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II .
DEFESA DE SÓCRATES
XENOFONTE
OI.TOS E FEITOS
M EM O RÁV E1·S D E SÓ C .RAT ES
*
· APOLOGIA DE SÓCRATES
ARISTÓFANES
AS NUVENS
Sócrates não deixou nenhum escrito. Tudo o que sabemos sobre ele - sobre
sua vida e sobre seu pensamento -provém de depoimentos de discípulos ou de
adversários. Os historiadores da filosofia são unânimes em considerar que os
principais testemunhos sobre Sócrates são fornecidos por Platão e Xenofonte,
que _o exaltam, e por Aristófanes, que o combate e satiriza. Do confronto desses
diferentes retratos é que se pode tentar extrair a verdadeira fisionomia de
Sócrates.
Como outros textos de escritores antigos, os de Platão, Xenofonte e Aristó-
fanes são tradicionalmente divididos em passagens identiflcadas, em todas as
edições, através de números e/ ou letras colocadas nas margens laterais.
PLATÃO
.
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< DEFESA . ·- .
DE SÓCRATES
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I
Exórdio
t7a Não sei, Atenienses, que influência sito confiança na justiça do que digo;
exerceram meus acusadores em vosso nem espere outra coisa quem quer de
espírito; a mim próprio, quase me fize- vós. Deveras, senhores, não ficaria
ram esquecer quem sou, tal a força de bem, a um velho como eu, vir diante de
persuasão de sua eloqüência. Verdade. vós plasmar seus discursos como um
porém, a bem dizer, não proferiram rapazola. Faço-vos, no entanto, um
nenhuma. Uma, sobretudo, me assom- pedido, Atenienses, uma súplica pre-
brou das muitas aleivosias que assaca- mente; se ouvirdes, na minha defesa, a
ram: a recomendação de cautela para mesma linguagem que habitualmente
não vos deixardes embair pelo orador emprego na praça, junto das bancas,
b formidável que sou. Com efeito, não
onde tantos dentre vós me tendes escu-
corarem de me hayer eu de desmentir
tado, e noutros lugares, não a estra-
prontamente com os fatos, aos mos-
nheis nem vos amÕtineis por isso.
trar-me um orador nada formidável,
Acontece que venho ao tribunal pela d
eis o que me pareceu o maior de seus
primeira vez aos setenta anos de idade;
descaramentos, salvo se essa gente
sinto-me, assim, completamente es-
chama formidável a quem diz a verda-
de; se é o que entendem, eu cá admiti- trangeiro à linguagem do local. Se eu
ria que, em contraste com eles, sou um fosse de fato um estrangeiro, sem dúvi-
orador. Seja como for, repito-o, verda- da me desculparíeis o sotaque e o lin-
de eles não proferiram nenhuma ou guajar de minha criação; peço-vos· 'ªª
quase nenhuma; de mim, porém, vós nesta ocasião a mesma tolerância, que
ides ouvir a verdade inteira. Mas não, é de justiça a meu ver, para minha lin-
por Zeus, Atenienses, não ouvireis dis- guagem - que poderia ser talvez pior,
cursos como os deles, aprimorados em· talvez m~lhor - e que examineis com
nomes e verbos, em estilo florido; atenção se o que digo é justo ou não.
e serão expressões espontâneas, nos ter- Nisso reside o mérito de um juiz; o de
mos que me ocorrerem, porque depo- um orador, em dizer a verdade.
vosias contra mim e dos primeiros res tenho junto de vós, há muitos anos,
12 PLATÃO
que nada dizem de verdadeiro. A esses nomes, salvo quando se trata, porven-
tenbo mais medo que aos da roda çle tura, de um autor de comédias. Os que,
Ânito 1 , posto que estes também são por inveja, ou malquerença, vos procu-
temíveis. Mais temíveis, porém, senho- ravam convencer, mais os que, conven-
res, são aqueles, que, encarregando-se cidos, por sua vez convenciam a
da educação da. maioria de vós desde outros, todos esses são os mais emba-
meninos, fizeram-vos crer, com acusa- raçosos; nem sequer é possível citar
ções inteiramente falsas, que existe aqui em juízo nenlhum deles e refutá-lo;
certo Sócrates, homem instruído, que o defensor é inevitavelmente o brigado
estuda os fenômenos celestes, que a combater como que sombras, a repli-
investigou tudo o que há debaixo da car sem tréplica. Em conclusão, con-
terra e que faz prevalecer a razão mais cordai comigo em que ·meus acusado-
fraca. Por terem espalhado esse boato, res são de duas classes:' os que acabam
Atenienses, são esses os meus acusado- de acusar-me e os de antanho, a quem
res temíveis, porque os seus ouvintes aludi; admiti, também, que destes ine
acham que os investigadores daquelas deva defender em primeiro lugar, pois
matérias não crêem tampouco nos deu- que a suas acusações destes ouvido
ses. Depois, esses acusadores são nu- primeiro e muito mais que às dos
merosos. e vêm acusando há muito últimos.
tempo; mais ainda, falavam convosco Bem, Atenienses, é mister que apre-
na idade em que mais crédulos podíeis sente minha defesa, que empreenda
ser, quando alguns de vós éreis crian- delir em vós os efeitos dessa calúnia, a 19a
ças ou rapazes, e a acusação era feita a que destes guarida por tantos anos, e
inteira revelia, sem defensor algum. De isso em prazo t~io curto. Eu .quisera
d tudo, o que tem menos sentido é não se que assim acontecesse, para o meu e
poderem dizer nem saber os seus para o vosso bem, e que lograsse êxito
a minha defesa; considero, porbm, a
1 Ânito rico industrial e político, fracassou como
·Acusações Antigas
mente aos seus próprios, mas não o tempo, aprendendo deles alguma coisa.
era. Meti-me,· então, a explicar-lhe que Pois bem, senhores, coro de vos dizer a
supunha ser sábio, mas não o era .. A verdade, mas é preciso. A bem dizer,
conseqüência foi tomar-me odiado quase todos os circunstantes poderiam
d dele e de muitos dos circunstantes. falar melhor que eles próprios sobre as
Ao retirar-me, ia concluindo de mim .obras que eles compuseram. Assim,
para comigo: "Mais sábio do que esse logo acabei compreendendo que tam-
homem eu sou; é bem provável que ne- pouco os poetas compunham suas
nhum de nós saiba nada de bom, mas obras por sabedoria, mas por dom ("
ele supõe saber alguma coisa e não natural, em estado de inspiração, como
sabe, enquanto eu, se não sei, tam- os adivinhos e profetas. Estes também
pouco suponho saber. Parece que sou dizem muitas belezas, sem nada saber
um nadinha mais sábio que ele exata- do que dizem; o mesmo, apurei, se dá
mente em não supor que saiba o que com os poetas; ao mesmo tem.po, notei
não sei." Daí fui ter com outro, um dos que, por causa ·da poesia, eles supõem
que passam por ainda mais sábios e ser os mais sábios dos homens em ou-
e tive a mesmíssima impressão; também tros campos, em que não o são. Saí,
ali me tomei odiado dele e de muitos
pois, acreditando superá-los na mesma
outros.
Depois disso, não· parei, embora particularidade que aos políticos.
sentisse, com mágoa e apreensões, que Por fim, fui ter com os artífices;·
me ia tornando odiado; não obstante, tinha ccmsciência de não saber, a bem d
parecia-me imperioso dar a máxima dizer, nada, e certeza de neles desco-
irhportânéia ao serviço do deus. Cum- brir muitos belos conhecimentos.
pria-me, portanto, para averiguar o Nisso não me enganava; eles tinham
sentido do oráculo, ir ter com todos os conhecimentos que me faltavam; eram,
que passavam por senhores de algum assim, mais sábios que eu. Contudo,
27a saber. Pelo Cão, Atenienses! Já que Atenienses, achei que os bons artesãos
vos devo a verdade, juro que se deu co- têm o mesmo defeito dos poetas; por
migo mais ou menos isto: investigando praticar bem a sua arte, cada qual ima-
de acordo com o deus, achei que aos ginava ser sapientíssimo nos demais
mais reputados pouco faltava para assuntos, os mais difíceis, e esse enga- e
serem os mais desprovidos, enquanto no toldava-lhes aquela sabedoria. De
outros, tidos como inferiores, eram os sorte que perguntei a mim mesmo, em
que mais visos tinham de ser homens
nome do oráculo, se preferia ser como
de senso. Devo narrar-vos os meus vai-
sou, sem a sabedoria deles nem sua
véns nessa faina de averiguar o orácu-
ignorância, ou possuir, como eles, uma
lo.
Depois dos políticos, fui ter com os e outra; e respondi, a mim mesmo e ao
poetas, tanto os autores de tragédias oráculo, que me convinha mais ser
como os de ditirambos e outros, na como sou.
esperança de aí me apanhar em fla- Dessa investigação é que procedem,
grante inferioridade cultural. Levando Ateniense-s, de um lado, tantas inimiza-
em mãos as obras em que pareciam ter des, tãoi acirradas e maléficas, que 2Ja
A Denúncia de Meleto
Nada mais preciso dizer para defen- fazes o mm1mo caso, como eu disse?
der-me, diante de vós, das mentiras de Vamos, bom rapaz, fala; quem é que e
meus primeiros acusadores. Tentarei, os toma melhores?
em seguida, defender-me de -Meleto, - São as leis.
esse honrado e prestante cidadão, - Não é isso o que estou pergun-
como se proclama, e dos acusadores tando, excelente rapaz; pergunto que
recentes. Novamente, já que se trat.a de homem é, o qual, para começar, sabe
outros acusadores, tomemos também o exatamente isso, as leis.
texto de sua acusação. Reza ele mais - As pessoas presentes, Sócrates;
ou menos assim: "Sócrates é réu de os juízes.
corromper a mocidade e de não crer - Que dizes, Meleto? Os presentes
nos deuses em que o povo crê e sim em são capaz'es de educar os moços e os
e outras divindades no.vas." Essa a natu- tornam melhores?
reza da queixa; examinemo-la parte Sem dúvida.
por parte.
Todos? Ou uns sim e outros
Diz que sou réu de corromper a não?
mocidade. Mas eu, Atenienses, afirmo Todos.
que Meleto é réu de brincar com assun- Boa notícia nos dás, por Hera!
tos sérios; por leviandade, ele traz a Sobejam os benfeitores! Que mais? E 2s0
gente à presença dos juízes, fingindo-se esses da assistência os tomam melho-
profundamente interessado por ques- res ou não?
tões de que jamais foz o mínimo caso. Eles também.
Vou também procurar demonstrar-vos Que dizer dos conselheiros?
que assim é. Também os conselheiros.
- Dize-me cá, Meleto: Dás muita Mas, então, Meleto, acaso os
d importância a que os jovens sejam homens da assembl'éia, o~ eclesiastas
quanto melhores? corrompem a mocidade? Ou eles todos
- Dou, sim. -também a tomam melhor?
- Faze, então, o favor de dizer a - Também eles.
estes senhores quem é que os toma - Logo, não é assim? todos os ate-
melhores; evidentemente o sabes, pois nienses a tomam gente de bem, menos
que te importa. Descoberto o corrup- eu; eu sou o único a corrompê-la! É
tor, segundo afirmas, tu me conduzes à isso o que dizes?
presença destes senhores e me acusas; Exatamente isso é o que digo.
portanto, faze o favor de dizer quem os - Que imensa desdita apontas em
toma melhores; conta-lhes quem é. mim! Responde também a esta per-
Estás vendo, Meleto, que te calas e não gunta: no teu entender, com os cavalos
sabes o que dizer? Com efeito, não sucede o mesmo? Toda gente os h
não crê, pois afirma que o sol é pedra e acreqite na existência de coisas huma-
a lua é terra. nas e não na dos homens? Que ele res-
- Tu supões estar acusando o ponda, senhores, e não levante protes-
Anaxágoras 7 , meu caro Meleto ! Dessa tos sobre protestos! Há alguém que
forma, subestimas os presentes, julgan- não acredite em cavalos e sim na equi-
do-os tão iletrados que ignorem que os taç~o? não creia em flautistas, e sim na
livros de Anaxágoras de Clazômenas é arte de tocar flauta? Não há, excelente
que andam cheios dessas teorias. Logo· homem.; se não queres tu responder, eu
de mim é que os moços aprendem liga- o direi a ti e aos demais presentes. Res-.
ções que eles podem, vez por outra, ponde, porém, à pergunta que vem.
e comprar na orquestra, quando muito após aquelas: há quem acredite em
por três dracmas e depois rir de Sócra- poderes demoníacos, mas não que exis-:- e
tes se as quiser· impingir como suas, tam demônios?
tanto mais umas tão originais! Enfim, - Não há.
por Zeus, é isso o que pensas de mim? - Obrigado por teres respondido,
que não creio em deus algum? embora contrariado, sob a coação· do
- Não crê, por Zeus; ele não crê tribunal. Por conseguinte, afirmas que
em deus algum ! eu acredito e ensino que há poderes
- Tu não mereces fé, Meleto, nem demoníacos; sejam novos, sejam anti-
mesmo a tua própria, ao que parece. gos, segundo dizes, acredito em pode-
Este homem, Atenienses, acho que é res demoníacos; foi o que juraste na
por demais temerário e estouvado e me denúncia. Ora, se acredito em seus
fez esta denúncia apenas por temeri- poderes, força é concluir que acredito
dade e estouvamento de juventude-; ele em demônios. Não é assim? Sem dúvi-
dá a impressão de estar propondo uma da; faço de conta que concordas, já ·d
:?1a. adivinha para p.le experimentar: "Será que não respondes. Os demônios, não é
que o sábio Sócrates vai perceber que verdade que os consideramos deuses
estou brincando e me contradizendo, ou filhos de deuses? Sim ou não?
ou será que o vou lograr com os de- - Por certo.
mais ouvintes?" Penso que ele se con- - Logo, se acredito. em demônios,
tradiz na denúncia, como se dissesse: estes ou são uma sor:te de deuses - e
"Sócrates é réu de crer nos deuses em eu teri3: rp.zão afirmando que estás pro-
vez de crer nos deuses." Isso é de quem pondo uma adivinha por brincadeira,
está brincando. dizendo que eu creio em deuses em vez
Examinai comigo, senhores, por que de crer em deuses,· pois que acredito
penso que ele diz isso; tu, .Meleto, em demônios - ou são filhos" de deu-
responde-nos. Vós, de vossa parte, ses, uma sorte de bastardos, nascidos
lembrai-vos do que vos ·pedi no· come- de ninfas ou de outras mulheres a
ço e não vos amotineis se eu arranjar a quem os atribui a tradição - e que
discussão à minha maneira· habitual. homem pode acreditar em filhos ·de
Existe, Meleto, uma pessoa que deuses.· e não em deuses? Seria a
7 Anaxágoras, filósofo da escola jônica, mestre ~ mesma aberração de quem acreditasse
conselheiro de Péricles, célebre por ter concebido a · serem os machos filhos de éguas e
· existência duma Mente, Naus, ordenadora do Uni- jumentos, sem crer em éguas e jumen-
verso. Por dar explicaÇões naturalistas dos fenôme-
nos celestes, foi condenado por impiedade a áilar- tos. Não, Mdeto, não é admissível que
se de Atenas em 432 a.C. Suas obr.as, como as :de tenhas ,apresentado essa denúncia sem
outros autores, podiam 'ser compradas no local do
teatro destinado ao coro, denomi~ orquestra. o propósito de nos pôr· à prova, salvo
(N. do T.) s'e foi à falta ~e um crime real por que
20 PLATÃO
Justificação de Sócrates
medo do que não sei se será um bem. a quem eu encontrar, moço ou velho,
Portanto, mesmo que agora me forasteiro ou cidadão, principalmente
dispensásseis, desatendendo ao parecer aos cidadãos, porque me estais mais
de Ânito, segundo o qual, antes do próximos no sangue. Tais são as or-
mais, ou eu não devia ter vindo aqui, dens que o deus me deu, ficai certos. E
ou, já que vim, é impossível deixar de eu acredito que jamais ac~:mteu à ci-
condenar-me à morte, asseverando ele dade maior ~em que minha obediência
que, se eu lograr absolvição, logo ao deus.
todos os vossos filhos, pondo em prá- Outra coisa não faço senão andar
tica os ensinamentos de Sócrates, esta- por aí persuadindo-vos, moços e ve-
rão inteiramente corrompidos; mesmo lhos, a não cuidar tão aferradamente
que, apesar disso, me dissésseis: do corpo e das riquezas, como de
"Sócrates, por ora não atenderemos a melhorar o mais possível a alma,
Ânito e te deixamos ir, mas com a con- dizendo-vos que dos haveres não vem h
dição de abandonares essa investiga- a virtude para os homens, mas da vir-
ção e a filosofia; se fores apanhado de tude vêm os haveres e todos os outros
d novo nessa prática, morrerás"; mesmo, bens particulares e públicos. Se com
repito, que me dispensásseis com essa esses discursos corrompo a mocidade,
condição, eu vos responderia: seriam nocivos esses preceitos; se
"Atenienses, eu vos sou reconhecido e alguém afirmar que digo outras coisas
vos quero bem, mas obedecerei antes e não essas, mente. Por tudo isso,
ao deus que. a vós; enquanto tiver alen- Atenienses, diria eu, quer atendais a
Ânito, quer não, quer me dispenseis, e
9 Segundo criam os gregos, após a morte, iam as quer não, não hei de fazer outra coisa,
almas para o Hades, espécie de limbo, lu_gar escuro
e frio, situado no âmago da terra, onde continuavam ainda que tenha ·de morrer muitas
a viver, como sombras. (N. do T.) vezes.
22 PLATÃO
Abstenção da Política
le governo, poderoso como era, n~o essa atitude a máxima importância que
conseguiu forçar-me a uma injustiça; lhe é devida? Que: esperança, Atenien-
ao deixarmos a Rotunda, os quatro ses! Nem - eu, :o.em outro homem
seguiram para Salamina e trouxeram nenhum!· Pois bem, em toda minha 33a
Leão, mas eu voltei para casa. Bem vida, em minha pouca intervençã.._ nos
podia ter morrido por isso, se aquele negócios púbiicos, deixei patente que
sou assim, como também sou assim
e governo tardasse a cair. Há muitas
nos negócios. particulares, jamais as-
testemunhas desses fatos. Pensais, sentindo com quem quer que seja no
acaso, que eu teria vivido tantos anos, que quer que seja fora dos limites da
se houvesse tomado parte na política e, justiça, principalmente com qualquer
obrando como homem de bem, me daqueles que os caluniadores chamam
houvesse batido pela justiça, dando a discípulos meus.
A Escola de Sócrates
O Estilo da Defesa
Basta, senhores; o que eu poderia não nasci dum carvalho ou dum penedo,
alegar em minha defesa é, em suma, mas de seres humanos; portanto, Ate-
isso mesmo e quiçá argumentos do nienses, tenho parentes e filhos; estes
e mesmo gênero. Algum de vós talvez se são três, um já taludo e dois pequeni-
indigne com a recordação do seu caso, nos. Não obstante, não trouxe nenhum
se ele próprio, às voltas com uma lide, deles para aqui com o fito de vos pedir
embora menos grave que esta, teve de absolvição. Por que razão não hei de
pedir, de suplicar aos juízes com lágri- fazê-lo? Não por presunção, Atenien-
mas copiosas, de trazer, para melhor ses, nem por menosprezo vosso; minha e
movê-los à piedade, os filhos, outros calma ou perturbação em face da
parentes, muitos amigos, ao passo que morte é questão à parte; mas em face
eu -::- não é? - não vou fazer nada da honra, minha, vossa e de toda a
disso, apesar de estar correndo, como cidade, eu considero uma nódoa aquele
posso imaginar, o extremo perigo. procedimento na minha idade e com a
Pode ser que alguém, com esse senti- reputação adquirida; cert~ ou errada,
mento, seja mais duro para comigo e, sempre é opinião corrente que Sócrates Jsa
II
Análise da Votação
que ocorrem na política, coisas em que tença mereço por ser assim? Algo de
me considero de fato por demais bom, Atenienses, se há de ser a sen-
pundonoroso para me imiscuir sem me tença verdadeiramente proporcionada
perder - não me dediquei àquilo, a ao mérito; não só, mas algo de bom
que se me dedicasse, haveria de ser adequado a minha pessoa. O que é·
completamente inútil para vós e para adequado a um benfeitor pobre, que
28 .·PLATÃO
precisa de lazeres para vos viver exor- pagá-la toda? Daria na mesma, pois,
tando? Nada tão adequado a tal como disse há pouco, não tenho bens
homem, Atenienses, como ser susten- com que pagar. Proporei, então, odes-
tado no Pritaneu; muito mais do que a terro, a que possivelmente me senten-
um de vós que haja vencido, nas Olim- ciaríeis? Muito amor à vida deveria eu
píadas, uma corrida de cavalos, de ter para ficar tão estúpido que não
bigas ou de quadrigas. Esse vos dá a compreendesse qiue, se vós, sendo meus
impressão da felicidade; eu, a felici- concidadãos, não pudestes aturar mi-
. dade; ele não carece de sustento, eu nhas conversas e assuntos, tão impor- d
careço. Se, pois, cumpre que me sen- tunos e odiosos para vós, que neste
tenciem com justiça e em proporção ao momento vos estais procurando livrar
J7a mérito, eu proponho o sustento no deles, outros hão de aturá-los melhor?
Pritaneu. Que esperança, Atenienses!
Dizerido isso pode parecer, como foi Bela vida seria a minha se, homem
a respeito das lamúrias e súplicas, que da minha idade, partisse daqui para
falo presunçosamente. Não é assim, viver expulso de cidade em cidade !
Atenienses; mas é que estou conven- Estou certo de que, aonde quer que vá,
cido de que não faço mal a ninguém os moços me virão ouvir, como aqui;
por querer, mas não consigo conven- se os repelir, eles mesmos darão ouvi-
cer-vos disso. É que conversamos dos aos mais velhos para me expulsar;
durante pouco tempo;. se fosse norma se não os repelir, hão de expulsar-me
entre vós, como em outros povos, não por causa deles seus pais e parentes.
decidir um processo capital num. dia Pode alguém perguntar: "Mas não
b só, mas em muitos, suponho que vos serás capaz, ó Sócrates, de nos deixar e
teria convencido; infelizmente, não é viver calado e quieto?'' De nada eU'
fácil em tempo exíguo escoimar-se de convenceria alguns dentre vós mais
calúnias tão fortes. Convencido, por- dificilmente do que disso. Se vos- disser
tanto, de que não faço mal a ninguém, que assim desobedeceria ao deus e, por
muito menos o farei a mim próprio; isso, imposível(~ a vida quieta, não me
não direi eu próprio contra mim que dareis fé, pensando que é ironia; dou- Jsa
mereça algum mal, nem proporei pena tro lado, se vos disser que para o
alguma. Que posso temer? Sofrer a homem nenhum bem supera o discor-
pena proposta por Meleto, que declaro r.er cada dia sobre a virtude e outros
ignorar se é um bem, se é um mal? Hei temas de que me ouvistes praticar
de preferir e propor em troca uma quando examinava a mim mesmo e a
e daquelas que sei que são males? Por- outros, e que vi.da sein exame não é
ventura a prisão? Para que hei de viver vida digna de um ser humano, acredi-
na cadeia, escravizado ao comando tareis ainda menos em minhas pala-
sempre reformado dos Onze 1 1 ? Ou vras. Digo a pura verdade, senhores,
uma multa, permanecendo preso até mas convencer-vos dela não me é fácil.
11 Os Onze eram autoridades policiais eletivas. (N. Acresce que não estou habituado a jul-
do T.) gar-me merecedor de mal nenhum.
DEFESADE SÓCRATES 29
Por não terdes esperado mais um quer na guerra, não devo eu, não deve
pouco, Atenienses, aqueles que deseja- ninguém lançar mão de todo e qual-
rem injuriar a cidade vos lançarão a quer recurso para escapar à morte.
fama e a acusação de haverdes matado Com efeito, é evidente que, nas bata- 39a
.tes supondo que vos livraríeis de dar homens, evitareis que alguém vos
boas contas de vossa vida; mas o resul- repreenda a má vida, estais enganados;
tado será inteiramente oposto, eu vo-lo essa não é um.a forma de libertação,
asseguro. Serão mais numerosos os nem é inteiramente eficaz, nem honro-
que vos pedirão contas; até agora eu os . sa; esta outra, :sim, é a mais honrosa e
continha e vós não o percebíeis; eles mais fácil; ~m vez de tapar a boca dos
serão tanto mais importunas quanto outros, preparar-se para ser o melhor·
são mais jovens, e vossa irritação será possível. Com este vaticínio, despeço-
maior. Se imaginais que, matando me de vós que me condenastes.
· Com os que votaram pela absolvi- ma ação ou palavra. A que devo atri-
ção, gostaria de conversar a respeito buir isso? Vou dizer-vos: é bem possí-
do que se acaba de passar, enquanto vel que seja um bem para mim o que
estão ocupados os magistrados e antes aconteceu e n~[o é forçoso que acerte-
de seguir para onde devo morrer. Por- mos quantos pensamos que a morte é
tanto, senhores, ficai comigo mais um um mal. Disso tenho agora uma boa
pouco; nada impede que nos entrete- prova, porque: a costumada adver-
nhamos enquanto dispomos de tempo. tência não poderia deixar de opor-se,
Quero explicar-vos, como a amigos, o se não fosse uma ação boa o que eu es-
40a sentido exato do que me sucedeu tava para fazer:
agora. Façamos mais esta reflexão: há
O que me aconteceu, senhores juízes grande esperança de que isto seja um
- a vós é que chamo com acerto juí- bem. Morrer é uma destas duas coisas:
zes - foi uma coisa prodigiosa. A ou o morto é igual a nada, e não sente
inspiração costumada, a da divindade, nenhuma sensação de coisa nenhuma;
sempre foi rigorosamente assídua em ou, então, como se costuma dizer, tra-
opor-se mesmo a ações mínimas, quan- ta-se duma mudança, uma emigração
do eu ia cometer um erro; agora, da alma, do lugar deste mundo para
porém, acaba de suceder-me o que vós outro lugar. Se não há nenhuma sensa-
estais vendo, o que se poderia conside- ção, se é como um son.o em que o
rar, e há quem o faça, como o maior adormeci.çl.o nada vê nem · sonha, que
dos males; mas a advertência divina maravilhosa vantagem seria a morte!
não se me opôs de manhã, ao sair de Bem posso imaginar que, se a gente
casa, nem enquanto subia aqui para o devesse identificar uma noite em que
tribunal, nem quando ia dizer alguma . tivesse dormido tão profundamente
coisa; no entanto, quantas vezes ela me que nem mesmo sonhasse e, contra-
conteve em meio de outros discursos ! pondo a essa as demais noifes e dias de
Mas hoje não se me opôs nenhuma vez sua vida, pensar e dizer quantos dias e
no decorrer do julgamento, em nenhu- noites de sua existência viveu melhor e·
DEFESA DE SÓCRATES 33
cânticos dos ritos dos Mistérios. (N. do T.) meus filhos também.
1 4 Palamedes e Ájax são figuras lendárias; o pri-
Bem, é chegada a hora de partirmos,
meiro teria morrido apedrejado, vítima duma calú-
nia, no acampamento dos gregos em Tróia; o segun- eu para a morte, vós para a vida.
do, herói duma tragédia de Sófocles, além de o· ser Quem segue melhor rumo, se eu, se
da Ilíada, suicidou-se por ter sido fraudado na
herança das armas de Aquiles, que deviam caber ao vós, é segredo para todos, menos para
mais valoroso dos guerreiros. (N. do T.) a divindade. ·
XENOFONTE
DITOS E FEITOS
MEMORÁVEIS
DE SÓCRATES
LIVRO 1 .i.
,e··
·rf_
CAPÍTULO I
não será seu tormento. Tampouco sabe tais segredos intangíveis ao homem, de
aquele que se alia aos poderosos do vez que, longe de concordarem entre si,
Estado se dia virá em que por eles seja aqueles mesmos que se gabam de me-
banido. Insensatos ç:hamava Sócrates lhor falar sobre eles se têm mutua-
aos que em tudo isso não vêem provi- mente na conta de loucos. Efetiva- 14
dência divina e tudo sujeitam à inteli- mente, entre os loucos, uns não temem
gência humana. Por igualmente insen- o que é temível, outros temem o que
satos, porém, havia os que consultan:i não é de temer. Uns acham poder-se
os oráculos sobre coisas que os deuses sem pejo tudo dizer e tudo fazer em pú-
nos deram a faculdade de saber por blico, outros, devier-se fugir todo co-
nós prcSprios. Como se fües perguntás- mércio com os homens. Uns não res-
semos a quem confiar nosso carro, a peitam nem· templos nem altares, nem
cocheiro hábil ou inapto. A quem nada do que é divino, outros reveren-
entregar nosso navio, a bom ou mau ciam as pedras e as primeiras árvores e
piloto. Ou sobre coisas que podemos animais que lhes a.parecem pela frente.
saber por meio do cálculo, da medida Quanto aos que se preocupam com a
ou da balança. Reputava impiedade natureza do unive1rso, estes afirmam a
consultar os deuses sobre coisas tais: unidade do ser, aqueles sua multipli-
aprendamos o que nos ·conferiram os cidade infinita. Uns crêem os corpos
deuses a faculdade de aprender, dizia, em perpétuo movimento, outros em
e deles procuremos saber o que nos é inércia absoluta. Aqui se pretende que
velado. Porque eles o revelam aos que tudo nasce e tudo morre, ali que nada
distinguem com seus favores. se criou e nada deve ser destruído. Per- 1s
10 No mais, Sócrates sempre viveu à guntava Sócrates· ainda se, assim como
luz pública. Pela manhã saía a passeio estudando o que concerne ao homem
e aos ginásio·s, mostrava-se na ágora à se espera auferir desse estudo proveito
hora em que r.egurgitava de gente e para ~i e para outros, não imaginam os
passava o resto do dia nos locais de que estudam o que pertence aos deu-
maior concorrência:, o mais das vezes ses, uma vez instruídos nas leis fatais
falava, podenClo ouvi-lo quem quisesse. do mundo poder produzir a seu capri-
n Viram-no ou ouviram-no algunia vez cho os ventos, a chuva, as estações e
fazer ou dizer algo contrário à moral, tudo o de que venham a precisar no, gê-
1
MEMORÁ VEIS-1 41
O que igualmente me assombra é o pedia a menor paga aos que lhe procu-
haver-se embrechado em certos espíri- ravam a companhia. Cria, com esta 6
queles que governam os Estados. Tais rança que lhe solicitavam a conversa-
falas - acresçenta - inspiram nos jo- ção, ou na esperança de, freqüentan-
vens o menosprezo da constituição em . do-o, tornarem-se bons oradores e
la vigor e os tomam violentos. De mim hábeis políticos? A min1 me quer pare- 16
penso que os que praticam a sabedoria cer que se um deus lhes houvesse dado
e se crêem capazes de dar conselhos a escolher entre o viver a vida inteira
úteis a seus concidadãos de modo ne- · como viam viver Sócrates ou morrer,
·nhum são violentos, visto saberem que teriam preferido a morte. Desembu-
a violência atiça o ódio e acarreta per.i- çou-os seu procedimento. Assim se jul-
go, enquanto a persuasão elimina os garam superiores aos c9mpanheiros,
riscos e ·não prejudica a perfeição.· De abandonaram Sócrates para abraçar a
fato, o homem a quem constrangemos política, móvel de sua ligação com ele.
nos odeia como se o houvéssemos lesa- Objetar-me-ão, talvez, que Sócrates 17
do. Aquele a quem persuadimos nos não deveria ter ensinado política aos ~
preza como se lhe tivéssemos feito um que com ele privavam antes de ensi-
beneficio. Não dos que praticam a nar-lhes a sabedoria. Não o nego.
11 sabedoria, pois; é própria a violência, Vejo, porém, que todos aquéles . que
porém, dos que'têm força mas não têm ensinam praticam o que ensinam a: rlDl ' .
razão. Além do que, na violência hão · de edificar pelo exemplo os que apren•
mister numerosos auxiliares. Para per- dem, a passo igual que os estimlilam ·
suadir não se precisa de ninguém: soú- pela palavra. Sei que Sócrates era para
nho pode-se convencer. Demais, nunca seus discípulos modelo vivo de virt:Uo-
tais homens mancharam as mãos de sidade e que lhes administrava a~ m-ai~
sangue. Quem preferir.ia matar seu belas lições acerca da virtude e o ~ :. - ~ - - •.1:. · ·
semelhante a deixá-lo viver e lhe ser que ao homem concerne. Sei que Crr-- "
útil pela persuasão? tias e Alcibíades se portaram prude1l:te-
12 Todavia - prossegue o acusador mente enquanto conviverám com S6-
- Crítias e Alcibíades, que foram crates. Não qu~ temessem ser por ele
discípulos de Sócrates, causaram o castigados ou bati.dos, mas por crerem .
maior mal ao Estado. Crítias foi o então ser a tudo preferível o hábito de
mais cúpido, violento e sanguinário · virtude.
dós oligarcas. Alcibíades o mais in- Quiçá sustentem muitos de nossos 11
temperante e insolente dos democratas . pretensos filósofos que o homem justo
iJ Longe de mim, se estes dois homens jamais se toma injusto nem o sábio
fizeram algum mal à pátria, o propó- insolente. Que uma vez de posse .de . ·
sito de justificá-los. Quais foram suas· uma ciência nunca mais se esquece o ·
relações com Sócrates, eis o que desejo que se aprendeu. De minha parte, estou
11 esclarecer. Eram eles, por natureza, os longe de pensar como eles. Vejo, em.
mais a,mbiciosos ele todos os atenien- efeito, que se não se exercita o corpo a
ses. Qiiefiam tudo feito por eles, que gente se toma inapto para os trabalhos
seu nome não tivesse par. Sabiam Só- corporais, e que, igualmente, se não se
crates contente de pouco, senhor abso- exercita o espírito se toma incapaz dos
luto de todas as suas paixões e capaz trabalhos espirituais, não se podendo
de acaudilhar a seu talante o espírito fazer o que se de\ e nem se abster do
1
1s daqueles com que falava. Sabedores que se deve evitar. Eis por que os pais, 20
disso e com o caráter que já lhes perfi- seja qual for a sab:!doria de seus filhos,
lei, crerá alguém fosse pelo desejo de os afastam dos homens perversos, con-
imitar a vida de Sócrates e sua tempe- victos de que o comércio dos bons
MEMORÁVEIS-I 45
alenta a virtude, e cresta-a o dos maus. de que gozava assim na república como
Testemunham-no os versos do poeta: nas cidades aliadas, por um enxame de
Os homens de bem te ensinarão hábeis aduladores, homrado pelo povo,
boas coisas. alcançando sem esforço o primado do
Os maus te farão perder a pró- poder, Alcibíades relaxou-se tal esses
pria razão. atletas que, triunfando facilmente em
- -E-estoutro: todas as lutas, descuidam de todo exer-
Às vezes o sábio é bom, às vezes c~io. Depois, orgulhosos de seu nasci- 2s
mau. rrie!lto, soberbos de sua riqueza, ébrios
1t1 A esses testemunhos ajunto o meu. do próprio pode;r, amolentados por
Pois vejo que, se pela falta de exercício uma forba de indulgentes, corrompidos
se e•quecem os versos, não obstante o de tantos lados ao mesmo tempo, ad-
recurso da medida, da mesma forma se mira que sua insolência haja trans-
esqutce a palavra do mestre, por causa posto todos os- limites? E a Sócrates é 26
da negligência. Ora, quando se esque- que acha o acusador de imputar as fal-
cem estas ex6rtações; ·se esquecem tas que cometeram?! Entretanto,
também as impressões que induzem a quando eram jovens, numa idade em
a1mA a desejar a sabedoria. E olvida- que mais que nunca deveriam ter sido
das tais impressões, não admira que se desregrados e intemperantes, Sócrates
22 olvide a própria sabedoria. Noto ainda conteve-os na moderação: o que o acu-
que aqueles que se entregam ao vinho e sador não acha digno 9o menor lou-
capitulam aos prazeres dos sentidos vor. Não é esta a praxe do julgador. 27
, sã.eL ..~10s capazes de fazer o que Onde ·o flautista, o citarista ou o mes-
dov;em e de resguardar-se do que cum- tre qualquer a quem se reproche o fato
pre evitar. Muitos há que antes de de seus discípulos, uma vez formados,
·amar sabiam administrar seus bens. se tomarem maus sob outros mestres?
Amando, já não o sabem. E perdidos Onde o pai cujo filho, prudente en-
··, seus haveres, já não se esguardam de quanto manteve relações com um
ganhos de que se mantinham castos amigo, se haja pervertido na sociedade
2J. por considerá-los verg·onhosos. Impli- de outro, que se lembre de acusar o pri-
cará 'é<mtradição, pois, que o sábio de meiro amigo? Pelo contrário,. não o
ontem já não o seja hoje, que o justo se elogiará tanto mais quanto mais vicfo-
tenha feito injusto? Por mim periso que so se tenha tor:-nado seu f'ilho com o
todas as virtudes requerem a prática, segundo? Os próprios pais não são
notá.damente a. temperança. Inatas na responsáveis, ainda qúe a seu pé, seus
alma com o corpo, as paixões incitam filhos enveredem pe1a senda do mal,
a pctr de lado a sabedoria e a satisfazer uma vez que só ll):és dêem bons exem-
ô mâis presto os apetites sensuais. plos. Eis como se devia julgar Sócra- 2s
u :Enquanto conviveram com Sócra:- tes. Cometeu ele próprio algum mal?
tes, tanto Crítias como Alcibíades Merece ser tratado como perverso.
puderam, graças ao seu auxílio, sopear Porém, se j ámais deixou de ser homem
as más paixões. Uma vez longe dele, de bem, s'erá justo acusá-lo de uma
.C:Píitriias, refugiado na Tessália, viveu deprav.açâo que não lhe cabe? Se, em- 29
r,
Alcibíades, antes dos vinte anos de - Assim o creio. Errei, pois, dizen-
idade, teve com Péricles seu tutor e pri- do sejam leis as ordens de um tirano
que não emprega a persuasão.
meiro cidadão de Atenas, esta con-
versa em tomo das leis: - E quando a minoria não usa da 4s
pulos dele se acercaram, não para se Sócrates dessa linguagem ~o falar dos
formarem na eloqüência da ágora ou pais, parentes e amigos: aventava que
do tribunal, mas para se tomarem ho- após a deserção da alma devemos
mens virtuosos . e conhecerem seus apressar-nos elh fazer desaparecer o
deveres para com sua família, seus corpo do ente inda o mais querido,
parentes, servidores, amigos, pátria, pois unicamente naquela reside a inte-
concidadãos: e jamais nenhum deles, ligência. Enquanto vivo - dizia - o 54
nem na juventude nem ein idade mais homem corta com as próprias mãos ou
avançada,-praticou o mal nem disso foi faz cortar por outrem o que em seu
acusado. corpo, objeto de sua mais viva afeição,
49 Mas Sócrates - diz seu acusador lhe parece inútil e supérfluo. Assim os
/
- destruía nas criançás o respeito homens cortam de vontade própria as
filial, convencendo seus .discípulos de unhas, os cabelos, as calosidades.
que os tomava mais hábeis que seus Entregam-se aos médicos para que os
pais, dizendo-lhes que a lei permite cortem e queimem, com dores e sofri-
1
encarcerar o pai convicto de loucura, mentos indizíveis e ainda se crêem na
para provar o que dizia que ao homem obrigação de recompensá-los. Afinal
instruído assiste· o direito de encadear cospem a saliva o mais longe possível
50 o ignorante. Longe disso, achava Só- da boca, porque de nada lhes serve o
crates que o indivíduo que sob capa de guardá-la, sendo até prejudicial. Assim 55
5s Acrescenta ainda o acusador que Só- ção é que Sócrates merecia de nossa ci-
crates citava freqüentemente estes ver- dade não a morte, porém, honras. Jul-
sos de Homero, onde se diz de Ulisses gai o fato à luz das leis e haveis de
que Quando via um rei, um herói de concordar comigo. Passível da pena de
escol, detinha-o com palavras de lison- morte, segundo as leis, é quem for
ja: "Filho dos deuses, não fujas como surpreendido roubando, furtando rou-
um covarde, senta-te e faze sentar tua pas, cortando bolsas, arrombando pa-
grosseira falange". Mas se topava com redes, vendendo seus semelhantes, pi-
um reles soldado a vociferar, batia-lhe lhando templos: todos crimes de que
com o cetro e rude e altivamente lhe mais que ninguém se absteve Sócrates.
dizia: "Senta-te! mísero, ouve a pala- Excitou sedições ou ocasionou derro- 63
vra de quem vale mais que tu, raça inú- tas? Maculou-se em alguma traição ou
til e frívola, covarde no combate, zero outro crime qualquer? Esbulhou al-
no conselho!" Tais versos explicá-los- guém de seus haveres? Lançou alguém
ia Sócrates como se o poeta tivesse na desgraça? Não, jamais foi acusado
aprovado que se maltratasse aos ple- de nenhum destes crimes. Como, 64
.59 beus e aos pobres. A verdade, porém, é então, poderia ser submetido a julga-
que Sócrates nunca disse semelhante mento, ele que, longe de pretender a
coisa, do contrário teria crido se deves- .inexistência dos deuses, como o incri-
se maltratá-lo a ele próprio: dizia que mina o auto de acusação, mais que
os homens que nada valem tanto no ninguém foi respeitoso da divindade?
conselho como na ação, incapazes, Longe de corromper os jovens, como
quando necessário, de prestar seu con- lhe censura a acusação, extirpava aos
curso ao exército, ao Estado, à nação olhos de todos as.,paixões de seus discí-
e, não obstante, prenhes de áfrevi- pulos e trabalhava por inspiré\.f-lhes o
mento, devem ser reprimidos por todos amor à virtude, essa deidade tão bela e
60 os meios, - inda que ricos. Muito pelo tão sublime que ·fez florescerem as
contrário, Sócràtes mostrava-se aber- cidades e os. lares. Assim procedendo,
tamente amigo do povo e filantropo . como não mereceu as maiores honras
De feito, cercado de numerosos discí- cie sua pátria?
CAPÍTULO III
Como Sócrates me·parecia ser útil a prazer que as pequenas, pois assim
seus discípulos, já pelo procedimento, mui freqüentemente as didivas cios
j€t pela palavra, eis o que passo a rela- maus lhes seriam mais gratas que as
tar, alinhavando o melhor que possa dos bons. Por sua vez, o homem esti-
minhas recordações. No que se refere maria a vida bem pouca coisa, se os
aos deuses, havia-se e falava de confor- dons das pessoas virtuosas fossem
midade com as respostas que dá a Pítia menos agradáveis aos deuses que os
aos que interrogam sobre como se deve dos maus. Ao contrário, achava· ele
proceder em relação aos sacrifícios, às serem as oferendas das pessoas mais
honras que é vezo render aos antepas- piedosas as que melhor sabem à divin-
sados, etc. Declara a Pítia, por um orá- dade. Por isso louvava este verso:
culo, que quem quer que sobre esse Ofertai aos deuses imortais segundo
ponto proceda conformemente às leis vossas posses. E pretendia ser este um
da pátria procede piedosamente. Ora, excelente preceito que observar para
assim procedia e instigava Sócrates os com os amigos, os hóspedes e em todas
outros a que procedessem, tendo todos as circunstâncias da vida: " ... ofertai
aqueles que se portassem diferente- segundo vossas posses". Se lhe parecia -1
mente na conta de indivíduos excên- receber algum aviso dos deuses, seria
tricos e insensatos. Pedia aos deuses mais fácil decidi-lo a tomar por guia
simplesmente que lhe concedessem os um cego ignorante do caminho em vez
bens, convicto de que melhor que nós de um homem clarividente e conhece-
sabe a divindade quais são eles: pedir- dor do itinerário que fazê-lo proceder
lhes ouro, dinheiro, poder e o mais que contrariamente a esse aviso. Loucos
por aí segue, seria o mesmo, dizia, que chamava aos que, para pôr-se ao abri-
indagar-lhes o resultado de um lanço go ·da má opinião dos homens, vão de
de dados, de um combate ou coisas encontro aos avisos dos deuses, os
incertas que tais. Modesto em suas ofe- quais tinha em muito maior conta que
rendas, modestos como eram seus tudo o que parte d9 homem. Afizera o
haveres, nem por isso julgava ficar corpo a regime tal que, tirante o caso
abaixo dos ricos que, senhores de lar- de intervenção do Alto, quem o se-
gas posses, ofertam vítimas de avanta- guisse viveria completamente isento de
jado tamanho e em grande número. inquietudes e perigos, tendo sempre
Indigno dos deuses, dizia, seria aceita- com que ocorrer a suas modestas
rem as grandes benesses com maior necessidades. Era tão frugal que não
52 XENOFONTE
sei de pessoa que não pudesse traba- Xenofonte para acusá-lo dessa
lhar o bastante para ganhar o que con- maneira?
tentava Sócrates. Não comia senão ~ Pois não teve a temeridade de
enquanto tivesse prazer, fazendo-o furtar um beijo ao filho de Alcibíades,
com disposição tal que o apetite lhe jovem de tamanha beleza e frescor?
servia de condimento. Toda bebida lhe - Ora, isso é ato de temer ária•! -
sabia agràdavelmente, porque jamais retrucou Xenofonte. - Estou que eu li
bebia sem ter sede. Se, convidado, ia a próprio bem poderia cometer seme-
um banquete, facílimo lhe era observar lhante temeridade.
o que à maior parte dos homens se - Desgraçado ! - exclamou Só-
antolha tão penoso, o não entregar-se a crates. - Imaginas o que te sucederia
excessos. Aos que não eram capazes se beijasses uma pessoa jovem e bela?
de fazer outro tanto, aconselhava não Ignoras que de livre, num momento te
comer sem apetite nem beber sem sede. tomarias escravo? Que pagarias caro
São tais demasias - aditava - que prazeres perigosos? Que já. não terias
fazem mal ao estômago, cabeça e espí- ânimo de perquirir o que é o belo e o
rito. E ajuntava, brincando, que Circe 3 bem? Que haverias de dar cabeçadas
empregava a abundância de iguarias como um louco?
para transformar os homens em por-
cos, e que aos conselhos de Mercúrio, - Por Hércules ! - retrucou Xe- 12
pois, Xenofonte, que quando vires uma menta. Quanto a ele, estava tão bem
pessoa bela, fujas, sem sequer te volta- armado contra tais delírios, que se
res. E a ti, Critobulo, receito-te viajar afastava das pessoas jovens e bonitas
um ano inteiro: todo este tempo mal com mais facilidade que outros das
dará para curar tua picada. pessoas feias e disformes.
14 Era pois de parecer, em amor, que Eis como se portava em face do 1s
aqueles que não pudessem reprimir seu beber; do comer e dos prazeres dos·
ardor o mitigassem como a tudo a que sentidos. E além de expor-se muito
o espírito só atende em caso de impe- menos aos sofrimentos, cria experi-
riosa necessidade do corpo, necessi- mentar tanto prazer em satisfazer-se
dade cuja satisfação não deve, todavia, como os que compram o gozo ao preço
impor à alma o menor constrangi- de mil tormentos.
CAPÍTULO IV
Se, coma por conjetura muitos es- - Por Júpiter ! os que criam seres
crevem e dizem, crê alguém possuísse animados, desde que tais seres não
Sócrates o maior talento para convidar sejam obra do acaso, mas uma inteli-
os homens a ingressarem na senda da gência.
virtude, porém fosse incapaz de os - Das obras sem destinação mani-
fazer trilhá-la, que examine não só as festa e daquelas cuja utilidade é incon-
questões por que confundia, à· guisa de testável, quais consideras como produ-
correção, os que pretendiam tudo to do acaso ou de uma inteligência?
saber, como também as práticas que - Justo é perfilhar a uma inteli-
diariamente entretinha com seus discí- gência as obras qu.e tenham fim de
pulos, e então, julgue se era ou não utilidade.
capaz de tomar melhores os que com - Não te parece então que aquele s
ele tratavam. Referirei, de começo, a que, desde que o mundo é mundo,
conversa que lhe ouvi ac.erca da divin- criou os homens lhes haja dado, para
dade com Aristodemo, por alcunha o que lhes fossem úteis, cada um dos ór-
Pequeno. Soubera ele que Aristodemo gãos por intermédio dos quais experi-
não oferecia aos deuses sacrificios nem mentam sensações, olhos para ver o
preces, que não · se socorria da adivi- que é visível e ouvidos para ouvir os
nhação e até chufeava dos que obser- sons? De que nos serviriam os olores
vam tais práticas. se não tivéssemos narículas? Que idéia
. - Dize-me, Aristodemo - inter- teríamos do doce, do amargo, de tudo
pelou-o - haverá homens que admires o que agrada ao paladar, se não exis-
pelo talento? tisse a língua para os discernir? Ao
Por certo. demais, não achas dever olhar-se como
- Nomeia-os. ato de previdência que sendo a vista
- Na poesia épica admiro sobre- um órgão frágil, seja munida de pálpe-
tudo Homero, no ditirambo Melanípe- bras, que se abrem quando preciso e se
des, na tragédia Sófocles, na estatuária fecham durante o sono; que para pro-
Policleto, na pintura Zêuxis. teger a vista contra o vento, estas pál-
- Quais são, a teus olhos, mais pebras sejam providas de um crivo de
dignos de admiração, os artistas que cílios; que os supercílios formem uma
fazem imagens sem razão e sem movi- goteira por cima dos olhos, de sorte
mento ou os artistas que criam seres que o suor que escorra da testa não
inteligentes e animados? lhes possa fazer mal; que o ouvido re-
56 XENOFONTE
ceba todos os sons sem jamais encher- que não desprezo a divindade. Mas
se; que em todos os animais os dentes creio-a muito grande para ter necessi- ·
da frente sejam cortantes e os molares dade de meu culto.
aptos a triturar os alimentos que - Contudo - retorquiu Sócrates
daqueles recebem; que a boca, desti- - quanto maior for o ente .que se
nada a receber o que excita o apetite, digna de tomar-te sob sua tutela tanto
esteja localizada perto dos olhos e das mais lhe deves homenagens.
narículas, de passo que as dejeções, -, Pois olha, se achasse que os deu- 11
que nos repugnam, têm seus canais ses se ocupam dos homens, não os
afastados o mais possível dos órgãos negligenciaria.
dos sentidos? Trepidas em atribuir a - Como! Julgá-lo que não, se,
uma inteligência ou ao acaso todas antes de mais nada, só ao homem, den-
essas obras de tão alta previdência? tre todos os animais, concederam a
- Não, por Júpiter ! - respondeu faculdade de se manter de pé, postura
Aristodemo - parece, sem dúvida, que lhe permite ver mais longe, con- .
tratar-se da obra de algum artífice templar os objetos que lhe ficam acima
sábio e amigo dos seres que respiram. . e melhor guardar-se dos perigos ! Na
- E o desejo inspirado às criaturas cabeça colocaram-lhe os olhos, os
de se reproduzirem, e o desejo inspi- ouvidos, a boca. E enquanto aos ou-
rado às· mães de alimentarem o próprio tros animais davam pés que só lhes
fruto, e neste fruto o maior amor .à vida permitem mudar àle lugar, ao homem
e o mais profundo temor da morte? presentearam também com mãos, com
- Evidentemente tudo isso são o auxíiio das quais realizamos a maior
obras de um ente que decidira existis- parte dos atos que nos tomam mais
sem animais. felizes que os brutos. Todos os animais 12
- Crês-te um ser dotado de certa têm língua: a do homem é a única que,
inteligência e negas existir algo inteli- tocando as diversas partes da boca,
gente fora de ti, quando sabes não teres articula sons e comunica aos outros
em teu corpo senão uma parcela da tudo o que queremos exprimir. Deverei
vasta extensão da terra, uma gota da falar dos prazeres do amor, cuja facul-
massa das águas, e que tão-somente dade,.restrita para todos os outros ani-
uma parte ínfima da imensa quanti- mais a uma estaçâlo do ano, para nós
dade dos elementos, entra na organiza- se estende ininterruptamente até a
ção do teu corpo? Pensas haver açam- velhice? Nem se satisfez a ·divindade 13
barcado uma inteligência que em ocupar-se do corpo do homem,
conseguintemente inexistiria em qual- mas, o que é o principal, deu-lhe a
quer outra parte, e que esses seres infi- mais perfeita alma. Efetivamente, qual
nitos em relação a ti em número e o outro animal cuja alma seja capaz de
grandeza sejam mantidos em ordem reconhecer a existência dos deus~
por força ininteligente? autores deste conjunto de corpos imen-
- Sim, por Júpiter ! pois não lhes sos e esplêndidos? Que outra espécie
vejo os autores como vejo os artífices além da humana rende culto à divinda-
das nossas obras. de? Qual o animal capaz tanto quanto
- Tampouco vês tua ~ma, senho- o homem . de premunir-se contra a
ra de teu corpo: de sorte que poderias fome, a sede, o frio, o calor, curar as
dizer nada fazeres com inteligência, doenças, desenvolver as próprias for- ·
mas tudo fazeres ao acaso. ças pelo exercício, trabalhar por adqui-
10 Aristodemo: - Claro, Sócrates, rir a ciência, recordar-se do que viu,
. MEMORÁVEIS-I 57
14 ouviu ou aprendeu?· Não te parece evi- como lhe apraz. Mister é acreditar,
dente que os homens vivem como deu- portanto, tudo dispor a seu grado a
ses entre os outros animais, superiores inteligência que habita o universo.
pela natureza do corpo como da alma? Quê i tua vista pode abranger um raio
Com o corpo de um boi e a inteligência de vários estádios e os olhos da divin-
de um homem não se estaria em me- dade não poderiam tudo abarcar ao
lhor condição que os seres apercebidos mesmo tempo ! Teu espírito pode ocu-
de mãos mas desprovidos de inteli- par-se simultaneamente do que se
gência. Tu, que reúnes essas duas van- · passa aqui, no Egito, na Sicília, e a
tagens tão preciosas, rião crês que os inteligência da deidade não seria capaz
deuses se carpem de ti? Que será preci- de em tudo pensar a um só tempo r
so então que façam para convencer-te? Certo, se obsequiando os homens, Js
Js - Que me enviem, como dizes que aprendes a conhecer os que também
te enviam, avisos sobre que deva ou são suscetíveis de obsequiar-te; se
não fazer. prestando-lhes serviços, vês os que por
- Quando falam aos atenienses seu turno estão dispostos a retribuir-te;
que os interrogam por meio da adivi- se deliberando com eles, distingues os
nhação, julgas que não falam a ti tam- que são dotados de prudência: assim
bém? Da mesma forma, quando por também, rendendo homenagem aos
prodígios manifestam sua vontade aos
gregos, a todos os homens, serás tu o deuses, verás até que ponto estão dis-
16 único esquecido? Pensas que se não. postos a esclarecer os homens sobre o
tivessem poder para tanto, os deuses que nos ocultaram, conhecerás a natu-
teriam incutido nos homens a crença reza e a grandeza dessa divindade que
de poderem distribuir o bem e o mal, e tudo pode ver e ouvir contemporanea-
que os homens, por eles enganados há mente, estar presente em toda parte e
tantos séculos ainda não o teriam per- de tudo ocupar-se ao mesmo tempo.
cebido? Não yês que às instituições Tenho para mim que, assim falando, 19
humanas mais antigas e mais sábias Sócrates ensinava seus discípulos a se
- estados e nações - são também as absterem de toda a ação ímpia, injusta
mais religiosas, que as épocas mais lú- e reprovável, não somente em presença
cidas são também as de maior pieda- dos homens como também na soleda-
n de? Saiba, meu caro, que tua alma de, visto convencê-los de que nada do
aposentada em· teu corpo, governa-o que fizessem escaparia aos deuses.
CAPÍTULO V
gratuitamente como intendente e pro- que dizia, e suas ações mais que suas
1 vedor? E se não q~etríamos nem se- palavras testemunhavam sua tempe-
quer um escravo intemperante, como rança: sobranceiro não somente aos
não temermos parecer com ele? De prazeres dos sentidos como também ao
fato não se pode dizer que, da mesma que busca a riqueza, achava que rece-
forma que esbulhando os outros de ber dinheiro dó primeiro que aparece é
seus bens crê o avaro enriquecer, seja o comprar um senhor e sujeitar-se à mais
intemperante prejudicial aos outros ignominiosa servidão.
CAPÍTULO VI
sucesso nenhum prazer experimen- que não enganas por cupidez, porém
tamos, de passo que, se se pensa lograr não sábio, já que nada sabes que valha
bom êxito, seja na agricultura, seja na o que quer que seja.
navegação, seja em Ol!-tra profissão Ao que Sócrates respondeu 13
de todo sábio. Aliás parece-me comun- fãa por que razão, se se gloriava de
gares comigo nesta opinião. Não acei- tomar os outros hábeis na política, não
tas dinheiro por tuas lições. Entre- se ocupava ele: próprio desta ciência,
tanto, a ninguém darias nem venderias que pretendia conhecer:
por preço inferior ao que yaiem teu "Que será preferível, Antifãa, res-
manto, tua casa nem nada do que pos- pondeu Sócrates, consagrar tão-so-
suis e que reputas de algum valor. mente a minha pessoa à política ou
Claro é que, se estimasses igualmente dedicar meus cuidados a tomar grande
12
tuas lições, far-te-ias pagar o que número de indivíduos capazes de a ela
valem. És, portanto, honesto, de vez vacarem ?" ·
CAPÍTULO VII
Vejamos ainda se, ao desviar seus um homem quisesse passar por hábil
discípulos da fatuidade, Sócrates os le- piloto e bom general sem o ser real-
vava à prática da virtude. Pois costu- mente, vejamos o que lhe aconteceria.
mava dizer que não há mais belo cami- Querendo passar por homem capaz de
nho para a glória que um homem de preencher tais funções . e . não conse-
bem ser o que· realmente deseja pare- guindo convencer ninguém, não seria
cer. Assim provava a verdade de sua infel~z? E convencendo, não o seria
asserção: mais ainda? Com efeito, encarregado
Imaginemos - dizia - um indiví- do comando de um navio ou posto à
duo que quisesse passar por bom toca- cabeça de um exército, perderia aque-
dor de flauta sem o ser de fato. Que les mesmos que quisera salvar e se reti-
faria? Não deveria macaquear os bons raria coberto de vergonha e desprezo.
Demonstrava Sócrates igualmente
flautistas em tudo o que forma o exk-
rior da sua arte? Primeiro, como os nada haver mais perigoso para um
bons artistas possuem belos instrumen- homem que dar-se por mais rico, mais
forte, mais corajoso do que realmente
tos, e cercam-se de numerosos acólitos, é. Se lhe confiam encargos que desbor-
ele faria o mesmo. Depois, como dam de suas forças, não podendo exe-
numerosos encomiadores lhes cele-
cutar o de que parecia ser capaz não
bram os talentos, procurar-se-ia gran- fará jus à menor indulgência. Insigne s
de número de encomiadores_ Que embusteiro chamava àquele que se
nunca, porém, se metesse a tocar flau- apodera do dinheiro ou o que qrn~ que
ta_, do contrário pronto se cobriria de lhe tenha,Jll confiado, mas embusteiro
ridículo e todos se capacitariam ser maior ainda o homem sem valor que
não somente mau artista como impos- empreende ·convencer os outros de ser
tor. E se despendesse muito, nada capaz de dirigir o Estado. Excelente
ganhasse e de inhapa ainda perdesse a para :afastar seus discípulos do charla-
reputação, não viveria vida miserável, tanismo se me afigurava a linguagem
inútil e ridícula? Da mesma forma, se de Sócrates.
LIVRO li
CAPÍTULO I
semelhantes di$cursos Sócrates afazia ser capaz de deitar tarde, levantar cedo
seus discípulos à abstinência· em face e velar, a qual dos dois o ensina-
da boa carne, do vinho, da lubricidade, ríamos?
do sono, e à resistência ao frio, ao - Ainda ao mesmo.
calor, à fadiga. Sabedor de que um - Pois bem, a quem ensinaríamos
deles. se entregava a rédeas soltas a a abster-se- dos prazeres do amor, para
todos esses excessos. que não o impedissem de agir no
- Dize-me, Aristipo - interpe- momento necessário?
lou-o - se te cometessem a educação - Sempre ao mesmo.
de dois jovens, ~m para se tornar apto - Qual afaríamos a não fugir ao
a governar, outro para ser simples trabalho, mas enfrentá-lo com gosto?
cidadão, como formarias um e outro? ----:- O educado para governar, evi-
Queres que comecemos nosso exame dentemente.
pela alimentação, isto é, pelos primei- ·_ Ora, vejamos, se há uma ciência
ros elementos? que ensine a triunfar dos adversários, a
- Naturalmente respondeu quem conviria ensiná-la?
Aristipo - porquanto a alimentação - Por Júpiter!. ao que se destinasse
me parece ser o princípio da educação ,: a mandar.. Porque sem tal ciência de
sem alimento, impossível viver. · nada lhe valeriam as outras.
- Provavelmente, então à hora das - Não te parece então que um
refeições ambos pediriam de -comer? homem assim educado estaria muito
- Não resta a menor dúvida. menos · exposto a se deixar prender
- Qual habituaríamos, pois, a ocu- pefos inimigos do que o .estão os ani-
par-se de um negócio urgente antes de mais? Efetivamente, uns, engodados
satisfazer o apetite? pela gulodice, atraídos, a despeito de
- P.or Júpiter ! o destinado a go- sua desconfiança, pelo desejo e pelo
vernar, a fim de que os negócios d.o Es- cevo, lançam-se sobre a isca e são pre-
tado não se paralisassem durante sua sos. Outros encontram armadilhas na
gestão. água onde vão beber.
- E quando quisessem beber, não -.- De fato - conveio Aristipo.
seria ainda a esse que acostumaríamos -. - Outros, vítimas de seu calor
a resistir à sede? amoroso, como as codornizes e as per-
- Seguramente. dizes, aliciados à voz da fêmea pelo de-
68 XENOFONTE
massa, seja um a um, e escravizá-los. relação a tais servidores. Não lhes cor-
13 Não vês os que colhem as searas que rigem a gulodice pela fome? Não os
outros semearam, cortam as árvores impedem de furtar pondo sob chave
que outros plantaram, infligem toda tudo o que poderiam surrupiar? De
espécie de violência aos fracos e aos fugir, carregando-os de cadeias? A
que recusam servir, até fazê-los prefe- preguiça não a reduzem ao trabalho a
rir a escravidão à luta com mais for- chicotadas? Que fazes tu mesmo quan-
tes? E entre os particulares, não sabes do percebes ter um doméstico dessa.
que os corajosos e os fortes avassalam laia?
a seu proveito os poltrões e os impo- - Inflijo-lhe todas as correções até
tentes? constrangê-lo a servir-me. M-as Sócra- 17
- Para não passar por isso não me tes, os que são educados para o oficio
fixo em nenhuma cidade, mas em toda de rei, que pareces considerar a felici-
parte sou estrangeiro. dade, em que diferem dos que padecem
14
Então Sócrates: por necessidade, se voluntariamente se
- Propões-me, certo, um artificio condenam a suportar a fome, a sede, o
maravilhoso. Porque desde que Sínis, frio, as vigílias e outras fadigas? Por
Cirão e Procusto morreram, os foras- mim não vejo que diferença há entre
teiros não são maltratados por nin- ter eu a pele rasgada por um vergalho
guém. Mas hoje os governantes dão a bem ou a mal de meu grado, e que
leis a sua pátria para se porem ao abri- meu corpo, queira-o eu ou não, padeça
go da injustiça. Criam, além do que se toda espécie de violências. Não é ser
chamam os laços naturais, amigos que além de louco fazer voluntariamente
lhes servem de auxiliares. Cintam as cabeça baixa a estes sofrimentos?
cidades de muralhas, reúnem exércitos - Com que então, Aristipo - , vol-
para repelir as agressões injustas e até veu Sócrates - não vês esta diferença 18
indagou-lhe:
5 Poeta dos meados do século VIII a. C.; com sua
inimigos, para dar-me nome odioso, farta de tudo antes de ter desejado
chamam-me a Perversidade". coisa alguma, comes antes da fome,
27 Aí a outra mulher, adiantando-se, bebes antes da sede. Para comer com
disse-lhe: prazer, vives à caça de cozinheiros.
"Eu também venho a ti, Hércules; Para beber com prazer, procuras beber
conheço os que te deram à luz e desde vinhos caríssimos e no verão corres a
tua infância penetrei-te o caráter. toda parte em busca de neve. Para dor-
Assim espero que se tomares o cami- mir agradavelmente, procuràs cobertas
nho que traz a mim, serás um dia autor macias e leitos flexíveis. Porque não é
ilustre de belos e gloriosos feitos e eu o cansaço e sim a ociosidade que te faz
própria me verei mais honrada e consi- desej_ar o sono. Em amor, provocas a
derada dos homens virtuosos. Não te necessidade antes de senti-la, usas de
' iludirei com promessas de prazeres: mil artificias e te serves tanto de ho-
expor-te-ei o que existe com verdade e mens como de mulheres. Assim é, em
2s tal qual o dispuseram os deuses. Do verdade, que formas teus amigos. À
que há realmente honesto e belo, nadâ noite os degradas e de dia os adorme-
concedem os deuses aos homens sem ces durante os instantes mais precio-
sacrifício e diligência. Queres que os sos. Imortal, foste rechaçada pelos 31
com prazer e sem confeição alimentos honra, mas sua memória esplende cele-
e bebidas, porque esperam o desejo - brada de evo em evo. Aí está, Hércu-
para comer e beber. O sono lh·es é mais les, filho de pais virtuosos, como,
agradável que aos ociosos; interrom- trabalhando, podes alcançar a suma
pem-no sem pesar e não lhe sacrificam felicidade".
seus negócios. Jovens, sentem-se feli- Eis pouco mais ou menos como
zes dos elogios dos anciãos. Velhos, narra Pródico a lf:ção dada a Hércules
recebem ditosos os respeitos da juven-
tude. Recordam com deleite as ações pela Virtude, conquanto ornasse seus
pretéritas e realizam prazerosos o que pensamentos de. expressões mais no-
lhes resta fazer. Por virtude minha, são bres que as por mim usadas neste
amados dos deuses, caros aos amigos, momento. Reflete, Aristipo, e trabalha
honrados da pátria. Ao soar a hora por gizar a conduta que observarás
fatal, não dormem em olvido sem para o resto da exnstência.
CAPÍTULO II
que ·a mãe ·procura adivinhar o que lhe diz por mal, mas quereria ver-te feliz
convém, o que pode agradá-lo, e que como ninguém, te irritas contra ela?
ela fomenta dia e noite, ao preço.de mil Pensas então seja tua· mãe para ti uma
fadigas e sem saber qual será a paga de inimiga? .
seus sofrimentos. E não é só o alimen- - Claro que :o.ão. 10
lhe suporte o mau humor. ter atenções par.a com todos ou não
Volveu Sócrates: procurar comprazer a ninguém, a nin-
-- Não achas o humor selvagem de guém obedecer, nem a um estratego
uma besta mais insuportável que o de nem a não importa que magistrado?
u'amãe? · - Por Júpiter! há obedecer.
- Não, pelo menos de mãe qual a - Pois bem :- disse Sócrates 12
dão não honrou o túmulo dos pais mens, cuidarás em que, sabedores .de
mortos, pede-lhe contas o Estado nos .tua falta de ~espito para com teus
inquéritos abertos sobre os futuros pais, não te desprezem todos e te dei-
14 magistrados. Se, pois, és prudente,
xem sem amigos. Porque se suspei-
filho meu, temeroso que as deidades te
olhem como ingrato e te recusem seus tassem foras ingrato para com teus
favores, rogar-:-lhes-ás te perdoem as pais, quem te creria capaz de reconhe-
ofensas à tua mãe. Quanto aos ho- cer um beneficio?
CAPÍTULO III
Querefonte e Querécrates, dois ir- leite? Quando por mais não fosse, os
mãos, conhecidos seus, não iam lá homens respeitam mais e mais receiam
muito um com o outro. Tendo-o nota- ofender aqueles que têm irmãos do que
do e topando certo dia com Querécra- os que não os têm.
tes, interrogou-o: Ripostou Querécrates:
- Dize-me, Querécrates, acaso - Certo, Sócrates, se a desinteli- s
não serias desses homens que reputam gência fosse pequena, seria justo su-
as riquezas mais estimáveis que os portar o irmão e dele não se afastar
irmãos, muito embora às riquezas fale- por motivos insignificantes: porque
ça razão, enquanto um irmão é ser como dizes, grande bem é um irmão,
razoável; elas precisam ser defendidas, quando tal qual deve ser; mas quando
ao passo que ele pode defender-nos; falta a todos os deveres, quando se
elas são em número infinito e ele mostra de todo em todo o contrário do
único? Coisa não menos estranha é que é de esp~ra, como tentar o
crer-se alguém esbulhado por não pos- impossível?
suir os bens dos irinãos, quando nin- - Vejamos, Querécrates - tornou
guém considera dano as riquezas dos Sócrates - , Querefonte desagrada a
concidadãos, por não possuí-las. Prefe- toda gente como a ti ou há pessoas a
re-se viver cercado de amigos e gozar, quem compraza?
sem temor, de recursos suficientes do - Precisamente por isso, Sócrates,
que viver só e fruir na insegurança. as tenho razão de odiá-lo: sabe agradar
posses de todos os concidadãos:: a. os outros ao passo que a mim em vez
jtanto, ao tratar-se de. irmãos, desco- de me ser útil só sabe desgostar-me
nhece-se esta verdade. De outra parte, com atos e palavras.
os que o podem compram escravos - Não será - prosseguiu Sócra-
para ajudar-se de seus trabalhos, bus- tes - que tal o corcel que derruba o
. cam amigos para ter apoio, porém cavaleiro inábil que tenta montá-lo, re-
negligenciam os irmãos, como se fosse foga um irmão ao irmão sem tato que
possível encontrar amigos entre patrí- dele intenta servir-se?
cios e não o fosse entre os irmãos. Sem - Como - replicou Querécrates
embargo, que melhor título para a ami- - não saberia eu lidar com meu
zade que haver nascido juntos, se até irmão, se a boas palavras sei responder
os animais têm uma espécie de ternura com boas palavrás, a bons ofic.ios com
para os que se alimentaram do mesmo, bons ofícios? Todavia, se alguém toma
78 XENOFONTE
a assinatura contra mim não sei dizer- de que dispõem os homens e deles
lhe· palavra de agrado nem prestar-lhe fazes mistério há tanto tempo! Será
um benefício, e sequer o tento. que crerias desonrar-te, prevenindo teu
Ao que respondeu Sócrates: irmão com bons tratos? Entretanto,
- Estranho tuas pal~vrs, Queré- olha-se como homem digno de todos
crates. Se tivesses um cã6, guarda fiel os elogios o que sabe ser o primeiro em
de teus rebanhos, que festejasse teus estorvar os inimigos e servir os ami-:
.pastores mas rosnasse à tua aproxima- gos. Julgasse eu Querefonte mais apto
ção, em lugar de te pores colérico que tu a dar o exemplo destas boas
procurarias amansá""'.lo com bons tra- disposições, e tê:-lo-ia induzido a dar os
tos; e teu irmão, que reconheces gran- primeiros passos para conquistar tua
de bem desde que bem disposto para amizade; tenho-te, porém, por mais
contigo, tu que campas de reto no falar capaz de encetar esta obra.
e obrar não procuras concitar-lhe a Retorquiu Querécrates: 15
afeição? - Francamente; Sócrates, teus
10 - Receio, Sócrates - disse Que·- conselhos me admiram. Dizes coisas
récrates - não ser suficientemente indignas de ti: queres que eu, o mais
hábil para bem animá-lo ein relação a jovem, tome a iniciativa. No entanto,
mim. entre todos os povos o contrário é que
- Entretanto - volveu Sócrates voga. Em tudo tem o mais velho o pri-
- parece-me não haver necessidade meiro passo, seja para a ação,- seja
de empregares artifícios numerosos .e para a palavra.
extraordinários. Os que conheces serão - Quê ! - exclamou Sócrates - 16
Outro dia, ouvi-o usar de linguagem nes. - Há tal homem cuja amizade eu
·capaz de fazer o ouvinte entrar em si preferiria a duas minas, outro por
mesmo e considerar qual o grau. de es- quem não daria meia mina, outro por
tima que merecia de seus amigos. quem daria até dez minas, outro por
Sabedor de que um de seus discípulos quem dari-a todas ~s minhas riquezas e
abandonava um amigo na indigência, rendas.
dirigiu-se a Antístenes em presença - Assim sendo - respondeu Só-
desse amigo indigno e de muitas outras crates - , bem seria que cada um exa-
pessoas: minasse a que preço deve ser estimado
- Dize-me, Antístenes, haverá pelos amigos e se esforçasse por valer·
preço para os amigos como o há para o mais possível, a fim de correr menos
os escravos? Entre os escravos um vale o risco de ser abandonado. A todo ins-
duas minas 7 , outro nem meia; esta tante ouço dizer a um que o amigo o
vale cinco, aquele seis. Diz-se até que traiu, a outro que por uma mina se viu
Nícias, filho de Nicerato pagou um desprezado pelo homem que julgava
talento 8 pelo intendente de suas minas amigo. À vista de tudo isso, pergunto- s
de· prata. Vejamos, pois, se assim como me a mim mesmo se, da mesma forma
existe preço para os escravos, existe que se vende um mau escravo pelo
para os amigos. preço que se encontra, não se deve pôr
- Claro que sim - disse Antíste- à venda e vender um mau amigo desde
que=·ofereçam mais do que vale. Vejo,
7 Mina: moeda de 100 dracmas; 10 minas de·prata porém, que nunca se vendem os bons
fazem 1 mina de ouro; 60 minas de prata, 1 talento.
(N. do E.) escravos e jamais se abandonam os
s Cf. nota 7. (N. do E.) bons amigos.
CAPÍTULO VI
- Sim. Um picador que eu visse dos, se, para louvá-lo, fôssemos dizer a
montar bem alguns cavalos, crê-lo-ia um homem que se saiba pequeno, feio
capaz de com outros fazer outro tanto. e fraco, que é belo, grande e robusto.
- Seja. Mas tendo um homem nos Mas não conheces outros amavios?
parecido digno de nossa amizade, -·Não. Ouvi dizer, porém, que Pé- 13
- Como, então, conseguir amigos? sito, conheces homens inúteis que te-
10 - Dizem existir. certas palavras nham sido capazes de granjear amigos
mágicas, que, sabidas e pronunciadas, úteis?
fazem amigos nossos quem quer que - Não, à. verdade. Todavia, se ao
queiramos, filtros cujo conhecimento perverso é impossível travar amizade
serve para fazer-se amar de quem se com pessoas honestas, gostaria de
queira. saber se será fácil, sendo a gente
- Onde aprender essas receitas? honesto, encontrar amigos entre 'os ho-
11 - Disse-te Homero as palavras mens virtuosos. 17
mágicas que a Ulisse_s disseram as - O que te embaraça, Critobulo, é
sereias. Principiam mais ou menos veres muitas vezes pessoas -que prati-
assim: Aproxima-te, ilustre Ulisses, cam o bem e sé abstêm do mal, longe
honra dos aqueus. de amigos, atacarem-se umas às outras
- Mas, Sócrates, não é o canto e tratarem-se mais indignamente que
com que as sereias retinham os outros os últimos dos homens.
homens e os impediam de fugir-lhes às - E não s:ão os particulares - 18
amar-se uns aos outros: efetivamente, com os amigos e olhando os bens dos
como poderiam seres ingratos, negli- outros como os seus próprios, dirimem 2.f
gentes, cúpidos, sem fé e sem freio tor- todo pretexto de inveja. Não é, pois,
nar-se amigos? Os maus foram feitos natural que, galgando os cargos do
20
antes para odiar-se mutuamente que Estado, longe de se prejudicarem, se
para amar-se. De mais a mais, como tu sirvam mutuamente os homens virtuo-
próprio o dizes, impossível formarem sos? Os que desejam as honras e a
os maus concerto amistoso com os autoridade em sua pátria, a fim de pi-
bons, pois qual a amizade possível lhar livremente os fundos públicos,
entre os que fazem o mal e os ·que o violentar os cidadãos e viver. na indo-
detestam? E s·e até os homens que pra- lência, são corações injustos, perver-
ticam a virtude se dividem para os pri- sos, incapazes de qualquer afeição. 25
meiros postos das cidades, se a mútuo Mas o homem que busca as dignidades
ódio os arrasta a inveja, onde encon- para pôr-se ao abrigo de toda injustiça
trar amigos? em quem a benevolência e prestar legítimo apoio aos amigos;
e a fidelidade? que, feito magistrado, se esforça por
21
- Há em tudo isso, Critobulo - ser útil à pátria, então este"homem será
contestou Sócrates - diversas manei- incapaz de entender-se com outro cida-
ras de encarar os fatos. Os homens têm dão virtuoso como ele? Cercado de ho-
naturalmente o sentimento da amizade. mens virtuosos, ser-lhe-á menos fácil
Necessitam uns dos outros, capitulam servir. aos amigos? Apoiado pelos
à piedade, socorrem-se mutuamente, cidadãos honestos, será menos pode-
26
compreendem-se e se mo·sfram gratos. roso para fazer bem à pátria? Evidente
Mas têm também o sentimento da ini- é que, se nos combates gímnicos fosse
mizade. Quando suas idéias sobre os permitido aos mais fortes reunir-se
bens e os prazeres são as mesmas, contra os mais fracos, sairiam vence-
lutam por alcançá-los. Quando dividi- dores em todas as lutas e obteriam
dos pelas opiniões, combatem-se uns todos os prêmios. Ora, isso não se per-
aos outros: a guerra nasce da disputa e mite. Mas se nas lutas políticas, em
da cólera; a malevolência, dos desejos que os virtuosos levam a palma, não se
22
ambiciosos; o ódio, da inveja. Porém a impede um cida.dão de unir seus esfor-
amizade vence todos os obstáculos ços aos de outro para o bem da pátria,
para unir os corações virtuosos: é que, como não ser vantajoso, quando se
graças à virtude, preferem os homens tem parte no governo, cercar-se de
possuir em paz haveres moderados a excelentes amigos e em tudo tê-los
tudo dominar pela guerra. Com fome antes por associados e colaboradores 27
oú sede, cordialmente dividem os ali- que por antagonistas? Não menos evi-
mentos e a bebida. Cobiçosos de um dente ·é que se há lutas há mister alia-
belo objeto, sabem resistir a si próprios dos, e tantos mais quanto se tenha de
para não afligir aqueles·que devem res- combater contra homens de mérito e
23 peitar. Não tomam das riquezas senão virtude. Ora, necessário é fazer bem
sua parte legítima, sem nenhuma idéia aos que queiram tomar-se nossos alia-
de cupidez, e demais auxiliam-se uns dos, a fim de dar-lhes coragem; e antes
aos outros. Sabem resolver suas diver- beneficiar poucos homens virtuosos
gências não somente sem prejudicar- que um exército de maus, desde.. que os
se, mas ainda com mútua vantagem, e maus saem muito mais caros que as 28
impedir a cólera de ir até o rompi- . pessoas de bem. Fica tranqüilo, Crito-
mento. Enfim, repartindo. suas riquezas bulo; procura fazer-te bom e, uma vez
88 XENOFONTE
bom, põe-te à caça dos corações vir- - Pois bem, meus beijos, endere-
tuosos. Quem sabe possa eu auxiliar-te çando-se aos que são belos, só elegerão
um pouco nessa perseguição, sendo os que forem bons. Tranqüiliza-te,
como sou um coração aberto ao amor. pois, e dize-me a arte de caçar amigos.
Não imaginas, quando cobiço a amiza- Então Sócrates:
de de alguém, como me empenho em - Quando quiseres ligar-te a al-
inspirar-lhe a mesma afeição que por guém, permitirás que eu te denuncie a
ele sinto, em fazê-lo comungar comigo ele, que lhe diga que o admiras e dese-
em meu desejo, em fazê-lo amar aque- jarias ser seu amigo.
29 les que amo. Sei que quando desejares - Denuncia-me - disse Critobu-
travar alguma relação também terás lo. - Sei que ninguém aborréce o
necessidade dessa ciência; não me louvor.
ocultes, pois, os que quiseras ter por - E, se além disso acusar-te de, 34
amigos: a diligência com que procuro atenta tua admiração, estares benevo-
agradar quem me agrada, deu-me, lamente disposto para com ele, não
creio, certa experiência da caça dos crerás que te calunie?
homens. - De forma alguma, pois eu
JU Então Critobulo: mesmo sinto inclinação para quem me
- É, Sócrates, c1encia que há pareça senti-la em relação a mim.
muito tempo anseio por conhecer, - Então poderei dizer tudo isso 35
Q~ando, por ignorância, seus ami~ seus como ainda põe dinheiro de lado e
gos se encontravam em apuros_, procu- enriquece, de passo que tu, tendo mui-
rava desempeçá-los por meio de conse- tas pessoas que sustentar temes que
lhos; quando, por pobreza, ensin_ava-os morram todos à falta do necessário?
a auxiliarem-se mutuamente. Referirei - Caramba! ele mantém escravos,
também o que dele sei a tal propósito. eu pessoas livres.
Vendo um dia Aristarco imerso em - Quem reputas mais dignas de
tristeza: . estima, as pessoas livres que tens em .
- Pareces-me, Aristarco - disse- casa ou os escravos de Ceramão?
lhe - ter qualquer coisa que te pesa; é - · Claro, as pessoas livres que
preciso repartir o fardo com os amigos; tenho em casa.
quem sabe possamos aliviar-te .. - Então é uma vergonha viver
- Palavra de honra, Sócrates - Ceramão na abundância com homens
respondeu Aristarco - estou em maus de cacaracá, enquanto tu, com pessoas
lençóis. Desde que a cidade se insurgiu muito mais dignas de estima, estejas na
e inúmeros cidadãos se retiraram para miséria?
o Pireu, minhas irmãs, sobrinhas, pri- - Não, por Júpiter! pois ele ali- s
mas, abandonadas, refugiam~s em menta artesãos e eu pessoas de educa-
minha casa, de modo que somos cator- ção liberal.
ze pessoas de condição livre. Nada
- Artesãos não são os que apren-
retiramos da terra, em poder dos inimi-
deram a fazer alguma coisa útil?
gos, nem de nossas casas, pois a cidade
Sem dúvida.
está quase deserta. Ninguém compra
móveis, não há quem empreste dinhei- A farinha não é coisa útil?
ro; será mais fácil achar dinheiro na Certamente.
rua que alguém que o forneça. É muito E o pão?
triste, Sócrates, ver em tomo de si os Também.
parentes na miséria; impossível, em E as roupas de homens e mulhe..:.
semelhantes circunstâncias, suten~ar res, as túnicas, as clâmides, as exômi-
tanta gente. des 9?
Ao que Sócrates retorquiu: .
- Como é que Ceramão, também 9 Túnica, lit. quitãozinho: túnica curta, sem man-
toda a sua casa e vive à larga. Deméias ação vergonhosa para elas, antes a
de Cólito fazendo clâmides, Menão, morte. Mas ao que dizes, tuas parentas
clâmides, a maior parte dos megarinos, possuem talentos honrosíssimos, os
exômides, obtêm o com que viver. que melhor convêm à mulher. Ora, o
- Convenho; mas todos eles com- que se sabe faz-se com facilidade,
pram escravos bárbaros que jungem ao prontidão e prazer. Não hesites, pois,
trabalho a sua discrição, ao passo que em propor-lhes partido que te será tão
eu trato com pessoas livres, minhas vantajoso quanto a elas, e que sem dú-
parentas. vida aceitarão prazerosas.
- Como? Por serem livres e paren- - Em nome dos deuses, Sócrates li
tas tuas, achas que nada devam fazer - volveu Aristarco - teu conselho
senão comer e dormir? Julgas tenham parece-me excelente. Não ousava· pedir
melhor existência as outras pessoas li- emprestado, sabendo que após gastar o
vres que vivem em semelhante -ociosi- que recebesse não teria com que resti-
dade? Senão mais felizes que as que se tuir. Agora, para co.rneçar os trabalhos
ocupam das coisas úteis que sabem? creio poder decidir-me a fazê-lo.
Pensas que a preguiça e a ociosidade
ajudem os homens a aprenderem o que Dito e feito. Procuraram-se fundos, 12
coisas úteis? Quais os mais justos, os que não lhes contas a fábula do cão? É
que trabalham ou os que sem nada fama que, no tempo em que os animais
fazerem, sonham com os meios de sub- falavam, disse a ovelha para o dono:
sistir? Neste momento, estou certo, "Estranho que a nós que te fornece-
não podes amar tuas paren~s nem elas mos lã, cordeiros, queijo, nada nos dês
MEMORÁVEIS-II 93
que não sejamos obrigadas a arrancar e o medo de morrer não vos deixaria
à terra ao passo que com teu cão, que pastar".
nada te dá, com ele repartes teu pró- Acrescenta-se que aí consentiram as
prio alimento". ovelhas lhes fosse o cão preferido. Vai,
14 Retrucou-lhe o cão, que a ouvia: pois, dizer também a tuas parentas que
"Por Júpiter! ele tem razão, pois as guardas e vigias qual o cão da fábu-
s.ou eu que vos guardo e impeço de ser- la; que graças a ti de ninguém são
des roubadas dos homens ou areb~ insultadas e podem trabalhar jocu:ndas
tadas dos lobos: não velasse eu por vós e em segurança.
•
CAPÍTULO VIII
Certo dia, eu presente, ouvi Críton ou qualquer provisão das coisas neces-
queixar-se ser a vida difícil .em Atenas sárias que fornece o campo, dava parte
para quem quisesse ocupar-se tranqüi- a Arquidemo, Quando oferecia um
lamente de seus negócios. sacrifício convidava-o e não o esquecia
- Diariamente - dizia - inten- em nenhuma destas ocasiões. Arquide-
tam-me processos. Não que eu atente mo, que via na casa de Críton um refú-
contra os direitos de ninguém, mas por gio seguro, a ele prendeu-se inteira-
imaginarem que prefira dar dinheiro a mente. Bem depressa descobriu serem
ver-me metido em querelas. ·os sicofantas que perseguiam Críton
Replicou Sócrates: indivíduos cobertos de crimes e terem
numerosos inimigos. Citou um em
- Dize-me, Críton, alimentas cães
juízo perante o povo para que fosse
para que afastem os lobos de tuas
condenado a castigo corporal ou
ovelhas?
multa. Consciente das próprias malfei-
- Certamente, e acho-o prudente. torias, tudo fez o acusado para desem-
- Não consentirias, então, em baraçar-se de Arquidemo, porém este
manter também um homem que qui- não o largou enquanto o extorsor não
sesse e pudesse conservar à distância deixou Críton em paz e não lhe deu
os que procurarem prejudicar-te? algum dinheiro. Da mesma sorte pro-
- De boa vontade, se não temesse cedeu Arquidemo em diversas circuns-
que ele próprio se voltasse contra mim. tâncias semelhantes. Então, assim
-. Quê ! não vês ser mais agradável como tendo um pastor um bom ca-
e vantajoso servir um homem como tu chorro se apressam os outros em pôr-
que dele fazer-se inimigo? Sabes que lhe perto seus rebanhos, para que fi-
aqui não faltam homens ambiciosos de quem sob a mesma guarda, assim
tua amizade. pediram os amigos de Críton os puses-
Em seguida a esta conv~rsa encon- se também sob a custódia de Arquide-
traram Arquidemo, cidadão capaz mas mo. Este de bom grado comprazia a
pobre. Longe de ser um aproveitador, Críton, e não só Críton como todos os
amava o bem e possuía a alma seus amigos viviam em paz. E quando
demasiadamente sobranceira para dei- os inimigos de Arquidemo lhe expro-
xar-se corromper pelo dinheiro dos bravam o ter-se feito, por interesse,
sicofantas. Desde logo, sempre que adulador de Críton:
Críton recebia trigo, azeite, vinho, lã - Onde a vergonha - respondia
98. XENOFONTE
, 1
Arquidemo - em entreter com ho- se, ao reves, com os maus, proçurar-
mens virtuosos comércio de serviços lhes a amizade ie preferir seu trato ao
recíprocos, fazê:...los amigos e opor-se das pessoas honestas?
aos maus, ou em tudo fazer por preju- Desde então foi Arquidemo sempre
dicar as pessoas de bem e assim estimado dos amigos de Críton, que de·
atrair-lhes a inimizade, mancorríunar- sua parte o incluiu em o número deles.
•
CAPÍTULO X
Sei também que teve esta conversa obedecer-te às ordens como a agir de
com Diodoro, um de seus amigos: iniciativa própria, a prevenir e prever
- Dize-me, Diodoro, se um de teus - este homem, creio, valeria uma
escravos fugisse procurarias reavê-lo? legião de escravos. Recomendam os
- Por Júpiter! e pôr-lhe-ia os ou- bons ecônomos que quando uma mer-
tros na pegada, anunciando uma re- cadoria preciosa está a baixo preço se
compensa a quem o capturasse. aproveite a ocasião para comprá-la:
- Se um de teus escravos caísse ora, nos tempos que correm, por pouco
doente não tratarias dele, não chama- custo podem adquirir-se bons amigos.
rias médicos para.salvar-lhe a vida? Respondeu Diodoro: 5
- Vergonhoso para alguém que que, se algum dia um de nós vier a ser
quisesse ser estratego em sua terra, ó oficial sob tuas ordens, esteja melhor
jovem, não seria deixar fugir ocasião instruído nas coisas da guerra, dize-
de aprender a arte militar? Não deve- nos por. onde começou Dionisodoro a
ria ser punido ainda mais severamente ensinar-te a estratégia.
que alguém que se metesse a fazer está- Respondeu o jovem:
tuas sem ter aprendido a estatuária? ·~· Começou por onde terminou.
Que nos perigos da guerra a cidade Ensinou-me a tática e nada mais.
inteira confia no estratego; daí resulta- - Entanto - observou Sócrates
rem seus sucessos em grandes vanta- - isso é parte mínima da arte do gene-
gens e em grandes males, seus revezes. ral. Cumpre-lhe ainda prover a todo o
Como, pois, não seria justo punir um material da guerra e de tudo fornecer o
homem que após sobreolhar o aprendi- soldado. Ser fecundo de expedientes,
zado da arte militar tudo fizesse· por empreendedor, cuidadoso, paciente,
ser eleito? sagaz, indulgente e severo, franco e
Com estes conselhos Sócrates apres- astuto, capaz de defender-se e de
sou o jovem a estudar com Dioniso- surpreender, liberal e rapace, generoso
doro. Estudado, voltou o discípulo e cúpido, prudente e audaz. Enfim deve
para junto do mestre, que exclamou ter, para ser bom estratego, todas as
jocoso: demais qualidades que dão a natureza
- Cidadãos, não achais que assim e a ciência. Glorioso é também conhe-
como a Agamenão titulava Homero cer a arte de ordenar as tropas; vai
venerável, depois das lições de estra- grande diferença entre um exército
tégia não parece este jovem ainda mais bem alinhado e tropas juntas à gan-
respeitável? Pois se, ainda que não daia. Pedras, tijolos, traves, telhas lan-
104 XENOFONTE
çadas a monte aqui e ali para nada ser- examinar como poderemos não nos
vem; se," porém, nos fundamel'l:tos e nas enganar?
sumidades se dispõem os materiais - De acordo - assentiu o jovem.
imputrecíveis e inalteráveis, como as - Fosse, erntão, o caso de pilhar
pedras e as telhas, se de permeio se dinheiro, não faríamos bem colocando
ajustam os tijolos e as traves, ao modo na frente os soldados mais cúpidos?
de edifício, então se tem algo precioso, - Assim penso.
uma casa. - E se se ti:atasse de correr peri-
- O que acabas de dizer, Sócrates gos, não poríamos na primeira linha os
- respondeu o jovem - , é exata- que mais prezam a glória? ·
mente o mesmo que se pratica na guer-
- Sem duvida, pois, de olho na
ra: lá, com efeito, deve colocar-se nas
honra, só querem expor-se. Esses não
primeiras e últimas filas os melhores
são difíceis de descobrir: sempre ,em
soldados e no meio os piores, a fim de
vista, em toda parte estão à mão.
serem arrastados e. impedidos pelos
outros. - Ensinou-te ele apenas a dispor li
Não me esqueceu ·a conversa que outros, animais tão mal nutridos que
com um cidadão recém-nomeádo bi- nem possam andar; estes, cavalga-;-
parco 1 0 teve Sócrates. . duras tão fogosas que não haja mantê-
- Jovem - interpelou-o - pode- las quietas; aqueles, alimárias tão res-
rias dizer-me por que ambicionaste ser pingas que sequ~r possas dispô-las em
biparco? Sem dúvida não seria para fila, de que te servirá tua cavalaria?
marchar à testa dos ginetes: esta honra Como, à frente. de semelhante corpo,
pertence aos arqueiros montados, que poderás servir a República?
precedem aos próprios biparcos. -.- Tens razão, olharei o mais que
- Tens razão. · puder pelos cavalos.
- Tão pouco seria para te fazeres - Quê! ~ão te esforçarás também s
conhecer: os próprios louros são muito para melhorar os cavaleiros?
conhecidos. · - Está claro que sim.
- Também é verdade. - Não principiarás por habituá-
- Não seria porque esperas melho- los a montarem mais .lestamente a
rar a cavalaria da República e, quando cavalo?
necessários os. préstimos dos cavalei-
- Naturalmente. Assim quando
ros, à sua frente servir o Estado?
algum cair · terá ·mais ensanchas de
-. De fato.
salvar-se.
- Aí está, por Júpiter ! - disse
Sócrates - um alvo glorioso, se fores -· Na hora do combate ordenarás
capaz de atingi-lo. Enfim te elegeram aos inimigos que venham à planície
para comandar cavalos e.cavaleiros? onde estfls acostumado a manobrar, ou
- Justamente. , procurarás exercitar teus cavaleiros eÍn
- Ora bem, .antes de tudo dize-nos toda espécie de terreno onde se possa
o que pretendes fazer para melhorar os e~cbntra o inimigo?
cavalos. . · - Ein verdade será melhor exerci-
-·- Mas· isso não é coisa que me tá-los em todos os terrenos.
incumba. Cada. cavaleiro que trate de -- Não os afarás, outrossim, a lan-
seu cavalo. ç~em o dardo a· cavalo?
- Entanto; se uns te trouxerem - Também será conveniente.
cavalos fracos dos pés ou das pernas, -. Já pensaste em estimular a cora-
senão completamente faltos de forÇas; gem dos. cavaleiros, incitá-los contra o
inimigo, e assim aumentar-lhes a
10 Biparco: comandante de cavalaria. (N. do E.) força?
108 XENOFONTE
Teve um dia com Péricles, filho do mens, qualidades que excitam viva-
grande Péricles, a palestra do teor que mente fazer rosto aos perigos pela gló-
segue. ria e pela pátria. ·
- De mim - disse Sócrates - - Quanto a isso, os atenienses são
choco a esperança, Péricles, que se irreprocháveis.
fores estratego a cidade se fará mais - E, certo, não há povo que com
gloriosa pelas armas e triunfará dos maiores e mais numerosas façanhas se
inimigos. apresente que os atenienses: sua lem-
Respondeu Péricles: brança enaltece o espírito, incita à vir-
- Quisera eu, Sócrates, fosse tude e alenta a coragem.
como dizes. Mas de que jeito conse- - Tudo o que dizes é verdade, Só-
gui-lo, é com que não atino. crates. Mas bem sabes que desde a der-
- Queres - volveu Sócrates - rota dos mil atenienses de Tolmidas
relanceemos os fatores que desde já nos pertos de Lebadia e de Hipócrates
possibilitam esse resultado? em Délio, a glória de Atenas se abateu
- Com todo o gosto. ante os beócios e de tal forma subiu de
- Não ignoras que a população de ponto a audácia dos tebanos para com
Atenas não é menos numerosa que a os atenienses, que, · se outrora não
da Beócia? ousavam medir-se conosco sem os
- Não. lacederilônios e mais povos do Pelopo-
- Onde julgas poder levantarem-se neso, hoje ameaçam cair sem aliados
as melhores tropas, entre os atenienses sobre a Ática, de passo que os atenien-
ou entr-e os beócios? . ses, que antigamente, quando os beó- ·
- Não creio lhes fiquemos atrás a cios estavam sós, assolavam a Beócia,
·este respeito. ora temem que os beócios devastem a
- Entre quem, em tua opinião, me- Ática.
lhor reina a concórdia? - Bem sei - concordou Sócrates. 5
de a bordo dos navios. Enquanto nada que lhes .valeram a fama de superiores
há que temer, anda tudo à zanguizarra. aos de seu tempo.
Mas teme-se a tempestade ou o inimi- - De fato têm esse renome. 12
sem estranhos e os tornam motivo de contrário, penso que tão· bem poderás
brigas, nas quais se empenham com o dizer quando te iniciaste na arte da
11 maior ardor? Daí essa malignidade guerra como quando aprendeste a luta.
que eivam a República. Daí essas Demais estou convencido que conser-
dissertações e esse ódio entre os cida- vaste os princípios de estratégia que te
dãos. Flagelos que me fazem temer transmitiu teu pai e que, onde quer que
não se embarranque um dia Atenas em os houvesse, colheste os conheci-
males que lhe faleceriam forças para mentos que um dia pudessem servir-te
sobrelevar. à frente dos exércitos. Tampouco duvi- 2J
Sim, sem duvída, se formos mais - que não estivestes nas minas de
fortes que eles. Se formos mais fracos, prata, de sorte que não podes dizer por
nós é que seremos despojados ... que produzem menos que outrora.
- De fato. - Efetivamente inda não estive lá.
-·- Quem desejar empreender uma - Diz-se que o ar lá é malsão: aí
guerra precisa, pois, conhecer a força tens boa escusa para quando se vier a
de. sua nação e a dos inimigos, a fim deliberar a respeito.
de, se sua pátria for mais forte, poder Estás mofando de mim, Sócra-
abrir as hostilidades, se mais fraca, tes.
manter-se na defensiva. Mas tenho certeza de que pelo 13
fome; o que é belo para a corrida não o passando, no verão, por cima de nos-
é para a luta, o que para a luta é belo sas cabeças e dos tetos, não nos deixa
não o é para a corrida. Em suma, as na sombra? Portanto, para receberem
coisas são belas e boas para o uso a sol no inverno não hão mister mais
que se d~stinam. Feias e más para usos altos os tetos das galerias voltadas
a que não convenham. para o meio-dia e mais baixos os dos
Da mesma forma, quando Sócrates aposentos voltados para o setentrião, a
dizia que a beleza de um edifício con- fim de ficarem menos expostos aos
siste em sua utilidade, parecia-me ensi- ventos frios? Em uma palavra, o pré- 10
grande para não poder passar sem no comando, piloto e todos os outros
abaixar-se sob as portas de uma mura- marinheiros lhe obedecerão. Que assim
lha, assaz forte para querer carregar é na agricultura para os que possuem
casas ·ou empreender coisas cuja im- campos. Na doença, para os doentes.
possibilidade todos reconhecem, cha- Na ginástica, para os que exercitam o
mam-lhe louco varrido. Se só comete corpo. Que, enfim, em tudo o que exige
faltas ligeiras, não o trata de louco· a indústria, se se sabe como haver-se,
multidão. E como não se dá o nome de muito bem, m~ios à obra. Senão, recor-
amor senão a intensa afeição, assim re-se e obedece-se aos que sabem. Que
não se chama loucura senão a demên- na arte de fiar as próprias mulheres
cia. dirigem os homens, pois a conhecem, e
Examinando qual a natureza da disso os homens nada entendem.
inveja, não a dizia esse sentimento Se lhe objetavam ser um tirano se- 12
doloroso causado pelas desgraças de nhor de não se:guir os bons avisos que
nossos amigos ou pela prosperidade de lhe dêem:
nossos inimigos, só apelidando invejo- - Como ! -- retorquia - se o cas-
sos os que se afligem com a felicidade tigo nunca falha? Que em faltas incor-
dos amigos. Estranhando algumas pes- re quem a bom conselho faz ouvidos
soas que se pudesse ter amizade a moucos, e faltas querem punição.
alguém e padecesse de sua felicidade, Se lhe diziam estar nas mãos do tira- 13
ou favoreceu a sorte, nem os que pela aos deuses dizia os lavradores que bem
violência ou fraude usurparam o trabalham a terra, os médicos que bem
poder, mas os que sabem mandar. exercem a medicina, os homens de Es-
11 Posto seja o dever do chefe ordenar e o tado que bem dirigem a política. E inú-
do súdito, obedecer, dizia que, se tiver teis aos homens e malqueridos dos
num navio um homem experimentado deuses os que na.da fazem bem.
CAPITULO X
Útil era também seu trato aos artis.- - Será a mesma fisionomia de
tas que vivem do próprio trabalho. quem se interessa e a de quem não se
Entrando certo dia em casa do pintor interessa na felicidade ou desgraça dos
Parrásio, com ele entreteve a seguinte amigos?
prática: - Não, está claro. Na felicidade
-. Dize-me, Parrásio, não é a pin';c. dos amigos brilha a· alegria no olhar,
tura ·representação dos objetos visí- na desgraça mareia-o a tristeza.
veis? Não imitais, com cores, os - Quer dizer que podem represen-
entrantes e salientes,· o claro e o escu- tar-se também estes sentirpentos?
ro, ~ dureza e a moleza, a rudeza e o - Certamente.
lustre, o vigor da idade e a decrepi- . - Pela fisionomia e gestos dos
tude? homens, parados ou em movimento, é
- Assim é! que se exteriorizam altaneria e inde-
- Se quiserdes representar· formas pendência, humildade e baixeza, tem-
de beleza perfeita, como não é fácil perança e razão, insolência e grosseria.
encontrar homem isento de toda im- - Dizes verdade.
perfeição, não reunireis vários modelos - Porque conseguiste não é preci-
e de cada um tomareis o que de mais so reproduzi-los?
formoso possuir, compondo destarte - De acordo.
um todo de perfeita beleza? - E a quem achar agradável de
- É o que fazemos. ver, o indivíduo cujo exterior espelha
- E aquilo que mais atrai, enleva sentimentos elevados, honestos, simpá-
e, seduz él expressão moral da alma, ticos ou o que só deixa ver inclinações
não o imitais? Ou será inimitável? nefandas, perversas e odiosas?
,......_, Como imitá-lo, Sócrates, se não - Por Júpiter! Sócrates, nem há
tem proporção nem cor nem nenhum compará-los.
dos atributos que individuaste? Se, em Foi um dia à casa de Clíton, o esta-
uma palavra, é invisível? tuário, e conversando com ele:
- Quê ! não se nota nos olhos ora -·Vejo e sei, Clíton - disse-lhe
afeição, ora ódio? -. que modelas na. pedra o atleta na
- Nota-se. , carreira, o lutador, o pugilista, o
- Portanto, não há mister retratar pancratiasta. Mas o que mais encanta
estas expressões dos olhos? os olhos, a chama da vid3., como :a
;1
H a. transmites a tuas estátuas?
126 XENOFONTE
E corno Clíton, embaraçado, hesi- - Como faz,es para que uma cou- Jl
protege as p~tes que necessitam defe- que vendo tão caras minhas obras. Sei,
sa e não obsta ao movimento dos bra- contudo, muita gente haver que prefere
10 ços. Mas dize-me, Pistias, por que comprar: couraças cinzelad~ ou dou.:.
motivo, não sendo tuas couraças nem radas.
mais sólidas nem mais custosas a ti - Se compram couraças que não 15
que as dos outros fabricantes, as ven- lhes vão com o corpo, parece-me com-
des muito mais caras? prarem uma incomodidade cinze!ada
- Porque, Sócrates, as minhas são ou dourada. Mas de vez que o corpo
mais bem proporcionadas. não permanece sempre imóvel, ora se
- Mas essa proporção será con- inclina, ora se apruma, como poderão
forme a medida ou a balança que fazes assentar couraças demasiadamente
pagá-la mais caro? Porque p~nso não justas?
poderes fazê-las todas absolutamente - Não é possfvel.
iguais nem de todo ponto semelhantes, - Dizes, pois~ que as couraças vão
se quiseres que assentem bem. bem não quando :são justas, mas quan-
Por Júpiter ! é com o tento nisso
e__ do não incomodam?
que as faço. Do contrário não servi- - É o que digo, Sócrates, e com-
riam. preendeste-me muito bem,
J
CAPÍTULO XI
aranhas. Sabes como elas caçam a que não lanço m~io de nenhum desses
presa: tecem uma teia sutil e tudo o meios.
que nela cai lhes serve de alimento. - Entanto, nã.o é indiferente saber li
Como as lebres pastem de noite, aper- solicitam mais do que poderiam dar. A
cebem-se eles de cães que enxerguem outra, paga-os iíl.a mesma moeda.
no escuro e põem-se na pista da caça. Assim te amarão mais, permanecereis
De dia as lebres põem sebo nas cane- unidos por mais tempo e f ar-te-ão
las, e então se munem eles de outros maiores larguezas . Para comprazê-los, 13
vezo de comer muitas viandas juntas é ses o ato de comer por termo que signi-
supor-se a gente na miséria quando fica "bem comer", acrescentando que
menor é o número de pratos e lamen- o vocábulo "bem" junto a "comer" in-
tar-se b cardápio costumado. Ao con- dica que o alimento não deve ser
trário, estando-se habituado a um nocente ao corpo nem ao espírito, nem
único prato, faltando os outros não se de difícil obtenç~i. Em uma palavra,
lastimará de só ter um. por "bem comer':·, entendia ''viver com
Observava expressarem os atenien- moderação".
LIVRO IV
. ' : . ;.
. . . .
1
CAPÍTULO 1
zer com que o escutava o jovem, foi tinuou Sócrates - , essa ciência que
· sozinho à oficina do seleiro, sentando- torna· os homens aptos a governar as
se Eutidemo a seu lado: casas e 6 Estado, mandar, ser útil a si
- Dize-me, Eutidemo - falou-lhe mesmos e aos demais?
Sócrates - , é certo, éomo ouço dizer, - Sim - respondeu Eutidemo - ,
haveres coligido grande cópia de obras eis o mérito que ambiciono.
de homens famigerados pelo saber? - Por Júpiter! - exclamou Só-
- Sim, Sócrates. E continuarei a crates - visas à maior e mais emi-
· colecioná-las até reunir o maior núme- nente das ciências. É a ciência dos reis,
ro possível. e por isso se chama ciência real. Mas
- Por Juno ! Admiro-te por have- examinaste se é possível, sem ser ju·sto,
res preferido ao ouro e à prata os nela brilhar?
tesouros da sabedoria. Indubitavel- - Sim, e creio imposível~ sem jus- 12
mente sabes que a prata e o ouro não tiça, ser bom cidadão.
tornam os homens melhores, de passo - Como buscar ser justo?
que milionários de virtude fazem as - Em questão de justiça, Sócrates,
sentenças dos sábios aqueles que as penso que ninguém me leva as lampas.
possuam. - Terão os homens justos suas
Eutidemo regozijava-se com tais funções, como os artesãos?
palavras, persuadido de que aos olhos Claro.
de Sócrates estava no vero caminho da - Assim .como os artesãos expõem
MEMORÁVEIS-IV 143
suas obras, nâo podem os justos dizer - Então não cumpre colocar
quais são as suas? igualmente do lado da justiça tudo o
- Como não! - disse Eutidemo. que pusermos do outro lado?
- Que mais fácil que enumerar as coi- - É o que me parece.
sas justas? O mesmo poderia fazer - Queres que, colocando todas 16
com as injustas: haverá coisa mais estas ações do lado que designas, esta-
comum? beleçamos por princípio serem justas
13 - Queres, pois, escrevamos aqui contra inimigos, porém injustas contra
um "J" e ali um "I"? Em seguida colo- amigos, e que em relação a estes deve-
·caremos de baixo do "J" o que nos mos proceder com toda a direitura.?
parecer justo e o injusto de baixo do - Com todo o gosto - anuiu 11
"I" Eutidemo.
- Se o achas necessário ... - Pois bem - prosseguiu Sócra-
11 Após escrever como dissera, prosse- tes-, se, vendo suas tropas desanima-
guiu Sócrates: das, anuncia-lhe falsamente um gene-
- Não existe, entre os homens a ral que lhes chegam auxílios e destarte
mentira? logra devolver-lhes a coragem, de que
Sem dúvida. lado colocaremos esta peta?
De que lado a colocaremos? - Do lado da justiça, creio.
Evidentemente do lado da injus- - E se necessitando uma criança
tiça. de remédio e não ·querendo tomá-lo,
E o embuste, também não exis- seus pais a enganam, impingindo-lhe o
te? remédio de mistura com os alimentos,
Certamente. e assim a restituem à saúde, onde colo-
De que lado colocá-lo? caremos este logro?
Também do lado da injustiça. - Do mesmo lado.
E os maus tratos? - Enfim, se vejo um amigo presa
Igualm~nte. do desespero e recear de que atente
A escravidão? contra a vida, tomo-lhe a espada e
Sempre do lado da injustiça. todas as demais armas, de que lado
1s Mas então nada poremos do colocas semelhante ato? 1s
lado da justiça~ Eutidemo? · - . Por Júpiter ! do lado da justiça.
- Seria estranho. · - Então dizes que devemos proce-
- Como ! se um homem eleito der com toda a retidão no que respeita
general escravizar uma cidade injusta e aos amigos?
inimiga, di-lo-emos injusto? - Não, e, se me for permitido, reti-
Não, por certo. ro o que d is se.
Então procederá justamente? - Antes . isso que perseverar no
Sem dúvida. erro. Mas, para não deixar este ponto 19
mais injusto que quem engana sem Por não saberem construir?
querer é quem o faz de propósito. Também não.
20 - Pensas haver uma ciência do Então porque não sabem talhar
justo como ah~ da escritura? o couro?
- Sim. - Não é por nada disso. Antes
-· Quem, a teu ver, melhor conhece pelo contrário, porquanto a maioria
as letras, o que escreve ou lê mal dos que exercem tais misteres são pes-
voluntariamente ou o que assim proce- soas servis.
da involuntariamente? - Dá-se este nome, pois, aos que
- O primeiro, pois, desde que o ignoram o que seja o belo, o bom e o
queira poderá fazê-lo bem. justo?
- Então, quem escreve mal volun- - Assim creio. 21
tariamente sa.be escrever, e quem o faz - Então cuidado ! que não nos vão
involuntariamente não? chamar servis.
- Como poderia ser de outra -·- Ah ! pelos deuses, Sócrates, jul-
forma? gava-me muito adiantado em filosofia
- Quem, pois, conhece a justiça: e no verdadeiro caminho da virtude.
quem mente e engana por querer ou Imagina qual não seja minha desilu-
quem o faz sem querer? são, depois de tanto trabalho, vendo-
- O primeiro, evidentemente. me engasgar com perguntas sobre o
- Então dizes o que sabe escrever que mais importa saber e sem atinar
mais letrado que o que não o sabe? como fazer-me melhor !
- Pois é.
- Dize-me, Eutidemo, já estiveste u
- · E o que conhece as regras da
em Delfos?
justiça mais justo que o que não as
- Duas vezes, por Júpiter!
conhece?
- Então leste a inscrição gravada
- Penso que sim, mas nem eu
no templo: Conhece-te a ti mesmo?
mesmo já me entendo.
Li.
21 - Que dirias, Eutidemo, de alguém
que quisesse dizer verdade ·e contudo - Não deste importância ao con-
jamais se explicasse da mesma forma selho ou o aceitaste e diligenciaste
sobre as mesmas coisas? Que, falando saber quem és?
do mesmo caminho, ora dissesse que - Por Júpiter! então não havia de
leva ao Oriente, ora ao Ocidente? conhecer-me a mim mesmo? ! Difícil
Fazendo o mesmo cálculo, já obtivesse me fora aprender outra coisa, se a mim
mais, já obtivesse menos? próprio me ignorasse.
- Evidentemente não saberia . o - Então pensas que conhecer-se a 2s
que presumia saber. si mesmo seja saber como se chama?
- Conheces pessoas a que se cha- Assim como nã.o crêem os compra-
mam servis? dores de cavalos conhecer o animal
22 - Conheço. que desejam comprar antes de verifi-
- Será por causa de sua sabedoria carem se é dócil ou empacador, forte
ou de sua ignorância? ou fraco, ligeiro ou lerdo, enfim, todas
- Claro que por causa de sua as boas ou más qualidades de uma
ignorância. cavalgadura, não deve pesar-se a pró-.
- Chamá-las-ão assim por não pria capacidade para se saber quanta
saberem trabalhar os metais? se vale?
- Não. --- Efetivamente, parece-me que
MEORÁVrs~1v 145
não conhecer o próprio valor é igno- a si próprio. Mas por onde começas o 31
ninguém. Já os que vivem às cegas acordo com este raciocínio. Mas não
metem-se a fazer o que não deviam, resta dúvida ser a ciência um bem: em
malogram em todos os empreendi- que não s.e sairá o homem instruído
mentos e, sobre castigados pelo mau melhor que o ignorante?
sucesso, tornam-se em objeto de des- - Como! não ouviste contar que
prezo e ridículo, vivendo escarnecidos por causa de sua indústria Dédalo foi
e desconsiderados. Podes ver igual- aprisionado por Minos, coagido a ser-
mente que dentre as cidades que, igno- vi-lo e privado ao mesmo tempo da pá-
rando as próprias forças, movem guer- tria e da liberdade? Que, tentando
ras a Estados mais poderosos, umas fugir com o filho, perdeu-o e não con-
são destruídas, outras trocam a liber- seguiu salvar-se, indo dar com os cos-
dade pela escravidão. tados em plagas de bárbaros que de
30
- Estou plenamente de acordo, novo o fizeram escravo?
Sócrates - conveio Eutidemo - ser De fato é o que dizem.
da máxima importância o conhecer-se - E Palamedes? Não ouviste falar
146 XENOFONTE .
- Por Júpiter! parece que todas cederam o dom dla palavra por meio da
essas maravilhas foram feitas especial- qual trocamos benefícios instruindo-
mente para o homem, nos comum e reciprocamente, estabele-
- Demais, já que não poderíamos cemos leis, fundamos Estados?
suportar o calor nem o frio, se· viessem - Não há dúvida, Sócrates, que os
inopinadamente, não se aproxima o deuses olham por nós com o maior
Sol manso e manso e a pouco e pouco desvelo.
se afasta, de sorte que insensivelmente - E quando não podemos prever o
passamos de um extremo a outro de que nos será útil no porvir, ainda aqui
temperatura? não vêm em nossa ajuda, não revelam
- Estou a perguntar a meus botões pela adivinhação os que os consultam
- disse Eutidemo - se velar pelo o que sucederá de futuro e lhes ensi-
homem não seria a única ocupação nam como proceder?
dos deuses. Mas uma coisa me atrapa- - Quer parecer-me, Sócrates, que
lha - quinhoarem todos os animais te foram mais generosos que ao resto
de seus favores. dos mortais, se é verdade que sem os
10
- Ora essa! - retrucou Sócrates interrogares te indicam de antemão o
- não é manifesto que até esses ani- que deves ou não fazer.
mais nascem e são alimentados para o - Reconhecerás tu também a ver- 13
homem? Que outro animal tira tão dade de minhas palavras, se não espe-
grande proveito da6 cabras, ovelhas, rares que os deuses se te apresentem
cavalos, bois, asnos, etc., como o sob forma real, contentando-te em ver
homem? Antolham-se-me até mais suas obras para orar-lhes e honrá-los.
úteis que os vegetais. Não nos alimen- Pensa bem: é assim que os deuses se
tamos e enriquecemos menos de uns manifestam. As deidades menores, de
que outros. Muitas raças humanas há quem recebemos as graças, não se nos
MEMORÁVEIS-IV 149
is veis, mas, por seus efeitos, reconhecer- conselhos, tanto quanto pelo exemplo,
lhes o poder e honrar a deidade. fazia Sócra.tes mais pios e mais sábios
- Jamais, Sócrates - respondeu os que com ele se ver~am.
CAPITULO IV
vezes cinco são dez, não respondes - Pois olha supunha que não que-
1 12
hoje como respondeste outrora? rer ser injusto fosse prova suficiente de
- Nessas questões, Sócrates, faço justiça. Se não és do mesmo parecer,
como tu, respondo sempre o mesmo. vê se isto te satisfaz: digo que justo é o
Porém, sobre a justiça creio poder que é legal.
dizer neste momento coisas a que nem - Queres dizer, Sócrates, que lega:l
tu nem ninguém nada podereis objetar. e justo sejam uma só e mesma coisa?
- Por Juno! falas de grande des- - Sim.
coberta. Só assim os juízes cessarão de - Então não sei o que entendes 13
Licurgo tomado diferente das outras grado que àquele que, estamos certos,
cidades? Não sabes que dentre os saberá agradecer-nos? De quem mais
magistrados de uma cidade, em todos amaríamos ser amigo e menos ser ini-
os termos melhores são aqueles que migo? Qual o homem a que mais teme-
mais inspiram aos cidadãos a obe- ríamos atacar que aquele de que mais
diência às leis? Que o Estado onde os amaríamos ser amigo e menos ser ini-
cidadãos são mais submissos às leis é migo, cuja amizade fosse de todos
também o mais venturoso na paz e reqüestada e cujo ódio e inimizade nin-
16 invencível na guerra? A concórdia é guém quiBesse incorrer? Eis-te prova- 1s
para as cidades o maior dos bens. do, Hípia:s, ser o legal e o justo uma
Diariamente a recomendam aos cida- única e mesma coisa. Se não estás de
dãos os senadores e homens mais emi- acordo, dize-mo.
nentes da República. Lei existe em - Por Júpiter! Sócrates, como po-
toda a Grécia que manda os cidadãos deria eu discrepar do que acabas de
jurarem viver em harmonia, e em toda dizer dajrnstiça?
parte prestam este juramento. Não - Conheces, Hípias~ leis não-es- 19
leis? Qual o meio mais certo de não ser bém lei universal?
vencido nos tribunais e ganhar os pro- - Sem dúvida.
cessos? A quem se confiará com mais - Não proíbem as mesmas leis a
gosto fortuna, filhos, filhas? Quem a promiscuidade. de pais com filhos e de
todos preferirá a confiança do próprio filhos com pais?
Estado, senão aquele que respeita as - Quanto a essa lei, Sócrates, não
Ieis 7 De quem esperarão mais eqüi- a creio emanada de um deus.
dade nossos pais, parentes, servidores, Por quê?
amigos, concidadãos e os estrangei- Porque povos há que a transgri-
ros? Com quem preferirão os inimigos dem.
negociar uma suspensão de armas, Transgridem-se muitas outras. 21
uma trégua, condições de paz? Quem Mas os que violam as leis estabele-
granjeará mais aliados? A quem man- cidas pelos deuses são fatalmente puni-
darão com mais gosto esses mesmos dos, enquanto os que pisam aos pés as
aliados seus oficiais e suas tropas? De leis humanas às vezes esquivam a
quem esperará um benfeitor mais grati- pena, seja foragindo-se, seja usando de
dão do que daquele que respeita as violência.
leis? A quem obsequiaremos de melhor - Qual, pois, o castigo que não 12
154 XENOFONTE
Que, pareça embora poder con- rares o homem dominado por prazeres
duzir-nos exclusivamente ao agradá- dos sentidos incapaz de qualquer virtu-
vel, de tanto é incapaz a intemperança, de.
ao passo que a temperança nos propor- - Qual a diferença, Eutidemo,
ciona os mais vivos prazeres. entre o homem intemperante e a besta
mais estúpida? Em que difere dos bru-
- Como assim? tos quem jamais toma o bem por norte
- Porque a intemperança, não nos e só vive para o prazer? Só os tempe-
permitindo suportar a fome, a sede, os rantes podem examinar o que há de
desejos amorosos, a insônia, necessi- melhor em todas as coisas, distribuí-
dades que só elas nos fazem experi- las por gênero na prática e em teoria,
mentar, deleite em comer, beber, amar, joeirar o bem e refogar o mal.
repousar, dormir e que com a espera e Este - dizia Sócrates - o meio de
a privação não fazem senão aumentar tomar os homens melhores, mais feli-
o prazer, a intemperança, digo, impe- zes e mais hábeis na dialética. Ajun-
de-nos de sentir verdadeira doçura no tava vir o nome de "-dialético" do hábi-
satisfazer estes apetites necessários e to de dialogar em comum e distribuir
contínuos. A temperança, ao contrário, os objetos por gêneros; que mister
única capaz de fazer-nos suportar as havia, pois, dar-se com afinco a este
privações, é também a única que nos exercício, de vez que tal estudo forma
permite gozar até pela memória dos os melhores homens, os mais hábeis
prazeres de que falei. políticos e os mais fortes dialéticos.
CAPÍTULO VI
Farei também por contar como Só- -·- Honraríamos os deuses diferen-
crates formava seus discípulos na temente do que cremos de mister?
dialética. Achava que, quando se co- - Não o creio.
nhece berri o que seja cada coisa em - Portanto, não cultuará os deuses
particular, pode-se explicá-la aos ou- legitimamente quem conhecer as leis
tros; mas que, se se ignora, não admira do culto?
que se engane a si mesmo e consigo - Sim.
aos outros. Também não cessava de - Quem cultuar os deuses legiti-
investigar com seus discípulos o que é mamente não os honrará como deve?
cada coisa em particular. Trabalhosa - Seguramente.
empresa seria reproduzir todas as suas - Quem honrar os deuses corho
definições: content.ar-me-ei de referir deve não será piedoso?
as que, a meu ver, melhor caracterizam - Sem dúvida.
seus sistemas. - Então não podemos definir o
Primeiramente vejamos como enca- piedoso como aquele que conhece o
rava a piedade: culto legítimo?
- Dize-me, Eutidemo, ·que achas - De pleno acordo.
da piedade? - Passemos aos homeris. Poderá 5
- Por Júpiter! é a mais formosa cada qual tratar seus semelhantes a seu
das virtudes. bel-prazer?
- Poderias dizer-me qual o - Não. Só procederá legitima-
homem piedoso? mente com respeito a seus semelhantes
- Aquele, penso, que honra os quem conhecer as leis reguladoras das
deuses. relações entre os homens.
- Pode cada um honrar os deuses - Então os que se tratarem reci-
à sua fantasia? procamente segundo essas leis tratar-
- Não, há leis que regulam o se-ão como de dever?
culto. - Sim.
- Saberá quem essas leis conheça - Não se tratarão bem os que se
como adorar os deuses? tratarem como de dever?
- Penso que sim. - Claro.
- Julgará quem saiba honrar os - Quem tratar bem seu semelhante
deuses dever honrá-los de outro modo? não cumprirá seu dever de homem?
- Não, certamente. - Sim.
158 XENOFONTE
não têm medo nos perigos iminentes, e melhor cidadão que o que elogio?
covardes aos que o têm? - Sim.
- Precisamente. - Por que não começarmos, então,
11 - Chamarás corajosos a outros por ~xaminr qual o próprio do bom
que não aqueles que se portam com cidadão?
valor em face dos perigos? - Façamo-lo.
Não. - Na administração das riquezas,
E covardes, aos que se portam não ganha por mão o que enriquece a
mal? pátria?
A quem mais dar esse nome? - Sem dúvida.
Entretanto, cada um deles nao - Em tempo de guerra, não leva a
se porta como julga: dever fazê-lo? palma quem a avantaja dos adversá-
- Necessariamente. rios?
- Saberão os que se portam mal -. Certamente.
como deveriam portar-se? - Numa embaixada, não excele
- Não. quem de inimigos faz amigos?
- Poderão portar-se como devem - Não o nego.
os que o souberem? - No congresso do povo, não leva
- Sim, e eles somente. as lampas quem ·apazigua as sedições e
- Portar-se-ão mal em face dos instaura a concórdia?
perigos os que souberem como ·devem - Assim o creio.
haver-se? Deste modo, resumindo a questão,
- Não o creio. tomava a verdade sensível aos contra-
- Logo, os qu·e se portam mal não ditores. Quando discorria sobre um ls
sabem como deveriam haver-se? assunto, procedia pelos princ1p1os
- É evidente. mais geralmente reconhecidos, tendo
- Por conseqüência, corajosos não por infalível este método de raciocínio.
são os que sabem como é mister Também não conheci quem o sobrepu-
haver-.se nos perigos iminentes e covar- jasse no fazer competir sua opinião aos
des os que não o sabem? que o ouviam. Dizia que Homero
- De acordo. chama Ulisses de orador seguro da
12 Considerava a realeza e a tirania própria causa porque sabia deduzir
duas autoridades, com esta diferença: suas razoes das idéias que todos
realeza chamava um poder aceito admitem.
CAPÍTULO VII
Tenho para mim que do que hei dito se de astrologia o bastante pai a,
transluz claramente a simplicidade viajando-se por terra, por mar ou,
com que Sócrates expunha suas opi- estando-se de guarda, reconhecer as
niões a seus ouvintes. Ora direi como divisões da noite, mês e ano e ter pon-
se aplicava a tomar seus discípulos tos de referência para tudo o que se
capazes de bastar-se a si mesmos em faça na noite, no mês ou no ano.
suas respectivas funções. De quantos Acrescentava ser fácil aprender estes
homens tenho conhecido, nenhum pontos com os caçadores noturnos,
como ele se daria ao trabalho de pilotos e todos aqueles que têm inte-
conhecer as qualidades de seus amigos. resse em sabê-los. Quanto à astrono- 5
Tudo o que sabia convír ao homem mia e às indagações tangentes aos glo-
perfeito e que ele ·próprio conhecesse, bos que não consoam com a rotação
apressava-se a ensinar-lhes, e, para do nosso céu, a saber, os astros erra-
fazê-los aprender o que ignorava, re- bundos e sem regra, sua distância da
metia-os a mestres competentes. Ensi- Terra, revoluções e origem, reprova-
nava-lhes também até que ponto deve va-as energicamente, dizendo nenhuma
o homem bem educado versar-se em utilidade ver em tais especulações.
cada ciência. Assim, dizia dever apren- Não era estranho a esses conheci-
der-se de geometria o necessário para, mentos, mas repetia que podem consu-
em caso de precisão, medir-se exata- mir a vida de um homem e apartá-lo de
mente um terreno que se queira com- um sem número de estudos úteis. Em
prar, vender, dividir ou lavrar. O que é geral interdizia o preocupar-se excessi-
tão fácil - acrescentava - que por vamente dos corpos celestes e das leis
pouco que se dedique à agrimensura segundo as quais os dirige a divindade.
pode conhecer-se a grandeza da terra e Havia esses segredos por impene-
a maneira de medi-la. Mas que se tráveis aos homens e considerava ofen-
levasse o estudp da geometria aos pro- sa aos deuses sondar os mistérios que
blemas mais difíceis, eis o que desapro- não lhes aprouve revelar-nos. Aditava
vava: dizia não ver a utilidade disso. que, enfronhando-se em tais especula-
Não que os ignorasse, mas achava que ções, corria-se o risco de perder a
a perquisição de tais problemas pode razão, como a perdera Anaxágoras
consumir a vida de um homem e des- com suas cerebrações para explicar os
viá-lo de um sem número de outros mecanismos divinos. De feito, quando 1
estudos úteis. Recomendava aprender- pretendia que o Sol não passa de fogo
162 XENOFONTE
haja memória, homem nenhum enfren- dos com a defesa, fizeram os juízes de
tou a morte com mais valor que ele. Atenas morrer muitos inocentes, assim
Foi obrigado a viver ainda trinta dias como absolveram muitos culpados?
após o julgamento, porque precisa- - Tentei, Hermógenes, preparar
mente nesse mês se realizavam as fes- uma apologia para apresentar a meus
tas de Delos e proíbe a lei executar juízes, porém a tanto se opôs meu
qualquer condenado antes do regresso demônio.
da teoria délia 1 4 • Como até então vive- -·- Espanta-me o que dizes.
ra, durante todo esse tempo viveu sob - Por que, se julgam os deuses
os olhos do~ arµigos. Já granjeara mais vantajoso para mim deixar a vida
admiração pouco comum pela calma e desde jft? Não sabes que, até o presen-
serenidade de sua vida. E qual a morte· te, humano algum viveu melhor e mais
mais bela que a su~? Haverá morte ditosamente que eu? Parece-.me não
mais bela que a do homem que melhor
saiba morrer? Haverá morte mais feliz 1 4 Teoria délia: era a delegação das cidades gregas
que a mais bela? Haverá morte mais às festas solenes no templo de· Apolo de Delos. (N.
grata aos deuses que a mais feliz? do E.)
164 XENOFONTE
.
XENOFONTE
APOLOGIA
DE SÓCRATES
II
deus, mas disse que em muito sobre- to · -.- conheço a quem seduziste a
pujo os outros homens. Não creiais . ponto de depositarem mais confümça
levianamente o que disse a deidade: em frque nos próprios pais!
pesai bem cada uma de suas palavras. -.- . Concordo -.· respondeu Sócra-
16 Sabeis de homem menos escravo dos tes - no que respeita à instrução, por-
apetites do corpo que eu? Mais inde~ que sabem que meditei profundamente
pendente que eu, que de ninguém· rece- essa matéria. Quando se trata da
bo presentes nem salário? Quem pode- saúde, os homens têm mais êonfiança
reis, em boa fé, considerar mais justo nos médicos que em seus pais.. Nos
que_ um homem tão acomodado com o congressos, prefere. a .generalidade dos
que tenha que jamais precise do atenienses ater-se aos que falam com
alheio? Quanto à sabedoria, como por mais sabedoria àqueles a que se acham
outro acima de mim, que .desde que unidos pelos laços do sangue. Com
comecei a compreender a língua j a- efeito, não escolheis para estrategos de
mais cessei de inquirir e aprender tudo preferência a vossos pais e irmãos e,
17 o que podia de bem? A prova de que por Júpiter! de preferência a vós mes-
meu labor não foi estéril, não a vedes mos, aqueles que sabem mais experi-
na preferência que a meu trato dão mentados na arte da guerra?
numerosos concidadãos e estrapgeiros - É o uso, Sócrates - replicou 21
amigos da virtude? Por que ·motivo Meleto -·- e esse uso tem sua utilidade.
tanta gente, saiba-me embora demasia- - Pois ·bem - ripostou Sócrates
damente pobre para retribuir, faz tim- -·não te parece estranho que em tudo
bre de enviar-me presentes? Ninguém os melhores sejam considerados não
poderá dizer que lhe haja pedido um somente iguais como superiores aos
servi_ço: entanto qual o motivo de tanta outros, enquanto a mim por causà da
1s gente declarar dever-me gratidão? Por superioridade que me concedem alguns
que, durante o sítio da cidade, jeremia- no tocante ao maior dos bens huma-
vam meus concidadãos sua miséria, nos, a instrução, me carregues com
enquanto eu não padecia mais priva- uma acusação capital?
ções que nos dias de maior prosperi- É .de crer que tanto Sócrates como 22
dade da República?· Por que, quando aqueles· de seus amigos que falaram em
os outros compram a aitos preços, no sua d~fesa dissessem ainda muitas ou-
mercado, fruo gratuitamente os de.lei- tras coisas. Mas não me propus desfiar
tes do espírito, mais purds que os seus? todos os pormenores. do processo; bas-
Se nada podeis negar do que acabo de ta-me ter feito ver que Sócrates tomara
dizer, como não ter eu àireitos legíti- por ponto demonstrar que jamais fora
mos ao beneplácito dos tleuses e dos ímpio para com os deuses nem injusto
19 homens? Entretanto dizes, Meleto, que para com os homens, mas que longe 2J
III
então preferias ver-me morrer justa- quero fazer também uma predição.
mente? Faz tempo, encontrei-me alguns mo-
E ao mesmo tempo sorria. mentos com o filho de Ânito, e pare-
29 É voz ainda que, vendo passar ceu-me não carecer de energia de ·cará-
Ânito, disse: ter. Pois predigo que não permanecerá
- Vejam só como vai ufano aquele na condição servil em que o colocou o
homem: crê ter realizado bela façanha pai. Mas, por falta de guia esclarecido,
em me matando, por haver-lhe eu dito será presa de alguma paixão vergo-
certo dia que, uma vez que fora levado nhosa e se esbarrocará na perversi-
dade.
às primeiras dignidades da República,
E assim f alantj.o Sócrates não se J1
não ficava bem elevar o filho ao mister
enganou. Avezando~s ao vinho, o
de tanoeiro. Miserável! Parece ignorar rapaz não parava de beber dia e noite e
que, de nós dois, verdadeiro vencedor é acabou incapacitado de fazer o que
aquele que durante toda a vida não quer que fosse de útil à pátria, aos ami-
cessou de praticar ações úteis e hones- gos e a si mesmo. Quanto a Ânito, a
Jo tas. E já que Homero atribui a alguns má educação que dera ao filho e ·sua
de seus heróis, à hora da morte, o própria ignorância tomaram, até hoje
conhecimento antecipado do futuro, que já não vive, odiosa sua lembrança.
IV
AS NUVENS
ESTREPSÍADES
FIDÍPIDES
EscRAvo de Estrepsíades
DISCÍPULO de Sócrates
SÓCRATES
CoRo das Nuvens
Raciocínio JusTo
·Raciocínio INJUSTO
CREDOR 1
CREDOR II
Dois DISCÍPULOS de Sócrates
Cenário - É noite. Uma praça; no nem esse "belo" rapaz que aí está não
centro uma estátua de Hermes. Duas acorda durante a noite, mas fica pei- 10
Pásias? Três minas a Amínias por uma casei-me com uma sobrinha de Méga-
boleiazinha e um par de rodas . cles, filho de M~gacles 1 0 ; eu um cam-
tanto mais que havia, logicamente, uma associação o nome se tomou comum, passando a designar
de idéias entre "hippos" (cavalo) e "hippeis" qualquer terreno escarpado, onde se apascentavam
(cavaleiros), os nobres que lutavam na Cavalaria. O cabras. ·
nome do pai de Estrepsíades sugere poupança, eco- 1 6 A "jeunesse dorée" de Atenas costumava jurar
nomia, em contraste com o luxo e as grandezas dos por Posidão (Netuno), deus inventor e protetor da
Alomeônidas. Quando o casal chega a um acordo equitação. Já no Hino Homérico Posidão aparece
escolhe um nome cômico: Fidípides, "o poupa-ca- com a ampla atribuição de domar cavalos e salvar
valos". navios.
182 ARISTÓFANES
o deus Dioniso, muito estimado pelo povo. punham a discorrer sobre qualquer assunto, inclu-
1 8 Aristófanes ridiculariza a pobreza e a insignifi- sive sobre as coisas que desconheciam. Eup., fr.
cância da casa de Sócrates. O próprio Sócrates ava- 159. Aliás, a crítica da comédia coincidia com a
liava toda a sua fortuna, inclusive a casa, em cinco constante advertência de Sócrates contra os "que
minas (500 dracmas). Cf. Xen., Econ., 11, 3. aparentam saber o que: não sabem".
1 9 É evidente a intenção de parodiar o linguajar so- 2 5 Sócrates costumava andar descalço, adotando
lene e complicado dos sofistas: A palavra "psyché" um costume espartano. Plat., Banq., 220-B; Xen.,
(alma) sugere a idéia de "fantasmas e almas do Mem., 1, 6, 2.
outro mundo" e é uma alusão à linguagem socrá- · 2 6 Amigo de inlancia de Sócrates que trouxe de
tica. Cf. Plat., Rep., I, 353 E. De outro lado, Delfos o célebre oráculo que afirmava que Sócrates
"phrontisterion'', que traduzimos por "pensatório'', era o mais sábio dos homens. Vítima constante dos
é palavra. cômica, talvez forjada por Aristófanes. poetas cômicos que llh.e ridicularizavam a palidez,
Depois, o termo perdeu o sentido ridículo e foi chamando-o "morcego", "filho da noite". Vesp.,vv.
empregado por Ésquines para designar a escola de 1408-1412; Aves, v. 1554. Eup.,fr. 155, Crat.,fr..
retórica de Rodes. 201.
AS NUVENS 183
2 7 Pai do orador Andócides, amigo do luxo e da você que deu um pontapé na porta,
boa mesa. assim tão estupidamente, e fez abortar
28 Estrepsíades, como grande parte do povo, enten-
um pensamento já encontrado ... 3 3
de mal o princípio retórico segundo o qual há sem-
pre, em qualquer causa, duas teses contraditórias,
uma fraca e outra forte, e acredita que os sofistas 3 °
Chiste; esperava-se "sem casa".
possam dispor de dois raciocínios, um forte, que 3 1 Expressão da linguagem da palestra. O lutador
tem valor por si mesmo, e o outro fraco, que se deve tentava sempre levantar-se ao ser derrubado, pois se
à habilidade e é reservado às causas injustas. Cf., fosse atirado três vezes ao chão seria eliminado. Cf.
Plat. Pedro, 272-D; Apol., 19-A; Cic., Brot., VIII, Esq., Eum., v. 589 .
3 2 A sucessão de nomes próprios é cômica, pois só
30.
2 9 O cavalo de raça, marcado com a letra "san'', nos tribunais se nomeavam os indivíduos citando os
veja nota, v. 23. nomes do pai e do demo. Cf. Dem., Cor., 54.
184 ARISTÓFANES
ESTREPSÍADES DISCÍPULO
Desculpe-me, eu moro longe, nos De fato,. que: diria você se soubesse
campos. Mas fale-me desse negócio de um outro raciocínio de Sócrates?
que está abortado . . . .
ESTREPSÍADES
DISCÍPULO Qual? Conte-me, eu suplico ... 3 6 155
DISCÍPULO
uma trombeta! Seja ele três vezes
Com a maior habilidade. Dissolveu bem-aventurado, só por essa
150 cera; depois, tomou a pulga e mergu- "intestigação" ... 3 8 De fato, numa
lhou os seus pés na cera. A seguir, defesa, facilmente seria absolvido
quando a pulga esfriou, ficou com quem conhece .a fundo o intestino dos
umas botinhas à moda pérsica; ele mosquitos ...
descalçou-as e mediu a distância 3 5 • DISCÍPULO
Sim, mas há pouco ele foi despojado
ESTREPSÍADES de um grande pensamento por uma
Ó Zeus soberano, que sutileza de lagartixa ...
pensamento!
ESTREPSÍADES
3 3 O susto provoca um aborto mental, como pode De que maneira? Conte-me. 170
fa:z.ê-lo fisicamente. . . Pilhéria que visa direta-
mente à pessoa de Sócrates, filho da parteir.a Fena- DISCÍPULO
rete, de quem se dizia herdeiro na arte de assistir ao Ele investigava os caminhos da Lua
nascimento de novas idéias (maiêutica). Cf. Plat.,
Teet., 149-A.
3 4 A solenidade da linguagem contrasta com a 3 6
Essas questões deviam ser objeto de discussões
puerilidade dos pensamentos e indagações em curso dos filósofos desse tempo. O próprio Aristóteles
no "pensatório". preocupava-se com a explicação do canto dos inse-
3 5 A pulga é considerada um ser humano, com tos. Ar. Hist. An., 1 Y. 9 ss.
dois pés, em que é possível calçar e descalçar botas. 3 7
• Note-se o tom dogmático de explicação socrá-
É provável..que haja um chiste com o preceito de tica, com suas etapas bem precisas e bem imagina-
Protágoras· "O homem é a medida de todas as das.
coisas". 3 8
Palavra cômica que lembra "investigação".
1
1
AS NUVENS 185
Tales de Mileto caíra num poço, enquanto obser- primeiros a caluniar Sócrates, acusando-o de pes-
vava os astros. quisar as coisas subterrâneas e celestes, Apol., 19-B.
40 Lit. lagarto malhado, tradicionalmente conside- No entanto, o mesmo Platão nos apresenta Sócrates
rado um animalzinho malicioso. Cf. lat. Stelio. indagando a respeito da localização e natureza do
41 A passagem não é bem clara. Várias hipóteses Hades, Fed., 113-F.
procuram explicá-la: a) Sócrates teria comparecido 4 5
Aristófanes ridiculariza as pesquisas profundas
à palestra e, enquanto distraía os que o rodeavam, que penetravam até o Érebo, debaixo do Tártaro,
surripiara a vítima que se sacrificava a Hermes; b) onde não devia existir absolutamente nada.
enquanto explicava questões científicas, habilmente 4 6
Conforme o testemunho de Xenofonte, Sócrates
conseguira roubar alguma peça de vestuário; c) condenava as investigações abstratas sobre os fenô-
teria distraído a atenção e a fome dos discípulos menos naturais e só admitia os estudos de geometria
discorrendo sobre questões geométricas. Parece-nos e astronomia tendo em vista objetivos práticos. Cf.
a explicação mais razoável. Mem., I, 1, 11; IV, 7, 2, 6. Plat.,Apol. 19-D. Toda-
42 Tales de Mileto, um dos Sete· Sábios, conside- via, ao fazer sua biografia. intelectual, o próprio Só-
rado o fundador da filosofia, o primeiro a preocu- crates afirma que até atingir a maturidade se entre-
par-se com assuntos matemáticos e astronômicos gara a "esse gênero de saber a que se dá o nome de
(século VII). conhecimento da natureza''. Plat., Fed., 96-A, 99-D.
186 ARISTÓFANES
Para medir a Terra ... bem nisso: afastá-la para bem lon-
ge ...
ESTREPSÍADES
DISCÍPULO
Será por acaso a terra lotea-
da? ... 4 7 Mas não é possível ! ...
ESTREPSÍADES
DISCÍPULO
Não, toda ela! Por Zeus, vocês se arrependerão ...
(Estrepsíades olha para cima e vê o
ESTREPSÍADES cesto· dependurado) Ora vejam só!
205
Você diz uma coisa inteligente. Com
efeito, a idéia é democrática e útil ... 48 Os mapas-múndi e cartas geográficas já deviam
um décimo para os 'deuses, Tuc., III, 50. Estrep- guerras pérsicas ingressou na Confederação de
síades entende que se pretende medir a terra para Delas, da qual pretendeu afastar-se em 446, numa
distribui-la ao povo, daí a alusão do v. 205. rebelião esmagada por Péricles. Cf. Tuc., I, 114.
AS NUVENS .187
Em primeiro lugar, eu ·lhe peço, penhorado nos meus bens, por credo-
explique-me o que está fazendo. res e juros muito cacetes .
SÓCRATES SÓCRATES
225 Ando pelos ares e de cima olho o E como você não percebeu que se
Sol 5 3 . endividava?
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
Ah, então você olha os deuses aí de Foi uma doença de cavalos que me
cima, do alto de uma peneira 5 4 ·e não
daqui da terra, se é que se pode ... 5 5
Referência aos filósofos, como Anaxímes~
Anaximandro e Diógenes de Apolônia, que identifi-
cavam a alma com o ar, um sopro.
51 Aristófanes associa o filósofo aos pitagóricos, 5 6
Assim como o vapor de água 'é· novamente
daí a expressão "ele em pessoa'', isto é, o "Mestre". atraído pela terra voltando sob a forma de chuva
52
Sócrates aparece lá do alto como um "deus ex (Diog. Apol., Diels-Kranz II, 54, 28), a terra teria o
machina" e por isso pode usar de linguagem apro- poder de atrair para si a seiva do pensamento,
priada a uma divindade em seu trato com seres perturbando a reflexão. A propósito 'do efeito que
humanos. essas teorias irão produzir no espírito de Estrep-
53
O filósofo afirma que está meditando sobre o síades, veja vv. 1279 ss.
Sol e Estrepsíades, que entende tudo às avessas, 5 7
Aristófanes critica o método socrático de ir bus-
pensa tratar-se do deus Hélio (Febo Apolo) e inter- car comparações em fatos corriqueiros da vida diá-
preta as palavras de Sócrates como uma ofensa, ria: a associação de idéias com o agrião surge natu-
desprezo à divindade e, por conseguinte, prova de ralmente, por tratar-se de uma planta rasteira e
ateísmo. aquática, que vive em meio úmido e sofre bem de
5 4
Na verdade, "ciranda, caniçada"; traduzimos perto a influência dessa atração para baixo, ainda
"'peneira", vocábulo mais conhecido, mais cômico. não definida.
188 ARISTÓFANES
arruinou, terrível, devoradora. . . Mas Pois tome aqui[ esta coroa. 62 255
goras sofreu processo por crime de impiedade e das outras: Ar, Éter e Nuvens. Era comum associar
Protágoras afirmava que "nada sei.acerca dos deu- três divindades, tanto nas preces como nos juramen-
ses, se existem ou se não existem" (Diels-Kranz I, tos. A divindade do Ar foi sustentada, entre outros,
317-318). por Orfeu (Diels-Kranz I, 5, 6), Diógenes de Apolô-
60
Mencionando as moedas de Bizâncio, de baixo nia (Diels-Kranz II, 61, 7) e Demócrito fr. 6. Os
teor metálico,· Aristófanes lembra a falsidade dessa órficos-pitagóricos consideravam o Éter um deus e
colônia e suas tentativas de defecção. muitas vezes o identificavam com Zeus. Cf. Orfeu:
61
A atribuição de divindade às Nuvens é invenção "O Éter é tudo" (Diels-Kranz I, 46, 18) e também
de Aristófanes. · Eur.fr. 869.
AS NUVENS 189
SÓCRATES SÓCRATES
(Impaciente) De modo algum! Sã0 as Nuvens
Chega de fazer graça e de agir como celestes, deusas grandiosas dos ho-
esses pobres poetas de borra! 7 8 Mas mens ociososª 6 .. São elas que nos
fique quieto, pois um grande enxame proporcionam pensamento, argumen-
de deusas se movimenta, cantando. tação e entendimento, narrativas mira-
bolantes e circunlóquios e a arte de
CORO impressionar e de fascinarª 7 •
(Antístrofe) 7 9 Virgens portadoras ESTRJEPSÍADES
300 da chuva, vamos ver a brilhante cidade Ah, então é por isso que, depois de
de Palasª 0 , terra de heróis, de Cécro- ouvir o seu canto, minha alma esvoa- J20
peª 1 , amável país! É lá que existe a ça, já procura fallar com sutileza e di-
veneração de inefáveis mistériosª 2 , e, vaga na fumaça esbarrando uma sen-
nas cerimônias sagradas, um santuário tença numa sentencinha para refutar
305 aberto aos iniciados, com dádivas aos com outro argumento ... 8 8 Nessas
deuses do céu 83 ; altivos templos, está- condições, se acaso é possível, agora
tuas, sacratíssimas procissões aos quero vê-las claramente.
bem-aventurados, sacrifícios cheios de
coroas, festins em todas as estaçõesª 4 , SÓCRATES
3/0 e, ao chegar a primavera, a festa de Então olhe para lá, para o Parnes 89 .
Bromo 8 5 , a exaltação melodiosa dos Já vejo que elas vêm descendo calma-
coros e o canto das flautas de surdos mente ...
ressôos.
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Deixe ver, onde? Mostre-me!
Por Zeus, Sócrates, eu lhe peço,
SÓCRATES
315. diga-me quem são essas que proferi-
São essas que avançam em grande 325
ram esse canto venerável? Serão por número pelas cavernas e bosques, ali,
acaso alguma assombração? de lado ...
1 a Trocadilho. Aristófanes refere-se aos poetas cô- ESTREPSÍADES
micos, que ainda conservavam vestígi~ dos tempo.s
em que se cobria o rosto de borra ~e vmho p~a ati-
Que negócio é esse, que não vejo ..
rar invectivas contra os participantes e assistentes
do "komos". Traduzimos "poetas de borra", expres- SÓCRATES
são que na linguagem popular portuguesa tem se.ntj- Ao lado da entrada ... 90
do depreciativo: "poetas sem nenhum valor, ordma-
rios".
1 s Os elementos do coro já aparecem a distância, 0
6
Referência àqueles que podem dispor de tempo
mas Estrepsíades só irá vê-los no v. 326. para as especulações do espírito, i.e., os filósofos e
00 Atenas, cuja protetora era a deusa Palas Atena.
poetas.
0 1 Personagem mítico, primeiro rei de Atenas. a 1 Note-se que o próprio Sócrates fala irônica-
s2 Santuários de Deméter e Core, em Elêusis, qu-e
· mente acerca da habilidade de seus pretensos cole-
atraíam peregrinos de toda a Grécia e onde se ~el gas (os sofistas), que apelavam a todos os recursos
bravam, anualmente, os Grandes e Pequenos M1ste- para impressionar e enganar.
0 0 Estrepsíades já est~ contagiado pelos sofis-
rios.
tas. . . Nos Acarnianos, Aristófanes usa de frases
aJ Antítese às deusas subterrâneas, cujo culto
semelhantes, para ridicularizar Eurípides. Cf. vv.
acaba de ser mencionado. 444 ss.
0 4 Os atenienses vangloriavam-se de sua piedade; 0s Monte de Atenas, geralmente nublado. Sócrates
durante o ano todos celebravam os deuses com fes- devia apontar para umm direção qualquer, já que o
tas, em que as procissões eram um capítulo muito Parnes, oculto por um canto da Acrópole, não
importante. Cf. Sof., E. C., 250; Isocr., Paneg., 45. podia ser visto do teatro.
0 s As Antestérias, festas dionisíacas da primavera.
Dioniso era invocado com· o epíteto de Brômio, "o s o A entrada da orquestra, por onde devia petjetrar
que estrondeia". o coro. Cf. A v., v. 296. 1
AS NUVENS 191
haviam perdido toda consistência, reduzidas a sim- dos poetas líricos, principalmente nos coros cícli-
ples exclamações. cos. Cf. vv. 970 ss (Frinis); Tesmof, v. 53 (Agatão);
93 De modo genérico são designados os vários gru-
Rãs, v. 153 (Cinésias).
pos que constituem a classe dos sofistas, Platão 9 8 Anaxágoras, Metão, Hípias de Élis, Diógenes
316-D. do século V.
9 4 Referência a Lampão, amigo de Péricles, cola- 1 °0 Monstro de cem cabeças de dragão, filho da
borador na fundação e colonização de Túrio (443 Terra e do Tártaro, derrotado pelos Titãs. Cf. Hes.,
a.C.), considerada durante muito tempo a Eldorado Teog., 820 ss.
dos atenienses. 1 °1 Alusão às grandes despesas da "coregia",
9 5 Particularmente Hipócrates de Cós (469-399), contribuição voluntária que consistia no preparo
contemporâneo de Sócrates, que visitava Atenas duma representação dramática. Aristófanes cita
com freqüência e que, em suas obras, admitia as duas iguarias caras e apreciadas para lembrar que
influências dos ventos e das Nuvens sobre a saúde e 'ao "corego" competia sustentar os coreutas, os mú-
também as relações da astronomia com a arte de sicos, e até o próprio poeta.
1 02 Examinando o coro, Estrepsíades observa que
curar.
9 6 Aristófanes forja uma longa palavra cômica, ou as Nuvens são representadas por mulheres bem
para criticar a vaidade do sofista Hípias de Élis narigudas e aponta para o céu, onde vê as verda-
(veja Plat., Hip. Men., 368-D), ou então para ridicu- deiras nuvens (cirros) que se parecem com flocos de
larizar o luxo e os atavios dos citaredos. lã.
192 ARISTÓFANES
SÓCRATES ESTREPSÍADES
V amos ver, como são? Ah, .então foi por isso que ontem, .
quando ·viram Cleônimo 1 0 7 , aquele
ESTREPSÍADES covarde que jogou fora o escudo,
Não sei bem, mas é certo que têm quando viram esse superpoltrão, logo
aparência de flocos de lã desenrolada e se tornaram veados ...
não de mulheres. Não, por Zeus, nem
um pouquinho ! . Estas aqui têm SÓCRATES
narizes ... E agora, você está vendo, viram
SÓCRATES Clístenes 1 0 8 e por c·ausa disso muda- 355
SÓCRATES SÓCRATES
365 Pois de fato só elas é que são deu- Elas é que trovejam, quando são
sas, todo o resto são lorotas! roladas ..
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
(Assustado) (Muito espantado)
Epa ! E Zeus, em nome da Terra! De que jeito, homem de todas as 375
Para vocês o Olímpio não é um deus? audácias ...
SÓCRATES SÓCRATES
Que Zeus? Não diga tolices! Nem Quando se enchem de muita água e
sequer existe um Zeus ! são obrigadas a mover-se, cheias de
chuva, forçosamente, ficam dependu-
ESTREPSÍADES
radas para baixo, e, a seguir, pesadas,
Que diz? Mas quem é que
caem umas sobre as outras, arreben-
chove? 111 Explique-me isto antes de
tam e estrondeiam.
mais nada.
ESTREPSÍADES
SÓCRATES
Mas quem é que as o briga a mo ver-
Elas, é claro ! 112 Mas eu vou
se; por acaso não é Zeus?
310 demonstrá-lo com sólidas provas. Ve-
jamos, pois onde, alguma vez, você já SÓCRATES
viu Zeus chover sem Nuvens? E, no Absolutamente. É o turbilhão eté-
entanto, ele deveria chover num céu reo,, 4
límpido, sem a presença das Nu-
vens·11 3 .
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES
(Estupefato)
(Confuso) Turbilhão? Isso me tinha escapa- 3·so
Sim, por Apolo, de fato você o com- do . . . Zeus não existe, e no lugar dele
provou muito bem com esse raciocínio. agora reina o Turbilhão! ... Mas você
E, no entanto, antes eu acreditava ainda não me ensinou nada a respeito
verdadeiramente que era Zeus que uri- do estrondo e do trovão .. ·.
nava através de um crivo ... Mas,
diga-me, quem é que troveja, coisa que SÓCRATES
me faz estremecer? Então você não me ouviu dizer que
as Nuvens, cheias de água, quando
1 ; 1 . O nome de Zeus estava intimamente relacio- caem umas sobre as outras, estron-
nado com os fenômenos da natureza, tais como o deiam por causa da densidade?
vento, as chuvas, os raios e os trovões. Zeus era
invocado nas secas, como o reunidor das nuvens e
11 4 Aristófanes cria uma situação cômica, a partir
protetor das chuvas. Assim se explicam a expressão
"Zeus chove" e a correspondente invocação dos de um qüiproquó com a palavra "turbilhão" (dinos),
atenienses: "Chove, chove, ó caro Zeus". que tanto podia significar o movimento que dera
112 Vfrrios físicos já haviam procurado explicação
origem ao universo (cf. Plat., Fed., 99-B; Aristóte-
racional da chuva. Cf. Anaxágoras (Diels-Kranz,fr. les, Do Céu, II, 13, 295-A), como o movímento da
19, II, 41, 11); Hipócrates, Ar. 533; e principal- rotação do céu ao redor da Terra ou ainda "vórtice,
mente Anaxímenes (Diels-Kranz I, 94, 8); Plut., voragem". Eurípides popularizou o termo, aplican-
Mor., 894-A: "Quando o ar se toma muito espesso, do-o ao movimento das nuvens, e é êsse o sentido
formam-se as nuvens, e quando ainda mais se con-
densa, arrebentam as chuvas." das· palavras de Sócrates. Como a mesma palavra
113 Veja Lucrécio VI, v. 400: "Pois então, por que grega, dinos, também pode significar qualquer obje-
Zeus nunca atira o raio sobre a terra com um céu to torneado, um vaso, surge um mal entendido que
límpido?" terá seqüência no fim da peça, vv. 1471 ss.
194 ARISTÓFANES
ESTREPSÍADES SÓCRATES
Está bem, mas como acreditar Mas como, in:~esato, velho tonto,
nisso? cheirando a mofo 1 1 8 , seu arcaico !1 1 9
SÓCRATES Se atira nos· perjuras, como é que não
385 • Vou explicar-lhe partindo de você fulminou nem Simão nem Cleôni-
mesmo. Nas Panatenéias 11 5 , quando mo 120 nem Teoro? E, no entanto, bem
você se encheu de caldo, depois nunca que são perjuros . . . Mas Zeus atira 400
Bem, pense bem como você peidou tro fá-las inchar como uma bexiga, e
por causa desse ventrezinho tão peque- depois, arrebenta-as à força e se preci-
nino. . . E este ar, incomensurável, pita para fora, cheio de ímpeto por
não é razoável que troveje intensa- causa da densidade. Em vista do ruído
mente? e da velocidade, ele se incendeia por
própria conta 1 2 2 ..
ESTREPSIÁDES
Ah ! Então é por isso que até os ESTREPSÍADES
nomes são parecidos, trovão e pei- Sim~por Zeus'., sem saber eu mesmo
dão ... 1 1 6 Mas, ensine-me isto, de já padeci desse mal, certa vez, nas Diá-
395 onde provém o raio relampeando fogo, sias. Ao assar um bucho para minha
ele que, quando nos fere, fulmina al- família, distraído não lhe fiz uma
guns e por outros passa de raspão, fenda; então ele inchou, depois, de
deixando-os viver? Pois esse raio, por repente, estourou, emporcalhando-me 410
certo é Zeus quem o atira contra os
perjuas~ .. 1 1 7 1 1 8 Entenda-se "velho tonto que cheira aos tempos
juramentos"; por conseguinte, Sócrates está des- Anaxágoras (Diels-Kranz II, 25, 21): "Quando o
pindo a divindade de mais uma das suas atribui- quente cai no frio, com o ruído, produz o trovão, e,
ções. com o pêso e grandeza da luz, o raiá."
AS NUVENS 195
SÓCRATES CORIFEU
Não é verdade que você, agora, não Então encontrará o que almeja, pois 435
aceitará nenhum outro deus a não ser não quer grandes coisas. Coragem,
os nossos, o· Caos, as Nuvens e a Lín- entregue-se aos nossos ministros! 1 28
gua 1 2 6 , só estes três?
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Vou fazê-lo, porque confio em vós;
m Realmente, nem sequer conversaria pois a necessidade me aperta, por
com os outros, ainda que os encontras- causa dos cavalos de raça e desse casa-
mento que me arruinou. (Declamando
'1 2 3 Exigia-se dos iniciados, notadamente entre os enfático.)1 2 9
órficos e pitagóricos, a renúncia ao conforto físico
como condição do aperfeiçoamento do espírito.
1 2 7 Estrepsíades considera a eloqüência uma coisa
Sobre Sócrates, cf. Xen., Mem.,11, 1, e IV, 1, 2.
1 2 4 A essência do ensinamento sofistico, isto é, a concreta, avaliando-a com medida itinerária. Cf.
capacidade de falar diante do povo, nas assem- Rãs, 91. A mesma pilhéria aparece em Eúpolis. Fr.
bléias, nos tribunais. 94, referindo-se a Péricles. Lit. "cem estádios". O
12 5 Lit. Segurelha (Satureia hortensis), que pelo estádio media 600 pés gregos, i. e., 177 ,6 metros.
1 2 8 Os sacerdotes que servem às deusas Nuvens,
sabor acre serve como condimento. Trata-se pois de
um jantar muito pobre, feito só de ervas amargas. aqui evidentemente identificados com Sócrates e
12 6 Quanto à invocação de três divindades, veja seus discípulos.
129 Inicia-se o "pnigos ", trecho que devia ser
nota v. 264. Caos segundo Hes., Teog., 116, é o es-
paço vácuo que tudo pode conter e que a tudo pre- pronunciado num só Íolego. Estrepsíades, constran-
cedeu. ·A divinização da Língua corresponde bem gido pela necessidade, entrega-se de mãos atadas ao
ao preceito sofistico: procurar sempre vencer com destino. Tudo fará, contanto que não seja obrigado
palavras. Cf. v. 419. a pagar as dívidas (vv. 439-456).
196 ARISTÓFANES
em placas móveis de madeira, que desapareceram 1 3 2 Esta cena sugere uma paródia de tragédia ou
durante a invasão d.os persas. Preservaram-se as có- de rituais de iniciaçíio em mistérios religiosos. To-
pias gravadas em lajes de pedra, que permaneciam mada a resolução, vêm as dúvidas, o pavor do
expostas ná. Acrópole, embora incompletas e muti- desconhecido (vv. 461-4 71).
133 Cena de transição. Exame micial do novo can-
ladas.
1 31 As enumerações são um recurso cômico que já didato ao "pensatório" (vv. 478-509). Note-se o qüi-
aparece em Epicarmo,frs. 42, 94. Aristófanes com- proquó. Sócrates f alaL dos novos expedientes da edu-
praz-se em citar todos os nomes que poderiam cação sofistica e o velho pensa em máquinas de
caracterizar os amantes de chicanas e processos. guerra.
AS NUVENS 197
ESTREPSÍADES SÓCRATES
Sim, por Zeus, de dois jeitos. Quan- Está bem. Então, tire o manto !1 3 5
vejamos, qlle faz quando alguém lhe seguir-me. Vamos, logo, depressa, por
bate? aqui ...
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
m Apanho. Depois espero um pouco e Então antes dê-me aqui nas mãos ao
chamo testemunhas; depois, deixo pas- menos um bolinho de mel . . . Como
sar ainda mais um momentinho e vou tenho medo, descendo aí dentro . . . É
aos tribunais 13 4 .
1 3 5 Prática habitual nas cerimônias de iniciação.
1J 4 Alusão à mania judiciária dos atenienses. Com Como a vítima de um roubo, para procurar objetos
esse argumento, Estrepsíades acaba convencendo roubados nas casas dos suspeitos, devia apresentar-
Sócrates a aceitá-lo como discípulo. se "sem manto", nasce.novo mal-entendido.
198 ARISTÓFANES
como se fosse à caverna de Trofô- depois, bati em retirada, vencido por 525
540 riso das crianças. Não ridiculariza os meus Cavaleiros, acrescentando uma
carecas 1 4 6 e não dança o velha bêbada por causa do "kórdax", 555
"kórdax" 1 4 7 ; nem se trata de um velho aquela que Frínico 1 5 3 tinha apresen-
que recita os versos e bate com o bas- tado outrora, aquela que a baleia ia
tão no parceiro, disfarçando gracejos comer. . . Depois Hermipo 1 5 4 fez
indecentes 1 4 8 nem se precipita em novamente uma peça contra Hipérbola
cena carregando tochas, nem grita uh!, e já todos se encarniçam contra Hipér-
uh ! ... 1 4 9 Mas veio confiada em si bola, imitando as minhas imagens das
545 mesma e nos seus versos. E eu, sendo enguias ... 1 5 5 Nessas condições,
um poeta dessa categoria, não me qu~m ri desses gracejos que continue 560
a atenção para cá. Injustiçadas, nós lado, Senhor Délio 1 6 7 , que habitas a
vos censuramos, aqui em vossa presen- C{ntia, rochedo de altos cornos; e tu,
ça. Pois embora prestemos à cidade bem-aventurada, que moras em
mais serviços do que todos os outros Éfeso 1 6 8 numa casa toda feita de ouro,
deuses, só a nós, dentre as divindades, onde as donzelas da Lídia te veneram 600
nem ofereceis sacrifícios nem fazeis com grandeza; e a nossa deusa nacio-
· libações, nós que velamos por vós. De nal, regente da égide 1 6 9 , Atena prote-
fato se houver alguma expedição total- tora da cidade; e o senhor da rocha do
580 mente sem juízo, logo, ou trovejamos Pamaso 1 7 0 , reluzente com as suas
ou chuviscamos 1 62 • No momento em tochas, notável entre as Bacantes de 605
ções são próprias desta cidade 1 6 5 , e indignos, embora vos auxilie a todos,
que, no entanto, os deuses convertem não com palavras, mas de modo claro.
no melhor todas essas bobagens que Em primeiro lugar, porque vos faz eco-
590 fazeis ... Facilmente demonstraremos nomizar todos os meses não menos de
como mais este erro vos poderá ser uma dracma de tochas, tanto que todos
útil. Se condenardes Cleão, o gavião, dizem, quando saem à noite: "Escravo,
por roubo e corrupção e amordaçardes não compre a tocha 1 7 4 , pois é bela a
o pescoço dele com o afogador 1 6 6 , luz do luar". Ela diz ainda que vos faz
novamente, como de costume, embora
1 6 7 Apolo, que possuía na planície de Delos, lugar
cometêsseis um erro, o negócio há de de seu nascimento, um templo famoso, ao pé do
reverter no melhor para a cidade! monte Cinto.
1 6 8 Ártemis, a quem fora consagrado um grande
1 61 Epirrema: -
templo em Éfeso, região da Ásia Menor, às vezes
o coro dirige-se novamente aos
confundida com a Lídia.
espectadores. Agora fala em nome das Nuvens (vv. 1 69 Epíteto de Atena usado só nesta passagem.
575-594). 1 7 0 Ponto extremo da cadeia de montanhas que se
1 6 2 Referência à superstição de que trovoadas e situa ao norte de Ddfos. Era consagrado a Apolo e
chuvas eram sinal do desagrado de Zeus, determi- também a Dioniso, desde tempos muito antigos.
nando o adiamento das reuniões da Assembléia. Cf. 1 71 As mênades, mulheres acompanhantes do sé-
Acar.. v. 171. quito de Dioniso.
1 63 Paródia de versos do Teucro de Sófocles. 1 7 2 Lembramos que os "komoi" eram as festas
1 6 4 Houve um eclipse da Lua em 425 (outubro) e agrárias que deram origem à comédia.
um do Sol em 424 (março), por conseguinte durante 1 7 3 Crítica à saudação usada por Cleão em seus
615 outros benefícios, e vós contais os dias ços, desajeitado e esquecido! Um indi-
de modo totalmente errado e fazeis víduo que, quando estuda algumas 630
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
Nada me parece superior ao quarti- Coitado ! Pois não é nada disso que 655
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
"A gamela"? Feminina? Como? Assim: "Aqui, aqui, Amí- 690
nia" !
SÓCRATES
Está certo. SÓCRATES
Vê? Você chama Amínia de mu-
ESTREPSÍADES lher!
680 Mas isso seria, a gamela, a Cleôni-
ma ... ESTREPSÍADES
Pois não é justo, se ela não faz .o ser-
1'91 A pilhéria desenvolve-se em tomo do uso de
viço militar ! ? . . . (Impaciente) Mas
uma palavra feminina da 2. ª declinação que, por por que aprendo o que todos nós
conseguinte, tem a desinência o que, teoricamente, é sabemos?
própria de masculinos.
1 92 (Vv. 674-680). Sócrates refere-se ao gênero
.SÓCRATES ESTREPSÍADES
Por Zeus, não é isso. (Aponta o (Em tom patético)
· leitq.) Mas deite-se aqui e ... Eu morro, infeliz de mim! Saídos do
ESTREPSÍADES leito sagrado mordem-me os 710
CORO SÜCRATES
700
(Estrofe) 1 9 7 Pense, f!Xamine, con- Eh, você aí ! Que faz, nao está
centre-se, revirando-se de todas as pensando?
maneiras! Rápido, se -cair num emba- ESTREPSÍADES·
raço 1 9 8 , salte para outro pensamento Eu, sim, por Posidão !
705 do seu intelecto . . . Que o doce sono
dos seus olhos se afaste! · SÓCRATES
(Pausa. Estrepsíalies geme e revi- E, então, em que pensou?
ra-se no lejtoJ
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Se alguma coisa minha vai escapar 725
Ai, ai! 1 99 dos percevejos ...
CORO
S(>CRATES
Que você está padecendo? Por que Você· vai perecer miseravelmente!
se consome? (Sai, impaciente)
1 9 6 Note-se a comiddade da cena. A princípio
ESTREPSÍADES
tem-se a impressão de que Estrepsíades não quer
pensar nos seus negócios, mas depois percebe-se Mas, meu bem, eu já estou morto !
que as 1amentações resultam da sujeira da casa de
Sócrates, cheia de insetos importunas (cf. v. 699). CORIFEU
1 9 1 Ode - O coro movimenta a ação; Estrep- Não se deve afrouxar e sim prote-
sí ades deve pensar e pôr em prática os seus
conhecimentos. ger-se2 °2. Pois é preciso achar mente
198 Referência ao método socrático de procurar espoliadora e meios de enganar.
repentinamente um novo rumo de investigações, ao
deparar com alguma dificuldade grave ou insucesso.
Cf. V. 743. 2
ºº Pilhéria, pois devia esperar-se o nome de um
1 9 9 Inicia-se um diálogo lírico de to.nalidade paté- inseto como percevejos.
tico-cômica que sugere uma paródia de cena trági- 201
Nas vigílias, as sentinelas costumavam cantar
ca, possivelmente de Eurípides. Cf. Hécuba, vv. para afastar o sono. Cf. Esq.,Agam., v'v. 15-16.
160-161. São as dores do parto intelectual de º Para subtrair a mente das influências e impres-
2 2
observar o que faz esse fulano ... Eh, novo com ó pensamento e pondere 2 0 4 .
você está dormindo?
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Ó Socratesinho querido !
Não, por Apolo, eu não!
SÓCRATES
SÓCRATES Que é, velho?
Tem alguma coisa?
ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES Tenho um pensamento espoliador de
Não, por Zeus, eu é que não! juros!
SÓCRATES SÓCRATES
Nada mesmo? Mostre-o.
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
(Erguendo a mão .debaixo Diga-me agora ...
do manto.)
SÓCRATES
Nada, exceto este "pau" na mao Quê?
direita ... 2 0 3
ESTREPSÍADES
SÓCRATES E se eu comprasse uma mulher feiti-
73S
Você não vai cobrir-se e pensar ceira da Tessália 2 0 5 , e, de noite, 750
depressa nalguma coisa? puxasse a Lua para baixo, e, a seguir, a
ESTREPSÍADES
fechasse num cofrezinho redondo,
No quê? Ó Sócrates, diga-me! como se fosse um espelho, e depois a
conservasse bem guardada?
SÓCRATES
Trate ·primeiro de achar o que deseja SÓCRATES
e diga-me. Mas então de que isso lhe serviria?
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
Você já ouviu milhares de vezes o Para quê? Se a Lua nunca mais apa-
que eu quero, é acerca dos juros ...
Como não pagar a ninguém ... · 20 4 Nova alusão aos métodos do raciocínio socrá-
tico. Cf. v. 700 ss.
20 5 Os tessálios apregoavam que Medéia havia
SÓCRATES perdido a caixa de drogas em seu território, cujas
74o Então cubra-se, relaxe aos poucos o ervas, desde então, se tornaram dotadas de poderes
pensamento sutil e reflita sobre os seus mágicos. As mulheres da Tessália tinham fama de
espertas em artes de bruxarias, gabando-se até da
habilidade de puxar a Lua para baixo do céu. Cf.
2 º3 Veja nota v. 538. Plat., Górg., 513-A, Verg., Buc. VIII, 6.
206 ARISTÓFANES
um único método, sem refletir sobre outras possibi- Pois já digo. Quando não houvesse
lidades. mais do que um único proce~s antes 780
º O besouro dourado (Melolontha vulgaris), in-
2 9
Por quê? Não, Sócrates, pelos deu- de alto vôo, uma grã-fina 219 . Pois sim,
ses! irei procurá-lo. Se não quiser, de qual-
quer forma hei de expulsá-lo para fora
SÓCRATES de casa. (A Sócrates.) Entre e espere- 80J
colunas do palácio, restos do antigo fausto. Diágoras de Meios, processado .por impiedade e
22 5 É a tradicional oposição entre as idéias antigas expulso de Atenas.
e as novas. Todavia é interessante que seja o pai o 228
Vejanotavv. 144ss.
·adepto das novidades, aprendidas dos sofistas. Cf. 22 9
Era hábito lavar os cadáveres antes de colocá-
vv. 367-380 ss. los na mortalha.
2 2 6 É a confidência essencial o princípio de tudo, 23 0
Alusão à máxima de Delfos, "Conhece-te a ti
"Zeus não existe!" Cf. vv. 367 ss., 380 ss. mesmo" - "Gnothi Sautón".
AS NUVENS 209
esquecia dela, por causa da longa com brinquedos e doces. Veja nota v. 408.
23 5 Todo cidadão de mais de trinta anos tinha
SÓCRATES (A Sócrates)
Mas é quase uma criança, ainda não
Então lembre·-se disto, ele deverá
"escovado" nos nossos cestos depen-
falar contra tudo o que é justo.
durados. ~ .
e ESOJIO=>
FIDÍPIDES
..... ,. ...
º
87 Você também seria escovado se o
(Da casa ef~ S1~;t ~·e .du~
enforcassem ... 2 3 6
gaiolas, como dois galos de briga.240, o
ESTREPSÍAQES Raciocínio Justo e o Raciocínio Injus-
Vá pro inferno ! Você ousa rogar to. Ambos ameaçam atracar-se2 4, J
pragas no seu mestre?
JUSTO
SÓCRATES Venha cá, mostre-se aos espectado-
(Com desprezo.) res, você que é um atrevido !
Vejam só ! Se o enforcassem !2 3 7 INJUSTO 890
Como ele pronunciou de modo estúpi-. Vá para onde quiser !2 42 Pois muito
do, com a boca escancarada ... Como mais facilmente, falando diante do
é que esse moço poderia aprender a povo, acabarei com você !2 43
875 escapar duma condenação, fazer uma JUSTO
citação ou adoçar a voz de modo.
Acabará.comigo? E quem é você?
persuasivo? E, no entanto, Hipérbo-
lo 23 8 aprendeu-o por um talento ... INJUSTO
Um raciocínio ....
ESTREPSÍADES
JUSTO
Não se preocupe. Ensine-o. É um O fraco ...
rapaz esperto por natureza. Desde
·criancinha, quando era deste tamanhi- INJUSTO
nho, modelava casas, esculpia navios, Mas eu vou vencê-lo a você que afir-
880 fabricava carrinhos de tiras de couro e ma que é mais forte do que eu .
fazia sapos de miolo de pão. Que lhe JUSTO
parece? Contanto que ele aprenda Com que habilidades?
aqueles dois raciocínios, o forte, seja
INJUSTO 895
ele qual for, e à fraco, aquele que com
palavras faz virar o que é injusto no Encontrando idéias novas 2 4 4
de Pandeleteu 2 4 9
, tiradas duma sacoli- Então, vamos! Qual dos dois falará 940
JUSTO . JUSTO
Você há de arrepender-se, se lhe Então vou contar como era a educa-
puser a mão !2 51 ção a..11tiga 2 5 6 , quando eu florescia
dizeJ).do o que é justo, e a prudência
CORIFEU era considerada. Em primeiro lugar,
Chega de luta e de insultos! (Ao não se devia ouvir um menino cochi-
Justo.) Mas demonstre o que ensinava 2 52 Referindo-se a Eurípides, Aristófanes usa de
935 aos antigos, (Ao Injusto) e você, a expressões semelhantes. Cf. Acar., 444 ss.; Paz,
nova educação, para que ele ouça a 534.
ambos em suas controvérsias, faça a 2 53 Inicia-se o agon que apresenta a seguinte
char nem um "a" 2 5 7 ; depois, os mora- para não mostrar nenhuma indecência
dores de um mesmo bairro andavam aos estranhos; de outro lado ainda,
pelas ruas, bem disciplinados 2 5 8 indo quem se levantava, devia aplainar a
à casa do professor de cítara2 5 9 , sem areia, tomando a precaução de não 975
mantos e em fila, ainda que nevasse ·deixar aos amantes nenhum vestígio de
neve farinhenta. O professor, por sua sua mocidade 2 6 6 . Naquele tempo, ne-
965 vez, começava ensinando-os a cantar, nhum menino costumava untar-se de-
com as coxas bem apartadas, ou 2 6 0 baixo do umbigo, e, assim, sobre os
"Palas terrível, destruidora de ci- genitais florescia uma penugem orva-
dades"2 61 lhada, como num fruto, e ninguém
ou molhava e amolecia a voz para aproxi-
"um som longífero" 2 6 2, mar-se do amante, prostituindo-se a si
sustentando os acordes 2 63 transmi- mesmo com os olhos 2 6 7 . Nos jantares, 980
tidos pelos pais. E, se algum deles se não era permitido servir-se da cabeça
fazia de bobo ou modulava uma modu- do rabanete, nem roubar a erva-doce
lação de voz, como essas de hoje, à ou selino dos velhos 2 6 8 , nem se devia
moda de Frínis 2 6 4 , tão difíceis de comer gulodices, dar gargalhadas ou
970
JUSTO INJUSTO
985 Mas, na realidade, foi com essas coi- (A Fid{pides.)
sas que a minha educação criou os ho- Meu rapaz, se você lhe obedecer
mens guerreiros de Maratona 2 7 0 • Mas nisso, sim, por Dioniso, parecerá aque-
1000
JUSTO ](NJUSTO
É isso, é isso mesmo que enche os E logo ela passou-o. p:;tra trás e foi-se
balneários de jovens que tagarelam embora, pois ele não era nem fogoso e
sem cessar o dia inteiro, enquanto as nem agraqável para festejar as 11.oites,
palestras ficam vazias .. debaixo &1s cobertas . . . 3 0 0 E uma 1070
que sim. De outro lado, ele diz que se naturais. Você agiu mal, ficou apaixo-
1060 deve· ser modesto 2 9 7 . Dois grandes nado e praticou um adultério 3 0 2 , mas
males! Você já viu alguém ganhar al- foi apanhado. Você está perdido, pois
guma coisa com a modéstia? Fale, não é capaz de falar. . . Conviva co-
refute-me com palavras ! migo e goze a vida, salte, ria e não
ache nada vergonhoso . . . Pois se
JUSTO acaso for apanhado em flagrante adul-
Muita gente.. . . Pois não foi por tério, você dirá ao marido o seguinte:
isso que Peleu recebeu o seu cute- que não tem culpa nenhuma. Depois /080
lo? 2 9 a trate de jogar a culpa em Zeus, porque
ele também é mais fraco do que o amor
INJUSTO
e que as mulheres ... 3 0 3 Ora, como é
Cutelo? ! Grande lucro teve o des- que você, um mortal, poderia ser mais
1065 graçado ! . . Hipérbola, aquele das forte do que um deus? ... 3 0 4
lamparinas 2 9 9 , ganhou com a sua falta
de vergonha mais do que muitos talen-
3 00
O Raciocínio Injusto falseia a lenda para justi-
tos ... e não um cutelo, por Zeus! ficar-se. Tétis, segundo uma predição, daria à luz
um filho mais poderos9 que o próprio pai. Nessas
JUSTO condições, os deuses obrigaram-na, a desposar
E Peleu, graças à sua modéstia, des- Peleu, um mortal. O casamento não foi feliz, e a
ninfa passava a maior parte do tempo nas profun-
posou Tétis. dezas do mar, nos palácios de seu pai Nereu. Cf.
Horn., II., XVIII, 432 ss.
29 s Em toda esta passagem observe-se a argumen- 301
Jogo muito popular, principalmente após o
tação sofistica. Nestor, rei de Pilos, aparece na Ilía- jantar. Numa de suas variedades, o participante,
da e na Odisséia como um velho prudente, ainda deitado sobre o braço esquerdo, devia tomar a taça
corajoso no campo de batalha, mas amigo de longos com a mão direita e derramar suas últimas gotas em
discursos. Lit. "agoreta", i. e., falador na ágora . outra taça, que flutuava numa bacia.
.. ~ ~ Oàisseus, Calcas e outros. 302
Embora as mulheres vivessem mais ou menos
7 No texto grego "sophronein", palavra rica de
29
reclusas, o adultério não era raro. Cf. Lis., Sobre a
sentido moral e que encerrava as idéias de modéstia, Mor~e de Eratósen,~ H. Licht, op. cit., p. 63.
prudência, sensatez, castidade e comedimento. 303
29 8 Não desejando corresponder aos anseios amo- Alusão às muitas aventuras amorosas·de Zeus.
rosos de Hipólita (ou Astidamia) esposa de Acasto, Depois de certa época, tomou-se hábito procurar
Peleu quase perdeu a vida, após as intrigas da rai- desculpas nos mitos. Cf. Xen., Cir., VI, 1; Plat.,
nha. Como recompensa, recebeu dos deuses um cu- Rep., 377 etc., K. Frem~, op. cit., pp. 203 ss.
telo para defender-se e, mais tarde, a mão da ninfa 30 4
Cf. Ter., Eun., UI, 5, 40 "deum sese in homi-
Tétis. nem convortisse at quem deum quia templa caeli
2 99
Hipérbolo é acusado de misturar chumbo no summa sonitu concutit./ Ego Homuncio hoc non
bronze com o qual fabricava lâmpadas. facerem?"
AS NUVENS 217
JUSTO INJUSTO
Quê? ! E se por ter acreditado em Tem razão. E os oradores?
você lhe enfiarem um rabanete no rabo
JUSTO
e o esfolarem com cinza? 3 0 5 Ele terá
Nos esculhambados.
algum argumento para afirmar que
não é um esculhambado? 3 0 6 INJUSTO
Está aí, então não reconhece que diz 1095
INJUSTO 307 tolices? Observe no meio dos especta-
10ss E se for um esculhambado, que dores, qual é a maioria?
haverá de mal?
JUSTO
JUSTO Sim, estou observando .
Pois que desgraça ainda maior do
que essa ele poderia sofrer um dia? INJUSTO
E então, que vê?
INJUSTO
E então que dirá você se for derro- JUSTO
tado por mim nesse particular? Pelos deuses, os e~culhambdos são
JUSTO mais numerosos. (Mostrando ao
Calarei a boca! Que mais? acaso.) Eis ali um, bem o conheço, e
aquele ali, e aquele cabeludo que lá 1100
vaiar ou pedir bis, todavia a decisão final cabia aos , ressadas deviam depositar uma caução cujo mon-
juízes. Note-se que Aristófanes se dirige à parte do tante variava, correspondendo mais ou menos a
público que corresponde aos agricultores, direta- 10% da quantia reclamada. Essas cauções, pagas a
mente interessados nessas questões de chuvas, título de custas, eram reembolsadas aos vencedores
secas, etc. peJas partes vencidas. 1
.L
AS NUVENS 219
então chorem, vocês, seus capitais e os age mal, bem o sei. . . E no seu rosto
mora o tal "olhar da Ática" ... 33 0
322 Crítica à nova maneira de saudar, que, prova-
Contanto que agora você me salve, de-
velmente, vinha substituindo a tradicional, conside- pois que me arruinou! ...
rada antiquada pelas classes abastadas. Cf. PI., vv.
322 ss.; Av., v. 1377; V. Ehrenberg, The People of
Aristophanes, 2.ª ed., Oxford, Blackwell, 1955, p. FIDÍPIDES
209. Mas o que é que você teme?
323 Dinheiro ou um saco de farinha. Cf. v. 669.
32 4 Jntermezzo lírico; paródia do estilo trágico.
3 2 5 Paródia de Eur., Peleu,fr. 1. Aliás esses versos 32 7 Paródia de Eur., Hec., vv. 172 ss. e v. L8 l.
já haviam sido imitados por Frínico. 3 2 8 Volta ao diálogo habitual, vv. 1171-1205.
3 2 6 Usurários que emprestavam pequenas quantias 329 Alusão ao hábito das perguntas à queima-
a juros ·altíssimos. Era comum a taxa de um óbolo roupa, para intimidar o contendor.
diário por mina, o que correspondia a juros de 60% 3 3 0
Eram notórias a impudência e sem-vergonhice
ao ano! dos atenienses.
220 ARISTÓFANES
1205 triunfo em honra de nossa prosperi- referiu a dois dias. Por que dinheiro?
dade! Bem-aventurado Estrepsía-
CREDORI
des3 3 a'
Vocêjá·nasceu sábio, Pelas doze minas, que você tomou
e que filho. ~stá criando ... emprestadas para comprar o cavalo
ruço ...
(Ao Filho.)
ESTREPSÍADES
1210 Eis o que dirão os amigos e compa- Cavalo? Vocês ouviram? Se todos 1225
nheiros de bairro, cheios de inveja, sabem que eu detesto a equitação ! ...
quando você vencer os processos com
os seus discursos! Mas vou levá-lo CREDORI
pata casa, quero oferecer-lhe um ban- Por Zeus, você jurou pelos deuses
quete. (Entram pai e filho) que pagaria!
(Chega um credor com uma
ESTREPSÍADES
testemunha.)
Sim, por Zeus, mas naquela ocasião
CREDORI Fidípides ainda não me tinha apren-
Então, um homem deve desistir do dido o raciocínio irrefutável ...
1215
que é seu? 339 Não; nunca! Mas teria
sido melhor perder a vergonha desde CREDORI
logo naquela ocasião, do que ter essas Mas agora por esse motivo você pre- 1230
didos, o Zeus dos seus juramentos é não seria mais um homem vivo ...
ridículo !3 4 5
ESTR.EPSÍADES
CREDOR! Está ·bem; val. jogar fora mais esse
Sim, está bem, com o tempo você há dinheiro, além das doze minas .. : E,
de ser castigado por ele ... Mas vai ou no entanto, não quero que você sofra
não vai pagar o meu dinheiro? Res- esse prejuízo, só porque dissé "o game-
ponda-me e deixe-me ir. lão" de maneira errada ...
- _j__ __
AS NUVENS 223
CREDOR II ESTREPSÍAD ES
Ó diviudad,e cruel ! Ó fortuna Acho que você ficou com o cérebro
que bradara '3 4 9 dos carto-s d-os meus abalado ...
cavalos!
1265 • . Õ Palas, tu me arruinaste!
CREDOR II
E você, por Hermes, será proces-
ESTREPSÍADES sado por mim, se não me devolver o
Afinal . . . que mal lhe fez o Tlepóle- dinheiro.
mo?
ESTREPSÍADES
CREDOR II Então diga-me a sua opinião! Zeus
Não me ccnsu"re, meu caro, mas or- faz chover sempre uma água nova ou o 1280
dene ao seu filho que . me pague o Sol puxa novamente de baixo para
dinheiro que recebeu, tanto mais que cima sempre a mesma ~gua? 3 5
1
ESTREPSÍADES CREDOR Ii
Por que então tagarela como se Que mais há de ser senão isto, que
tivesse caído de um burro ? 3 5 o cada mês e cada dia o dinheiro sempre
aumenta mais e mais, com o correr do
CREDOR II
tempo?
Tagarefo? Se quero receber o meu
dinheiro? ESTREPSÍADES
ESTREPSÍADES
bem, você julga por acaso que
~stá 1290
Não é possível que você esteja o mar é maior do que era antes?3 52
são ... . CREDORII
CREDOR II
Não, por Zeus, é o mesmo. Pois não
é natural que se torne maior ... 3 5 3
1275 Quê?
1
3 49 Paródia de Xénocles, Licínio; nessa tragédia,
3 51 Problema bastante discutido nessa época. Cf.
narrava-se a morte de Licínio, irmão de Alcmena, Anaxágoras (Diels-Kranz, A, I, 32); Hipocr., Ar.,
que caíra sob um _golpe de TlepÓlemo, filho de Hé- VIII; Aristot., Meteor., II, 2, 10; Ibid., 11.
racles; daí a alusão do v. 1266. É. evidente que o 3 5 2 Cf. Lucr., VI, 608: "principio mare mirantur
credor quer dizer que seus cavalos dispararam, que- non reddere maius/ naturam, quo sit tantus decur-
brando o carro. sus aquarum,/ omnia quo veniant ex omni ílumina
3 50 Expressão proverbial, significando "insânia, parte".
perda de juízo". Plat., Leis, III, 701-C. 3 53
Cf. Herficlito (Diels-Kranz, B, 31-12).
224 ARISTÓFANES
ESTREPSÍADES ESTREPSÍADES
Você não vai correr? Eu me encarre- Vocês vêem? Ele concorda que me
1300
go, cutucando-o nas nádegas, seu ca- bate!
valo de tirante ... 3 5 6 Foge? Bem que
estava para pô-lo em marcha junto FID IPIDES
com as suas rodas e as parelhas! Por certo!
(Vai-se o credor. Estrepsíades
entra.) 3 5 7 ESTREPSÍADES
Canalha, parricida, bandido!
CORO
(Estrofe I) 3 5 8 Quanto vale amar as FIDJ'.PIDES
más ações! Este velho apaixonado Diga-me de novo essas mesmas coi-
1305
quer negar-se a pagar o dinheiro que sas .e· muitas outras. . . Sabe que até
tomou emprestado . . . É impossível me divirto bastante ouvindo tantos
que ainda hoje não aconteça algo, que insultos? 3 61
1310
talvez faça este sofista, de repente, so- ESTREPSÍADES
frer uma desgraça, em troca de suas Imundo!
velhacagens !
(Estrofe II) Creio eu, logo ele há de FIDlPIDES
encontrar o que há tempos procurava: Você me polvilha. com muitas 1330
1315 um filho hábil em sustentar argumen- rosas! 3 62
3 5 4
Aguilhada, vara comprida com um ferro agudo 3 59
Segundo ''.Agon" -- Após uma cena introdu-
na poi;ita, usada para instigar bois ou cavalos. tória, o "Pro-Agon" (vv. 1321:.1344), desenvolve-se
3 5 5 Veja com., v. 122. o ''.Agon" propriamente dito, que apresenta a
3 5 6
O cavalo atrelado por uma correia ao lado de seguinte subdivisão: Ode (vv. 1345-1350); Epirr,ema
dois cavalos de lança. Cf. lat.funalis equus. · (vv. 1351-1385); Pnigos (vv. 1386-1390); Antode
3 5 7 Estrepsíades entra a fim de continuar a festejar (vv. 1391-1396); Antipirrema (vv. 1397-1444);
a volta do filho. Cf. v. 1213. Antipnigos (vv. 1445-1451).
3 5 8 · "Choricon ': vv. 1303-1320; canto coral lírico 3 6
° Crime abominável, passível de "atimia". Cf.
(ode e antode). O coro começa a esclarecer sua ver- Andoc .. Mist .. 74; Xenof., Jvlem., I, 2, 49; Esquim.,
dadeira posição. A pausa coral dá tempo a que a Têm., 28.
3 5 1 Cf. vv. 906 ss.; 1330. ,
ação se desenvolva numa nova etapa: o castigo de
Estrepsíades. 3 62
Em correspondência com os vv. 910-912. j
- _J _____ ·- · -·-----
AS NUVENS 225
ESTREPSÍADES
pensar em como sobrepujá-lo. Se em
Você bate no seu pai? - algo ele não coefzasse, tão atrevido 1350
/365 me alguma coisa de Ésquilo. E ele logo porta e segurava-o diante de mim ...
disse: "Pois considero Esquilo o maior Mas você agora me estrangulava
poeta barulhento, .incoerente, empola- enquanto eu gritava e berrava que
do, criador de palavras escarpa- tinha vontade de aliviar-me! Canalha,
das ... " 3 71 Pensem então como o nem pensou em levar-me para fora, e,
meu coração palpitou de raiva! Toda- sufocado, eu fiz· a "caca" ali 1190
vras más e injuriosas. Daí então, como velhos, eu não daria nem um ·grão de
1175 era natural, opúnhamos palavra a bico . .. 3 7 8
palavra. Depois, ele dá um salto, fere- CORIFEU
me, espanca-me, estrangula-me e (A Fidípides.)
acaba ·comigo ! ....
Movimentador e sacudidor de pala-
FIDÍPIDES vras novas, a sua tarefa é procurar um
Então não é justo, já que você não meio de convencer de que parece dizer
elogia Eurípides, o mais sábio? o que é justo 3 7 9 • ·
FIDÍPIDES
ESTREPSÍADES
O mais sábio! Ó .. . de que chamar Como é doce conviver com idéias
você? Mas vou apanhar de novo ... novas e engenhosas, e poder desprezar 1400
FIDÍPIDES 3 7 4
As crianças eram atendidas ou pela mãe ou
Sim, por Zeus, e serájusto. pela ama. Como a esposa de Estrepsíades, vaidosa e
cheia de luxos, pouco devia importar-se com as
necessidades do filhinho, o próprio pai, provavel-
ESTREPSÍADES
mente para poupar as despesas duma ama, tomava
1380
Justo? E como? Sem vergonha, eu conta dá criança. É visível o tom de paródia. Cf.
Horn., Jl., IX, 486-492 (palavras de Fênix a
Aquiles).
3 71
Alusão ao estilo grandiloqüente de Ésquilo. Cf. . 3 7 5
Expressão técnica da linguagem das amas. Cf.
Rãs, vv. 836 ss.; vv. 924 ss. etc ... Escol., v. 1384.
3 72
Crítica ao apreço de que go.zava Eurípides 3 7 6
Pnigos - Desespero e suprema humilhação de
entre os representantes da nova educação. Estrepsíades.
3 7 7 Antode - Confirmada a impudência de Fidí-
3 73
Cf. Eur., Éolo, referência a Macateu, filho de
Éolo, que seduziu a própria irmã, Canace. O casa- pides, treme o coro na expectativa de novas injusti-
mento de meios-irmãos era permitido em Atenas, ças (vv. 1391-1396).
nunca porém quando se tratava de filhos da mesma 3 7 8
Expressão de sentido obsceno.
mãe. Cf. Escol., v. 1371; Andoc., Alcibíades., 33; 3 7 9
Mais uma vez cabe ao coro movimentar a
Aristóf., Rãs, vv. 849 ss. ação, dando a palavra a Fidípides.
--.. J__ _
AS NUVENS 227
FIDÍPIDES FIDÍPIDES
Como? Por quê? E se eu vencê-lo com pala-
ESTREPSÍADES vras, sustentando o raciocínio fraco de
Porque tenho direito de castigá-lo e que se deve bater na mãe?
você ao seu filho, se o tiver. · ESTR EPSÍADES_3 9 3
FIDÍPIDES Que mais há de acontecer, se você
1435
E se eu não tiver filhos? Terei chora- fizer isso? Nada poderá impedi-lo de 1450
Que diz? Que diz você? Esse crin;i.e Querefonte e só.crates, eles que me
ainda é maior ! enganaram a mim e a você ...
FIDÍPIDES ESTREPSÍADES
/.f 75
Fique aí delirando consigo mesmo e Tocha, a sua tarefa é lançar grandes
dizendo tolices ... (Sai.) chamas!
ESTREPSÍADES DISCÍPULO B
Ai, que falta de juízo! Como estava (Saindo, espantado.)
louco quando quis jogar fora os deuses Homem, que está fazendo?
por causa de Sócrates ! (Aproxima...,se
J480
de um busto de Hermes 403 .) Mas, meu ESTREPSÍADES
Que faço? Que mais há .de ser senão /./95
DISCÍ!>{J1=_9 B sufocado!
Vai matar-nos, matar-nos.
DISCÍPULO A
Desgraçado de mim, vou morrer
ESTREPSÍADES queimado!
(Desmanchando o telhado)
. ESTREPSÍADES
Pois é isso mesmo que eu quero, se a Pois, com que sabedoria, vocês
15
ºº tocha não trair as miilhas espranç~, insultam os deuses e investigam o
ou se antes eu não cair e quebrar o "assenfo" da Lua? (Ao escravo) Ata-
pescoço ... que, atire, bata, bata por muitas ra-
zões, e principalmente porque você
sabe que eles ofendiam os deuses !
SÓCRATES
(Aparecendo.) CORO
(Saindo)
Homem, que está fazendo? Você aí
em cima do telhado? ! . Conduzi-nos para fora. 1510
_ ___j _ _ _ __ _ _