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Monvmenta Neolatina
V o l . XVIII
D. J e r ó n i m o O s ó r i o
Opera Omnia
tomo iv
P o r t vg a l i a e
M o n v m e n ta N e o l at i n a
Coordenação Científica
A P E N E L
Associação Por tuguesa de Estudos Neolatinos
2 METAFÍSICA
DIR EÇÃO
Sebastião Tavares de Pinho, Arnaldo do Espírito Santo,
Virgínia Soares Pereira, António Manuel R. Rebelo,
João Nunes Torrão, Carlos Ascenso André,
Manuel José de Sousa Barbosa
EDIÇÃO
Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: imprensa@uc.pt
URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc
CONCEÇÃO GR Á FICA
Imprensa da Universidade de Coimbra
PR É -IMPR ESSÃO
Simões e Linhares, Lda.
PR IN T BY
KDP
ISBN
978-989-26-1371-0
ISBN D igital
978-989-26-1374-1
DOI
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1374-1
P o r t vg a l i a e M o n v m e n ta N e o l at i n a
V o l . X VIII
D. J e r ó n i m o O s ó r i o
O pera O mnia
Tomo IV
Par áfr ase aos Salmos
Pr i mei ra Par te
Sal mos 1 a 75
T E X TO E T R A D U Ç ÃO
8 D. JERÓNIMO OSÓRIO
[129]
I n H i e r o n y m i O s o r i i Pa r a p h r a s i m I n P s a l m o s
Hieronymi Osorii Canonici Eborensis
Ad S e r e n i s s i m u m P r i n c i p e m A l b e r t u m ,
Austrium Archiducem Et S. R. E. Cardinalem
P R A E FAT I O
[129]
P R E FÁC I O
À Pa r á f r a s e d o s S a l m o s , d e D . J e r ó n i m o O s ó r i o ,
escrito por Jerónimo Osório, cónego da Sé de
É vo r a , e d i r i g i d o a o s e r e n í s s i m o p r í n c i p e
Alber to arquiduque de Áustria e cardeal da
Santa Igreja Romana.
Vale.
Roma, Kal. Martiis. M D XCII.
OPERA OMNIA TOMO IV 11
Ficai de saúde.
Roma, 1 de Março de 1592.
12 D. JERÓNIMO OSÓRIO
[133]
H I E R O N Y M I O S O R I I PA R A P H R A S I S
IN PSALMOS
Beatus uir.
Psal. 1
[133]
PA R Á F R A S E D E J E R Ó N I M O O S Ó R I O
AO S S A L M O S
SALMO 1
Bem-aventurado o varão.
Porventura darás o nome de prazer àquilo que, como se fosse uma espécie
de comichão e prurido, te atormenta o espírito e te incita a precipitares-
te na infâmia? Àquilo que, apenas decorrido um breve instante, deixa um
enorme motivo de arrependimento? Àquilo, enfim, que tem por termo um
pesar duradoiro e uma tortura nada pequena? Que direi relativamente às
honrarias populares? Porventura merecerá o nome de honraria aquilo que
tem o seu fundamento na vesânia da multidão? [134] Aquilo que muda ao
sopro de um rumor muitíssimo inconstante? Aquilo que priva de liberdade
os espíritos? Aquilo, finalmente, que depende por inteiro da vaidade e
confina com o desdouro eterno? De modo idêntico nos cumpre raciocinar
acerca das riquezas que o vulgar dos homens procura. Com efeito, nem
livram das enfermidades, nem afastam os perigos, nem satisfazem o desejo:
antes pelo contrário, quanto mais abundantemente se consomem, tanto mais
fortemente fazem crescer a sede, e quanto mais esta as aumenta, tanto maior
é o castigo com que atormentam os espíritos. Ora, para não me alongar
mais, sendo certo que por natureza temos um vivo desejo de imortalidade,
certamente que não devem ser tidos na conta de verdadeiros bens aqueles
que são incapazes de repelir a arremetida da morte, os que não enriquecem
o espírito – em cuja condição feliz se deve colocar a vida bem-aventurada –,
mas antes, quando a vida do corpo se acaba, fazem que os seus possuidores
a abandonem com angústia e tormento de espírito.
Portanto, que loucura possui os homens, que, ao verem que todas as
comodidades da vida são destruídas pela morte, não põem os olhos em
Deus e gastam toda a existência na procura vã das falsas riquezas? Donde
procede um tamanho desvario? – Da grandeza da impiedade. É que existem
certos homens, em sua opinião muito sagazes e insolentemente inchados
com um falso conceito de sabedoria, os quais, como não sabem nada, como
não compreendem coisa nenhuma e como são incapazes de pensar seja
no que for elevado e grande, de tal maneira se ligaram aos sentidos que
apenas e exclusivamente creem naquilo que os sentidos lhes colocam diante
dos olhos. Por conseguinte, uma vez que os bens divinos e sempiternos se
encontram muitíssimo afastados da capacidade cognitiva destes homens
que tudo medem pelo estalão dos sentidos, nem cumprem a lei divina,
nem têm fé nas promessas divinas, nem temem os juízos divinos. Portanto,
deste crime contra Deus nascem todas as injustiças contra os homens. Com
efeito, quando adquirem poder, esbulham dos bens os homens fracos e
oprimem os cidadãos com muitas injustiças e vexames, e, apoiando-se
na astúcia e na força, servem-se das riquezas para causar a perdição da
multidão; todavia, é maior o mal que ocasionam com o exemplo do crime
do que com a desumanidade da tirania, [135] porquanto, quando estes
homens, que são escassos de riquezas, vêem que aqueles, a quem julgam
superar em inteligência e agudeza de espírito, violam todas as barreiras
16 D. JERÓNIMO OSÓRIO
Quare fremuerunt.
Psal. 2
SALMO 2
Por que razão se embraveceram?
as nações, porém, que viviam nas trevas, voltarão os olhos para a tua
luz, recorrerão a ti em atitude suplicante, respeitarão o teu poderio,
colocarão na tua virtude e bondade toda a defesa da sua existência.
Por conseguinte, esta será a tua ilustre herança; este o teu património,
aumentado com infindáveis acréscimos.
Mas ainda que pareça que é muitíssimo difícil governar os povos e
obrigar a multidão ao cumprimento dos seus deveres, e que, quanto maior
é a extensão sobre a qual se exerce a soberania, tanto mais difícil se
prevê que seja o modo de administrá-la, todavia estas dificuldades não te
afetarão muito. É que não só a tua força há de ser sempre invencível, como
também se tornará manifesta a fraqueza daqueles que se quiserem opor
a ti. Com efeito, assim como o ferro sem qualquer dificuldade quebra e
reduz a pedaços os vasos de barro, assim esmagarás e porás em debandada
os teus inimigos, e até mostrarás a força da tua virtude naqueles que
por inteiro se entregarem ao zelo do teu nome. É que acabarás com a
cobiça do corpo; porás fim a todas as emoções perturbadoras e cercearás
as infâmias, de tal maneira que nos homens a ti consagrados nada fique
capaz de extinguir o amor da piedade e da glória imortal.” – Ora, até
aqui expõe-nos as palavras do Pai, para com elas atemorizar os ímpios
que maquinam a morte do rei sempiterno e projetam causar a perdição
daquele [141] cujo poder é imenso e infinito.
Escutai estas palavras, ó reis; a elas atendei e prestai atenção, ó
príncipes, para não cairdes na desgraça sempiterna. Fugi da soberba;
abominai a insolência; reprimi as paixões vãs, para que as mais horríveis
sombras não se abatam sobre os vossos olhos. É que, quanto mais
alto é o grau de honra em que estais colocados, tanto maior é a vossa
necessidade da luz da sabedoria para que cuideis com salutar providência
dos povos confiados à vossa guarda. Algo que as mais das vezes sucede
de forma muito diferente. De facto, as honrarias desmedidas, as riquezas
prodigiosas, o luxo realengo, a esplêndida sumptuosidade, a abundância
de lisonjeiros e a velhacaria dos homens perversos cegam o espírito e
induzem o entendimento dos príncipes em erros desvairados. Ora, deste
modo acontece que, aqueles que deveriam ser os possuidores de maior
sabedoria, são os que dão mostras de maior desatino e vesânia. Por
consequência, causam, não a salvação, mas antes a perdição das populações
e a si mesmos ocasionam a ruína. Ó reis, repeli a loucura e acolhei o
sentimento da humanidade e da prudência. Ó príncipes, que abarcais
com o vosso senhorio a terra, tratai também com o máximo desvelo de
adquirir conhecimentos salutares. É que de outro modo não vos pode
acontecer outra coisa que não seja sucumbirdes da forma mais mofina.
Se vos atemoriza o nome da sabedoria; se considerais muitíssimo difícil
obter o seu fruto; se não tendes confiança na inteligência ou o trabalho
32 D. JERÓNIMO OSÓRIO
vos mete medo, sabei que é muito mais fácil o modo de obtê-la do que se
calhar imaginais. Não vos aconselho a que, por causa dela, percorrais as
terras mais distantes, nem a que mandeis vir mestres, contratados de todas
as partes mediante grandes presentes, nem a que dia e noite suporteis
imensos trabalhos. É que tão-pouco se faz mister arrancar a sabedoria
das entranhas da terra, mas cumpre pedi-la a Deus. Ele, na verdade, é a
perene e imensa fonte da sabedoria, de onde se devem colher todos os
ensinamentos respeitantes ao bom governo do Estado. Mas a Sua bondade
está sempre pronta para aqueles que cultuam a fé e a piedade e adoram
com pureza a Sua divindade. Por conseguinte, servi-O; reverenciai a Sua
majestade; com temor, empregai todos os vossos pensamentos no Seu
serviço. É que o temor de Deus é o alicerce da mais verdadeira sabedoria.
Por conseguinte, se temerdes a Deus e vos mantiverdes fiéis a Ele, Ele
encher-vos-á com as riquezas da sabedoria divina. Por isso, então triunfareis
com uma admirável satisfação e vivereis na mais completa alegria, quando,
banhados pela luz celestial, contemplardes a formosura sempiterna, as
riquezas imortais e a fonte da mais verdadeira glória.
Todavia, admoesto-vos e aconselho-vos a que, quando vos encontrardes
singularmente providos dos bens divinos, de modo algum vos esqueçais da
vida antecedente, mas a que recordeis incessantemente o tempo passado,
para que a consciência da condição afortunada não ensoberbeça de tal
forma os vossos espíritos que penseis que se deve atribuir ao vosso esforço
e piedade aquilo que foi alcançado por benefício de Deus. É que todos
os bens vos cairão das mãos, se nos vossos entendimentos se introduzir o
esquecimento da bondade de Deus e a soberba inchar os vossos espíritos.
Por conseguinte, na prosperidade rejubilai de tal maneira que a visão do
céu e a memória do julgamento de Deus não deixem de causar-vos temor.
Na verdade, em qualquer ciência procuramos um mestre para que ele nos
instrua com os seus conselhos e exemplos. Portanto, quem há de ser o
nosso mestre? Quem há de encaminhar os nossos passos? Ao comando e
senhorio de quem nos havemos de entregar? Certamente ao daquele [142]
contra cujo senhorio fazíeis uma guerra imbuída de todo o ódio; aquele
cujas leis consideráveis duríssimos grilhões de escravidão e aquele cujo
senhorio reputáveis como um jugo completamente intolerável. Capacitai-
vos enfim que o próprio Cristo, contra quem, tomados de demência, vos
lançáveis, é o Filho de Deus, em quem assenta a suprema sabedoria e a
salvação do género humano.
Por conseguinte, ponde nele com toda a atenção os olhos, adorai-o,
amai-o ardentemente, para que a sua luz guie os vossos espíritos e,
arrancando-vos das trevas eternas, vos una consigo na comunhão de
todos os bens. Por isso, se desprezardes o Filho, o Pai afiará contra
vós a espada da Sua severidade e far-vos-á perecer atormentados com
34 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 3
Senhor, porque são em grande número [os que me perseguem?]
SALMO 4
Ao invocá-lo, ouviu-me.
Logo que ergo o meu brado, o meu Deus, Pai e autor da minha justiça,
escuta a minha oração e logo se dá pressa para me proteger com os
Seus benefícios. É que não me ensoberbeço como se minhas fossem as
riquezas da justiça com as quais me vejo ataviado. Não sou a tal ponto
vesânico e louco que atribua aos meus merecimentos aquilo que para
os entendimentos humanos não pode provir senão do entendimento
divino. Portanto, segue-se que, sempre que me recordo de quem fui e
de que maneira foi graças à misericórdia de Deus que surdi do seio das
abominações, e como fui ornamentado com as riquezas da virtude divina,
sinto-me abrasado com o mais intenso amor por aquele autor da minha
justificação, reverencio-O com a mais pura religiosidade e capacito-me de
que unicamente na Sua ajuda se devem fundar e amparar todas as regras
e sistemas de vida. Com efeito, é impossível que, quem me aceitou sob o
Seu pendão, quando eu me encontrava alheio e hostilizava as sanções da
justiça, e me ataviou com esta nova formosura, a fim de que eu participasse
do culto da família que me adotou, me venha a desprezar, uma vez a Ele
unido por celestial parentesco, e rejeite os meus pedidos.
Ó clementíssimo Senhor, como hei de agradecer-Te? É que, sempre
que por Ti brado, imediatamente acodes com a Tua ajuda, de maneira a,
aliviado das minhas angústias, poder livremente respirar e, reconfortado
com o Teu espírito, assaz alegremente me sentir reanimado. Ó varões,
aos quais ensoberbeceram os brasões de nobreza ou as insígnias da
honra ou as imensas riquezas, que desatino tão grande vos senhoreia
que degradais em título de vileza a minha honra e glória? [145] E
considerais que eu mereço ser menosprezado porque pensais que me
entreguei em demasia à santíssima religião? Porventura poderá fazer-se
seja o que for de mais grandioso para enobrecer a existência do que
amar o melhor dos pais? Reverenciar o Senhor supremo? Apoiar-se nas
divinas e eternas riquezas? Ou seja, será nobre e recomendável deixar
arrastar-se pela mentira, dar como esteio das riquezas o que é vão e
estribar na vaidade o poder? E, ao invés, deverá ter-se como ignomínia e
desdouro ligarmo-nos a Deus mediante uma fé viva e encontrar repouso
na ajuda d' Ele, que jamais faltou a ninguém?
E, entretanto, vós, que gabais a vossa inteligência, que, estribados na
penetração do vosso engenho, com ele esvoaçais em todos os sentidos,
que com descomedimento zombais da minha singeleza como inútil para
aumentar os bens materiais, viveis na vaidade e abraçais a mentira, pois
consumis debalde o vosso esforço, desvelo, atividade e atenção em adquirir
aquelas coisas que não poderão prestar-vos ajuda. Não vedes, homens
mui desvairados, que, quando julgais a santíssima religião como algo
de próximo à vileza, essa opinião, ressumante de infâmia e atrevimento,
redunda em ultraje contra Deus? É que não professa uma opinião correta
42 D. JERÓNIMO OSÓRIO
se acirra, por tal forma que, quanto mais afluem as riquezas, tanto mais
mofinamente os homens se arrastam na indigência.
Ó supremo Senhor, ergue bem alto na minha presença o lume do Teu
rosto, como um pendão para eu seguir, [147] e alegra o meu espírito
com o resplendor da Tua luz, e que Tua graça colme a minha alma de
riquezas que os olhos não podem enxergar: e nada mais desejarei. Que
outros floresçam em riquezas humanas; que em abundância possuam
ornamentos e defesas para a vida; que sejam fartamente providos de
honrarias e aplausos do povo: eu, porém, ainda que careça de todas estas
cousas, se obtiver o fruto da Tua graça, com o maior dos contentamentos
hei de triunfar, pois hei de caminhar repleto e cumulado com todos os
bens mais verdadeiros. Por conseguinte, é isto o que almejo, neste desejo
me abraso, este anelo me inflama e de muito bom grado desprezarei toda
a abundância e recursos dos homens, até alcançar este bem supremo,
que assenta no Teu amor. Ora, assim sucederá que não sentirei inveja de
nenhumas riquezas. E até, quando possuírem abundância de trigo e de
vinho aqueles que para mim olham com ânimo deveras hostil, Tu hás de
encher o meu peito de espantosa alegria e oferecer-me uma disposição
de ânimo de natureza tal que a prosperidade deles há de ocasionar-me
uma mui especial deleitação.
“Mas”, dirá alguém, “que sucede se juntarem forças para com elas
muito mais violentamente te atacarem? Não sentirás temor do ódio deles,
consorciado com um poder nada pequeno?” De modo algum! É que, não só
hei de velar pela paz comum, como também com a minha moderação hei
de amansar a desumanidade deles. Na verdade, tomarei como obrigação
minha mover violenta guerra, não contra os homens, mas contra os vícios
e defeitos. E por isso a minha bondade há de reprimir a natureza perversa
deles; a minha caridade há de extinguir-lhes o ódio; o meu comedimento
há de avantajar-se à sua soberba; e, finalmente, de tal maneira me hei
de haver que, até onde for possível, mediante a minha bondade hei de a
todos submeter às minhas razões. Pelo que, se forem inimigos às ocultas,
todavia entre eles hei de viver pacificamente e sem qualquer temor; e
durante a noite entregar-me-ei ao sono sem qualquer receio; e, livre de
todo o cuidado e preocupação, hei de descansar. É que só Tu, Senhor,
me guindaste a uma firme esperança de imortalidade; Tu te encarregaste
da segurança da minha vida; tu quiseste que a minha dignidade fosse
guardada por tropas invencíveis, para evitar que a violência de quaisquer
inimigos alguma vez me fizesse tombar da minha posição.
48 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 5
Senhor, dá ouvidos às minhas palavras.
Quem tiver assentado consigo mesmo que na vida não existe bem algum
que não proceda d' Aquele santíssimo progenitor da nossa vida e salvação,
certamente não encaminhará o seu entendimento para outro lugar, mas
terá incessantemente fixos os seus olhos na bondade divina. É que Ele
é quem nos cura nas doenças; nos alivia nas angústias; nos enriquece
na pobreza; nos defende nos perigos; nos ensina nos erros. De facto,
aparta-nos da morte para nos dirigir para o caminho da imortalidade, e
até da divindade. Todavia, a fim de que d' Ele obtenhamos estas mercês,
é mister que nunca d' Ele desviemos os olhos, mas com ardente afeto
amemos, veneremos e abracemos o Autor da nossa salvação, e nunca,
em situação alguma, sejamos arrancados da intimidade com Ele. É que
aos ingratos tudo se lhes escapa das mãos, mas àqueles que conservam
a lembrança [148] dos benefícios divinos, tudo se lhes conserva e corre
a contento. Ora, por outro lado, o cuidado desta mui nobre virtude, que
se funda num proceder e vontade agradecidos, cifra-se na frequência e
assiduidade da santíssima oração. Com efeito, quem fala amiúde com
Deus ou Lhe agradece as mercês recebidas ou confiadamente Lhe roga os
benefícios de que tem precisão, atos ambos estes que constituem obrigação
de um espírito não só muito agradecido, como também sobremaneira
confiante: está a fazer assim aquilo em que se funda a essência da mais
santa religiosidade. Daqui se conclui que a sabedoria assenta no amor
e zelo desta oração.
Ora, de que modo deve rezar-se ao Senhor, e com que pureza, com que
zelo, com que ardor da alma se devem fazer presentes as rogativas é algo
que neste salmo nos ensina David, cujas palavras nos cumpre sempre reter
na memória, se queremos alcançar de Deus a mais verdadeira felicidade,
por forma a imitarmos aquele que afortunadamente rogou todos os mais
elevados bens. Com efeito, diz:
Senhor, dá ouvidos às minhas palavras. É que elas são proferidas
com a mais concentrada atenção do entendimento. Na verdade, Tu, que
esquadrinhas e enxergas os mais interiores recessos das almas, vês que
o meu entendimento se encontra vivamente abrasado e movido por um
ardentíssimo zelo, de tal maneira que os meus brados, com os quais
imploro a Tua ajuda, muito mais devem ser avaliados em função da reflexão
do espírito do que da intensidade da voz. Ó Rei supremo, cujo senhorio
me dispus a sempre seguir com o devido acatamento; ó clementíssimo
Senhor, a cujo serviço de muito bom grado me coloquei: dá entrada em
Teus ouvidos santíssimos às minhas rogativas. É que por Ti clamo, para
que me prestes a Tua ajuda, não com voz morosa, remissa e baixa, mas
50 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 6
Senhor, não me repreendas na Tua ira.
Certamente que com estas palavras David ensinou com que desvelo e
ardor o Senhor deve ser honrado, com que fé cumpre render-se-lhe culto
54 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 7
Senhor Deus meu, em Ti esperei.
O salmo que se segue foi escrito por David ao ser hostilizado pela
desumana sanha de Saul, a quem no cabeçalho deste salmo chama
Cuche. Mas merecerá a pena conhecer a razão pela qual Saul foi
designado por este nome. Cuche foi filho de Cam e pai de Nemrod.
Pôde portanto tomar do pai exemplos de impudência e ingratidão,
e com seu ímpio procedimento transmitir ao filho o desmedido
apetite de mando. É que Cam decidiu cobrir de desdouro o nome do
santíssimo pai, ao rir-se da sua nudez; ao chamar os irmãos, para
que olhassem para o pai nu; ao, esquecido do devido respeito filial,
tomar como diversão zombar da embriaguez, até então desconhecida,
do excelente pai. E Nemrod foi o primeiro de todos os mortais a
praticar a tirania e antepôs o seu poder pessoal aos sentimentos de
humanidade e à equidade do direito. Mas em Saul manifestaram-se
estes dois crimes, porquanto se mostrou ingrato para com David, de
quem, como de um pai, recebera a vida, e com indigníssimo baldão
desonrou o mais santo dos homens, quando o condenou como
traidor às penas reservadas aos homens mais criminosos. Além disso,
mostrou-se como um cruel tirano, ao decidir ratificar o seu poder
com o sangue de muitos inocentes. Em segundo lugar, Cuche ficou
sujeito à praga que Noé rogou à descendência de Cam: a saber, que a
sua linhagem fosse destinada à escravidão. E Saul, de facto, naquela
época em que perseguia David, estava escravizado ao ódio, era servo
da sanha e da ferocidade. Finalmente, uma vez que os negros têm
a sua origem em Cuche, sucedeu que toda a raça negra tomou o
nome de Cuche. E os negros foram marcados com a cor preta, que é
60 D. JERÓNIMO OSÓRIO
a minha honra; e sem dó nem piedade me pise com os seus pés. Ó ação
abominável pelo exemplo de crime, sacrílega pela gravidade da injustiça,
pestilencial pela odiosidade da crueza. Pode o homem arrebatado pela
inveja ser por ela a tal ponto arrastado que se empenhe em despojar da
vida e da dignidade aquele graças ao qual obtém vida e dignidade, e
considere como totalmente indigna de salvar-se a pessoa mediante a qual
inúmeros cidadãos alcançaram a salvação? Uma injustiça tão grande está
a reclamar a justiça divina; um atentado tão monstruoso requer vingança;
um crime tão sacrílego exige punição.
Levanta-Te, Senhor, e desperta o vigor da Tua severidade; quebranta
os intentos dos inimigos e que sofram a pena a que Teu juízo os
condena. Ora, assim erguerás bem alto o Teu nome e o enobrecerás
com o extraordinário louvor da Tua justiça. Contém a sanha dos meus
inimigos e ordena o juízo com a mais elevada equidade. Não me nego
a aceitar a sentença que acerca de mim pronuncies de acordo com a lei
que promulgaste. É que, se incorri em embustes de grande gravidade, se
violei os direitos do parentesco, se, finalmente, perpetrei algum crime
que implica pena de morte, uma vez que estabeleceste penas pesadas
para a malícia, para a impiedade e para a desonestidade, peço ser
devidamente punido em conformidade com estas leis. Ora, se as coisas
assim não acontecem, volve contra os culpados a Tua ira e iliba-me da
acusação que falsamente movem contra mim, e cumpre a palavra que
me deste, e faz que a minha inocência fique confirmada através da
dignidade régia, que me prometeste, estabelecida com a Tua singular
ajuda. É isto que Te rogo, não tanto por amor da minha honra, mas
por amor da glória do Teu nome. É que vejo que, depois de este juízo
se patentear diante dos olhos de todos, muitos mortais hão de temer
os Teus juízos, e maravilhar-se com a santidade da justiça divina, e a
multidão dos povos de todas as partes para Ti há de acorrer, e pôr-
se ao Teu serviço e exaltar-Te com louvores imorredouros. Destarte o
Teu poder divino, que semelhava ignorado por muitos e entregue ao
esquecimento, [154] restituído de novo pela fé dos homens a seu elevado
lugar, há de ser celebrado com o devido acatamento, e a piedade, que
estava quase extinta, há de reviver.
Ó mortais, que loucura vos senhoreia, que vos leva a pensar, diante
do adiamento do castigo, que o justíssimo Senhor condescende com os
crimes dos homens, ou que, amansado com dádivas, perdoa os pecados
dos homens impuros, ou que, para favorecer alguém, se aparta de
castigar pesadamente as torpezas? Acaso o mais santo dos juízes deixará
por punir o atentado contra a justiça? Ou o mais justo dos senhores
poderá ser corrompido com presentes? Ou Deus omnipotente se há de
impressionar com a falsa aparência da dignidade e do poder humano?
64 D. JERÓNIMO OSÓRIO
que fez. É que provoca a sua própria ruína quem com enganos procura a
ruína dos outros [155] e vê-se precipitado na desgraça por obra daquela
traça mediante a qual se empenhava em oprimir os inocentes.
Por conseguinte, que ao inimigo da minha prosperidade e dignidade
lhe suceda que todo o mal que se esforçava por ocasionar-me lhe caia
sobre a cabeça e que tombe sobre a moleira desta a força da cruel
violência com que arremetia contra a minha existência. Portanto, deste
modo encarecerei com louvores a justiça e o santíssimo juízo do Senhor
e com cântico perpétuo hei de celebrar o nome d' Aquele que com Seu
poder infinito abarca o céu.
SALMO 8
Senhor, nosso dominador soberano, quão admirável [é o Teu nome].
SALMO 9
Eu Te glorificarei, Senhor, com todo o meu coração.
tudo que foi obrado pela Tua compaixão. Por conseguinte, Tu, que me
concedeste a vitória, compassivamente me ofereceste o motivo de um
imenso regozijo e encheste a minha alma de uma extraordinária alegria.
Na verdade, quando o inimigo feroz e ressumante de ódio sanhudamente
arremeteu contra mim, Tu derrotaste-o e abateste-o, de tal maneira que,
entregando-se à fuga, derramou o desânimo entre os seus súbditos, e ao
cabo, por deliberação Tua, foram totalmente dizimados, não apenas ele,
mas todos os que o acompanhavam.
De facto, não tinham motivos para fazer guerra, mas, levados pela
soberba e perversidade, aproximavam-se para maquinarem a minha
destruição e com o espírito transtornado apressavam-se, como se se
dirigissem para uma vitória certa e inquestionável, quando Tu vieste em
socorro do meu direito, que corria grandíssimo perigo, e Te ergueste
como defensor da minha causa, que parecia perdida. Ó santíssimo Juiz,
que tomas assento no eterno sólio para justissimamente julgares e que
retamente condenas a queda e ruína aqueles que movem guerra, apoiando-
se não na equidade, mas na violência. De tal forma invetivas os povos
com as desgraças que lhes infliges; de tal forma abates da sua posição o
ímpio; de tal forma extingues e fazes desaparecer o nome daqueles que,
com feitos infames e ações mui perversas se opõem aos Teus mandados,
que de raiz desaparece qualquer lembrança dele.
Ó cruel inimigo, onde está aquela arrogância desumana de que fazias
gala? Em que se transformaram aquelas vitórias, com as quais ensoberbado
acometias com sobeja sanha, como se não existisse cousa alguma que
pudesse fazer-te frente? A todos ameaçavas com o ferro e o fogo, porque
tinhas causado a ruína e devastação a inúmeras terras e assolado muitas
cidades. Mas agora a sanha está contida; a soberba foi apeada do seu
pedestal; foram reduzidos a nada os monumentos às vitórias; e [158]
com a destruição dos ímpios toda a lembrança dos seus atentados já foi
sepultada no eterno esquecimento. Mas o Senhor, estabelecido numa
morada régia e sempiterna, dispõe o Seu trono de forma a defender a
santidade do juízo com invencível proteção, a fim de vingar as injustiças
cruelmente perpetradas pelos perversos. Com efeito, Ele governa a
terra inteira com inexcedível justiça e prescreve aos povos as leis com
admirável equidade. Ora, ainda que durante algum tempo permitas que
sejam oprimidos os homens humildes e privados de todas as riquezas
humanas, que Te consideram a defesa das suas existências; ou ponhas
a sua virtude à prova mediante situações de adversidade; ou ainda que
com suportável tormento apagues as manchas de algum labéu salpicadas
contra as almas deles; acabas por pôr neles os olhos da Tua compaixão
por forma a elevá-los a um alto degrau de dignidade e a sustê-los com a
Tua ajuda eterna. De facto, não consentes que sejam atribulados por mais
74 D. JERÓNIMO OSÓRIO
tempo do que o necessário para a sua salvação e honra. Assim, porém, que
vês que por mediação do inimigo chegou não só ao seu termo uma ação
adequada para a salvação deles, como também o ensejo e oportunidade
determinada pela Tua deliberação, imediatamente acodes de maneira a
arrancá-los das desgraças e, com aumento da sua dignidade, com riquezas
divinas recompensas a sua piedade.
Por conseguinte, os que foram ensinados com o conhecimento do Teu nome
e claramente vêem que a força do Teu poder é infinita e imensa a potência
da Tua bondade, de tal maneira que nem as Tuas forças podem ser impedidas
nem a Tua bondade embargada de protegeres com a mais completa ajuda
aqueles que encontram repouso na fortaleza da Teu nome, hão de desprezar as
demais inúteis proteções; acreditarão unicamente em Ti; apenas em Ti fixarão
o seu olhar; nunca, mesmo que se encontrem cercados por toda a espécie de
perigos, hão de abandonar a sua fé; uma vez que têm a certeza de que o Teu
auxílio nunca há de faltar àqueles que Te procuram, a fim de incessantemente
com limpo, puro e casto espírito reverenciarem o Teu nome.
Cantai a Deus, que tem morada em Sião; anunciai às nações estrangeiras
os Seus desvelos e ações, a fim de que, adquirindo o conhecimento do
santíssimo Deus, juntamente convosco alcancem a salvação. É que aquele
ótimo Pai e Senhor a ninguém quer impedir o acesso à salvação, desde
que pratique a fé e a piedade e em atitude suplicante se prostre diante do
Senhor. Na verdade, quem castiga o sangue derramado e vinga as injustiças
perpetradas contra os homens santos, não se esquece dos que, oprimidos
e atribulados pelas provações, com grandes brados imploram a Sua ajuda.
Portanto, apoiado nesta confiança, não deixarei de bradar e com incessantes
rogativas suplicarei a Tua ajuda, e nenhuns embustes e enganos de homens
poderão impedir-me de esperar da Tua imensa bondade a salvação. Tem
compaixão de mim, ó Senhor: pois nas provações suplico e imploro a Tua
ajuda; só a Ti rogo auxílio; amparado na esperança da Tua clemência, tenho
confiança em que hei de afastar os perigos que contra mim se preparam.
Vês que me encontro cercado de inimigos e que por obra deles sou afligido
com inúmeras tribulações: arranca-me das fauces da morte e tira-me da
companhia dos infernos, para que eu proclame todos os Teus louvores às
multidões da cidade de Jerusalém e exulte de todos os modos com o fruto
da minha salvação, obtida graças à Tua bondade. É que as pessoas que me
eram profundamente hostis caíram na cova que escavaram e enlearam-se
na rede que tinham estendido [159] para arruinar-me.
O poder divino apareceu; em Sua grande justiça reconheceu o crime;
castigou os perversos; o ímpio viu-se enredado pelos seus delitos
surpreendidos em flagrante. Oh julgamento divino, que merece ser
encarecido com sempiternos louvores! Os ímpios, desviados dos seus
intentos, hão de entregar-se à fuga; cairão na região da eterna desgraça;
76 D. JERÓNIMO OSÓRIO
devem, além de Ti, com o maior empenho e desvelo obter outros recursos
para a vida. Por conseguinte, apenas os que descansam na fortaleza do
Teu santíssimo nome não apenas se mantêm invencidos, mas igualmente
obtêm extraordinária honra da esperança que em Ti têm depositada.
Sendo isto verdade e sendo de todos sabido que nunca foi desprovido
da Tua ajuda nenhum homem dos que fazem depender de Ti todas os
recursos da salvação e da dignidade, [160] por que motivo nesta época
os pobres são por Ti abandonados? Porque é que apartas para longe dos
bons a Tua ajuda? Porque abandonas para presa e saque dos inimigos
o homem desarmado e privado de todos os recursos? Por que razão é
que, quando brado pedindo-Te socorro, não me acodes com rapidez? É
que devo ser indubitavelmente contado no número dos que tiveram na
conta de nada as restantes ajudas e têm todas as suas esperanças postas e
depositadas unicamente em Ti. Mas hás de dizer que nunca desprezaste a
causa daqueles que com confiança de Ti se aproximam, mas que também
te preocupaste em pôr à prova a virtude deles a fim de lhes ofereceres
recompensas mais ilustres, com brilhante acréscimo de glória, e que por
este motivo amiúde toleras os ímpios, a fim de através deles ensinares os
bons e dares a conhecer exemplos de invencível resignação e espantosa
virtude, para que com eles os homens compreendam que na terra nada
existe capaz de arrancar a virtude da sua alta posição. E que quando vês
chegado o momento propício, imediatamente ofereces ajuda aos que Te
suplicam. E o momento propício dá-se, quando a desgraça é tão grande
que a mui duras penas os Teus a podem suportar, ou a ruindade dos Teus
inimigos é tão desumana que não deve tolerar-se por mais tempo: como
é evidente, para não se espalhar com perdição e ruína total do Estado.
Esta oportunidade ofereceu-se. Por conseguinte, por que motivo, ó
sapientíssimo soberano e governante de todas as coisas, Te mostras desatento
a estes ensejos? Por que razão não Te mostras igualmente célere a levantar-
me, que estou quase prostrado e caído, e a com o máximo rigor destruir o
cruel inimigo? É que se alongares sobre nós os Teus olhos, verás as nossas
almas mofinamente atribuladas e chegadas à mais completa aflição. E se
olhares para o inimigo, verás a perversidade exercendo a mais completa
tirania com destruição dos pobres. De facto, enquanto o ímpio insolentemente
ensoberbecido se guinda às mais opulentas riquezas, o homem pobre é
consumido pelas chamas e o castigo, que deveria acabar com a ruindade,
é desviado para tormento da inocência. E tão-pouco pode entretanto dizer-
se que a malícia se dissimula com sobeja astúcia, de tal maneira que não
possa claramente perceber-se o que os ímpios meditam consigo mesmos no
seu íntimo. Com efeito, a impiedade em tal grau avançou que os homens já
não sentem qualquer pejo do pecado nem despendem qualquer esforço em
evitar o olhar do próximo. De facto, ufanam-se do crime e destarte sucede
80 D. JERÓNIMO OSÓRIO
Por conseguinte, de tal maneira tudo se inverteu que o maior elogio consiste
no maior embuste, pois o ímpio louva apenas aquilo que se amolda aos seus
desígnios. E por isso condecora com as maiores loas a avareza e invectiva
com baldões o santíssimo poder de Deus e empenha-se em despedaçar com
ultrajes todo o tipo de religiosidade. De facto, julga que o melhor dos varões
e mais ilustre pelo merecimento de uma incomum sabedoria é aquele que
acrescenta as suas riquezas violando a lei divina, e, ao invés, não considera
como homem aquele que antepõe a religião ao dinheiro.
E quando o ímpio, conduzido pela soberba, se precipita no desvario,
não há medo de algum poder divino que o aparte da arreigada crueldade.
É que não procura conhecer o juízo de Deus; nunca, em nenhum tipo
de atividade, o seu pensamento se lembra de Deus, uma vez que sempre
está muitíssimo apartado de n'Ele cuidar. Mancha de infâmia todas as
ocupações da vida; não consente que tempo algum se passe isento
de pecado; [161] todos os Teus julgamentos, ó Senhor, encontram-se
muitíssimo apartados dos olhos dele; escarnece de todos os seus inimigos
e quando se acham em dificuldades, maltrata-os com sobeja sanha e
insolência. Quando as coisas correm a seu contento, não se arreceia de
alguma reviravolta, mas de tal maneira é destituído de entendimento
que pensa consigo mesmo que jamais há de sofrer algum mal. Portanto,
arrastado por esta loucura, ensoberbece-se, desvaira, desatina e nenhum
temor o impede de sem qualquer espécie de pejo se espojar em toda a
sorte de torpezas e pecados. A sua boca encontra-se cheia de maldições,
a sua língua manchada de embustes e mentiras, e incessantemente cogita
em maldades e iniquidades. Arma ciladas nas florestas; oculta-se em
esconderijos, para inferir morte violenta ao inocente; observa com olhar
mal intencionado e dissimulado, a fim de, com qualquer pretexto que
lhe ocorra, esbulhar dos bens e da vida a comunidade dos bons. Coloca
às ocultas armadilhas; como se fosse um leão, esconde-se no mato, a
fim de se arremessar de súbito sobre o pobre, que não suspeitava de
qualquer perigo, e com toda a crueldade o estraçalhar. Certamente há
de com a máxima crueldade estraçalhar o pobre, depois de o atrair para
a sua rede e ardilosamente o prender nos seus laços. Por outro lado,
para, no urdir do crime, não deixar por perpetrar perversidade alguma,
simulará comedimento na soberba; fará papel de bondoso na crueldade
e enganosamente há de abater-se, por forma a não despertar qualquer
suspeita de espírito perverso e caluniador, quando de improviso com a sua
violência atacar os que se encontram desapercebidos e com dementada
fúria destruir a multidão demasiado descuidosa.
82 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 10
No Senhor confio; porque [dizeis à minha alma:
foge para o monte como pássaro?]
nas trevas; nada de modo algum pode apartar-se da Sua visão. Os Seus
olhos perscrutam os entendimentos dos homens; esquadrinham os mais
íntimos escaninhos das almas; nada existe de tão dissimulado e oculto
que não perscrute, olhe e examine com justa ponderação.
– Por conseguinte, dizem muitos, por que motivo permite que o
homem justo seja atribulado com provações e o ímpio goze de abundantes
comodidades e vantagens?
– Porque, responde ele, põe o justo à prova e ensina-o e aflige-o com
trabalhos gloriosos, a fim de remunerá-lo com um prémio e mercê mais
vultuosos; ao passo que frequentemente atormenta o injusto e ao cabo
castiga-o com torturas eternas. Por consequência, quem com todo o
empenho se entrega à iniquidade e procura conseguir as mais abundantes
riquezas mediante a violência e o assassínio e se esforça por firmar a
sua posição não no amor e no cumprimento do dever, mas no medo dos
concidadãos, está a destruir com cruel sanha a sua alma. É que está a
acabar com a sua própria vida; fere-se e despedaça-se a si mesmo e por
suas próprias mãos consome-se com tristíssimos cuidados [165] e, quando
se promete uma existência de interminável duração e uma situação firme,
então abate-se sobre ele uma imprevista e repentina desgraça, que derriba
o mofino homem e o precipita violentamente na região da sempiterna
desgraça. É que, assim como outrora com celestial incêndio arderam as
cinco cidades que com as mais torpes ações atentavam contra Deus, da
mesma maneira também hão de ser de súbito destruídos pelo juízo divino
esses homens, quando cuidarem que se encontram na maior prosperidade
e ventura. Com efeito, o Senhor fará cair sobre eles uma chuva de fogo,
que como laços abraçará os desventurados homens a quem as riquezas
ensoberbeceram e inflaram, e hão de ser devorados por repentino incêndio
e perecerão por completo subvertidos por voragem e procela imensas. Será
este o abundantíssimo prémio concedido no fim aos ímpios pelo desvario
e desatino em que se abrasavam. É que o Senhor é justo e recompensa
assaz as ações justas, e contempla com bom semblante aqueles que se
empenham na equidade, por forma a recompensar com bens eternos os
bons, excluindo os perversos de qualquer acesso à Sua compaixão.
SALMO 11
Salva-me, Senhor, porque faltou homem santo.
– Agora, diz o Senhor, me levantarei e não tolero que por mais tempo
sejam vítimas da destruição os pobres que buscam o repouso na minha
proteção. Compassivo escuto os brados dos necessitados que em mim
depositam a esperança, por forma a arrancá-los das fauces dos homens
ímpios. E por isso, do mesmo passo hei de atormentar com suplícios os
inimigos do meu nome, e oferecer a salvação aos que humildemente me
rogam, enchendo-os de extraordinárias riquezas eternas.
Assim fala o Senhor e mantém-se sumamente fiel àquilo que dá a
conhecer que há de realizar, de tal maneira que de imediato com a Sua
inspiração e espírito encoraja os homens piedosos, e, livrando-os de
todos os males, acrescenta-os com bens sempiternos e, com o penhor da
divina alegria, desperta-os para a firme esperança da imortal glória. Mas
entretanto a muitos mortais poderá mantê-los na inquietação o embuste
e a enganosa arteirice dos homens ímpios, com a qual se empenham
por persuadir os inexperientes de que eles ensinam uma doutrina ilustre
pela dignidade, proveitosa pelos frutos e muito agradável pelo prazer, de
tal maneira que aqueles que se amoldarem e seguirem o exemplo deles
devem com justiça ser considerados sábios, ao passo que os demais,
que seguirem outros princípios, devem, como homens desatinados, ser
rechaçados da companhia e comunidade da gente sensata. De facto, as
palavras daqueles homens são brilhantes e magníficas as suas promessas
e admirável o seu aparato de honra e honestidade. Por consequência,
quem poderá facilmente conjeturar qual é a verdadeira doutrina? Qual
é o mais alto merecimento da eloquência? Ou com que traços devem
destrinçar-se da luz da verdade as palavras que resplandecem com um
brilho falso? Não haverá coisa mais fácil! Com efeito, a doutrina dos
homens ímpios é complacente com os pecados; fomenta a cobiça; não
se opõe ao crime; não atalha à sensualidade; não refreia o desatino; não
ateia o desejo da divindade, mas insiste somente na excessiva procura
de coisas humanas e por todas as vias vai empós das riquezas terrenas,
como a meta de todos os bens.
Mas as palavras do Senhor são puríssimas; não toleram nenhuma
associação com a infâmia; arrancam todos os liames da cobiça; prescrevem
estrita probidade; não permitem que a santidade da justiça seja deslocada
da sua posição; incitam os entendimentos humanos à caridade entre os
homens; e, por derradeiro, fazem que os mortais se abrasem no amor
da imortalidade e com todas as veras se sintam arrebatados ao amor do
Céu. [167] É que a lei do Senhor é tão clara pelo esplendor da singeleza,
tão santa pela pureza dos preceitos e tão ardente pelo calor da caridade,
que não pode imaginar-se nada de mais ardente. Finalmente, toda ela é
fogo, que purifica as almas de todo o contágio de sujidade e vivamente as
abrasa no zelo das coisas celestiais e divinas. E, para mais claramente se
96 D. JERÓNIMO OSÓRIO
Vsquequo obliuisceris.
Psal. 12
SALMO 12
Até quando, Senhor, Te esquecerás [de mim ?]
Teu santíssimo nome. Quer farei pois? Acaso porei de parte a esperança
de salvação que assenta inteiramente na Tua compaixão? De forma
alguma! É que a Tua bondade não está circunscrita por quaisquer limites
nem jamais o acesso a ela foi impedido àqueles que se aproximarem de
Ti com vigorosa fé. Portanto, caminharei apoiado na imensidade da Tua
bondade; a minha alma, inundada por indizível prazer, há de exultar; com
incessante cântico celebrarei os louvores do Senhor, visto que satisfez
abundantemente o meu pedido e com riquíssimo prémio recompensou
a minha piedade.
SALMO 13
O insensato disse no seu coração: “Não há Deus.”
SALMO 14
Senhor, quem habitará no Teu tabernáculo?
SALMO 15
Guarda-me, Senhor, porque eu esperei em Ti.
SALMO 16
Ouve, Senhor, a minha justiça.
SALMO 17
Eu Te amarei, Senhor.
serei incitado a zelar por Teu santíssimo nome. É que todos os meus bens
estão em Ti colocados e fora de Ti nada existe que mereça ser procurado
quer para segurança da salvação quer para ornato da dignidade. Com
efeito, Tu és o mais sólido baluarte da minha vida; Tu és uma rocha
elevadíssima; Tu és uma muralha bem petrechada; Tu és o guardião da
salvação e libertador da vida; Tu és o meu Deus; [176] Tu és a invencível
fortaleza da vida; em Ti depositarei inteiramente a esperança da vida; Tu
proteges-me como um escudo; Tu desvias do meu corpo todos os dardos
mortíferos; Tu com os recursos divinos fortaleces a minha salvação; Tu
elevas-me ao mais alto e elevado grau de dignidade. Implorarei a ajuda do
Senhor que merece ser louvado com incessantes elogios; e logo a seguir
alcançarei a salvação, com a baldada oposição dos meus inimigos. É que
os benefícios que já alcancei por Sua imensa bondade, não me deixam
duvidar sobre os que hão de vir. Por conseguinte, a fim de que todos
compreendam em que situação se encontrava a minha condição quando
o Senhor acorreu em minha ajuda, vou expor a grandeza da desgraça
que me atacara com sanhuda fúria.
Via-me mofinamente enleado, preso pelas amarras de uma funesta
desgraça; e em torno de mim corriam as desatadas torrentes da mais completa
impiedade e de um crudelíssimo ódio, de tal maneira que violentissimamente
me inquietavam com o receio da morte que de mim se aproximava; os nós
do Érebo impediram os movimentos ao que estava paralisado e fortemente
ligado; e fui de improviso atado pelos laços da morte. A violência dos
inimigos era monstruosa; violentíssimo o seu ódio; a minha fraqueza era
maltratada de todos os lados; o socorro fugira para longe; toda a esperança
por completo se desvanecera, de tal maneira que não existia qualquer
escapatória para a morte e o terribilíssimo suplício. Por conseguinte, ao
ser conduzido para tão grandes tribulações, invoquei o Senhor e dirigi-Lhe
os mais fortes clamores, para que se apressasse a prestar-me ajuda, e Ele
desde o alto do Seu santo templo imediatamente escutou a minha voz, e
a minha voz em seguida alcançou os Seus ouvidos, de tal maneira que,
indignado com a infâmia do crime, violentamente moveu a Sua ira contra
os meus inimigos, que me tinham atacado sem qualquer motivo.
Ora, não foi nada pequeno o suplício que para mim tomei por causa
do crime e impureza deles, e não foi apartado da vista dos homens, por
forma a poder dissimular-se, mas terrível e fatal, e executado diante dos
olhos de todos, e revestido de características tão atrozes que causou
pasmo a inúmeros mortais. Com efeito, assim como não houvera na vida
corrente nenhum crime maior (porquanto uma pureza e justiça sem igual
fora transgredida com tão grande injustiça), da mesma maneira a justiça
divina exigia que o suplício estabelecido para tão monstruoso crime,
tanto pela grandeza como pelo valor de exemplo, se avantajassem em
120 D. JERÓNIMO OSÓRIO
fazes que a minha passada seja firme e larga, para que os meus pés não
cambaleiem nem caiam. Fortalecido pelo Teu divino poder, alcançarei
a vitória em todas as guerras; perseguirei os meus inimigos entregues
à fuga e não cessarei de acutilá-los até exterminá-los por completo.
Matá-los-ei e não poderão levantar-se e prostrados por terra facilmente
os hei de calcar com os meus pés. De facto, cingiste-me com invencível
fortaleza para eu pelejar e por completo derrotaste os meus contrários.
Os meus inimigos diante de mim entregaram-se à fuga; despedaçarei os
meus adversários e, algo que é o maior de todos os males, de maneira
alguma encontrarão qualquer remédio nas suas desgraças. É que, ainda
que, perdendo a confiança nos recursos humanos, com enorme empenho
se decidam a pedir a ajuda divina, será baldado o seu esforço em rogar
o socorro de Deus. Com grandes brados proclamarão os males com que
foram cercados: todavia não verão ser-lhes prestada qualquer ajuda; hão
de orar, não a deuses falsos, mas ao Deus verdadeiro, que nunca rejeita
as preces e rogativas dos suplicantes: e mesmo assim o próprio Senhor
supremo, cuja infinita misericórdia amiúde afasta as desgraças dos infelizes,
há de votar a desprezo as preces deles. É que nunca perdoa àqueles que
se obstinam no crime que empreenderam. Logo, quando recusa o perdão
aos que com incessantes rogos e até com prantos O imploram, de sobejo
fica manifesto que não se separaram do pecado aqueles que contra si
incitaram Deus, tal como acontece aos meus inimigos que, nem atribulados
por tão grandes desastres, quiseram desistir do ódio ao meu nome. Por
conseguinte, hei de espalhá-los por diversas regiões, como pó que o
vento dispersa, e despedaçá-los, como a lama das praças. De feito, uma
vez que ímpia e sacrilegamente se desligaram do meu senhorio; uma vez
que não quiseram voltar a cumprir o dever, nem atribulados por tamanhas
desgraças; uma vez que, possuídos por cruel ódio, sempre recusaram as
minhas sanções; finalmente, uma vez que moveram imperdoável guerra
à minha lei, o direito divino requer que não só não sejam por mim
socorridos, mas também desabem e se arruínem totalmente aniquilados
pelas minhas forças.
Seria certamente uma desgraça digna de dó e uma grande diminuição
de poder penosa de suportar, se Tu, Senhor, não reparasses este dano com
proveitos assaz grandiosos. Com efeito, arrancar-me-ás do meio da rebelião
deste povo ingrato e far-me-ás príncipe e imperador de inumeráveis
povos, que antes tinham desconhecido as Tuas leis. Povos, que não me
deveram quaisquer benefícios, que servissem para a eterna salvação, e
que não receberam quaisquer ensinamentos que lhes dessem notícia do
meu nome, assim que aos seus olhos resplandeceu o brilho celestial e aos
seus ouvidos foi comunicada a lei da salvação, de repente ficaram com
as almas transformadas e [180] com fé extraordinária submeteram-se a
128 D. JERÓNIMO OSÓRIO
mim; os filhos estrangeiros traíram a opinião dos seus, uma vez que com
espírito alevantado e livre se apartaram dos seus dirigentes, para com
inflamado zelo me servirem: algo que de certo eles não puderam levar a
cabo sem uma espantosa transformação das suas almas. É que os povos
estrangeiros, uma vez que se lembravam de que tinham consumido a vida
mergulhados em infâmias e torpezas, tomados simultaneamente de pejo
e arrependimento, puseram termo às suas indignidades e no interior das
suas almas aplicaram-se a, com extraordinária firmeza de ânimo, pregar
a cruz com as suas obras.
Que seja eternamente louvado o Senhor, invencível amparo da
minha vida; e que seja celebrado por toda a eternidade dos séculos
com o pregão da Sua imensa virtude; Ele que produziu e aumentou a
grandeza da salvação, da qual quis que eu fosse o autor e responsável,
quando chamou os povos dos confins da terra para a comunhão
com Ele. É certo que violentamente se vingou do crime dos que não
quiseram aceitar o meu reino; e em lugar deles mui facilmente ajuntou
inúmeros povos sob o meu mando e direção. Livrou-me dos meus
adversários e, para me proteger dos meus cruéis inimigos, colocou-
me num altíssimo e elevadíssimo lugar; com a Sua defesa guardou a
minha vida da violência do desumaníssimo tirano, que se empenhava
em destruir-me. Por isso apregoarei os Teus louvores entre os Teus
povos, Senhor, e com meus cânticos elevarei aos céus o Teu nome. É
que com muitas mercês e ornamentos acrescentaste a prosperidade do
Teu rei e protegeste a David, Teu Cristo, com incessante misericórdia,
pois não quiseste que a sua semente fosse jamais em tempo algum
excluída da Tua misericórdia, porquanto dele se propagou com
linhagem divina.
SALMO 18
(19 para os Hebreus)
Os céus publicam a glória de Deus.
SALMO 19
(20 para os Hebreus)
O Senhor te ouça no dia da tribulação.
SALMO 20
(21 para os Hebreus)
Senhor, o rei se alegrará na Tua fortaleza.
[188]
[188]
SALMO 21
(22 para os Hebreus)
Deus, Deus meu, olha para mim: porque me desamparaste?
(porquanto por Tua decisão não lhes foi permitido que a dividissem do
mesmo modo), submeteram-na a sorteio, para que o único a levá-lo fosse
aquele a quem calhasse o lance do dado. Ora, desta forma se ocupavam
dos meus pertences, para que se tornasse manifesto que os espíritos de
todos não tinham qualquer confiança na minha salvação.
Por isso agora, ó Senhor, ao tempo em que os inimigos pensam
que hão de conseguir a vitória, arma-Te com o vigor invencível da Tua
virtude; e mostra que não existe nenhuma força capaz de fazer frente
ao Teu poder, uma vez que até derrota a morte, que tudo destrói. Ora,
isso poderá ver-se claramente quando, estando eu morto e sepultado,
me chamares de novo à vida. É que Tu és a minha vida e a minha
força. Por isso, se não Te afastares de mim, nem a minha vida poderá
extinguir-se, nem a minha força debilitar-se. Portanto, dá-Te pressa
em ajudar-me e põe diante da vista e dos olhos dos homens o poder
da Tua virtude infinita, para que renasça a religiosidade quase extinta
de alguns. Liberta a minha alma, que unicamente confia na Tua ajuda,
liberta-a da mortífera espada, isto é, da tirania de Satanás; arranca-me
das fauces do leão e dos chifres dos unicórnios, que furiosamente contra
mim arremetem, a fim de enfurecidos acabarem com a minha vida. É
que os inimigos do género humano, que com a máxima crueldade me
perseguem, a mim que sou o defensor do género humano, adotam a
impudência do cão raivoso, a truculência do terrível leão e a violência
do fortíssimo unicórnio, a fim de não apenas me matarem, mas também
provocarem a ruína sempiterna da lembrança do meu nome.
Mas deixemos os gemidos e calemos os queixumes: o socorro está
presente; pôs-se termo à dor; a luz da glória suprema vem nascendo.
Portanto, de tal maneira os inimigos estão longe de realizarem aquilo em
que se empenham que até sou eu mesmo quem há de derrotar o exército
deles e matar a própria morte, para que, em seguida, entre aqueles que
se juntarem ao meu nome, não exista nenhum que se atemorize com a
violência da morte. Por isso, ó supremo Senhor, [191] quando obtiver
um ilustríssimo triunfo sobre os vencidos inimigos, então anunciarei o
Teu nome aos meus irmãos e Te exalçarei com louvores sempiternos no
meio da assembleia.
Com razão chamo meus irmãos àqueles a quem Tu, Pai santíssimo,
fizeste Teus filhos. Ó vós, todos os povos que até aqui vos mantivestes
hostis à sagrada religião, e que, induzidos pela mais completa loucura
e demência, transferistes para falsos e vãos simulacros a glória devida
a Deus, animai-vos com a firmíssima esperança de uma tão grande
felicidade. É que para Deus não existe qualquer discriminação de
raça ou de condição. Portanto, através de mim a todos convida para
participarem da glória imortal. De facto, às riquezas divinas a inveja
156 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 22
(23 entre os Hebreus)
O Senhor me governa [e nada me faltará].
[194]
de tal maneira que nem me arreceio das suas ameaças nem sinto medo
das arremetidas contra a minha fraca natureza. É que junto forças com as
quais mui facilmente desprezo as suas tentativas, porquanto o alimento
celestial fornece um vigor e robustez celestiais, e o repasto divino fortifica
a alma com um denodo divino, de tal maneira que tem na conta de coisa
nenhuma todos poderes e hostes adversárias.
Além disso, derramaste unguento sobre a minha cabeça, pois encheste
o meu entendimento com a graça do Espírito Santo, para que, com esta
abundantemente ungido, ele brilhe e espalhe ao longe suavíssimos
perfumes e seja conduzido até às sempiternas deleitações pela fragrância
do supremo perfume. Que direi sobre a doçura daquela taça transbordante,
com que alegras a minha alma e a abrasas no desejo da imortalidade?
Enfim, por todos os modos e durante todos os dias da minha vida me
cumularás com a Tua bondade e compaixão, até que eu alcance os foros
completos de cidadão da Cidade celestial e habite na Casa do Senhor,
obtendo a imortalidade da glória.
[194]
SALMO 24
Do Senhor é a terra e tudo o que a enche.
seu senhorio e mando supremo. Algo que não deve parecer espantoso, uma
vez que ele mesmo criou a terra inteira. Por conseguinte, é conforme com a
razão que quem é o criador seja também o senhor. Ora, ele desde o princípio,
ao criar tudo e cobrir com águas a terra, ordenou que as águas corressem
para um lugar e que a terra se erguesse de entre as águas marinhas e as
dos rios, e abundantemente forneceu produtos e alimentos para alimentar
não apenas os homens, mas também todos os seres vivos. Ora, hoje, embora
a terra se encontre rodeada de água e por todas as partes excluída dos
incessantes movimentos do ar que a cinge, a tal ponto se encontra firme
que de forma alguma é arrancada do lugar que lhe foi destinado. Ora, este
nosso Senhor, estabeleceu a religião a fim de não só através das criações
naturais, mas também de ensinamentos celestiais conduzir o género humano
ao conhecimento dele, e a si mesmo dedicou um monte, para consagrá-lo
com um santíssimo templo, a fim de que os homens, depois de ensinados
com ritos muito santos, fossem incitados ao desejo da celestial e sempiterna
Cidade. Na verdade, não pretendeu que os entendimentos humanos se
detivessem no monte terreno e no templo edificado por mãos de homens,
mas quis também que com incessante meditação refletissem sobre o ser de
que era símbolo aquele monte e templo que viam diante dos olhos.
Oh bem-aventurados aqueles aos quais há de ser concedido ascenderem
àquelas celestiais moradas! Quem há de ascender àquele monte do Senhor,
resplandecente com a eterna claridade da luz divina e aformoseado com
a grande multidão e afluência dos moradores do céu? Quem há de aspirar
com a profundidade do entendimento ao templo santo do Senhor, no qual
Ele sempre habita não em sombra, mas deveras? Não certamente [195] os
que fazem mal e perpetram o crime; não os infamados pelas torpezas; não
os homens malévolos e que pecam contra Deus, mas os que se abstêm
da injustiça e de fazer mal e apresentam uma alma de tal modo pura que
não maquinam no seu pensamento mal algum, os que de forma alguma
transgridem a promessa pela qual se comprometeram ao perpétuo zelo da
lei divina e com embustes não enganam os homens que confiam no respeito
sagrado por um juramento feito. Estes serão liberal e copiosamente cumulados
com os benefícios da misericórdia divina e obterão os justíssimos prémios
dos seus merecimentos. Com efeito, o ótimo Pai e Senhor com o mesmo
cuidado satisfaz à Sua misericórdia e à Sua justiça. À misericórdia certamente,
porque acolheu na Sua graça aqueles contra os quais estava irado pelas suas
indignidades e fortaleceu-os com o Seu espírito, para que empreendessem
obras de grandíssima nobreza; e à justiça, porque condecorou a virtude
divina com o galardão da glória divina e com ornatos divinos, e com mais
cabal fidelidade levou a cabo aquilo que garantira haver de cumprir.
Os que assim regulam a sua existência e governam os seus atos de tal
modo que nunca se desviam, quer para um lado quer para o outro, da lei
166 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 24
(25 para os Hebreus)
A Ti elevei a minha alma.
Com estas palavras o santo varão não apenas roga a Deus pela
sua própria salvação, mas também nos instrui nas piedosas preces
e mostra muito bem de que maneira, quando caímos, devemos ser
encorajados. Diz:
Senhor, se reconhecer a debilidade da minha natureza e ponderar
a queda e corrupção da minha alma, toda a minha esperança há de
enfraquecer-se e desvanecer-se, mas, quando com o meu entendimento e
razão abarco a grandeza da Tua bondade, de novo me reanimo e recupero
as forças para com elas rechaçar todos os males. Por conseguinte, em
Ti sempre hei de colocar com a máxima determinação a esperança de
salvação e desse modo estou confiante em que não serei manchado por
nenhum labéu de infâmia e desdouro. É que os inimigos não me hão de
insultar nem acusar-me de desatino por ter-me apoiado exclusivamente
na Tua ajuda, porquanto ninguém jamais ficou logrado por ter depositado
em Ti a esperança, porque nem o Teu poder pode enfraquecer-se nem
a esperança em Ti malograr-se. Por conseguinte, nunca serei objeto de
zombaria dos meus inimigos, pois não há de corar de pejo ninguém que
repouse na ajuda do Teu santíssimo nome, porque nunca ficará desprovido
do Teu socorro. Por conseguinte, quem são os que coram de pejo? Aqueles
que, desprezando-Te, obtiverem para si apoios totalmente vãos.
Portanto, todo o meu sistema de vida, em síntese, apontará no sentido
de ter os meus olhos postos unicamente em Ti; agradar-Te; nunca ser de
Ti desviado; a Ti me unir mediante um santíssimo vínculo de amor. Isto
só pode realizar-se se eu for um mui escrupuloso respeitador da Tua
lei. Com efeito, só ligas a Ti aqueles que acatam os Teus mandados, e
repeles da Tua vizinhança os que recusam o senhorio da Tua lei. Daqui
se segue que toda a causa da minha salvação e dignidade assentam no
170 D. JERÓNIMO OSÓRIO
ardente zelo da lei. Mas, quem poderá observar a Tua lei, imerso em
tão grande corrupção e fraqueza da natureza? Certamente que ninguém,
a não ser aquele a quem Tu Te moveres a ensinar e instruir e com a
Tua graça deres forças para cumprir os deveres da piedade e para com
perseverança rechaçar os ardis dos inimigos. Por conseguinte, ó Senhor,
mostra-me os Teus caminhos, e ensina-me as Tuas sendas, que se cifram
no perfeito zelo da Tua lei. Leva-me a aprender a verdadeira doutrina
da santidade e da justiça e ensina-me a não me desviar do caminho nem
a mofinamente me precipitar por erro do entendimento. Não me apoio
em quaisquer obras minhas; em mim nada existe de que me ufane; não
existe nenhuma razão de justiça que me permita pretender que estás em
obrigação para comigo, mas todos os fundamentos da minha demanda
tomo-os da Tua misericórdia. É que Tu és o meu Deus, [197] a quem
exclusivamente adorei com alma pura e isenta; Tu és a minha salvação,
que em muitas situações me desvia da perdição; só em Ti tive sempre
depositada toda a esperança, porque nunca me faltaste e tive a experiência
que como eram vãos os restantes socorros da vida.
Não peço que lembres as minhas obras, as quais em si mesmas ou
não têm qualquer valor ou, se têm algum peso, não é certamente tão
grande que apoiando-me nelas eu deva pensar que desempenhei em
todos os aspectos a função de servo fiel; sobretudo, tendo em conta
que cometi inúmeras indignidades que de forma alguma poderiam ser
expiadas com a escrupulosa realização de quaisquer cerimónias sagradas
ou equitativamente compensadas mediante serviços diligentemente
prestados. Por conseguinte, que hei de pedir-Te para que Te lembres da Tua
misericórdia e compaixão, de que usaste no princípio do género humano
em relação aos que Te suplicaram? Apaga, ó Senhor, da Tua memória a
lembrança das infâmias e pecados que cometi, por ser jovem, devido à
fraqueza do meu discernimento e à grande força do desatino. Apoiando-
me na grandeza da Tua misericórdia, a Ti confiantemente me dirijo e
suplicantemente Te rogo que Te lembres de mim e, ao protegeres-me e
por mim velares, atendas não a mim, mas à Tua bondade. Por que razão
não hei de reclamar ao meu Deus a dívida, que Ele mui estreitamente
contraiu não comigo, mas com a Sua bondade e justiça?
É que Deus é bondoso e reto e por isso àqueles que se desviam, afasta-os
do erro com os Seus ensinamentos e torna a conduzi-los ao bom caminho.
Deste modo, não só atende à bondade, ao não serem os delitos impedimento
para compassivamente atrair até Si os homens e ensinar-lhes o caminho e
doutrina da salvação, mas também tem em consideração a justiça, ao mostrar
que a entrada no céu deve franquear-se não a outros senão àqueles que
seguem o reto caminho, e por isso ornamenta primeiro os homens com os
presentes da justiça antes de liberalmente lhes oferecer os prémios da mesma.
172 D. JERÓNIMO OSÓRIO
Todavia, nem todos acolhem este tão divino benefício. Não porque a suprema
e eterna bondade seja invejosa e deseje manter escondidas as suas riquezas,
mas porque muitos, ensoberbecidos por erros pestilenciais e envaidecidos
pela falsa aparência de um qualquer esplendor, ensandecem e tornam-se
soberbos; esquecem-se de Deus; desprezam e rejeitam os Seus benefícios.
Por consequência, só os que se prostram diante do sólio da divina
majestade; os que pedem perdão pelos crimes; os que se sentem tão
arrependidos pela impureza em que incorreram que de forma decidida se
dispõem a adotar um novo sistema de vida; finalmente, os que inteiramente
se confiam a Deus, ensinados pelos Seus conselhos, entram no caminho
da justiça, por forma a assim acabarem por alcançar, mediante a clemência
e bondade do mesmo Senhor, a oferecida recompensa da justiça. É que
o Senhor é guia para os humildes; é mestre de justiça; não recusa os
seus ensinamentos a ninguém que queira a Ele sujeitar-se; e com a maior
misericórdia transmite os Seus ensinamentos aos homens que sabiamente
se humilhando e prostrando se decidem a fazer depender o seu sistema
de vida não de si mesmos, mas de Deus.
Ora, que maior loucura pode imaginar-se do que aquela por culpa da
qual os mofinos homens, desprezando o caminho do Senhor, se afoitam
por vias mergulhadas em trevas, de maneira a precipitarem-se na eterna
perdição? De facto, todos os caminhos do Senhor estão pavimentados pela
misericórdia e firmados na verdade; na misericórdia porque, sem estar
obrigado por quaisquer anteriores merecimentos, larga e generosamente
ofereceu aos homens o divino benefício da justiça; e, por outro lado,
na verdade, porque cumpriu plenamente a promessa [198] que fizera.
Com efeito, garantira que, àqueles que com fé viva e vigorosa a Ele
regressassem, haveria de torná-los quinhoeiros da luz divina. Mas, quem
são os que possuem uma ventura tão grande? Porventura todos os que
proclamam a sua religião com palavras e discursos? Certamente que não,
mas sim aqueles que se mantêm firmes no acordo assinado com sangue
com o próprio santíssimo Senhor e prestam todo o crédito aos Seus
testemunhos e obedecem aos Seus mandados. Mas, por derradeiro, de que
modo há de ser possível que eu mantenha as promessas e não transgrida
a santidade da Tua lei, se não for ensinado e instruído pelo Teu espírito
e revigorado com a Tua força, por forma a não poder ser afastado do
caminho por algum erro nem enfraquecido por quaisquer ataques? Por
outro lado, de que maneira hei de levar ao termo a carreira da justiça,
sob a Sua direção e mando, se for apartado da união com Ele por causa
das minhas indignidades? Por conseguinte, rogo-Te, ó Senhor, por amor
da glória do Teu nome, que só resplandece com toda a claridade e se
ilumina com imensa honra quando ornamentas com as mercês da justiça
homens que saem de faltas notórias e, de infames e impuros, os tornas
174 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 25
(26 entre os Hebreus)
Julga-me, Senhor.
SALMO 26
(27 entre os Hebreus)
O Senhor é a minha luz e a minha salvação: a quem temerei?
Neste salmo, David expõe quão firme é a proteção com que se encontram
protegidos aqueles que se colocaram sob as ordens do Senhor. Tinha, de
facto, sido privado de toda a ajuda humana; rodeado de todos os lados por
ciladas, cercado pelos grandes exércitos de um rei muito poderoso, enleado
por dificuldades sem conto, não se divisava nenhuma esperança de salvação,
não se antolhava escapatória alguma para a desgraça; enfim, tudo ressumava
a mais completa desesperação, quando de súbito a fortaleza divina brilhando
se deu a conhecer e libertou do cerco o santo varão que se encontrava nas
maiores dificuldades. Daqui poderia tornar-se manifesto que não existem
nenhumas forças, nenhuns exércitos e nenhumas maquinações capazes de
arrancar da sua alta posição aqueles que pela fé e amor se uniram com Deus
e se encontram protegidos com a Sua ajuda. De facto, que forças humanas
podem existir que se oponham às divinas? Sabiamente orgulhoso com
este pensamento, o santo varão exulta de alegria e com a maior facilidade
despreza todas as arremetidas dos inimigos, e por isso diz:
O Senhor é uma brilhantíssima luz do meu entendimento e a eterna
salvação da minha alma. Por conseguinte, como é que ao cabo hei de
arrecear-me da ruína e derrota ou da perda e destruição? O Senhor é a
guarda seguríssima da minha vida: portanto, de quem hei de sentir pavor? Os
homens malvados, abrasados em sanha e crueldade, pegaram em armas; os
meus inimigos, ensandecidos pelo penetrante desejo de fazer mal, atacaram-
me: mas estiveram tão longe de levar a bom termo as suas tentativas,
que pelo contrário antes tombaram seriamente derrotados. Se contra mim
levantarem arraiais, o meu coração não [202] tremerá de medo; se a guerra
se atear violentamente contra mim, conservarei a firmeza com confiança no
socorro divino; e depositarei no Senhor solidíssima esperança de vitória.
Por conseguinte, de modo algum abandonarei a minha posição por medo
da morte nem ansiedade alguma perturbará o meu ânimo com quaisquer
cuidados. Por conseguinte, isento de quaisquer inquietações e cuidados,
preocupar-me-ei apenas com uma única coisa; só isso pedirei a Deus; isto
suplicarei com incessantes rogativas: que, postado enfim no Seu eterno
domicílio, goze por toda a eternidade daquela vida bem-aventurada, e veja
claramente a Sua formosura e glória, e, com uma espécie de extraordinário
abrasamento do entendimento, contemple aquele nobilíssimo tabernáculo
no qual construiu para Si uma morada estável e imorredoura.
Ora, para pedir um tão grande bem não enumerarei os meus
merecimentos, mas alegarei a Sua bondade, que me torna confiante. É
que Ele, quando os males por todas as partes me rodeavam, fez-me sair
184 D. JERÓNIMO OSÓRIO
Mas dir-me-ás que em muitas ocasiões eu, com os meus delitos, dei
motivo para que Te apartasses de mim. Reconheço-o, Senhor. Mas, para
que este mal não me acometa mais amiúde, faze com a Tua misericórdia
que eu nunca incorra em ofensa contra Ti. Mostra-me o Teu caminho e
guia o meu espírito pelas sendas da justiça, por forma a que nunca desejo
algum das coisas humanas me transvie arrancando-me aos ensinamentos
da piedade, para que assim, fortalecido com a Tua ajuda, acabe por votar a
desprezo os meus inimigos. É que o respeito indefectível da Tua lei torna
fortes e invencíveis os homens, da mesma maneira que o seu desprezo e o
esquecimento da religião os torna covardes e fracos. Por conseguinte, para
que eu possa vencer os inimigos, grava na minha alma a Tua lei, a fim de
que jamais seja desviado do seu zeloso cumprimento. Não me entregues
ao capricho e crueldade dos meus adversários, que têm como único
empenho a minha perdição; contra mim se levantam com dementada fúria,
e não lutam apenas com a violência, mas também com falsos testemunhos
vivamente se esforçam por infamar o meu nome com o labéu da mais baixa
ignomínia, para que pareça que é justo todo o seu procedimento contra
mim, ao respirarem para minha perdição o crime de uma tirânica violência.
Que seria feito de mim, se não me fortalecesse de modo admirável aquela
esperança mediante a qual tenho confiança que na região dos vivos hei de
ver os bens verdadeiros e eternos do Senhor? Teria acaso podido arrostar
com tão grande número de arremetidas dos inimigos? Atalhar a tão grande
número de ardis e maquinações? Suportar tão grande número de tribulações?
Tolerar tão grande número de ultrajes e baldões? Certamente que não. Mas,
quando penso na brevidade da vida e reflito na inanidade dos bens que se
encontram na existência, concluo que não podem ser bens aquelas coisas
que se encontram misturadas e contaminadas por tão grande número de
males e, depois de se desvanecerem num ápice de tempo, mergulham na
tristeza as almas dos homens, e que não merece prolongar-se uma vida que
se encaminha com tamanha rapidez para o fim e é engolida pela inesperada
violência e horror da morte.
Por conseguinte, devem ter-se na conta de bens, exclusivamente aqueles
que nenhuma calamidade destrói, nem a violência e arremetida da morte
expulsam, nem o longo passar do tempo gasta com o esquecimento, mas
os que duram por toda a eternidade e tornam as almas sempre florescentes
e bem-aventuradas. De modo semelhante, deve considerar-se que vivem
só aqueles que se encontram unidos com a própria vida por um pacto
indissolúvel, cujas forças não se quebrantam, cujos louvores não perecem
e cujas deleitações não se maculam com nenhuma presença da tristeza,
mas hão conservar-se durante séculos infinitos sempre na mesma condição.
Em toda a variedade de situações, é esta a esperança que me consola, de
tal maneira que tenho na conta de coisa nenhuma todos os perigos que os
188 D. JERÓNIMO OSÓRIO
[204]
perversos tramam contra mim. Razão pela qual vos aconselho e admoesto,
a vós que dais muito apreço à vida e à saúde, a que, deixando de parte
tudo o mais, coloqueis toda a proteção da vida em Deus, o qual nesta não
há de abandonar-vos, e na que há de vir há de reservar-vos os sempiternos
prémios de uma espécie de divindade. A virtude debilitada com esta esperança
cobra forças, e o ânimo abatido adquire um invencível vigor e torna-se mais
arrojada de dia para dia. Por conseguinte, olhai para Deus com enorme fé,
e abrasados pela esperança na imortalidade, desprezai tudo o que o comum
dos humanos busca com excessiva sede, por forma a colherdes o fruto da
esperança depositada em Deus e gozardes da sempiterna glória.
[204]
SALMO 27
(28 entre os Hebreus)
A Ti clamarei, Senhor.
David mostra que Deus nunca deixa sem fruto a oração dos homens
piedosos. É que, embora no princípio do seu discurso mostre que se
encontra assoberbado por incomodidades, e angustiado e vivamente
atribulado por sofrimentos, todavia no final solta palavras indicadoras de
imensa alegria e dá as maiores graças a Deus, e com brilhante e magnífico
elogio encarece a grandeza da misericórdia divina. Por conseguinte, a
fim de manter este desígnio também neste lugar, diz:
A Ti, Senhor, bem protegido baluarte da minha vida, clamo com ardente
voz e paixão; a Ti peço, o mais que posso, que os Teus ouvidos não fujam
aos meus rogos, e que não me mantenhas durante mais tempo suspenso
do Teu silêncio e abalado por enorme inquietação. É que, se não me
escutares, se, quando a desgraça espreita, não me ofereceres ajuda, serei
semelhante àqueles que, abandonados pelo Teu socorro, tombam nas
profundezas da terra e na região da sempiterna infelicidade. Na verdade,
uma vez que a minha vida assenta na Tua bondade, segue-se como forçosa
consequência que, se me desprezas, sou arrancado da vida e renuncio
à esperança de salvação e passo a fazer parte do número daqueles que
foram mergulhados nas trevas sempiternas. Por conseguinte, para que
não incorra em tão grande desgraça, ó clementíssimo Senhor, atende às
minhas rogativas. Na verdade, não falo com frouxidão e desprezo, pois sei
que Tu nas mais importantes matérias abominas a frouxidão e desprezas
o pedido de uma alma negligente e remissa. Pois os que pedem a Tua
ajuda com frouxidão dão prova de que nem os comove a justa dor do
remorso nem depositam na Tua bondade uma firme esperança. Para não
cometer esta torpe infâmia, brado com todas as forças do meu espírito
190 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 28
(29 entre os Hebreus)
Trazei ao Senhor, ó filhos de Deus.
tudo isso assacam ao capricho da fortuna, que fingem ser uma deusa dotada
de poder supremo, conquanto a privem de deliberação, de tal maneira
que em todas os sucessos da existência humana os homens não podem
atribuir aos seus crimes, mas sim ao capricho da todo-poderosa fortuna,
a grandeza da desgraça que os oprime. E de tal modo se obstinam nesta
explicação que nenhumas desgraças os levam ao arrependimento e não
abominam as faltas de que são culpados. Ora, de tão grande demência e
loucura estão muito longe os que exclusivamente se entregam à piedade
e com entendimento puro e casto adoram o entendimento divino, os quais
estão persuadidos de que em toda a natureza não se dá movimento algum
que não tenha sido provocado pela vontade divina, ou para inferir castigo
aos infames ou pelo menos para atemorizar os que podem ser curados e
restituir-lhes a saúde.
Isto a tal ponto é verdade que cumpre pensar-se que tempestade alguma
se desencadeia sem deliberação d' Ele. E por isso, consoante é de crer,
tendo-lhe uma medonha tempestade e procela, abalando com imenso
temor o espírito dos homens, trazido isto à lembrança, e havendo David
compreendido que daí se lhe oferecia matéria para pregar o poder de
Deus, não quis desperdiçar a possibilidade de executar muito bem uma
tão santa função. Por conseguinte, aconselha a todos que com o máximo
desvelo se entregam à piedade, aos quais chama filhos de Deus, a que
não coloquem bezerros, bodes e cordeiros no altar de Deus, segundo o
costume da lei antiga, mas que ofereçam as vítimas sacrificiais da nova
e eterna aliança, que consistem no ardentíssimo zelo da piedade, na
incessante proclamação da bondade de Deus e em celebrar os Seus juízos
com perpétuas orações. Por isso, diz:
Ó varões de Deus, que acudistes aos sacrifícios da divindade em cuja
família, por graça Sua, entrastes por adoção: oferecei ao Senhor, não
sangue de quadrúpedes, nem gordura de almalhos, nem vítimas sacrificiais
que em bosquejo e símbolo representam a verdadeira santidade e justiça,
mas sacrifícios e presentes os mais dignos da Sua majestade: ou seja, a
confissão da glória suprema e da invencível virtude. Oferecei ao Senhor
o louvor da glória e celebrai o Seu nome com a mui alegre melodia de
cântico harmonioso. É Ele quem com os vapores forma as nuvens, e com
densíssimas águas troveja: o Deus que se avantaja por Sua imensa glória
troveja na abundância e bastidão das muitas águas. A Sua voz, provida de
imenso vigor, abala a terra inteira e aterroriza com um medo profundo o
género humano. A Sua voz, que ressuma extraordinária e eterna glória,
altera ao cabo os costumes e instituições dos homens. A voz do Senhor
racha e espalha os altíssimos cedros; o Senhor quebra e destrói os cedros
do Líbano. As árvores, que se apoiam em profundíssimas raízes, são
arrancadas pela voz do Senhor e, à semelhança de vitelos, afastam-se
196 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 29
(30 entre os Hebreus)
Eu Te glorificarei, Senhor.
[210]
[210]
SALMO 30
(31 entre os Hebreus)
Em Ti, Senhor, esperei,
não permitas que eu seja eternamente confundido.
SALMO 31
(32 entre os Hebreus)
Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas.
de ter sido manchado pelos pecados, foi acolhido por Deus em graça e
absolvido de toda a culpa, de forma a logo a seguir gozar do fruto da
justiça e por inteiro se moldar à imagem da virtude divina. Ora, este
benefício alcançam-no o remorso sentido pelo pecado, a esperança
depositada na graça de Deus e a oração humilde e devota, mas de maneira
tal que a santidade de vida não deva ser atribuída à natureza e ao nosso
desvelo, mas à grandeza da clemência de Deus. – Por conseguinte, a fim
de esclarecer este ponto, David diz:
Oh, afortunado aquele que exorou o perdão dos pecados, a cuja infâmia
serviram de cobertura os costumes de uma vida renovada, de tal sorte que
a totalidade dos seus crimes se desvanece de diante dos olhos logo que
trajar as vestes da justiça! Oh, afortunado aquele varão ao qual Deus não
lança em rosto o pecado! Seguramente porque, por Sua graça, o pecado foi
por completo expungido, pois, se o pecado tivesse permanecido aderido
às almas após o perdão ter sido concedido, então decerto que teria sido
considerado crime e seria chamado a juízo. Pelo que é evidente que, quem
se acha livre de censura, acha-se livre de pecado. Mas qual é, ao cabo, a
razão pela qual aquele que fora por inteiro coberto de defeitos é agora
ataviado com os ornamentos divinos da justiça? – É porque não se aproximou
de Deus momentaneamente e de modo fingido, [215] com a tenção de, em
alguma maneira, esquivar o castigo, mas converteu-se com toda a sua alma.
Por isso não simulou honestidade, não fingiu santidade, não se empenhou
em encobrir os enganos do seu íntimo sob uma falsa aparência de piedade,
mas, sem qualquer rebuço ou ardil, confessou as suas faltas.
Como quer que eu, após cometer pecado, tivesse diferido esta obrigação
e não tivesse querido confessar o crime, recebi este golpe da parte da
severidade de Deus ofendido, e tão grande dor foi infligida aos ossos
(como a de quem enferma de gota) que era obrigado a soltar plangentes
vozes durante o dia inteiro. Por isso, eu, que não deplorei a ferida do
pecado infligida à alma – ferida tão merecedora da minha lástima –,
vencido pela dor de uma doença muito mais fácil de suportar, lancei
gritos muitíssimo pungentes. É que então dei-me conta de quão grande
ruindade havia no crime e percebi que os males também recaíam sobre
o corpo, pois a Tua mão inferiu uma ferida gravíssima ao meu corpo e,
quer de dia, quer de noite, não afrouxou nem um ponto no rigor. Por
isso, de tal modo se emurcheceu a robustez de um corpo vigoroso que
semelha agostada pelas solheiras do Estio. Oh matéria que tanto merece
a maior ponderação!
Ao jazer no leito, atribulado a este ponto, não julguei que devia
chamar outro médico senão precisamente aquele por quem tinha sido
ferido e, mediante a pungentíssima confissão do pecado, aplaquei a
sua ira contra mim. – Pus diante dos Teus olhos, Senhor, a minha má
218 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 32
(33 entre os Hebreus)
Exultai, ó justos, no Senhor.
SALMO 33
(34 entre os Hebreus)
Bendirei o Senhor em todo o tempo.
David, com medo da morte que Saul por todas as vias se esforçava
por inferir-lhe, precipitou-se em outra situação de perigo de morte. É
que dirigiu-se para a terra dos Palestinos, inimigos imemoriais do povo
hebreu, aos quais ele tinha derrotado em muitas batalhas, mas era tão
grande a desumanidade de Saul que David confiava em que mais facilmente
preservaria a sua vida entre os adversários do que junto do rei a quem
estava ligado por estreitíssima união e a quem prestara numerosos e
importantes benefícios. Daqui se conclui que não pode imaginar-se
nada de mais terrível do que a inveja, pois suprime todos os laços da
natureza; destrói os vínculos legais; viola a santidade dos pactos; desperta
ódios monstruosos e penetrantes; e, por derradeiro, incita os irmãos a
mutuamente se destruírem. Tendo-o, todavia, os Palestinos reconhecido,
David sentiu receio de que os inimigos procurassem matá-lo, lembrando-
se das derrotas mortíferas que lhes infligira. Por conseguinte, a fim de
desviar o perigo, fingiu-se de louco, de maneira a que os inimigos, diante
da aparência de sandice, votassem a desprezo aquele cuja valentia tinham
temido. Tendo sido levado como louco à presença do rei dos Palestinos,
este ordenou que, como louco, o expulsassem da corte. É provável que
não considerasse decoroso que o lugar que diante dos reis deveriam
ocupar os sábios, fosse ocupado por muitos ignorantes e dementes. E por
isso David, tendo desta maneira passado por um perigo nada pequeno,
dirige a Deus, graças a cuja ajuda fora arrancado das mãos dos inimigos,
as seguintes palavras de agradecimento:
Em toda a variedade de situações hei de apregoar os louvores do Senhor
com incessante elogio e nunca o Seu nome estará afastado da minha alma
e da minha boca. É que as coisas favoráveis procedem da Sua bondade;
232 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 34
(35 entre os Hebreus)
Julga, Senhor, os que me fazem dano.
David, ao ser, sem qualquer motivo, assoberbado pelo ódio dos invejosos
e perseguido pelas armas de Saul, pede a Deus que empreenda a guerra,
porquanto com armas humanas ser-lhe-ia impossível vencer uma guerra
implacável e desumana. Deste modo mostra claramente com quão grande
cuidado vela Deus pela salvação e fama dos justos, a tal ponto que, por causa
deles, Ele mesmo, por Si, faz guerra contra os inimigos dos justos e com
terríveis suplícios castiga as injustiças perpetradas contra os bons e, quanto
são maiores os avanços que cada um faz no zelo da justiça, tanto por causa
deste mais vigorosamente se empenha na guerra e mais graves são as penas
com que pune os inimigos dos homens piedosos. Portanto, uma vez que a
justiça de nenhum homem santo pode ser de alguma maneira comparada
com a justiça de Cristo e que a tal ponto foi vexado e atribulado pelos
Judeus que em muito os seus tormentos superaram os de todos os homens
santos, sucedeu que jamais nenhum povo foi mais desamparado da ajuda
divina, nem atacado por guerra mais vigorosa, nem exposto a castigos mais
rigorosos, nem atribulado por maiores suplícios, nem consumido por uma
desgraça e devastação mais duradouras, todavia de tal forma que a mão do
Senhor não desistiu de desferir os golpes, mas ainda se aplica a ferir. Por
conseguinte, dado que David representa em muitas passagens a figura de
Cristo, cumpre-nos que recordemos os episódios da sua vida de uma forma
tal que, do mesmo passo, nos leve a pensar com muito mais intensidade
e atenção em Cristo. Portanto, escutemos as rogativas de David, ou, para
dizê-lo mais corretamente, de Cristo. Ora, é assim que ele fala:
Põe-te em campo, Senhor, contra aqueles que cruelmente me atacam;
peleja contra aqueles que me assaltam com guerra sacrílega e ânimo hostil.
Não se trata de uma guerra de somenos nem que deva ser empreendida
com um esforço mediano, mas tem de ser levada a cabo com o máximo
empenho e com todas as forças. Por isso, embraça o escudo para afastares
de mim os dardos dos inimigos. Pega na lança para lhes infligires uma
ferida mortal e, mediante espantosas façanhas valorosamente realizadas
pelas armas, dá-Te a conhecer para assim me prestares ajuda eficaz.
Desembainha a espada; lança-Te contra aqueles que me perseguem;
intercepta-lhes o caminho em que tentam arrojar-se sobre mim e mostra por
todos os modos que me ocasionaste a salvação. Ruborizem-se de vergonha
e recaia um enorme desdouro sobre todos os que atentam contra a minha
existência: algo que sucederá quando combaterem em vão, quando não
conseguirem nada daquilo em que se empenham, quando virem que é
ataviada com ornamentos divinos a glória daquele que se esforçam por
240 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 35
(36 entre os Hebreus)
Disse o injusto entre si mesmo que ele delinquiria.
De tal maneira vivem muitos que proclamam que estão ligados à religião
que a sua perversidade facilmente lhes refuta as palavras. De facto, pecam
muitíssimo, de tal maneira que neles não existe alguma debilidade corrente
e comum que deva ser atribuída a fraqueza da natureza, mas por tal forma
se entregam a toda a sorte de paixões e monstruosidades que nenhum
temor de Deus tem eficácia para deixarem de torpemente manchar a sua
vida com toda a espécie de abomináveis crimes. De facto, os que olham com
angustiado receio para o julgamento dos homens, como é que não temeriam
muito mais a força de Deus, se tivessem assentado consigo mesmos que
existe um Deus, que olha para os acontecimentos humanos e tudo governa
com a suprema inteireza da Sua lei? Mas sucede que ou não acreditam que
Deus existe ou supõem que Ele despreza completamente e não se preocupa
com os negócios humanos, e, por este motivo, quando ajuntam forças,
precipitam-se às cegas e perpetram abomináveis crimes, e cinicamente
246 D. JERÓNIMO OSÓRIO
cumprires a Tua palavra, uma vez que prometeste que para os pios seriam
preparadas no cimo do céu moradas tranquilas. É que nunca a Tua fé
se separa da união com a misericórdia nem a misericórdia se aparta da
santidade da fé. A Tua justiça, como os montes muitíssimo elevados que
nenhuns abalos conseguem mover da sua firmíssima base, funda-se em
eterna firmeza, de tal maneira que, embora por vezes os homens pensem
muito diferentemente, ninguém pode escapar à sua ação; os Teus juízos
encontram-se mergulhados nas mais profundas trevas. Na verdade, tão-
pouco a razão humana alcança pela reflexão as causas pelas quais permites
que os homens santos sejam atribulados pelas provações e os perversos
possuam abundância de riquezas, sendo certo que com tribulações pões
à prova os bons para os galardoares com muito mais elevadas mercês e
ornamentos; e reservas para os tormentos sem fim os perversos que, devido
à sua obstinação, não querem curar-se e usam para aumentar o pecado
o tempo que lhes foi concedido para o arrependimento; e, finalmente,
tudo regulas em conformidade com o que vês que se ajusta à glória
dos Teus. Com efeito, existe alguma coisa que esteja excluída do fruto
da Tua imensa bondade? De facto, não alimentas e sustentas apenas os
homens, a fim de conduzi-los por fim ao conhecimento de Ti, mas também
por toda a parte ofereces alimento aos jumentos, para que estejam ao
serviço das forças humanas, e do mesmo modo atendes à sobrevivência
de todos os seres vivos, em conformidade com as necessidades de cada
um. Por conseguinte, não é de espantar se toleras os homens ímpios,
uma vez que também eles estão ao serviço da glória dos Teus e com os
seus perversíssimos intentos tornam brilhante a virtude daqueles que
mui maldosamente odeiam.
Todavia, cumpre que se pondere que, sendo certo que tu também
pretendes que se salvem os homens mais perversos e, com benefícios,
dentro do possível os atrais para Ti; sendo também certo que velas pela
vida dos brutos animais: quão grande não há de ser aquela bondade com
que hás de abraçar os Teus? De certo não poderá expor-se por nenhumas
palavras a imensa grandeza daquela suprema bondade com que abraças
aqueles que inteiramente dependem dela. É que, assim como as aves,
preocupadas com a vida das suas crias, com as asas estendidas as protegem,
na medida do possível, do ataque de alguma ave de rapina, do mesmo
modo Tu, com os extensos e mui derramados socorros da Tua compaixão,
manténs seguros de qualquer ataque dos adversários todos os homens que
repousam sob a sombra da Tua bondade. E não apenas os defendes com
invencível proteção, como também os inundas com a maravilhosa alegria
do Teu espírito. Com efeito, da abundância da Tua morada jorram as águas
perenes da suprema deleitação, que, [228] embriagando os homens santos,
enchem de contentamento o íntimo do seu peito, para o qual encaminhas
250 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 36
(37 entre os Hebreus)
Não queiras imitar os malignos
[nem invejes os que praticam iniquidade].
esse estado, a partir do qual lhes é possível fazer depradação nos bens alheios
por forma a, ficando possuidores das maiores riquezas, aspirarem à tirania,
cuidam que tal acontece porque esses homens carecem ou de inteligência
ou de diligência ou de determinação. Todavia, o quanto são inclinados a
este modo de pensar demonstra-o a avaliação mediante a qual olham com
admiração para aqueles que através de ruins manhas adquiriram as maiores
riquezas, e o considerarem-nos homens diligentes, vigilantes e fortes, muitíssimo
merecedores das mais elevadas honrarias. Com efeito, são de parecer que a
justiça assenta bem em pessoas pusilânimes e de ânimo apoucado, às quais não
é lícito esperarem impunidade, devido à sua fraqueza, ao passo que crêem que
a injustiça é própria das almas mais arrojadas e ambiciosas, que são capazes
de esquivar-se aos castigos das leis, ou mediante a sua inteligência, ou graças
a favores ou ao seu poder, [229] e de, sem temor ou escrúpulo, apossarem-
se daquilo que obtiveram pela violência ou pelo embuste. Por conseguinte,
consideram como um varão grande e deveras venturoso aquele que é tão forte
que impunemente se apodera das riquezas alheias e desse modo se guinda
às mais elevadas honrarias, pois de ordinário os mais altos cargos do estado
são concedidos às maiores riquezas. David empenha-se em destruir esta
opinião profundamente gravada nos entendimentos humanos, fazendo-o aqui,
no salmo que temos entre mãos, tal como o faz em outras passagens. Com
efeito, mostra-nos o grande número de males de que se encontra atribulada
a existência dos ímpios; os grandes cuidados que a enleiam; os grandes
trabalhos que a assoberbam; e, enfim, os grandes tormentos com que deve ser
castigada. E, pelo contrário, como são prósperos e bem-aventurados aqueles
aos quais nenhuns proveitos e vantagens são capazes de levar a transgredirem
as determinações da lei de Deus. Por isso, diz:
Que não te ocorra a ideia de mui indignamente admitir que os homens
maléficos se te avantajam em riquezas e poder, e pensares que com eles
incessantemente de tal maneira te cumpre contender que com um desvelo
e esforço semelhantes alcanças o mesmo grau de honra: para que não
procures imitar os que edificam as obras da iniquidade. Com efeito,
tal como o feno, muitíssimo prestes hão de ser ceifados, e, tal como a
verde erva, queimada pelos sóis, hão de perder seu viço e vigor, de tal
maneira que, ou totalmente perecem devido a uma violência inferida de
fora, ou de súbito decaem de uma posição próspera por causa de uma
mudança das condições do tempo. É que não poderá durar muito qualquer
coisa que se obteve por meios ruins, pois atiça a inveja dos homens e
violentamente desperta o descontentamento de Deus, e desvanecem-se
num ápice de tempo todas as coisas humanas que não estão entrelaçadas
com as divinas. Por conseguinte, se desejas avultadas riquezas e pretendes
obter estáveis honrarias, deposita em Deus toda a esperança de teus
negócios; e zelosamente te consagra e aplica a obras santas; faze assentar
254 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 37
(38 entre os Hebreus)
Senhor, não me repreendas no Teu furor.
dor, dos íntimos recessos do coração lancei lamentos tais que eram
comparáveis a rugidos de leão.
Senhor, conheces à perfeição o grande desejo em que me abraso e não
se Te oculta para onde se endereçam os meus gemidos. É que todos os
meus pensamentos se encaminham à Tua glória, todos os meus gemidos
testemunham este desejo, fundamente gravado no meu espírito, pois desejo
vivamente recuperar a minha primeira condição, para que toda a minha vida
seja consumida na proclamação do Teu nome e a fim de que, através de muitas
ações piedosas, me esforce por alcançar a graça daquele cuja majestade ofendi
assaz gravemente através de muitos pecados. E isso de modo algum posso
realizá-lo sem o auxílio muitíssimo eficaz da Tua indulgência. Na verdade,
tal e como as coisas agora se apresentam, acho-me inteiramente abatido. O
meu coração erra em todo o meu derredor; a minha força abandonou-me;
a luz dos meus olhos deixou-me; os meus amigos e parentes conservaram-
se imóveis, nada fazendo diante da minha desgraça: para que se visse com
toda a evidência que não sentiam qualquer comoção com a dor que me
fora infligida. E até os que me eram mais íntimos se mantiveram à distância,
para não terem de aliviar com alguma consolação a minha pena. Mas os
que reclamam o meu sangue e a minha vida empenhavam-se em colher-me
em apertados laços; os que sem cessar contra mim aparelham ruindades,
empreenderam uma conjuração para ocasionar a minha perdição e a tempo
inteiro se entregaram a maquinar enganos e ardis.
Mas eu, como um surdo, não deixava que os meus ouvidos dessem
entrada às injúrias e eu não abria a boca para rechaçar os doestos. Por
isso, suportava com imensa paciência todas as ofensas e todas as calúnias
e não me deixei abalar por nenhum sentimento de indignação, de tal sorte
que viesse a tocar com alguma palavra insultuosa aqueles que assim tão
cruelmente se encarniçavam contra mim, e, como se tivesse sido provada
a culpa daqueles crimes de que me condenavam, e carecesse de meios
para desmentir, e estivesse por inteiro desprovido de quaisquer recursos
de linguagem para fazer a refutação dos ultrajes que me assacavam,
calei-me de tal maneira como se nada houvesse escutado ou me fosse
impossível responder.
É que, para Ti reservei a minha causa e tenho a firme esperança de que
hás de tomar a minha defesa e, em Teu juízo, reparar a minha dignidade,
e como quer que, nas ocasiões de aflição, se dá grande acréscimo de
dor com o júbilo e derrisão dos inimigos, pronunciei diante de Ti estas
palavras, com as quais pedia que não desses pretexto para os meus inimigos
se alegrarem com a minha desventura, os quais de tal modo puseram o
intento em reciprocamente se felicitarem com aquela minha queda que,
comprazidos com qualquer deslize do meu pé, põem-se de acordo [236]
para me insultarem com a máxima insolência. É que eu fui exposto para
270 D. JERÓNIMO OSÓRIO
que me inferissem golpes e vejo que as dores sempre rondam por perto
de mim; de facto, confesso que as mereci, em razão dos crimes de que
fui culpado e, por esta causa, o meu pecado traz-me profundamente
angustiado: é por isso que se abate sobre mim a tempestade das dores que
devo suportar. Ao invés, porém, os meus inimigos (os quais, abrasados em
ódio, me perseguem usando de testemunhos completamente falsos), não
apenas usufruem da vida, como também florescem em riquezas e poderio
e vêem engrossar-se o número destes bens, e quantos me pagam o bem
com o mal atacam-me com todas as energias com o único pretexto de que
a minha vida está em profunda contradição com os costumes e vida deles.
É que eles seguem as torpezas, e eu a pureza; eles entregam-se à avareza,
enquanto a mim me guia o amor pelos homens; eles são sacrílegos, ao passo
que eu com sumo desvelo e ardor me empenho no zelo da piedade; eles,
por derradeiro, porque se entregaram às coisas terrenas, de tal maneira
têm o espírito ocupado com a terra que é impossível erguerem os olhos
para o Céu: mas eu já de tal sorte tenho o meu espírito fixo no Céu que
cuido que não devo pensar muito acerca da terra. Por conseguinte, com
demasia e crueldade se ensanham contra mim, não porque se sintam
ofendidos pelas minhas injustiças (pois de mim não receberam injustiças,
mas benefícios), mas porque os confunde e perturba a vida de fingimento
que levam. Por isso, Senhor, não me abandones nem Te apartes para longe,
pois rondam por perto aqueles que decidiram causar-me a perdição: traz-
me prestes socorro; dá-Te pressa em auxiliar-me, visto como só em Ti foi
colocado o remédio para a minha vida.
SALMO 38
(39 entre os Hebreus)
Disse: Guardarei os meus caminhos.
Sendo certo que nada existe de mais móvel e rápido do que a língua
nem capaz de com tanta facilidade se dobrar para qualquer parte que
se pretenda, segue-se como consequência que nada mais facilmente
incorre em falta e erra com maior perigo. Com efeito, para que o ânimo
se inflame em ira, ou ódio ou inveja, ou seja movido por qualquer outra
perturbação deste género, as restantes partes do corpo não obedecem às
emoções do ânimo inconsiderado com uma rapidez tal que não concedam
um espaço de tempo para se arrepender e reconsiderar com madureza
a decisão tomada, pois nem as mãos nem os pés nem outra qualquer
coisa obedecem com tamanha celeridade que não possa interpor-se algum
tempo para melhor deliberar o que é proveitoso. A língua, porém, obedece
de imediato a emoções violentas; posta em movimento, arremessa-se
272 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 39
(40 entre os Hebreus)
Aguardei com expectação o Senhor, e me atendeu.
Tal como acontece em muitos outros textos dos profetas, assim nos
salmos de David claramente se dão a conhecer as grandes trevas em
que os espíritos dos judeus se encontravam mergulhados. Com efeito,
fogem deliberadamente da luz e com o máximo empenho procuram as
trevas. David, porém, como via, com entendimento inspirado, vir ao
mundo a própria luz que ilumina todo o homem, isto é, a assembleia
dos fiéis, viu e cantou e deixou em seus escritos aquilo que os judeus
não poderão contemplar enquanto tiverem o espírito espesso, obtuso e
imersos nas trevas. David tem em Cristo fitos os olhos do entendimento;
contempla-o com admiração; ardentemente o ama; exalça-os com louvores
o mais que pode; com o mais fundo sentimento religioso reverencia a
majestade daquele a quem os judeus amaldiçoam com ímpio, sacrílego
e incessante propósito de aviltar o santíssimo nome. Por conseguinte,
como pode suceder que aspirem a estar de acordo com o mais santo
dos reis estes que inteiramente hostilizaram a luz que sempre brilhou
para o divino homem? Portanto, quem quiser compreender perfeitamente
a intenção de David, abomine a exposição dos rabinos e, até onde lhe
for possível, ligue-se aos ensinamentos do espírito divino, a fim de nas
Sagradas Escrituras poder divisar a divindade de Cristo com um puro
olhar da inteligência. Algo que com certeza neste salmo poderá com
toda a clareza enxergar, pois nele é apresentado sob a figura de David
refutando a antiga lei, para estabelecer o Evangelho e a fé. Ora, neste
sentido o Libertador do género humano ocupa-se do processo da nossa
salvação com as seguintes palavras:
Com a máxima confiança depositei em Deus toda a esperança de
salvação, por cujo nome bradei com ardentíssimas rogativas, o qual,
inclinando-se de repente para a misericórdia, escutou os meus brados.
E por isso tirou-me do turbulento lago, agitado por medonhas vagas, de
um lugar que transbordava lamacenta sujidade, e colocou-me numa fraga
assaz defendida, até onde os inimigos não chegarão com nenhum de seus
bélicos engenhos, e, com celestiais ensinamentos e invencível vigor, deu
firmeza aos meus passos, para não permitir que alguma vez tropeçassem.
É que nem o ódio do povo rebelde e desvairado nem a violência da
impiedosa morte nem a crueldade dos espíritos infernais poderão afastar-
me da minha posição. É que castiguei com justiça o povo; extingui as
forças da morte; arranquei as portas dos infernos; despojei o príncipe
do mundo e, depois de obtida a vitória, celebrei um mui vistoso [240]
triunfo; e fui colocado à destra do Pai supremo, baluarte no qual jamais
280 D. JERÓNIMO OSÓRIO
Non tamen hic restitit clementia Tua, partim quia quod est
immensum et infinitum terminis definiri non potest, partim
quia lex non in se iustitiam, sed iustitiae umbram continebat,
itaque non solum dabat, sed spem salutis ostendebat.
Non enim scelerum maculae animis inustae uel brutorum
animantium sanguine uel odorum terrestrium suffimentis
eluuntur; neque Tu, sanctissime Domine, hominum peccatis
innumerabilibus grauissime offensus, humanis muneribus
placari et a seueritate deduci potes. Itaque neque pecudes
ad sacrificium [241] statui uoluisti neque dona atque munera
Tibi grata esse docuisti. Malam enim de Te opinione homines
recipiunt qui suspicantur opibus fluxis iustitiam sempiternam
deleniri atque a iuris sanctitate ad indulgentiam sceleris
inflecti. Quod ergo remedium restabat? Vnum certe: ut ego
me Tibi in perpetuam seruitutem addicerem et pro omnium
salute meum corpus opponerem. Maiestas enim Tua, rebellione
ad uindictam incitata, non erat adumbratis sacris, sed
oboedientia sanctissima placanda. Cum uero nullus umquam
in terris exsistisset qui sic fuisset lege deuinctus ut non eam
saepenumero transgrederetur, nulla erat oboedientia quae
posset rebellionem uniuersi generis humani compensare, nisi
illius tantum qui numquam deliquisset et ideo non alterius
ope indiguisset ad gratiam Tuam recuperandam. Praeterea,
nulla tanta poterant esse sanctorum hominum merita quae
offensiones Tibi per nefarium scelus illatas sanctitatis
magnitudine compensarent.
In me autem solo uoluisti, propter naturae diuinae
coniunctionem, ut esset facultas et meritum quo posset
humanum genus hoc debito, quo erat obstrictum, liberari,
et, ne in sempiternum supplicium truderetur, a peste, qua
miserrime laborabat, abduci. Vt igitur seruituti perpetuae
mancipatis aures erant ad postem, iudicum auctoritate,
transfixae, sic Tu mihi, iudicio Tuo, aures perforatas, hoc est,
oboedientiam meam Tibi semper addictam esse uoluisti, ut
debitum alienum dissoluerem et uoluntaria seruitute nomini
Tuo, humana rebellione grauiter offenso, satisfacerem. Non
enim sacrificium flammis absumptum Tibi cordi fuit; non
hostiam piacularem ad scelus expiandum flagitasti, non enim
caedem pecudum, sed interitum nequitiae requiris; non igne,
ex lignis aridis facto, sed diuini amoris incendio delectaris;
non brutorum animantium sanguine, sed ea oboedientia,
quae numquam fuerit leuissima rebellionis contagione
OPERA OMNIA TOMO IV 283
consoante Tu, Senhor, muito bem sabes. Por toda a parte a todos anunciei
a Tua verdade e a Tua salvação. Não retive, oculta e escondida em meu
poder, a Tua justiça. Não recusei à totalidade dos homens as riquezas
da Tua misericórdia e da Tua fé, mas, expostas e patentes, mostrei-as
a todos os que as desejavam contemplar. Com efeito, uma vez que a
suprema bondade não tem qualquer espécie de afinidade com a inveja e
por isso deseja, até onde é possível, repartir os seus tesoiros com todos
os homens, eu não podia de modo algum desempenhar segundo a Tua
vontade a tarefa que me foi cometida, se não me entregasse inteiramente
a ensinar de tal maneira os homens que não afastasse de junto de mim
ninguém que quisesse ser ensinado nas coisas divinas. Por conseguinte
Tu, ó Senhor, não mantenhas escondida a Tua misericórdia, de maneira a
privares-me da Tua ajuda, pois toda a minha salvação, proteção e esteio
se fundam na Tua ajuda e misericórdia.
Na verdade, estou rodeado de males por todos os lados; os castigos
das iniquidades, que considerei que deveria suportar, acompanham-me
em tão grande número que não sou capaz de discerni-las bem. Com
efeito, ultrapassam em quantidade os cabelos da minha cabeça, a tal
ponto que o meu coração, devido à violência da intolerável dor, ficou
privado de forças. Põe os Teus olhos, Senhor, na inocência atribulada,
na obediência oprimida pelos males, na santidade atormentada pelos
suplícios, por forma a arrancares-me de imediato de uma tão enorme e
indigna desgraça, e dá-Te pressa em trazer-me ajuda. [243] Que sejam
ultrajados e sofram todo tipo de desdouro aqueles que com cruel sanha
perseguem a minha vida. Que recuem, que se entreguem à fuga com
imenso descrédito seu os que maquinam a minha perdição, a dos meus
e a do meu nome. Que sejam totalmente destruídos, como recompensa
pelo desdouro com que por todos os modos procuraram aviltar-me, todos
aqueles que nas minhas tribulações com sobeja impudência me insultam
e, com os olhos postos na cruz, desatinadamente proferem palavras que
exprimem uma descomedida alegria.
Não permitas, Senhor, que muitos, sentindo-se perturbados ao verem
por diante a infâmia da cruz, abandonem o caminho da salvação ou sequer
se tornem remissos em confessarem a santíssima religião. Razão pela qual
Te peço e rogo que fiquem cheios de contentamento e se arrebatem de
alegria todos os que, animados pelos meus conselhos, Te procuram, e
que incessantemente digam, os que Te agradecem de todo o coração a
salvação que lhes deste: Que seja exalçado com eternos louvores o nome
do Senhor. Mas acerca de mim nada tenho que dizer, pois, sendo pobre
e mendigo, o Senhor é quem pensa na minha salvação e dignidade: é
que n' Ele tenho estabelecido um auxílio eficaz na adversidade e nos
perigos da salvação uma salutar ajuda. Por conseguinte, pedir-Te-ei com
288 D. JERÓNIMO OSÓRIO
todo o empenho, Senhor, que não adies a Tua ajuda, mas rapidamente
me acudas com auxílio, por forma a assim atenderes não apenas à Tua
glória, mas também à salvação dos meus.
SALMO 40
(41 entre os Hebreus)
Bem-aventurado o que cuida sobre o necessitado e o pobre.
se avantajasse pela glória de uma santidade tão grande como a de que ele
fazia alarde, certamente que Deus o não teria abandonado nem permitido
que fosse atormentado por tão grandes dores. Por conseguinte, pelo facto de
que foi privado da ajuda de Deus e abandonado ao capricho dos inimigos,
conclui-se com a máxima certeza que ele ocultou a monstruosidade do
maior dos crimes sob a aparência de uma fingida religiosidade.”
Eles com certeza esforçavam-se por acusar-me de crime com palavras
como essas. E até um homem da minha amizade e intimidade, em quem
a razão aconselhava que eu tivesse grande confiança, que comigo se
sentava à mesa, como é costume entre amigos e até irmãos, e se servia
das mesmas comidas que eu e era nutrido pelos meus ensinamentos,
me atraiçoou e, aliando-se aos meus inimigos, agrediu-me a pontapés.
Tu, Senhor, tem compaixão de mim; faze-me sair dos infernos e coloca-me
no sólio da régia grandeza e majestade que me está destinado, para que
com a fome, a devastação, a ruína da cidade, a perpétua destruição e a total
infâmia eu lhes retribua a paga devida por um crime tão monstruoso. A
claríssima prova com que nitidamente verei que os meus desvelos sempre
Te foram muitíssimo gratos é que não toleres que o meu inimigo se glorie
de vencer-me nem demonstre alegria com desatinadas palavras. Mas Tu,
devido à minha grande santidade e inocência, fortaleceste-me com salutar
proteção, e colocaste-me à destra da Tua majestade, para que eu exerça
na Tua presença o poder sempiterno. Que com os mais altos e imortais
louvores seja exalçado o Senhor Deus, que com tão grandes benefícios
acrescentou e cumulou o verdadeiro Israel, produzido por geração divina,
e que o Seu nome sem qualquer interrupção seja celebrado por toda a
eternidade dos séculos.
SALMO 41
(42 entre os Hebreus)
Assim como o cervo suspira pelas fontes das águas.
SALMO 42
(43 entre os Hebreus)
Julga-me, ó Deus, e decide a minha causa.
cítara as Tuas loas, ó Senhor cujo poder temo, cuja bondade amo, cuja
divindade adoro e de cuja amizade provações algumas jamais me afastarão.
Ó minha alma, por que razão a tristeza te abate? Por que razão te agitas
e com a tua inquietação me perturbas? Deposita esperança no Senhor,
pois tenho confiança em que mediante a Sua ajuda hei de ser arrancado
de todas as desgraças e darei graças Àquele que amiúde funda a minha
salvação na Sua proteção.
SALMO 43
(44 entre os Hebreus)
Nós, ó Deus, com as nossas orelhas ouvimos.
Todavia, Senhor, vês o perigo que se abate sobre muitos devido à grandeza
de uma tão grande tribulação. Por conseguinte, mostra a Tua força e o Teu
poder. De facto, por que motivo hás de ser indiferente a tão grave situação?
Por que motivo fechas os olhos ao perversíssimo atentado dos homens que
se esforçam por obrigar-nos a imolar às falsas divindades? Por que motivo
não desvias de nós a perdição, trazida por homens dotados da crueldade
de serpentes? Se para castigar as infâmias dos Teus e mais claramente
nobilitar a glória do Teu nome foi necessário que nós fôssemos atribulados
com tão grandes incomodidades: uma e outra coisa já foram levadas a
cabo. Com efeito, as feridas das infâmias, que eram curáveis, foram curadas
com golpes e já se vê de sobejo que não há nenhuns suplícios capazes de
quebrantar a divina fortaleza. Desperta enfim e não Te pareça que devas
apartar de nós o Teu incessante auxílio. [252] Com efeito, por que razão
hás de ocultar durante tanto tempo a Tua face, não deixando que apareça
em nós o resplendor da Tua graça? Por que razão hás de considerar que
devem ser votadas ao esquecimento a mofina e provações que padecemos
há muitíssimo tempo? De facto, a nossa alma jaz de rojo no chão e o ânimo
ficou sepultado no mais íntimo, coberto com muita terra. Por conseguinte,
não é só a vida dos corpos que corre perigo, mas também as almas devem
expor-se a gravíssimos riscos, se por mais tempo protelares o Teu auxílio.
Por conseguinte, levanta-Te e dá-Te pressa em trazer a esperança e, em razão
da Tua grande misericórdia, liberta-nos de uma tão mofina servidão.
SALMO 44
(45 entre os Hebreus)
O meu coração proferiu uma palavra boa.
forçoso que o sólio do teu reino seja sempiterno e que detenhas por toda
a eternidade os ornamentos da suprema dignidade.
O ceptro do teu reino é o ceptro da justiça e da equidade, que nunca
permitirás que sejam violadas, abaladas ou desviadas. Amaste sempre a
justiça; perseguiste com ódio a impiedade, que é a suprema iniquidade. É
que o próprio Deus, por quem foste gerado desde toda a eternidade, a ti,
verdadeiro Deus, pôs-te à testa como rei, e de tal maneira que ao consagrar-
te segundo o ritual da lei não empregava o óleo da lei, mas inundava a tua
alma com a graça e virtude do Espírito Santo, dotado da mesma divindade.
De facto, para obteres o nome augustíssimo de santíssimo Cristo, tomaste a
forma humana; debaixo desta forma, foste ungido em tanta abundância com
o óleo da alegria que de longe e em muito te avantajavas a todos os que
compartilhavam da tua dignidade. Com efeito, com que outro nome designaria
eu a graça do Espírito santo, que investe em suas dignidades os reis e os
sacerdotes, que repele a tristeza, que alegra os entendimentos e que leva o
brilho às almas? Ou, com que palavra exprimiria eu mais convenientemente a
dignidade dos homens justos do que com esta com que se designa a associação
no prestígio e na graça, associação mediante a qual os ligaste a ti com uma
aliança inviolável? Por conseguinte, é com razão que se chamam cristos aos
justos, uma vez que todos os justos, de uma certa maneira divina, por isso
que se tornam brilhantes com a unção do Espírito divino, não só são reis,
porque governam o espírito com senhorio régio e jamais se apartam das
prescrições da lei eterna, como são igualmente sacerdotes, porque imolam
sacrifícios de justiça e de louvor e tratam de aplacar a majestade de Deus de
acordo com os rituais. Todavia é impossível dizer-se por palavras o quanto
és superior a todos em santidade e em dignidade.
Ora, todas as partes da natureza humana, trescalando o suavíssimo
cheiro das virtudes divinas, revestiste-as como uma roupa perfumada com
os odores da mirra, do aloés e da cássia, e retirada de uma arca ebúrnea,
do seio da santíssima Virgem, sobre-excelente pela pureza e inocência
celestiais: tomado de extraordinária alegria, vais caminhando com este
atavio e ornato. Por conseguinte, não é de admirar se de todos os lados
acodem donzelas reunidas por tão extraordinária suavidade do perfume
divino que, contemplando de mais perto a beleza e formosura do teu rosto,
se abrasam mais ardentemente no amor do teu nome. As filhas dos reis,
isto é, os entendimentos castos, instruídos pelos ensinamentos dos homens
santos, frequentam assiduamente a tua habitação para te servirem e para
poderem gozar da tua vista, ao passo que a tua esposa, a quem te ligaste
por uma tão santa aliança de matrimónio que não querias possuir coisa
alguma separada dela, ocupa à tua dextra um lugar régio, ornamentada
com uma coroa [255] feita de ouro puríssimo, que mandaste que fosse
colocada sobre a sua cabeça. É que a dignidade da santa Igreja é régia;
316 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 45
(46 entre os Hebreus)
O nosso Deus é refúgio e esforço.
Ora, foi assim que falou o Senhor. Resta portanto que O reverenciemos;
que Lhe demos graças; que, amparados no Seu apoio, não sejamos
perturbados por nenhum temor dos perigos que se aproximam. É o
Imperador dos céus Aquele que sempre está connosco; é o Deus supremo,
que com a Sua ajuda protegeu Jacó, o progenitor da nossa linhagem;
e o mesmo Senhor há de libertar-nos de toda a procela de males, se
perseverarmos na viva fé. Oh benefício admirável, que merece ser
apregoado por toda a eternidade!
SALMO 46
(47 entre os Hebreus)
Todas as gentes, aplaudi com as mãos.
Com efeito, não só quer que todos fiquem salvos e honrados, mas mui
especialmente os príncipes, impelida por cujos exemplos a multidão com
a máxima facilidade poderá sentir-se incitada ao zelo da religião e da
piedade. Por conseguinte, a glória de Deus aumenta-se e acrescenta-se com
esta conversão dos gentios e, quanto menor era a esperança que havia
de geral salvação, tanto mais clara e opulentamente se deu a conhecer
a grandeza da graça e bondade divinas.
SALMO 47
(48 entre os Hebreus)
Grande é o Senhor e muito digno de louvor.
as partes acodem para habitar a região. Por outro lado, todas as regiões
dela recebem uma alegria e prazer extraordinários, porque aquela lei
a todos levada derrama a luz da salvação. Ora, não foi edificada nos
desertos da Arábia, no sáfaro e medonho monte Sinai a cidade do grande
e excelso Rei, mas numa região assaz fértil e fecunda, no aprazível
monte Sião, sobre os lados do norte. É que se teve em conta a beleza
e encanto da localização, oferecida à vista em lugar elevado, a fim de
que todos os que se dirigissem para a cidade desde longe olhassem
para ela com agrado nada pequeno; teve-se também em consideração
a segurança, ao fundar-se em lugar elevado e sobranceiro, e com mais
cuidado protegida pela parte que estava virada para o norte, por forma a
mais facilmente rechaçar os perigos que ameaçavam a partir do aquilão.
Conhece-se que naquelas casas assaz sumptuosas o Senhor está sempre
presente com Suas admiráveis obras, a fim de arrancar os Seus dos
males que os ameaçam.
Os reis ajuntam-se; unem-se em aliança; tramam a destruição da
cidade; reúnem todos os seus recursos com o propósito de a aniquilarem
e expungirem totalmente da lembrança o nome do Rei eterno; decretam-
se leis desumanas; espalha-se o terror; meditam-se suplícios; desprezam
as leis humanas e divinas a fim de, ajuntando as forças, poderem levar
a cabo aquilo de que não são capazes mediante a inteligência. Mas a
fortaleza divina, que maravilhosamente resplandece nos cidadãos santos,
não pode ser arrancada da posição que detém ou de alguma maneira
vacilar. Os próprios tiranos, ao cabo, ao olharem para as muralhas e ao
compreenderem que Deus era o defensor da cidade, varados de espanto
e perturbados pelo medo, entregaram-se à fuga mui desordenadamente.
Um tremor deles se apossou; uma penetrantíssima dor, como a dor da
mulher ao parir e atormentada por um aborto, impediu-os de poderem por
alguma forma pôr em execução o que tinham concebido no seu perverso
pensamento e maquinarem a perdição e o assolamento contra a santa
comunidade. É que Tu, ó Senhor, destróis os grandes impérios; fazes
tombar das suas posições os insolentes tiranos; e assim como derrotaste
e lançaste por terra o Assírio e no final o mataste com a espada dos seus,
da mesma maneira incutes o terror a todos os tiranos que com perversas
e sacrílegas tentativas arremetem contra a cidade santa; os despedaças
com as convulsões internas; com mortais guerras os destróis, para que
todos os mortais acabem por entender que tomaste a Teu cargo a defesa
da Tua cidade, que é a multidão dos fiéis, associada através da lei de
Deus, e que por isso ela, ainda que possa ser atacada, não pode ser
destruída. Nem sequer entrarão nas águas do mar tropas e engenhos de
guerra capazes de destruir os seus alicerces. É que às esquadras da Cilícia,
que se aprestam para nos destruir, Tu, com violentíssima procela, hás de
338 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 48
(49 entre os Hebreus)
Ouvi isto, todas as gentes.
com a vida seres que se encontram assegurados com a proteção dos seres
celestiais; se a firme esperança de algum ganho alivia de cuidados e
inquietações as almas de todos, todos os cidadãos da santíssima cidade são
arrebatados por inspiração divina para a firme esperança de imortalidade
e até de divindade. Acresce que nesta cidade não existe quem possa com
motivo queixar-se da sua pobreza, pois as suas riquezas estão sempre
prontas e à disposição de todos os que quiserem consagrar o seu trabalho
e atividade ao zelo delas. Por conseguinte, que impede que todos os
que foram admitidos na santa cidade se empenhem com todo o zelo,
atividade, esforço e desvelo em obter tão grandes riquezas? Certamente
que o desejo daquelas coisas que seduzem os mortais com sua fingida
e vã aparência de contentamento e prazer. Ora, deste modo sucede que
muitos, iludidos por imagens completamente vãs, deixam de consagrar
à busca da mais verdadeira ventura o que despendem nos cuidados com
a falsa aparência de comodidades. Por consequência, são levados a que
toda a sua vida se passe na mentira e vaidade; se consuma num sonho
totalmente vão, de maneira a que o entendimento esteja sempre fixo
na terra e nunca contemple os bens verdadeiros e eternos. Ora, deste
modo vivem sempre angustiados com cuidados totalmente vãos, uma
vez que, ou não conseguem o que desejam, ou, se conseguem, [266] não
ficam satisfeitos com as riquezas obtidas e, quanto mais possuem, tanto
maior sentimento de pobreza os atormenta. Adita-se aquela ansiedade,
da alma incessantemente torturada pela consciência do crime. De facto,
é muitíssimo difícil ajuntar sem injustiça em casa grandes quantidades
de dinheiro. E o receio é um acompanhante assíduo da injustiça, que
(queiram-no ou não) frequentemente atormenta os homens perversos e,
embora pareçam desprezar as coisas divinas, não podem de tal maneira
suprimir a lembrança das malfeitorias que amiúde não sejam agitados
pelas fúrias nem tremam com medo do juízo de Deus. Por conseguinte,
o divino varão nesta passagem exorta todos os mortais; solta enormes
clamores; pede grande atenção para que o escutem; põe diante dos olhos
os perigos da vida; expõe as mentiras da inquietação humana e esforça-
se o mais que pode por desviar os homens do enganosíssimo gosto da
vaidade, para que assim ao cabo possam, com o máximo fruto, abrasar-se
no desejo da própria verdade. Diz pois:
Escutai, povos todos; prestai ouvidos e acolhei as minhas palavras
com a mais pronta atenção, todos vós que tendes morada neste mundo
que há de acabar-se. Não quero que ninguém seja excluído do fruto das
minhas palavras; dirijo-me tanto aos homens obscuros e ignorados, como
aos nobres e conhecidos; tanto aos ricos como aos pobres, com as mais
veementes palavras rogo-lhes que oiçam o que vou dizer. É que não me
apresento em público para contar fábulas que inventei, nem discursarei
344 D. JERÓNIMO OSÓRIO
sobre cousas vãs, que não hão de trazer qualquer fruto aos ouvintes,
mas irei falar em público acerca dos mais elevados assuntos, acerca
dos frutos da piedade e da justiça e acerca do conhecimento da mais
verdadeira sabedoria. E aquilo que irei dizer não o extraí de mim mesmo,
mas aprendi-o com o espírito de Deus. Com efeito, a fim de acolher os
ensinamentos celestiais, ajusto, na medida do possível, os ouvidos do
meu entendimento às vozes do espírito divino, que amiúde me fala,
num tipo de linguagem ornada e figurada, de tal maneira harmonioso
que fica firmemente gravado no meu espírito. Eu, porém, não escondo
ciosamente as riquezas divinas, mas ofereço-as para proveito de todos, e
assim exponho em poemas acompanhados à citara, para que possam mais
agradavelmente influir nos entendimentos dos ouvintes, estas matérias
admiráveis, obscuras e apresentadas de forma figurada.
Que é o que me pode inquietar na adversidade, quando ronda ameaçador
o perigo da destruição e assolamento gerais? Certamente que a minha
iniquidade, que me perseguirá de perto para castigar-me e me seguirá o rasto
e de tal sorte me assediará que quase não me deixará respirar. É que nada
existe de mais inquietador do que a iniquidade; nada de mais pestilencial;
nada que cause mais incessante temor. E é quando a desgraça, provocada
por juízo de Deus, ameaça a ruína da comunidade, que sobretudo se vê com
toda a clareza a grande quantidade de males que a iniquidade acarreta. É
que é então que os iníquos se lembram das injustiças; então que as suas
consciências lhes atemorizam as almas; então que pungentíssimos cuidados os
atribulam. É que pensam no que fizeram e no que mereceram e pressentem
que de nenhum modo hão de escapar ao juízo. Por consequência, os que
desejam levar uma vida sem cuidados e inquietações, é mister que odeiem
profundamente a iniquidade e por todos os modos abracem a justiça, pois
caso contrário não poderão evitar os suplícios eternos. Portanto, aqueles
que confiam nas suas riquezas e que mais insolentemente se ensoberbecem
com a abundância de dinheiro, tresvariam e estão tomados de sandice. Na
verdade, quando [267] chegar a hora do juízo de Deus, de que servirão
as riquezas? Que proveito advirá da linhagem? Que ajuda hão trazer no
momento do aperto as amizades humanas? É que então cada um será
ilibado pela equidade da sua causa, não pelas riquezas alheias; cada um
carregará a sua carga; ninguém poderá prestar ajuda a outrem; o irmão não
libertará o irmão da sempiterna desgraça; nem de forma alguma resgatará
com o preço da redenção quem foi entregue ao merecido castigo. É que
então Deus não se deixará aplacar por quaisquer sacrifícios expiatórios;
mui dificultosamente poderá cada um livrar-se do castigo em que incorreu,
pois todos cometeram pecados e, se não tivesse dependido da misericórdia
divina, estavam sujeitos aos tormentos eternos: tão longe está cada ser
humano de libertar o irmão ou o amigo dos castigos infligidos.
346 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 49
(50 entre os Hebreus)
O Deus dos deuses, o Senhor falou.
e assim é de dia para dia acrescentado com maiores mercês. Pelo contrário,
porém, quem totalmente se esquece dos benefícios de Deus, desperdiça a
graça obtida e mui dificilmente a recupera depois de desperdiçada.
É então mister que também prestes muita atenção ao facto de que a
dádiva e dever da fé são concedidos com duas finalidades. Uma, é agradecer
sempre pelos benefícios recebidos; a outra, pedir com firmíssima confiança
aquelas coisas de que os homens têm falta. De facto, nada poderá existir de
tão grande que uma fé ardente e viva não obtenha da divina misericórdia.
Por conseguinte, quando fores assoberbado pelas provações, chama por
Mim e Eu te libertarei, e glorificarás extraordinariamente o meu nome
em conformidade com as tuas forças. Na verdade, assim como quem não
tem confiança em Mim, com a sua opinião lança sobre o meu nome a
vilta do desdouro (pois pensa ou que Eu não quero ou não posso acudir
aos seus rogos e pedidos), da mesma maneira quem com firme fé pede
a minha ajuda está a glorificar-me.
E com estas palavras certamente que o Senhor ensina aqueles que dão
sem dúvidas provas de piedade, mas não se apercebem atiladamente quais
as coisas em que a própria piedade se cifra. Mas a impiedade daqueles que
ocultam o pecado com um manto de falsa santidade e, sendo as criaturas
mais impuras, fingem a virtude e querem ser tidos na conta de doutores
da lei, quando a verdade é que quebrantam com atentados sacrílegos a
própria lei, a estes ataca-os com palavras deste teor:
Como te acudiu ao espírito interpretar a teu talante as minhas
determinações e com a tua sacrílega boca manchar a santidade do meu
pacto? Porventura apraz-te juntar abomináveis crimes com tão monstruosa
impudência que queres ser tido na conta de santo, quando te mostras
perversíssimo contra o Autor de toda a santidade? Tu sempre odiaste
os meus ensinamentos; desprezaste e enjeitaste as minhas palavras. Se
vias um ladrão, rapidamente e de muito bom grado a ele te ajuntavas;
celebravas aliança com os adúlteros, para de alguma maneira compartilhar
do fruto do crime; com o máximo impudor usaste a tua boca para causar
toda a espécie de males; a tua língua urdiu embustes; estando assentado,
proferias baldões contra o teu irmão e infamavas com a nota do desdouro
o filho da tua mãe. Não era um repentino arrebatamento que te impelia
a cometeres tamanho pecado, mas encaminhavas à perdição dos teus
um crime meditado e pensado, de tal maneira que para ti não tinham
qualquer importância a identidade de sangue e os laços de família. Fizeste
estas coisas e Eu calei-me, e não te castiguei com as devidas penas logo
que cometeste o crime, para te conceder tempo para o arrependimento
e para regressares ao cumprimento do dever. Mas tu, [272] para que o
crime se torne mais impudente, como um louco furioso abusas da minha
compaixão e, como se te tivesse sido concedida impunidade para as
358 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 50
(51 entre os Hebreus)
Tem piedade de mim, ó Senhor,
segundo a tua grande misericórdia.
Ora, é sabido que a queda de David foi prova indubitável desta imensa
misericórdia. Com efeito, tendo sido chamado de uma condição ínfima para
uma dignidade régia, foi cumulado por Deus com tão grande quantidade
de dádivas e graças que se avantajava com enorme diferença a todos
os príncipes da mesma época e até ultrapassava os mais antigos que
alcançaram nomeada pela glória dos feitos realizados, pois foi muitíssimo
próspero em riquezas e senhorio, [273] ornadíssimo de virtudes divinas,
ilustríssimo pela grandiosidade das vitórias e, não obstante, cego pela
luxúria, manchou o seu nome com o adultério e buscou remédio para tão
grande crime em outro crime muito mais grave. Com efeito, para que não
se revelasse a vileza da sua infâmia, matou, juntamente com muitos outros
inocentes, aquele a quem manchou com uma ofensa tão monstruosa.
Portanto, foi adúltero e homicida, simulador da piedade e, do mesmo
passo, atou-se com todos os crimes da sensualidade, da desumanidade e
da mais extrema injustiça. E, coisa que era muito mais grave, como quer
que tivesse sido colocado no trono para punir os crimes, com o péssimo
exemplo do crime poderia incitar os súbditos a maquinarem toda a sorte
de malfeitorias, caso não tivesse recebido uma tão grande dor pelo seu
pecado e não houvesse alcançado perdão mediante tão notáveis palavras
e uma conversão digna de admiração. Ora, foi do modo seguinte que se
dirigiu a Deus:
A tua misericórdia, Senhor, é assaz evidente e ampla; de facto,
ela sustenta e encerra tudo quanto existe, mas revela-se muito mais
manifesta quando se emprega em coisas miseráveis e perdidas. Ora,
nada há de mais miserável que o pecado, pois despedaça e arruína
a alma e, o que é o pior de todos os males, afasta-a de Ti, que és a
fonte de todos os bens. Por isso, que deverá pensar-se quando um
pecado – pela sua gravidade, o pior dos pecados, e pelo seu exemplo,
o mais pernicioso – for perpetrado por aquela pessoa que tinha a
obrigação de corrigir os pecados dos demais? Ora, sou precisamente
eu quem cometeu um crime de tal forma desmedido e ímpio que me
é impossível descrevê-lo com palavras. Ora, que me cumpre fazer?
Porei de parte a esperança de salvação? – De modo algum! É que a Tua
misericórdia não tem limites, pois é imensa e se oferece a todos os que,
em atitude suplicante, instarem por ela. Portanto, a Ti recorro, a Ti,
cuja majestade ofendi do modo mais grave, para que, em consonância
com a grandiosidade da Tua misericórdia, me concedas o perdão. É
que a maior miséria carece da maior misericórdia e, visto como com
uma única ação cometi um pecado múltiplo, e sendo verdade que a
362 D. JERÓNIMO OSÓRIO
dos meus pecados, para que não incitem contra mim a Tua ira; apaga as
minhas iniquidades, para que não Te provoquem à vingança; muda-me e
altera-me por inteiro, para que na minha alma não se veja coisa alguma
do homem velho, que em si leva a imagem dos pais terrenos, mas que
por Tuas mãos se estabeleça no meu espírito a novidade da forma mais
perfeita, à imagem da Tua justiça e santidade, e grava nas minhas entranhas
um espírito novo de justiça, [276] para que em seguida todos os meus
pensamentos e atos e cuidados se encaminhem à glória do Teu nome.
Ora, a carne e o sangue não aspiram a estes tão divinos dons; é em
vão que a razão humana se esforça por adquirir estas riquezas divinas;
é debalde que a atividade humana se consome no estudo da verdadeira
virtude. Todos estes bens são obra do Espírito Santo. Portanto, se
tivermos sido privados da ajuda deste, imediatamente brotarão em
nós os rebentos de todas as infâmias. Por isso, não nos expulses da
Tua presença nem nos arrebates o Teu Espírito santo, para que nos
desviemos da queda da alma e animosamente nos apliquemos ao zelo
da justiça e da piedade. Era senhoreado pela alegria sempre que o Teu
espírito ocupava a minha alma; rejubilava de contentamento; a minha
mente vivia em perpétua felicidade. Porém, quando o Teu espírito se
distanciou, ofendido pelo meu pecado, os cuidados e as inquietações
apossaram-se do meu estado de ânimo; uma tristeza imensa de imediato
me oprimiu a alma; um pesar constante e um luto lúgubre davam mostras
das aflições com que era atormentado. Por isso, esta alegria que perdi
por culpa do meu pecado, devolve-ma, pela Tua tão extraordinária
benignidade, e fortifica o meu entendimento com um espírito, não de
servidão, mas de adoção, de tal sorte que eu não seja atormentado
pelo temor, mas me sinta inflamado pela grandeza do amor, e a Ti,
meu Senhor, chame Pai com brados altíssimos.
Ora, tendo obtido este estado de príncipe, prometo que hei de
ensinar aos homens culpados a doutrina da justiça e da equidade e
que muitos, que abandonaram a via da justiça, a Ti se converterão
graças aos meus conselhos e exemplos. É verdade que me desonrei
horrorosamente com um assassínio e me manchei com o sangue de
um homem inocente e que se pegaram à minha alma as nódoas de
um crime tão grande que jamais podem ser apagadas por nenhumas
expiações humanas. Tu, que és o único que o podes fazer, limpa todas
estas nódoas, Tu, Senhor, que és o meu único Deus e autor da minha
salvação, para que só então tome a meu cargo celebrar, com suma
deleitação e alegria e mediante as minhas palavras, os louvores da Tua
justiça. É que, ao curares-me, farás brilhar extraordinariamente por
dois modos a santidade da Tua justiça, pois não só mostras a força
da Tua justiça quando transformas os culpados e infames em justos
370 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 51
(52 entre os Hebreus)
Porque te glorias na malícia?
SALMO 52
(53 entre os Hebreus)
Disse o néscio no seu coração: ‘Não há Deus’.
devoram o meu povo como se fosse comida, acabarão algum dia por
entender que o dever da vida bem-aventurada e próspera se cifra nas
obrigações da justiça, e não nas injustiças? Não vêem, não sentem, de
modo algum compreendem que sem a ajuda efetiva de Deus nos negócios
humanos não haverá qualquer sólida ajuda para a vida. E por isso não
invocam Deus nem se esforçam por alcançar a Sua graça. E por isso, uma
vez que obtiveram riquezas com a máxima facilidade e empreenderam
consolidar a existência com o auxílio da vaidade e da futilidade, agitam-
se e flutuam e não permanecem em nenhum lugar certo. Ora, logo
que se lhes coloca diante dos seus olhos alguma vã aparência de coisa
assustadora, tremem de medo e estremecem tomados de pavor imenso.
[280] É que, embora tenham desprezado os juízos, todavia, depois de
perpetrado o crime, atemorizados com a perspectiva de serem julgados,
frequentemente perdem todo o equilíbrio emocional e, antes do castigo
em que devem incorrer, pressagiam no espírito com dor antecipada aquilo
por que hão de passar.
Mas tu, que antepões a justiça a todos os proveitos da vida e te
apoias exclusivamente na ajuda de Deus, de modo algum te arreceies
da sandice e desvario dos homens perversos, ainda que te mantenham
assediado e te ataquem com toda a sorte de maquinações. É que Deus
quebrantará as suas forças e dissipar-lhes-á todas as riquezas. Por
conseguinte, com razão os vituperas e abominas os costumes e ações
daqueles aos quais Deus despreza e por todas as vias persegue. Na
verdade, é dever da perfeita piedade fazer pouco caso daqueles que
Deus hostiliza e ter em grande estima aqueles que Deus abraça com
a Sua graça e favor.
Oh aquele dia mui ledo e jucundíssimo, que vivamente almejo ver e
de cuja luz anseio gozar, em que Deus virá e trará a salvação a Israel, e
concederá a eterna liberdade ao Seu povo, oprimido não pelo jugo dos
egípcios, nem dos assírios, nem dos caldeus, mas atribulado pela tirania
do grão inimigo demónio e esmagado pelo intolerável peso das infâmias!
Oh olhos bem-aventurados que hão de contemplar o Filho de Deus,
com felicidade levando a cabo façanhas admiráveis e espantosas, para
estabelecer a salvação dos seus! Oh bem-aventurados ouvidos, que hão
de acolher as palavras divinas daquele graças a cuja fortaleza e virtude
hão de cair os redutos dos adversários, por forma a que os bons, livres
de senhores muitíssimo soberbos, sejam singularmente cumulados com
os mais opulentos galardões! Só então Jacó sentira com tão grande bem a
alegria suprema e há de exultar de modo extraordinário a sua descendência,
que é dele prole mais pelo exemplo e imitação da fé do que em virtude
do sangue e raça. É que então ver-se-á muito mais claramente quais as
coisas em que deve colocar-se a essência da vida bem-aventurada.
380 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 53
(54 entre os Hebreus)
Salva-me, ó Deus, em Teu nome.
Tudo é hostil para aqueles que não gozam das boas graças do rei. Os
Tifeus tinham sido libertados dos inimigos por obra e virtude de David, e
mesmo assim, quando David, ao fugir de Saul, se refugiou entre eles, para se
tornarem agradáveis ao rei, atraiçoaram aquele por benefício do qual gozavam
de vida e liberdade, revelando a Saul que ele se encontrava escondido entre
eles. Por consequência, viu-se obrigado a fugir dali e a dar-se pressa para
evitar cair, por obra dos denunciantes, nas mãos de Saul. Portanto, para ele
nada era seguro; em nenhuma parte estava livre de emboscadas; nada ou
ninguém o libertava de cuidados e inquietações. Restava-lhe aquele que é o
único refúgio de todas as desgraças, animado com o qual votava a desprezo
todos os ardis e armadilhas. Por consequência, tendo conseguido escapar,
graças à ajuda divina, dos enganos dos perversíssimos homens, dirigiu a
Deus humildes rogativas no teor seguinte:
Senhor, poiado não na minha virtude, mas amparado na Tua graça,
eu Te peço que, por amor da glória do Teu nome, protejas a minha
segurança da crueldade dos meus adversários, e que com a Tua potência
defendas a minha causa da calúnia daqueles que dominam. [281] É que
Tu és testemunha da minha inocência, e mesmo assim, devido ao poder
do inimigo, os meus direitos são acalcanhados e o adversário exulta
vencedor, graças à calúnia, ao assacar-me falsamente o crime de traição.
Escuta, Senhor, os meus rogos e com ouvido muito atento atende às
palavras da minha boca. Homens alheios de todo o zelo da piedade e
da humanidade levantam-se desvairadamente contra mim e, como se
avantajam sobremodo em poder e riquezas, reclamam o meu sangue e
a minha vida; e o medo à Tua santíssima divindade de modo algum os
desvia de um tão grande crime. É que nem pensam que Tu vês tudo que
se faz e ponderas e avalias o cumprimento dos deveres, por forma a
protegeres a inocência e punires o crime com o merecido castigo.
Oh audácia monstruosa a daqueles que nenhum temor do juízo divino
desvia de tão grandes atentados! Mas é debalde que se empenharão
em tão grande crime, pois eis que Deus vem em minha ajuda e toma
à Sua conta velar pela minha alma com Sua proteção e auxílio. E por
isso o mal, que ímpia e sacrilegamente contra mim maquinam, graças
ao Teu juízo, Senhor, recairá sobre os meus adversários e, a fim de
cumprires a Tua palavra, com a qual me prometeste que haverias de
ser o protetor da minha salvação e o vingador das injustiças que sofri,
aniquila completamente aqueles que, contrariando a Tua lei, preparam a
minha perdição. E, uma vez que alcancei, mediante a Tua imensa graça
382 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 54
(55 entre os Hebreus)
Ouve, ó Deus, a minha oração.
SALMO 55
(56 entre os Hebreus)
Tem misericórdia de mim, ó Deus,
porque o homemme pisou com os pés.
David, fugindo das mãos e ciladas dos seus, cai nas mãos dos inimigos;
teve a experiência de que homens estrangeiros, aos quais agredira e
enfraquecera com muitos golpes, com ele se mostraram mais compassivos
do que os seus concidadãos, aos quais oferecera a prosperidade. Todavia,
encontrando-se em poder dos palestinos, ao seu modo pediu humildemente
a Deus misericórdia deste modo:
Enxergas, Senhor, com quão grande sanha e desumanidade me avexa
e maltrata e ultraja aquele homem a quem, com a Tua ajuda, tantas vezes
libertei da desgraça que o ameaçava? Todos os dias aparelha guerra contra
mim e não faz pausa alguma em tanta crueldade. Tu, por conseguinte, que
és o único salutar socorro da minha vida, toma a Teu cargo defender-me.
É que os meus inimigos empenham-se com imensas forças em perder-me e
atribular-me e incessantemente movem contra mim uma guerra terrível e fatal,
ó Rei excelso. Mas, quanto mais ameaças me fizerem para atemorizar-me,
tanto mais firmemente confiarei na Tua bondade. Gloriar-me-ei na palavra do
Senhor, na qual me mostra esperança de salvação; tenho depositada a minha
esperança n'Aquele cuja potência não pode quebrantar-se e cuja fidelidade
não pode sofrer abalos, e por isso nada temerei que a carne maquina para
a minha perdição. As minhas palavras são sem cessar caluniadas; aquilo
que digo com espírito puro interpretam-no da pior maneira, e todos os
pensamentos e desvelos deles estão consagrados à minha ruína. Preparam
armadilhas contra mim; escondem-se à falsa fé; espiam as minhas passadas,
390 D. JERÓNIMO OSÓRIO
a fim de, pelo modo que lhes for possível, me suprimirem a vida, como
vivamente desejaram. Confiam na malícia e na perversidade e têm para si
que devem buscar a sua prosperidade no engano e na injustiça. Mas Tu,
Senhor, uma vez que sempre Te mostras inimigo dos ímprobos, com a Tua ira
derrubas e destróis por completo todos os povos que têm ruins intentos.
Por conseguinte, Tu tens contadas as frequentes expulsões que amiúde
me obrigam a andar errante; não permites que as minhas lágrimas sejam
derramadas sem fruto; no Teu livro se consigna, para memória perpétua,
tudo o que, contra a justiça e o direito, eu suporto da parte dos meus
adversários. Os meus inimigos, atribulados pelas derrotas, hão de entregar-
se à fuga, quando eu Te invocar. É que estou certo de que o meu Deus há
de tomar à Sua conta a defesa da minha vida. Não me apoiarei nas minhas
forças; não hei de ensoberbecer-me com quaisquer merecimentos meus;
não me ufanarei da inteligência ou de quaisquer talentos, mas gloriar-
me-ei apenas da palavra e fé do Senhor, que sempre tenho firmemente
depositada na bondade de Deus. Esta fé me ampara; ela me arranca o
medo; ela me alivia de todos os cuidados; ela, finalmente, me tornará
vencedor dos adversários. É que, uma vez que me apoio na firmíssima
proteção de Deus, não me preocupo com o que os homens empreendem
contra a minha vida e posição. [285] É que serão vãos e baldados todos
os intentos dos homens realizados contra a proteção divina. Só a Ti pedi
auxílio; só a Ti, meu Deus, fiz promessas solenes, que cumprirei com
repetidas ações de graças. É que Tu salvaste da morte a minha alma; Tu
seguraste os meus pés para que não tropeçassem com perigo, por forma
a que eu possa alegremente avançar até à presença da Tua majestade e
ser iluminado pelo esplendor da luz, com a qual resplandecem os santos
homens, que são os únicos que gozam da verdadeira vida.
SALMO 56
(57 entre os Hebreus)
Tem piedade de mim, ó Deus, tem piedade de mim.
David persiste no mesmo queixume, uma vez que com Saul de nada
lhe serviram nem a inocência, nem os merecimentos nem a lealdade.
Na verdade, tão grande sanha, nascida da inveja, atormentava o mofino
rei que, embora se desse conta de que tinha podido ser morto mais de
uma vez por aquele a quem procurava matar, mesmo assim perseverava
no criminoso intento. Por conseguinte, da mesma maneira que Saul não
diminuía em um ápice no propósito criminoso, assim David não renunciava
ao zelo da oração e alcançava a ajuda de Deus contra o desvario humano.
Portanto, fala assim com Deus:
392 D. JERÓNIMO OSÓRIO
Senhor, vês com quanta violência sou atacado por aquele a quem
eu mesmo tão amiúde salvei com o máximo risco da minha vida.
E, sendo certo que, no meio de tão grandes dificuldades, fiquei privado
do socorro de todos (pois todos têm por ilícito de alguma forma aliviar
aquele a quem o rei odeia), resta que com a fé mais profunda me refugie
naquele seguríssimo baluarte em que se encerra a Tua misericórdia.
Por isso, tem piedade de mim, Senhor, visto que a minha alma não tem
amparo noutras forças e defesas e, assim como os pintos se escondem
sob as asas das mães quando se atemorizam com o voo do milhafre,
do açor ou da águia, da mesma maneira também confio em que hei
de esconder-me sob a proteção do Teu nome até que se acabe a cruel
tirania. Clamarei ao altíssimo Deus; humildes rogativas dirigirei ao
Senhor que singularmente me cumulou com as mercês da Sua bondade.
Enviará do céu socorro para com ele defender a minha segurança; e
com notório desdouro e ignomínia há de inquietar o adversário que se
empenha em atacar a minha vida e derramar meu sangue e por todos
os modos obscurecer a minha glória.
Oh imensa bondade de Deus, que nunca privas de salutar ajuda
aqueles que sempre têm os olhos postos em Ti! Deus enviou em meu
auxílio a Sua misericórdia, unida à Sua fidelidade. Dou-lhe o nome de
misericórdia porque, não tendo obrigações para com ninguém, mesmo
assim com muita compaixão acode aos que Lhe imploram ajuda; designo
como fidelidade aquela firmeza em cumprir o prometido (consoante
antes prometera) com que mui prestes leva socorro aos que a Si uniu
mediante um pacto. E por isso, ao retirar-me de tão grandes provações,
não só satisfaz à misericórdia, mas também, do mesmo passo, cumpre a
palavra que deu.
A minha alma, cercada pela Tua proteção, há de jazer entre leões
abrasados em raiva e crueldade. Porque lhes chamo leões? Antes devem
ser chamados ferozes bestas-feras, muito mais sanguinárias que os leões.
[286] Entre todas as espécies de feras não existe nada de mais agressivo
do que os homens perversos e ímpios. É que os dentes deles são pontas
de dardos e frechas, afiadas espadas as suas línguas. Na verdade, com as
suas palavras infligem uma ferida mortal, e trespassam amiúde do mesmo
passo as almas e os corpos, e frequentemente causam a destruição dos
bons, e não existe na terra coisa alguma que afaste uma peste tão grande
como é aquela com que a calúnia e maledicência da língua ameaçam
os bons. Mas, quantos mais perigos assoberbam os bons, tanto mais
claramente a Tua glória há de resplandecer, quando em todas as situações
desesperadas lhes ofereceres a Tua ajuda. Razão pela qual não cessarei
de pedir-Te com insistência que atendas à grandeza e majestade de Teu
nome, o que decerto farás se nas aflições e tribulações acudires àqueles
394 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 57
(58 entre os Hebreus)
Se verdadeiramente falais justiça.
os reis e manterdes o Estado em boa ordem sob o império das leis, acaso
cumpris o vosso dever? Acaso antepondes a santidade do direito à cobiça
e à ambição? Acaso considerais que deve preferir-se a verdade a todos
os proveitos, procurados com a mentira e a adulação? Acaso ao julgar
não vos deixais mover pela influência e temor dos poderosos, mas em
tudo procedeis de acordo com o estrito e exato acatamento da justiça?
[288] Certamente que não! E até, nos mais profundos recessos do coração
maquinais o crime; na terra, intentais com as vossas mãos a violência e
a injustiça; e com espírito impuro ponderais, não aquilo que o direito
reclama, mas o lucro que vos advém do que fizerdes. Oh procedimento
perverso e miserável! A que homens vemos que está entregue o Estado!
Cegos pela impiedade, vão empós das suas congénitas paixões; afastaram-
se de Deus; desde a sua concepção e desde o ventre materno têm a mente
perturbada por violento desvario; incessantemente falam mentira.
“Mas”, dirá porventura alguém, “estás a referir-te a um defeito que
não é excecional, mas sim comum, pois todos nascemos corrompidos
pelo pestilencial contágio dessa balda que, devido ao defeito da corrupta
natureza, nos torna propensos à infâmia e à mentira.”
É verdade. Mas a religião e a fé dos que vivamente desejam curar-se,
não só cura as enfermidades da natureza, mas também sara as feridas que
foram infligidas. Ora, os que desprezam e rechaçam e não temem os juízos
de Deus, não somente não podem recuperar das enfermidades da natureza,
como aumentam e acrescentam com a máxima eficácia as desregradas paixões
com que nasceram. A peçonha que têm guardada na boca, para atacarem
com palavras pestilenciais e venenosas aqueles aos quais pretendem destruir,
é totalmente semelhante à peçonha mortífera da serpente. E, assim como
as áspides tapam os ouvidos para impedirem que os cânticos do sábio
encantador as possam fazer mudar da sua natural agressividade e violência
para um estado de mansidão, da mesma maneira também esses por sua livre
e espontânea vontade fecham os ouvidos à verdade; não querem escutar os
ensinamentos da lei; recusam o senhorio de Deus; são muitíssimo hostis a
quem os aconselha; finalmente, de forma alguma querem que os ensinem
acerca das regras do dever e da virtude. Ó santíssimo Senhor, com a devida
vingança atalha à maledicência dos homens perversos; quebra-lhes na
boca os seus dentes; arranca-lhes os queixais de leões (é que as calúnias
do crime e da impiedade não são menos temíveis do que as mordidas dos
leões), para que os insultos não se espalhem mais, para perdição de muitos.
Que as forças deles se derramem como águas que espontaneamente e por
sua própria natureza, sem que ninguém as empurre, se dissipam. Quando
quiserem atirar, os golpes tornem-se tão fracos que as suas setas pareçam
quebradas. Como a lesma se desfaz com a lentidão do seu movimento,
assim também eles não vão avante em seus intentos, mas os seus empenhos
400 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 58
(59 entre os Hebreus)
Livra-me, meu Deus, de meus inimigos.
SALMO 59
(60 entre os Hebreus)
Ó Deus, desamparaste-nos.
Mirus homo fuit hic diuinus uir. Metus eum multis in locis urgebat
et spes numquam deficiebat. Pericula illi frequenter imminebant
et fides nullo tempore claudicabat, ita ut essent illi optanda
pericula, quibus fidem exerceret et saepius Dei misericordiam
imploraret. Quo enim acrius eum hostes insectabantur, eo
frequentius colloquio diuino fruebatur et praeterea numquam
animus illius a Christi studio et contemplatione discedebat. Sic
autem hoc in loco apud Deum agit:
OPERA OMNIA TOMO IV 413
SALMO 60
(61 entre os Hebreus)
Ouve, Deus meu, a minha deprecação.
SALMO 61
(62 entre os Hebreus)
Porventura a minha alma não estará sujeita a Deus?
que não tenha sido dado por Ele e defendido pela Sua graça e ajuda, não
há nada capaz de arrancar-me da minha firme posição. Em Deus está a
minha salvação e dignidade; em Deus encontra-se o seguríssimo vigor da
minha fortaleza, a firmeza e sustentáculo da minha esperança.
Ó mortais, prestai atenção e escutai com a máxima ponderação
as minhas palavras. Desprezai o que é perecível e caduco; depositai
unicamente em Deus a vossa esperança; derramai na Sua presença as
vossas preces, saídas do mais fundo do coração. É que cumpre que n'Ele
coloquemos com a mais firme confiança toda a esperança. Oh bondade
imensa, que nunca desprezaste as rogativas dos humildes! Mas a multidão
dos homens é vaidade; mas é mentira o prestígio da nobreza. Se em um
dos pratos da balança se puserem os pensamentos de todos os homens,
e no outro o nada da própria vaidade, sucederá que a própria vaidade há
de pesar mais. Portanto, ó homens, não ponhais na calúnia a esperança
da vida; não vos ensoberbeçais vãmente com as rapinas; se as riquezas
afluírem quantiosas, não fixeis nelas o vosso pensamento, pois tudo corre
e passa e se desvanece num ápice de tempo e deixa as mais das vezes
um motivo de grandíssima dor. Olhai com atenção para os bens eternos;
procurai conseguir as imortais riquezas; desprezai os enganos da vida;
esforçai a vossa alma com a palavra de Deus, o qual nem engana nem
poderá jamais mudar. É que Deus fala uma só vez, pois não é inconstante,
variável e tornadiço: de facto, o tudo o que prometeu, há de cumprir. D'Ele
escutei duas coisas que nunca hão de escapar-se da minha alma. Uma é
que se encontra provido de poder infinito; a outra, que está muitíssimo
disposto a fazer coisas boas. Logo, uma vez que é impossível que o Seu
poder se quebrante ou a Sua misericórdia se exaura, sucede que só
Ele pode dar a salvação a todos os que se apoiam nas Suas palavras e
promessas e regulam as suas vidas em conformidade com esta fé. Logo,
assim como são os mais sábios aqueles que se entregaram a Deus com
uma fé vivificante, da mesma maneira os que, ensoberbecidos com os
socorros humanos desprezaram a verdadeira ajuda, são totalmente fúteis.
Ora, para uns e para outros Tu, ó santíssimo Juiz, de acordo com os
merecimentos das obras, hás de destinar-lhes ou o prémio eterno ou o
perpétuo suplício.
SALMO 62
(63 entre os Hebreus)
Deus, ó meu Deus, em Ti estou vigilante desde o raiar da luz.
SALMO 63
(64 entre os Hebreus)
Ouve, ó Deus, a minha oração.
Quanto mais violentamente o santo varão era atacado pelas calúnias dos
inimigos, tanto mais instantemente pedia a Deus ajuda, e assim sucedia que
cada dia o seu entendimento voava mais alto para Deus. Daqui se conclui
quão venturosa é a condição dos bons: ou seja, daqueles cujos inimigos
hostilizam as virtudes e constrangidos lhes obedecem. Diz portanto:
Escuta, Senhor, a minha voz, que sai da mais profunda meditação do meu
coração, e livra a minha vida do terror que me incute o meu inimigo com
ameaças de extraordinária violência. Coloca-me em lugar secreto, para que
não possam fazer-me mal os ocultos conluios dos perversos homens para
perder-me nem irrompam os violentos tumultos dos malévolos cidadãos para
me matarem. Adota-se a deliberação; prepara-se o atentado; escolhem-se os
executores do crime; atiça-se a sacrílega turba para que através do maior dos
crimes atente contra a vida do inocente. As línguas afiam-se como espadas;
as palavras, transbordantes de crime, são lançadas como frechas embebidas
em mortal veneno, a fim de traspassarem inesperadamente e às ocultas o
varão impoluto; de sorrate armam-se laços; e têm tamanha confiança na sua
maldade que pensam que as pessoas não se dão conta daquilo que maquinam
com suma astúcia, do que põem por obra com espírito deveras criminoso,
do que se empenham em fazer com enorme crueldade. É que, contanto que
evitem os olhos dos homens, não se preocupam com a atenção de Deus.
Inventam embustes; com grande desvelo dissimulam o que foi decidido e
deliberado; e consagram todo seu afinco e zelo em conhecerem com toda
a segurança até aquilo [299] que se esconde no entendimento do varão e
se oculta no mais fundo do seu coração, a fim de mediante toda a sorte de
enganos arrancarem aos bons as deliberações para a vida. E por isso, ainda
que toda a espécie de crimes terríveis os torna hediondos, prometem-se a
si mesmos a impunidade graças à sua insigne malícia e arteirice. Mas Deus
há de aniquilá-los de súbito com as Suas setas e há de atormentá-los com
golpes repentinos.
As línguas deles hão de arruiná-los a eles mesmos, que com as palavras
fraguavam um atentado tão terrível, e causarão a morte dos que aparelhavam
426 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 64
(65 entre os Hebreus)
A Ti, ó Deus, Te são devidos os hinos em Sião.
a terra com bondade; Tu, com copiosas chuvas do céu caídas, hás de
trazer-lhe a fecundidade; Tu hás de enchê-la com colheitas e searas
copiosas e fartas; e hás de fazer que das sementes da justiça nasçam mui
abundantes frutos de justiça. Os aquedutos do Senhor, através dos quais
os regatos são conduzidos para as sementeiras, hão de transbordar de
modo maravilhoso; largamente fornecerás o cereal da Tua graça àqueles
que se arrolaram nas Tuas hostes, visto que na vida não existe outra
fecundidade senão aquela que fazes depender da Tua bondade. Regas
os sulcos da terra; desfazes os duros torrões; amolentas com a água das
chuvas a dura superfície da terra; com a Tua bondade, obrigas que as
sementes se desentranhem em rebentos; ao longo do ano inteiro a enches
com os Teus bens; os Teus carros celestiais incessantemente destilam
gordura na terra. As moradas da terra erma e sáfara hão de ressumar
águas perenes; os oiteiros hão de cobrir-se de verdura e cingir-se com
abundantíssima relva. Os campos vestir-se-ão de rebanhos; os vales
cobrir-se-ão de cereal. [301] Por conseguinte, as almas, tão nutridas
e cultivadas, colmadas com tão grandes frutos da graça de Deus e
tão abundantes de riquezas divinas, hão de exultar e com incessantes
cânticos e harmonias celebrarão os louvores de Deus.
SALMO 65
(66 entre os Hebreus)
Celebrai a Deus todos os da terra, dizei salmo ao Seu nome.
neste lugar David celebra é aquela que Cristo ofecereu a todo o género
humano sem qualquer distinção. Portanto, votando ao desprezo as
interpretações estreitas dos judeus, escutemos o fidelíssimo servidor
de Cristo e sapientíssimo intérprete dos desígnios divinos, felicitando
a todos os homens, povos, reinos e raças pela salvação geral e com
agradabilíssima melodia cantando os louvores do nosso libertador.
Com efeito, diz:
Ó vós, povos todos que habitais a terra, regozijai-vos; celebrai
um dia de festa; entoai loas a Deus com as mais alevantadas vozes.
Repito: cantai a glória do Seu nome e atribuí à Sua graça e bondade a
glória e o louvor, e não a vós mesmos. Aplicai à obra de Deus a vossa
penetração intelectual e admirai-a e dizei-Lhe: Quão terrível e temível
é a Tua grande virtude! Com efeito, com a força do Teu vigor sucedeu
que os inimigos capitais do Teu nome, que incessantemente travavam
guerra com a Tua lei, faltavam à palavra dada aos senhores, aos quais de
muito bom grado serviam, e passavam para Ti, a fim de militarem sob
as Tuas ordens e consumirem a existência inteira na adoração do Teu
nome. Apartaram-se da sensualidade; fugiram das nocivas deleitações;
desprezaram os criminosos mandados dos príncipes, a fim de Te
servirem exclusivamente a Ti; só de Ti sentirem receio; amarem-Te a
Ti com o maior dos amores e não se recusarem a nenhuns perigos a
bem da glória do Teu nome. Hão de adorar o Teu nome, não apenas
os judeus, criados no zelo da lei e estimulados pelos oráculos dos
profetas à esperança da salvação, mas todos os povos, desconhecedores
da lei divina, culpados de crimes infinitos e dedicados a abomináveis
cultos, subitamente a Ti convertidos, hão de adorar o Teu nome; hão
de cantar-Te sem cessar; [302] com cantos singularmente entoados,
hão consagrar loas ao Teu nome. Oh cousa sobremaneira espantosa!
Que povos infames pelas suas torpezas, senhoreados pela tirania da
cobiça, envilecidos por religiões falsas e abomináveis, enleados por
doenças incuráveis, de tal maneira se tenham abrasado no desejo da
mais verdadeira religião que nenhumas ameaças ou torturas os tenham
podido desviar da união com o seu libertador! Que de tal maneira se
tenha transformado em muitos a natureza humana que tenham preferido
a cruz aos prazeres, os insultos às honrarias e a morte à vida!
Vinde todos e vede as obras do Senhor e observai como são espantosos
os Seus desvelos para se ocupar com a salvação dos homens! Secou o mar
de tal maneira que, contendo as águas com grande força de uma parte
e da outra, no seu fundo se mostrava a superfície da terra seca, para
através dela os hebreus seguirem o seu caminho e escaparem das mãos
dos egípcios, os quais, ao quererem seguir pelo mesmo caminho, foram
engolidos pelas ondas, ao voltarem as águas ao seu primitivo lugar. Do
434 D. JERÓNIMO OSÓRIO
mesmo modo abriu-lhes através do Jordão caminho, para que por ele os
homens fiéis pudessem com enorme contentamento atravessar a pé seco.
Ora, com estes prodígios demonstrou-se que não haverá nada que impeça
o caminho da piedade e da justiça. Que o mar se oponha; que as vagas
se levantem; que os rios se ponham por diante; e, por derradeiro, que
todos as contrariedades das guerras ameacem com perigos as cabeças
dos que estão ao serviço da piedade: não existirá nada impedido com tão
grandes obstáculos que eles facilmente não derrubem; nada protegido
com tão grandes armamentos e defensas que eles não levem de rojo com
invencível fortaleza, até chegarem, com a mais cabal glória, ao lugar para
onde se dirigem. É que têm como guia e general o Senhor do mundo
inteiro que tudo abarca com Seu poder e fortaleza supremos, que lançou
os olhos sobre os povos para desviá-los da eterna perdição e os ornar
com divinos atavios. Mas os que recusarem o senhorio de Deus e se
opuserem à santíssima religião, hão de cair das suas posições e hão de
totalmente perecer.
Oh juízo do Senhor, que merece ser exalçado em todos os tempos,
com quão grande rigor aniquila aqueles que são hostis aos santíssimos
ensinamentos da justiça! Ó povos que até aqui fostes hóspedes e
estrangeiros, mas agora já gozais do direito de cidadãos da cidade
sempiterna: celebrai o nosso Deus, que vos ornou com tão grandes
dádivas, e fazei que a vossa voz, que contém os Seus louvores, ressoe
por toda a par te. É que Ele dá vida às nossas almas e for talece
com tão firme ajuda a nossa posição, que se apoia na fé, que não é
fácil que os nossos pés possam resvalar, mas antes assentam firmes
no caminho. Ora, isto vê-se sobretudo nas grandes adversidades.
Com efeito, quando tudo acontece de acordo com os desejos da
alma, é escasso merecimento respeitar a fé. É próprio de uma alma
grande e superior conservar a firmeza nas maiores adversidades e
contratempos e não deixar que os ataques dos inimigos a apartem
da retidão de juízo. Mas Tu, Senhor, a fim de pores à prova a nossa
fé, atribulaste-nos com muitos trabalhos e, assim como a prata se
apura com o fogo, afligiste-nos com inúmeras provações; fizeste-
nos cair nas ciladas dos homens per versos; oprimiste as nossas
espáduas com pesadíssimos fardos; impuseste às nossas cabeças o
jugo de crudelíssimos tiranos; atravessámos muitas vezes profundas
águas; fomos obrigados a correr através de toda a espécie de fogos;
finalmente, fomos cercados por todas as calamidades [303] e, ao cabo,
pela Tua graça, libertos de todos estes males, fomos introduzidos na
quietação e prazer de espírito.
Entrarei na Tua casa, Senhor, com holocaustos, isto é, com a
alma abrasada nas chamas de um vivíssimo amor, a fim de cumprir
436 D. JERÓNIMO OSÓRIO
c o m o s p r e s e n t e s p r o m e t i d o s o s vo t o s f e i t o s e c o m o d e v i d o
escrúpulo desonerar a minha palavra. É que, encontrando-me nas
maiores dif iculdades, f iz santíssima promessa e com as minhas
palavr as comprometi a minha alma por um jur amento que não
posso desprezar sem sacrílego e impuro crime. Oferecer-Te-ei um
holocausto de ricas vítimas sacrificiais; derramarei sobre o altar o
sangue dos carneiros; queimarei nas sagradas chamas rins e fígado;
imolarei bois juntamente com bodes. Ó grandiosidade da suprema
majestade, de nós não reclamas esta sorte de sacrifícios, mas pedes-
nos somente aqueles que são obscuramente significados por esses
rituais. Exiges as chamas do amor; exiges a castidade de vida; exiges
a santa obediência; vivamente desejas a morte da perversão; não
Te aplacas com o sangue das reses, mas pões termo à Tua ira com
o sangue daquele Cordeiro imaculado, derramado pela salvação
do género humano. Aproximai-vos, todos os que temeis a Deus, e
expor-vos-ei os grandes benefícios que Ele concedeu à minha alma.
Com elevadíssimos brados implorei a Sua ajuda; e, uma vez que me
deu a ajuda tal como eu lha pedira, emprego a língua para levantar
aos céus os Seus louvores. Eu quis pôr diante dos vossos olhos este
exemplo daquela suprema bondade para que vós jamais fraquejeis,
mas em todas as situações dificultosas com a máxima fé ergais as
mãos para o céu a fim de obterdes auxílio d' Aquele supremo Senhor
que nunca despreza os rogos dos humildes.
Todavia, quero que estejais avisados do seguinte: se pretendeis ser
escutados, abominai a iniquidade; abraçai a justiça, o mais que vos for
possível; e com impiedosa sanha aborrecei a injustiça. É que, uma vez que
Deus sente o máximo ódio pela iniquidade, será totalmente impossível que
reparta algo de amor e bondade com aqueles que se tornaram culpados
do crime de iniquidade. Com efeito, ao aproximar-me de Deus em atitude
suplicante, antes de mais penso em repelir para muitíssimo longe de mim
toda a mancha de iniquidade, uma vez que tenho a certeza de que a
minha oração não será agradável a Deus enquanto no meu íntimo nutrir
algum pensamento iníquo e injusto. O Senhor, porém, escutou-me e
prestou grande atenção à voz da minha rogativa. Que o nome do Senhor
seja por todos exalçado com os mais altos louvores ao longo de toda a
eternidade dos tempos, Ele que não me privou do fruto da oração nem
desviou de mim a misericórdia, mas de modo extraordinário encheu a
minha alma com as Suas riquezas.
438 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 66
(67 entre os Hebreus)
Deus tenha piedade de nós e nos abençoe, etc.
[305]
[305]
SALMO 67
(68 entre os Hebreus)
Levante-se Deus e sejam dispersos os Seus inimigos.
são feridos com muitos golpes. Então o faraó foi engolido juntamente com
todo o exército pelos profundezas do mar; agora o príncipe do mundo
foi devorado, juntamente com todos os pecados, pela voragem de uma
horribilíssima morte. Então Moisés era o guia da marcha; agora o espírito
de Cristo é quem mostra o caminho. Que direi acerca do pão caído do
céu? Da água extraída de duríssima fraga com um golpe do bordão? Da lei
gravada em tábuas de pedra pelas mãos do próprio Deus?
Acaso padece dúvidas de que mediante estas coisas se figuraram todas
as mercês e benefícios de Cristo? Com efeito, ele é o verdadeiro pão caído
do céu para restaurar com a vida verdadeira e eterna o mundo, abatido
pela arremetida da morte; a sua graça é a água salutar que extingue a sede
e maravilhosamente refaz a alma fatigada com o caminho; ele grava a lei
eterna nos corações humanos, para que nela pensem dia e noite e nunca
por razão alguma deixemos de zelá-la. Mas, para que hei de falar mais,
quando é manifesto que toda aquela marcha está repleta de espantosos
mistérios? Portanto, David, tendo-se proposto um brilhante discurso acerca
de Cristo e vendo que a peregrinação dele foi admiravelmente similar à
antiga marcha, entreteceu de tal maneira os acontecimentos passados com
os futuros e uniu as coisas humanas com as divinas que ensina a tomar
das coisas humanas semelhanças mediante as quais possamos entender
mais facilmente as divinas. Por outro lado, cumpre que se entenda que
Deus defende com tamanho cuidado e desvelo aqueles que acolhe sob a
Sua proteção que de modo algum deixa de defendê-los e, por esse motivo,
quando eles viajam, diz-se que o próprio Deus viaja; quando descansam,
que Ele descansa; quando pelejam, que peleja; finalmente, uma vez que
não se atrevem a empreender seja o que for sem a Sua ajuda, tudo o que
pensam, projetam, empreendem e fazem [306] com toda a razão e justiça
é referido a Deus. Ora, por este motivo se diz que Deus viaja, assenta
arraiais, vai à frente, vai atrás e outras muitas expressões com as quais
se pretende significar que as Suas ações não se separam da salvação dos
Seus. Ora, o sentido deste salmo resume-se no seguinte: o santo varão
pede a Deus que tudo quanto outrora fora prenunciado mediante figuras
e imagens seja levado à prática por Cristo, mediante factos totalmente
verdadeiros e sobremaneira admiráveis: como é óbvio, para aterrar os
eternos inimigos; para enriquecer os seus com os despojos dos adversários;
para alentar os caídos, e estabelecê-los ao cabo em moradas tranquilas,
isto é, no fruto da justiça. Diz portanto:
Tendo sido outrora Israel oprimido pelos Egípcios com uma insuportável
tirania, e durante muitíssimo tempo vexado por tributos pesadíssimos e
por trabalhos que não tinham fim e pela matança dos seus filhos recém-
nascidos, parecia que Deus dormia e fechava os olhos para os crimes dos
homens ímpios, sendo certo que entretanto Ele não votava a descaso a
444 D. JERÓNIMO OSÓRIO
sorte dos Seus. E por isso, quando foi oportuno, levantou-se, para atribular
com muitas pragas os inimigos e libertar Israel. Ora, isto realizar-se-á
muito mais claramente quando chegar o tempo da verdade em si mesma,
representada por sinais espantosos. Com efeito, Deus levantar-se-á; os
Seus eternos inimigos hão de ser dispersos; e hão de repentinamente
entregar-se à fuga todos os que o odeiam, para não se exporem a Seu
cenho irado. Assim como o fumo é disperso pelo vento, hás de dispersá-
los, Senhor, e como a cera, liquefazendo-se perto do fogo, se espalha,
assim, com a vinda da divina majestade, hão de perecer os ímpios. E os
justos hão de alegrar-se na vinda do Senhor e hão de exultar e, com as
almas incrivelmente jubilosas, hão viver gozando da mais cabal deleitação.
É que os seus olhos hão contemplar aquilo que ardentemente tinham
desejado, aquilo que veementemente tinham pedido a Deus, aquilo que
todos os santos homens desde o começo do género humano vivamente
tinham desejado ver. Entoai cânticos ao Senhor; celebrai o Seu nome
com hinos e cantos; aparelhai o caminho para Aquele que, assim como
outrora, quando Israel peregrinava pelos desertos da Arábia, tomava em
pessoa a dianteira, do mesmo modo agora se desloca através do desolado
ermo deste mundo. Com efeito, ainda que a Sua divindade se oculte sob
forma e aparência humana, é o verdadeiro Deus e este é o Seu nome
que deve ser apregoado pela eternidade dos tempos.
Por conseguinte, não é sem motivo que na Sua presença os homens
santos hão de ficar arrebatados de alegria e contentamento e à porfia
hão de esforçar-se por preparar o caminho com fé, humildade e ardente
zelo da piedade. Não estamos à espera de um tirano que considere
presa sua as riquezas dos homens mais fracos e cuja única preocupação
se cifre em aumentar e acumular tesoiros mediante os maiores crimes e
injustiças, mas de um Rei que se avantaje pelos merecimentos da justiça,
da liberdade e da misericórdia. É, com efeito, o pai dos órfãos, o protetor
e patrono das viúvas, o Senhor e a ajuda singular e invencível de todos
que confiantemente imploram a Sua divindade. Com efeito, por isso
estabeleceu para Si na natureza humana uma morada e domicílio estável,
a fim de, a partir da santidade e religiosidade de um tão sagrado templo,
escutar mais facilmente as preces de todos os fiéis. Oh, Senhor, quando,
saindo do Egito, com espantosa misericórdia ias na dianteira do Teu povo e
jornadeavas através das solidões desertas, como foi extraordinária a mostra
que deste àquela multidão da Tua virtude pessoalmente presente! Com quão
admiráveis sinais revelaste antecipadamente os futuros benefícios! [307] É
que a terra, tremendo com grandes abalos, soltava assustadores mugidos;
o céu parecia ruir com as chuvas e tempestades, que estrondosamente
caíram; a natureza inteira tremia na Tua presença, e até o monte Sinai,
consagrado à veneração da lei divina, quase foi arrancado, na presença
446 D. JERÓNIMO OSÓRIO
SALMO 68
(69 entre os Hebreus)
Salva-me, ó Deus.
faltas, mas pelas alheias. Senhor, se tramei alguma coisa de modo irrefletido
e insensato, se me tornei culpado de alguma infâmia, se incorri em faltas
merecedoras de suplício, Tu o sabes perfeitamente; por isso, invoco-Te
como testemunha da minha inocência e pureza, para que, com o Teu
testemunho verdadeiro e santíssimo, veles pela minha honra, ultrajada pelo
falso testemunho da vaidade. Faz que a ignomínia da cruz não aparte do
ardente zelo da piedade aqueles que põem em Ti a esperança da salvação,
ó Senhor, a quem obedecem os exércitos celestiais e que deténs o poder
supremo sobre todas as coisas, de tal forma que Te é muitíssimo fácil
socorrer aqueles que Te servem com todo o coração. Rogo-Te, ó guardião
invencível de Israel, que não permitas que os que acodem só a Ti sejam
infamados com a mancha do desdouro. É que se forem privados da Tua
ajuda e abandonados na adversidade, serão escarnecidos por todos os
mortais como homens desassisados que, desprezando tudo o mais, só de
Ti esperaram socorro na tribulação: [313] e é isto o que acontecerá, se
não me socorreres na devida altura.
Ora, quem Te procurou com maior amor? Quem Te adorou com maior
santidade? Quem é que alguma vez Te seguiu com maior diligência?
Por amor da glória do Teu nome fui insultado e o meu rosto expôs-se
ao maior opróbrio e ignomínia. Tornei-me um estranho para os meus
irmãos e os filhos da minha mãe, descendentes da mesma linhagem e
instruídos com os mesmos ensinamentos da santa república, afastaram-se
escandalizados com o vexame do meu suplício. Devora-me e me consome
o zelo da Tua casa; recaíram sobre mim os ultrajes que os homens
perversos lançam contra a Tua majestade. De facto, não tolero que a
Tua lei seja conculcada, que a religião seja desprezada, que a justiça
seja oprimida, que a santidade da Igreja seja violada, não suporto ver
manchados e pervertidos os costumes dos homens e, o que é o mais grave
de tudo, que se profiram indigníssimos insultos contra o Teu nome. É
que, como se não Te ocupasses com os assuntos humanos, ou como se
não pudesses punir o crime, ou como se as dádivas Te dissuadissem da
vingança, assim eles falsamente Te acusam de negligência ou de fraqueza
ou de injustiça, e, uma vez que não se arreceiam do Teu julgamento,
arremetem contra o Teu nome com toda a casta de insultos. Por isso,
vivamente me atormenta este agravo criminoso; não posso reprimir
esta justíssima indignação; este cuidado empurra-me para o suplício
e, finalmente, penso que devo suportar todos os ultrajes por forma a
apagar os ultrajes inferidos ao Teu nome, para que assim resplandeça o
brilho da Tua glória. Impelido por esta preocupação, atribulei vivamente
a minha alma com incessante pranto e jejum: algo que os meus inimigos
me lançaram em rosto como a maior das afrontas; ao vestir-me de luto
em sinal do justíssimo pesar, cevavam em mim a sua maledicência e,
462 D. JERÓNIMO OSÓRIO
Tu, Senhor, estás ciente dos insultos com que sou perseguido pelos
meus inimigos, dos ultrajes com que eles me atormentam, das notas de
infâmia que sobre mim irrogam: na verdade, os perversos atentados dos
inimigos maquinam-se à Tua vista. O opróbrio atormenta o meu coração;
sou torturado por uma dor insuportável; procurei ver se havia alguém que
se comovesse com a minha dor, e não vi ninguém, alguém que tentasse
consolar-me, e não encontrei ninguém; como alimento, deram-me fel,
e, como eu estava com sede, ofereceram-me vinagre a beber. Portanto,
devido à ruindade do sentimento criminoso e da crueldade, tornaram-
se insensíveis à misericórdia, ao perseguirem o autor da salvação com
um ódio tão violento que não conseguem saciá-lo nem satisfazê-lo com
nenhuns suplícios a ele aplicados. Portanto, está em consonância com o
direito divino que os que afastaram de si a misericórdia experimentem
a ira divina e sejam severa e eternamente atormentados com terríveis
suplícios. Em primeiro lugar, que se arme uma cilada na sua mesa, de onde
estão confiantes de que hão de comer requintadas iguarias, e que nela
caiam de maneira a não puderem libertar-se. Ora, a mesa é a doutrina da
Santa Escritura, que só entendem aqueles que possuem uma inteligência
pura e que são iluminados pelo esplendor da luz divina, ao passo que
os restantes, a quem a impiedade cegou, estão tão longe de colherem o
fruto do estudo delas que antes aí bebem o veneno que os consome por
desgraçados modos. Com efeito, esforçam-se por interpretar os oráculos
divinos de acordo com o seu capricho e o seu sacrílego instinto criminoso
e por obscurecer coisas claríssimas com trevas abomináveis. Portanto,
receberão o castigo do mais abominável dos atentados e cairão nas malhas
das armadilhas, para daí serem precipitados no tormento eterno.
Que os seus olhos se obscureçam, para que não vejam, e as suas costas
se abatam sob cargas intoleráveis. Que vivam continuamente nas trevas
e numa execrável cegueira de entendimento, e de tal modo os atem os
grilhões da eterna servidão e os oprimam cruéis imposições que nunca
possam respirar livremente. Deixa cair sobre eles a Tua ira e que lhes
seja totalmente impossível escapar à violência da Tua indignação. Que a
mais completa devastação se abata sobre o templo e os edifícios santos
em que pareciam apoiar-se e ter confiança, e que as casas, que habitavam,
venham abaixo à semelhança de tendas, e que, por derradeiro, a cidade
inteira seja abandonada pelos seus habitantes. Que acabe a sua religião
e o seu sacerdócio e o seu Estado e, finalmente, que não fique nenhum
vestígio da primitiva lei nem nenhum sinal do antigo esplendor. É que,
Senhor, perseguiram aquele que Tu castigaste, [315] aquele cujo estado,
nesta altura, mais era merecedor de ser consolado com humanidade do que
mais intensamente atribulado com um acréscimo de dor, e com palavras
cheias de impudência insultaram-me pelas feridas que me infligiste.
466 D. JERÓNIMO OSÓRIO
Que o crime deles (como acontece aos que não querem arrepender-se e
renunciam à tua ajuda) se acrescente com novos crimes e que nunca se
tornem participantes da Tua justiça, que assenta na graça do Teu poder
divino. Que sejam riscados do livro dos vivos e que os não façam constar
da lista dos justos. Mas a mim, atribulado pela pobreza e oprimido pelas
dores, a Tua misericórdia, Senhor, há de aliviar-me e colocar-me na
posição mais cimeira.
Por isso, quando surgir das trevas e ressuscitar de entre os mortos,
hei de louvar o nome do Senhor com cânticos e poemas e, confessando
as graças recebidas, elevarei até ao Céu a sua honra e glória. Certamente
que esta oferta lhe há de ser de longe mais agradável e muitíssimo
mais aceita do que se lhe oferecesse em sacrifício um boi ou um
tenro vitelo cujos chifres e unhas começassem a despontar. É que, se
rejeita o sacrifício da lei, é porque exige um sacrifício de graças, e,
quanto maior e mais esplêndido é o sacrifício, tanto mais agradável
Lhe é um sacrifício de louvor. Logo, uma vez que jamais existiu um
sacrifício maior e mais importante, segue-se necessariamente que o
meu louvor, dado ao maior de todos os benefícios, supera em muito
todas as demonstrações de religiosidade. Os humildes e atribulados,
pondo em mim os olhos, sentir-se-ão aliviados de todo o cuidado e
inquietação e maravilhosamente exultarão de alegria. Regozijai-vos,
todos os que procurais a Deus, porquanto as vossas almas, possuidoras
da graça divina, hão de desfrutar da vida eterna. É que o Senhor escuta
os pobres e arrancará das trevas os Seus cativos, para que vivam na
glória e alegria dos seres celestiais. Que a região celestial celebre
o louvor do Senhor; que a terra faça ressoar com voz festiva a Sua
glória; que se alegrem todos os mares juntamente com os animais que
nadam nas águas e se movem nas profundezas. É que o Senhor trará
a salvação à Sião celestial e edificará as cidades da Judeia e nelas
habitarão os homens fiéis e obterão o direito da cidadania eterna.
Os descendentes dos que servem o Senhor alcançá-la-ão por posse
hereditária e os que amam o nome d'Ele, seja qual for a sua raça e
independentemente da região de onde vierem, terão nela uma morada
estável e eterna.
SALMO 69
(70 entre os Hebreus)
Ó Deus, atende ao meu socorro.
SALMO 70
(71 entre os Hebreus)
Em Ti, Senhor, tenho esperado, não seja eu jamais confundido.
SALMO 71
(72 entre os Hebreus)
Ó Deus, dá o Teu juízo ao rei.
seu juízo nasce dos sentidos; ora, os enganos dos homens perversos
armam contra os sentidos toda a espécie de ciladas. Nada existe de
puro na vida; nada de singelo; nada de íntegro; nada que não esteja
sujeito a infinitos enganos. Então, que remédio poderá aplicar-se a tão
grandes males? Certamente que só um, cuja dilação não podemos tolerar.
Que venha enfim aquele Rei supremo, com cuja esperança se alentam
as nossas almas, fortemente atribuladas com a demora de tão grande
bem. Oferece o Teu juízo a este santíssimo rei e partilha totalmente
a santidade da justiça com o filho do rei (pois nascerá de mim, nos
tempos definidos pela Tua deliberação, aquele a quem fizeste rei). Ao
julgar, ninguém o enganará, porque não consultará os sentidos, que
mui amiúde enganam, mas pronunciará sentença em conformidade com
a verdade que com divino entendimento há de abarcar. Exporá a lei ao
Teu povo, juntamente com a pureza da justiça; e decidirá a favor dos
Teus pobres, oprimidos em juízo iníquo.
Os montes trarão paz para o povo e os oiteiros oferecerão a justiça.
[320] É que a crueldade e o ódio, completamente esmagados, hão de
emudecer; há de inflamar-se a caridade dos homens; há de reviver a
extinta piedade; por toda a parte hão de nascer os abundantes frutos da
justiça, ao ponto de até os sáfaros e incultos montes se desentranharem em
abundantíssima seara de justiça. Com a equidade da lei há de defender os
pobres do povo, atribulados com desprezo da lei; aos filhos dos pobres,
privados de todo o socorro, dará salvação e prosperidade, e destruirá em
rigoroso juízo o caluniador. Com efeito, há de livrar das calúnias todos os
que a si mesmos nada atribuem, que se humilham diante da Tua imensa
majestade e só em Ti depositam toda a esperança de salvação; e há de
derrubar o autor da calúnia e príncipe das trevas, cujo ofício é assacar
crimes inventados aos homens santos. A religião que ele instaurou não
será limitada por quaisquer fronteiras, pois será eterna. Com efeito, os
que militarem sob o seu pendão, enquanto o sol percorrer o céu com
o seu movimento e enquanto a lua com o seu resplendor dispersar a
cerração noturna, respeitarão o Teu nome e com espírito puro e casto
hão de oferecer-Te sacrifícios. Como a chuva, caindo no devastado
prado, veste de novo com mui viçosa grama a própria terra, despojada
de verdura, e como as águas das bátegas, derramando-se, amolecem a
face da terra e causam a fertilidade dos campos, da mesma maneira a
sua graça, espalhando-se pelas almas, mirradas pelos solos das infâmias,
há de regá-las e delas fará brotar mui abundantes pastos de justos e
fartíssimos frutos de excelente virtude.
Nos dias dele, isto é, enquanto o divino esplendor do Rei eterno brilhar
nos entendimentos humanos, qualquer justo dará rebentos e produzirá
frutos salutares para proveito geral. E uma vez que esta justiça, que
480 D. JERÓNIMO OSÓRIO
proferet. Cum uero haec iustitia, quam rex hic maximus terris
allaturus est, sempiterna futura sit, et cum pax opus iustitiae
sit, necessario consequetur ut pacis illius affluentia sit etiam
sempiterna. Vt igitur Luna deficiat, illius pax semper in omni
saeculorum aeternitate inuiolata permanebit. Animus enim
hominis iusti nullo seruili metu belli illius conturbabitur quo
Deus in hominum scelus inuehitur, cum scelus sit in hominis
iusti mente, Spiritus sancti gratia, deletum et iustus ipse sit
cum ipso rerum omnium Domino, amoris ardentissimi foedere
inuiolabili, copulatus. Imperium illius ad utriusque maris
oras latissime pertinebit et deinde, orientem solem uersus, a
magno flumine ad extremos terrae fines erit extensum. Gentes
etiam immanes et efferatae sese supplices in conspectu illius
abiicient et hostes, malis edomiti, coram illo strati procumbent,
ut puluerem lingere compellantur. Reges, qui Tarsum et terras
quae ad Septemtriones spectant in ditione tenent, et qui uersus
Occidentem solem insulis et ciuitatibus, quas populorum
fluctus circumcingunt, dominantur, et qui ad austrum Arabiam
et Aethiopiam imperio complectuntur, illi munera deserent, et
reliqui etiam reges, illis finitimi, imperata tributa persoluent.
Omnes denique reges numini illius supplicabunt et cunctae
nationes illi seruient et leges illius libenter accipient.
Iustitiae namque splendore et clemetiae magnitudine
cunctos ad se mortales alliciet. Eripiet enim pauperem
ab eo qui non iure, sed clamore et conuicio, disceptat, ut
sit in humanis iudiciis, et inopis deserti, ab omniumque
patrocinio derelicti, causam suscipiet. Homini tenui et
egenti misericordiam tribuet et animas [321] pauperum,
miserabiliter afflictas, salute constituta, reficiet. Ex usuris
et iniquorum hominum uiolentia uitam eorum redimet
et sanguinem eorum, pro sanctitate profusum, plurimi
faciet. Nam, et illos sempiterno praemio remunerabit, et
scelus eorum, qui tantum et tam immane facinus ausi sunt,
sempiternis cruciatibus ulciscetur. Ille quidem hostium
strages edet multosque mortales interneciuo bello delebit.
Qui uero superstes et misericordia illius conseruatus
exstiterit, uita fruetur eique tributum ex auro Arabiae,
nempe purissimo, quo flagrantissimae fidei munus et
officium designatur, exsoluet; illum pro salute sua perpetuo
deprecabitur; illiusque nomen laudibus singulis afficiet;
doctrinae fructus longe progredietur; et ex exiguo frumenti
numero, qui sementem fecerit, laetissimas fruges exarabit.
OPERA OMNIA TOMO IV 481
este máximo rei há de oferecer à terra, há de ser eterna, e uma vez que
a paz é obra da justiça, seguir-se-á como consequência forçosa que a
abundância daquela paz também há de ser eterna. Por conseguinte, ainda
que a lua se eclipse, a paz dele há de permanecer sempre inviolada por
toda a eternidade dos séculos. É que a alma do homem justo não se há
de perturbar com nenhum medo servil daquela guerra com a qual Deus
arremete contra o crime dos homens, uma vez que no entendimento
do homem justo o crime foi destruído pela graça do Espírito Santo e o
próprio justo se uniu com o próprio Senhor de todas as coisas por um
pacto inviolável de ardentíssimo amor. O domínio dele mui vastamente
há de estender-se até aos litorais de ambos os mares e depois, na direção
do levante, dilatar-se-á desde o grande rio até os últimos confins da
terra. Até os povos cruéis e asselvajados na presença dele hão rojar-se
humildes no chão e os inimigos, amansados pelos males, diante dele hão
prostrar-se, por forma a serem obrigados a lamber a poeira. Os reis, que
senhoreiam Társis e as terras que ficam para o setentrião e os que, para
os lados do poente, dominam as ilhas e cidades, que as ondas cingem,
e os que, para o austro, exercem a soberania na Arábia e na Etiópia,
todos eles hão de trazer presentes, e também os restantes reis, vizinhos,
daqueles, hão de pagar os exigidos tributos. Finalmente, todos os reis
hão de dirigir preces à sua divindade e todos os povos hão de servi-lo
e hão de aceitar de bom grado as suas leis.
Com efeito, com o esplendor da justiça e a grande misericórdia
há de atrair para si todos os mortais. É que arrancará o pobre das
mãos daquele que julga, não de acordo com a lei, mas com brados e
insultos, como se faz nos julgamentos humanos, e tomará a defesa do
pobre abandonado, a quem todos deixaram sem defesa. Há de mostrar
misericórdia para com o homem fraco e necessitado e, [321] restituindo-
lhes a saúde, há de alentar as almas dos pobres, miseravelmente
atribuladas. E libertará a existência deles das usuras e violência dos
homens iníquos e dará muito valor ao sangue que eles derramarem
em prol da santidade. Com efeito, não só os recompensará com um
prémio sempiterno, como também vingará com tormentos perpétuos o
crime daqueles que se atreveram a tão grande e tão desumano atentado.
Ele certamente causará a destruição dos inimigos e aniquilará muitos
humanos em mortais guerras. E quem ficar, por escapar e sobreviver
graças à Sua misericórdia, gozará da vida e pagar-lhe-á como tributo
ouro da Arábia, ou seja, o mais puro, pelo qual se designa o ofício e
função da abrasadíssima fé; incessantemente lhe dirigirá rogativas pela
sua salvação; e cobrirá o seu nome com singulares louvores; os frutos da
doutrina hão de avançar até longe; e de um escasso número de cereal,
que tiver sido semeado, há de colher abundantíssimas messes. É que
482 D. JERÓNIMO OSÓRIO
[322]
[322]
SALMO 72
(73 entre os Hebreus)
Quão bom é Deus para Israel! Para os que são retos de coração.
SALMO 73
(74 entre os Hebreus)
Por que razão, ó Deus, nos hás desamparado para sempre?
com as quais avexam com toda a sorte de impropérios o Teu nome, não
pondo qualquer espécie de termo ao seu desvario, e até tornando-se de
dia para dia mais turbulentas as agitações que armam.
SALMO 74
(75 entre os Hebreus)
Nós Te glorificaremos, ó Deus, confessaremos.
Neste salmo fala-se não de tristeza, mas de uma alegria fora do comum.
Com efeito, apresenta-se-nos Deus convidando a comunidade dos homens
piedosos a celebrarem dias de festa com solene ritual. De facto, dá a conhecer
ameaças; anuncia o juízo; profetiza a morte dos inimigos; mostra que a
glória dos bons há de ser extraordinária. Por conseguinte, o profeta dá a
Deus os mais elevados agradecimentos por tão grandes benefícios como
foram todos os que ofereceu em geral ao género humano; ao passo que
Deus promete aos Seus toda a espécie de alegrias, felicidades e venturas.
Ora, é do modo seguinte que o profeta exprime o seu pensamento:
Exalçar-Te-emos com louvores perpétuos, Senhor; exalçar-Te-emos com
louvores perpétuos, e aqueles que mais perto chegarem no conhecimento
do Teu nome, hão de enumerar as maravilhosas obras da Tua divindade
com verbo mais abundante e mais grandioso atavio de palavras. Que
responde a isto o próprio Deus? Diz Ele:
“Se a muitos pareceu que protelei a minha ajuda durante mais tempo
do que pediam os rogos e preces dos meus, era a fraqueza humana que
os impelia a errarem. O juízo divino, porém, nem sempre é guiado de
acordo com o desejo dos homens piedosos, mas sempre em conformidade
com a salvação deles. Ora, a piedade deles deveria ser posta à prova
mediante tribulações; em muitos existiam manchas de infâmias; cumpria
lavá-las com os castigos que lhes foram impostos; era mister que, por
amor dos justos, suportassem os perversos, a fim de servirem à glória
daqueles. Mas, quando estiver concluída a minha obra, por causa da
qual não fiz caso do agravo, será chegado o ensejo oportuno para com
o devido rigor dar início ao julgamento: a terra ruirá e liquefar-se-á; os
que a cultivam, fundindo-se do mesmo modo, hão de perecer; aqueles
[329] todavia que se apoiam na minha graça, ainda que o céu desabe
e a terra seja arrastada para o meio do mar, hão de manter com divina
firmeza a sua posição. É que fui Eu quem fixou as colunas da terra que
há de ser possuída por eles.”
Oh coisa sobremaneira espantosa! Hão de cair o céu e a terra e tudo
o que o âmbito do céu rodeia; e na terra não haverá nada de tão grande
solidez e firmeza que não deva ser totalmente destruído, e, por entre o
502 D. JERÓNIMO OSÓRIO
ÍNDICE GERAL
Salmo 29 199
Salmo 30 205
Salmo 31 215
Salmo 32 223
Salmo 33 231
Salmo 34 239
Salmo 35 245
Salmo 36 251
Salmo 37 265
Salmo 38 271
Salmo 39 279
Salmo 40 289
Salmo 41 293
Salmo 42 299
Salmo 43 303
Salmo 44 309
Salmo 45 321
Salmo 46 327
Salmo 47 333
Salmo 48 341
Salmo 49 351
Salmo 50 359
Salmo 51 373
Salmo 52 375
Salmo 53 381
Salmo 54 383
Salmo 55 389
Salmo 56 391
Salmo 57 397
Salmo 58 401
Salmo 59 407
Salmo 60 413
Salmo 61 415
Salmo 62 419
Salmo 63 425
Salmo 64 427
Salmo 65 431
Salmo 66 439
Salmo 67 441
Salmo 68 459
Salmo 69 467
Salmo 70 469
OPERA OMNIA TOMO IV 507
Salmo 71 477
Salmo 72 485
Salmo 73 493
Salmo 74 501
Í nd ice G er a l 505