8 4
ano solar. Essa reforma começou a ser adotada a
partir do verão de 432 a.C.
1 7 6 Em dias santificados não havia sessões no tri- ESTREPSÍADES
bunal. Referência ao hábito de submeter os escravos As medidas, eu sim! Pois há pouco
à tortura a fim de obter testemunhos.
1 7 7 Parece que o jejum era de praxe entre os parti- fui tapeado por um mercador de .fari- 640

cipantes de certas festividades religiosas. Nas nha numa medida dupla.


Tesmofórias havia um dia de Nestéia.
1 7 8 Heróis que colaboraram com Príamo na defesa
de Tróia. Memnão era o rei mítico da Etiópia, SÓCRATES
morro por Aquiles e imortalizado por Zeus, Od., IV, Não· é isso . que lhe pergunto, mas
188. Sarpedão, comffi!dante dos lícios, morto por que medida você julga mais bela, o trí-
Pátroclo e pranteado por Zeus, foi levado a Lícia,
onde Sono e Morte o sepultarani,.II, XVI, 426 ss.; metro ou o tetrâmetro?
677 ss.
1 7 9 "Hieromnémon'', um dos magistrados religio-
1 82 Após a parábase, sucedem-se as cenas cômi-
sos que constituíam as deputaÇÕes das cidades à
Anfictiônia de Delfos, federação jurídico-religiosa cas, alternadas com estrofes líricas. Prosseguimento
que reunia vários Estados gregos. Não há confirma- e fim da educação de Estrepsíades (vv. 627-888).
1 83 Note-se o tom pedante de Sócrates, coinci-
ção histórica das relações de Hipérbola com esse
organismo. dindo com a arrogância de Protágoras em relação
1 8 0 Segundo o testemunho de Diógenes Laércio, aos seus discípulos. Cf. Plat., Prol., 318-D.E.
Sólon recomendara aos atenienses que contassem os 1 8 4
Provável referência a Protágoras (cf. Plat.,
dias de acordo corh a Lua. Prot., 391), já que Sócrates não tratava desses
1 8 1 Sócrates invoca uma nova trindade divina, assuntos. O mestre fala das medidas rítmicas dos
aliás, os seus deuses variam semp·re. . . Cf. vv. versos, e Estrepsíades entende mal, pensando em
264-5; 242; 773 e 814. medidas de capacidade.
202 ARISTÓFANES

ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
Nada me parece superior ao quarti- Coitado ! Pois não é nada disso que 655

lho ... desejo aprender ...


SÓCRATES
SÓCRATES
Você diz tolices ! o quê?
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES
Aquilo, aquilo, o discurso mais
645 Então aposte comigo que o quarti- injusto ... 1 8 e:
lho não tem quatro medidas ...
:SÓCRATES
. SÓCRATES Mas antes disso você deve aprender
Vá pro inferno! Como você é bron- outras coisas. Quais são exatamente os
co e totalmente. ignorante! Hum, tal- quadrúpedesnaachos?
vez possa aprender os ritmos mais ES.TREPSÍADES
depressa! ... Mas eu conheço perfeitamente os 660

ESTREPSÍADES machos, se é qu:e não estou louco ...


De que me servirão os ritmos para o Carneiro, bode, touro, pássaro ... 1 8 9
pão de cada dia? :SÓCRATES
Vê o que lhe está acontecendo?
SÓCRATES Você chama a fêmea de "pássaro",
Antes de tudo, para ser um hoinem com o mesmo nome do macho.
650 de espírito na sociedade, alguém que é
capaz de perceber dentre os ritmos ESTREPSÍADES
qual o enóplio 1 8 5 e, ao contrário, qual Como então? Diga-me !
o dátilo.
SÓCRATES
ESTREPSÍADES Como? "Pássaro" e "pássaro" ...
O dátilo? Por Zeus, mas eu sei!
ESTREPSÍADES
SÓCRATES Sim, por Posidão ! E agora como 665

Então diga ... (apontando o indica- devo chamá-los?


dor.) Qual é o outro "dátilo" além
SÓCRATES
deste dedo aqui? 1 a 6
"Pássara" e o outro "passarão".
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES
(Erguendo o aeao médio)
"Pássara". Está bem; pelo
Outrora, quando criança, eu usava Ar! ... 1 9 0 Nessas condições, só por
este aqui . . . 1 8 7
1 8 e Note-se a impaciência de Estrepsíades, que só
SÓCRATES
quer aprender uma coisa, o Discurso Injusto.
Você é um imbecil, um desajeita- 1 89 Crítica às teorias de Protágoras, principal-

do! ... mente sobre a "Ortoépia". Cf. Arist., Ret., III, 5,


1407; Plat., Crat., 391-B. Sócrates, preocupado
com as sutilezas gramaticais, não percebe que
18 s Ritmo adequado às danças guerreiras. Estrepsíades incluiu uma ave entre os quadrúpedes.
1 8 6 Trocadilho, pois dátilo tanto é dedo como "pé" Fomos obrigados a alterar o original a fim de man-
(medida rítmica-\ ~ 1u). ter o jogo de cena e de palavras, o que seria impos-
1 11 1 O gesto de erguer o dedo .médio, apontando-o a sível com as palavras "galo e galinha". Cf. vv. 874
alguém, significava que se considerava essa pessoa ss.
como um devasso, habituado a práticas contra a 1
9 0
Observem-se os progressos de Estrepsíades,
natureza. que já invoca uma divindade sofistica. Cf. v. 814.
AS NUVENS 203

este único ensmamento eu vou encher SÓCRATES


de farinha toda a sua gamelão 1 9 1 • Você ainda deve aprender mais
sobre os nomes próprios; quais são os
SÓCRATES
masculinos e quais os femininos?
670 Vê? De novo ainda mais essa! Você
diz "gamelão", masculino, quando é ESTREPSÍADES
feminina. Mas bem que eu sei quais são os
femininos ...
ESTREPSÍADES
Como? Eu chamo o "gamelão" de SÓCRATES
macho? Então diga.
SÓCRATES ESTREPSÍADES
Perfeitamente, como se dissesse Luzila, Filina, Clitágora, Demétria.
Cle0nimo.
SÓCRATES
ESTREPSÍADES Quais são os nomes masculinos?
675 Mas de que jeito? Explique-me !
ESTREPSÍADES
SÓCRATES Milhares. . . Filóxeno, Milésias, 68s

Para você, meu caro, "gamelão" Amínia ... 19 4


vale a mesma coisa que Cleôni-
mo ... 1 92 SÓCRATES
Coitado ! Mas esses não são mascu-
ESTREPSÍADES linos!
Mas, meu bem, Cleônimo não tinha
"gamelão"; ele costumava amassar ESTREPSÍADES
num pilãozinho redondo ... 1 9 3 E Para vocês não são masculinos?
daqui por diante como devo-dizer? SÓCRATES
SÓCRATES De modo algum! Encontrando-se
Como? "A gamela", çomo você diz com Amínia como você lhe chama-
"a Sóstrata". ria?, 9 s

ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
"A gamela"? Feminina? Como? Assim: "Aqui, aqui, Amí- 690

nia" !
SÓCRATES
Está certo. SÓCRATES
Vê? Você chama Amínia de mu-
ESTREPSÍADES lher!
680 Mas isso seria, a gamela, a Cleôni-
ma ... ESTREPSÍADES
Pois não é justo, se ela não faz .o ser-
1'91 A pilhéria desenvolve-se em tomo do uso de
viço militar ! ? . . . (Impaciente) Mas
uma palavra feminina da 2. ª declinação que, por por que aprendo o que todos nós
conseguinte, tem a desinência o que, teoricamente, é sabemos?
própria de masculinos.
1 92 (Vv. 674-680). Sócrates refere-se ao gênero

gramatical; Estrepsíades pensa no sexo e nos modos 1 9 4


Indivíduos efeminados: Filóxeno é mencio-
efeminados de Cleônimo e provavelmente também nado também nas Vespas, 84.
de um Sóstrato qualquer. 19 5
Maliciosamente Sócrates pede o vocativo que
1 93 Alusão à pobreza ou à devassidão de Cleôni- nos masculinos da L ª declinação termina em a,
mo. como nos femininos.
204 ARISTÓFANES

.SÓCRATES ESTREPSÍADES
Por Zeus, não é isso. (Aponta o (Em tom patético)
· leitq.) Mas deite-se aqui e ... Eu morro, infeliz de mim! Saídos do
ESTREPSÍADES leito sagrado mordem-me os 710

Que vou fazer? per ... sianos !200 Dilaceram-me o


peito, devoram-me a alma, arrancam-
SÓCRATES me os tesículo~ perfuram-me o rabo e 715
695
... Imagine algum expediente a res- acabam comigo ! ...
peito dos seus negócios.
CORIFEU
ESTREPSÍADES Ora vamos, não se desespere tan-
Não, lá não, eu lhe imploro ! Mas se to ...
é preciso, deixe-:-me pensar nessas coi-
sas deitado .no eh ão ... 1 9 6 ESTR.EPSÍADES
E como não'? Se meus be:Q.s sumi-
SÓCRATES ram, sumiu o meu corpo, sumiu a
Não é possível de· outra maneira. minha alma, sumiram os sapatos ... E 720

ESTREPSÍADES . além disso, alé:m desses rriales, can-


Ai, desgraçado de mim! Que pena tando de sentinela 20 1 quase que eu
hoje vou pagar aos percevejos! sumo também !

CORO SÜCRATES
700
(Estrofe) 1 9 7 Pense, f!Xamine, con- Eh, você aí ! Que faz, nao está
centre-se, revirando-se de todas as pensando?
maneiras! Rápido, se -cair num emba- ESTREPSÍADES·
raço 1 9 8 , salte para outro pensamento Eu, sim, por Posidão !
705 do seu intelecto . . . Que o doce sono
dos seus olhos se afaste! · SÓCRATES
(Pausa. Estrepsíalies geme e revi- E, então, em que pensou?
ra-se no lejtoJ
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Se alguma coisa minha vai escapar 725
Ai, ai! 1 99 dos percevejos ...
CORO
S(>CRATES
Que você está padecendo? Por que Você· vai perecer miseravelmente!
se consome? (Sai, impaciente)
1 9 6 Note-se a comiddade da cena. A princípio
ESTREPSÍADES
tem-se a impressão de que Estrepsíades não quer
pensar nos seus negócios, mas depois percebe-se Mas, meu bem, eu já estou morto !
que as 1amentações resultam da sujeira da casa de
Sócrates, cheia de insetos importunas (cf. v. 699). CORIFEU
1 9 1 Ode - O coro movimenta a ação; Estrep- Não se deve afrouxar e sim prote-
sí ades deve pensar e pôr em prática os seus
conhecimentos. ger-se2 °2. Pois é preciso achar mente
198 Referência ao método socrático de procurar espoliadora e meios de enganar.
repentinamente um novo rumo de investigações, ao
deparar com alguma dificuldade grave ou insucesso.
Cf. V. 743. 2
ºº Pilhéria, pois devia esperar-se o nome de um
1 9 9 Inicia-se um diálogo lírico de to.nalidade paté- inseto como percevejos.
tico-cômica que sugere uma paródia de cena trági- 201
Nas vigílias, as sentinelas costumavam cantar
ca, possivelmente de Eurípides. Cf. Hécuba, vv. para afastar o sono. Cf. Esq.,Agam., v'v. 15-16.
160-161. São as dores do parto intelectual de º Para subtrair a mente das influências e impres-
2 2

Es~epíad. sões do exterior, cf. v. 740. Cf. Plat., Pedro, 237-A:


AS NUVENS 205

ESTREPSÍADES negócios, distinguindo bem e obser-


(À parte) vando.
Ai de mim, quem é que poderia ESTREPSÍADES
arranjar-me uma idéia espoliativa, Ai de mim! (Salta do leito.)
730 feita de peles de carneiro?
SÓCRATES
SÓCRATES Fique quieto! E se tiver alguma difi-
(De volta.) culdade nos seus raciocínios, deixe-a e
Vejamos, em primeiro lugar, vou passe adiante. Depois, movimente-a de 745

observar o que faz esse fulano ... Eh, novo com ó pensamento e pondere 2 0 4 .
você está dormindo?
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Ó Socratesinho querido !
Não, por Apolo, eu não!
SÓCRATES
SÓCRATES Que é, velho?
Tem alguma coisa?
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Tenho um pensamento espoliador de
Não, por Zeus, eu é que não! juros!
SÓCRATES SÓCRATES
Nada mesmo? Mostre-o.

ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
(Erguendo a mão .debaixo Diga-me agora ...
do manto.)
SÓCRATES
Nada, exceto este "pau" na mao Quê?
direita ... 2 0 3
ESTREPSÍADES
SÓCRATES E se eu comprasse uma mulher feiti-
73S
Você não vai cobrir-se e pensar ceira da Tessália 2 0 5 , e, de noite, 750
depressa nalguma coisa? puxasse a Lua para baixo, e, a seguir, a
ESTREPSÍADES
fechasse num cofrezinho redondo,
No quê? Ó Sócrates, diga-me! como se fosse um espelho, e depois a
conservasse bem guardada?
SÓCRATES
Trate ·primeiro de achar o que deseja SÓCRATES
e diga-me. Mas então de que isso lhe serviria?

ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
Você já ouviu milhares de vezes o Para quê? Se a Lua nunca mais apa-
que eu quero, é acerca dos juros ...
Como não pagar a ninguém ... · 20 4 Nova alusão aos métodos do raciocínio socrá-
tico. Cf. v. 700 ss.
20 5 Os tessálios apregoavam que Medéia havia
SÓCRATES perdido a caixa de drogas em seu território, cujas
74o Então cubra-se, relaxe aos poucos o ervas, desde então, se tornaram dotadas de poderes
pensamento sutil e reflita sobre os seus mágicos. As mulheres da Tessália tinham fama de
espertas em artes de bruxarias, gabando-se até da
habilidade de puxar a Lua para baixo do céu. Cf.
2 º3 Veja nota v. 538. Plat., Górg., 513-A, Verg., Buc. VIII, 6.
206 ARISTÓFANES

recesse em parte alguma, eu não paga- rente,-com-a qual se acende o fogo?


ria os Juros .
SÓCRATES
SÓCRATES Está falando do cristal? 211
755 E por que motivo?
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Sim. Ora, que aconteceria se eu a
Porque . o dinheiro se ~mpresta ao tomasse no momento em que o escri- 770
mês ... 20 6 vão estivesse anotando a queixa, de
longe, assim, parado diante do Sol, e
~ÓCRATF.S
fizesse derreter os documentos 2 1 2 do
Está bem. Mas agora vou propor-lhe meu processo?
uma outra engenhosa questão. Se al-
guém processasse você numa causa de SÜCRATES
cinco talentos 2 0 7 , diga-me, como po- Você fala com sabedoria. Sim, pelas.
deria anulá-la? Graças !21 3
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
760 Como, como? Não sei, mas devo (.8xultante.)
procurá-lo. Ih, como estou contente! Consegui
SÓCRATES anular um processo de cinco talen-
Então não enrole sempre o pensa- tos ...
mento à sua volta 2 0 8 • Solte a inteli-
gência para o ar, como um besouro SÓCRATES
amarrado pelo pé 2 0 9 • Vamos depressa, então, agarre is-
to ... 21 4
ESTREPSÍADES
Já encontrei uma anulação muito ESTREPSÍADES
engenhosa para esse processo, tanto Quê? 775

que você mesmo há de concordar


comigo. SÓCRATES
Como você escaparia, se durante a
SÓCRATES defesa de um processo estivesse na imi-
765
Qual é? nência de ser condenado por falta de
testemunhas? ·
ESTREPSÍADES
Você já viu nas lojas dos droguis- ESTREPSÍADES
tas21 ° aquela pedra, bonita, transpa- De modo muito fácil e simples.
20 6 Veja nota v. 17. Sé)CRATES
20 7 Quantia que, segundo Aristófanes, Cleão havia Então diga.
recebido das cidades aliadas de Atenas. Cf. Babilô-
nios, Acar., v. 6,Paz, v. 171. ESTREPSÍADES
2 0 8 Sócrates incita Estrepsíades a não ficar preso a

um único método, sem refletir sobre outras possibi- Pois já digo. Quando não houvesse
lidades. mais do que um único proce~s antes 780
º O besouro dourado (Melolontha vulgaris), in-
2 9

seto muito comum nas regiões temperadas do sul da


Europa. As crianças costumavam usá-lo como 2 11
Vidro ou espelho ustório, muito raro, e consi-
brinquedo. derado uma preciosidade.
2 1 0 Os remédios eram preparados e vendidos pelos· 21 2 As tabuinhas cobertas de cera em que se regis-

próprios médicos. Geralmente os droguistas ven- travam as queixas.


diam poções e toda sorte de amuletos e quinqui- 213
Divindades que personificavam o encanto, a
lharias que os curandeiros e charlatães recomenda- graça e a beleza.
2 1 4 Cf. V. 490 ss.
vam.
AS NUVENS 207

de chamarem o meu 2 1 5 , eu iria cor- Nuvens, aconselhai-me alguma coisa


rendo enforcar-me ... de útil!
SÓCRATES CORIFEU
Você diz tolices ! Velho, nós lhe damos um conselho;
se você tem um filho já criado, man- 795
ESTREPSÍADES de~o aprender no seu lugar.
Não, pelos deuses, eu não! Poi~ nin-
guém apresentará uma queixa contra ESTREPSÍADES
mim, se eu estiver morto ... Mas, sim, eu tenho um filho, pessoa
de bem. Mas não quer aprender ...
SÓCRATES
Que será de mim?
(Impaciente.)
Você está sonhando. Vá-se embora, CORIFEU
não poderia ensiná-lo mais! E você consente?
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Pois é bem feito de corpo, cheio de
(DesesperadoJ vida, e nasceu duma dessas mulheres 800

Por quê? Não, Sócrates, pelos deu- de alto vôo, uma grã-fina 219 . Pois sim,
ses! irei procurá-lo. Se não quiser, de qual-
quer forma hei de expulsá-lo para fora
SÓCRATES de casa. (A Sócrates.) Entre e espere- 80J

Mas logo você se esquece até das me um pouco 22 º. (SaiJ


785

menores coisinhas que aprendeu em


primeiro lugar! 2 1 6 CORO
· (A Sócrates .)2 2 1
ESTREPSÍADES
(Antístrofe) Percebe quantos bene-
Vou ver ... (Hesitando.) Qual foi a ficias vai receber de nós, só de nós den-
primeira coisa? Qual foi a primeira? tre os deuses? Ele está disposto afazer
Que era, ~quela em que costumamos tudo que você ordena! E agora que o
amassar os alimentos? 21 7 Ai de mim, homem está bobo e visivelmente agita- 810
o que era mesmo? do, sabendo-o, você vai engoli-lo tanto
quanto puder! Depressa, essas coisas
SÓCRATES
costumam virar . ..
Você não vai sumir e arrebentar no
190 inferno? Velhote mais esquecido e (Sócrates sai. Aparece Es-
imbecil! trepsíades arrastando o fi-
lho pelo braço.)222
ESTREPSÍADES
Ai, desgraçado de mim! Então que ESTREPSÍADES
será de mim? Pois vou morrer, porque Não, pelo Vapor! 2 2 3 Você não fica- 81:

não aprendi a virar a língua !21 8 Ó


21 9 Veja com. v. 48
2 2° Verso em correspondência com v. 843.
2 1 5
A ordem do dia nos tribunais era fixa e prepa- 2 21 A correspondência com a Ode (700-705) não é
rada de antemão. O arauto· chamava sucessiva- perfeita, na Antode há dois versos a mais (vv.
mente as várias partes interessadas. Cf. Vesp., v. 811-812). Novamente o coro movimenta a ação.
1441. Terminada a educação de Estrepsíades prepara-se
º 21 6 Cf. vv. 640 ss. ambiente para a educação de Fidípides.
2 1 7 Estrepsíades só consegue lembrar-se de que se 222 Cena cômica de transição (vv. 814-889). Apre-
tratava de um nome feminino e, vagamente, de uni sentação do novo aluno.
223 Estrepsíades jura pelo Vapor, recusando as
utensílio.
2 1 8 Alusão às sutilezas da linguagem sofistica. divindades tradicionais.
208 ARISTÓFANES

rá mais aqui. Vá comer as colunas de FIDÍPIDES


Mégacles !2 2 4 Mas quem?! ...
FIDÍPIDES ESTREPSÍADES
Ó Senhor, que é que você tem, meu Quem reina é o Turbilhão, depois de
pai? Sim, você perdeu o juízo, por ter expulsado Zeus!
Zeus Olímpio! ·
FrnÍPIDES
ESTREPSÍADES Puxa, por que você diz tolices?
Está aí, tá aí ! Zeus Olímpio ... 2 2 5
Que bobagem ! Esse daí, com essa ESTREPSÍADES
idade, acreditar em Zeus ! Fique sabendo que é isso mesmo.
FIDÍPIDES
FIDÍPIDES Quem é que o afirma?
Mas afinal por que você achou
graça nisso? ESTREPSÍADES
Sócrates de Melos 2 2 7 e Querefon- 830

ESTREPSÍADES te2 2 8 , que conhece as pegadas das


820 Porque percebi que você é uma pulgas.
criancinha e pensa de modo antiquado.
FIDÍPIDES
Mas aproxime-se para saber mais.
(Sussurrando) E eu direi uma coisa Mas você chegou a tal loucura que
que se você aprender, será um homem! acredita em homens malucos?
Mas cuidado para não ensiná-la a 'ESTREPSÍADES
• / 1
mnguem ... . Cuidado ! Não diga nenhuma insen-
satez contra homens direitos, e de
FIDÍPIDES juízo. No meio deles, por' economia,
.
S1m. Que e.
/? 835
ninguém corta o cabelo, nem se unta
ESTREPSÍADES com óleos ou vai ao balneário para
825
Agora mesmo você Jurou por lavar-se. E você "deslava" a minha
Zeus ... vida, como se eu estivesse morto ! 2 2 9
Vá bem depressa . e aprenda em meu
FIDÍPIDES lugar.
Sim. FIDÍPIDES
ESTREPSÍADES Mas, afinal, que coisa útil se poderia 8-10

(Com ênfase) aprender, no meio desses indivíduos?


Então você vê como é belo apren- ESTREPSÍADES
der? Fidípides, Zeus não existe ! 22 6 Ora, sim senhor! Toda a sabedoria
que os homens têm. Você se conhecerá
22 4 Fidípides provavelmente ameaçara de novo ir
a si mesmo 2 3 0 , aprenderá como é
para casa do tio Mégacles (cf. v. 124). O velho ridi-
culariza a prosápia da família da esposa e lembra
que na casa dos parentes só se podiam comer as 22 7 Pilhéria, pois Sócrates era ateniense. •Alusão a

colunas do palácio, restos do antigo fausto. Diágoras de Meios, processado .por impiedade e
22 5 É a tradicional oposição entre as idéias antigas expulso de Atenas.
e as novas. Todavia é interessante que seja o pai o 228
Vejanotavv. 144ss.
·adepto das novidades, aprendidas dos sofistas. Cf. 22 9
Era hábito lavar os cadáveres antes de colocá-
vv. 367-380 ss. los na mortalha.
2 2 6 É a confidência essencial o princípio de tudo, 23 0
Alusão à máxima de Delfos, "Conhece-te a ti
"Zeus não existe!" Cf. vv. 367 ss., 380 ss. mesmo" - "Gnothi Sautón".
AS NUVENS 209

ignorante e grosseiro. Mas, fique a."qui e FIDÍPIDES


espere-me um pouco ... (Estrepsfades Então é por isso q{ie-·você perdeu até
entra.) ·o manto?
FIDÍPIDES ESTREPSÍADES
(Sozinho.) Não, não perdi, dispenseio-o ...
Puxa! Que hei de fazer, se meu pai
845 enlouqueceu? Devo agarrá-lo e levá-lo FIDÍPIDES
aos tribunais por demência, ou decla- Insensato, e os. sapatos, para onde
rar a sua loucura· aos fabricantes de você os desviou?
caixões de defuntos? ...
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
(Reaparece com uma ave Como Péric\es, "despendi no que
em cada mão.) era necessário: "23 3. (Elr}purrando o
filho.) Eia, ande, vamos-! Então erre, 860
Vejamos como é que você chama mas obedeça ao seu pai! Eu também
este aqui? Diga-me! outrora lhe obedeci, bem me lembro,
quando você tinha seis anos e ainda
FIDÍPIDES
balbuciava ...
Pássaro.
·Nas Diásias, 2 3 4 com o primeiro
ESTREPSÍADES óbolo de heliasta 23 5 que recebi, com
. E esta aqui? esse dinheiro comprei um carrinho
para você ..
FIDÍPIDES
FIDÍPIDES
Pássaro.
(De má vontade.)
ESTREPSÍADES De acordo. Mas com o tempo você s65
(Triunfante.) se arrependerá de tudo isso.
850 Ambos do mesmo jeito? Como você
·é ridículo! Daqui por diante não faça ESTREPSÍADES
mais isso, mas chame esta aqui de Ainda bem que você me obedeceu!
"passara,,.e este d"
~ _,, .
e passarao (Chamando.) Aqui, aqui, ó Sócrates!
Saia! Trago-lhe este meu filho, depois
FIDÍPIDES de convencê-lo, embora contra a von-
"Pássara"? Foram estas as habili- tade dele ...
dades que você aprendeu lá dentro, na
companhia daqueles terrígenos? 231 · 23 3 Pilhéria com a resposta de Péricles, quando

interrogado sobre o destino dado aos dez talentos


ESTREPSÍADES com os quais teria comprado o general Cleandridas,
comandante das tropas espartanas que haviam inva-
E muitas outras . . . Mas cada vez dido a Atica (446 a.C.).
855 que aprendia alguma coisa logo me 23 4 Nas Diásias era hábito presentear as crianças

esquecia dela, por causa da longa com brinquedos e doces. Veja nota v. 408.
23 5 Todo cidadão de mais de trinta anos tinha

idade ... 2 3 2 direito de participar das sessões do tribunal da


Heliéia. Os heliastas eram simples jurados e por
isso não necessitavam de conhecimentos especiais;
231 Os gigantes e titãs, em oposição aos Olímpios. de início, recebiam um óbolo (sexta parte da drac-
Aqui é usado ironicamente, como se equivalesse a ma) por sessão, depois, receberam dois, e a partir de
"átheoi", referindo-se à impiedade dos filósofos. 425, graças a Cleão, três, o famoso "trióbolo" tão
232 Cf. vv. 530 ss., 785 ss. criticado por Aristófanes. Cf. Cav., vv. 50 ss.
210 ARISTÓFANES

SÓCRATES (A Sócrates)
Mas é quase uma criança, ainda não
Então lembre·-se disto, ele deverá
"escovado" nos nossos cestos depen-
falar contra tudo o que é justo.
durados. ~ .
e ESOJIO=>
FIDÍPIDES
..... ,. ...
º
87 Você também seria escovado se o
(Da casa ef~ S1~;t ~·e .du~
enforcassem ... 2 3 6
gaiolas, como dois galos de briga.240, o
ESTREPSÍAQES Raciocínio Justo e o Raciocínio Injus-
Vá pro inferno ! Você ousa rogar to. Ambos ameaçam atracar-se2 4, J
pragas no seu mestre?
JUSTO
SÓCRATES Venha cá, mostre-se aos espectado-
(Com desprezo.) res, você que é um atrevido !
Vejam só ! Se o enforcassem !2 3 7 INJUSTO 890
Como ele pronunciou de modo estúpi-. Vá para onde quiser !2 42 Pois muito
do, com a boca escancarada ... Como mais facilmente, falando diante do
é que esse moço poderia aprender a povo, acabarei com você !2 43
875 escapar duma condenação, fazer uma JUSTO
citação ou adoçar a voz de modo.
Acabará.comigo? E quem é você?
persuasivo? E, no entanto, Hipérbo-
lo 23 8 aprendeu-o por um talento ... INJUSTO
Um raciocínio ....
ESTREPSÍADES
JUSTO
Não se preocupe. Ensine-o. É um O fraco ...
rapaz esperto por natureza. Desde
·criancinha, quando era deste tamanhi- INJUSTO
nho, modelava casas, esculpia navios, Mas eu vou vencê-lo a você que afir-
880 fabricava carrinhos de tiras de couro e ma que é mais forte do que eu .
fazia sapos de miolo de pão. Que lhe JUSTO
parece? Contanto que ele aprenda Com que habilidades?
aqueles dois raciocínios, o forte, seja
INJUSTO 895
ele qual for, e à fraco, aquele que com
palavras faz virar o que é injusto no Encontrando idéias novas 2 4 4

mais forte. E se não, pelo menos que JUSTO


885 aprenda o raciocínio injusto, a todo Sim, isso floresce, por causa desses
custo.
23 9
Segundo a indicação de vários manuscritos
SÓCRATES falta um trecho coral.
Ele mesmo há de aprender com os 2
4 0
Sugestão do Escolista.
dois raciocínios em pessoa. Eu vou-me 2 41 Cena _preparatória do agon. É o pro-agon (vv.
889-948). E caso único nas comédias de Aristófa-
embora (Sai) - nes, explicável, talvez, pela "mise-en-scene", já que
se introduzem duas novas personagens, o Justo e o
ESTREPSÍADES Injusto.
23 6 As palavras de Sócrates referem-se a todas as 2
4 2 Paródia de Eurípides, Télefo,fr. 721.
cenas anteriores, desde o verso 218. Ignorando o 2 43
É possível que o Raciocínio Injusto usasse a
que se havia passado, Fidípides supõe tratar-se de máscara de um sofista conhecido, talvez Protágo-
instrumento de tortura, o que explica a resposta do ras. De fato, se Anaxágoras era conheciao como "A .
V. 870. Mente" (Naus) e Demócrito "A Sabedoria"
23 7 Ignora-se qual o defeito de pronúncia que pro- (Sophia), Protágoras ·era chamado "Raciocínio"
voca as críticas de Sócrates. (Logos). Cf. Diels-Kra.n.z II, 8, 4; II, 85, 3.
238
V~janotv.51
2 4 4
. .É a grande censura: achar idéias novas.
AS NUVENS 211

insensatos que andam por aí. 245


INJUSTO
INJUSTO Você me diz rosas!
Insensatos não, sábios. JUSTO
JUSTO ... palhaço ...
Acabarei com você, miseravelmente. INJUSTO
9!0

INJUSTO Coroa-me de lírios ..


Fazendo o quê, diga-me?
JUSTO
JUSTO . parricida ....
Dizendo o que é justo.
INJUSTO
INJUSTO Você nao percebe que me polvilha
900 Mas vou responder e virar tudo de de ouro?
pernas par~ o ar. . . Pois afirmo que JUSTO
nem sequer existe justiça.
Não, antes não era com ouro, era
JUSTO com chumbo.
Afirma que não existe?
INJUSTO
INJUSTO Mas agora isso me servirá de enfei-
Pois bem, e onde está ela ? 2 4 6 te ...
JUSTQ JUSTO
Com os deuses ! Que grande atrevido !
INJUSTO INJUSTO· 915
Pois então, se existejustiça, e.orno é E vócê, um antiquado!
que Zeus não pereceu, depois de ter
acorrentado o seu próprio pai? 2 4 7 JUSTO
Por sua culpa nenhum rapaz quer
JUSTO
905 Fu ! Eis a maldade em marcha! .. ira à escola. E os atenienses hão de
saber um dia o que você ensina a esses
Dêem-me uma bacia ...
insensatos .
INJUSTO
Você é um velho tonto, um desequi- INJUSTO
librado ... Você fenece vergonqosamente !
JUSTO .JUSTO
E você um fresco, um sem-vergo- E você é bem sucedido. E, no entan-
nha ... to, antes mendigava, afirmava que era
Télefo da Mísia 2 4 8 e roía uma idéias 920
2 4 5 Os espectadores, os atenienses, que se deixam
enganar pelos sofistas. 2 4 8Muitas eram as lendas que envolviam o nome
2 4 6 O Injusto nega a existência da Justiça e, com de Télefo, filho de Hércules e Augé e rei da Mísia.
habilidade, faz o Justo falar de uma abstração Ferido por Aquiles, quando os gregos invadiram
personificada: "Dike'', a filha de Zeus e Têmis. Cf. seu país a caminho de Tróia, foi informado pelo
Hes., Teog., vv. 900 ss. oráculo de Delfos de que só o próprio autor do feri-
2 4 7 Referência à revolta de Zeus e seus irmãos mento poderia curá-lo. Na versão euripidiana, Téle-
contra o pai Crono; que, expulso do céu, foi acor- fo dirigia-se a Micenas disfarçado de mendigo, e,
rentado no Tártaro. Esse gênero de críticas já apare- em suas arengas, revelava-se um perfeito sofista.
ce em Xenófanes - fr. I, vv. 21 ss. (Diels), e em Aristófanes critica bastante essa tragédia de Eurípi-
Eurípides. Aristófanes, um tradicionalista, retoma des. Cf. Acar., 430 ss.; Rãs, 855, 864. Outrora, por
as mesmas censuras para mostrar os erros da nova conseguinte, o raciocínio sofistico não tinha sucesso
geração. Cf. também Plat., Eutifrão, 5; Rep., II, e agora, vitorioso, usava de suas argúcias na defesa
378-B; Esq., Eum. v. 641. das causas injustas. ·
212 ARISTÓFANES

de Pandeleteu 2 4 9
, tiradas duma sacoli- Então, vamos! Qual dos dois falará 940

nha ... primeiro?


INJUSTO
INJUSTO
Ah ! Que sabedoria .. Dou-lhe a palavra! Depois, toman-
do como base tudo que ele disser, vou
JUSTO dardejá-lo com palavrinhas novas e
n5 Ah ! Que loucura ... raciocínios 2 5 2 • E, afinal, se emitir um
grunhido, com 01; dois olhos e o rosto 945
INJUSTO inteirinho inchado, como se estivesse
... de· que você se lembrou. picado de vespas:, perecerá sob o efeito
JUSTO de minhas sentern;as.
... a sua, e a cidade que o sustenta, CORO
enquanto você corrompe a juventude! (Estrofe.) 2 5 3 Agora ambos vão
demonstrar, confiados em raciocínios
INJUSTO habilíssimos, pensamentos e reflexões
Você não há de instruir esse rapaz, sentenciosas, qual dos dois parece o
por mais que seja um velho Crono !2 50 melhor orador . .. Aqui se arrisca toda
JUSTO a sorte da sabedoria, pela qual os meus
930 Hei sim, se é verdade que se deve dois amigos 2 5 4 travam o combate 955

salvá-lo, e não exercitá-lo apenas em


supremo.
CORIFEU
tagarelices!
(Voltando-se para o Justo.)
INJUSTO
Mas você que coroou os antigos
-(A Fidípides.)
com tantos costumes honrados, diga as
Venha cá, ·deixe-o com as suas palavras que lhe agradam e ,fale sobre
loucuras. a sua natureza 2 5 !i. 960

JUSTO . JUSTO
Você há de arrepender-se, se lhe Então vou contar como era a educa-
puser a mão !2 51 ção a..11tiga 2 5 6 , quando eu florescia
dizeJ).do o que é justo, e a prudência
CORIFEU era considerada. Em primeiro lugar,
Chega de luta e de insultos! (Ao não se devia ouvir um menino cochi-
Justo.) Mas demonstre o que ensinava 2 52 Referindo-se a Eurípides, Aristófanes usa de
935 aos antigos, (Ao Injusto) e você, a expressões semelhantes. Cf. Acar., 444 ss.; Paz,
nova educação, para que ele ouça a 534.
ambos em suas controvérsias, faça a 2 53 Inicia-se o agon que apresenta a seguinte

subdivisão: Ode (vv. 949-958); Epirrema (vv.


escolha e freqüente a escola. 959-1008); Pnigos (vv. 1009-1023); Antode (vv.
1024-1033); Antepirrema (vv. 1034-1084); Antipni-
JUSTO gos (vv. 1085-1104). A primeira parte, em que fala
Quero fazê-lo. o Justo, compõe-se de versos solenes (vv.
959-1008); já a segunda parte, com o discurso do
Injusto, brejeiro e despudorado, compõe-se de ver-
INJUSTO sos mais cheios de vivacidade (vv. 1034-1084).
E eu também quero. 2 5 4 Note-se que o coro se refere ao Justo e ao

Injusto chamando-os "amigos".


CORIFEU 2 5 5 O coro incita o Justo e movimenta a ação.
2 s 6 A propósito dos id·eais da antiga educação veja
2 4 9 Sofista, citado também por Cratino, fr. 242, H. Marrou, Histoire de l'Education dans
como sicofanta e amigo de processos judiciários. l 'Antiquité, Paris, Du Seuil, 1955, Cap. IV; cf. K.
2 so Veja nota v. 398. Freeman, Schools of Hellas, London, Macmillan,
2 5 1 Intervém o coro pondo fim ao conflito. 1908, pp. 72 ss.
AS NUVENS 213

char nem um "a" 2 5 7 ; depois, os mora- para não mostrar nenhuma indecência
dores de um mesmo bairro andavam aos estranhos; de outro lado ainda,
pelas ruas, bem disciplinados 2 5 8 indo quem se levantava, devia aplainar a
à casa do professor de cítara2 5 9 , sem areia, tomando a precaução de não 975

mantos e em fila, ainda que nevasse ·deixar aos amantes nenhum vestígio de
neve farinhenta. O professor, por sua sua mocidade 2 6 6 . Naquele tempo, ne-
965 vez, começava ensinando-os a cantar, nhum menino costumava untar-se de-
com as coxas bem apartadas, ou 2 6 0 baixo do umbigo, e, assim, sobre os
"Palas terrível, destruidora de ci- genitais florescia uma penugem orva-
dades"2 61 lhada, como num fruto, e ninguém
ou molhava e amolecia a voz para aproxi-
"um som longífero" 2 6 2, mar-se do amante, prostituindo-se a si
sustentando os acordes 2 63 transmi- mesmo com os olhos 2 6 7 . Nos jantares, 980

tidos pelos pais. E, se algum deles se não era permitido servir-se da cabeça
fazia de bobo ou modulava uma modu- do rabanete, nem roubar a erva-doce
lação de voz, como essas de hoje, à ou selino dos velhos 2 6 8 , nem se devia
moda de Frínis 2 6 4 , tão difíceis de comer gulodices, dar gargalhadas ou
970

modular, era moído de muitas panca- ficar de pema:s cruzadas .


das, como se estivesse prejudicando as
INJUSTO
Musas. Na casa do professor de ginás-
Xi! São velharias do tempo das
tica, os meninos 2 6 5 deviam sentar-se
Dipolias, coisas cheias de cigarras, de
com as pernas esticadas para a frente,
Cecides e de Bufônias ... 2 6 s
2 5 7 Cf. Xenof., Banq., 1II, 12 ss.; Luc., Amor., 44.
2 5 8 Certamente vigiadris pelo pedagogo. Segundo 2 6 6
Durante os exercícios físicos, os jovens apre-
o testemunho de Aléxis, fr. 262, andar pelas ruas sentavam-se completamente nus; a presença de
ordenadamente era próprio dos homens livres. estranhos era proibida por um~ lei de Sólon, mas no
2 5 9 A educação dos jovens atenienses comportava
século V tornaram-se comum os abusos (cf. Esquio.,
três partes: a) primeiras letras. a cargo do Tim., 12) e as palestras e ginásios foram conside-
"gramatista"; b) poesia e música, com o "citarista"; rados ambientes de corrupção. Veja K. Freeman,
c) exercícios físicos. Aristófanes só se refere aos op. cit., pp. 68 ss.; R. Flace!iere, l'Amour en Grece,
estudos dos adolescentes, e por isso ignora o ensino Paris, Hachette, 1960, pp. 62 ss.
das primeiras letras que, obviamente, pouco devia 2 6 7
Sobre a prostituição masculina veja R. Flace-
ressentir-se da influência dos sofistas. liere, op cit., pp. 78 ss.; Hans Licht, Sexual Life in
2 60 A respeito da preocupação. com o aspecto
Ancienl Greece, London, Routledge, 1932, pp. 411
moral na educação ateniense. Cf. Plat., Prol., 325; ss.; Aristófanes sempre se revela adversário con-
H. Marrou, op. cit., p. 77; K. Freeman, op. cit., pp. victo do amor homossexual, não perdendo ocasião
71 ss. de ridicularizar qualquer inversão ou efeminação.
2 61 Verso inicial de um canto muito conhecido, Cf. vv. 355, 673 ss.; 1095, Tesmof., vv. 130, ss.
provavelmente da autoria de.Lâmprocles, poeta diti- etc ...
râmbíco, que floresceu em Atenas em 500 a.C. 2 6
ª O rabanete era apreciado pelas virtudes afrodi-
2 62 Verso atribuído ao poeta ditirâmbico Cidides síacas, sendo a cabeça a porção preferida. O aneto
de Hermíone. ou funcho, além de usado em poções medicinais era
2 6 3 O "modo" dórico, considerado o mais viril. comido cru ou cozido (cf. ital. flnocchi -
Havia também os modos jônio, eólio e frígio, cada "erva-doce"). Quanto ao selino, acreditava-se que
qual com o "ethos" particular da tribo originária. tinha o poder de reanimar os mortos, e, é claro, que
Essas diversas harmonias eram obtidas pela combi- devia ser muito apreciado pelos velhos.
nação de escalas e notas da lira. Cf. K. Freeman, 2 69
Coisas arcaicas, fora de moda. As Dipolias
op. cit., pp. 240 ss. Quanto à importância que os eram festas muito antigas celebradas em honra de
gregos emprestavam à ação moralizadora da músi- Zeus, pr.otetor da cidade. Em meio a rituais estra-
ca, veja Plat., Prol., 326 A-B; Rep., III, 399-A; nhos ~ arcaicos, havia o episódio das Bufônias, ou
Leis, II, 673-A.. . sacrifícios dos l?ois. Nestas ocasiões, os atenienses,
2 6 4 Citareda de Mitilene, que revolucionou o amigos de tradições, apresentavam-se com as famo-
acompanhamento musical com suas inovações. sas cigarras de ouro nos cabelos, costume que vinha
Veja nota v. 333. da época das guerras médicas, cf. Tuc., I, 6. Ceci-
2 s s Entenda-se como "menino" o jovem púbere, já des, um antigo poeta ditirâmbico, citado por Crati-
sexualmente maduro. no nos Onividenles.
214 ARISTÓFANES

JUSTO INJUSTO
985 Mas, na realidade, foi com essas coi- (A Fid{pides.)
sas que a minha educação criou os ho- Meu rapaz, se você lhe obedecer
mens guerreiros de Maratona 2 7 0 • Mas nisso, sim, por Dioniso, parecerá aque-
1000

você, desde logo, ensina as crianças de les porcos-filhos de Hipócrates 2 7 7 e


hoje a se embrulharem em mantos, e eu vão· chamá-lo d~:. "filhinho da ma-
sufoco de raiva quando alguém, preci- mãe" ...
sando dançar nas Panatenéias, segura
o escudo diante do sexo, sem respeitar
.JUSTO
a Tritogenéia 2 71 .- (Voltando-se para·
Mas então, esplêndido como uma
990 Fid{pides.) Em vista disso, coragem
flor, você passará o tempo no~ giná-
meu rapaz!· Escolha-me a mim, o
sios; não ficará parolando pela agora a
raciocínio forte. E você aprenderá a
respeito de argúcias espinhosas, com?
detestar a ágora 2 72 , a abster-se dos
a mocidade de hoje, arrastado aos tri-
balneários 2 7 3 , a ter vergonha do que é
bunais por um negocinho cheio de chi-
vergonhoso e a pegar fogo se alguém o
canas e contradições capciosas. Des- /005
insultar. Aprenderá também a erguer-
cendo à Academia 2 78 , apostará
se da cadeira, quando se aproximam os
corrida, debaixo das oliveiras fagra-
velhos, a não ser estúpido com os seus
. das, com um rapaz ajuizado e da
995 pais e a não fazer nenhuma outra ação
mesma idade, coroado com uma verde
vergonhosa, porque procura realizar a
cana2 7 9 , rescendendo a hera,. sereni-
imagem do pudor 2 7 4 : E não irá cor-
dade e choupo branco 2 8 0 no cair das
rendo à casa de uma dançarina, fican-
borbulhas, alegre na estação primave-
do de boca aberta diante do espetá-
ril quando o plátano troca doces mur-
culo, para receber uma· maçã 2 7 5 de
múrios com o olmo ... 2 8 11
alguma rameirinha e ter a sua boa
Se fizer o que eu digo 2 8 2 1010
reputação despedaçada. . . Também e atentar nesses conselhos,
não retrucará ao seu pai, chamando-o
2 terá sempre peito robusto,
de velho Jápeto 7 6
e censurando-o cores. brilhantes,
. pela sua velhice, graças à qual você foi
criado como um filhotinho ... 2 1 1 Sobrinho de Péricles, cujos filhos Telesipo,
Demofão e Péric!es eram ridicularizados pela pouca
inteligência. Cf. Tesm., 273; Eupol.,fr. 127. Troca-
2 1 o Vencedores das tropas de Dario, comandadas dilho: os porcos eram símbolo da estupidez. Cf.
por Dátis em Maratona. . , . Aten., II, 96-E. .
2 11 Nas Panatenéias os meninos dançavam a p1rn- 2 1 0 Os jardins de Academo, nas cercanias de Ate-·
ca armados e completamente nus, em honra de Ate- nas onde havia um ginásio e pistas de corrida.
na~ Tritogenéia. A etimologia desse epíteto de Ent~e as suas numerosas árvores, eram célebres as
Atena tem sido bastante discutida, podendo inter- doze oliveiras, que, segundo se acreditava, provi-
pretar-se: "nascida do mar" ou ~'nascid ao la~o do nham dos rebentos daquelas que Atena fizera brotar
Triton" (lago ou riacho). Cf. L1s., Da acusaçao de na Acrópole, quando de sua disputa com Posidão.
suborno, 1 e 4. 2 7 9 Guirlandas usadas pelos jovens durante as
2 12 Cf. Isocr.,Areop., 149 C.D. competições atlêticas, em homenagem aos Dióscu-
2 13 O hábito de freqüentar os balneários e o uso de ros (Castor e Pólux).
banhos quentes em certa época foram considerados 200 Hércules tomara um ramo de choupo branco e
um luxo, causa de efeminação. Cf. 1044, Plat., Leis, com ·ele se havia coroado, antes de atravessar o
VI, 761. , . Aqueronte. Esta árvore lhe era consagrada e servia
2 1 4 Exemplo dessa imagem do pudor ,e o Jovem de adorno nas competições atléticas.
Autólico, Xenof., Banquete, III. Cf. também Xenof., 2 01 A contradição é apenas aparente, pois.o chou-
Memor., II, 3, 16. po branco, como a nogueira, tem borbulhas pr~co­
2 1 s A maçã, fruto de Afrodite, era considerada o ces e perde-as antes da folhadura, por consegumte
símbolo do amor. Cf. Escol., v. 997; Cat. LXV, 19; bem antes do outono.
Verg., Buc., III, 64. 202 Pnigos - Falando num só fôlego, o Justo
2 7 s Titã, irmão de Crono e pai de Prometeu. apregoa as vantagens ela educação antiga.
AS NUVENS 215

ombros largos, língua curta, que sufocava até as entranhas 2 9 0 e


quadris grandes desejava revirar tudo isso com argu-
1015 e membro pequeno 2 8 3 • mentos contrários. . . Pois, no meio
Mas se praticar os hábitos de hoje, dos pensadores, chamaram-me "o ra-
logo terá pele pálida 2 8 4, ciocínio fraco", por isso mesmo, por- 10./0

ombros estreitos, peito acanhado, que fui o primeiro a pensar em contra-


língua grande, quadris pequenos, dizer as leis e a justiça. Eis aí o que
membro comprido vale muito dinheiro 2 9 1 : escolher os
e longos decretos ... 2 a s raciocínios fracos e, apesar disso, ven-
E ele persuadírá você cer! (A Fidípides) Observe como
a pensar que tudo vou refutar essa educação em que. ele
1020 que é vergonhoso é belo acredita, ele _que afirma em primeiro
e o belo, vergonhoso. lugar que você não terá licença de
E além disso, vai sujá-lo tomar banho quente ... 292 (Volta-se
com a devassidão de Antíma- para o Justo) Mas, com que funda- 10./5
co ... 2 8 6 mento você censura os ba,nhos quen-
1025 _ç_oR_oz s 1 tes?
(Antístrofe.) Cultor JUS.TO
da gloriosa sabedoria de altivas tor- Porque são uma coisa péssima e tor-
res2 8 8 , que doce e prudente flor repou- nam o homem covarde !
sa em suas palavras! Felizes, sim, os INJUSTO
10Jo que viviam nos tempos de outro ta! Em Páre ! Pois já o agarrei pela cintura
resposta, você que possui uma arte de e não o deixo escapar ... 2 93 Diga-me,
fina elegância, algo de novo deve dizer, dentre os filhos de Zeus, qual é o
pois o homem se saiu muito bem! homem que você julga de alma mais
CORIFEU valorosa? Diga-me, quem suportou as
(Ao Injusto) maiores fadigas?
Parece que contra ele você precisa JUSTO
1035 de resoluções terríveis, se pretende ven- Não julgo nenhum homem superior 1050

cer o rival sem expor-se ao ridículo. a Hércules.


INJUST0 289 INJUSTO
E, no entanto, há bem tempo eu é Pois então, você já viu alguma vez
banhos de Hércules, que sejam
2 83 Sinal de sensatez, segundo o Escoliasta.
2 a 4 Em decorrência da falta de exercícios. frios? 2 9 4 Ora, quem era mais corajo-
2 8 5
Não há perfeita correspondência na antítese. so?
Segundo a opinião de Meineke antes do v. 1015
deve faltar algum verso, representando a oposição
aos "longos decretos", numa crítica aos oradores, 29 º
Em correspondência com vv. 988 ss.
eternos donos de decretos à disposição de cada 2 91 Lit. "mais do que dez mil estateros": moeda de
freguês. prata que, em Atenas, valia aproximadamente 4
2 8 6 Personagem desconhecida, acusado de práticas dracmas; o estatero de ouro valia 20 dracmas.
homossexuais. 292
Vejanotav.991.
2 8 7 Antode - Terminada· a preleção do Justo, o 293
Metáfora extraída da linguagem da palestra: o
coro precede à apresentação do novo contendor (vv. lutador agarrado pela cintura era virtualmente
1024-1033). considerado fora de combate.
2 8 8 Comumente usado como epíteto de cidades. 29 4
Fontes termominerais. Segundo a lenda, a pró-
Eur., Bac., 1202; Supl., 618. pria deusa Atena fizera brotar, nas Termópilas, fon-
2 8 9
Antipirrema - Num diálogo malicioso, o tes sulforosas para que Hércules recuperasse as
Injusto refuta, com habilidade, as vantagens da edu- energias, depois de banhar-se em suas tépidas
cação antiga (vv. 1036-1084). águas.
I_
216 ARISTÓFANES

JUSTO ](NJUSTO
É isso, é isso mesmo que enche os E logo ela passou-o. p:;tra trás e foi-se
balneários de jovens que tagarelam embora, pois ele não era nem fogoso e
sem cessar o dia inteiro, enquanto as nem agraqável para festejar as 11.oites,
palestras ficam vazias .. debaixo &1s cobertas . . . 3 0 0 E uma 1070

mulher· gosta de ·sofrer violências ...


INJUSTO Você é um velho sendeiro . . . (A Fidí-
1055 E, depois, você censura a discussão pides.) Meu rapaz, observe tudo o que
na ágora, e eu a elogio. Se houvesse existe na modéstia e de quantos praze-
algum mal, Homem nunca teria feito res você deve privar-se: meninos, mu-
de Nestor um "discurseiro" 2 9 5 , nem lheres, jogos de cótabo 3 0 1 , alimentos,
de todos os sábios 2 9 6 . Daí então passo bebidas, gargalhadas. . . Ora, de que
para a língua: esse fulano diz que os lhe valerá a vida se for privado de tudo
jovens não devem exercitá-la, e eu d.igo isso? Bem, passarei às necessidades 1075

que sim. De outro lado, ele diz que se naturais. Você agiu mal, ficou apaixo-
1060 deve· ser modesto 2 9 7 . Dois grandes nado e praticou um adultério 3 0 2 , mas
males! Você já viu alguém ganhar al- foi apanhado. Você está perdido, pois
guma coisa com a modéstia? Fale, não é capaz de falar. . . Conviva co-
refute-me com palavras ! migo e goze a vida, salte, ria e não
ache nada vergonhoso . . . Pois se
JUSTO acaso for apanhado em flagrante adul-
Muita gente.. . . Pois não foi por tério, você dirá ao marido o seguinte:
isso que Peleu recebeu o seu cute- que não tem culpa nenhuma. Depois /080
lo? 2 9 a trate de jogar a culpa em Zeus, porque
ele também é mais fraco do que o amor
INJUSTO
e que as mulheres ... 3 0 3 Ora, como é
Cutelo? ! Grande lucro teve o des- que você, um mortal, poderia ser mais
1065 graçado ! . . Hipérbola, aquele das forte do que um deus? ... 3 0 4
lamparinas 2 9 9 , ganhou com a sua falta
de vergonha mais do que muitos talen-
3 00
O Raciocínio Injusto falseia a lenda para justi-
tos ... e não um cutelo, por Zeus! ficar-se. Tétis, segundo uma predição, daria à luz
um filho mais poderos9 que o próprio pai. Nessas
JUSTO condições, os deuses obrigaram-na, a desposar
E Peleu, graças à sua modéstia, des- Peleu, um mortal. O casamento não foi feliz, e a
ninfa passava a maior parte do tempo nas profun-
posou Tétis. dezas do mar, nos palácios de seu pai Nereu. Cf.
Horn., II., XVIII, 432 ss.
29 s Em toda esta passagem observe-se a argumen- 301
Jogo muito popular, principalmente após o
tação sofistica. Nestor, rei de Pilos, aparece na Ilía- jantar. Numa de suas variedades, o participante,
da e na Odisséia como um velho prudente, ainda deitado sobre o braço esquerdo, devia tomar a taça
corajoso no campo de batalha, mas amigo de longos com a mão direita e derramar suas últimas gotas em
discursos. Lit. "agoreta", i. e., falador na ágora . outra taça, que flutuava numa bacia.
.. ~ ~ Oàisseus, Calcas e outros. 302
Embora as mulheres vivessem mais ou menos
7 No texto grego "sophronein", palavra rica de
29
reclusas, o adultério não era raro. Cf. Lis., Sobre a
sentido moral e que encerrava as idéias de modéstia, Mor~e de Eratósen,~ H. Licht, op. cit., p. 63.
prudência, sensatez, castidade e comedimento. 303
29 8 Não desejando corresponder aos anseios amo- Alusão às muitas aventuras amorosas·de Zeus.
rosos de Hipólita (ou Astidamia) esposa de Acasto, Depois de certa época, tomou-se hábito procurar
Peleu quase perdeu a vida, após as intrigas da rai- desculpas nos mitos. Cf. Xen., Cir., VI, 1; Plat.,
nha. Como recompensa, recebeu dos deuses um cu- Rep., 377 etc., K. Frem~, op. cit., pp. 203 ss.
telo para defender-se e, mais tarde, a mão da ninfa 30 4
Cf. Ter., Eun., UI, 5, 40 "deum sese in homi-
Tétis. nem convortisse at quem deum quia templa caeli
2 99
Hipérbolo é acusado de misturar chumbo no summa sonitu concutit./ Ego Homuncio hoc non
bronze com o qual fabricava lâmpadas. facerem?"
AS NUVENS 217

JUSTO INJUSTO
Quê? ! E se por ter acreditado em Tem razão. E os oradores?
você lhe enfiarem um rabanete no rabo
JUSTO
e o esfolarem com cinza? 3 0 5 Ele terá
Nos esculhambados.
algum argumento para afirmar que
não é um esculhambado? 3 0 6 INJUSTO
Está aí, então não reconhece que diz 1095
INJUSTO 307 tolices? Observe no meio dos especta-
10ss E se for um esculhambado, que dores, qual é a maioria?
haverá de mal?
JUSTO
JUSTO Sim, estou observando .
Pois que desgraça ainda maior do
que essa ele poderia sofrer um dia? INJUSTO
E então, que vê?
INJUSTO
E então que dirá você se for derro- JUSTO
tado por mim nesse particular? Pelos deuses, os e~culhambdos são
JUSTO mais numerosos. (Mostrando ao
Calarei a boca! Que mais? acaso.) Eis ali um, bem o conheço, e
aquele ali, e aquele cabeludo que lá 1100

INJUSTO está ... 3 1 0


Então diga-me, vamos, os advoga-
dos públicos 3 0 8 , onde é que vamos INJUSTO
buscá-los? E então, que diz você?
JUSTO JUSTO
1090 Nos esculhambados.
(Resignado.)
INJUSTO Fomos vencidos. Ó prostituídos!
Acredito! E os trágicos 3 0 9 , onde? Pelos deuses, recebam o meu
JUSTO manto 3 1 1 , que eu passo para o seu
Nos esculhambados. lado. (Entra no ''pensatório ".)
INJUSTO
30 s O marido ofendido, segundo uma lei de Sólon, (A Estrepsíades.) 31 2
podia vingar-se do adúltero como bem lhe aprou-
vesse. Além de processos legais, cobranças de E então, você prefere apanhar o seu 1105
indenizações, podia infligir esse castigo físico.
3 o s Aristófanes associa duas idéias diferentes: a
filho e levá-lo de volta, ou vou ensiná-
conseqüência do castigo brutal recém-mencionado e lo a falar em seu beneficio ? 3 1 3
a perversão sexual, usando de um adjetivo expres-
sivo, mas que traduzido literalmente seria de uma
vulgaridade intolerável. Procuramos adaptá-lo, em- 3 1 0
Eis a triste realidade: todos os indivíduos à
pregando uma palavra que traduzisse as idéias de testa de cargos públicos e a maioria dos próprios
afronta física, falta de pudor e de vergonha. espectadores são prostituídos. É a derrota total dos
3 0 7 Antipnigos - Numa rápida troca de palavras, antigos ideais.
3 1 1 Atira fora o manto para correr com mais faci-
o Injusto ratifica a sua vitória definitiva apelando
para mais um argumento sofistico: o costume, a lidade, Cf. Xen., Anab., I, 10.
31 2 Provavelmente alusão ao cerimonial que prece-
força da maioria, vv. 1085-1104. É bem cruel o
juízo do poeta a respeito da sociedade ateniense. dera o ingresso de Estrepsíades na escola de Sócra-
3 0 8 Os advogados e oradores eram muito satiriza- tes. Cf. v. 497.
313 Pausa, correspondendo a um trecho coral. Ini-
dos. Cf. Cav., 880.
3 0 9 Provável alusão a Eurípides e principalmente a cia-se depois uma rápida cena cômica de transição.
Agatão. Cf. Tesmof., 200; R. Flaceliere, op. cit., Consumada a escolha, Fidípides será discípulo do
cap. III. Injusto (vv. 1105-1113).
218 ARISTÓFANES

ESTREPSÍADES mos fabricar tijolos, choveremos e


Ensine-o, castigue-o e lembre-se de arrebentaremos as telhas do seu telha-
que me deve afiá-lo bem; de um lado, do com granizos redondos. E, se algum
para GS pequenos processos e de outro dia se casar ou. ele próprio ou um
lado, afie os seus maxilares para as parente ou amigo, choveremos a noite
// 10
causas mais importantes .. inteira 31 7 e, provavelmente, há de pre- 1130

ferir estar até no Egito a ter feito um


INJUSTO . julgamento errado ...
Não se preocupe. Você há de achá-
lo um hábil sofista. ESTREPSÍADES-1
--- -
1 8

(Sai de ca'sa contando os


FIDÍPIDES dedos)
A meu ver ficarei pálido e infe- Quinto, quarto, terceiro, depois
liz. . 3 1 4 jesse, o segundo 3 1 9 . E depois, o dia
que mais temo de todos, que me· põe a
CO~JF'3U 3
~2
tremer e que abomino; logo depois dele
· · Então saiam. (A Estrepsíades.) .1135
vem o dia da lua velha e nova ... 3 2 0
Penso que você há de arrepender-se
Pois cada sujeito, a quein por acaso
disso.
estou devendo, jura e afirma que depo-
. (Ao público.) sitará a caução 3 2 1 para arruinar-me,
destrui~m, embora eu peça coisas
O lucro que os juízes hão de obter, justas e moderadas. . . "Ó. homem,
1115 se prestarem algum serviço a este coro, não receba esse dinheiro agora, dê-me
conforme o que é justo 31 6 , eis o que mais um prazo, deixe passar" ... E
desejamos expor. Em primeiro lugar, dizem que assim nunca receberão o 1140

se desejarem arar os campos na esta- dinheiro, e ins1ultam-me, 'que eu sou


ção adequada, choveremos primeiro culpado, que pretendem processar-me.
para eles, depois para os outros. Além Pois, então, processem agora! ...
disso, ·protegeremos as searas e as Pouco me importa! . . . Se é verdade
1120
videiras, de modo que não as molestem que Fidípides aprendeu a falar bem.·..
nem as· secas nem as chuvas excessi- Mas vou sabê-lo agora mesmo, baten-
vas ... Mas se alguém, sendo mortal,
ofender-nos a nós que somos deusas, 31 7
As chuvas estragariam toda a festa de bodas,
preste bem atenção aos males que com o cortejo luminoso que, ao anoitecer, saía da
padecerá por nossa causa, não co- casa da noiva, e se dirigia à casa do noivo.
3 1 8
Cenas cômicas., episódicas, vv. 1131-1302,
lhendo nem vinho nem qualquer outro com intermezzos líricos, vv. 1154-1169 e
produto de sua propriedade. De fato, 1206-1213. Conseqüências boas e más da decisão
assim que florescerem, as oliveiras e as de Estrepsíades.
31 9
Os meses eram divididos em três décadas: Os 9
.videiras serão cortadas, pois havere- ou 10 dias da última década eram contados às aves-
1/25
mos de atirar pedras enormes. Se o vir- sas, ou também a partir do vigésimo.
·
32
º O l.º dia de cada mês, dia da lua nova, não
coincidia com a conjunção do Sol e da Lua, a lua
3 1 4 Em correspondência com o v. 504. nova astronômica. Havia, pois, um intervalo de
31 s Segunda Parábase (vv. 1115-1130). tempo entre a conjunção e o começo da lua nova:
3 1 6 O Corifeu fala aos espectadores. A mesma era o "dia da lua velha e nova", quando se salda-
advertência aparece também em outras comédias, vam as dívidas ou se pagavam os juros. Cf. Diog.
prometendo aos juízes recompensas ou castigos. Cf. Laer., Sólon, 58; Plut., Sol.,XXV, 3.
Av., 1101 ss.; Ass., 1154. O povo podia aplaudir, 3 2 1 Ao iniciar uma causa de dívidas, as partes inte-

vaiar ou pedir bis, todavia a decisão final cabia aos , ressadas deviam depositar uma caução cujo mon-
juízes. Note-se que Aristófanes se dirige à parte do tante variava, correspondendo mais ou menos a
público que corresponde aos agricultores, direta- 10% da quantia reclamada. Essas cauções, pagas a
mente interessados nessas questões de chuvas, título de custas, eram reembolsadas aos vencedores
secas, etc. peJas partes vencidas. 1

.L
AS NUVENS 219

do à porta do "pensatório". (Bate à juros dos juros! Dano algum já pode-


porta) Ó moço, digo, moço, moço! rão fazer-me ...
Tal é o filho que eu tenho 1160
SÓCRATES nestes palácios,
(Saindo) reluzente com sua língua de dois
1145
Saúdo Estrepsíades 3 22. gumes,
meu baluarte, salvador do lar, ruína
ESTREPSÍADES dos inimigos,
E eu saúdo você. Mas antes receba solvente dos grandes males paternos!
isto aqui 3 23 . (Oferece-lhe algo.) Pois é
preciso retribuir ao mestre com algu- (A Sócrates)
ma coisa. E o meu filho, o rapaz que Vá correndo lá· dentro chamá-lo
há pouco você levou lá para dentro, para junto de mim. Meu filho, meu
diga-me, ele aprendeu aquele tal racio- pequeno, saia de casa, ouça o seu 1165
cínio? pai !3 2 1
SÓCRAT~
SÓCRATES
Aprendeu!
(Saindo com Fidípides.)
ESTREPSÍAbES Eis o nosso homem.
1150 Muito bem! Viva a Fraude, rainha
do mundo! ESTREPSÍADES
(Abraçando o filho.)
SÓCRATES
Meu querido ! Querido !
Tanto· que você poderia livrar-se de.
qualquer processo que desejar ... SÓCRATES
Vá-se embora e leve-o com você.
ESTREPSÍADES
·Embora · houvesse testemunhas ESTREPSÍADES
~
quando tomei o dinheiro emprestado? Oh, meu filho! Viva o meu 1170.

filho !328 (Observando Fidípides)


SÓCRATES Como estou contente, primeiro por ver
Tanto melhor. Ainda que sejam mil! a cor de sua pele ... Agora sim, logo à
primeira vista, você é um negaceiro e
ESTREPSÍADES
contraditor! Com toda a certeza flo-
(Declamando .)3 2 4
resce em você aquela nossa pergunta
1155 Clamarei então o altíssimo 3 2 5 era.: ri.acional: "que diz?", 329 para parecer
mor! Ai, ai, usurários do óbolo 3 2 6 , ofendido quando é você quem ofende e 1175

então chorem, vocês, seus capitais e os age mal, bem o sei. . . E no seu rosto
mora o tal "olhar da Ática" ... 33 0
322 Crítica à nova maneira de saudar, que, prova-
Contanto que agora você me salve, de-
velmente, vinha substituindo a tradicional, conside- pois que me arruinou! ...
rada antiquada pelas classes abastadas. Cf. PI., vv.
322 ss.; Av., v. 1377; V. Ehrenberg, The People of
Aristophanes, 2.ª ed., Oxford, Blackwell, 1955, p. FIDÍPIDES
209. Mas o que é que você teme?
323 Dinheiro ou um saco de farinha. Cf. v. 669.
32 4 Jntermezzo lírico; paródia do estilo trágico.
3 2 5 Paródia de Eur., Peleu,fr. 1. Aliás esses versos 32 7 Paródia de Eur., Hec., vv. 172 ss. e v. L8 l.
já haviam sido imitados por Frínico. 3 2 8 Volta ao diálogo habitual, vv. 1171-1205.
3 2 6 Usurários que emprestavam pequenas quantias 329 Alusão ao hábito das perguntas à queima-
a juros ·altíssimos. Era comum a taxa de um óbolo roupa, para intimidar o contendor.
diário por mina, o que correspondia a juros de 60% 3 3 0
Eram notórias a impudência e sem-vergonhice
ao ano! dos atenienses.
220 ARISTÓFANES

ESTREPSÍADES em dois dias, o da lua velha e o da 1190

O dia da "lua velha e nova". nova, para que as cauções fossem


depositadas na lua nova 3 3 .4 •
FIDÍPIDES
Pois há um dia da "lua velha e ESTREPSÍADES
.n ova"? Para que entào acrescento"u a lua
velha?
ESTREPSÍADES
Sim, aquele em que dizem que vão FIDÍPIDES
1180 depositar uma caução contra mim. 1v1eu caro, para que os acusados,
apresentando-se um dia antes pudes-
FIDÍPIDES
sem livrar-se espontaneamente 3 3 5 ;
Então os depositantes vão perdê-
caso contrário, que tivessem aborreci-
la 3 3 1 pois não seria possível que um só
mentos com o raiar da lua nova. 1195
dia fossem dois ...
ESTREPSÍADES
SÓCRATES
Mas então como é que as autori-
Não seria possível? dades não recebem as cauções no dia
FIDÍPIDES da lua nova, e sim no da "lua velha e
De que jeito? A não ser que uma nova"?
mesma mulher fosse ao mesmo tempo FIDÍPIDES
velha e jovem. Acho que fazem a mesma coisa que
SÓCRATES os provadores oficiais 3 3 6 : para surri-
E, no entanto, é a lei. _piar as cauções bem depressa, provam . 1200

com um dia de antecedência.


FIDÍPIDES
Pois em minha opinião eles não. ESTREPSÍADE5"
1185
sabem ao certo o que significa a lei 3 3 2 • Muito bem! (Ao público.) ó infeli-
zes, por que vocês ficam sentados, seus
ESTREPSÍADES
bobos? O lucro é nosso, dos sábios;
E que significa? vocês são umas pedras, um número,
FIDÍPIDES uns carneiros inúteis, um monte de
(Exclamando.) ânforas !3 3 7 Assim, a mim e a este
Bem que: o velho Sólon era amigo do meu filho devo entoar um canto de
POVO! . . . 3 3 3
33 4
O legislador designara o dia da lua nova para
ESTREPSÍADES o depósito das cauções, tendo em vista o caráter
incerto desse dia da "lua velha e nova". Todavia,
Mas isso nada tem que ver com a suas boas intenções foram prejudicadas pelas auto-
"lua velha e nova" ... ridades que costumavam receber as cauções com
um dia de antecedência. Cf. v. 1109 ss. A propósito
FIDÍPIDES convém lembrar que es:se dinheiro servia parapagar
os magistrados, os quais, por conseguinte, teriam
Pois bem, ele estabeleceu a citação maior pressa de arrecadá-lo.
3 3 5
Saldando as dívidas ou pagando os juros.
033 6
3 31 Vão perder a causa, pois não conseguirão pro- Comissão apontada por lei e e:ocahegada de
var que um dia possam ser dois. É evidente que provar de antemão a carne dos sacrifícios antes de
Fidípides sabe muito bem· do que se trata, mas finge distribuí-la ao povo. Provavelmente alusão ao jan-
ignorá-lo para encaminhar o raciocínio sofístico. tar celebrado no primeiro dia das Apatúrias, em que
3 3 2 Processo normal de refutação, a partir do a referida comissão comemorava a data um dia
"espírito da lei". antes do resto da população.
3 3 3 Sólon era apreciado pelos sentimentos demo- 3 3 7
Expressões comuns para designar seres inertes,
cráticos e freqüentemente citado pelos oradores. Cf. mudos como pedras, coisas sem valor, amontoadas
Esquin., Tim., 6; Isocr., Areop., 16; Dem., Cor., 6. em depósitos.
AS NUVENS 221

1205 triunfo em honra de nossa prosperi- referiu a dois dias. Por que dinheiro?
dade! Bem-aventurado Estrepsía-
CREDORI
des3 3 a'
Vocêjá·nasceu sábio, Pelas doze minas, que você tomou
e que filho. ~stá criando ... emprestadas para comprar o cavalo
ruço ...
(Ao Filho.)
ESTREPSÍADES
1210 Eis o que dirão os amigos e compa- Cavalo? Vocês ouviram? Se todos 1225
nheiros de bairro, cheios de inveja, sabem que eu detesto a equitação ! ...
quando você vencer os processos com
os seus discursos! Mas vou levá-lo CREDORI
pata casa, quero oferecer-lhe um ban- Por Zeus, você jurou pelos deuses
quete. (Entram pai e filho) que pagaria!
(Chega um credor com uma
ESTREPSÍADES
testemunha.)
Sim, por Zeus, mas naquela ocasião
CREDORI Fidípides ainda não me tinha apren-
Então, um homem deve desistir do dido o raciocínio irrefutável ...
1215
que é seu? 339 Não; nunca! Mas teria
sido melhor perder a vergonha desde CREDORI
logo naquela ocasião, do que ter essas Mas agora por esse motivo você pre- 1230

preocupações . . . (À testemunha.) tende negar a dívida?


Agora, por causa do meu próprio ESTREPSÍADES
dinheiro, eu arrasto você para servir de Pois que outra vantagem poderia
testemunha, e, ainda, além disso,. vou tirar desse conhecimento?
tornar-me inimigo de um homem do
1220 meu bairro. Mas, enquanto viver, ja- CREDORI
mais envergonharei a minha pá- Será que você pretende renegar o
tria! 3 4 0 Vou citá-lo 3 4 1 em voz alta: juramento, em nome dos deuses e no
(Gritando.) Estrepsíades ... lugar em que eu mandar?
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
(Saindo de casai (Com desprezo)
Quem é esse? Que deuses?
CREDORI
CREDORI
... para a "lua velha e nova" ... Zeus, Hermes, Posidão ! 3 4 2
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES
(À testemunha.)
Sim, por Zeus, e até depositaria 1235
Você é testemunha de que ele se mais três óbolos para jurar ... 3 43
J
3 8Jntermezzo lírico. CREDORI
3 3 9
Cena cômica: Estrepsíades e os seus credores: Está bem, tomara você pereça! E
a) primeiro credor, vv. 1214-1258; b) segundo cre-
dor, vv. 1259-1302. O primeiro credor provavel-
mente é Pásias, citado nos vv. 21 ss. 3 4 2 Era tradicional o juramento tríplice. Aqui os
3 40
Alusão à mania judiciária dos atenienses. três deuses invocados correspondem muito bem à
3 41
Antes de apresentar a queixa por escrito ao tri- natureza da transação: Zeus é o deus dosjuramen-
bunal, depositando a respectiva caução, o deman- tos; Hermes, o protetor dos lucros; e Posidão, o
dante devia citar pessoalmente o demandado, em deus dos cavalos.
presença de testemunhas. Cf. Av., v. 147, Vesp., v. 3 43 Estrepsíades acrescentaria à caução mais três

1416. ó bolos, em sinal de .desprezo pelo juramento feito.


222 ARISTÓFANES

ainda mais pela sua~impdênc ! CREDOR I


Que é isso? "Um gamelão".
ESTREPSÍADES
Enxaguado em salmoura este fulano ESTR.EPSÍADES
serviria para alguma coisa ... 3 4 4 E ainda reclama dinheiro, sendo
desse jeito? Eu não pagaria nem um mo
CREDOR!
ó bolo a ninguém que chame "a gàme-
Como você caçoa de mim! 12." de "gamelão', !3 4 6
ESTREPSÍADES CREDOR I
Nele caberão seis medidas .. Mas então você não vai pagar?
CREDOR! ESTREPSÍADES
Não, por Zeus poderoso e pelos deu- Que eu saiba, não! Então, depressa,
ses, você há de pagar-me! vá dando o fora de minha porta!
ESTREP SÍAD ES CREDOR I..
1240
Você me diverte admiravelmente, Vou-me embora, e você fique saben-
com os seus deuses! ... Para os enten- do que depositarei minha caução, ou 1255

didos, o Zeus dos seus juramentos é não seria mais um homem vivo ...
ridículo !3 4 5
ESTR.EPSÍADES
CREDOR! Está ·bem; val. jogar fora mais esse
Sim, está bem, com o tempo você há dinheiro, além das doze minas .. : E,
de ser castigado por ele ... Mas vai ou no entanto, não quero que você sofra
não vai pagar o meu dinheiro? Res- esse prejuízo, só porque dissé "o game-
ponda-me e deixe-me ir. lão" de maneira errada ...

ESTREPSÍADES (Sai o primeiro credor, aproxima-se


1245
Então fique tranqüilo, pois já lhe 1m segundo.) 3 4 7 '
1

responderei de maneira clara. (Sai.) CREDOR II


Ai, ai ! Ai de mim !
CREDOR I
(,4 testemunha) · ESTREPSÍADES
Que pensa você que ele vai fazer? Epa ! Quem será esse chorão, não 1260

Acha que vai pagar? ... seria talvez alguma divindade de


Carcino 3 4 8 que falou?
ESTREPSÍADES
(Volta com uma gamela.) CREDOR II
Quê? Você quer saber quem sou eu?
Onde está esse homem que me recla- Um desgraçado!
ma o dinheiro? (Ao credor) Diga, que
é isto? ESTREPSÍADES
Então siga o seu caminho ...
1 •
J 4 4 Pásias, provavelmente gordo e narigudo, é
comparado com um odre de vinho. Os odres de pele 3 4 6
Veja vv. 670 ss. Eis a nova sabedoria em
eram enxaguados com água salgada para maior marcha ...
elasticidade e também para preservá-los do apodre- 3 4 7
O segundo credor, possivelmente Amínias (cf.
cimento. v. 31), aproxima-se com lamentos, para despertar
3 4 5
Os iniciados nas sutilezas da sofística em compaixão e conseguir receber o dinheiro.
comparação com os demais, os ignorantes. Cf. 3 4 8
C arcino, poeta trágico, e seus filhos Xénocles,
Plat., Banq.; ·199. Estrepsíades sente-se bem escu- Xenótimo e Xenarco, freqüentemente criticados
dado na habilidade retórica do filho, e por isso age pela poesia cômica. Cf. Vesp., vv. 1501 ss.; Paz., v.
com impudência. 782; Rãs, v. 86.

- _j__ __
AS NUVENS 223

CREDOR II ESTREPSÍAD ES
Ó diviudad,e cruel ! Ó fortuna Acho que você ficou com o cérebro
que bradara '3 4 9 dos carto-s d-os meus abalado ...
cavalos!
1265 • . Õ Palas, tu me arruinaste!
CREDOR II
E você, por Hermes, será proces-
ESTREPSÍADES sado por mim, se não me devolver o
Afinal . . . que mal lhe fez o Tlepóle- dinheiro.
mo?
ESTREPSÍADES
CREDOR II Então diga-me a sua opinião! Zeus
Não me ccnsu"re, meu caro, mas or- faz chover sempre uma água nova ou o 1280

dene ao seu filho que . me pague o Sol puxa novamente de baixo para
dinheiro que recebeu, tanto mais que cima sempre a mesma ~gua? 3 5
1

estou mesmo sem sorte !


C_RE_QOR II
ESTREPSÍADES Não sei como é, nem me interessa!
Que dinheiro é este?
ESTREPSÍADES
CREDOR II Como então tem o direito de receber
1270
O que tomou emprestado. o dinheiro se não sabe nada sobre as
coisas celestes?
ESTREPSÍADES
Então você anda mesmo azarado, CREDOR II
ao que me parece. Mas se você está sem recursos, 1285

pague-me os juros do dinheiro.


CREDOR II
Sim, pelos deuses, caí quando guia- ESTREPSÍADES
va meus cavalos! Juros? Que bicho é esse?

ESTREPSÍADES CREDOR Ii
Por que então tagarela como se Que mais há de ser senão isto, que
tivesse caído de um burro ? 3 5 o cada mês e cada dia o dinheiro sempre
aumenta mais e mais, com o correr do
CREDOR II
tempo?
Tagarefo? Se quero receber o meu
dinheiro? ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES
bem, você julga por acaso que
~stá 1290

Não é possível que você esteja o mar é maior do que era antes?3 52
são ... . CREDORII
CREDOR II
Não, por Zeus, é o mesmo. Pois não
é natural que se torne maior ... 3 5 3
1275 Quê?
1
3 49 Paródia de Xénocles, Licínio; nessa tragédia,
3 51 Problema bastante discutido nessa época. Cf.
narrava-se a morte de Licínio, irmão de Alcmena, Anaxágoras (Diels-Kranz, A, I, 32); Hipocr., Ar.,
que caíra sob um _golpe de TlepÓlemo, filho de Hé- VIII; Aristot., Meteor., II, 2, 10; Ibid., 11.
racles; daí a alusão do v. 1266. É. evidente que o 3 5 2 Cf. Lucr., VI, 608: "principio mare mirantur

credor quer dizer que seus cavalos dispararam, que- non reddere maius/ naturam, quo sit tantus decur-
brando o carro. sus aquarum,/ omnia quo veniant ex omni ílumina
3 50 Expressão proverbial, significando "insânia, parte".
perda de juízo". Plat., Leis, III, 701-C. 3 53
Cf. Herficlito (Diels-Kranz, B, 31-12).
224 ARISTÓFANES

ESTREPSÍADES tos contrários à justiça, vencendo a


E, então, se é assim, infeliz, se ele todos com quem negociar, ainda que
1295 absolutamente não aumenta, embora diga coisas abomináveis . .. Mas tal-
afluam os rios, você pretende aumentar vez, talvez, há de preferir até que o. 1320

o seu dinheiro? Não vai perseguir o filho seja mudo!


seu caminho para longe da minha
casa? (Chama um escravo.) Dê-me a (Estrepsíades sai de casa,
vara! 354 chorando; atrás vem Fidí-
p ides .)3 5 9
CREDOR II ESTREPSÍADES ·
Eu tomo testemunhas diSso ... Ai, ai! Vizinhos, parentes e compa-
ESTREPSÍADES nheiros de bairro ! Ajudem-me de qual-
(Cutucando-o com a vara.) quer maneira, eu apanho! Ai, infeliz de
mim. Ai, a minha cabeça, o meu quei-
Vá-se embora. Que espera? Ó cava- xo ! Ó canalha, você bate no seu
lo de raça, você não anda ? 3 5 s pai?3 60
CREDOR II FIIiÍPIDES
Isso não é de fato uma violência? Sim, meu pai. 1325

ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
Você não vai correr? Eu me encarre- Vocês vêem? Ele concorda que me
1300
go, cutucando-o nas nádegas, seu ca- bate!
valo de tirante ... 3 5 6 Foge? Bem que
estava para pô-lo em marcha junto FID IPIDES
com as suas rodas e as parelhas! Por certo!
(Vai-se o credor. Estrepsíades
entra.) 3 5 7 ESTREPSÍADES
Canalha, parricida, bandido!
CORO
(Estrofe I) 3 5 8 Quanto vale amar as FIDJ'.PIDES
más ações! Este velho apaixonado Diga-me de novo essas mesmas coi-
1305
quer negar-se a pagar o dinheiro que sas .e· muitas outras. . . Sabe que até
tomou emprestado . . . É impossível me divirto bastante ouvindo tantos
que ainda hoje não aconteça algo, que insultos? 3 61
1310
talvez faça este sofista, de repente, so- ESTREPSÍADES
frer uma desgraça, em troca de suas Imundo!
velhacagens !
(Estrofe II) Creio eu, logo ele há de FIDlPIDES
encontrar o que há tempos procurava: Você me polvilha. com muitas 1330
1315 um filho hábil em sustentar argumen- rosas! 3 62
3 5 4
Aguilhada, vara comprida com um ferro agudo 3 59
Segundo ''.Agon" -- Após uma cena introdu-
na poi;ita, usada para instigar bois ou cavalos. tória, o "Pro-Agon" (vv. 1321:.1344), desenvolve-se
3 5 5 Veja com., v. 122. o ''.Agon" propriamente dito, que apresenta a
3 5 6
O cavalo atrelado por uma correia ao lado de seguinte subdivisão: Ode (vv. 1345-1350); Epirr,ema
dois cavalos de lança. Cf. lat.funalis equus. · (vv. 1351-1385); Pnigos (vv. 1386-1390); Antode
3 5 7 Estrepsíades entra a fim de continuar a festejar (vv. 1391-1396); Antipirrema (vv. 1397-1444);
a volta do filho. Cf. v. 1213. Antipnigos (vv. 1445-1451).
3 5 8 · "Choricon ': vv. 1303-1320; canto coral lírico 3 6
° Crime abominável, passível de "atimia". Cf.
(ode e antode). O coro começa a esclarecer sua ver- Andoc .. Mist .. 74; Xenof., Jvlem., I, 2, 49; Esquim.,
dadeira posição. A pausa coral dá tempo a que a Têm., 28.
3 5 1 Cf. vv. 906 ss.; 1330. ,
ação se desenvolva numa nova etapa: o castigo de
Estrepsíades. 3 62
Em correspondência com os vv. 910-912. j

- _J _____ ·- · -·-----
AS NUVENS 225

ESTREPSÍADES
pensar em como sobrepujá-lo. Se em
Você bate no seu pai? - algo ele não coefzasse, tão atrevido 1350

não haveria de ser. Mas existe algo· que


FIDÍPIDES lhe dá coragem. Bem visível é a sua
Por Zeus, vou demonstrar até que audácia ...
lhe bati justamente ... CORIFEU
ESTREPSÍADES Mas por que começou a discussão?
C analhíssima ! E como poderia ser É preciso dizê-lo diante do coro. E
justo bater no pai? você vai fazê-lo de qualquer maneira.
ESTREPSÍADES
FIDÍPIDES
Pois vou provar e vencê-lo com Bem, vou contar por que começa-
argumentos. mos a discutir 3 6 6. Pois enquanto ban-
queteávamos, como vocês sabem, pri-
ESTREPSÍADES meiro mandei-o apanhar a lira para 135s

Vencerá nesse assunto? cantar 3 6 7 uma poesia de Simôni-


des3 6 8 , sobre Crio e como foi tosquia-
FIDÍPIDES do. Ele disse-me que era antiquado
1335
Inteiramente e com facilidade! Es- tocar cítara e cantar, na hora de bebi-
colha com qual dos dois raciocínios da, como uma mulher moendo ceva-
quer falar 3 63 . dá ... 3 6 9
ESTREPSÍADES FIDÍPIDES
Que raciocínios? Pois nessa hora você não merecia
apanhar e ser pisado por mandar-me
FIDÍPIDES cantar como se tivesse convidado uma 1360

O forte ou o fraco? cigarra parajantar? 3 7 o


ESTREPSÍADES 3 6 6
Epirrema. Com a palavra Estrepsíades, agora
Sim, por Zeus, ó infeliz, será que eu transformado em paladino dos ideais da educação
mandei ensiná-lo a contradizer o que é antiga. Cf. o Discurso do Justo no I Agon.
3 e 1 Era a parte mais agradável dos banquetes.
justo, se você quer convencer de que é Todo ateniense bem educado devia saber cantar
1340 belo e justo que um pai apanhe de seus poesias dos grandes líricos, trechos dos poemas épi-
filhos? ! .. _3 6 4 cos e cantos apropriados a essas reuniões, chama-
dos "escólios". Cf. Vesp., vv. 1222, 1239; Rãs, v.
FIDÍPIDES 1301. Os convidados revezavam-se nos cantos, pas-
sando um ao outro um ramo de mirto ou oliveira.
E,"no entanto; vou convencê-lo e até Cf. v. 1354. Todavia, durante a Guerra do Pelopo-
você mesmo, depois de ouvir, não neso, esse costume passou a ser considerado fora de
moda. Cf. Plat., Prot., 347 C. E.; K. Freeman, op.
retrucará nada. cit., p. 103.
•3
68
Simônides de Céos (556-468 a.C.), poeta lírico
ESTREPSÍADES e elegíaco muito prestigiado graças às poesias que
De fato, quero ouvir o que você vai dedicou aos heróis das Guerras Médicas. Atribui-
se-lhe um epinício contra Crio de Egina, comparado
dizer ... a um carneiro recém-tosquiado, em virtude de um
trocadilho, entre o nome próprio Crio e a piilavra
CORO grega para designar o "carneiro" (criós).
(Estrofe) 3 6 5 Velho, a sua tarefa
1345 3 6 9 Em todas as épocas e lugares, as mulheres
~
sempre acompanharam os trabalhos manuais com
cantos .. Cf. Ath., Banq. Sof., 618-C, Polux, Ono-
3 6
3 Alu~ão à indiferença dos sofistas a respeito das masticon, 53, Plut., Sete Sábios, 14.
causas que deviam defender. 3 7 0
Os antigos acreditavam que as cigarras po-
3 6 4 Note-se a tardia amargura de Estrepsíades. Só diam cantar sem interrupções, contentando-se com
agora o velho começa a compreender a que desgra- uma simples gota de orvalho. Cf. Plat., Pedro,
ças o arrastou a sua própria leviandade. 259-C; Anacreôntica, 34; Edmonds, Greek Elegy
3 6 5 Ode - O coro dirige-se a Estrepsíades, confir- and Iambus, Anacreontea, Loeb, Londres, Heine-
mando a ameaça já antecipada no "Choricon ". mann, .1927.
226 ' ARISTÓFANES

ESTREPSÍADES que o criei, 3 7 4 percebendo tudo que


Ah, eram essas mesmas as palavras você queria dizer:. quando balbuciava!
que ele dizia lá dentro, afirmando que Se você dizia "bru" eu entendia e lhe
Simônides é mau poeta. Eu, embora a oferecia de beber. Quando pedia
custo, apesar de tudo, a princípio "mamá" aproximava-me para dar-lhe
contive-me. Depois, mandei-o apanhar comida. Nem bem você dizia
ao menos um galho de mirto e recitar- "caca" 3 7 5 eu levava-o para fora da 11as •

/365 me alguma coisa de Ésquilo. E ele logo porta e segurava-o diante de mim ...
disse: "Pois considero Esquilo o maior Mas você agora me estrangulava
poeta barulhento, .incoerente, empola- enquanto eu gritava e berrava que
do, criador de palavras escarpa- tinha vontade de aliviar-me! Canalha,
das ... " 3 71 Pensem então como o nem pensou em levar-me para fora, e,
meu coração palpitou de raiva! Toda- sufocado, eu fiz· a "caca" ali 1190

via, depois de engolir a cólera, eu mesmo ! 3 7 6


IJ7o disse: "Bem, cante alguma coisa desses
CORO.
modernos, algumas dessas bele-
zas ... " 3 7 2 E ele logo cantou uma (Antístrofe) Creio eu, dão saltos
3 7 7

passagem de Eurípides - livre-nos os corações dos jovens, à espera do


Deus - sobre um irmão que violentou que ele vai dizer . .. E se ele, que prati- ·
a própria irmã ... 3 7 3 Não me contive cou esses crimes, convencer o pai com
mais, e logo acometi com muitas pala-
suas tagarelices, em troca da pele dos /J95

vras más e injuriosas. Daí então, como velhos, eu não daria nem um ·grão de
1175 era natural, opúnhamos palavra a bico . .. 3 7 8
palavra. Depois, ele dá um salto, fere- CORIFEU
me, espanca-me, estrangula-me e (A Fidípides.)
acaba ·comigo ! ....
Movimentador e sacudidor de pala-
FIDÍPIDES vras novas, a sua tarefa é procurar um
Então não é justo, já que você não meio de convencer de que parece dizer
elogia Eurípides, o mais sábio? o que é justo 3 7 9 • ·

FIDÍPIDES
ESTREPSÍADES
O mais sábio! Ó .. . de que chamar Como é doce conviver com idéias
você? Mas vou apanhar de novo ... novas e engenhosas, e poder desprezar 1400

FIDÍPIDES 3 7 4
As crianças eram atendidas ou pela mãe ou
Sim, por Zeus, e serájusto. pela ama. Como a esposa de Estrepsíades, vaidosa e
cheia de luxos, pouco devia importar-se com as
necessidades do filhinho, o próprio pai, provavel-
ESTREPSÍADES
mente para poupar as despesas duma ama, tomava
1380
Justo? E como? Sem vergonha, eu conta dá criança. É visível o tom de paródia. Cf.
Horn., Jl., IX, 486-492 (palavras de Fênix a
Aquiles).
3 71
Alusão ao estilo grandiloqüente de Ésquilo. Cf. . 3 7 5
Expressão técnica da linguagem das amas. Cf.
Rãs, vv. 836 ss.; vv. 924 ss. etc ... Escol., v. 1384.
3 72
Crítica ao apreço de que go.zava Eurípides 3 7 6
Pnigos - Desespero e suprema humilhação de
entre os representantes da nova educação. Estrepsíades.
3 7 7 Antode - Confirmada a impudência de Fidí-
3 73
Cf. Eur., Éolo, referência a Macateu, filho de
Éolo, que seduziu a própria irmã, Canace. O casa- pides, treme o coro na expectativa de novas injusti-
mento de meios-irmãos era permitido em Atenas, ças (vv. 1391-1396).
nunca porém quando se tratava de filhos da mesma 3 7 8
Expressão de sentido obsceno.
mãe. Cf. Escol., v. 1371; Andoc., Alcibíades., 33; 3 7 9
Mais uma vez cabe ao coro movimentar a
Aristóf., Rãs, vv. 849 ss. ação, dando a palavra a Fidípides.

--.. J__ _
AS NUVENS 227

as leis estabelecidas !3 8 0 Quando eu são duas vezes crianças" 3 8 6 e que é


preocupava o meu espírito só com a natural que os velhos chorem mais do
equitação 3 81 , não era capaz de dizer que os jovens, tanto quanto é .menos
nem três palavras sem errar 3 8 2 • Mas, razoável que cometam erros ..
agora, depois que "ele em pessoa" 3 8 3
acabou com isso, eu convivo com há- ESTREPSÍADES
1420
1405 beis sentenças, palavras e pensamen- Mas em lugar algum se admite que o
tos, e creio que posso p~ovar que é pai sofra esse ultraje! 3 s 7
justo castigar o pai. FIDÍPIDES -

ESTREPSÍADES Acaso quem estabeleceu essa lei


Pois então, por Zeus, trate de andar pela primeira vez não foi um homem
a cavalo !3 8 4 Que para mim é melhor como você e eu, que persuadiu aos
sustentar uma quadriga de cavalos do antigos com suas palavras? 3 8 8 Então
que apanhar e ser moído de panca- é menos razoável que eu, de meu lado,
das ... para o futuro estabeleça uma nova lei
para os filhos: que, por sua vez, batam
FIDÍPIDES nos pais? Todas as pancàdas que 1425

Volto ~o ponto em que você me cor- costumávamos receber antes de ser


tou a palavra. E antes vou dizer-lhe o estabelecida esta lei, nós deixamos pas-
seguinte: quando eu era criança, você sar e lhes damos grátis para serem
me batia? espancados. . . Mas observe como os
galos e todos esses outros ·animais se
ESTREPSÍADES vingam dos seus pais. Ora, em que
Sim, porque tinha boas intenções e 1
diferem de nós, senão porque não redi-
cuidados por você. gem decretos? 3 8 9
FIDÍPIDES
ESTREPSÍADES
1410 Então diga-me: não é justo que eu
Já que você imita os galos em tudo, 1430
tenha ·boas intenções e, da mesma
por que também não come esterco e
forma, lhe bata, já que "ter boas inten-
não dorme num poleiro?
ções" é "bater"? Pois como é que o s~u
corpo deve sair ileso dos golpes e o FIDÍPIDES
meu não? E, no entanto, bem gue eu Não é a mesma coisa, meu caro;
1415 nasci livre. . . "As crianças choram e nem Sócrates aceitaria isso ... 3 9 º
pensas que um pai não dev_e cho-
rar?"3 8 5 Mas você dirá que se consi- ESTREPSÍADES
dera esse ato como· próprio das crian- Se é assim, não me- qata. Senão, um
ças, e eu re~pondi que os "Velhos dia, você também será castigado ...

3 80 Antipirrema - Fidípides, numa nova encarna- 3 8 6


Expressão proverbial.
ção do espírito Injusto, revela seu total desprezo 3 8 7 Estrepsíades, representante da velha guarda,
pelas leis tradicionais (vv. 1399-1445). apÓia-se no peso da tradição.
3 8 8 Fidípides argumenta a partir da relatividade
. 381 Cf. vv. 14 ss; 25 ss.
3 82 Cf. vv. 872 ss. das leis e dos usos, estabelecidos convencional-
3 83 Refere-se a Sócrates; provável alusão ao "ele mente, e apela para as leis naturais, de acordo com
disse" dos pitagóricos; veja nota v. 219. os ensinamentos dos sofistas. Cf. v. 1427 (alusão
_3 8 4 Já agora Estrepsíades está convicto dos erros aos galos); cf. Ehrenberg, op. cit., p. 358 (oposição
que cometeu. entre "physis" e "nomos").
3 8 5 Paródia de Eur., Ale., v. 691. Cf. Tesm., v. 3 89 Cf. v. 1018, Cav:, v. 1383.
39 º Fidípides, em última instância, apela para a
194; Escol., v. 1415. Como se trata de paródia,
mantivemos a 2. ª pessoa do singular na tradução. autoridade do mestre.
228 ARISTÓFANES

FIDÍPIDES FIDÍPIDES
Como? Por quê? E se eu vencê-lo com pala-
ESTREPSÍADES vras, sustentando o raciocínio fraco de
Porque tenho direito de castigá-lo e que se deve bater na mãe?
você ao seu filho, se o tiver. · ESTR EPSÍADES_3 9 3
FIDÍPIDES Que mais há de acontecer, se você
1435
E se eu não tiver filhos? Terei chora- fizer isso? Nada poderá impedi-lo de 1450

do em vão, e ·você já estará morto, precipitar-se no Báratro 3 9 4 , com Só-


rindo diante do meu nariz! crates e com esse tal raciocínio fraco!
(Ao Coro.) Nuvens 3 9 5 , eis o que estou
ESTREPSÍADES sofrendo por vossa causa, porque vos
Homens de minha idade 3 91 , penso confiei todos os meus problemas !3 9 6
que ele diz o que é justo ! Creio que se
deve concordar com os filhos no que é CORO
razoável. . . Pois é natural que tam- Você mesmo foi o causador desses
bém choremos, se não fazemos o que é males, .quando se: virou para a perversi- 1455

justo. dade ...


FIDÍPIDES ESTREPSÍADES
Reflita ainda sobre um outro pensa- Por que então naquele tempo vós
mento ... não me dissestes isso, e virastes a cabe-
ESTREPSÍADES ça de um homem velho e ignorante?
/440 Não ... Pois vou morrer ...
CORO
FIDÍPIDES É assim que sempre fazemos, quan-
E provavelmente você não ficará do reconhecemos que alguém é amante
com raiva depois de ter padecido o que das más ações, até que o atiramos na 1460

está padecendo agora ... desgraça para que aprenda a temer os


deuses 3 9 7 •
ESTREPSÍADES
Como? Mostre-me qual o beneficio ESTREPSÍADES
que você poderá fazer-me ... Ai de mim, é um castigo penoso mas
FIDÍPIDES
justo! Pois eu mão devia negar-me a
Também vou bater na minha mãe, pagar o dinheiro que tomei empres-
assim como lhe bati 3 92 . tado! (Ao filho.) Agora então, meu
querido, contanto que você venha co-
ESTREPSÍADES migo para destruir aquele canalha do 1465

Que diz? Que diz você? Esse crin;i.e Querefonte e só.crates, eles que me
ainda é maior ! enganaram a mim e a você ...

3 91 Dirige-se aos espectadores. 3 93


Antipnigos: reação de Estrepsíades (vv.
3 92
O filho esperava agradar ao pai; todavia não é 1445-1451).
bem sucedido, e a reação do velho é violenta. A mãe 3 9 4
Abismo a noroeste da Colina das Ninfas, de
gozava de muito respeito, no seio das famílias, e Só- onde se atiravam os condenados à morte. Cf. Cav.,
crates recomendava que se lhe devotasse afeição v. 1362;Rãs, v. 574; Hdt., VII, 133.
ainda que ela não o merecesse. Cf. Xen., Mem., II, 3 9 5
Êxodo: arrependimento e vingança de Estrep-
2. Opiniões contrárias aparecem em Esq., Eum., vv. síades.
658 ss., e Eurip., Or., vv. 552 ss. Veja V. Ehrenberg, J 9 s Cf. vv. 435-462.
op. cit., p. 194. J 9 1 Cf. vv. 1303-1320.
AS NUVENS 229

FIDÍPIDES caro Hermes, não fique com raiva de


Mas eu não poderia fazer mal aos mim, não acabe comigo, tenha com-
meus mestres ... 3 98 paixão, porque enlouqueci com fanfar-
ronices! Seja meu conselheiro, se devo
ESTREPSÍADES processá-los depois de escrever um·a
Sim, sim, respeite o Zeus pater- queixa ou o que lhe parece. (Finge
nal !399 ouvir o que diz a estátua.) Dá-me um
FIDÍPIDES bom conselho, não me deixando re-
mendar processos 4 0 4 mas dizendo-me
Vejam só, Zeus paternal! Como
você é antiquado! Acaso existe um que ponha fogo na casa dos fanfar-
rôes 4 0 5 , o mais depressa possível!
Zeus? 400
(Aos escravos.) Aqui, aqui, Xântias ! /485

ESTREPSÍADES (Yântias acorre.) Saia, apanhe uma es-


Existe. cada e traga uma tocha, e, depois se
~ocê estima o seu patrão suba ao
FIDÍPIDES "pensatório" e ponha o teto abaixo, até
1./70
Nâo, · nºão existe, .quem reina é o derrubar a casa em cima deles. (A
Turbilhão, depois que destronou outro escravo) Você, traga-me uma /.f 90

Zeus ... 4 º 1 tocha acesa e eu hoje vou fazer que


ESTREPSÍADES
algum deles me pague, por mais char-
latães qu·e sejam ! 4 0 6
(Aproximando-se dP um
pote.) (Sobe ao telhado com a
Não destronou. Era eu que acredi- tocha.)
tava nisso, por causa deste pote .. : 4 o 2
Ai, desgraçado de mim, porque o jul- DISCÍPULO A
gava um deus, quando você é um (De dentro.)
vaso! ... Ai, ai!

FIDÍPIDES ESTREPSÍADES
/.f 75
Fique aí delirando consigo mesmo e Tocha, a sua tarefa é lançar grandes
dizendo tolices ... (Sai.) chamas!

ESTREPSÍADES DISCÍPULO B
Ai, que falta de juízo! Como estava (Saindo, espantado.)
louco quando quis jogar fora os deuses Homem, que está fazendo?
por causa de Sócrates ! (Aproxima...,se
J480
de um busto de Hermes 403 .) Mas, meu ESTREPSÍADES
Que faço? Que mais há .de ser senão /./95

3 9 s Cf.v.871. trocar sutilezas com as traves da casa?


3 9 9
Epíteto de Zeus, freqüente em outras cidades,
mas pouco usado em Atenas. Cf. Plat., Eutid., DISCÍPULO B
302-C.D. Aqui invocado como protetor dos pais. (De dentro.)
4·00 Cf. v. 818.
401 Cf. vv. 380 ss.; vv. 827 ss. Com- amargura Ai, quem põe fogo em nossa casa?
Estrepsíades ouve o filho repetir as suas próprias
palavras.
4 0 2 Prosseguimento ~explicação do mal-entendido 4
o4Alusão à mania judiciária dos atenienses.
que se iniciara nos vv. 380 ss. 40 5 Epíteto usual com que eram criticados os filó-
403 Hermes "guardião das portas". Cf. Plut., 1153. sofos. Cf.jr. 418; Eúpolis,fr. 311; Plat., Fed., 70·C.
Passagem semelhante ·em Paz, v. 658. 40 6 Cf. V. 102.
230 AS NUVENS

ESTREPSÍADES "Ando pelos ares e olho o sol de


Aquete fulano · cujo manto vocês cima" ... 40 8
roubaram ... 40 7 SÓCRATES
Ai de mim, àlesgraçado, vou morrer 1505

DISCÍ!>{J1=_9 B sufocado!
Vai matar-nos, matar-nos.
DISCÍPULO A
Desgraçado de mim, vou morrer
ESTREPSÍADES queimado!
(Desmanchando o telhado)
. ESTREPSÍADES
Pois é isso mesmo que eu quero, se a Pois, com que sabedoria, vocês
15
ºº tocha não trair as miilhas espranç~, insultam os deuses e investigam o
ou se antes eu não cair e quebrar o "assenfo" da Lua? (Ao escravo) Ata-
pescoço ... que, atire, bata, bata por muitas ra-
zões, e principalmente porque você
sabe que eles ofendiam os deuses !
SÓCRATES
(Aparecendo.) CORO
(Saindo)
Homem, que está fazendo? Você aí
em cima do telhado? ! . Conduzi-nos para fora. 1510

Hoje o· nosso coro já dan-


çou a sua medida ...
ESTREPSÍADES
40 8
Verso idêntico a 225 (palavras de Sócrates,
401 Cf.v.497,v.856. aqui repetidas ironicamente).
Este livro integra a coleção·
OS PENSADORES - HISTÓRIA DAS GRANDES IDÉIAS DOM UNDO OCIDENTAL
Composto e impresso nas oficinas da
Abril S. A. Cultural e Industrial, caixa postal 2372, São Paulo

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