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Portvgaliae

Monvmenta Neolatina
V o l . XVIII

D. J e r ó n i m o O s ó r i o

Opera Omnia
tomo iv

Paráfrase aos Salmos

I mprensa da U niversidade de C oimbra


C oimbra U niversity P ress
INTRODUÇÃO 1

P o r t vg a l i a e
M o n v m e n ta N e o l at i n a

Coordenação Científica

A P E N E L
Associação Por tuguesa de Estudos Neolatinos
2 METAFÍSICA

COOR DENAÇÃO CIEN TÍFICA


Associação Portuguesa de Estudos Neolatinos - APENEL

DIR EÇÃO
Sebastião Tavares de Pinho, Arnaldo do Espírito Santo,
Virgínia Soares Pereira, António Manuel R. Rebelo,
João Nunes Torrão, Carlos Ascenso André,
Manuel José de Sousa Barbosa

COOR DENAÇÃO EDITOR I A L


Maria João Padez de Castro

EDIÇÃO
Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: imprensa@uc.pt
URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc

CONCEÇÃO GR Á FICA
Imprensa da Universidade de Coimbra

PR É -IMPR ESSÃO
Simões e Linhares, Lda.

PR IN T BY
KDP

ISBN
978-989-26-1371-0

ISBN D igital
978-989-26-1374-1

DOI
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1374-1

© JU NHO 2020, IMPR ENSA DA U NI V ERSIDA DE DE COIMBR A


INTRODUÇÃO 3

P o r t vg a l i a e M o n v m e n ta N e o l at i n a

V o l . X VIII

D. J e r ó n i m o O s ó r i o

O pera O mnia
Tomo IV
Par áfr ase aos Salmos

Pr i mei ra Par te
Sal mos 1 a 75

Estabelecimento do texto latino


S ebastião T avares de P inho
A ntónio G uimarães P into

Nota Prévia, Tradução e Notas


A ntónio G uimarães P into

I mprensa da U niversidade de C oimbra


C oimbra U niversity P ress
4 METAFÍSICA
INTRODUÇÃO 5

NOTA PRÉVIA DO TRADUTOR

Na prossecução do ambicioso projeto de editar os Opera Omnia de


D. Jerónimo Osório, apresentamos hoje ao leitor o 1º tomo dos dois que
albergarão o texto latino e a tradução da mais extensa obra de autoria
propriamente osoriana: a Paráfrase dos Salmos. Trata-se de obra póstuma,
com uma única edição: a devida aos desvelos do sobrinho homónimo
e generoso editor da obra completa do ilustre bispo do Algarve, e que
pode ler-se entre as colunas 133 e 528 do tomo terceiro da edição de
Roma dos Opera Omnia. Sendo 150 os salmos, pareceu de bom conselho
destinar 75 para cada um dos dois volumes.
Seguindo um desígnio compreensivelmente calculista, Jerónimo Osório
Júnior, que fez uma criteriosa seleção dos destinatários de algumas
dedicatórias que decidiu antepor a obras póstumas do tio, ofereceu esta
longa Paráfrase ao cardeal-arquiduque Alberto de Áustria, por aqueles anos
vice-rei de Portugal, nomeado por seu tio o rei D. Filipe I. Nessas palavras
proemiais, o douto cónego eborense, além de sumariar o método expositivo
adotado pelo tio, informa que este escrito é um fruto da velhice, refletindo
portanto a madureza de juízo com que a experiência enriqueceu o Autor.
Com o juízo crítico talvez o seu quê perturbado pelos laços de família
próximos e profundo afeto que o ligavam ao Autor que apresenta, não
hesita em qualificá-lo como “aquele que é, depois de Cícero, o príncipe da
eloquência romana”. Mas de facto, feitos os devidos descontos, e reduzindo
o encómio às dimensões da “pequena casa lusitana”, a verdade é que temos
a impressão que neste livro o fôlego ciceroniano, sempre tão presente em
Osório, avulta com um predomínio e dilatado arfar mais notoriamente que
em quaisquer outras obras saídas da sua pena.
Tratando-se de obra póstuma, é natural que vez ou outra se note a
falta da demão final com que o estilista consumado desataria qualquer
possível enleio de expressão ou expungiria algum vocábulo menos
classicamente abonado, mas tais casos são raros e facilmente sanáveis.
Notamos, mais uma vez, o pendor, tão característico do seu estilo, para
criar interlocutores imaginários, que, através de dúvidas ou comentários,
interrompem o fio discursivo do “narrador”, proporcionando assim o
6 D. JERÓNIMO OSÓRIO

ensejo de oferecer novos desenvolvimentos e, do mesmo passo, aligeirar


a andadura e ritmo, que corriam o risco de tornar-se monocórdicos.
Ao longo deste livro, muitas vezes sentimos a tentação de atribuir às
palavras de Osório, homem assomadiço e pouco proclive a ocultar os
estos da sua indignação, intenções alusivas a acontecimentos e pessoas
contemporâneos do ato da escrita. Por exemplo, quem conhece o modo
apaixonado como o bispo do Algarve se houve perante os últimos
conturbadíssimos anos do reinado de D. Sebastião, não consegue ler a
seguinte passagem sem ver nela o desabafo e a rogativa de uma testemunha
angustiada desse desvario coletivo:
Nos, inquam, in tam perturbata uiuendi ratione, a contagione huius
pestiferae nationis eripies: erecta namque circumquaque uolitat impietas,
quotiens, propter bonorum penuriam, homines postremi in re publica
dominantur. [“A nós, digo eu, que nos encontramos a viver uma situação tão
perturbada, hás de arrancar-nos do contágio desta raça pestilente: é que a
impiedade esvoaça impante por toda a parte sempre que nas nações, devido
à falta de homens bons, os piores tomam conta do poder.”] (col. 167)
Como seria de esperar numa obra com as dimensões e características
desta, os temas ético-religiosos mais do agrado de Osório terão repetidas
oportunidades para, de uma forma ou de outra, serem objeto de um
tratamento em que o Autor, sem as ataduras e peias que lhe imporia um
“tratado” subordinado a tema concreto (como acontece com as suas obras
doutrinais mais conhecidas), se sente com certo à vontade para dar mais
livre curso ao seu sentimento e pensamento, derramando-se amiúde em
expansões afetivas de forte carga lírica e, por vezes, roçando até o patético.
Previsivelmente também, veremos abordado nesta Paráfrase um assunto que
mereceu um interesse especial da parte do nosso Autor, conquanto tenha sido
até hoje negligenciado pelos estudiosos da sua obra: a experiência mística.
Um bom exemplo desta direção do seu sentimento religioso encontra-se
nos desenvolvimentos que faz ao salmo 17, sobretudo col. 174.
Sempre que tivemos necessidade de reproduzir o texto da Vulgata
– como é, por exemplo, o caso dos cabeçalhos de cada um dos salmos
parafraseados –, servimo-nos da tradução portuguesa do Padre Pereira
de Figueiredo. A abertura de parágrafos, ortografia e pontuação do texto
latino aqui apresentado são da nossa responsabilidade.
Ao Professor Sebastião Tavares de Pinho publicamente manifesto a
minha gratidão pela indefessa cooperação, amigo conselho e constante
alento com que tem vindo a tornar possível a concretização deste sonho
osoriano, que é tanto meu como dele.

António Guimarães Pinto


Manaus, 28 de Outubro de 2016
INTRODUÇÃO 7

T E X TO E T R A D U Ç ÃO
8 D. JERÓNIMO OSÓRIO

[129]
I n H i e r o n y m i O s o r i i Pa r a p h r a s i m I n P s a l m o s
Hieronymi Osorii Canonici Eborensis
Ad S e r e n i s s i m u m P r i n c i p e m A l b e r t u m ,
Austrium Archiducem Et S. R. E. Cardinalem
P R A E FAT I O

Postquam, serenissime princeps, acerbissima clade perculsam


atque prostratam Lusitaniam ut erigeres eam gubernandam
suscepisti, nihil habui antiquius quam ut nominis tui studium,
quo eram incensus, quacumque possem ratione declararem. Me
autem id officii munus tum regum Lusitaniae, a quibus originem
ducis, memoria excitabat, tum etiam haec, quae in te elucet,
species, omnium uirtutum ornamentis exculta, qua illorum,
qui in Lusitania summa cum laude regnarunt, nostrum lenitur
desiderium. In te enim effictos illorum mores expressamque
imaginem uitae honestissime laudatissimeque actae conspicimus.
Quamobrem, cum Romam uenirem ut Hieronymi Osorii patrui
mei Opera Omnia, quae in uulgus exierant et quae apud
me compressa iacebant, ea in Vrbe in lucem ederem, tibi
In Psalmos [130] Paraphrasim dicare constitui, praeclarum
sapientis hominis, iam senis, ingenii monumentum. In ea enim
maturitate quadam quam secum senectus affert admirandus
uir ille exstitit, et Dauidis sensa ita explicuit ut intra terminos
circumsaepta oratio fluat, legentis animum delectet, teneat, ut
numquam uagetur, instruat et erudiat.
Cum autem is sis ut non plurimi faceres te a clarissimis
Lusitaniae regibus ortum fuisse, nisi sapientiae decus ad hanc
regiam dignitatem adiunxisses, Dauidis profecto, sapientissimi
regis, opus, diuino spiritu elaboratum, ab eloquentiae Romanae,
post Ciceronem, principe satis erudite explicatum, tibi maxime
debebatur. Accedit praeterea quod, quaedam cum in Paraphrasi
obscuriora quibusdam hominibus fore animaduerterem, ea
notauimus et latius explicuimus: opus quidem exiguum et nullo
OPERA OMNIA TOMO IV 9

[129]
P R E FÁC I O
À Pa r á f r a s e d o s S a l m o s , d e D . J e r ó n i m o O s ó r i o ,
escrito por Jerónimo Osório, cónego da Sé de
É vo r a , e d i r i g i d o a o s e r e n í s s i m o p r í n c i p e
Alber to arquiduque de Áustria e cardeal da
Santa Igreja Romana.

Sereníssimo príncipe, depois que tomastes sobre vós o encargo de


governar a Lusitânia, para a erguer da ruína e prostração causadas pelo
pungentíssimo desastre, nada tive mais a peito do que demonstrar, do modo
que me fosse possível, o desejo em que me abrasava pela vossa glória. Ora,
para o desempenho desta obrigação, não apenas me incitava a lembrança
dos reis de Portugal, de quem procedeis, como igualmente a vossa brilhante
aparência física, ataviada com os ornatos de todas as virtudes, mediante a qual
se mitiga a nossa saudade daqueles que com o máximo louvor reinaram na
Lusitânia. É que contemplamos em vós uma reprodução dos seus costumes e
uma imagem nítida do seu viver sobremaneira honesto e honroso. Por isso,
tendo-me deslocado a Roma a fim de editar nesta cidade as Obras Completas
do meu tio paterno D. Jerónimo Osório, quer as que já tinham saído a lume,
quer as que eu guardava na minha posse, [130] decidi dedicar-vos a Paráfrase
dos Salmos, notável testemunho da capacidade intelectual deste sábio varão,
dado já na velhice. De facto, este homem mostrou-se admirável naquela
espécie de madureza que a velhice traz consigo, e por tal forma expôs os
pensamentos de David que o discurso flui sem se derramar, deleita o espírito
do leitor, prende-o por forma que nunca divaga, instrui e ensina.
Ora, sendo vós de tal natureza que não teríeis em grande apreço
descenderdes dos ilustríssimos reis da Lusitânia, se não tivésseis juntado o
lustre da sabedoria a esta régia dignidade, certamente que acima de todos a
vós era devida a obra de David, o mais sábio dos reis, escrita com inspiração
divina, exposta de modo assaz erudito por aquele que é, depois de Cícero, o
príncipe da eloquência romana. Demais disto, acresce que, tendo-me eu dado
conta de que na Paráfrase certas coisas hão de ser o seu quê obscuras para
algumas pessoas, anotámo-las e expusemo-las mais de espaço: diligência,
10 D. JERÓNIMO OSÓRIO

artificio conflatum, sed iis, qui Hebraeas et Graecas litteras


ignorant, necessarium, quod quidem cum [131] Paraphrasi
coniunximus. Quem primum studium meorum fructum tibi
offerendum esse duxi, ut ex eo colligas quantas uires caritas
habeat, nihil enim ueretur, dummodo se ipsam manifestam
efficiat. In Lusitanis uero hominibus erga reges suos eximius amor
semper uiguit et incredibilis quaedam fidelitas haec animis nostris
insita, immo potius innata uis, me, princeps serenissime, compulit
ut de honore et nominis mei fama minime pertimescerem, cum
haec mea scripta tibi dicaui. Illud enim consequi sperabam ut
tibi meus erga te animus satis foret exploratus.
Si uero ab infinitis negotiis, quibus distineris, animum
aliquando seuoces, et hanc Paraphrasim euoluas, multa profecto
percipies quae mentis statum stabiliunt, quae in se rerum
diuinarum scientiam continent, quae ad rerum publicarum
gubernationem pertinent, et quae regio isto loco, in quo a
sapientissimo auunculo tuo Philippo, hoc nomine primo,
Portugaliae rege, fuisti collocatus, dignissima tibi uidebuntur.
Diuini enim spiritus afflatu Dauid haec secum commentabatur,
quae litteris mandauit; spiritus autem diuinus, totius sapientiae
auctor, fons et origo unde humanae mentes, [132] si quod in
eis sapientiae decus inest, delibatum habent, illius uirtute res
publicae beatae efficiuntur, stabilitae permanent et reges instinctu
illius salutares leges condunt. Verum, cum multa sint in Psalmis
Dauidis obscuritatibus inuoluta, illud sibi Osorius perficiendum
proposuit ut sensum, qui in unoquoque illorum magis conueniens
loco et tempori uidebatur, perpetua oratione explicaret, ut prima
cum ultimis et media cum utrisque conecteret, qua in re eximia
quaedam interpretandi ratio est posita. Quod ut praestaret, non
solum sanctorum Patrum explanationes, et sententias diligenter
obseruauit, sed in his de quibus illi aliquando diuerse sentiunt,
Hebraeis libris est usus, ut obscuriores psalmorum locos
luculentius explicaret, quos ego in unum contuli, et, quidquid
ex Hebraeis et Graecis ad illorum explanationem desiderari
poterat, breui oratione perstinxi: quod Paraphrasis ratio Osorio,
ut faceret, minime permittebat.
Hoc munus, Lusitano principe et tuis maioribus dignum,
enixe obsecro, princeps serenissime, ut ea qua soles benignitate
tuos amplecti recipias.

Vale.
Roma, Kal. Martiis. M D XCII.
OPERA OMNIA TOMO IV 11

a bem dizer, de pouca monta e que compusemos desartificiosamente, mas


necessária a quantos ignoram as letras gregas e hebraicas, e que [131]
ajuntámos à Paráfrase. Pensei que deveria oferecer-vos este primeiro fruto
dos meus desvelos, para que por ele vos capaciteis das grandes forças que
tem o amor, porquanto de nada se arreceia, contanto que se dê a conhecer.
Na verdade, os portugueses sentem sempre um afeto extraordinário pelos
seus reis e esta espécie de fidelidade deveras excepcional e gravada, ou
melhor, inata no nosso modo de ser, impeliu-me, Sereníssimo Príncipe, a
não sentir temor pela minha honra e pelo prestígio do meu nome, quando
vos dediquei estes meus escritos. De facto, esperava tornar mui patente a
vossos olhos a minha disposição de ânimo em relação a Vossa Alteza.
Mas se algum dia desviardes a atenção dos infinitos negócios que vos
retêm e folheardes esta Paráfrase, decerto que encontrareis muitas passagens
que consolidam a firmeza de espírito, que encerram dentro de si a ciência
das coisas divinas, que têm a ver com a governação dos Estados e que
vos hão de parecer muitíssimo ajustadas a esse régio lugar no qual fostes
colocado pelo vosso sapientíssimo tio D. Filipe, o primeiro deste nome,
rei de Portugal. É que foi por inspiração do Espírito divino que David
compôs no seu íntimo estes salmos que depois consignou por escrito; ora,
o Espírito divino é o autor, fonte e origem de toda a sabedoria, donde os
entendimentos humanos [132] colheram algum primor de sabedoria que
eventualmente neles possa existir, e é por virtude dele que os Estados se
tornam felizes e se mantêm estáveis e é por inspiração dele que os reis
promulgam leis salutares. Todavia, uma vez que nos Salmos de David muitas
coisas estão envoltas em obscuridade, Osório achou que devia cingir-se ao
processo de expor com uma linguagem intemporal o sentido que em cada
um deles parecia mais adequado a um certo tempo e lugar, a fim de ligar
as primeiras [significações] com as mais afastadas e as médias com ambas,
empregando assim um método de interpretar extraordinário. Para o levar a
cabo, não só prestou diligente atenção às explicações e opiniões dos santos
Padres, mas, naquelas partes acerca das quais estes por vezes não têm uma
opinião unânime, serviu-se de livros hebraicos para expor com mais clareza
as passagens mais obscuras dos salmos, que eu juntei num único lugar,
e sumariei em breves palavras tudo quanto, tanto de origem grega como
hebraica, poderia ser conveniente para a compreensão dos mesmos: algo
que o método seguido na Paráfrase não permitia que Osório fizesse.
Este presente, digno de um príncipe português e dos vossos antepassados,
afincadamente vos rogo, Sereníssimo Príncipe, que o recebais com aquela
benevolência com que costumais abraçar os vossos servidores.

Ficai de saúde.
Roma, 1 de Março de 1592.
12 D. JERÓNIMO OSÓRIO

[133]

H I E R O N Y M I O S O R I I PA R A P H R A S I S
IN PSALMOS

Beatus uir.
Psal. 1

Omnes hominum cogitationes et actiones ad beatae uitae


studium conferuntur. Vita porro beata ea est quae sic bonis
omnibus expleta est ut nihil amplius requirendum sit. In
quo tamen genere rerum ea consistat magna inter homines
quaestio est. Alii namque summum bonum in uoluptate
ponunt, alii in dignitate, alii in prospera ualetudine cum
diuitiarum affluentia coniuncta, alii denique res alias
praecipue appetendas atque parandas statuunt ut beatae
uitae statum consequantur. Itaque, cum omnes, impetu
naturae, in studium bene atque beate uiuendi acriter
incitentur, longe tamen dissimili ratione ad id quod
concupierunt modis omnibus enituntur. Idcirco fit ut,
cum idem sit omnibus propositum, rarum genus sit eorum
qui ad finem, quem ardenter expetunt, aliquando tandem
perueniant. Hi uero sunt illi qui rectam uiam tenent, qui
ueras opes intuentur, qui non, insana cupiditate caeci, in
turbulentos errores impelluntur, qui non ficta atque fallaci
uoluptate deleniti aut inani spe utilitatis illusi, falsas et
inanes opes pro ueris amplexantur. Qui uero ab hac uia
deflectunt, minime possunt eo quo tendunt peruenire;
immo, quo magis neruos omnes intendunt ut quod uolunt
adipiscantur, eo clarius tandem cernunt se delusos esse et
sine ullo fructu fuisse non uera bona, sed bonorum inanem
speciem consectatos.
OPERA OMNIA TOMO IV 13

[133]

PA R Á F R A S E D E J E R Ó N I M O O S Ó R I O
AO S S A L M O S

SALMO 1
Bem-aventurado o varão.

Todos os pensamentos e atividades dos homens se encaminham à posse


da vida bem-aventurada. Ora, vida bem-aventurada é aquela que possui
tal abundância de todos os bens que já não precisa de procurar mais.
Todavia, existe entre os homens grande contenda acerca da espécie de
coisas em que esta felicidade assenta. É que uns põem o bem supremo
no prazer, outros nas honrarias, outros numa saúde robusta acompanhada
de abundância de riquezas, outros, finalmente, opinam que, para se obter
a condição da vida bem-aventurada, é mister que se empregue todo o
desvelo em procurar e tentar alcançar outras coisas. E assim, ainda que,
por impulso natural, todos sejam fortemente incitados para o desejo de
viver bem e com felicidade, todavia esforçam-se através de caminhos
totalmente diferentes por alcançarem, por todos os modos, aquilo que
desejaram. Por isso acontece que, ainda que todos se tenham proposto
o mesmo, é pouco numerosa a raça daqueles que alguma vez acabam
por chegar ao fim que ardentemente apetecem. Ora, estes são aqueles
homens que seguem o direito caminho, que têm postos os olhos nas
verdadeiras riquezas, que não se lançam em erros perturbadores, cegos
pela insana cobiça, que não abraçam os bens falsos e vãos, em vez dos
verdadeiros, seduzidos por um prazer aparente e falaz ou iludidos por uma
vã esperança de utilidade. Na verdade, os que se desviam deste caminho
é impossível que consigam atingir aquela meta para onde se dirigem;
ao invés, quanto mais empenham todas as suas energias em alcançar
aquilo que pretendem, tanto com maior clareza acabam por dar-se conta
de que se enganaram e de que, sem qualquer fruto, correram atrás, não
dos verdadeiros bens, mas de uma ilusória aparência de bens.
14 D. JERÓNIMO OSÓRIO

An tu uoluptatem appellabis eam quae, quasi quadam


scabie atque pruritu, torquet animum et turpitudinem subire
compellit? Quae, cum momento temporis effluxit, insignem
paenitendi materiam relinquit? Quae denique molestia diuturna
et cruciatu non mediocri concluditur? Quid de dignitate
populari disseram? Illane dignitas erit appellanda quae
multitudinis amentia continetur? [134] Quam inconstantissimi
rumoris aura commutat? Quae libertate animos spoliat?
Quae postremo tota est ex inanitate suspensa et dedecore
sempiterno finitima? Similiter est de opibus, quas hominum
uulgus exquirit, existimandum. Nec enim morbis liberant, nec
pericula propulsant, neque desiderium explent: immo, quo
affluentius hauriuntur, eo uehementius sitim augent, et, quo
magis hac cumulantur, eo grauiore cruciatu animos plectunt.
Vt autem nihil aliud dicam, cum immortalitatis appetentes
natura simus, illa profecto uera bona ducenda non sunt quae
mortis impetum minime repellunt, quae animum, in cuius
felici statu beata uita collocanda est, minime locupletant:
immo, cum corporis uita conficitur, a possessoribus cum
animi angore et cruciatu deseruntur.

Quae igitur homines amentia tenet qui, cum uideant omnia


uitae commoda morte deleri, minime Diuina suspiciunt et
omnem uitam in falsis opibus acquirendis sine ullo fructu
consumunt? Vnde tantus error initium duxit? – Ex impietatis
magnitudine. Sunt enim quidam homines, ut sibi quidem
uidentur peracuti et falsa sapientiae opinione insolenter
inflati, qui, cum nihil sapiant, nihil intellegant, nihil amplum
et excelsum cogitent, ita sunt sensibus addicti ut nihil omnino
credant, nisi id tantum quod sensibus obiectum esse uident.
Cum igitur diuina atque sempiterna bona sint ab eorum
cognitione, qui sensibus omnia metiuntur, remotissima,
neque diuinam legem seruant, neque diuinis promissis fidem
habent, nec Dei iudicia reuerentur. Ex hoc igitur in Deum
scelere omnes iniuriae in homines oriuntur. Cum enim uires
colligunt, tenues homines fortunis spoliant et multis iniuriis
et contumeliis ciues afficiunt et, calliditate et potentia nixi,
opibus ad perniciem multitudinis abutuntur; plus tamen
sceleris exemplo quam tyrannidis immanitate nocent, [135]
cum enim uident ii, quibus tenues opes sunt, eos, quos ipsi
ingenio et acumine praecellentes arbitrantur, omnia repagula
diuini et humani iuris effringere et sumum decus in summa
OPERA OMNIA TOMO IV 15

Porventura darás o nome de prazer àquilo que, como se fosse uma espécie
de comichão e prurido, te atormenta o espírito e te incita a precipitares-
te na infâmia? Àquilo que, apenas decorrido um breve instante, deixa um
enorme motivo de arrependimento? Àquilo, enfim, que tem por termo um
pesar duradoiro e uma tortura nada pequena? Que direi relativamente às
honrarias populares? Porventura merecerá o nome de honraria aquilo que
tem o seu fundamento na vesânia da multidão? [134] Aquilo que muda ao
sopro de um rumor muitíssimo inconstante? Aquilo que priva de liberdade
os espíritos? Aquilo, finalmente, que depende por inteiro da vaidade e
confina com o desdouro eterno? De modo idêntico nos cumpre raciocinar
acerca das riquezas que o vulgar dos homens procura. Com efeito, nem
livram das enfermidades, nem afastam os perigos, nem satisfazem o desejo:
antes pelo contrário, quanto mais abundantemente se consomem, tanto mais
fortemente fazem crescer a sede, e quanto mais esta as aumenta, tanto maior
é o castigo com que atormentam os espíritos. Ora, para não me alongar
mais, sendo certo que por natureza temos um vivo desejo de imortalidade,
certamente que não devem ser tidos na conta de verdadeiros bens aqueles
que são incapazes de repelir a arremetida da morte, os que não enriquecem
o espírito – em cuja condição feliz se deve colocar a vida bem-aventurada –,
mas antes, quando a vida do corpo se acaba, fazem que os seus possuidores
a abandonem com angústia e tormento de espírito.
Portanto, que loucura possui os homens, que, ao verem que todas as
comodidades da vida são destruídas pela morte, não põem os olhos em
Deus e gastam toda a existência na procura vã das falsas riquezas? Donde
procede um tamanho desvario? – Da grandeza da impiedade. É que existem
certos homens, em sua opinião muito sagazes e insolentemente inchados
com um falso conceito de sabedoria, os quais, como não sabem nada, como
não compreendem coisa nenhuma e como são incapazes de pensar seja
no que for elevado e grande, de tal maneira se ligaram aos sentidos que
apenas e exclusivamente creem naquilo que os sentidos lhes colocam diante
dos olhos. Por conseguinte, uma vez que os bens divinos e sempiternos se
encontram muitíssimo afastados da capacidade cognitiva destes homens
que tudo medem pelo estalão dos sentidos, nem cumprem a lei divina,
nem têm fé nas promessas divinas, nem temem os juízos divinos. Portanto,
deste crime contra Deus nascem todas as injustiças contra os homens. Com
efeito, quando adquirem poder, esbulham dos bens os homens fracos e
oprimem os cidadãos com muitas injustiças e vexames, e, apoiando-se
na astúcia e na força, servem-se das riquezas para causar a perdição da
multidão; todavia, é maior o mal que ocasionam com o exemplo do crime
do que com a desumanidade da tirania, [135] porquanto, quando estes
homens, que são escassos de riquezas, vêem que aqueles, a quem julgam
superar em inteligência e agudeza de espírito, violam todas as barreiras
16 D. JERÓNIMO OSÓRIO

maleficiorum impunitate collocare, eo tandem deducuntur


ut beatam uitam in summa iniustitia summis opibus innixa
sitam opinentur. Nec enim uident quae furiae uexent animos
eorum qui iniuriis uitam muniunt, qui metus eos exagitent,
quae sitis eos dies atque noctes excruciet et quibus denique
poenis assidue torqueantur.

Qui igitur fallacem magnificentiae splendorem oculis


cernunt et mente quibus angoribus poenas scelesti homines
insiti furoris exsoluant minime perspicuunt, illud esse sapientis
statuunt potentium exemplum uitae legem arbitrari. Eorum
igitur consilium et auctoritatem sequentes, cum primum
possunt a iuris uia deflectunt et in miseriae sempiternae
uiam ingrediuntur; deinde, cum peccatum consuetudine
robustius fit, sensim metum iudiciorum diuinorum abiiciunt;
postremo, cum ad sceleris summum perueniunt, ex opibus per
iniuriam partis spiritus assumunt et sibi summam sapientiam
arrogant, et homines simplices, qui ius et fas omnibus uitae
commodis anteponunt, irrident, hominesque stultos atque
dementes appellant summamque stultitiam in summa religione
constituunt.
O caecitatem exsecrandam hominum qui ueram uiam
felicitatis ignorant et, cum maxime ad comparandam felicitatem
omnes animi neruos contendunt, tum uel maxime sese in
extremam miseriam furenter iniiciunt! Quam diuersum ab
hac hominum perditorum opinione iudicium sanctissimus
rex Dauid sequatur hoc operis huius diuini principio clare
perspicitur. Cum enim sit illi propositum omnes homines in
studium pietatis incitare et humanas actiones beatae uitae
gratia suscipi constet, docet quibus studiis et actionibus uita
beata comparetur. Ait enim:
Beati tantum sunt illi qui minime in impiorum hominum
sententiam discedunt; qui, si per imbecillitatem interdum
prolapsi fuerint, nequaquamdiu in flagitio commorantur, sed
reuocant sese continuo ueniamque flagitant et ad officium
tota mente reuertuntur; qui denique derisorum impudentiam,
qui petulantibus cachinnis et impia dicacitate multos mortales
ad scelus erudiunt, ut pestem exsecrandam fugiant; qui
non satis habent scelus exsecrari, nisi etiam opera sancta
atque diuina moliantur. Idcirco omne uitae studiumin diuina
lege consumunt. Est enim lex diuina animorum medicina,
iustitiae disciplina, uitiorum omnium expultrix, uirtutum
OPERA OMNIA TOMO IV 17

do direito divino e humano e fazerem consistir o máximo primor na mais


completa impunidade dos malefícios, acabam por ser levados a julgar
que a vida bem-aventurada se encontra na máxima injustiça apoiada nas
máximas riquezas. É que tão-pouco vêem com que fúrias é atribulado o
espírito daqueles que edificam a vida sobre as injustiças, com que medo
são inquietados, com que sede são torturados dia e noite e, finalmente,
com que castigos são incessantemente atormentados.
Portanto, os que divisam com os olhos o ilusório esplendor do fausto e
não veem com o entendimento as angústias com que os homens perversos
pagam a pena da sua inata loucura, persuadem-se de que é próprio do
sábio considerar como lei da vida o exemplo dos poderosos. Por isso,
seguindo o conselho e autoridade destes, logo que podem apartam-se
do caminho da justiça e entram no caminho da eterna perdição; depois,
porque o erro se vai tornando mais forte com a prática continuada, aos
poucos põem de lado o medo aos juízos de Deus; por derradeiro, quando
atingem o máximo do crime, tornam-se presunçosos devido às riquezas
obtidas através da injustiça e arrogam-se a si mesmos a máxima sabedoria,
e zombam dos homens sinceros que antepõem o que é justo e lícito a
todas as comodidades da existência, e chamam-lhes homens insensatos
e loucos e têm para si que uma religiosidade muitíssimo intensa é o
cúmulo da sandice.
Oh execrável cegueira dos homens que ignoram o verdadeiro caminho
da felicidade e que, quando aplicam todas as energias do seu ânimo à
conquista da felicidade, é precisamente quando se estão desatinadamente
a lançar na mais completa desgraça! Neste princípio desta obra divina
vê-se com toda a clareza como era diferente desta opinião dos homens
perversos o juízo seguido pelo santíssimo rei David. É que, uma vez que
ele se tinha proposto incitar todos os homens ao zelo da piedade e sendo
verdade que as ações humanas são empreendidas tendo em mira a vida
bem-aventurada, trata de ensinar com que diligências e ações se alcança
a vida bem-aventurada. Com efeito, diz:
Apenas são bem-aventurados aqueles que não partilham das opiniões
dos ímpios; aqueles que, se por vezes caírem devido à fraqueza, de
nenhuma maneira se mantêm na infâmia durante muito tempo, mas
imediatamente se recuperam e imploram perdão e regressam com toda
a consciência ao cumprimento do dever; aqueles, finalmente, que, como
de peste abominável, fogem da desvergonha dos zombeteiros que com
insolentes gargalhadas e impiedosa mordacidade instruem muitos mortais
no crime, e que não acham suficiente abominar-se o crime, a menos que
simultaneamente se pratiquem obras santas e divinas. Por esse motivo
empregam todo o desvelo da existência na lei divina. É que a lei divina
é o remédio das almas, a doutrina da justiça, a destruidora de todos as
18 D. JERÓNIMO OSÓRIO

omnium magistra atque postremo immortalitatis atque adeo


diuinitatis efficiens. Ardens namque illius studium homines
cum Deo in gratia ponit et ad caelum uiam munit atque (ut
uno uerbo dicam) homines Deo, bonorum omnium fonti,
artissime deuincit. Sed est animaduertendum non legis
metum iustos efficere, sed amorem. Qui enim metu tantum
poenae a lege propositae manus a maleficio continet, manus
quidem ad aliquod tempus continebit, sed [136] uoluntate et
studio opus nefarium molietur. Cum igitur sit anceps atque
districtus neque toto corde sese ad legis studium applicet,
minime absolutum fructum consequetur: non igitur beatus
erit nisi postquam totum se sponte et uoluntate sua ad
studium sanctissimae legis aduinxerit. Nec sufficit semel
a flagitiis ad legis studium tota mente traduci, nisi in eo
studio perseuerauerit.
Illi igitur beati tantum erunt qui ardenti studio et
uoluntate sese ad legis diuinae sanctitatem conferunt et
de illa dies atque noctes cogitant omnesque uitae rationes
ad illius trutinam exactissime perpendunt. Erunt enim
Deo, qui est beatissimus, omni ratione coniuncti. Nam,
si ad uitam beatam uoluptas exquiritur, hi certe erunt
uera et stabili uoluptare perfusi sempiternoque gaudio
cumulati; si honores expetuntur, erunt hi dignitate regia
in omni saeculorum aeternitate praecellentes; si opes
beatos homines efficiunt, erunt opibus diuinis affluentes;
si denique status diuinus exquiritur, hi diuinum statum
consequentur. Vt igitur arbor prope riuos consita altissimas
radices agit et semper uirescit atque frondescit foliumque
non amittit uberesque fructus opportuno tempore profundit,
sic iusti, cum sint ad uitae flumen consiti, pietatis atque
fidei radicibus humorem eliciunt quo et insiti roboris
stabilitatem, et honestatis uiriditatem et fructuum copiam et
ubertatem perpetuo consequuntur. Nec enim illos de statu
tempestas ulla conuellet, nec ardor infestus aduret, nec
inuecta calamitate eorum fructus interibunt. Non sic impii,
non sic: erunt enim et ariditate consumpti et tempestatibus
agitati, et casibus infinitis expositi. Quemadmodum igitur
gluma a fermento secreta atque uentilata proiicitur, sic
impii a piorum hominum coetu segregati dispellentur
nec ulla in sede consistent. Nec enim in Dei iudicio impii
erigi et ad spem salutis excitari neque sontes et flagitiosi
crimine liberari et ad piorum hominum aggregari ullo
OPERA OMNIA TOMO IV 19

imperfeições e, por fim, a ocasionadora da imortalidade e até da divindade.


Com efeito, o zelo ardente da lei divina coloca os homens na graça de
Deus e aparelha o caminho para o Céu e, para dizê-lo numa palavra, liga
estreitissimamente os homens a Deus, fonte de todos os bens. Mas deve
ter-se em consideração que quem os torna justos não é o medo da lei,
mas o amor. Na verdade, aquele que se abstém de levar à prática o mal
somente por causa do medo da pena estabelecida pela lei, certamente
abster-se-á de o levar à prática durante algum tempo, mas [136] com
a sua vontade e desejo cometerá uma obra sacrílega. Por conseguinte,
dado que se encontra indeciso e vacilante e não aplica por inteiro o seu
coração ao zelo da lei, de modo algum obterá na sua perfeição o fruto
da justiça; portanto, não será bem-aventurado, senão depois de, por livre
e espontânea vontade, se entregar por inteiro ao zelo da santíssima lei.
E não basta que deixe uma única vez as infâmias para se entregar com
toda a vontade ao zelo da lei, se não perseverar nesse zelo.
Por consequência, só serão bem-aventurados os que com ardente
desvelo e vontade se consagram à santidade da lei divina e nela pensam
dia e noite e em função dela ponderam com o máximo rigor todos os
interesses da existência. É que unir-se-ão por todos os modos com Deus,
que é o ser mais bem-aventurado. Com efeito, se à vida bem-aventurada se
pede o prazer, eles certamente serão inundados por um prazer verdadeiro
e invariável e cumulados com uma alegria imorredoura; se se procuram
as honrarias, eles desfrutarão da mais alta dignidade régia por toda a
eternidade; se são as riquezas que tornam os homens bem-aventurados,
possuirão em abundância as riquezas divinas; se, por derradeiro, se busca
uma condição divina, eles alcançarão uma condição divina. Portanto, assim
como uma árvore plantada perto de cursos de água lança fundíssimas
raízes e está sempre viçosa e frondosa e não perde as folhas e na devida
sazão produz abundantes frutos, do mesmo modo os justos, como foram
plantados junto do rio da vida, mediante as raízes da piedade e da fé
extraem a seiva com que continuamente obtêm não só a firmeza do
instintivo vigor e o viço da honestidade, mas também a abundância e
profusão de frutos. É que nem qualquer tempestade os abalará da sua
firme posição, nem o encarniçado calor os abrasará, nem os seus frutos
perecerão por sobrevir uma calamidade. Tal de seguro não se passará com
os ímpios, porquanto não só hão de ser consumidos pela seca e agitados
pelas tempestades, como igualmente hão de ficar expostos a infinitos
acidentes. Por conseguinte, assim como se lança fora a moinha separada e
joeirada do cereal, assim serão afastados para longe os ímpios segregados
da comunidade dos homens piedosos e não pararão em nenhum lugar. E
não poderão de modo algum os ímpios erguer-se no julgamento de Deus
e ser chamados para a esperança da salvação nem os culpados e infames
20 D. JERÓNIMO OSÓRIO

modo poterunt. Dominus enim uiam, quam ineunt iusti,


comprobat, eorum studia confirmat et actiones praemio
sempiterno remunerat. At impiorum hominum conatus
frangit, uires debilitat omnemque eorum uitam et consilia
et actiones funditus euertit.

Quare fremuerunt.
Psal. 2

In omni turba atque tumultu causam seditionis inquirimus;


in illius auctores animaduertendum iudicamus et eum
qui popularem motum concierit acerbissimo supplicio
dignum censemus. Tollit enim uiris ordinem; disturbat uitae
societatem; frangit reipublicae uires; hostibus aditum in
patriam patefacit; communibus denique rebus pestem atque
perniciem machinatur. Verum, antequam causam seditionis
exploratae cognitam habeamus, sententiam cum aequitate
ferre non possumus. Multa namque in populis frequenter
accidunt quae iustam offensionem afferunt, [137] ita ut non
sit de omnibus qui populum ad seditionem sollicitant similiter
inquirendum. Cupiditas enim diuitiarum, libidinis furor et
praeceps honoris ambitio et eiusmodi uitae pestes animos
exagitant et ad iniurias inferendas et statum rei publicae
labefactandum impellunt, ita ut mirum non sit animos ciuium
commoueri et ad uindictam acerrime concitari. In eo autem
tumultu, quo multitudinis furor et principum immanitas
in Christum exarsit, quo nullus fuit in terra uel insania
turbulentior uel immanitate truculentior, mente defixus, Dauid
uehementer admiratur et de rebus futuris, quasi presentibus
atque adeo praeteritis, luculenter edisserit. Ait igitur:
Diram seditionem mente considero, multitudinem odio
furenter infammatam ferri conspicio, nationes uniuersas
contra Christum arma corripere cerno. Quaenam igitur causa
tantae seditionis exstiterit exquiramus Num rex hic, contra
quem bellum comparant, immania tributa populis imperabat?
Immo, ut suos opibus summis expleret, summam inopiam
sponte sua pertulit. Num uulnera ciuibus inflixit? Immo, ut
eorum uulnera sanaret, et uulnera et cruciatum acerbissimum
perpessus est. Num commodis publicis repugnauit? Immo,
omnes curas et cogitationes in communem generis humani
salutem consumpsit.
OPERA OMNIA TOMO IV 21

livrar-se do crime e ajuntar-se à comunidade dos homens piedosos. É


que o Senhor aprova o caminho que os justos seguem, encoraja os seus
desvelos e remunera as suas ações com prémios sempiternos. Mas reduz
a nada os esforços dos homens ímpios, debilita-lhes as forças e destrói-
lhes por completo a vida e os seus desígnios e ações.

SALMO 2
Por que razão se embraveceram?

Em qualquer desordem ou tumulto procuramos saber o motivo


da agitação; achamos que se deve procurar saber quem são os seus
causadores e pensamos que o homem que provocou o motim popular
merece uma pena rigorosíssima. É que suprime a ordem que rege a vida
dos homens; destrói a vida social; debilita as forças do Estado; abre aos
inimigos as portas da pátria; e, finalmente, prepara a ruína e perdição
da comunidade. Mas não podemos proferir com equidade a sentença
antes de conhecermos a fundo a causa da sedição. É que frequentemente
acontecem muitas coisas nos povos que oferecem uma justa razão de
queixa, [137] por tal forma que não se deve julgar da mesma maneira
todos aqueles que incitam o povo à sedição. A cobiça de riquezas, o
desatino da sensualidade, a arrebatada ambição de honra e outros flagelos
da vida desta espécie, inquietam o espírito e impelem-no a praticar a
injustiça e a abalar a estabilidade da comunidade, por tal forma que não
é de espantar que o ânimo dos cidadãos se comova e seja fortemente
incitado à reivindicação. Ora, com o olhar do entendimento fixo naquele
tumulto com que a loucura da multidão e a crueldade dos grandes se
abrasou contra Cristo, e que foi o mais turbulento em vesânia e o mais
violento em crueldade que jamais se viu na terra, David sente um vivo
espanto e, como se fossem presentes e até passados, fala excelentemente
acerca de factos futuros. Por conseguinte, diz:
Com o meu espírito observo uma terrível sedição, vejo a movimentar-se
uma multidão, furiosamente inflamada pelo ódio, diviso todos os povos
a pegarem em armas contra Cristo. Portanto, procuremos saber qual foi
a causa de tão grande tumulto. Acaso este rei contra quem aparelham a
guerra impunha às populações tributos desumanos? Bem pelo contrário,
a fim de encher os seus com as máximas riquezas, de livre e espontânea
vontade suportou a mais completa pobreza. Porventura infligiu feridas aos
seus concidadãos? Bem ao invés, a fim de curar as feridas deles, padeceu
não só feridas, mas também o mais lancinante suplício. Acaso se opôs
aos interesses públicos? Bem pelo contrário, todos os seus cuidados e
pensamentos visaram à salvação comum do género humano.
22 D. JERÓNIMO OSÓRIO

“Verum”, inquies, “id est, sed honoris contentio animos


potentium hominum stimulauit ut bellum contra illum
susciperent, qui omnes honores solus appetebat neque
fe r r e q u em quam p oterat qui aliq u o d sib i mu n u s au t
populare decus assumeret.” – Quomodo? Isne qui oblatum
imperium contempsit? Qui omnes opes humanas pro
nihilo duxit? – “Sed illud”, inquis, “fortasse fuit: erat acer
et iracundus multosque mortales uerborum contumelia
acerrime uulnerauit.” – Quis illo fuit lenitate, clementia,
mansuetudine mirabilior? Quando is clamorem intempestiue
sustulit? Quo tempore uocem ullam in publicis concionibus
intemperanter emisit? Vt ista sint iniquis odio, certe dignus
fuit eo nomine quod, cum ciuibus suis consulere potuisset,
eorum salutem neglexit. Id igitur scire sane uelim quid
facere praetermisit quod ad suorum utilitatem pertineret?
Non aegrotos sanauit? Non caecis adspectum restituit?
Non surdos audire fecit? Non daemones infestos expulit?
Non mortuos in uitam uoce et imperio reuocauit? Cur
igitur fremunt homines? Cur insaniunt? Cur, pro acceptis
beneficiis, taetra facinora contra salutis auctorem moliuntur?
Et, ut magis eorum furor emineat, inania meditantur. Copias
enim suas instruunt ut caeli rectorem oppugnent. Quo quid
poterit amentius cogitari? Siquis moles exstruere conetur
quibus caelum occupet aut aquas in sublime coniiciat
quibus ardorem solis exstinguat, non plane demonstrat
se extremo furore et amentia caecum ferri? Quomodo non
multo maiorem amentiae significationem dabunt qui cum
summo Domino, qui omnia sempiterno imperio complectitur,
bellum gerunt, quasi possint conatibus inanissimis opes
diuinas euertere? Sed inquis fortasse mirum non esse
multitudinem tumultuari [138] et insanire. Non enim esse
consilium in populo, nongrauitatem, non iudicium eumque,
facillime quibusuis flatibus agitatum, turbulentissimos
fluctus eiicere. Singulari igitur consilio factum esse ut
principes multitudini praeessent, ut aequabile ius dicerent,
et turbidos motus sedarent, et tempestates temeritatis
effrenatae coercerent. Quid, si principes ipsi impietate
et amentia multitudinem longe superant? Quid, si, non
repentino motu conciti, sed consilio sceleris plenissimo
confirmati, idem facinus aggrediuntur? Quid, si exemplo et
imperio populos in multo taetriorem dementiam precipites
impellunt? Quid, si odio longe maiore, in summum Deum
OPERA OMNIA TOMO IV 23

Dir-me-ás: “– Isso é verdade, mas o desejo de honra incitou o ânimo


dos homens poderosos a fazerem guerra contra alguém que pretendia
para si só todas as honras e que não podia suportar quem quer que se
arrogasse alguma função ou a glória popular.” – Como assim? Porventura
estás a falar deste homem, que desprezou o poder que lhe foi oferecido?
Deste homem que teve todas as riquezas humanas na conta de coisa
nenhuma? “ – Se calhar”, retrucas tu, “o que aconteceu é que ele era
violento e desabrido e com linguagem insultuosa feriu duramente grande
número de pessoas.“ – Existiu alguém mais admirável do que ele em
mansidão, compaixão e doçura? Quando é que levantou um brado de
modo intempestivo? Em que ocasião soltou nas alocuções públicas alguma
palavra imoderada? Para essas coisas serem odiadas pelos inimigos,
certamente o foram sob pretexto de que ele, tendo podido velar pelos
seus concidadãos, negligenciou a salvação deles. Por conseguinte, gostaria
muito de saber que é que ele deixou de fazer de quanto tinha a ver com
o proveito dos seus? Não curou os enfermos? Não restituiu a vista aos
cegos? Não fez os surdos ouvirem? Não expulsou os perigosos demónios?
Com a sua voz e poder não chamou os mortos à vida? Portanto, por que
é que se embravecem os homens? Por que é que desatinam? Por que é
que, em paga dos benefícios recebidos, urdem odiosos atentados contra o
autor da salvação? E, para que a sua loucura mais ressalte, maquinam em
vão. Com efeito, põem em campo o seu exército a fim de se oporem ao
Senhor do Céu. Que poderá imaginar-se de mais vesânico do que isto? Se
alguém se empenhar em acumular materiais para com eles ocupar o céu
ou lançar água para o alto para com ela extinguir o ardor do Sol, não está
a demonstrar à evidência que é cegamente arrastado pela mais completa
demência e desvario? De que modo não hão de dar uma maior prova de
loucura os que travam guerra com o supremo Senhor, que tudo abrange
com senhorio sempiterno, como se com os seus esforços totalmente vãos
pudessem destruir o poder divino? Mas dizes que talvez não fosse de
admirar que a multidão [138] se revoltasse e desvairasse. É que no povo
não há sensatez, nem ponderação, nem capacidade crítica e, com a maior
facilidade agitado por quaisquer brisas, lança de si violentíssimas vagas.
Por isso, foi por singular desígnio que se puseram os governantes à testa
da multidão, para que ensinassem o que é justo, aplacassem as agitações
tumultuosas e reprimissem os desvarios do desatino desenfreado. Mas que
dizer, se os próprios governantes em impiedade e loucura ultrapassam
de longe a multidão? Que dizer se, não perturbados por uma emoção
momentânea, mas corroborados por um ponderado desígnio de crime,
perpetram o mesmo atentado? Que dizer se, com as suas ordens e exemplo,
impelem as populações a precipitarem-se num desvario muito mais terrível?
Que dizer se um ódio incomparavelmente maior os arremessa contra o
24 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et in illius Christum inuehuntur? Confirmant sese terrarum


reges et principes inter se coniurant ut contra Deum et
Christum illius copias instruant.
O pestem exsecrandam, ex Orci penetralibus immissam!
O detestabilem amentiam, supplicio sempiterno dignissimam!
Eo progressam fuisse hominum, quibus nihil est imbecillius,
amentiam, ut contra Dominum, a quo ficti, informati et
beneficiis egregie cumulati sunt, arma corripiant et de illius
pernicie coniurent, cuius numine atque potestate omnis
generis humani salus continetur?! Qua spe? Qua fiducia? Qua
mente? Qua ratione? Puluis et cinis contra caeli imperatorem
bellum comparat; imbecillitas summa cum potentia summa
congreditur; inanitas in diuinam maiestatem impetum facere
conatur et illius statum irritis conatibus oppugnat, cuius uel
solo nutu potest momento temporis exstingui. Sed, quam
tandem causam furoris assignare poterit perdita multitudo?
Aut quam rationem suscepto sceleri principes obtendunt? Agi
publicam libertatem, inquiunt populi, principes imperium
suum labefactari assidue conqueruntur. Euangelii namque
sanctionibus adstringi cupiditatem, alligari uoluptatem,
coerceri temeritatem, euerti tyrannidem conspiciunt: quod
minime ferendum putant. Itaque Christi leges uincula
durissima nominant imperiumque diuinum intolerandum
iugum arbitrantur. Ea igitur de causa in summum naturae
conditorem et Dominum et in illius Christum furenter
insurgunt et, immani odio sanctitatis imbuti, insitum scelus
factis expromunt. Inquiunt igitur:
“Omnia iuris uincula, quibus Deus et rex ab illo constitutus
nos deuinctos habere cogitant, perrumpamus, ut libidines
nostras explere possimus; eorum iugum ceruicibus nostris
impositum deiiciamus, ne sit quidquam impedimento quominus
in omni iucunditatis genere uersemur. Magna enim res est quam
institui cernimus, quae, si perfectionem fuerit assecuta, omnis
nobis uitaecommoditas interibit. Huic igitur malo, antequam
maiores uires assumat, omni contentione repugnemus, et in
inuisae legis latorem irruamus et illius etiam nomen, quoad
fieri poterit, ex hominum memoria euellamus, ne nobis id, in
quo omnis uitae nostrae status consistit, eripiat.”
Haec profligatorum hominum sententia est, hoc odii
immanissimi seminarium, quod ferre non possunt infinitas
libidines, quibus adstricti [139] sunt, salutari seueritate
cohiberi. Sic autem sunt amentes ut miserrimam seruitutem,
OPERA OMNIA TOMO IV 25

supremo Deus e contra o Seu ungido? Os reis da terra animam-se a si


mesmos e os príncipes confederam-se com o propósito de porem em
campo hostes contra Deus e contra o Seu ungido.
Oh peste abominável, arrojada das profundas do Orco! Oh detestável
vesânia, digníssima do suplício sempiterno! A tal altura subiu a vesânia
dos homens, a coisa mais fraca de tudo quanto existe, que pegam
em armas contra o Senhor, por quem foram moldados, formados e
singularmente cumulados de benefícios, e se confederam para tramar
a destruição daquele em cuja majestade e poder se encerra a salvação
de todo o género humano?! Com que esperança? Com que confiança?
Com que desígnio? De que modo? O pó e a cinza movem guerra contra
o imperador do Céu; a fraqueza máxima peleja com o máximo poder;
o nada intenta atacar a majestade divina e com os seus esforços inúteis
opõe-se à imutável condição daquele que até com um mero aceno é capaz
de extingui-lo numa fração de segundo. Mas, ao cabo, a que causa poderá
a desvairada multidão atribuir o seu desmando? Ou que motivo dão os
príncipes como desculpa para o crime perpetrado? Dizem os povos que
se trata da liberdade pública, os príncipes queixam-se constantemente
de que o seu poder está enfraquecido. De facto, vêem que as sanções
do Evangelho condenam a cobiça, reprimem a sensualidade, refreiam
a leviandade de espírito e abatem a tirania: mas pensam que tudo isto
é intolerável. E assim designam as leis de Cristo por laços duríssimos
e consideram como um jugo insuportável a soberania divina. Portanto,
por esta razão insurgem-se desatinadamente contra o supremo criador e
Senhor da natureza e contra o Seu ungido e, possuídos de monstruoso
ódio à santidade, dão a conhecer com os seus cometimentos a inata
tendência criminosa:
–“Rasguemos todos os liames do direito com que Deus e o rei por Ele
estabelecido pretendem manter-nos ligados, a fim de podermos satisfazer
as nossas paixões; desembaracemo-nos do jugo delas lançado sobre as
nossas cervizes, para que nada nos impeça de nos entregarmos a toda a
sorte de prazeres. É que vemos preparar-se algo de muita importância,
que, se vier a concretizar-se, porá termo a toda a nossa comodidade de
vida. Por isso, oponhamo-nos com todo o empenho a este mal, antes
que ele adquira maiores forças, e lancemo-nos sobre quem promulgou a
odiosa lei e, na medida em que nos for possível, arranquemos também
o seu nome da memória dos homens, para que não nos arrebate aquilo
em que assenta a estabilidade de toda a nossa vida.”
É esta a opinião dos homens depravados, este o viveiro de ódio, que as
infinitas paixões, [139] com que foram enleados, não podem tolerar que seja
coibido por um salutar rigor. Ora, a tal ponto são loucos que dão o nome
de liberdade à miserável servidão com que estão submetidos à impuríssima
26 D. JERÓNIMO OSÓRIO

qua impurissimae cupiditati seruiunt, libertatem nominent,


legis uero diuinae sanctitatem, quae sola ueram libertatem
atque salutem constituit, libertatis atque salutis euersionem
putent. Quod facinus non impune ferent. Summus enim
Dominus, qui maiestatis suae sedem in caelo collocauit,
duplici supplicio impios torquebit. Nam et illorum conatus
irridebit, et scelus acerrimo iudicio uindicabit. Irridebit
quidem cum perficiet ut, quo maior eorum impetus exstiterit
ad Christi decus obscurandum et imperium euertendum,
eo clarius nomen illius illustretur et imperium mirabilius
amplificetur, ita ut Christi hostes inuiti Christi gloriae
seruire compellantur. Scelus autem uindicabit cum gentem
perditissimam odio hominum, intestina seditione, mutuis
caedibus et insidiis, fame, pestilentia, internecione rerumque
omnium uastitate conficiet. Eos igitur oratione, indignationis
et acrimoniae plena, peruertet et horribili criminatione, more
suo, conturbabit. Sic enim loquitur cum impuris hominibus
rerum omnium Dominus, ut non uerbis humanis, sed poenis
diuinis mentem suam aperiat. Itaque, cum homines praesidio
suo nudat, eos alloquitur; signis exterret, illis comminatur;
cum hostes in illos incitat, crimen intendit; cum hostibus
uictoriam concedit, sententiam ualde pertimescendam
pronuntiat. Quid autem, cum haec omnia gerit, eloquatur,
operae pretium erit attendere:
“Rex”, inquit, “contra cuius statum insurgitis, non est
humano consilio delectus, sed uoluntate mea in solio
maiestatis sempiternae locatus. Ego illum regem creaui; ego
illi sedem in sempiterna Sionis arce collocaui; ego illum
caelesti Hierosolymae praefeci, ut cunctis hominibus, fidei
sanctitate iurisque diuini societate deuinctis, iura describeret
imperiumque meum opibus diuinis administraret. Quae
igitur amentia uestra est? Scilicet, uos regem opibus meis
egregie cumulatum oppugnabitis? Vos principem praesidio
diuino circumsaeptum de statu conuelletis? Vos nomen illius,
quem ego ornamentis gloriae sempiternis decoraui, indigna
contumelia deformabitis? Tanta uos uexabit amentia ut, cum
sitis ipsa inanitate uaniores, bellum mihi, ad cuius tactum
natura uniuersa contremiscit, inferre conemini?”
Haec quidem Pater ille caelestis in perditos homines
intorquet, eosque poenis dirissimis insectatur. Hoc autem
in loco a Dauide Christus inducitur, qui summi Patris in se
beneficia in hanc sententiam commemorat. Inquit igitur:
OPERA OMNIA TOMO IV 27

cobiça, ao passo que consideram como perda da liberdade e da salvação a


santidade divina, que é a única que dá a verdadeira liberdade e salvação.
Não será impunemente que perpetrarão este atentado. É que o supremo
Senhor, que colocou no Céu a morada da Sua majestade, atormentará
os ímpios com um duplo suplício. Com efeito, não só zombará das suas
tentativas, como também submeterá o crime a severíssimo julgamento. Há
de zombar quando fizer que as coisas se passem de modo a que, quanto
maior empenho mostrarem em obscurecer a glória de Cristo e abater o
seu poder, tanto mais claramente se há de glorificar o seu nome e mais
maravilhosamente o seu poder há de aumentar, de tal maneira que, malgrado
seu, os inimigos de Cristo ver-se-ão constrangidos a contribuírem para a sua
glória. Por outra parte, castigará o crime quando destruir esta perversíssima
gente através do ódio dos homens, das sedições internas, dos assassínios e
perfídias infligidos mutuamente, da fome, da peste, dos morticínios e toda
a espécie de devastações. Por isso, há de aniquilá-los com uma linguagem
cheia de indignação e desabrimento, e, de acordo com o seu costume,
confundi­‑los-á com uma terrível acusação. É que o Senhor de todas as coisas
fala de tal maneira com os homens impuros que revela o Seu desígnio não
com palavras humanas, mas com castigos divinos, e deste modo, quando
despoja da Sua guarda os homens, está a falar com eles; quando os atemoriza
com sinais, está a ameaçá-los; quando contra eles lança os inimigos, está
a acusá-los; quando concede aos inimigos a vitória, está a pronunciar uma
sentença muito temível. Ora, merecerá a pena prestar atenção àquilo que
diz ao tempo em que faz tudo isto:
–“O rei”, diz Ele, “contra cuja posição vos insurgis não foi escolhido
por decisão humana, mas colocado por minha vontade no sólio da
sempiterna majestade. Fui eu quem criou aquele rei; eu quem lhe pôs
a morada na sempiterna cidadela de Sião; eu quem o pôs à frente da
Jerusalém celestial, para que definisse os direitos a todos os homens unidos
pela santidade da fé e pela participação do foro divino e administrasse
a minha soberania com as riquezas divinas. Portanto, que loucura é a
vossa? Pois quê, opor-vos-eis a um rei singularmente cumulado com as
minhas riquezas? Derrubareis da sua posição um príncipe cercado pela
proteção divina? Desfigurareis com indignos insultos o nome daquele a
quem eu ataviei com os ornamentos sempiternos da glória? A vesânia
há de assoberbar-vos de tal maneira que, embora sendo mais nulos do
que o próprio nada, vos empenhareis em fazer-me guerra, a mim, a cujo
toque a natureza inteira estremece?”
São estas as palavras que aquele Pai celestial despede contra os homens
perversos e persegue-os com terríveis castigos. Ora, nesta passagem David
introduz Cristo, o qual com estas palavras lembra os benefícios que o
Pai supremo lhe fez. Por conseguinte, fala assim:
28 D. JERÓNIMO OSÓRIO

– In regia sede locatus sempiternam legem feram, qua


omnium qui me secuti fuerint uitam et salutem sempiternam
constituam. Dominus enim dixit mihi: “Filius meus es tu, et
ego hodie genui te. A sempiterno quidem tempore a me fuisti,
secundum naturae diuinae rationem, exortus, nunc uero, cum
te, secundum humanae naturae condicionem sepultum, a
mortuis excitaui, ratione longe dissimili generaui. Nec enim
iam in te mors impetum dabit, non te dolor ullus lacerabit,
non te ullius cohortis impia manus attinget; iam non gemitus
ullos edes [140] neque lacrimas humanae imbecillitatis indices
effundes. Meus quidem filius eras, etiam antequam mortis
acerbitatem sentires. Iustitia namque princeps eras, unguento
caelesti perfusus multo excellentius quam omnes eiusdem
gratiae participes esse potuerunt. Illa igitur diuina iustitiae
forma, qua in humana natura uirtutis meae similitudinem
referebas, te filium meum esse demonstrabat. Verum, quo
tempore te homines laboribus oppressum, indignissima
contumelia uexatum, doloribus afflictum et excruciatum
adspiciebant, satis apparebat nondum te ex omni parte
statum diuinum fuisse consecutum. Eos dolores hauriebas
qui in Deum minime cadunt et corpus denique tuum erat
mortis telis expositum.
“Ex hoc igitur die quo, deuicta morte, triumphum
clarissimum duxisti, nullum in te mortalis condicionis
uestigium residebit. Non enim maerebis, nullo angore
cruciaberis, sed, splendore diuino clarissimus immortalique
gaudio cumulatissimus, diuinam uitam ages et caelum atque
terram imperio sempiterno continebis, ita ut facile in te huius
diuinae generationis claritas elucescat. Cum in mortali uita
manebas, illa te cura uehementer afflictabat, quod gens tua
monita tua contemneret, imperium recusaret et lucem oblatam
arpernaretur. At nunc, meritis mortis atque supplicii, quod
communis salutis gratia pertulisti, non mediocre praemium
consequere. Non enim erit nomen tuum angustis Iudaeae
terminis inclusum neque imperium tuum gentis Hebraeae
possessione definitum. Multo igitur maiora uolo ut a me
postules et exspectes. Nam, pro Hebraeae nationis faece,
innumerabiles nationes imperio tuo subiiciam et ultimis
terrarum finibus dominationem tuam terminabo. Vt igitur
homines Israelis sanguine propagati et in spe sempiternae
salutis enutriti beneficium diuinum aspernentur imperiumque
tuum perfidiose detrectent et tenebras luci furenter anteponant;
OPERA OMNIA TOMO IV 29

– Colocado numa morada régia, promulgarei a lei sempiterna


mediante a qual hei de instituir a vida e a salvação de todos os que
me seguirem. É que o Senhor me disse: “Tu és meu filho, e eu te gerei
hoje. Desde toda a eternidade nasceste de mim, em conformidade com
o modo próprio da natureza divina, mas agora, quando a ti, que estavas
sepultado, de acordo com a condição da natureza humana, te ressuscitei
de entre os mortos, gerei-te de um modo muitíssimo diferente. É que
a morte já não se abalançará sobre ti, nem dor alguma te molestará,
nem te alcançará a mão ímpia de alguma multidão armada; já não
soltarás quaisquer gemidos [140] nem derramarás lágrimas indicadoras
da fragilidade humana. Eras certamente meu filho, também antes de
sentires a violência da morte. De facto, eras o príncipe na justiça,
ungido por um unguento celestial muito mais excelentemente do que
todos os que puderam participar da mesma graça. Por conseguinte,
aquela forma divina da justiça, com a qual, em natureza humana,
representavas a imagem da minha virtude, demonstrava que eras meu
filho. Mas, naquela ocasião em que os homens te viam atribulado pelos
trabalhos, vexado pelos indigníssimos insultos e oprimido e atormentado
pelas dores, parecia-lhes assaz evidente que ainda não tinhas obtido
por inteiro a condição divina. Suportavas aquela espécie de dores que
de modo algum são compatíveis com a divindade e, finalmente, o teu
corpo achava-se exposto aos golpes da morte.”
“Portanto, a partir deste dia em que, depois de vencida a morte,
obtiveste uma notabilíssima vitória, deixará de haver em ti qualquer
vestígio da condição mortal. Com efeito, não te afligirás nem serás
torturado por nenhuma angústia, mas, resplandecente com o brilho
divino e transbordante de prazer imortal, viverás uma vida divina e
abarcarás o Céu e a terra com poderio eterno, de tal maneira que a
claridade desta divina geração facilmente se manifeste em ti. Quando
permanecias na vida mortal, vivamente te afligias com o facto de o teu
povo desprezar os teus conselhos, recusar o teu senhorio e desdenhar
a luz que lhe era oferecida. Agora, porém, alcanças um prémio não
pequeno para os merecimentos da morte e do suplício que suportaste
por causa da salvação comum. É que o teu nome não ficará encerrado
nos estreitos limites da Judeia nem o teu poderio circunscrito ao
domínio sobre a raça hebreia. Por isso, quero que me peças e de mim
esperes dádivas muito maiores. Na verdade, em vez do rebotalho do
povo hebreu, porei debaixo do teu poder inumeráveis nações e farei
dos limites últimos da terra as estremas do teu domínio. Portanto, que
os homens nascidos da linhagem de Israel e nutridos na esperança da
salvação eterna desprezem o benefício divino e aleivosamente recusem
a tua soberania e desatinadamente anteponham as trevas à luz; todas
30 D. JERÓNIMO OSÓRIO

at uniuersae nationes, quae uersabantur in tenebris, in lucem


tuam respicient, ad te supplices adibunt, imperium tuum
uerebuntur, in tua uirtute atque benignitate omnia uitae
praesidia collocabunt. Haec igitur erit hereditas tua praeclara;
hoc patrimonium infinitis accessionibus amplificatum.
“Cum uero difficillimum uideatur regere imperio populos
et continere in officio multitudinem et, quo imperium latius
dilaratur, eo difficilior illius administrandi ratio rectoribus
proposita sit, id tibi non ita continget. Nam et uis tua erit
semper inuicta, et eorum qui tibi repugnare uoluerint
imbecillitas apparebit. Vt enim ferrum facillime uasa fictilia
frangit atque comminuit, ita omnes hostes tuos conteres
et dissipabis, quin etiam, in illis qui se totos ad studium
tui nominis adiunxerint, robur tuae uirtutis ostendes. Nam
corporis cupiditatem franges, motibus turbulentis interitum
afferes et flagitia resecabis, ita ut nihil reliquum sit, in
hominibus tibi consecratis, quod studium pietatis et immortalis
gloriae restinguat.” – Hactenus quidem orationem Patris
explicat, qua impios exterret qui de regis sempiterni interitu
cogitant illique perniciem inferre meditantur, cuius [141]
potestas est immensa et infinita.
Haec auribus percipite, reges; haec, principes, mente et
cogitatione comprehendite, ne in sempiternam miseriam
incidatis. Superbiam fugite; insolentiam detestamini; motus
inanes comprimite, ne taeterrimas oculis uestris tenebras
offundant. Quo enim altior est honoris gradus in quo locati
estis, eo maiore lumine sapientiae uobis opus est ut populis
uestrae custodiae permissis salutari prouidentia consulatis.
Quod longe secus plerumque fit. Nam honores immodici,
opes immanes, luxus regius, apparatus magnifici, adulatorum
frequentia, hominumque perditorum calliditas excaecant
animos et principum mentes in furibundos errores impellunt.
Sic autem fit ut, qui maiore sapientia praediti esse debuissent,
maiorem temeritatis et amentiae significationem dent. Non
igitur populis salutem, sed perniciem afferunt et sibi ipsis
exitio sunt. O reges, arcete furorem sensumque humanitatis
et prudentiae recipite. O principes, qui terras imperio
continetis, et salutarem disciplinam summo studio comparate.
Aliter enim fieri non potest quin miserrime concidatis. Si uos
exterret sapientiae nomen; si difficillimum existimatis fructu
illius potiri; si uel ingenio diffiditis uel laborem extimescitis,
intelligite multo faciliorem esse illius comparandae rationem
OPERA OMNIA TOMO IV 31

as nações, porém, que viviam nas trevas, voltarão os olhos para a tua
luz, recorrerão a ti em atitude suplicante, respeitarão o teu poderio,
colocarão na tua virtude e bondade toda a defesa da sua existência.
Por conseguinte, esta será a tua ilustre herança; este o teu património,
aumentado com infindáveis acréscimos.
Mas ainda que pareça que é muitíssimo difícil governar os povos e
obrigar a multidão ao cumprimento dos seus deveres, e que, quanto maior
é a extensão sobre a qual se exerce a soberania, tanto mais difícil se
prevê que seja o modo de administrá-la, todavia estas dificuldades não te
afetarão muito. É que não só a tua força há de ser sempre invencível, como
também se tornará manifesta a fraqueza daqueles que se quiserem opor
a ti. Com efeito, assim como o ferro sem qualquer dificuldade quebra e
reduz a pedaços os vasos de barro, assim esmagarás e porás em debandada
os teus inimigos, e até mostrarás a força da tua virtude naqueles que
por inteiro se entregarem ao zelo do teu nome. É que acabarás com a
cobiça do corpo; porás fim a todas as emoções perturbadoras e cercearás
as infâmias, de tal maneira que nos homens a ti consagrados nada fique
capaz de extinguir o amor da piedade e da glória imortal.” – Ora, até
aqui expõe-nos as palavras do Pai, para com elas atemorizar os ímpios
que maquinam a morte do rei sempiterno e projetam causar a perdição
daquele [141] cujo poder é imenso e infinito.
Escutai estas palavras, ó reis; a elas atendei e prestai atenção, ó
príncipes, para não cairdes na desgraça sempiterna. Fugi da soberba;
abominai a insolência; reprimi as paixões vãs, para que as mais horríveis
sombras não se abatam sobre os vossos olhos. É que, quanto mais
alto é o grau de honra em que estais colocados, tanto maior é a vossa
necessidade da luz da sabedoria para que cuideis com salutar providência
dos povos confiados à vossa guarda. Algo que as mais das vezes sucede
de forma muito diferente. De facto, as honrarias desmedidas, as riquezas
prodigiosas, o luxo realengo, a esplêndida sumptuosidade, a abundância
de lisonjeiros e a velhacaria dos homens perversos cegam o espírito e
induzem o entendimento dos príncipes em erros desvairados. Ora, deste
modo acontece que, aqueles que deveriam ser os possuidores de maior
sabedoria, são os que dão mostras de maior desatino e vesânia. Por
consequência, causam, não a salvação, mas antes a perdição das populações
e a si mesmos ocasionam a ruína. Ó reis, repeli a loucura e acolhei o
sentimento da humanidade e da prudência. Ó príncipes, que abarcais
com o vosso senhorio a terra, tratai também com o máximo desvelo de
adquirir conhecimentos salutares. É que de outro modo não vos pode
acontecer outra coisa que não seja sucumbirdes da forma mais mofina.
Se vos atemoriza o nome da sabedoria; se considerais muitíssimo difícil
obter o seu fruto; se não tendes confiança na inteligência ou o trabalho
32 D. JERÓNIMO OSÓRIO

quam fortasse suspicamini. Non uos admoneo ut illius


gratia terras ultimas peragretis, ut magistros undequaque
magnis muneribus allectos adsciscatis, ut labores immensos
noctes atque dies perferatis. Nec enim sapientia est e terrae
uisceribus eruenda, sed a Deo postulanda. Ille namque est
perennis et immensus sapientiae fons, unde sunt omnes rei
publicae recte gerendae rationes hauriendae. At benignitas
illius semper illis praesto est qui fidem et pietatem colunt
illiusque numen caste uenerantur. Illi igitur seruite; illius
maiestatem reueremini; omnes uestras cogitationes in studium
illius cum timore consumite. Timor enim Dei est sapientiae
uerissimae fundamentum. Si igitur Deum timueritis et in
illius fide permanseritis, is uos opibus sapientiae diuinae
locupletabit. Tunc igitur admirabili gaudio triumphabitis et
in summa laetitia uersabimini, cum, caelesti luce perfusi,
sempiternam pulchritudinem, opes immortales, gloriae
uerissimae fontem adspicietis.
Vos tamen hortor et admoneo ut, cum fueritis bonis
diuinis egregie cumulati, minime anteactae uitae memoriam
deponatis, sed mentem ad praeteriti temporis recordationem
assidue reuocetis, ne uestros animos florentis status cogitatio
sic efferat ut pietati et industriae uestrae, quod est diuino
beneficio partum, adscribendum arbitremini. Omnia namque
bona de manibus uestris elabentur, si obliuio diuinae
benignitatis in mentes uestras irrepserit superbiaque animos
uestros inflauerit. Sic igitur in secundis rebus exsultate ut
ad caeli conspectum et iudicii diuini memoriam trepidetis.
In omni uero disciplina magistrum exquirimus, cuius
monitis et exemplis instruamur. Quis igitur noster magister
erit? Quis uestigia nostra diriget? Ad cuius nos ductum et
imperium applicabimus? Ad illius [142] certe contra cuius
imperium bellum omni odio imbutum gerebatis; cuius
leges durissimae seruitutis uincula; cuius imperium iugum
minime ferendum putabatis. Intelligite tandem aliquando
Christum ipsum, in quem amentia flagrantes ferebamini,
esse Dei Filium, in quo generis humani salus et sapientiae
summa consistit.
Conuersis igitur animis, in illum respicite, illum colite, illum
ardenter amate, ut lumen suum animis uestris praeferat et
uos a sempiternis tenebris ereptos secum bonorum omnium
communione consociet. Quod, si Filium contempseritis, Pater
in statum uestrum mucronem suae seueritatis exacuet et uos
OPERA OMNIA TOMO IV 33

vos mete medo, sabei que é muito mais fácil o modo de obtê-la do que se
calhar imaginais. Não vos aconselho a que, por causa dela, percorrais as
terras mais distantes, nem a que mandeis vir mestres, contratados de todas
as partes mediante grandes presentes, nem a que dia e noite suporteis
imensos trabalhos. É que tão-pouco se faz mister arrancar a sabedoria
das entranhas da terra, mas cumpre pedi-la a Deus. Ele, na verdade, é a
perene e imensa fonte da sabedoria, de onde se devem colher todos os
ensinamentos respeitantes ao bom governo do Estado. Mas a Sua bondade
está sempre pronta para aqueles que cultuam a fé e a piedade e adoram
com pureza a Sua divindade. Por conseguinte, servi-O; reverenciai a Sua
majestade; com temor, empregai todos os vossos pensamentos no Seu
serviço. É que o temor de Deus é o alicerce da mais verdadeira sabedoria.
Por conseguinte, se temerdes a Deus e vos mantiverdes fiéis a Ele, Ele
encher-vos-á com as riquezas da sabedoria divina. Por isso, então triunfareis
com uma admirável satisfação e vivereis na mais completa alegria, quando,
banhados pela luz celestial, contemplardes a formosura sempiterna, as
riquezas imortais e a fonte da mais verdadeira glória.
Todavia, admoesto-vos e aconselho-vos a que, quando vos encontrardes
singularmente providos dos bens divinos, de modo algum vos esqueçais da
vida antecedente, mas a que recordeis incessantemente o tempo passado,
para que a consciência da condição afortunada não ensoberbeça de tal
forma os vossos espíritos que penseis que se deve atribuir ao vosso esforço
e piedade aquilo que foi alcançado por benefício de Deus. É que todos
os bens vos cairão das mãos, se nos vossos entendimentos se introduzir o
esquecimento da bondade de Deus e a soberba inchar os vossos espíritos.
Por conseguinte, na prosperidade rejubilai de tal maneira que a visão do
céu e a memória do julgamento de Deus não deixem de causar-vos temor.
Na verdade, em qualquer ciência procuramos um mestre para que ele nos
instrua com os seus conselhos e exemplos. Portanto, quem há de ser o
nosso mestre? Quem há de encaminhar os nossos passos? Ao comando e
senhorio de quem nos havemos de entregar? Certamente ao daquele [142]
contra cujo senhorio fazíeis uma guerra imbuída de todo o ódio; aquele
cujas leis consideráveis duríssimos grilhões de escravidão e aquele cujo
senhorio reputáveis como um jugo completamente intolerável. Capacitai-
vos enfim que o próprio Cristo, contra quem, tomados de demência, vos
lançáveis, é o Filho de Deus, em quem assenta a suprema sabedoria e a
salvação do género humano.
Por conseguinte, ponde nele com toda a atenção os olhos, adorai-o,
amai-o ardentemente, para que a sua luz guie os vossos espíritos e,
arrancando-vos das trevas eternas, vos una consigo na comunhão de
todos os bens. Por isso, se desprezardes o Filho, o Pai afiará contra
vós a espada da Sua severidade e far-vos-á perecer atormentados com
34 D. JERÓNIMO OSÓRIO

grauissimis poenis excruciatos interimet. Num arbitramini


iram Dei facillime posse quauis corporis declinatione uitari?
Aut iudicium illius muneribus eludi? aut uiribus impediri?
O miseri mortales, saepenumero in mentem redigite quam
horribile et pertimescendum sit diuinum iudicium. Non loquor
iam de scelere in illius Filium suscepto; non de tanti facinoris
atrocitate dissero; non illius criminis diritatem, quo nullum
umquam potuit scelestius excogirari, commemoro. De quouis
alio, quo homines impuri religionem sanctissimam uiolant,
sermonem facio. Cum Deus, communi scelere permotus,
iracundia ad aliquod tempus exarserit, quis illius impetum
sustinebit? Quis plagam effugiet? Quis non toto corpore et
animo contremiscet? Beatus erit certe is tantum qui in illo
omnia praesidia uitae constiuet.

Domine, quid multiplicati sunt.


Psal. 3

Dauid, grauissimis curis anxius, cum in eum hostes undique


impetum ferrent et filius Absalon sanguinem patris atque
uitam peteret, ipseque uix impias manus effugeret, huiusmodi
uerbis Dei opem implorauit:
Summe Domine, uides quot me pericula circumstant?
Quam maxima sit eorum multitudo qui in me furenter
irruunt? Quot hostes in me crudelitate flagrantes inuehuntur?
Non enim solum Hierosolyma de mea pernicie coniurauit,
uerum et regnum Israelis uniuersum, inani quadam spe
florentioris condicionis erectum, in meum caput pestem et
exitium machinatur; senatus frequens contra meam salutem
sententiam dicit; consiliarii, quorum prudentia maximas res
administrabam, scelestissimi facinoris societatem coeunt;
familiares atque domestici in me hostiliter incursant
et, quod longe grauius est, filius meus, quem ardente
amore e studio complectebar,cuius furori ueniam dedi
et quem beneficiis atque muneribus auxi, impetum in
me fecit. Nec enim statum, quem per summum scelus
appetiuit, se tueri posse confidit, nisi scelestiore facinore
s e p r a e m uni at et reg num , quo d per n ef ariu m scelu s
occupauit, parricidio confirmet. Itaque, me perfidiose
deserto, homines innumerabiles ad illum se cum proiecta
audacia et impudentia contulerunt. Neque solum in regem,
OPERA OMNIA TOMO IV 35

as penas mais pesadas. Acaso supondes que a ira de Deus se pode


facilmente esquivar graças a algum ágil movimento corporal? Ou que
o Seu julgamento se pode evitar através de dádivas? Ou que se pode
impedir pela força? Ó míseros mortais, lembrai-vos amiúde de quão
terrível e temeroso é o juízo divino. Já não falo do crime perpetrado
contra o Seu Filho; não me refiro já à crueldade de um tamanho
atentado; já não recordo a perversidade daquele delito, que é o mais
sacrílego que alguma vez se pode imaginar. Refiro-me a qualquer outro
com o qual os homens impuros violam a santíssima religião. Quando
Deus, impelido pelo crime comum, se encolerizar em algum momento,
quem há de fazer frente à Sua arremetida? Quem há de escapar dos
Seus golpes? Quem não há de tremer com todo o seu corpo e espírito?
Certamente que só há de ser bem-aventurado quem fizer d’Ele toda a
defesa da sua vida.

SALMO 3
Senhor, porque são em grande número [os que me perseguem?]

David, atribulado por mui dolorosos cuidados, ao ver que os inimigos de


todos os lados o atacavam, e que o seu filho Absalão arremetia contra o seu
sangue e vida, e que era a duras penas que conseguia escapar-se de suas
mãos sacrílegas, com as seguintes palavras exorou o socorro de Deus:
Supremo Senhor, vês o grande número de perigos que se erguem em redor
de mim? Quão grande é a multidão daqueles que com grande desvairo me
acometem? Quão sem número é a quantidade dos inimigos que, abrasados
em crueldade, contra mim se lançam? É que não foi apenas Jerusalém que
tramou a minha perdição, mas também todo o reino de Israel, incentivado
por uma esperança totalmente infundada de uma condição mais próspera,
maquina a minha morte e destruição; o senado pronuncia amiudadas
sentenças contra a minha existência; os meus conselheiros, graças a cuja
ponderação eu resolvia as mais graves questões do governo, associam-se
para levar a cabo o mais ímpio dos atentados; os meus íntimos e servidores
com sanha investem contra mim e, algo que de longe é o mais doloroso, o
meu filho, a quem amava com ardente afeto e carinho, ao qual eu perdoei
o desatino e a quem enchi de mercês e dádivas, contra mim se pôs em
campo. Com efeito, não confia que pode conservar o estado que, através do
mais hediondo dos crimes, cobiçou, se antes não se proteger perpetrando
um crime mais hediondo e não consolidar com o parricídio o poder, que
usurpou através de sacrílego atentado. E assim, depois de deslealmente me
abandonarem, com impudente atrevimento e despejo, inúmeros homens a
ele se juntaram. E não apenas atacam o rei, que com patriótico amor se
36 D. JERÓNIMO OSÓRIO

qui commodis omnium amore patrio consulebat, [143]


inuadunt, uerum etiam in Te indignissimam contumeliam
intorquent, dicunt enim: “Deus illum de manibus nostris
haudquaquam eripiet.” Quo quidem conuicio quid poterit
scelestius excogitari? Tu ne is es qui fidem deseras? Qui
officium prodas? Qui religionem uioles? Qui eorum salutem
qui se totos patrocinio commiserunt in calamitate despicias?
Pessime certe de Tua probitate imensa atque fide sentiunt
ii qui fieri posse credunt ut eorum salutem neglegas quos
in fidem sanctissimo foedere recepisti.
Tua igitur benignitate atque promisso fretus, licet omnes
mortales me uehementer oppugnent, me obsessum atque
circumuallatum teneant, mihi perniciem et interitum
moliantur, spem numquam abiiciam, sed animo erecto et
excelso, ope Tua nixus, incedam. Tu enim me ut scuto
protegis; Tu nomen meum caelestibus ornamentis illustras;
Tu me in summo honoris gradu constituis; Tu, quod est
summae benignitatis indicium, cum me premunt aerumnae
et opem tuam imploro, e summo caeli fastigio uocem
meam clementer exaudis et mihi in precibus festinanter
accurris. Quem igitur metuam? Cuius potentiam formidabo?
Quibus curis sollicitabor? Nocturnos hostes despiciam,
Tuis, qui procul abesse non poteris, excubiis innixus;
cum, ex somno excitatus, me ad munus meum uigilanter
administrandum reuocauero, hostium uim et multitudinem
minime pertimescam. Siue igitur cum me quieti nocturnae
tradidero, siue expergefactus die rem publicam gessero,
numquam ullo metu de statu meo deiiciar, quia summus
Dominus me praesidio inuicto saepit et gratia caelesti
corroborat. Licet igitur innumerabilis hostium multitude
me, castris positis, circumsideat atque terrores iaciat et mihi
perniciem minitetur, nullo pauore concutiar.
Exsurge, Domine, uirtutem inuictam excita; arma atque
robur assume, ut mihi salutem afferas. Tu namque solus
Deus meus es, in cuius auxilio conquiesco; Tu Rex meus,
cuius imperium sequor; Tu summum bonum, cuius desiderio
flagro. Fac id quod antehac admirabili benignitate et studio
in me conseruando perfecisti. Impetum enim hostium
meorum repressisti, et, de conatu perditissimo depulsos,
insigni dedecore cumulasti illorumque maledicentiam,
detectis fraudibus et insidiis, ita refutasti ut laus mea longe
clarius emineret.
OPERA OMNIA TOMO IV 37

ocupava do bem estar de todos, [143] mas igualmente contra Ti irrogam


o mais infame dos ultrajes, porquanto dizem: “Deus de modo algum o há
de arrancar das nossas mãos.” Ora, que afronta poderá imaginar-se mais
sacrílega do que esta? Porventura está em Tua natureza ser desleal? Faltar
aos Teus deveres? Deixar de cumprir o prometido? Votar ao esquecimento
e abandonar à sua desgraça aqueles que inteiramente entregaram a Ti a
sua salvação e se colocaram sob a Tua proteção? Têm um péssimo conceito
acerca da Tua probidade e lealdade incomensuráveis os que pensam que
pode acontecer que desprezes a conservação daqueles aos quais, mediante
uma santíssima aliança, acolheste sob a Tua proteção.
Por conseguinte, apoiado na Tua bondade e promessa, ainda que todos
os mortais violentamente me ataquem e me mantenham sitiado e cercado,
e se esforcem por causar a minha destruição e ruína, nunca porei de parte
a esperança, mas hei de caminhar com coragem e determinação, amparado
na Tua ajuda. É que Tu me proteges como um escudo; Tu abrilhantas o
meu nome com celestiais ornamentos; Tu colocas-me no mais elevado
grau da glória; Tu, algo que é prova do maior bem-querer, quando as
provações me atribulam e imploro a Tua ajuda, desde o mais alto dos
céus escutas compassivamente a minha voz e açodadamente acodes aos
meus rogos. Por conseguinte, a quem hei de temer? Do poder de quem
hei de sentir medo? Que preocupações hão de inquietar-me? A desprezo
hei de votar os inimigos que se ocultam nas trevas da noite, apoiado nas
Tuas sentinelas, que não poderás encontrar-Te longe de mim; quando,
despertado do sono, regressar ao zeloso desempenho do meu cargo, não
hei de arrecear-me da violência e grande número dos inimigos. Portanto,
quer quando me entregar ao descanso noturno, quer quando, depois de
acordado, me ocupar durante o dia da governação, nunca medo algum há
de fazer-me perder a presença de ânimo, porque o Senhor supremo me
cerca com a Sua invencível proteção e me esforça com a graça celestial.
Por isso, embora, com seus arraiais montados, inumerável multidão de
inimigos me cerque e me ameacem e me acenem com a destruição, receio
algum há de abalar-me.
Levanta-Te, Senhor; arma-Te de invencível denodo; reveste-Te de armas
e fortaleza, para me ofereceres a salvação. É que Tu és o meu único Deus,
em cuja ajuda tenho o meu descanso; Tu és o meu Rei, a cujo poder
obedeço; Tu és o supremo bem, em cujo desejo me abraso. Faze aquilo
mesmo que anteriormente, com Tua espantosa bondade e amor, a cabo
levaste para me salvares. É que rechaçaste o ataque dos meus inimigos,
e, depois de os fazer fracassar de seu perversíssimo intento, cobriste-os
de vergonhoso desdouro, e de tal guisa refutaste a sua maledicência,
pondo a descoberto seus embustes e enganos, que o meu merecimento
avultou com muito mais resplandecente prestígio.
38 D. JERÓNIMO OSÓRIO

O miseri mortales qui aliunde salutem expetendam existimatis,


non intellegetis tandem quanta sit in hominibus imbecillitas et
quanta perfidia? Quid est igitur in terris quod salutem dare, aut
datam conseruare possit? Ab illo igitur tantum Domino, cuius
est potestas infinita et fides immutabilis atque sempiterna,
auxilia postulate, et non ab hominibus, quorum opes momento
temporis euanescunt et infidelitas multis experimentis redarguta
conuincitur. O fons perennis salutis atque dignitatis, a quo
bona cuncta profluunt, quantis opibus et ornamentis affecisti
populum tuum? Beatissimi igitur tantum illi dicendi sunt qui
in populo tuo numerantur, nempe quos fides et amor ad tuum
sanctissimum nomen adiunxit. In eorum [144] enim animos
opes immutabiles atque sempiternas munifice congessisti.

Cum inuocarem, exaudiuit me.


Psal. 4

Inueterauit quaedam opinio, perniciosa uitae, moribus


uehementer infesta, diuinis legibus et institutis aduersaria
et cum summa impietate coniuncta, apud homines, quorum
mentes humi defixae sunt et minime caelestia atque diuina
suspiciunt: nempe, summam sapientiam in malicia summa
debere constitui. Qua sententia quid amentius fingi potest,
quid enim stultius est quam calliditate niti? Quam mendacio
gloriari? Quam ingeniurn ad fraudem uersare? Quam ex
diuitiarum fallaciis atque somniis, omnes uitae rationes
suspensas habere? Et interim isti non solum sibi ex uanitate
sapientiam insolenter arrogant, uerum in eos qui omnem
rationem uitae, salutis atque dignitatis in diuina fide
reponunt petulanter inuehuntur, eosque ut homines stultos
irrident et omni dedecore deformatos arbitrantur. Hoc autem
dementiae nomine scelesti homines, qui subnixi fraudibus
sapientiam iactabant, cum essent amentissimi, Dauidem
uituperabant quod nimis religioni deditus esset, quod in
caelum semper respiceret, quod non aliunde, quam a Deo,
uitae praesidia postularet. Contra Dauid, ut ostendat quanta
sapientia gubernent ii qui non opinionibus hominum, sed
religionis sanctitate uitam instituunt, pietatis suae fructum
explicat et stultitiam exprobrat illis qui, relicto uero et
firmo uitae praesidio, ad inanitatem tota mente conuersi,
mendacio nitebantur. Inquit enim:
OPERA OMNIA TOMO IV 39

Ó mofinos mortais que cuidais que a salvação deve procurar-se alhures,


não acabareis de entender como é grande nos homens a fraqueza e como
é grande a deslealdade? Portanto, que existe na terra que possa conceder
a salvação, ou, depois de conseguida, conservá-la? Portanto, pedi ajuda
unicamente àquele Senhor, cujo poder é infinito e a lealdade imutável e
eterna, e não aos homens, cujas riquezas se desvanecem num ápice de
tempo e cuja aleivosia se patenteia mediante a comprovação de inúmeras
experiências. Ó fonte inexaurível de saúde e honra, da qual promanam
todos os bens, com quão grandes riquezas e ornamentos enricaste o Teu
povo? Portanto, só merecem receber o nome de bem-aventurados os que
fazem parte do Teu povo, ou seja, aqueles aos quais a fé e o amor pôs
sob a bandeira do Teu santíssimo nome. [144] É que com mãos largas
acumulaste nas suas almas tesoiros imutáveis e sempiternos.

SALMO 4
Ao invocá-lo, ouviu-me.

Arreigou-se uma certa opinião, prejudicial à vida, sobremaneira nociva


aos costumes, oposta às leis e determinações divinas e associada à mais
completa impiedade, entre homens cujos entendimentos estão fixos na
terra e não olham para as coisas do Céu e de Deus: a qual, saber, defende
que a suprema sabedoria deve fundar-se na mais completa malícia. Que
pode imaginar-se de mais desatinado do que esta opinião, uma vez que
nada existe de mais desatinado do que apoiarmo-nos na astúcia? Do que
desvanecermo-nos com a mentira? Do que aplicarmos a inteligência ao
embuste? Do que fazer depender todos os projetos de vida dos enganos
e sonhos de riquezas? E, no entretanto, esses tais não só sem qualquer
fundamento insolentemente se arrogam a sabedoria, mas por igual
despudoradamente se arremessam contra os homens que fazem depender
da fé em Deus toda a essência da vida, da salvação e da dignidade, e
deles zombam como pessoas estúpidas e os conceituam como aviltados
por toda a sorte de infâmias. Ora, com este apodo de loucura os homens
ímpios, que, apoiados no engano, se ufanavam de sábios, embora fossem
totalmente estultos, criticavam David por de sobejo se ter entregue à
religião e sempre ter os olhos fitos no céu e por não de outrem senão
Deus pedir o socorro para a vida. David, pelo contrário, para mostrar com
quão grande sabedoria se regem os que pautam a sua vida, não pelas
opiniões dos homens, mas pela santidade da religião, dá a conhecer o
fruto da sua religiosidade e exprobra a estolidez daqueles que, pondo de
lado o verdadeiro e firme sustentáculo da vida, com todo o seu espírito
posto na vaidade, se apoiavam na mentira. De feito, diz:
40 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Simul atque clamorem tollo, Deus meus, meae iustitiae


Parens et auctor, orationem meam exaudit et, ut beneficia
Sua in me tueatur, confestim accelerat. Non enim opes
iustitiae, quibus me excultum cerno, mihi insolenter
assumam. Non sum adeo furiosus et amens ut id quod non
potest aliunde, quam a mente diuina, ad humanas mentes
emanare, meis meritis adscribam. Reliquum igitur est ut,
quotiens recordor qui fuerim et quomodo Dei clementia ex
flagitiis emerserim et opibus diuinae uirtutis ornatus fuerim,
Illum meae iustitiae architectum ardentissime diligam,
castissima religione uenerer et Illius tantum praesidio
omnes uitae rationes muniendas existimem. Nec enim
fieri potest ut, qui me alienum et a iustitiae sanctionibus
abhorrentem, ad Suum nomen adiunxit, et hac me noua
forma decorauit, ut in illius adoptiua sacra uenirem, me, iam
Sibi agnatione caelesti deuinctum, despiciat postulataque
mea repudiet.
O clementissime Domine, quo modo Tibi gratiam referam?
Quotiens enim inclamo, Tu auxilium confestim affers,
ut, leuatus angoribus, libere respirem et, spiritu Tuo
recreatus, admodum iucunde reficiar. O uiri, quos uel
nobilitatis insignia uel honoris ornamenta uel opes immanes
extullerunt, quae uos tanta uexat amentia ut gloriam
meam ad dedecoris opinionem reuocetis? [145] Et ideo me
contemnendum existimatis, quod me religioni sanctissimae
nimis deditum arbitremini? An quidquam fieri poterit
ad decus uitae magnificentius quam optimum Parentem
amare? Summum Dominum reuereri? Opibus diuinis atque
sempiternis inniti? Scilicet, efferri mendacio, opes uanitate
firmare, potentiam inanitate stabilire, id erit gloriosum et
praedicandum? Deo autem uiua fide coniungi et in illius
praesidio, qui nemine umquam fefellit, acquiescere, id erit
dedecori et ignominiae tribuendum?
At uos interim, qui uenditatis ingenium, qui, acumine
subnixi, passim uolitatis, qui meam simplicitatem, ut rebus
augendis inutilem, intemperanter illuditis, in uanitate
uersamini et mendacium amplexamini, omnem namque
operam, studium, industriam, uigilantiam in rebus illis
parandis frustra consumitis, quae uobis opitulari non poterunt.
Non cernitis, homines amentissimi, cum sanctissimam
religionemdedecori affinem iudicatis, illam opinionem,
dedecoris et audaciae plenam, in Dei conuicium redundare?
OPERA OMNIA TOMO IV 41

Logo que ergo o meu brado, o meu Deus, Pai e autor da minha justiça,
escuta a minha oração e logo se dá pressa para me proteger com os
Seus benefícios. É que não me ensoberbeço como se minhas fossem as
riquezas da justiça com as quais me vejo ataviado. Não sou a tal ponto
vesânico e louco que atribua aos meus merecimentos aquilo que para
os entendimentos humanos não pode provir senão do entendimento
divino. Portanto, segue-se que, sempre que me recordo de quem fui e
de que maneira foi graças à misericórdia de Deus que surdi do seio das
abominações, e como fui ornamentado com as riquezas da virtude divina,
sinto-me abrasado com o mais intenso amor por aquele autor da minha
justificação, reverencio-O com a mais pura religiosidade e capacito-me de
que unicamente na Sua ajuda se devem fundar e amparar todas as regras
e sistemas de vida. Com efeito, é impossível que, quem me aceitou sob o
Seu pendão, quando eu me encontrava alheio e hostilizava as sanções da
justiça, e me ataviou com esta nova formosura, a fim de que eu participasse
do culto da família que me adotou, me venha a desprezar, uma vez a Ele
unido por celestial parentesco, e rejeite os meus pedidos.
Ó clementíssimo Senhor, como hei de agradecer-Te? É que, sempre
que por Ti brado, imediatamente acodes com a Tua ajuda, de maneira a,
aliviado das minhas angústias, poder livremente respirar e, reconfortado
com o Teu espírito, assaz alegremente me sentir reanimado. Ó varões,
aos quais ensoberbeceram os brasões de nobreza ou as insígnias da
honra ou as imensas riquezas, que desatino tão grande vos senhoreia
que degradais em título de vileza a minha honra e glória? [145] E
considerais que eu mereço ser menosprezado porque pensais que me
entreguei em demasia à santíssima religião? Porventura poderá fazer-se
seja o que for de mais grandioso para enobrecer a existência do que
amar o melhor dos pais? Reverenciar o Senhor supremo? Apoiar-se nas
divinas e eternas riquezas? Ou seja, será nobre e recomendável deixar
arrastar-se pela mentira, dar como esteio das riquezas o que é vão e
estribar na vaidade o poder? E, ao invés, deverá ter-se como ignomínia e
desdouro ligarmo-nos a Deus mediante uma fé viva e encontrar repouso
na ajuda d' Ele, que jamais faltou a ninguém?
E, entretanto, vós, que gabais a vossa inteligência, que, estribados na
penetração do vosso engenho, com ele esvoaçais em todos os sentidos,
que com descomedimento zombais da minha singeleza como inútil para
aumentar os bens materiais, viveis na vaidade e abraçais a mentira, pois
consumis debalde o vosso esforço, desvelo, atividade e atenção em adquirir
aquelas coisas que não poderão prestar-vos ajuda. Não vedes, homens
mui desvairados, que, quando julgais a santíssima religião como algo
de próximo à vileza, essa opinião, ressumante de infâmia e atrevimento,
redunda em ultraje contra Deus? É que não professa uma opinião correta
42 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Non enim de diuinae maiestatis amplitudine recta opinione


habet qui in debito numinis illius cultu dedecus situm esse
constituit. “- Sed”, inquies, “difficillimum esse ut quisque rem
suam bene gerat qui totus est in studio religionis occupatus.
Necesse igitur esse ut imprudentiae uituperationem subeat
qui uinculo religionis nimis adstringitur. Id igitur scire sane
uelim quis melius rebus suis consulit: isne qui, ingenio et
industria fretus, omnem uitam in terrenis opibus parandis et
amplificandis conterit, an is qui sanctae religionis studium
omnibus rebus anteponit?”
Vt autem rectum iudicium faciatis, in me respicite, et quam
ampla praemia meae religioni atque benignitati constituta
sint, animis considerate. Me namque Dominus mirabilibus
ornamentis affecit; me ad regni fastigium euexit; mihi multas
gentes subdidit; nomenque meum multis uictoriis illustrauit.
Itaque me, quem non ualde sapientem arbitramini, non solum
caelestibus ornamentis excultum, uerum etiam terrenis opibus
locupletatum cernere potestis. Quod, si dicitis simplicitate mea
factum esse ut in hominum improborum insidias inciderem, dum
enim nimis religioni seruio et magis hominum caritari quam
meae securitati consulo frequenter accidere ut ab illis ipsis,
quorum uitae pepercerim, crudeliter oppugner, hoc igitur a
uobis quaero: num tutius uitae consulitur dum Deus benignitate
placatur, an cum, Dei numine neglecto, salutis custodia in
crudelitate reponitur? Num uidistis me in rebus aduersis ope
diuina nudatum? Non certe. Dominus enim exaudiet me cum
clamauero ad Eum. Igitur amplissimum pietatis et sanctimoniae
fructum cernitis, si praesidium uitae firmissimum in benignitate
positum esse conspicitis, cur humanam sedulitatem et industriam
religioni sanctissime cultae praeponitis?
Cohibete motus animi et temeritatem coercete. Quod, si in
uos improuiso iracundiae furor inuaserit, non illi confestim
pareatis, sed spatium ad cogitandum sumite, ut intellegatis
quam taetra saepe facinora ex immoderatione mentis
acrius ad uindictam concitatae oriantur. Sic autem fiet ut
offentionem, quam sine causa sumpsistis, facile deponatis.
Contremiscite [146] et taeterrimam peccati luem detestamini;
ipsi cum animis uestris sceleris atrocitatem reputate et in
cubilibus uestris tanti erroris amentiam perhorrescite. O
scelus uix multis sacris expiandum! Multis enim sacrificiis
opus est ad tanti facinori monstrum procurandum. Quae
sacrificia dicis? Num uitulos immolabimus? Num agnos,
OPERA OMNIA TOMO IV 43

acerca da grandeza da majestade divina quem defende que existe desdouro


no devido culto prestado àquele poder divino. “– Mas”, objetarás, “é
sobremodo difícil que se ocupe bem dos seus negócios quem quer que
inteiramente se consagra ao zelo da religião. Por conseguinte, é mister
que incorra na pecha de imprudente o homem que excessivamente se
ata com os liames da religião. Portanto, desejaria saber quem é que zela
melhor pelos seus interesses: acaso aquele que, contando com a sua
atividade e inteligência, consome toda a vida na obtenção e aumento
das riquezas, ou aquele que antepõe o zelo da santa religião a todas as
coisas humanas?”
Ora, para que façais um julgamento isento, atentai em mim, e observai
como foram grandes os prémios que se ofereceram à minha religiosidade
e bondade. Com efeito, o Senhor concedeu-me admiráveis ornamentos;
ergueu-me ao fastígio do poder; pôs sob a minha soberania inúmeros
povos; e enobreceu o meu nome com muitas vitórias. E assim podeis ver-
me, a mim a quem considerais não muito sábio, não apenas ataviado com
celestiais ornatos, mas igualmente abundoso de bens terrenos. Pelo que,
se dizeis que foi por causa da minha singeleza que aconteceu eu cair nas
armadilhas dos homens ímpios, pois, ao consagrar-me excessivamente à
religião e atender mais ao amor pelo próximo do que à minha segurança,
sucede amiúde que sou cruelmente atacado por aqueles mesmos cujas
vidas poupei: por tudo isto, portanto, pergunto-vos: olha-se mais pela
segurança da vida quando tornamos Deus propício mediante a bondade,
ou quando, desprezando o poder divino, se faz depender a guarda da
segurança da crueldade? Acaso me vistes na adversidade privado da ajuda
de Deus? Com certeza que não. É que o Senhor há de escutar-me quando
eu por Ele chamar. Por conseguinte, se vedes o imenso fruto da piedade
e da religiosidade, se divisais que a solidíssima defesa da vida assenta
na bondade, por que razão antepondes a atividade e diligência humanas
à religião santissimamente cultivada?
Reprimi as vossas paixões e atalhai ao vosso desatino. Por forma a, se o
desvario da ira de súbito vos acometer, não lhe obedecerdes de imediato,
mas tomai algum tempo para refletir, a fim de que compreendais quão
amiúde crimes terríveis nascem do descomedimento do ânimo que cede
aos violentos impulsos da vingança. Ora, assim sucederá que facilmente
poreis de parte a aversão que sem causa acalentastes. [146] Arreceai-
vos e aborrecei a medonha peste do pecado; meditai dentro de vossas
almas no horror do crime e nas vossas interiores moradas senti vivo
terror da vesânia de tamanho erro. Oh crime que a duras penas se pode
expiar com sacrifícios inumeráveis! Na verdade, são necessárias muitas
cerimónias sagradas para expiar a monstruosidade de tão grande atentado.
A que sacrifícios aludes? Porventura imolaremos bezerros? Porventura
44 D. JERÓNIMO OSÓRIO

ut flammis absumantur, ad aram statuemus? Non, inquam,


haec enim sacra non solidam et expressam religionem,
sed adumbratam, continent, nec enim animos expiant,
sed, quibus sacris sit uera puritas comparanda, obscure
significant.
Quod igitur erit sacrificium Deo gratissimum? Id certe
quod sine Illius gratia et beneficio offerri minime potest:
sacrificium nempe iustitiae. Is enim qui uerum iudicium
exercet, qui iuris aequabilitatem tuetur, qui inopis iusti
caussam suscipit, qui potentium opes in iudicando non
respicit, qui hominum caritati consulit, qui beneficentiam grata
uoluntate prosequitur, qui denique opus illud sanctissimum
diuini iuris absoluit, nempe, ut diuina beneficia assidue
in mentem reuocet et Deo semper gratias agat: is certe ex
hoc iustitiae sacrificio amplissimum fructum percipiet. Cum
uero praecipua iustitiae pars sit uera religio, tum enim uel
maxime iustitiae officium facimus cum debitum honorem
summo Domino atque Parenti tribuimus; religionis autem duo
munera sint: unum, praeterita beneficia recordari; alterum,
futuris firme confidere: in utroque est uobis elaborandum,
ut pro acceptis beneficiis gratias semper agatis, et minime
uos ampliora percepturos diffidatis. Magna igitur uos spes
teneat fore ut numquam ab Illo, si iustitia a uobis sancte
culta fuerit, deseramini. Sic autem opes uestras firmiore
certe praesidio munietis quam si omnes animi uires, omnem
uestram industriam et contentionem in opibus uel parandis,
uel augendis, uel constituendis posueritis.
Sed unde, quaeso, tanta sollicitudo quae torquet et assidue
uersat animos ortum habet? Quae poena est haec quahomines
ita cruciantur ut minime respirent? Cur tantis motibus agitantur
ut consistendi locum minime reperiant? Omnia certe ex infinita
cupiditate proueniunt, quae, cum satiari nullo modo possit,
mentes semper ieiunas et inanes angore et cruciatu propter
indigentiam plectit atque dilacerat. Nam, quilibet, praeter
bonam ualetudinem et firmas uires et corporis elegantiam,
frugum ubertatem, pecuniae abundantiam, opes, honores
appetit, et nihil omnino praetermittit quo tandem possit eo,
quo illum cupiditas impellit, aliquando peruenire. Sed, quid
prodest? Si enim id quod concupiscit non assequitur, uitam
in acerbitate summa traducit; si assequitur, experiundo sentit
fuisse a se omne uitae studium in bonis inanibus acquirendis
frustra consumptum, sitis enim eorum copia non exstinguitur,
OPERA OMNIA TOMO IV 45

colocaremos nas aras cordeiros para que as chamas os consumam? Não,


é a minha resposta, pois estas cerimónias não encerram em si uma sólida
e explícita religiosidade, mas apenas em bosquejo, uma vez que não
expiam as almas, mas de forma velada simbolizam os ritos e cerimómias
mediante os quais se deve obter a verdadeira pureza.
Qual será, então, o sacrifício mais grato a Deus? Seguramente aquele que
não pode ser oferecido sem a Sua graça e bondade: ou seja, o sacrifício
da justiça. Na verdade, o homem que julga com verdade, que defende a
causa do justo pobre, que ao julgar não tem em consideração as riquezas
dos poderosos, que procede de acordo com a caridade pelo próximo, que
de bom talante se empenha em bem-fazer, e que, por derradeiro, leva a
cabo a mais santa obra da lei divina, a saber, ter incessantemente presentes
no espírito os benefícios de Deus e dar-Lhe sempre graças: com certeza
que este homem receberá um abundantíssimo fruto deste sacrifício de
justiça. E uma vez que a principal parte da justiça consiste na verdadeira
religiosidade, pois cumprimos o que é deveras o mais importante dever
da justiça quando prestamos ao supremo Senhor e Pai as devidas honras;
sendo, por outro lado, duas as funções da religião: uma, lembrar os
benefícios já recebidos; e a segunda, firmemente confiar nos que hão de
ser oferecidos: cumpre que vos esforceis em uma e outra, por forma a
sempre dardes graças pelos benefícios recebidos, e nunca desconfiardes de
que havereis de recebê-los maiores. Por consequência, que vos senhoreie
uma grande esperança em que, se santamente cultivardes a justiça, nunca
Ele vos há de abandonar. Ora, deste modo certamente salvaguardareis
as vossas riquezas com uma proteção mais firme do que se aplicardes
todas as energias do ânimo, toda a vossa atividade e empenho quer em
obter riquezas, quer em aumentá-las, quer em criá-las.
Mas, pergunto eu, donde procede tão grande inquietação, que atormenta
e incessantemente perturba os espíritos? Que castigo é este pelo qual são
de tal modo atribulados os homens que não os deixa respirar? Por que
motivo se agitam com tão violentas emoções que não acham lugar em que
repoisem? Com certeza que tudo provém de uma imensa cobiça, a qual, uma
vez que não consegue de forma alguma saciar-se, com angústia e tortura,
devida à carência, profliga e dilacera os entendimentos, sempre esfaimados
e vazios. Na verdade, qualquer um, para além de boa saúde e robustez
física e beleza corporal, sente desejos de fartas colheitas, abundância de
dinheiro, riquezas e honrarias, e não omite em absoluto seja o que for que
lhe permita ao cabo algum dia chegar aonde a cobiça o impele. Mas, de
que serve? É que, se não alcança aquilo que deseja, arrasta uma existência
sumamente penosa; se o alcança, reconhece pela experiência que foi debalde
que gastou todo o desvelo da sua vida em adquirir bens vãos, porquanto
com a abundância destes a sede não se extingue, e até mais violentamente
46 D. JERÓNIMO OSÓRIO

immo acrius irritatur, ita ut, quo magis opes affluunt, eo


miserabilius homines in mendicitate uersentur.
O summe Domine, uultus Tui splendorem, quasi signum
quod sequar, in conspectu meo [147] sublimem tolle
mentemque meam claritate luminis Tui laetifica, gratiaque
tua animum meum opibus, quae cerni oculis non possunt,
expleat: nihil amplius desiderabo. Sint alii florentes opibus
humanis; sint uitae praesidiis et ornamentis redundantes;
dignitate atque gloria populari circumfluant: ego uero, ut
his rebus omnibus caream, si gratiae Tuae fructum fuero
consecutus, summo gaudio triumphabo, omnibus enim
uerissimis bonis expletus et cumulatus incedam. Hoc est
igitur uotum meum, hoc desiderio flagro, haec me cupiditas
inflammat facillimeque omnes hominum copias et facultates
contemnam, dum hoc summum bonum, quod in amore Tuo
consistit, adipiscar. Sic autem fiet ut nullis opibus inuideam.
Immo, cum illi, qui mihi ualde infestis animis aduersantur,
frumenti atque uini copia locupletati fuerint, Tu miram animo
meo laetitiam afferes et eam mihi mentem dabis ut ex illorum
secundis rebus insignem uoluptatem percipiam.
Sed inquiet aliquis: “Quid, si uires collegerint quibus te
longe uehementius oppugnent? Non eorum inuidiam, cum
potentia non mediocri coniunctam, extimesces?” Minime!
Nam et communi paci prospiciam, et illorum immanitatem
moderatione mea mitigabo. Non enim cum hominibus, sed
cum uitiis acre mihi bellum gerendum suscipiam. Itaque mea
benignitas illorum immanem naturam coercebit; caritas odium
exstinguet; modestia insolentiam superabit, ita me denique
geram ut, quoad fieri possit, omnes ad meas rationes bonitate
mea deuinctos adiungam. Quod, si occulte inimici fuerint,
inter illos tamen pacifice atque sine ullo metu uersabor; et
nocte sine ulla formidine somnum capiam; et, omni cura et
sollicitudine uacuus, conquiescam. Tu enim solus, Domine,
me ad firmam spem immortalitatis erexisti; Tu meae uitae
praesidium suscepisti; Tu dignitatem meam inuictis copiis
saeptam esse uoluisti, ne umquam ullis hostium uiribus de
statu meo demigrarem.
OPERA OMNIA TOMO IV 47

se acirra, por tal forma que, quanto mais afluem as riquezas, tanto mais
mofinamente os homens se arrastam na indigência.
Ó supremo Senhor, ergue bem alto na minha presença o lume do Teu
rosto, como um pendão para eu seguir, [147] e alegra o meu espírito
com o resplendor da Tua luz, e que Tua graça colme a minha alma de
riquezas que os olhos não podem enxergar: e nada mais desejarei. Que
outros floresçam em riquezas humanas; que em abundância possuam
ornamentos e defesas para a vida; que sejam fartamente providos de
honrarias e aplausos do povo: eu, porém, ainda que careça de todas estas
cousas, se obtiver o fruto da Tua graça, com o maior dos contentamentos
hei de triunfar, pois hei de caminhar repleto e cumulado com todos os
bens mais verdadeiros. Por conseguinte, é isto o que almejo, neste desejo
me abraso, este anelo me inflama e de muito bom grado desprezarei toda
a abundância e recursos dos homens, até alcançar este bem supremo,
que assenta no Teu amor. Ora, assim sucederá que não sentirei inveja de
nenhumas riquezas. E até, quando possuírem abundância de trigo e de
vinho aqueles que para mim olham com ânimo deveras hostil, Tu hás de
encher o meu peito de espantosa alegria e oferecer-me uma disposição
de ânimo de natureza tal que a prosperidade deles há de ocasionar-me
uma mui especial deleitação.
“Mas”, dirá alguém, “que sucede se juntarem forças para com elas
muito mais violentamente te atacarem? Não sentirás temor do ódio deles,
consorciado com um poder nada pequeno?” De modo algum! É que, não só
hei de velar pela paz comum, como também com a minha moderação hei
de amansar a desumanidade deles. Na verdade, tomarei como obrigação
minha mover violenta guerra, não contra os homens, mas contra os vícios
e defeitos. E por isso a minha bondade há de reprimir a natureza perversa
deles; a minha caridade há de extinguir-lhes o ódio; o meu comedimento
há de avantajar-se à sua soberba; e, finalmente, de tal maneira me hei
de haver que, até onde for possível, mediante a minha bondade hei de a
todos submeter às minhas razões. Pelo que, se forem inimigos às ocultas,
todavia entre eles hei de viver pacificamente e sem qualquer temor; e
durante a noite entregar-me-ei ao sono sem qualquer receio; e, livre de
todo o cuidado e preocupação, hei de descansar. É que só Tu, Senhor,
me guindaste a uma firme esperança de imortalidade; Tu te encarregaste
da segurança da minha vida; tu quiseste que a minha dignidade fosse
guardada por tropas invencíveis, para evitar que a violência de quaisquer
inimigos alguma vez me fizesse tombar da minha posição.
48 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Verba mea auribus percipe, Domine.


Psal. 5

Qui secum firme statutum habuerit nullum esse in uita


bonum quod non ab Illo sanctissimo parente nostrae uitae
atque salutis emanet, non certe alio mentem conferet, sed
oculos perpetuo in diuina benignitate defixos habebit. Is
enim est qui nos in morbis curat; in angoribus subleuat; in
inopia ditat; in periculis tuetur; in erroribus erudit. Ab interitu
namque deterret, ut in immortalitatis, atque adeo diuinitatis,
uiam dirigat. Vt haec tamen munera ab Illo consequamur, opus
est ut nunquam ab Illo oculos deiiciamus, sed ardenti studio
nostrae salutis Auctorem diligamus, amemus, ueneremur,
amplexemur, et numquam ab illius complexu ulla condicione
diuellamur. Ingratis enim omnia de manibus elabuntur, at illis
qui memoriam [148] beneficiorum diuinorum retinet, cuncta
sunt praeclarissime constituta. Porro autem huius clarissimae
uirtutis, quae in gratissima ratione atque uoluntate consistit,
studium sanctissimae orationis frequentia et assiduitate
continetur. Qui enim Deum frequenter alloquitur, aut pro
beneficiis acceptis agit, aut beneficia, quibus indiget, fidenter
petit, quorum utrumque est et gratissimae mentis et maxime
confidentis officium, id efficit in quo religionis sanctissimae
ratio consistit. Vnde colligitur sapientiam esse in huius
orationis studio constitutam.
Quomodo autem sit orandus Dominus, qua puritate, quo
studio, quo mentis ardore sint ad Deum preces adhibendae,
docet nos in hoc carmine Dauid, cuius uerba sunt, si uolumus
uerissimam felicitatem a Deo consequi, memoria perpetua
retinenda, ut illum imitemur qui omnia summa bona feliciter
impetrauit. Inquit enim:
Verba mea auribus percipe, Domine. Non enim sine mentis
attentissima consideratione proferuntur. Tu namque, qui intimos
animorum recessus perscrutaris et inspicis, uides mentem meam
esse studio acerrimo concitatam et uehementer inflammatam,
ita ut clamor meus, quo opem tuam imploro, multo magis sit
ex animi meditatione quam ex uocis contentione censendus.
O Rex summe, cuius imperium cum debita ueneratione mihi
perpetuo sequendum statui; o Domine clementissime, cuius
seruituti me ualde libenter addixi: preces meas ad aures Tuas
sanctissimas admitte. Non enim lente, non neglegenter, non
submisse, sed acriter et uehementer magnisque uocibus, Te,
OPERA OMNIA TOMO IV 49

SALMO 5
Senhor, dá ouvidos às minhas palavras.

Quem tiver assentado consigo mesmo que na vida não existe bem algum
que não proceda d' Aquele santíssimo progenitor da nossa vida e salvação,
certamente não encaminhará o seu entendimento para outro lugar, mas
terá incessantemente fixos os seus olhos na bondade divina. É que Ele
é quem nos cura nas doenças; nos alivia nas angústias; nos enriquece
na pobreza; nos defende nos perigos; nos ensina nos erros. De facto,
aparta-nos da morte para nos dirigir para o caminho da imortalidade, e
até da divindade. Todavia, a fim de que d' Ele obtenhamos estas mercês,
é mister que nunca d' Ele desviemos os olhos, mas com ardente afeto
amemos, veneremos e abracemos o Autor da nossa salvação, e nunca,
em situação alguma, sejamos arrancados da intimidade com Ele. É que
aos ingratos tudo se lhes escapa das mãos, mas àqueles que conservam
a lembrança [148] dos benefícios divinos, tudo se lhes conserva e corre
a contento. Ora, por outro lado, o cuidado desta mui nobre virtude, que
se funda num proceder e vontade agradecidos, cifra-se na frequência e
assiduidade da santíssima oração. Com efeito, quem fala amiúde com
Deus ou Lhe agradece as mercês recebidas ou confiadamente Lhe roga os
benefícios de que tem precisão, atos ambos estes que constituem obrigação
de um espírito não só muito agradecido, como também sobremaneira
confiante: está a fazer assim aquilo em que se funda a essência da mais
santa religiosidade. Daqui se conclui que a sabedoria assenta no amor
e zelo desta oração.
Ora, de que modo deve rezar-se ao Senhor, e com que pureza, com que
zelo, com que ardor da alma se devem fazer presentes as rogativas é algo
que neste salmo nos ensina David, cujas palavras nos cumpre sempre reter
na memória, se queremos alcançar de Deus a mais verdadeira felicidade,
por forma a imitarmos aquele que afortunadamente rogou todos os mais
elevados bens. Com efeito, diz:
Senhor, dá ouvidos às minhas palavras. É que elas são proferidas
com a mais concentrada atenção do entendimento. Na verdade, Tu, que
esquadrinhas e enxergas os mais interiores recessos das almas, vês que
o meu entendimento se encontra vivamente abrasado e movido por um
ardentíssimo zelo, de tal maneira que os meus brados, com os quais
imploro a Tua ajuda, muito mais devem ser avaliados em função da reflexão
do espírito do que da intensidade da voz. Ó Rei supremo, cujo senhorio
me dispus a sempre seguir com o devido acatamento; ó clementíssimo
Senhor, a cujo serviço de muito bom grado me coloquei: dá entrada em
Teus ouvidos santíssimos às minhas rogativas. É que por Ti clamo, para
que me prestes a Tua ajuda, não com voz morosa, remissa e baixa, mas
50 D. JERÓNIMO OSÓRIO

ut mihi opem afferas, inclamo. Nec enim aliunde, quam a Te,


auxilium in meis rebus aduersis expetiui. Non enim homines
studio inani sollicito, non commenticia numina ad auxilium
inuoco, non me ad opes fallaces confero, sed Te solum Deum
meum, unicum meae uitae praesidium, oro et obtestor fidemque
Tuam clamoribus iustis imploro.
Nec illud quidem dici potest me aliquod uitae negotium
huic Te orandi studio praetulisse. Nam, bene mane, antequam
aliquid uel publice uel priuatim geram, hos unum opus
molior, hoc unum ago, in hoc totis animi uiribus incumbo,
ut a Te contendam ne me ope Tua destituas. Audi igitur,
Domine, orationem qua diebus singulis, prima luce, ad Te
supliciter adeo; qua mentem ad cogitationem Tuae immensae
probitatis excito; qua animum studiose comparo ut possim
magnitudinem Tuae iustitiae et aequitatis attentissime
contemplari. Haec autem sunt quae mente recolo ut cum
maiore fiducia ad thronum Tuae maiestatis accedam. Cogito
enim Te Deum uerum esse, perfectissimum sempiternae
uirtutis, puritatis, honestatis exemplum, neque posse Te ullis
hominum fraudibus immutari, et a iusta seueritate ad iniquam
lenitatem muneribus inflecti, aut aliquo pacto ad causam
nequitiae et improbitatis adiungi. Impietatis enim munus
aspernaris; maleficos a sede Tua longissima propellis; amentes
in oculorum adspectu consistere non sinis; qui suspiciunt
[149] actiones iniquitatis insectaris; eos qui mendacio nituntur
euertis; homines in sanguine atque caede uersatos et dolos
astute concinnantes exturbas. Horum quidem ommium facta
odio persequor et sceleris exempla perhorresco. Non igitur
illos umquam imitabor, sed aliis me praesidiis muniam. Itaque,
fide amplissimae tuae benignitatis innixus, in domum Tuam
me conferam et in templo sancto Tuo cum metu maiestatem
Tuam supplici mente uenerabor. Sic autem religioni operam
dabo ut semper Auctorem meae puritatis agnoscam.
O Domine, ne me deseras; tuere beneficium Tuum; gressus
meos ita dirige ne umquam a legis Tuae uia declinem. Si
Tu me opibus iustitiae Tuae, quam mihi clementissime
contulisti, munieris, nullo modo hostium uires aut insidias
formidabo. Tu enim mihi semper aderis, si in iustitiae
Tuae disciplina permansero. Non igitur alias munitiones
aut praesidia requiram. Hostes insidias comparent; copias
instruant; caedem et interitum machinentur; in eo neruos
omnes intendant ut me funditus euertant: omnes tamen
OPERA OMNIA TOMO IV 51

viva e apaixonadamente e com altos brados. É que na adversidade que


sobre mim pesava não pedi auxílio de outrem que não de Ti, pois não
peço, com vão empenho, ajuda a homens, nem rogo o auxílio de falsas
divindades, nem dirijo as minhas súplicas a inúteis valedores, mas só a
Ti, meu Deus e único socorro da minha vida, rogo e exoro e com justos
brados imploro a Tua proteção.
E nem sequer pode dizer-se que eu antepus alguma das atividades da
existência a este desvelo em Te orar. Com efeito, bem cedo pela manhã,
antes de me ocupar de quaisquer negócios quer públicos quer privados,
entrego-me exclusivamente a esta atividade, com todas as energias da alma
me consagro a ela, por forma a conseguir de Ti que não me prives da Tua
ajuda. Portanto, Senhor, escuta a oração com a qual cada dia, ao romper
de alva, a Ti suplicantemente me dirijo; com a qual incito o meu espírito a
pensar na Tua imensa bondade; com a qual diligentemente aparelho a alma
para eu poder com a máxima atenção contemplar a Tua grande justiça e
equidade. Ora, é isto o que revolvo no espírito a fim de com maior confiança
me aproximar do trono da Tua majestade. Com efeito, penso que Tu és o
verdadeiro Deus, exemplo o mais perfeito das eternas virtude, pureza e
honestidade, e que não Te podem mudar quaisquer enganos dos homens,
e que é impossível que quaisquer presentes te façam desviar do justo rigor
para uma injusta condescendência, ou que algum compromisso Te vincule
à causa da perversidade e da desonestidade. É que desprezas os presentes
da impiedade; lanças os culpados para muito longe da Tua morada; não
consentes que os desatinados permaneçam na Tua presença; persegues
todos os que perpetram [149] atos iníquos; destróis aqueles que se apoiam
na mentira; expulsas os homens que se entregam às sangueiras e matanças
e que astuciosamente tramam embustes. Deveras abomino as práticas de
todos estes homens e horrorizo-me diante dos seus exemplos de crime. Por
conseguinte, jamais os imitarei, mas defender-me-ei com outras ajudas. E
por isso, apoiado na confiança da Tua imensa bondade, dirigir-me-ei para
a Tua morada e com espírito suplicante e temeroso adorarei no Teu templo
a Tua majestade. Ora, de tal maneira me entregarei à religião que sempre
hei de reconhecer o Autor da minha purificação.
Ó Senhor, não me abandones; presta a Tua ajuda; encaminha de tal sorte
os meus passos que eu jamais me desvie da senda da Tua lei. Se Tu me
fortificares com os recursos da Tua justiça, que com imensa misericórdia
me ofereceste, de modo algum hei de arrecear-me da violência ou ardis dos
inimigos. É que Tu sempre hás de estar ao meu lado, se eu me mantiver
obediente aos ensinamentos da Tua justiça. Por conseguinte, não terei
necessidade de outras defensas ou ajudas. Ainda que os inimigos preparem
ciladas; aparelhem tropas; maquinem minha morte e assassínio; apliquem
todos os seus esforços em destruir-me por completo: mesmo assim hei de
52 D. JERÓNIMO OSÓRIO

eorum conatus irridebo, si uiam iustitiae Tuae, quam non


meis meritis, sed gratia Tua, consecutus sum, constanter
iniero: quod tamen praestare minime potero, nisi fuero
praesenti auxilio numinis Tui confirmatus. Ne igitur
hostes odium in me suum expromant et quod crudelissime
meditantur efficiant, propone in conspectu meo rectissimam
iustitiae uiam et uires mihi inuictas elargire, quibus fretus
nullis hostium uiribus impelli possim ut a salutis uia
deducar. Ne des eam gloriandi materiam hostibus Tuis, quam
ex ruina mea capient, si prolapsum me animaduerterint.
Magis enim hostes nominis Tui quam inimici mei censendi
sunt qui odio immani diuinis uirtutibus aduersantur: nulla
officii sanctitas, nulla religionis puritas, nulla aequitatis
mentio in ore illorum uersatur, sed improbitas summa, sed
scelus nefarium, sed flagitiorum omnium documentum.
Animi eorum sunt scelestissimorum facinorum corruptellis
inquinatissimi; eorum guttur, quasi apertum sepulcrum,
taeterrimum immanitatis odorem exhalat; et, ut ad tanta
facinora non mediocris cumulus accedat, sermonem molliunt
ut, specie benignitatis, eos quos interimere statuunt incautos
adoriantur.
Ne tantum scelus inultum esse patiaris, o Domine. Euerte
funditus eos. Conatus eorum frange! Impios de statu deturba.
Meritas de illorum improbitate poenas sume. Non enim tam in
homines iustos, quam in Te, iustitiae Parentem, se acerrimos
praebuerunt. A Te namque per summum scelus defecerunt.
Laetentur omnes qui in Te omnem spem salutis collocatam
habent; insigni gaudio cumulenrur; uoces summae uoluptatis
indices emittant; et, in Tuo patrocinio latentes, exsultent
omnes qui diligunt nomen Tuum. Tu namque iustorum animos
opibus auges; ornamentis illustras; iucunditate perfundis; nec
eos solum beneficiis exples, uerum et omnia ab eis pericula
propulsas. Gratia namque Tua illos, ut cohortis inuictae
praesidium, cingit, [150] ne possit ulla manus hostium eos,
qui praesidio tuo fulciuntur, attingere.

Domine, ne in furore Tuo arguas me.


Psal. 6

Hac quidem oratione docuit Dauid quo studio et contentione


sit ornandus Dominus, qua fide colendus et qua uirtutis
OPERA OMNIA TOMO IV 53

rir-me de todas as suas tentativas, se firmemente pisar o caminho da Tua


justiça, que alcancei não pelos meus merecimentos, mas por Tua graça: algo
que não poderei levar a termo, se não me esforçar a ajuda imediata do Teu
poder divino. Portanto, para que os inimigos não manifestem contra mim
o seu ódio nem levem a cabo o que com a máxima crueldade maquinam,
apresenta à frente dos meus olhos a retíssima senda da justiça e oferece-me
liberalmente forças invencíveis, para que nelas apoiado nenhuma violência
dos inimigos me possa impelir a desviar-me do caminho da salvação. Não
ofereças aos Teus inimigos o motivo de ufanarem-se, que retirarão da minha
ruína, se se aperceberem de que eu caí. De facto, mais devem ser tidos
na conta de inimigos do Teu nome do que meus contrários os que com
monstruosa ojeriza hostilizam as virtudes: desconhecem por completo a
santidade do dever e a pureza da religião e em suas bocas não se encontra
alguma menção da equidade, mas sim a mais cabal impiedade, o crime
sacrílego e a comprovação da toda a espécie de infâmias. As suas almas
encontram-se ensujentadas com as manchas dos crimes mais abomináveis;
as suas gargantas, como um sepulcro aberto, exalam o mais medonho
fedor de desumanidade; e, para ajuntar-se a tão grandes crimes o peso de
uma culpa nada pequena, amenizam e adoçam a linguagem a fim de, sob
uma aparência de bondade, assaltarem de improviso aqueles que estão
decididos a destruir.
Não permitas, Senhor, que tão grande crime fique sem castigo. Destrói-os
por completo. Reduz a nada os seus intentos. Derriba os ímpios das suas
posições. Dá-lhes o merecido castigo pela sua impiedade. É que não foi tanto
contra os homens justos, quanto contra Ti, que és Pai da justiça, que eles
se mostraram sumamente cruéis. Na verdade, através do maior dos crimes,
abandonaram-Te. Que se alegrem todos quantos em Ti colocam inteiramente a
esperança da salvação; que se encham de extraordinário regozijo; que soltem
brados que exprimam o mais elevado contentamento; e, salvaguardados pela
Tua proteção, que pulem de alegria todos os que amam o Teu nome. É que Tu
com riquezas aumentas as almas dos justos; com os ornamentos as enobreces;
com contentamento as inundas; e não apenas as colmas com benefícios, mas
também delas afastas todos os perigos. Com efeito, a Tua graça cinge-as
como a defesa de uma invencível coorte, [150] para que nenhuma mão dos
inimigos possa tocar naqueles que se amparam na Tua ajuda.

SALMO 6
Senhor, não me repreendas na Tua ira.

Certamente que com estas palavras David ensinou com que desvelo e
ardor o Senhor deve ser honrado, com que fé cumpre render-se-lhe culto
54 D. JERÓNIMO OSÓRIO

constantia sit in studio pietatis elaborandum. Sequens uero


oratio continet singulare animi et corporis afflicti remedium,
complectitur enim morbi grauitatem et illius depellendi
rationem. Ait igitur, in morbo quo erat oppressus, uir in omni
statu pietate praecellens:

Domine, febri uehementissime iactor et grauissimis curis


afflictus in lecto decumbo. Nec enim me tam morbus ipse
quam morbi causa discruciat, non enim is sum qui ad casum
et fortunam huius inualetudinis magnitudinem, sed ad iudicii
Tui seueritatem referendam existimem. Reliquum igitur est ut
non dubitem morbum hunc esse poenam flagitiorum mihi a Te
iustissime constitutam. Quod, si Tu me pro grauitate criminum
punire uelis, quo tandem modo seueritatis Tuae uim corpore et
animo sustinebo? Crimina enim mea, uel propter offensionem
hominum, uel propter legis Tuae sanctitatem, scelere meo
uiolatam, tantum pondus habent ad uindictae studium acriter
excitandum ut nullo modo queam supplicium, quod mihi
debetur, sine pernicie et interitu totius mei status exsoluere.
Quid igitur faciam? Spem salutis abiiciam? Oppressus scelerum
conscientia, conticescam? Sic me exanimabit peccatorum
recordatio ut Te interpellare non audeam? Minime profecto!
Video enim clementiae Tuae fontem exhauriri non posse, nec
esse Te ita ad irrogandum supplicium pro peccatis incitatum ut
non etiam in ipsa iudiciorum integritate magnas misericordiae
partes suscipias. Quare numquam sic me scelerum memoria
perturbabit ut a postulanda uenia deterreat. Non id peto ut de
me poenam minime sumas, sed ut irae Tuae modum statuas.
Te igitur oro et obsecro et, per immensae tuae clementiae
magnitudinem, supplex obtestor ut finem malis quae me
afflictant imponas.
Misericordiam mihi tribue, nam morbo grauissimo uictus,
in magno discrimine uersor. Sana me, Domine, nam morbi
uis in ossa penetrauit et uires meas oppressit. Anima
uero mea, ingenti motu perturbata, concutitur et, cum
uehementer afflicta sit, longe maiorem uim morbi in dies
ingrauescentis extimescit. Tu uero, quousque tandem me
doloribus excruciabis? Quem terminum irae Tuae praefinies?
Conuertere, Domine; indignationem Tuam comprime; manum
Tuam cohibe; animam meam libera; salutem meam constitue,
propter misericordiae Tuae sanctitatem, ut non nobis, sed
nomini Tuo gloria tribuatur.
OPERA OMNIA TOMO IV 55

e a constância na virtude que se há de empenhar no zelo pela piedade.


Com efeito, a oração que se segue contém um singular remédio para
um corpo e um espírito atribulados, porquanto abrange a gravidade da
doença e o modo de afastá-la. Portanto, em meio da doença com que
fora oprimido, diz o varão que, em toda a sorte de situações, se mostrou
o mais excelente pela piedade:
Senhor, sou fortissimamente sacudido pela febre e jazo na cama
atormentado por gravíssimos cuidados. De facto, mais me atribula a
causa da doença do que a própria doença, pois não sou de tal índole
que creia dever imputar a grandeza desta indisposição ao acaso e à
sorte, senão ao rigor do Teu julgamento. Por conseguinte, só me resta
não duvidar de que esta doença é a pena pelas minhas infâmias, por
Ti ordenada com toda a justiça. Ora, se Tu me quiseres castigar em
proporção com a gravidade dos crimes, então de que modo suportarei
com o corpo e com o espírito a violência da Tua severidade? É que os
meus crimes, quer relativamente às ofensas contra os homens, quer
face à santidade da Tua lei, violada pelo meu agravo, têm tão grande
peso para vivamente incitarem ao desejo de vingança que de forma
alguma posso pagar o castigo que a mim se deve sem que seja com
a perdição e ruína completas da minha condição. Portanto, que farei?
Renunciarei à esperança de salvação? Emudecerei, subjugado pela
consciência dos crimes? Com tamanha força me intimidará a lembrança
dos pecados que não ouse interpelar-Te? De maneira nenhuma! Pois
vejo que a fonte da Tua clemência não pode esgotar-se, nem de tal
maneira Te sentiste impelido a infligir a punição pelos pecados que
não assumas igualmente o papel principal da misericórdia na própria
imparcialidade dos julgamentos. Por isso, jamais a memória dos crimes
de tal forma me inquietará que me dissuada de pedir perdão. Não
procuro que deixes de me castigar, mas sim que imponhas comedimento
à Tua ira. Pela grandeza da Tua clemência, Te suplico, rogo e conjuro
que ponhas termo aos males que me afligem.
Concede-me misericórdia, pois, vencido por uma doença gravíssima,
encontro-me em perigo assaz grande. Cura-me, Senhor, porquanto a
força da moléstia penetrou até aos meus ossos e assenhoreou-se das
minhas energias. A minha alma, porém, agita-se, perturbada por um
movimento violentíssimo e, como foi vivamente afligida, arreceia-se
de uma acometida muito mais forte da doença, que cada dia se vai
agravando. Mas Tu, até quando me atormentarás com dores? Que termo
fixarás à Tua ira? Muda a Tua atitude, Senhor; refreia a Tua indignação;
contém a Tua mão; liberta a minha alma; aparelha a minha salvação,
atendendo à santidade da Tua misericórdia, para que a glória seja
atribuída não a nós, mas ao Teu nome.
56 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Quo enim maior est iniquitas mea, eo clarior erit in me


clementia Tua, cum uisum fuerit eam nullo modo potuisse
flagitiis meis innumerabilibus [151] impediri. Gloriae igitur
Tuae consule; nomen Tuum admirandis misericordiae
operibus illustra atque perfice, ut multi mortales, salute
mihi clementissime tributa, ad laudem Tuam perpetua
praedicatione celebrandam prouocentur, nec enim in morte
quisquam gloriae Tuae memoriam conseruat, nec sepulcrum
nomen Tuum laudibus exornat, sed Tuorum salus et uita
est quae gloriae Tuae ingentem materiam praebet decusque
Tuum praeconiis sempiternis amplificat.
Quod, si fuit necesse mihi uim in me Tuae seueritatis
experiri, id iam satis expertus sum. Nam, magnitudine
uulneris stratus atque perculsus, admodum dolenter
ingemisco et totis noctibus uim lacrimarum tanta copia
profundo ut sponda fluctibus agitari uideatur, et die lectus in
quo iaceo maeroris et fletus redundantia colliquescat. Neque
solum ex morbi magnitudine dolore conficior, uerum et ex
inimicorum laetitia maestitiam non mediocrem percipio:
laeti cursitant; erecti uolitant; spe mortis meae insolenter
efferuntur et res nouas in nominis mei perniciem animo
machinantur. Hac igitur hostium exsultatione commotus
intabesco et oculi mei in dignitate immanitatis exeduntur
adspectusque meus, ex malignitate inimicorum grauiter
offensus, inueterascit.
O summa benignitas, quibus uerbis Tibi gratias agam?
Quibus sacris nuncupata uota persoluam? Quibus officiis
animum meum tuis beneficiis exaggeratum testificabor? Sentio
namque me alleuari; sentio morbum expelli; sentio pristinam
mihi sanitatem diuiua benignitate restitui.
O perditissimi homines, qui in morbo meo furenter
insultabatis, abscedite. Abscedite, inquam, omnes qui actiones
iniquinatis et audaciae plenas suscipitis, uosque procul a
conspectu meo remouete. Ea enim de causa odium in me
nimis acerbum concepistis, quia exploratum habuistis me
impunitatem sceleribus minime concessurum, et idcirco in meo
periculo laetitiam apertissime tulistis. Nunc igitur pro laetitia,
maerore contabescite; pro spe impunitatis, contremiscite;
pro gratulatione mutua, casum uestrum lugubri querimonia
lamentamini. Spes enim illorum qui in Deo praesidia uitae
collocarunt numquam interibit; at eorum cogitationes, qui
fraude et iniuria fulciuntur, euanescent. Quod quidem in
OPERA OMNIA TOMO IV 57

Quanto maior é a minha iniquidade, tanto será mais clara em


mim a Tua clemência, quando se tornar evidente que ela de nenhum
modo pôde ser embaraçada pelas minhas inúmeras infâmias. [151]
Por isso, ocupa-Te da tua glória; dá lustre ao Teu nome mediante as
admiráveis obras da misericórdia e faze que muitos mortais, olhando
para a salvação que me foi concedida com a máxima clemência, sejam
incitados a celebrar com pregão perpétuo o Teu louvor, pois não é na
morte que alguém conserva a memória da Tua glória, nem a sepultura
ilustra o Teu nome com encómios, mas a saúde e vida dos Teus são
quem oferece imensa matéria à Tua glória e engrandece a Tua honra
com elogios sempiternos.
Ora, se foi necessário que sobre mim se exercesse a força do Teu
rigor, então já o experimentei de sobejo. Com efeito, abatido e abalado
pela grandeza da ferida, gemo cheio de dores e todas as noites derramo
lágrimas em tanta abundância que parece que a cama é agitada por vagas
e, durante o dia, o leito em que permaneço deitado desfaz-se devido
ao excesso de lágrimas e pranto. E não sou só oprimido pela dor que
resulta da gravidade da doença, mas também me ocasiona tristeza não
diminuta a alegria dos inimigos: correm contentes; agitam-se, cheios de
arrogância; ensoberbecem-se insolentemente com a esperança da minha
morte; maquinam em seus espíritos novas ações em detrimento do meu
bom nome. Portanto, definho abalado por este contentamento dos inimigos
e os meus olhos são consumidos pelas afrontas da desumanidade e o
meu aspeto envelheceu, depois de ter sido gravemente ofendido pela
perversidade dos inimigos.
Ó suma benignidade, com que palavras Te darei graças? Com que
cerimónias santas cumprirei por inteiro os votos que fiz? Por meio de que
serviços darei testemunho do meu espírito, cumulado com os Teus benefícios?
Na verdade, sinto que sou consolado; sinto que a doença se foi embora; sinto
que, graças à divina benignidade, me é restituída a minha saúde original.
Afastai-vos, ó homens desvairados, que ensanhadamente me insultáveis
durante a minha enfermidade. Afastai-vos, repito, todos quantos praticais
ações cheias de iniquidade e atrevimento; apartai-vos para longe da
minha presença. Pois concebestes um ódio violentíssimo contra mim
porque tivestes a certeza de que eu não haveria de admitir a impunidade
para os crimes e, por isso, mostrastes, de uma forma descarada, alegria
com o meu perigo. Assim, agora, em vez de contentamento, consumi-
vos de tristeza; em vez da esperança de impunidade, começai a tremer;
em vez das recíprocas felicitações, lamentai a vossa ruína com lúgubres
lamentações. É que nunca se extinguirá a esperança daqueles que puseram
em Deus as guardas da vida; desvanecer-se-ão, porém, os projetos dos
que se apoiam no engano e na injustiça. Isto foi sem dúvida o que se viu
58 D. JERÓNIMO OSÓRIO

me clarissime perspectum fuit, Dominus enim exaudiuit


orationem meam, Dominus preces et uota mea suscepit.
Ignominia notabuntur et dedecore insigni maculabuntur
omnes inimici mei; terga uertent et uehementer erubescent
cum, repentina calamitate perturbati, sero perspicient nullam
sibi opem calliditates et iniurias in perditis rebus attulisse.
Vt enim piis hominibus, qui fide uiua corroborati fiducia
caelestis numinis innituntur, est immortalis uita cum summa
dignitate proposita, ita et improbis qui, diuinae legis obliti,
se ad iniquitatem referunt, est interitus sempiterni supplicium
cum ignominia sempiterna constitutum.
[152]

Domine Deus meus, in Te speraui.


Psal. 7

Carmen quod continuo sequitur fuit a Dauide elaboratum cum


esset odio immani a Saule, quem in carminis huius titulo Chus
appellat, oppugnatus. Sed, cur hoc nomine Saulem appellarit,
operae pretium erit animaduertere. Chus fuit filius Cham et
pater Nemrhot. A patre igitur exemplum impudentiae et ingrati
animi documentum assumere potuit, ad filium uero dominandi
libidinem nefario instituto transmittere. Cham enim patris
sanctissimi nomen dedecore maculare instituit, cum nudum irrisit;
cum fratres, ut patrem nudum cernerent, euocauit; cum, debitae
pietatis oblitus, pro delectamento habuit ebrietati incognitae
optimi parentis illudere. Nemrhot uero primus omnium mortalium
tyrannidem occupauit propriamque dominationem humanitati et
iuris aequabilitati longe praeposuit. At utrumque crimen inhaesit
in Saule, fuit enim ingratus in Dauidem, a quo, tamquam a
parente, uitam acceperat, hominemque sanctum indignissima
contumelia notauit, cum illum, ut proditorem, ad scelestissimorum
hominum poenam poposcit. Praeterea tyrannum immanem se
praebuit cum imperium suum multorum innocentium sanguine
sancire constituit. Deinde Chus fuit imprecationi illi obnoxius
qua Noe Cham posteris maledicit: nempe, ut illius suboles
ad seruitutem nasceretur. At Saul, eo tempore quo Dauidem
persequebatur, seruiebat inuidiae, seruiebat iracundiæ, seruiebat
odio, seruiebat immanitati. Postremo, cum Aethiopes a Chus
originem duxerint, factum est ut uniuersum genus Aethiopum
a Chus nomen assumeret. Aethiopes uero atro colore, qui
OPERA OMNIA TOMO IV 59

em mim de forma manifesta, pois o Senhor escutou a minha oração, o


Senhor atendeu às minhas preces e votos. Todos os meus inimigos serão
manchados pela ignomínia e desonrados por notória infâmia; fugirão e
sentir-se-ão profundamente envergonhados quando, perturbados por uma
repentina calamidade, demasiado tarde se derem conta de que as manhas
e as injustiças nas ações perversas não lhes trouxeram nenhuma ajuda.
É que, assim como a vida eterna com a máxima dignidade foi oferecida
aos homens piedosos que, fortificados pela fé em Deus, se apoiam na
confiança no poder celeste, assim também foi estabelecido o castigo
da morte sempiterna com ignomínia perpétua para os perversos que,
esquecidos da lei divina, se entregam à iniquidade.
[152]

SALMO 7
Senhor Deus meu, em Ti esperei.

O salmo que se segue foi escrito por David ao ser hostilizado pela
desumana sanha de Saul, a quem no cabeçalho deste salmo chama
Cuche. Mas merecerá a pena conhecer a razão pela qual Saul foi
designado por este nome. Cuche foi filho de Cam e pai de Nemrod.
Pôde portanto tomar do pai exemplos de impudência e ingratidão,
e com seu ímpio procedimento transmitir ao filho o desmedido
apetite de mando. É que Cam decidiu cobrir de desdouro o nome do
santíssimo pai, ao rir-se da sua nudez; ao chamar os irmãos, para
que olhassem para o pai nu; ao, esquecido do devido respeito filial,
tomar como diversão zombar da embriaguez, até então desconhecida,
do excelente pai. E Nemrod foi o primeiro de todos os mortais a
praticar a tirania e antepôs o seu poder pessoal aos sentimentos de
humanidade e à equidade do direito. Mas em Saul manifestaram-se
estes dois crimes, porquanto se mostrou ingrato para com David, de
quem, como de um pai, recebera a vida, e com indigníssimo baldão
desonrou o mais santo dos homens, quando o condenou como
traidor às penas reservadas aos homens mais criminosos. Além disso,
mostrou-se como um cruel tirano, ao decidir ratificar o seu poder
com o sangue de muitos inocentes. Em segundo lugar, Cuche ficou
sujeito à praga que Noé rogou à descendência de Cam: a saber, que a
sua linhagem fosse destinada à escravidão. E Saul, de facto, naquela
época em que perseguia David, estava escravizado ao ódio, era servo
da sanha e da ferocidade. Finalmente, uma vez que os negros têm
a sua origem em Cuche, sucedeu que toda a raça negra tomou o
nome de Cuche. E os negros foram marcados com a cor preta, que é
60 D. JERÓNIMO OSÓRIO

elui nullo modo potest, inusti sunt. Vt igitur animi simplicitas


et puritas et facilitas “candoris” nomine designari solet, ita
consentaneum est ut quidquid fuerit infuscatum maleuolentia,
imbutum odio et nimis in improbitate perseuerans, “atri” et
“adusti” nomine declaretur. Quo igitur tempore Saul, ab infesto
daemone exagitatus, innocentis sanguinem petebat et in ea
crudelitate adeo contumaciter insistebat ut ab ea abduci non
posset, Aethiops appellari merito poterat. Hoc tamen in loco
Dauid in uniuerso genere uersatur, neque tantum in Saulem,
sed in ipsam tyrannidem et mores scelestos inuehitur, atque
iustorum fructum, qui cum pietate et simplicitate uiuunt,
luculenter exponit, in hanc sententiam:

Domine, numquam, meis cogitationibus innixus, ad aliquod


uitae decus adspiraui; numquam me uel naturae praestantia,
uel hominum gratia, uel regiae opes extulerunt. In Te solo
spem omnium rerum mearum fixi et locaui; ab huius fidei
constantia numquam declinaui; in eademque semper mente et
sententia permanebo. A Te igitur maximo opere contendo ut
huius fidei meae fructum, opera tuae benignitatis [153] insigni,
percipiam. Accelera ut mihi salutem conferas animamque
meam ab eorum crudelitate, qui me persequuntur, eripias. Si
enim Tu auxilium non attuleris, hostis, tamquam leo, in me
furenter irruet; corpus meum corripiet et dilacerabit, nemoque
poterit uitam meam ex illius faucibus extorquere. Sed,
quaenam causa tanti odii exstiterit, excogitare non possum.
Inquit tamen ille, me, regnandi cupiditate caecum, suae uitae
insidias moliri, hominesque ad me, specie humanitatis, allicere
ut, eorum opibus instructus, facile queam illum exturbare
omnibusque bonis euertere. Itaque, cum aliquod opus clarum
pro illius dignitate et rei publicae salute suscipio, id in
pessimam partem rapit ut, quod uirtute et caritate gestum
est, perfidia et scelere factum interpretetur.
Domine, cui nihil abstrusum et abditum est, Te obtestor ut,
si quid hostiliter in illum gessi, si in me scelestum aliquod
facinus admisi, si in domesticos et necessarios meos malum
aliquod machinatus sum, si non illis etiam qui animis infestis
de mea pernicie cogitabant, non me benignum praebui
et, immemor iniuriarum, non illos ipsos, qui erant in me
taeterrimi, a peste seduxi: hostis in me copias instruat; me
uestigiis insequatur; me fugientem corripiat; sanguinem
meum exsorbeat; uitam meam exhauriat; gloriam meam
OPERA OMNIA TOMO IV 61

impossível limpar-se. Por conseguinte, assim como através do nome


“branco” é costume designar-se a singeleza e pureza, da mesma
forma é natural dar-se a conhecer com o nome de “negro” e “fosco”
tudo o que é enfarruscado pela malevolência, embebido pelo ódio
e assaz obstinado na perversidade. Portanto, Saul, nesta época, em
que, possesso por um maligno demónio, desejava derramar o sangue
de um inocente e a tal ponto se obstinava nesta crueldade que era
impossível dela desviá-lo, com razão poderia ser designada como
“negro”. David, todavia, neste passo fala de modo geral, e arremete não
só contra Saul, mas contra a própria tirania e os costumes perversos,
e, neste sentido, expõe perfeitamente o fruto dos justos que vivem
com piedade e singeleza, dizendo:

Senhor, nunca, apoiando-me nos meus pensamentos, tive aspiração a


qualquer honraria na vida; nunca a superioridade dos meus dons naturais
ou a graça dos homens ou os tesoiros de rei me ensoberbeceram. Fixei
e coloquei unicamente em Ti a esperança de todos os meus interesses;
nunca me apartei da firmeza nesta esperança; e nesta determinação
e opinião sempre hei de perseverar. Por conseguinte, com a máxima
insistência te peço que, por obra extraordinária da Tua bondade, eu
receba o fruto desta fé. [153] Dá-Te pressa em conceder-me a salvação e
arrancar a minha alma da crueldade daqueles que me perseguem. É que,
se não me deres a Tua ajuda, o inimigo, acometer-me-á sanhudamente
como um leão; arrebatará o meu corpo e dilacerar-me-á, e ninguém
conseguirá arrancar a minha vida às suas fauces. Mas não sou capaz de
imaginar qual a causa de tão grande ódio. Ele todavia diz que eu, cego
pelo desejo de reinar, urdo ciladas contra a sua vida e, com aparências
de afabilidade, atraio os homens por forma a, provido com os seus
recursos, facilmente lograr destruí-lo e esbulhá-lo de todos os bens.
E por isso, quando empreendo alguma obra ilustre e em prol da sua
honra e da pátria, toma-o à má parte, de tal maneira que, aquilo que
foi levado a cabo com amor e virtude, é interpretado como tendo sido
feito com má fé e intento perverso.
Senhor, a quem nada se oculta e esconde, suplico-Te que, se eu contra
ele agi em algo com animadversão, se dei no meu íntimo aquiescência
a algum ato criminoso, se maquinei algum mal contra os meus amigos
e íntimos, se não me mostrei benevolente até contra aqueles que com
sentimentos hostis pensavam na minha perdição e, deslembrado das
ofensas, não livrei da destruição aqueles mesmos que vivissimamente
me odiavam: que o inimigo apreste contra mim as suas tropas; que me
persiga; que de mim se aposse ao tempo que me entrego à fuga; que
trague o meu sangue; que me acabe com a vida; que conspurque deveras
62 D. JERÓNIMO OSÓRIO

foede contaminet pedibusque immanissime proculcet. O rem


sceleris exemplo detestabilem, iniuriae grauitate nefariam,
immanitatis odio pestilentem! Eo ne ferri hominem inuidia
praecipitem ut illum uita et dignitate spoliare conetur, cuius
opera uitam et dignitatem retinet, eumque salute prorsus
indignum iudicet per quem ciues innumerabiles salutem
consecuti sunt? Tam grauis iniuria ius diuinum postulat;
tam immane facinus uindictam flagitat; tam nefarium crimen
supplicium requirit.
Exsurge, Domine, uim Tuae seueritatis excita; frange
conatus hostium; debitamque poenam iudicio Tuo sustineant.
Sic autem nomen Tuum in sublime tolles insignique laude
sanctissimi iuris illustrabis. Hostium meorum furorem
comprime et iudicium cum aequitate summa constitue. Non
recuso quominus de me, secundum legem quam tulisti,
sententiam feras. Si enim fraudem capitalem suscepi, si
ius affinitatis uiolaui, si denique facinus aliquod morte
dignum conflaui, cum Tu graues poenas malitiae, impietati,
improbitati, constitutas habeas, hoc peto, ut secundum eas
leges debitis poenis excrucier. Aliter autem iram Tuam in
sontes conuerte et me crimine, quod mihi fraudulenter
intendunt, iudicio Tuo libera, fidemque praesta quam
dedisti, atque perfice ut regia dignitate, quam mihi
promisisti, praesidio Tuo egregie constituta, innocentia
mea comprobetur. Hoc quidem, non tam propter honorem
meum, quam propter gloriam Tui nominis, exopto. Video
enim fore ut, hoc iudicio in oculis omnium constituto, multi
mortales iudicia Tua pertimescant, sanctitatem diuini iuris
admirentur, multitudo populorum ad Te undique confluat,
Tibi seruiat, Te laudibus sempiternis extollat. Sic demum fiet
ut numen Tuum, quod multis ignotum et obliuioni traditum
[154] esse uidebatur, rursus hominum fide in excelsa sede
locatum, religione debita celebretur et pietas, propemodum
exstincta, reuiuiscat.
O mortales, quae uos tenet amentia ut opinemini propter
poenae dilationem iustissimum Dominum in hominum
sceleribus conuiuere aut, munere delenitum, crimina impuris
hominibus condonare, aut, alicuius gratia, a flagitiis acerrime
puniendis abduci? Num sanctissimus iudex iniustitiae scelus
impunitum sustinebit? Aut iustissimus Dominus muneribus
corrumpi poterit? Aut Dominus omnipotens ficta specie
dignitatis et humanae potentiae commouebitur? Longe uos
OPERA OMNIA TOMO IV 63

a minha honra; e sem dó nem piedade me pise com os seus pés. Ó ação
abominável pelo exemplo de crime, sacrílega pela gravidade da injustiça,
pestilencial pela odiosidade da crueza. Pode o homem arrebatado pela
inveja ser por ela a tal ponto arrastado que se empenhe em despojar da
vida e da dignidade aquele graças ao qual obtém vida e dignidade, e
considere como totalmente indigna de salvar-se a pessoa mediante a qual
inúmeros cidadãos alcançaram a salvação? Uma injustiça tão grande está
a reclamar a justiça divina; um atentado tão monstruoso requer vingança;
um crime tão sacrílego exige punição.
Levanta-Te, Senhor, e desperta o vigor da Tua severidade; quebranta
os intentos dos inimigos e que sofram a pena a que Teu juízo os
condena. Ora, assim erguerás bem alto o Teu nome e o enobrecerás
com o extraordinário louvor da Tua justiça. Contém a sanha dos meus
inimigos e ordena o juízo com a mais elevada equidade. Não me nego
a aceitar a sentença que acerca de mim pronuncies de acordo com a lei
que promulgaste. É que, se incorri em embustes de grande gravidade, se
violei os direitos do parentesco, se, finalmente, perpetrei algum crime
que implica pena de morte, uma vez que estabeleceste penas pesadas
para a malícia, para a impiedade e para a desonestidade, peço ser
devidamente punido em conformidade com estas leis. Ora, se as coisas
assim não acontecem, volve contra os culpados a Tua ira e iliba-me da
acusação que falsamente movem contra mim, e cumpre a palavra que
me deste, e faz que a minha inocência fique confirmada através da
dignidade régia, que me prometeste, estabelecida com a Tua singular
ajuda. É isto que Te rogo, não tanto por amor da minha honra, mas
por amor da glória do Teu nome. É que vejo que, depois de este juízo
se patentear diante dos olhos de todos, muitos mortais hão de temer
os Teus juízos, e maravilhar-se com a santidade da justiça divina, e a
multidão dos povos de todas as partes para Ti há de acorrer, e pôr-
se ao Teu serviço e exaltar-Te com louvores imorredouros. Destarte o
Teu poder divino, que semelhava ignorado por muitos e entregue ao
esquecimento, [154] restituído de novo pela fé dos homens a seu elevado
lugar, há de ser celebrado com o devido acatamento, e a piedade, que
estava quase extinta, há de reviver.
Ó mortais, que loucura vos senhoreia, que vos leva a pensar, diante
do adiamento do castigo, que o justíssimo Senhor condescende com os
crimes dos homens, ou que, amansado com dádivas, perdoa os pecados
dos homens impuros, ou que, para favorecer alguém, se aparta de
castigar pesadamente as torpezas? Acaso o mais santo dos juízes deixará
por punir o atentado contra a justiça? Ou o mais justo dos senhores
poderá ser corrompido com presentes? Ou Deus omnipotente se há de
impressionar com a falsa aparência da dignidade e do poder humano?
64 D. JERÓNIMO OSÓRIO

fallit opinio, iudicabit enim de populis uniuersis Dominus


rectissimumque iudicium de uniuscuiusque mente, officio et
actione constituet.
Quamuis autem iudicia Tua omnibus ualde pertimescenda
sint, in hoc tamen crimine, quo ab aduersariis condemnor,
conscientiae testimonio fretus ad iudicium Tuum confidenter
accedo; et Te, quantum possum, oro et obsecro ut Tu iudex
sis et mihi testimonium innocentiae et pietatis, sententia
Tua, tribuas. Coerce malitiam et improbitatem, ne serpat
ad publicae salutis perniciem; iusti gressus in sempiternae
gloriae uiam dirige, iustissime Domine, qui intimos animorum
recessus exploras et omnes sensus, qui latent intrinsecus,
perspectos et cognitos habes, ita ut non sit quod possit
iudiciorum Tuorum integritatem fraudibus eludere. Haec
me fides corroborat; haec cogitatio me sollicitudine liberat;
conscientiae testimonio sustentor et inimicorum meorum
insidias pro nihilo puto. Defensor enim meus Dominus est, qui
saluos facit omnes qui pura et simplici mente uitam instituunt,
nec ullas fraudes animo machinantur. Deus enim secundum
eos qui iustitiam colunt iudicat; in eos uero qui, malitia et
calliditate nixi, iustis interitum parant et ius diuinum nefarie
uiolant, iracundia insigni perpetuo commouetur, usque eo
dum in exitium praecipites exturbet.
Si igitur impius Deum uitae couersione non placauerit,
ipse Dominus gladium seueritatis exacuet; arcum Suum
apparabit illumque mortiferis telis instruet et sagitis ignitis
armabit, ut hominem odio flagrantem dirissimo leto conficiat,
et meritissime, qui tantum facinus admisit, uindictae diuinae
uim in se experiatur. Ab iniquitate enim constupratus,
concepit sollicitudinem et peperit mendacium. Primum
enim statuit, contra ius et fas, innocentem perdere; deinde
animum in uarias partes uersat et consiliis mentem instruere
conatur, ut effectum uideat quod furenter appetit; tum, his
curis anxius, assidue torquetur; postremo, ut sceleratum
consilium exitum habeat, nullum tamen fructum ex eo nefarius
et pestilens homo percipiet. Nam, pro gaudio quod sibi
proponebat, maerorem inueniet; pro securitate, formidinem;
pro tranquillitate, perturbationem; pro dignitate, dedecus et
ignominiam. Quemadmodum igitur uanitatis sementem fecit,
ita mendacii fruges inanissimas metet, et, inanissima spe
delusus, interibit. Foueam excidit et in summam altitudinem
defodit, et in ipsam foueam, quam fecit, prolapsus est. Sibi
OPERA OMNIA TOMO IV 65

Estais muitíssimo enganados, porquanto o Senhor há de julgar todos


os povos e fará um julgamento retíssimo dos pensamentos, cargos e
atos de cada um.
Por outro lado, embora todos devam sobremaneira temer os Teus juízos,
todavia, neste crime pelo qual sou condenado pelos meus adversários,
é com confiança que, apoiado no testemunho da minha consciência, me
apresento diante do Teu tribunal; e a Ti, na medida do que posso, peço-Te
e rogo-Te que sejas juiz e, com a Tua sentença, ofereças o testemunho da
minha inocência e piedade. Põe termo à malícia e perversidade, para que
não se insinuem ocasionando a perdição da salvação geral; encaminha
os passos do justo pela senda da glória eterna, ó justíssimo Senhor, que
esquadrinhas as profundezas das almas e conheces e penetras todos os
segredos que se ocultam no íntimo, de tal maneira que não há nada que
mediante enganos consiga esquivar-se à inteireza dos Teus juízos. Esta
fé me dá forças; este pensamento me liberta de cuidados; o testemunho
da minha consciência me sustém e tenho na conta de cousa nenhuma os
ardis dos meus inimigos. É que o Senhor é quem me defende, quem dá a
salvação a todos os que têm um espírito puro e singelo a orientar as suas
vidas, e no seu íntimo não maquinam enganos. Na verdade, Deus julga a
favor daqueles que respeitam a justiça; mas, contra aqueles que, apoiados
na maldade e na astúcia, preparam a morte dos justos e sacrilegamente
transgridem a lei divina, com espantosa ira incessantemente se indigna,
até os destruir e precipitar na ruína.
Por conseguinte, se o ímpio não aplacar Deus mediante a transformação
da sua vida, o próprio Deus afiará a espada da severidade; aparelhará o Seu
arco e o proverá com flechas mortais e armará com setas inflamadas, a fim
de com morte mui terrível abater o homem que se abrasa em ódio, e para
que com toda a justiça experimente em si a violência do desforço de Deus
aquele que praticou tão grande atentado. É que, violado pela iniquidade,
concebeu a inquietação e pariu a mentira. De facto, em primeiro lugar, decide,
atentando contra o que é justo e certo, destruir o inocente; depois, volta o
seu espírito em diferentes direções e empenha-se em congeminar desígnios
que lhe permitam ver levado a cabo o que o seu desvario vivamente deseja;
então, ansioso com esta ideia fixa, sente-se incessantemente atormentado;
por derradeiro, ainda que o perverso desígnio alcance sucesso, mesmo assim
o homem sacrílego e ruim dele não colherá fruto algum. É que, em vez do
contentamento que a si mesmo se prometia, encontrará o pesar; em vez
da segurança, o temor; em vez da tranquilidade, a inquietação; em vez da
dignidade, o desdouro e a ignomínia. Por conseguinte, da mesma maneira
que fez a sementeira da vaidade, assim a sua colheita será dos ocos frutos
da mentira, e há de perecer, iludido pela mais infundada das esperanças.
Escavou uma cova e aprofundou-a o mais que pôde, e caiu na própria cova
66 D. JERÓNIMO OSÓRIO

enim exitium molitur qui periculum aliis ruinae fraudulenter


[155] intendit et, consilio quo innocentes opprimere conatur,
in calamitatem praeceps impellitur.
Ita igitur eueniat hosti salutis et dignitatis meae ut omne
malum, quod mihi inferre nitebatur, in caput illius recidat, in
uerticemque illius uis importunae truculentiae, qua in meam
uitam irruebat, deuoluatur. Sic igitur Domini iustitiam atque
sanctissimum iudicium laudibus efferam nomenque Illius,
qui caelum imperio infinito complectitur, carmine perpetuo
celebrabo.

Domine Dominus noster, quam admirabile.


Psal. 8

Hoc quidem carmine Dauid celebrat opera diuina, et ea


quae in naturae fabrica summus rerum Opifex architectatus
est, et ea quae in instaurando hominis statu clementia
admirabili confecit atque perpoliuit. Ait igitur:

O praecellentissimum Domini nostri nomen, quam


illustris et ampla uis est nominis Tui in uniuersa terra!
Nam laus Tua, in caelos mirabiliter elata, admirandis signis
amplitudinem Tuae uirtutis et immensitatem diuinitatis
ostendit. Nam, si florum odores, si fructuum suauitatem, si
frugum ubertatem, si ratam temporum uarietatem, si dierum
et noctium uicissitudinem, si ordinem et conuenientiam qua
mundi partes inter se singulari moderatione consentiunt,
attente conspicimus, Tuae potentiae uim et sapientiae
rationem et probitatis magnificentiam considerantes,
obstupescimus: neque minimam quidem partem eorum
quae, ut genus humanum a Te formatum locupletares,
effecisti, explicare dicendo possumus. Quid illud, quantum
est, quod infantibus eloquentiam admirandam, pueris
lactentibus robur inuictum praebuisti, quo uirtus Tua
insignis ad gloriam sempiternam clarius emineret? In hoc
enim uis Tua se mirabiliter ostendit cum opera humilitatis
superbiam, infantiae dicendi artificium imbecillitatis
potentiam exscindis, atque ita perficis ut hostem generis
humani, dolore sui casus immanem et uindictae cupiditate
ferocem, impeditum teneas ne possit rebus humanis
uastitatem inferre. Nam, quo minores uires sunt eorum
OPERA OMNIA TOMO IV 67

que fez. É que provoca a sua própria ruína quem com enganos procura a
ruína dos outros [155] e vê-se precipitado na desgraça por obra daquela
traça mediante a qual se empenhava em oprimir os inocentes.
Por conseguinte, que ao inimigo da minha prosperidade e dignidade
lhe suceda que todo o mal que se esforçava por ocasionar-me lhe caia
sobre a cabeça e que tombe sobre a moleira desta a força da cruel
violência com que arremetia contra a minha existência. Portanto, deste
modo encarecerei com louvores a justiça e o santíssimo juízo do Senhor
e com cântico perpétuo hei de celebrar o nome d' Aquele que com Seu
poder infinito abarca o céu.

SALMO 8
Senhor, nosso dominador soberano, quão admirável [é o Teu nome].

Neste salmo David celebra as obras divinas, e as que o supremo Criador


das coisas inventou na fabricação da natureza, e as que, com admirável
clemência, aprimorou e concluiu ao estabelecer as condições de vida do
homem. Por conseguinte, diz:

Oh mui excelente nome do nosso Senhor, como é ilustre e vasta a


eficácia do Teu nome em toda a Terra! É que a Tua glória, espantosamente
exalçada pelos céus, dá a conhecer com admiráveis mostras a grandeza
da Tua virtude e a imensidão da Tua divindade. De facto, se olhamos
atentamente para os perfumes das flores, para a doçura dos frutos, para
a abundância das produções da terra, para a invariável variedade das
estações, para o alternar dos dias e das noutes, para a ordem e acordo
com que as partes do mundo com extraordinário equilíbrio se harmonizam
entre si, ficamos varados pelo pasmo ao ponderar a força do Teu poder,
a essência da Tua sabedoria e a grandeza imensa da Tua bondade: e nem
sequer nos é possível expor mediante palavras a mínima porção daquilo
que fizeste a fim de enriqueceres o género humano, por Ti criado. Que
dizer do extraordinário feito de teres concedido admirável eloquência às
crianças recém-nascidas e aos meninos de mama uma força invencível,
para que assim mais brilhantemente se revelasse quão insigne é Tua
virtude para alcançar a sempiterna glória? Com efeito, a Tua potência
dá-se espantosamente a conhecer quando destróis a soberba através da
humildade, a linguagem artificiosa mediante os que ainda não falam e o
poder por obra da fraqueza, e destarte consegues impedir que o inimigo
do género humano, impiedoso devido ao desgosto pela sua queda e
feroz devido ao grande desejo de desforço, consiga ocasionar a ruína da
humanidade. Com efeito, quanto menores são as forças dos que escolheste
68 D. JERÓNIMO OSÓRIO

quos ad hoc bellum strenue profligandum delegisti et quo


maior est uis illius qui tenebris et caligini praesidet, eo
uictoria quam Tui de hoste taeterrimo consequuntur est
ampliori praeconio celebranda.
Sed quomodo fieri potest ut tantum possit imbecillitas ut
inferorum manium potentiam et exercitum, antea semper
inuictum, facillime fundat? Quia homo, natura pauper et
imbecillis, cum fide uiua mentem suam excitat ut caelum
suspiciat caelique Dominum ueneretur, uires inuictas diuina
benignitate consequitur quibus admiranda facinora moliatur.
Hac igitur fiducia erectus in caelum, quod manibus Tuis
singulari opere factum suspicio, opera digitis Tuis mirabiliter
expolita contemplor; lunam et astra, quae singulari modo,
lege et ordine praeparasti, considero; [156] et hac cogitatione
uehementer incensus, opem Tuam fidenter efflagito, qua firme
munitus nullas hostium opes extimescam. Cum uero opera
Tua sint ualde admiranda, tum illud est magna consideratione
dignissimum quod omnia quae cernimus a Te designata,
perfecta et constituta, intellegimus hominum causa condita
fuisse. Terra namque nobis fruges et pabula subministrat;
mare nostris usibus seruit; caelum nobis lucem diffundit;
uimque suam in terram expandit ut nulla sit utilitas quam
non ex illa capiamus.
O Domine, quid est homo ut tantam illius curam cum tam
insigni benignitate suscipias? Estne aliquid in uita fragilius,
ex pluribus calamitatibus atque ruinis expositum? Et tamen
illius memoriam assidue conseruas; et tamen illum spiritu
Tuo frequenter inuisis, ut ad similitudinem Tuae claritatis
et gloriae perducas. Eoque illius statum prouexisti ut prope
ad caelestium dignitatem accederet, gloria et honore illum
decorasti, et opera manuum Tuarum sub illius imperium
subiunxisti, omnia sub pedibus illius posuisti ut cuncta
dominatu teneret. Pecudum greges et armenta et omnes denique
ferae sub illius potestate sunt; et uolucres etiam, quae libero
caelo fruuntur, non tantum pennarum effugio ualent ut illius
uim et rationem possint efugere. Animantia etiam, quae sub
aquis latent et in maris profunditate uitam degunt, hominum
utilitati seruire compelluntur. Hominis enim artificium adeo
late patet ut in superam regionem euehatur, terrarum uiscera
peruagetur et maris etiam gurgites peruestiget. Nihil est enim
in tota rerum natura quod imperium rationis effugiat. Sed
haec humanae dignitatis praestantia parua ducenda est si
OPERA OMNIA TOMO IV 69

para denodadamente levar a cabo esta guerra e quanto maior é a força


daquele que preside às trevas e escuridão, tanto com mais alevantado
pregão deve ser celebrada a vitória que os Teus alcançam sobre o mais
medonho dos inimigos.
Mas como pode acontecer que a fraqueza possa tanto que mui facilmente
desbarata o poder e as hostes dos seres infernais, anteriormente sempre
invencível? É porque o homem, indigente e fraco por natureza, ao incitar
com uma fé viva o seu espírito a olhar para o Céu e a reverenciar o
Senhor do Céu, alcança por bondade divina forças divinas para com
elas empreender cometimentos admiráveis. Por consequência, com esta
confiança voltando-me para o Céu, que vejo feito com singular perfeição
pelas Tuas mãos, contemplo as obras maravilhosamente aperfeiçoadas
pelos Teus dedos; admiro a lua e os astros que dispuseste com singular
ordem, harmonia e concerto; [156] e vivamente entusiasmado com este
pensamento, confiadamente rogo a Tua ajuda, com cuja firme assistência
não hei de sentir receio de poder algum dos inimigos. E ainda que todas
as Tuas obras sejam sobremaneira admiráveis, todavia é merecedor
sobretudo da mais alta ponderação o facto de que, tudo que vemos que
concebeste, concluíste e dispuseste, tudo isso estamos cientes de que foi
criado por causa dos homens. Com efeito, a terra ministra-nos os frutos
e alimentos; o mar está ao serviço das nossas necessidades; o céu sobre
nós derrama a sua luz; e a terra desdobra o seu potencial de maneira a
que não haja nada de proveitoso que dela não colhamos.
Ó Senhor, que é o homem para que com tamanha bondade te ocupes
em dele cuidar? Porventura existe algum ser vivo mais fraco, exposto
a mais desgraças e ruínas? E mesmo assim incessantemente Te lembras
dele; e mesmo assim amiúde o visitas com o Teu espírito, a fim de o
conduzires à semelhança da Tua altura e glória. E de tal maneira elevaste
a sua condição que o fizeste chegar muito perto da dignidade dos seres
celestiais, e ataviaste-o com honra e glória, e colocaste as obras das
Tuas mãos sob o governo dele, e tudo puseste debaixo dos pés dele, a
fim de que detivesse o mando sobre todas as coisas. Sob o seu poder se
encontram todas as manadas e rebanhos e, numa palavra, todos os animais
selvagens; e até as aves, que livremente gozam dos céus, não têm tão
forte escapatória nas plumas que lhes seja possível escapulirem-se ao seu
poder e manhas. Também os animais, que se ocultam debaixo das águas
e cuja vida decorre nas profundezas do mar, são obrigados a estarem
ao serviço da humana utilidade. Com efeito, a tal ponto o engenho dos
homens é ilimitado que se ergue até às regiões mais elevadas, penetra
nas entranhas da terra e até explora os abismos do mar. Na verdade,
na natureza inteira nada existe que escape ao poder da razão. Mas esta
superioridade da dignidade humana deve ter-se na conta de coisa de
70 D. JERÓNIMO OSÓRIO

cum alia infinitis partibus ampliore, quam mente prospicio,


conferantur. Hominem namque, Christum inquam, secundum
humanae naturae rationem angelis inferiorem, secundum uero
uirtutis et dignitatis excellentiam angelorum principem et totius
caelestis exercitus imperatorem, in excelsa sede collocasti, ut
omnia quae super subterque sunt summo imperio contineret.
Huic marini fluctus obtemperant; huic terrae uniuersae parent;
huic caelestes orbes obsequuntur; et eius denique consilio,
numine, potestate, moderatione, natura uniuersa continetur.
Quibus uerbis tantum beneficium explicari poterit? Summum
Dominum, ut seruorum abiectissimam condicionem erigeret,
ad similitudinem Suae claritatis auocaret, naturam humanam
assumpsisse, quam in altissima sede reponeret, ut illius meritis
atque uirtute multos homines magnitudine diuinae uirtutis atque
decoris illustraret! O praecellentissima Domini nostri maiestas,
quam illustris et ampla uis est nominis Tui in uniuersa terra!
[157]

Confitebor Tibi, Domine,in toto corde meo.


Psal. 9

Carmen hoc celebrat nomen Domini, cuius potentia fuit a


Dauide bellum contra hostem acerrimum et immanem, cum ipsius
hostis caede et cum multorum exitio, profligatum. Hunc autem
hostem Dauid Laben appellat. Quis autem Laben iste fuerit,
incertum est. Hoc tamen apparet hostem fuisse opibus summis
affluentem, uictoriis elatum et confidentem, igne ferroque multis
populis furibunde minitantem, qui iam non paucis ciuitatibus
exitium et uastitatem intulerat. Assyrius fortasse fuit aut alius
non minus potens, qui armis infestissimis in Iudaeam ferebatur,
cum in acie Dauidis armis oppressus occubuit. Dauid igitur, ob
eam uictoriam, in Dei laudem carmen hoc, amplo admodum et
illustri orationis genere. composuit. Inquit igitur:

Tota mente mea Deum laudabo et admiranda opera


Tua, summe Domine, recensebo. Gratia et benignitate Tua
nixus, laetabor et exsultabo, et nomen Tuum, qui sedem
sempiternam in caeli summo fastigio locasti, carminibus
et symphonia prosequar, neque de laudibus Tuis ullo
tempore conticescam. Nec enim mihi uires assumam, nec
ad mei nominis gloriam uictorias reuocabo, neque ea
OPERA OMNIA TOMO IV 71

pouca monta se se compara com outra infinitamente mais elevada que


com meu entendimento diviso. É que ao homem, quero dizer, a Cristo,
inferior aos anjos segundo a natureza humana, mas príncipe dos anjos
e Senhor de todas as hostes celestiais segundo a excelência da virtude
e da dignidade, puseste-o no mais alto lugar para que com sua suprema
soberania abarcasse tudo que existe nas profundezas e nas alturas. A ele
obedecem as vagas marinhas; a ele se submete a terra inteira; a ele acatam
as esferas celestiais; e, finalmente, toda a natureza é regida pelas suas
decisões, divino influxo, poder e governo. Com que palavras se poderá
expor um tão grande benefício? Que o Senhor supremo, a fim de elevar
a vilíssima condição dos escravos, e chamá-los a igualarem-se com a Sua
nobreza, tivesse revestido a natureza humana, por forma a torná-la a pôr
numa elevadíssima posição, a fim de através dos seus merecimentos e
virtude fazer resplandecer inúmeros homens com a grandeza da virtude
e dignidade divinas! Ó mui extraordinária majestade do nosso Senhor,
como é imensa e brilhante a força do Teu nome na terra inteira!
[157]

SALMO 9
Eu Te glorificarei, Senhor, com todo o meu coração.

Este salmo glorifica o nome do Senhor, mediante cujo poder David


levou a cabo guerra contra o violento e desumano inimigo, com morte do
mesmo inimigo e destruição de muitos homens. Ora David chama Laben a
este inimigo; tão-pouco se sabe quem foi exatamente esse Laben, todavia
é manifesto que se tratou de um inimigo provido de muitíssimos recursos,
ensoberbecido e confiante com as vitórias, que sanhudamente ameaçava
com o ferro e o fogo muitos povos e que já inferira a destruição e ruína
a não poucas cidades. Talvez tenha sido assírio ou outrem de poder não
inferior, que com tropas hostis acometia a Judeia, quando morreu em
combate derrotado pelas armas de David. Portanto, David, por causa
desta vitória, escreveu em louvor de Deus este salmo, num género de
linguagem assaz elevada e brilhante. Diz portanto:

Com todo o meu espírito hei de louvar a Deus e enumerar todas


as Tuas admiráveis obras, ó supremo Senhor. Apoiado na Tua graça e
bondade, alegrar-me-ei e exultarei, e com cânticos e músicas exaltarei o
Teu nome, Tu que colocaste a morada sempiterna no ponto mais elevado
do Céu, e em tempo algum deixarei de celebrar os Teus louvores. É
que não hei de atribuir a mim mesmo o poderio, nem farei redundar
as vitórias em glória do meu nome, nem imputar a merecimento meu
72 D. JERÓNIMO OSÓRIO

quae Tua clementia gesta sunt, meis meritis adscribam. Tu


igitur, qui mihi uictoriam contulisti, mihi causam ingentis
laetitiae clementer attulisti animumque meum insigni gaudio
cumulasti. Cum enim hostis ferox et nimis infestus in me
furenter irruisset, Tu illum perculisti et abiecisti, ita ut,
in fugam conuersus, suos exanimaret, nec ille solum, sed
omnes tandem qui illum sequebantur, iudicio Tuo funditus
interirent.
Nec enim iure bellum inferebant, sed superbia et immanitate
ducti, ut in me pestem machinarentur, aduentabant et, quasi ad
certam et exploratam uictoriam animis furentes accelerabant,
cum Tu opem iuri meo, quod in summum periculum ueniebat,
attulisti, et causae meae, quae deserta uidebatur, patronus
exstitisti.
O Iudex sanctissime, qui sedes in sempiterno solio ut
iustissime iudicium exerceas et eorum casu et ruina qui non
aequitate, sed uiribus nixi bellum comparant, sententiam rite
pronuntias. Sic gentes cladibus illatis increpas; sic impium
de sede conuellis; sic eorum nomen qui, factis foedissimis
et conatibus perditissimis, Tuis sanctionibus aduersantur,
exstinguis et deles ut ex omni memoria penitus euellatur.
O hostis importune, ubi sunt illi spiritus immanes quos
assumebas? Quo reciderunt illae uictoriae, quibus elatus
nimis ferociter irruebas, quasi nihil esset quod tibi repugnare
posset? Omnibus ferro et flamma minabaris, eo quod multis
terris populationem et uastitatem intulisses multasque
ciuitates excidisses. At nunc ferocia compressa est; superbia
de statu concidit; uictoriarum monumenta deleta sunt; cum
durae tyrannidis interitu et [158] gentium impiarum exitio,
omnis memoria facinorum est iam sempiterna obliuione
sepulta. At Dominus, in statu regio atque sempiterno
constitutus, thronum Suum ad iudicii sanctitatem inuicto
praesidio muniendam dirigit, ut seuere illatas ab improbis
iniurias ulciscatur. Ipse namque orbem terrarum cum summa
iustitia moderatur et populis cum admirabili aequitate iura
describit. Vt autem ad aliquod tempus homines humiles
et ab opibus humanis inopes, qui in Te praesidia uitae
constituunt, uexari permittas; uel illorum uirtutem aduersis
rebus exerceas; uel, ut maculas alicuius labis eorum animis
adspersas, moderato supplicio deleas: illos tandem clementia
Tua respicis ut in alto dignitatis gradu constituas et ope
Tua sempiterna communias. Nec enim eos diutius afflictari
OPERA OMNIA TOMO IV 73

tudo que foi obrado pela Tua compaixão. Por conseguinte, Tu, que me
concedeste a vitória, compassivamente me ofereceste o motivo de um
imenso regozijo e encheste a minha alma de uma extraordinária alegria.
Na verdade, quando o inimigo feroz e ressumante de ódio sanhudamente
arremeteu contra mim, Tu derrotaste-o e abateste-o, de tal maneira que,
entregando-se à fuga, derramou o desânimo entre os seus súbditos, e ao
cabo, por deliberação Tua, foram totalmente dizimados, não apenas ele,
mas todos os que o acompanhavam.
De facto, não tinham motivos para fazer guerra, mas, levados pela
soberba e perversidade, aproximavam-se para maquinarem a minha
destruição e com o espírito transtornado apressavam-se, como se se
dirigissem para uma vitória certa e inquestionável, quando Tu vieste em
socorro do meu direito, que corria grandíssimo perigo, e Te ergueste
como defensor da minha causa, que parecia perdida. Ó santíssimo Juiz,
que tomas assento no eterno sólio para justissimamente julgares e que
retamente condenas a queda e ruína aqueles que movem guerra, apoiando-
se não na equidade, mas na violência. De tal forma invetivas os povos
com as desgraças que lhes infliges; de tal forma abates da sua posição o
ímpio; de tal forma extingues e fazes desaparecer o nome daqueles que,
com feitos infames e ações mui perversas se opõem aos Teus mandados,
que de raiz desaparece qualquer lembrança dele.
Ó cruel inimigo, onde está aquela arrogância desumana de que fazias
gala? Em que se transformaram aquelas vitórias, com as quais ensoberbado
acometias com sobeja sanha, como se não existisse cousa alguma que
pudesse fazer-te frente? A todos ameaçavas com o ferro e o fogo, porque
tinhas causado a ruína e devastação a inúmeras terras e assolado muitas
cidades. Mas agora a sanha está contida; a soberba foi apeada do seu
pedestal; foram reduzidos a nada os monumentos às vitórias; e [158]
com a destruição dos ímpios toda a lembrança dos seus atentados já foi
sepultada no eterno esquecimento. Mas o Senhor, estabelecido numa
morada régia e sempiterna, dispõe o Seu trono de forma a defender a
santidade do juízo com invencível proteção, a fim de vingar as injustiças
cruelmente perpetradas pelos perversos. Com efeito, Ele governa a
terra inteira com inexcedível justiça e prescreve aos povos as leis com
admirável equidade. Ora, ainda que durante algum tempo permitas que
sejam oprimidos os homens humildes e privados de todas as riquezas
humanas, que Te consideram a defesa das suas existências; ou ponhas
a sua virtude à prova mediante situações de adversidade; ou ainda que
com suportável tormento apagues as manchas de algum labéu salpicadas
contra as almas deles; acabas por pôr neles os olhos da Tua compaixão
por forma a elevá-los a um alto degrau de dignidade e a sustê-los com a
Tua ajuda eterna. De facto, não consentes que sejam atribulados por mais
74 D. JERÓNIMO OSÓRIO

permittis quam sit eorum saluti atque dignitati necessarium.


At, cum primum cernis opus ad eorum salutem commodum
opera hostis absolutum et temporis opportunitatem consilio
Tuo definitam, occurris continuo ut eos a calamitatibus
eripias et eorum pietatem opibus diuinis cum dignitatis
amplificatione remuneres.
Qui igitur notitia Tui nominis instructi sunt et clare
cernunt esse uim Tuae potestatis infinitam et uim Tuae
probitatis immensam, ita ut neque uires impediri neque
bonitas retardari possit ne summa fide illos tuearis qui in
praesidio Tui nominis acquiescunt, reliqua uana praesidia
neglegent; Tibi soli credent; in Te solum intuebuntur;
numquam, quamuis omnibus periculis cincti sint, a fide
deficient; cum certum habeant auxilium Tuum minime
defuturum illis qui Te quaerunt, ut nomen Tuum pura,
casta et integra mente perpetuo uenerentur.
Canite Deo, qui Sioni insidet; annuntiate gentibus exteris studia
et actiones Illius, ut, cognitione sanctissimi Domini eruditae,
nobiscum salutem consequantur. Nemini enim optimus ille Parens
et Dominus uult aditum ad salutem intercludi, modo colat fidem et
pietatem et se coram Domino supplex abiiciat. Qui enim sanguinis
profusi poenam persequitur et iniurias hominibus sanctis illatas
ulciscitur, non eorum obliuiscitur qui, aerumnis oppressi et afflicti,
Illius opem clamoribus magnis implorant. Hac igitur fiducia fretus,
clamare minime desistam praesidiumque Tuum precibus assiduis
flagitabo, nec ullis hominum dolis et fraudibus impediri potero
quominus mihi salutem de Tua immensa bonitate pollicear. Miserere
mei, Domine: opem namque Tuam in aerumnis suppliciter imploro;
a Te solo auxilium expeto; spe Tuae clementiae nixus, pericula
quae mihi intenduntur me propulsurum confido. Vides me ab
hostibus circumueniri eorumque opera multis incommodis afflictari:
eripe me a mortis faucibus et a conuentu inferorum extrahe me,
ut enarrem omnes laudes Tuas in celebritate Hierosolymitanae
ciuitatis et fructu salutis meae, Tua benignitate constitutae, omnibus
modis exsultem. Gentes enim mihi acriter infensae depressae sunt
in foueam quam fecerant earumque pedes in rete, quod ad meam
perniciem intenderant, [159] inciderunt.
Apparuit numen diuinum; iustissime in scelus animaduertit;
poenas ab improbis expetiuit; impius operibus suis manifesto
deprehensis adstrictus est. O diuinum iudicium, sempiterna
laudatione praedicandum! Impii, a conatu depulsi, terga
uertent; in sempiternae miseriae regionem corruent; omnes
OPERA OMNIA TOMO IV 75

tempo do que o necessário para a sua salvação e honra. Assim, porém, que
vês que por mediação do inimigo chegou não só ao seu termo uma ação
adequada para a salvação deles, como também o ensejo e oportunidade
determinada pela Tua deliberação, imediatamente acodes de maneira a
arrancá-los das desgraças e, com aumento da sua dignidade, com riquezas
divinas recompensas a sua piedade.
Por conseguinte, os que foram ensinados com o conhecimento do Teu nome
e claramente vêem que a força do Teu poder é infinita e imensa a potência
da Tua bondade, de tal maneira que nem as Tuas forças podem ser impedidas
nem a Tua bondade embargada de protegeres com a mais completa ajuda
aqueles que encontram repouso na fortaleza da Teu nome, hão de desprezar as
demais inúteis proteções; acreditarão unicamente em Ti; apenas em Ti fixarão
o seu olhar; nunca, mesmo que se encontrem cercados por toda a espécie de
perigos, hão de abandonar a sua fé; uma vez que têm a certeza de que o Teu
auxílio nunca há de faltar àqueles que Te procuram, a fim de incessantemente
com limpo, puro e casto espírito reverenciarem o Teu nome.
Cantai a Deus, que tem morada em Sião; anunciai às nações estrangeiras
os Seus desvelos e ações, a fim de que, adquirindo o conhecimento do
santíssimo Deus, juntamente convosco alcancem a salvação. É que aquele
ótimo Pai e Senhor a ninguém quer impedir o acesso à salvação, desde
que pratique a fé e a piedade e em atitude suplicante se prostre diante do
Senhor. Na verdade, quem castiga o sangue derramado e vinga as injustiças
perpetradas contra os homens santos, não se esquece dos que, oprimidos
e atribulados pelas provações, com grandes brados imploram a Sua ajuda.
Portanto, apoiado nesta confiança, não deixarei de bradar e com incessantes
rogativas suplicarei a Tua ajuda, e nenhuns embustes e enganos de homens
poderão impedir-me de esperar da Tua imensa bondade a salvação. Tem
compaixão de mim, ó Senhor: pois nas provações suplico e imploro a Tua
ajuda; só a Ti rogo auxílio; amparado na esperança da Tua clemência, tenho
confiança em que hei de afastar os perigos que contra mim se preparam.
Vês que me encontro cercado de inimigos e que por obra deles sou afligido
com inúmeras tribulações: arranca-me das fauces da morte e tira-me da
companhia dos infernos, para que eu proclame todos os Teus louvores às
multidões da cidade de Jerusalém e exulte de todos os modos com o fruto
da minha salvação, obtida graças à Tua bondade. É que as pessoas que me
eram profundamente hostis caíram na cova que escavaram e enlearam-se
na rede que tinham estendido [159] para arruinar-me.
O poder divino apareceu; em Sua grande justiça reconheceu o crime;
castigou os perversos; o ímpio viu-se enredado pelos seus delitos
surpreendidos em flagrante. Oh julgamento divino, que merece ser
encarecido com sempiternos louvores! Os ímpios, desviados dos seus
intentos, hão de entregar-se à fuga; cairão na região da eterna desgraça;
76 D. JERÓNIMO OSÓRIO

qui Deum obliuiscuntur interibunt. Nec enim salus inopis


negligetur neque humilium spes erit inanis.
Exsurge, Domine, ne permittas hominis improbi opes
corroborari; in iudicium coram Te uocentur omnes gentes,
ut Tui pietatis praemio potiantur, et qui Te oderunt, sceleris
poenas luant. Et quia nulla potest, in hac uita, grauior poena
constitui immanis tyranni dominatu, permitte tyrannum
illis praefici qui eos tributis opprimat, crudelitate dilaceret,
amentia perturbet et turpissimo leto conficiat. Ius enim
postulat ut, qui legitimum summi Domini imperium recusant,
tyrannidis importunitate deprimantur, et, qui legis diuinae
mansuetudinem et aequitatem ferre noluerunt, durissimae
seruitutis iugum subeant, et qui uitae sempiternae praemium
contempserunt, mortis sempiternae uinculis adstringantur,
atque postremo, qui in uiam immortalitatis atque diuinae
gloriae nullo pacto ingredi uoluerunt, in uiam funestissimi
leti et in turpitudinis extremae deformitatem detrudantur.
Sic autem experiendo discent multi se esse natura fragiles,
mentis expertes, ad mala propensos, a bonis auersos et ita
fieri ut, nisi fuerint a Te in fidem et patrocinium recepti
et praeceptis Tuis sanctissimis eruditi, erroris magistros
adsciscant, et in humeris suis dominos crudeles imponant,
quorum legibus in pestem et perniciem, nisi resipuerint,
praecipites eiiciantur. O admirandam diuini iuris aequitatem,
quam iusto iudicio illos prosequitur qui sese per summum
fcelus a uia salutis abducunt!
Conqueritur Dauid de hominum scelere et improbitate, qua
non solum tenues homines uexant et insectantur omnibusque
bonis spoliant, sed etiam Dei iudicia contemnunt eumque
res humanas minime curare putant. Inquit igitur:
Omnes quidem, o Domine, qui, neglectis humanis
praesidiis, in Te solo praesidia uitae constituunt, hac mente
sunt ut statuant Te numquam procul abesse auxiliumque
tuum illis nullo tempore defuturum qui, firma fide,
constanti spe, castissima religione roborati, ope Tui numinis
innituntur. Fallit spes homines eos qui uel congestis
opibus efferuntur uel, humanis copiis erecti, uictorias
sibi pollicentur, uel principum gratia et nobilitate nominis
insolescunt, cum omnia sint caduca, fluxa et fragilia et, uel
momento temporis euanescant, uel insita perfidia mortales
ope sua destituant. Itaque fit ut, praeter calamitatem,
insigne dedecus subeant omnes qui alia, praeter Te, uitae
OPERA OMNIA TOMO IV 77

morrerão todos os que se esquecem do Senhor. É que a prosperidade do


pobre não será posta de parte nem será vã a esperança dos humildes.
Levanta-Te, Senhor, não permitas que se acrescentem as riquezas do homem
perverso; que todos os povos sejam chamados a juízo diante de Ti, para
os Teus receberem o prémio da sua religiosidade, e padecerem os castigos
do pecado os que Te odeiam. E porque nesta vida não pode estabelecer-se
pena alguma mais pesada que o senhorio de um cruel tirano, permite que
eles sejam postos sob o mando de um tirano que os oprima com tributos,
os atormente com cruezas, os inquiete com a sua vesânia e os atribule com
infamíssima morte. Na verdade, a justiça exige que, os que recusam o legítimo
senhorio do supremo Senhor, sejam oprimidos pelos rigores da tirania, e
que os que não quiseram sujeitar-se à mansidão e equidade da lei divina
experimentem o jugo da mais dura servidão, e que os que desprezaram o
prémio da vida eterna, sejam acorrentados pelas cadeias da morte perpétua,
e, por derradeiro, que os que de forma alguma quiseram entrar na senda
da imortalidade e da glória de Deus, sejam lançados no caminho da mais
nefasta das mortes e no horror da mais extrema torpeza.
Ora, assim, com a sua experiência muitos hão de aprender que por
natureza são fracos, desprovidos de entendimento, propensos para o mal,
inimigos dos bens, e que deste modo sucede que, a menos que Tu os
acolhas sob a Tua proteção e amparo e lhes ensines os Teus santíssimos
preceitos, chamam para si os mestres do erro e impõem sobre os seus
próprios ombros o domínio de senhores cruéis, que com as suas leis,
caso não se arrependam, os precipitam na ruína e perdição. Oh admirável
equidade da justiça divina, com quão justo julgamento punes aqueles que
através do maior dos pecados se apartam do caminho da salvação!
David queixa-se do pecado e perversidade dos homens, pela qual não
apenas vexam e perseguem os homens fracos e os esbulham de todos os
seus bens, mas também desprezam os juízos de Deus e pensam que Ele
não se ocupa com os assuntos humanos. Por isso, diz:
Senhor, todos os que, desprezando as ajudas humanas, estabelecem
unicamente em Ti as suas defesas, fazem-no com a convicção de que Tu
nunca estás longe e o Teu auxílio nunca há de faltar em tempo algum
àqueles que, fortalecidos por uma fé firme, constante esperança e puríssima
religiosidade, se apoiam na ajuda do Teu poder divino. A esperança ilude
aqueles homens que ou se ensoberbecem com as riquezas acumuladas ou,
confiantes em tropas humanas, se prometem a si mesmos vitórias, ou se
volvem arrogantes com a graça dos príncipes e a nobreza dos seus nomes,
sendo certo que todas as coisas são caducas, passageiras e frágeis e, ou
se desvanecem num ápice de tempo ou, devido à sua congénita perfídia,
privam os mortais da sua ajuda. E por isso acontece que, para além da
desgraça, incorrem em infamante desdouro todos os que pensam que
78 D. JERÓNIMO OSÓRIO

subsidia summo studio comparanda sibi esse statuunt. Soli


igitur qui in praesidio Tui sanctissimi nominis acquiescunt
et inuicti permanent et ex ea spe, quam in Te repositam
habent, decus eximium consequuntur.
Cum hoc ita sit et constet neminem eorum qui omnes opes
salutis et dignitatis in Te collocatas [160] habent ope Tua
nudatum fuisse, cur hoc tempore pauperes a Te deseruntur?
Cur auxilium Tuum longe a bonis remoues? Cur hominem
inermem et ab omnibus rebus inopem hostium praedae et
direptioni relinquis? Cur, cum inclamo ut opem afferas, non
celeriter occurris? Iis enim certe annumerandus sum qui
reliqua praesidia pro nihilo duxerunt omnesque suas spes in
Te uno fixas et collocatas habent. Sed inquies Te numquam
eorum causam, qui ad Te fidenter adeunt, neglexisse, uerum
id etiam curasse ut eorum uirtutem exerceres, ut clariora
illis praemia, cum illustri gloriae amplificatione, conferres,
et ea de causa saepe impios tolerari, ut eorum opera
bonos erudias exemplaque patientiae inuictae et uirtutis
admirandae proponas, quibus homines intellegant nihil
esse in terris quod uirtutem possit de statu suo dimouere.
Cum uero temporis opportunitatem cernis, opem continuo
supplicibus Tuis afferre. Opportunitas uero est, uel cum
calamitas tanta est quantam difficillime Tui perferre queant,
uel improbitas hostium Tuorum tam immanis est ut minime
diutius toleranda sit: ne uidelicet serpat ad rei publicae
totius pestem et euersionem.
Haec opportunitas oblata est. Cur igitur, o sapientissime
rerum omnium rector atque moderator, has temporum
opportunitates neglegis? Cur non simul ut me, prope
collapsum et iacentem, erigas et, ut hostem importunum
seuerissime contundas, celeritatem suscipis? Si enim oculos
in nos conieceris, cernes animos nostros miseris modis
afflictos et in summas angustias adductos. Si uero hostem
respexeris, cernes improbitatem in tyrannide summa cum
pauperum pernicie constitutam. Dum enim impius insolenter
inflatus ad summas opes euehitur, uir pauper flammis
aduritur et poena, qua erat improbitas exstinguenda, ad
innocentiae cruciatum transfertur. Nec interim dici potest
malitiam nimia calliditute celari, ita ut non possit, quid impii
animis secum agitent, manifesto deprehendi. Eo namque
impietas progressa est ut iam nihil homines pudeat sceleris
nec in eo laborem suscipiant ut oculos hominum uitent.
OPERA OMNIA TOMO IV 79

devem, além de Ti, com o maior empenho e desvelo obter outros recursos
para a vida. Por conseguinte, apenas os que descansam na fortaleza do
Teu santíssimo nome não apenas se mantêm invencidos, mas igualmente
obtêm extraordinária honra da esperança que em Ti têm depositada.
Sendo isto verdade e sendo de todos sabido que nunca foi desprovido
da Tua ajuda nenhum homem dos que fazem depender de Ti todas os
recursos da salvação e da dignidade, [160] por que motivo nesta época
os pobres são por Ti abandonados? Porque é que apartas para longe dos
bons a Tua ajuda? Porque abandonas para presa e saque dos inimigos
o homem desarmado e privado de todos os recursos? Por que razão é
que, quando brado pedindo-Te socorro, não me acodes com rapidez? É
que devo ser indubitavelmente contado no número dos que tiveram na
conta de nada as restantes ajudas e têm todas as suas esperanças postas e
depositadas unicamente em Ti. Mas hás de dizer que nunca desprezaste a
causa daqueles que com confiança de Ti se aproximam, mas que também
te preocupaste em pôr à prova a virtude deles a fim de lhes ofereceres
recompensas mais ilustres, com brilhante acréscimo de glória, e que por
este motivo amiúde toleras os ímpios, a fim de através deles ensinares os
bons e dares a conhecer exemplos de invencível resignação e espantosa
virtude, para que com eles os homens compreendam que na terra nada
existe capaz de arrancar a virtude da sua alta posição. E que quando vês
chegado o momento propício, imediatamente ofereces ajuda aos que Te
suplicam. E o momento propício dá-se, quando a desgraça é tão grande
que a mui duras penas os Teus a podem suportar, ou a ruindade dos Teus
inimigos é tão desumana que não deve tolerar-se por mais tempo: como
é evidente, para não se espalhar com perdição e ruína total do Estado.
Esta oportunidade ofereceu-se. Por conseguinte, por que motivo, ó
sapientíssimo soberano e governante de todas as coisas, Te mostras desatento
a estes ensejos? Por que razão não Te mostras igualmente célere a levantar-
me, que estou quase prostrado e caído, e a com o máximo rigor destruir o
cruel inimigo? É que se alongares sobre nós os Teus olhos, verás as nossas
almas mofinamente atribuladas e chegadas à mais completa aflição. E se
olhares para o inimigo, verás a perversidade exercendo a mais completa
tirania com destruição dos pobres. De facto, enquanto o ímpio insolentemente
ensoberbecido se guinda às mais opulentas riquezas, o homem pobre é
consumido pelas chamas e o castigo, que deveria acabar com a ruindade,
é desviado para tormento da inocência. E tão-pouco pode entretanto dizer-
se que a malícia se dissimula com sobeja astúcia, de tal maneira que não
possa claramente perceber-se o que os ímpios meditam consigo mesmos no
seu íntimo. Com efeito, a impiedade em tal grau avançou que os homens já
não sentem qualquer pejo do pecado nem despendem qualquer esforço em
evitar o olhar do próximo. De facto, ufanam-se do crime e destarte sucede
80 D. JERÓNIMO OSÓRIO

In facinore enim gloriantur et ita fit ut, audacia immani


et impudentia effrenata subnixi, flagitia sua profiteri non
erubescant.
Sic igitur sunt inuersa omnia ut laus summa in fraude
summa consistat, impius enim id tantum laudat quod est
animi sui cogitationibus accommodatum. Itaque auaritiam
summis laudibus ornat sanctissimumque Dei numen maledictis
insequitur et religionem omni contumelia dilacerandam suscipit.
Eum namque qui contra ius diuinum opes auget, summum
uirum singulari sapientiae laude florentem iudicat; contra uero,
qui pecuniae religionem anteponit, hominem non ducit.
Cum uero impius, superbia ductus, in furorem erumpit,
nullo numinis metu ab insita crudelitate reuocatur. Non
enim Dei iudicium inquirit; numquam Deum in aliquo
actionis genere cogitat, cum semper longissima ab Illius
mente dissideat. Omnia uitae studia flagitiose contaminat;
nullum tempus scelere uacuum [161] abire permittit; omnia
iudicia Tua, Domine, ab illius oculis longissime remota
sunt; omnes inimicos suos ludibrio habet et in eorum
rebus asperis nimis furiose et insolenter insultat. Cum enim
res sibi ex animi sententia fluunt, nullam conuersionem
extimescit, sed ita mentis expers est ut secum statuat nullum
malum esse sibi ullo umquam tempore subeundum. Hac
igitur amentia ductus, insolescit, furit, insanit nullaque
formidine impeditur quominus in omni genere flagitiorum et
scelerum impudentissime uolutetur. Os illius est exsecratione
cumulatum, lingua illius dolis et fraudibus inquinata,
malignitatem et iniquitatem perpetuo meditatur. In siluis
ponit insidias; abdit se in latibulis, ut necem inferat innocenti;
oculos suos malitiose atque dissimulanter intendit, ut,
quacumque ratione possit, bonorum coetum opibus atque
uita spoliet. In occulto insidias collocat; quasi quidam leo
se occultat in lustro, ut subito in pauperem nihil hostile
suspicantem insiliat, ut eum omni crudelitate dilaceret.
Pauperem quidem crudelissime dilacerabit, postquam illum
in rete suum traxerit et laqueis suis arte constrinxerit. Ne
quidquam autem improbitatis in scelere conflando permittat,
in superbia moderationem simulabit; in immanitate bonitatis
personam induet et fraudulenter se abiiciet, ne ullam
peruersitatis aut calumniae suspicionem moueat, cum subito
uiribus suis opprimet imparatos innocentiumque multitudinem
nimis incautam furibunde peruertet.
OPERA OMNIA TOMO IV 81

que, apoiando-se em desumano atrevimento e desenfreada impudência, não


se ruborizam por confessar as suas indignidades.

Por conseguinte, de tal maneira tudo se inverteu que o maior elogio consiste
no maior embuste, pois o ímpio louva apenas aquilo que se amolda aos seus
desígnios. E por isso condecora com as maiores loas a avareza e invectiva
com baldões o santíssimo poder de Deus e empenha-se em despedaçar com
ultrajes todo o tipo de religiosidade. De facto, julga que o melhor dos varões
e mais ilustre pelo merecimento de uma incomum sabedoria é aquele que
acrescenta as suas riquezas violando a lei divina, e, ao invés, não considera
como homem aquele que antepõe a religião ao dinheiro.
E quando o ímpio, conduzido pela soberba, se precipita no desvario,
não há medo de algum poder divino que o aparte da arreigada crueldade.
É que não procura conhecer o juízo de Deus; nunca, em nenhum tipo
de atividade, o seu pensamento se lembra de Deus, uma vez que sempre
está muitíssimo apartado de n'Ele cuidar. Mancha de infâmia todas as
ocupações da vida; não consente que tempo algum se passe isento
de pecado; [161] todos os Teus julgamentos, ó Senhor, encontram-se
muitíssimo apartados dos olhos dele; escarnece de todos os seus inimigos
e quando se acham em dificuldades, maltrata-os com sobeja sanha e
insolência. Quando as coisas correm a seu contento, não se arreceia de
alguma reviravolta, mas de tal maneira é destituído de entendimento
que pensa consigo mesmo que jamais há de sofrer algum mal. Portanto,
arrastado por esta loucura, ensoberbece-se, desvaira, desatina e nenhum
temor o impede de sem qualquer espécie de pejo se espojar em toda a
sorte de torpezas e pecados. A sua boca encontra-se cheia de maldições,
a sua língua manchada de embustes e mentiras, e incessantemente cogita
em maldades e iniquidades. Arma ciladas nas florestas; oculta-se em
esconderijos, para inferir morte violenta ao inocente; observa com olhar
mal intencionado e dissimulado, a fim de, com qualquer pretexto que
lhe ocorra, esbulhar dos bens e da vida a comunidade dos bons. Coloca
às ocultas armadilhas; como se fosse um leão, esconde-se no mato, a
fim de se arremessar de súbito sobre o pobre, que não suspeitava de
qualquer perigo, e com toda a crueldade o estraçalhar. Certamente há
de com a máxima crueldade estraçalhar o pobre, depois de o atrair para
a sua rede e ardilosamente o prender nos seus laços. Por outro lado,
para, no urdir do crime, não deixar por perpetrar perversidade alguma,
simulará comedimento na soberba; fará papel de bondoso na crueldade
e enganosamente há de abater-se, por forma a não despertar qualquer
suspeita de espírito perverso e caluniador, quando de improviso com a sua
violência atacar os que se encontram desapercebidos e com dementada
fúria destruir a multidão demasiado descuidosa.
82 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Parum fuit pudorem amittere, hominum sermones


contemnere, iura omnia conculcare, decus et honestatem
in fraude sitam arbitrari, summam dignitatem in tyrannidis
immanitate ponere, nisi Te ipsum, summe Domine, Te ipsum,
inquam, qui omnia potestate infinita complecteris, indignissima
contumelia uexaret nomenque Tuum sanctissimum infando
conuicio macularet, Tuique numinis amplitudinem atque
maiestatem maledictis insequeretur. Secum enim statuit Te
memoriam sempiterni iuris abiecisse humanarumque rerum
procurationem reliquisse et sic imperii totius administrationem
neglexisse ut neque perditorum hominum scelus intueri nec in
facinora uindicare uelis, ita ut neque in praesenti uita neque in
futura uir improbus iudicium Tuum pertimescendum existimet.
Quid est igitur quod iam possit ad tantum scelus accedere?
Eripiat Tibi homo scelestissimus mentem et rationem? Eripiat
iustitiae sanctitatem? Eripiat ius et imperium? Eripiat denique
fidem et probitatem qua Tuorum defensionem suscipis? O
facinus indignissimum, dirissimo supplicio uindicandum! O
sceleris importunitatem et audaciam cruciatibus sempiternis
ulciscendam! Tantos sibi spiritus ex diuturna peccandi
consuetudine impurissimum hominem assumere ut in summum
rerum omnium Dominum insolenter inuehatur! Vt Illius
immensam maiestatem contumeliis uiolare conetur! Vt sine
ullo metu Illius sanctiones atque iura perfringat!
Si igitur in animaduersione Tua opportunitas flagitatur,
uix ulla maior optari potest. Nam et uirtus nostra, iniuriarum
[162] magnitudine uehementer oppressa, languescit, et hostis
improbitas ad summum totius improbitatis euasit. Exsurge,
Domine: uim Tuae seueritatis excita; causam gloriae Tuae
suscipe; ne pauperum, qui Te solum intuentur, obliuiscaris.
Cur tamdiu hominis impii audaciam impunitam patieris? Eo
progressam esse perditissimi homuncionis amentiam ut statuat
secum Deum minime in scelus animaduersurum? Respice tam
atrocis facinoris indignitatem. Tu enim humanorum studiorum
in patrando facinore sollicitudinem mente consideras; Tu
iram, qua improbi bonos insectantur, animaduertis; Tibi omnia
patent atque dilucescunt ut iudicium cum sanctitate summa
constituas et, pro cuiusque meritis, unicuique uel poenam uel
praemium reponas. Pauperes, omnium patrocinio destituti,
Tibi solam causam suam committunt; pupillis, omnium tutela
miserabiliter orbatis, opem affers, ita ut patronus egenorum et
pater pupillorum merito nomineris. Contere igitur impietatis
OPERA OMNIA TOMO IV 83

Foi pouco perder o pejo, desprezar o que dizem os homens, acalcanhar


todas as leis, considerar que a honra e a honestidade assentam numa
mentira e colocar a suprema dignidade na desumanidade da tirania,
se não Te ultrajasse com indigníssimos insultos, a Ti mesmo, supremo
Senhor, repito, a Ti mesmo, que com Teu poder infinito tudo abarcas,
nem manchasse o Teu santíssimo nome com abominável invectiva,
nem amaldiçoasse a imensidão e majestade da Tua divindade. É que
convenceu-se no seu íntimo de que Tu renunciaste a lembrar-Te das
leis eternas e puseste de parte o cuidado com as coisas humanas e de
tal maneira desprezaste por completo as funções do poder que nem
queres ver os crimes dos homens perversos nem castigar os pecados,
de tal maneira que o homem ruim tem para si que não lhe cumpre
arrecear-se do Teu julgamento nem nesta vida nem na que há de
vir. Por conseguinte, que é que já pode acrescentar-se a tão grande
pecado? Que o homem sacrílego Te despoje de entendimento e razão?
Te despoje de leis e poder? E, enfim, Te despoje da ajuda e bondade
com que acodes em defesa dos Teus? Oh mais infame dos atentados,
merecedor de ser punido com o mais terrível dos suplícios! Oh crime
medonho e desaforado, que deve ser vingado com torturas inacabáveis!
Que o impuríssimo homem ganhe com o contínuo costume de pecar
um tão grande atrevimento que insolentemente ouse atacar o supremo
Senhor de todas as cousas! Que se empenhe a ultrajar com insultos a
Sua imensa majestade! Que, sem qualquer receio, quebrante e viole as
Suas determinações e leis!
Por conseguinte, se se busca o momento propício para o Teu castigo,
dificilmente pode pedir-se um mais azado. Com efeito, não só se entibia a
nossa virtude e coragem, violentamente oprimida por grandes injustiças,
[162] mas também a perversidade do inimigo se guindou ao topo da
perversidade. Levanta-Te, Senhor: faz sentir a força do Teu rigor; defende
a causa da Tua glória; não Te esqueças dos pobres, que só em Ti têm
postos os olhos. Por que razão toleras durante tanto tempo sem puni-la
a audácia do homem ímpio? Que a tal ponto tenha crescido a vesânia do
mofino e perverso homem que tenha para si que Deus não há de castigar
o pecado? Atenta na infâmia de tão atroz atentado. De facto, Tu dás-Te
conta do empenho da desvelada atividade dos homens em perpetrarem
o crime; Tu observas a sanha com que os perversos perseguem os bons;
tudo Te é patente e manifesto, para que com a mais completa santidade
julgues e a cada um, de acordo com os seus merecimentos, lhe atribuas o
prémio ou o castigo. Os pobres, privados de toda a espécie de amparos,
depositam unicamente nas Tuas mãos a sua causa; ofereces ajuda aos
órfãos, mofinamente destituídos da proteção de todos, por tal forma que
com justiça és designado por defensor dos indigentes e pai dos órfãos. Por
84 D. JERÓNIMO OSÓRIO

uires; tyranni robur infringe, quo in pauperes et in pupillos


inuadit, innocentiumque bona praedam suam putat. Dele
impiorum nomen; fac ut illorum memoria funditus euanescat;
nullum exstet in terris nationis scelestissimae monumentum.
Ita fiet ut, si quaeras aliquem impietatis fructum, nullum
prorsus inuenias.
Quantus autem error uersetur in uita est consideratione
dignissimum. Opes intereunt; splendor exstinguitur; aura
popularis momento diffluit; humana gloria quouis motu
tempestatis obruitur; et tamen homines, sponte sua a ueris
bonis auersi et in fluxa et interitura conuersi, omnem uitam
in uanitate sine ullo fructu consumunt, et ita euenit ut,
quemadmodum inanitatem summo studio consectati sunt,
ita fiant inanissimi et eorum nomen tumulo sempiternae
obliuionis opprimatur. Hoc quidem certe non eueniet illis qui
Deum inquirunt Illiusque mentem caste atque pure perpetuo
studio uenerantur. Quare? Quia Deus est Rex summus et
excelsus opesque Illius nullis finibus arceri possunt, cum sint
fixae, stabiles atque sempiternae. Vnde sequitur ut omnes qui
se totos ad Dei nomen adiungunt omniaque uitae studia ad
legem Illius dirigunt, bona sempiterna possideant nullisque
hominum impiorum opibus concidere aut labefactari possint;
contra uero impii e terra Domini, quam ingrate nimis et
insolenter, quasi ea minime ad diuinum imperium pertineret,
occuparant inanissimisque praesidiis uinctam tenuerant,
expellentur et eiicientur; eorumque nomen funditus interibit,
ita ut non solum a bonis, quae contemnebant, exclusi,
uerum et ab iis, quae plurimi faciebant, exterminati, poenas
temeritatis exsoluant.
Tu namque, Domine, desiderio pauperum, qui in Te salutis
spem repositam semper habuerunt, cumulate satisfecisti;
Tu eorum mentes, ne a fide deficerent, opibus egregie
muniuisti; Tu aures tuas eorum precibus clementissime
praebuisti, ut causam pupillis adiudicares, ut pauperes iacentes
excitares omniumque tandem inopiam, qui sese ad ardens
studium numinis Tui contulerunt, subleuares [163] et opibus
sempiternis afficeres. Hoc est meum uotum; hoc opto; hoc
perpetuo postulabo: ut iudiciorum Tuorum sanctitas innotescat,
ne perditus homo, potentia nominis elatus, uastitatem terris
inferat multisque mortalibus exitium moliatur.
OPERA OMNIA TOMO IV 85

conseguinte, esmaga as forças da impiedade; quebra a potência do tirano,


com a qual ataca os pobres e os órfãos, ele que pensa que os bens dos
inocentes são presa sua. Apaga o nome dos ímpios; faze que a memória
deles por completo se desvaneça; que na terra não subsista nenhuma
recordação da perversíssima raça. Assim sucederá que, se procuras algum
fruto da impiedade, não encontrarás absolutamente nenhum.
Por outro lado, merece toda a ponderação ver quão grandes erros e
enganos se insinuam na vida. As riquezas perecem; o esplendor extingue-
se; a popularidade dissipa-se num ápice; a glória humana é engolida
pelas agitações de qualquer procela; e mesmo assim, os homens de livre
e espontânea vontade hostilizam os bens verdadeiros e se voltam para
os passageiros e perecíveis, consomem a vida inteira em coisas vãs, sem
qualquer fruto, sucedendo deste modo que, assim como com todo o
empenho foram empós da futilidade, assim se tornam totalmente fúteis
e ficam com o seu nome oculto no túmulo do eterno esquecimento. Ora,
isto não há de acontecer àqueles que procuram Deus e reverenciam casta
e puramente e com incessante zelo o Seu espírito. Porquê? Porque Deus
é o supremo e altíssimo Rei e as Suas riquezas não podem ser contidas
por nenhuns limites, uma vez que são fixas, estáveis e eternas. Daqui se
segue que todos os que inteiramente se alistam sob as bandeiras de Deus
e encaminham todos os desvelos da Sua vida ao cumprimento da Sua
lei, possuem os bens sempiternos e não podem sucumbir ou tombar por
obra das riquezas dos homens ímpios; ao invés, porém, os ímpios serão
rechaçados e expulsos da terra do Senhor, que com sobeja ingratidão e
insolentemente, como se ela não fizesse parte dos domínios de Deus,
ocuparam e, com guarnições totalmente inúteis, senhorearam; e o nome
deles há de perecer por completo, por tal forma que sofrerão o castigo
do seu desatino, sendo excluídos não apenas dos bens que desprezavam,
mas igualmente privados daqueles que tinham em grande apreço.
É que Tu, Senhor, satisfizeste plenamente o desejo dos pobres, que
sempre tiveram depositada em Ti a esperança da salvação; Tu, para que
não perdessem a confiança, protegeste os seus espíritos com singulares
recursos; Tu, com a máxima misericórdia deste ouvidos aos seus rogos,
por forma a decidires em favor dos órfãos, do chão ergueres os prostrados
pobres e, finalmente, socorreres e proveres de riquezas eternas a indigência
de todos os que se consagraram ao ardente amor da Tua divindade. [163]
O meu desejo é este; isto peço; isto incessantemente rogo: que se torne
conhecida a santidade dos Teus juízos, para que o homem perverso,
ensoberbecido com o poder do seu nome, não assole a terra nem maquine
a perdição de inúmeros mortais.
86 D. JERÓNIMO OSÓRIO

In Domino confido: quomodo etc.


Psal. 10

Actus sane praeclarus hoc carmine continetur, in quo Dauid


cum amicorum choro loquens inducitur; periculum, in quo
is uersabatur, ab amicis exponitur; ab illo autem spes in Dei
praesidio constituta quantum habeat roboris explanatur; atque
tandem supplicium, quo malefici homines opprimuntur, admodum
luculenter exprimitur. Dauid enim, inuidia, odio, immanitate
Saulis exagitatus, perditorum hominum insidiis et malignitate
circumuentus, admonetur ab amicis ut summum periculum fuga
uitet. Huiusmodi enim uerbis, ut uerissimile est, utebantur:

– In regno omnia illis, quibus reges sunt irati, infestissima


sunt. Quam sit autem rex iratus tibi, quam immani odio te
persequatur, quanto studio et contentione tuum sanguinem
petat, animaduertis. Nemo enim umquam tantum pro uitae
suae defensione pugnauit, quantum ille, ut tibi uitam eripiat,
elaborat. Itaque in tuam perniciem totus incumbit; ingentia
praemia illis, qui tibi pestem comparauerint, se daturum
pollicetur; et, quantum potest, ut tandem male pereas, omnes
tibi exitus intercludit. Quid igitur moraris? Cur non, quam
celerrime fieri poterit, te fuga proripis?
– Quid hoc est?, inquit Dauid. Estisne mihi auctores ut, illo
metu perturbatus, tot res sanctissimas quae sunt mihi ipsa uita
cariores tam facile deseram? Vt patriam, quam toties seruaui,
fugiam? Vt a monte Domini diuellar? Vt cultum sanctissimae
religionis intermittam?
– Tempori, inquiunt, cedas opus est, ut ea omnia, cum
fuerit opportunum, recuperes. Aliter enim earum omnium
rerum, cum uitae ipsius interitu, spoliabere. Hostis enim tuus
rex est atque summas opes habet et eas omnes contra te
unum comparat, ut solum inopem et imparatum crudelissime
trucidet.
– Verum, inquit, dicitis. Attamen cogitare etiam debetis quanto
maiores et fortiores illae copiae sint quibus ipse cinctus sum.
Numquam enim summus ille caelitum Imperator et Dominus
suos salutari praesidio destituit. Ergo, cum in ipso Domino cuius
est fides et ueritas sempiterna et potestas immensa et infinita,
spem meam collocauerim, qua tandem ratione me admonetis
ut insani regis opes extimescam? Vt a monte uestro, ut uolucris
OPERA OMNIA TOMO IV 87

SALMO 10
No Senhor confio; porque [dizeis à minha alma:
foge para o monte como pássaro?]

Contém-se uma representação deveras notável neste salmo, no qual


David é apresentado a falar com o coro dos amigos; os amigos expõem
o perigo em que ele se encontrava; ele, porém, dá a conhecer o quanto
avigora colocar a esperança na proteção de Deus; e, por derradeiro, com
grande propriedade faz-se saber o castigo com que são destruídos os
homens malévolos. É que David, perseguido pela inveja, ódio e crueldade
de Saul, assediado pelas ciladas e maldade dos homens perversos, é
aconselhado pelos inimigos a evitar com a fuga o perigo de morte. De
feito, é de presumir que dissessem as seguintes palavras:

– No reino tudo é adverso para aqueles contra os quais os reis se


encolerizaram. Ora, dás-te conta de quanto o rei se irou contra ti, do
cruel ódio com que te persegue, do empenho e porfia com que deseja
derramar-te o sangue. É que jamais alguém pelejou tanto em defesa da
sua vida, quanto ele se esforça por arrancar-te a tua vida. E por isso
consagra-se exclusivamente à tua ruína; promete que há de oferecer
imensos prémios aos que conseguirem matar-te; e, tanto quanto pode,
impede-te todas as escapatórias, a fim de que acabes por perecer. Portanto,
porque te demoras? Por que motivo não te entregas à fuga com a máxima
celeridade possível?
– Que é isto?, diz David. Aconselhais-me a que, perturbado com esse
temor, tão facilmente dê de mão a tão grande número de coisas santíssimas,
que eu mais prezo do que a própria vida? Que eu fuja da pátria, a cujo
serviço tantas vezes me pus? Que me aparte do monte do Senhor? Que
interrompa o culto da santíssima religião?
– É força que cedas às circunstâncias, dizem eles, a fim de recuperares
tudo isso, quando vier o momento oportuno. É que, caso contrário, serás
despojado de todas estas coisas, juntamente com a perda da tua própria
vida, uma vez que o inimigo é o teu rei e possui os maiores recursos e
aplica-os todos unicamente contra ti, a fim de com maior crueza te matar,
desamparado, pobre e desapercebido.
– É verdade o que dizeis, retruca. Todavia também deveis pensar em
quão maiores e mais fortes são as tropas que tenho em redor de mim.
É que aquele supremo Senhor e Amo dos seres celestiais jamais deixa
sem salutar proteção os Seus. Portanto, uma vez que depositei a minha
esperança no próprio Senhor, cuja palavra e verdade são eternas e imenso e
infinito o poder, por que motivo me aconselhais, pois, a temer os recursos
do desatinado rei? A fugir do vosso monte como uma ave desterrada? E
88 D. JERÓNIMO OSÓRIO

expulsa, demigrem et in externas regiones, in quibus nomen


Domini non sancte colitur, praecipiti fuga contendam?
– Quia, inquiunt, rectus humanae rationis usus cum diuina
lege non pugnat: sapiens uitatio periculi fidem in Domino
locatam non uiolat. Immo, qui, fidei atque pietatis obtentu, sui
custodiam neglegit, caeleste [164] numen offendit summique
Rectoris legem, qui se temptari minime uult, transiliendam
suscipit. At, si fuit aliquod tempus in quo nulla diligentia in
tua salute tuenda, summa possit existimari, hoc profecto est.
Rex enim ardet scelere et furore et homines innumerabiles
dementiae satellites atque ministros habet qui, ut regi satisfaciant,
sanguinem tuum exsorbere desiderant. Est enim hoc in illis
penitus insitum qui pietatem minime colunt, ut in rebus honestis
atque salutaribus principum imperia impudentissime recusent,
in turpibus autem atque pestilentibus se festinanter inferant et
ostentent; et quidquid fuerit imperatum, incredibili sedulitate
etceleritate conficiant.
– Quid?, inquit Dauid. Nihil omnino ius et aequum ualebit?
Nulla recte factorum memoria in hominibus a me seruatis
residebit?
– Nullam, inquiunt, opem tibi, ubi regis animus a te fuerit
alienus, poteris a uirtutis tuae recordatione polliceri. Nam, ubi
rex humanitatem exuerit, omnes qui illi operam nauauerint
efferabuntur, ita ut nullam officiorum memoriam ullo pacto
retineant. Quod nunc in istis qui tibi necem moliuntur cernere
licet. Arcus enim sceleris et immanitatis intendunt; sagittas
mortiferas neruis apponunt; tenebras obseruant, ut homines
iustos, nihil hostile suspicantes, interimant. Fundamenta
interim rei publicae conuelluntur, leges enim contemnuntur,
iura uiolantur, iudicia constuprantur, mores et instituta
peruertuntur, omnis antiqui officii memoria conticescit.
In tanta porro communium rerum perturbatione, iustus
quid geret? Qua ratione sibi turbulentissimae tempestatis
effugium comparabit? Qua spe uitam in tanta rerum acerbitate
moderabitur? Optima certe atque firmíssima, in Deum enim
semper intuebitur nec oculos umquam ab Illius immensa
benignitate deiiciet. Cernet enim mente summum illum
Dominum in templo Suo considere, ut Suorum preces
exaudiat; in caelo sedem stabilem atque sempiternam locare,
ut ius aequabile cunctis gentibus administret, ut cuilibet pro
merito uel praemium uel poenam constituat. Non neglegit
enim res humanas; nihil Illum latere potest; nihil tenebris
OPERA OMNIA TOMO IV 89

a, com precipitada fuga, dirigir-me para países estrangeiros, nos quais o


nome do Senhor não é santamente adorado?
– Porque, respondem eles, o ponderado uso da razão humana não se
opõe à lei divina: o sensato fugir do perigo não atenta contra a fé posta
no Senhor. E até quem despreza a sua segurança pessoal com pretexto
da fé e da religião, [164] atenta contra o poder divino e expõe-se a
transgredir a lei do supremo Criador, que não quer ser tentado. Mas se
existiu alguma ocasião em que nenhuma diligência se pôde considerar
excessiva na defesa da tua segurança, sem dúvida que é esta. É que o rei
está possesso de loucura criminosa e tem um sem número de homens
para segui-lo e servi-lo no seu desatino, os quais, para agradarem ao
rei, vivamente desejam tragar o teu sangue. De facto, naqueles que não
respeitam a religião está profundamente entranhado recusarem com total
descaro as ordens dos príncipes nos assuntos honestos e salutares, mas
lançarem-se e oferecerem-se com grande presteza nas ações infames e
perversas e, com incrível desvelo e rapidez, levarem a cabo tudo que
lhes for ordenado.
– Pois quê?, disse David. A justiça e o direito não valerão absolutamente
nada? Nos homens que eu poupei não subsistirá memória alguma das
minhas boas ações?
– Quando não gozares da amizade do rei, retorquem eles, não poderás
contar com alguma ajuda que resulte da lembrança da tua virtude. É que,
quando o rei se despojar dos sentimentos de humanidade, hão de volver-
se feras os que estão ao seu serviço, de tal maneira que de forma alguma
conservam qualquer lembrança das suas obrigações. Tal como pode ver-
se agora nesses que se empenham em matar-te. Na verdade, retesam o
arco do crime e da desumanidade; colocam nas cordas frechas mortíferas;
tomam em atenção as trevas, para matarem os homens justos, que não
suspeitavam de nenhum ato hostil. Entretanto, arrancam-se os alicerces
do Estado, pois as leis são votadas ao desprezo, o direito é violado, os
julgamentos desrespeitados, os costumes e as instituições pervertem-se,
apaga-se toda a lembrança do antigo sentido do dever. Ora, no meio de
tão grande perturbação dos negócios públicos, que fará o justo? De que
maneira alcançará refúgio na desatada tempestade? Por entre tão grandes
calamidades, que esperança há de guiá-lo? Uma que é certa e muitíssimo
firme, pois há de ter sempre os olhos postos em Deus e jamais desviá-los
da Sua imensa bondade. É que com o espírito verá que aquele supremo
Senhor está assentado no Seu templo, para escutar as preces dos Seus;
no céu estabelece uma morada estável e eterna, para repartir com todos
os povos um direito justo, a fim de dar a cada um o prémio ou o castigo,
em conformidade com os merecimentos. Na verdade não despreza as
coisas humanas; nada se Lhe pode esconder; nada pode ocultar-se-Lhe
90 D. JERÓNIMO OSÓRIO

occultari; nihil omnino ab Illius conspectu remoueri. Oculi


Illius hominum mentes explorant; intimos animorum recessus
animaduertunt; nihil est tam abstrusum et abditum quod non
scrutetur, inspiciat, ponderibus iustis examinet.
– Cur igitur, inquiunt multi, patitur hominem iustum
aerumnis uexari et impium uitae commodis et emolumentis
affluere?
– Quia, inquit, iustum probat et erudit et laboribus
gloriosis exercet, ut eum ampliore praemio atque mercede
remuneret; iniustum uero angoribus frequenter exanimat
atque tandem poenis sempiternis excruciat. Qui igitur
iniquitatem summo studio consectatur atque per uim et
caedem ad opes summas enititur,statumque suum non
caritate et officio, sed ciuium metu stabilire conatur, animam
suam odio immani persequitur. Sibi enim uitam exhaurit; se
ipsum cruentat et lacerat et opera sua fit ut curis tristissimis
intabescat [165] et, dum maxime diuturnam sibi uitam et
status firmitatem pollicetur, tum in illum clades improuisa
atque repentina irruit, hominemque miserum prosternit atque
in sempiternae miseriae regionem praecipitem exturbat. Vt
enim olim quinque ciuitates quae Deum foedissimis factis
uiolabant caelesti incendio conflagrarunt, ita et isti diuino
iudicio, cum se magis florentes atque beatos existimauerint,
subito peruertentur. Demittet enim Dominus in eos ignis
imbrem, qui miseros homines, opibus elatos et inflatos,
quasi laqueis adstringat et incendio repentino sulphuris
obruentur et, ingenti turbine atque procella concussi, funditus
interibunt. Hoc erit tandem praemium impiis, pro furore et
amentia qua flagrabant, cumulatissime persolutum. Iustus
enim Dominus est et actiones iustitiae ualde comprobat,
et facies Illius, in eos qui aequitati operam dant, benigne
respicit, ut improbis ab omni aditu benignitatis exclusis,
bonos bonis sempiternis afficiat.

Saluum me fac, Domine, quoniam defecit sanctus.


Psal. 11

Quo magis est intentus animus hominis sancti in iustitiae


fructum, eo magis admiratur rarissimum esse genus eorum
qui iustitiae studeant, cum plerique mortales hoc unum
certamen suscipiant ut fraudibus et iniuriis reliquos homines
OPERA OMNIA TOMO IV 91

nas trevas; nada de modo algum pode apartar-se da Sua visão. Os Seus
olhos perscrutam os entendimentos dos homens; esquadrinham os mais
íntimos escaninhos das almas; nada existe de tão dissimulado e oculto
que não perscrute, olhe e examine com justa ponderação.
– Por conseguinte, dizem muitos, por que motivo permite que o
homem justo seja atribulado com provações e o ímpio goze de abundantes
comodidades e vantagens?
– Porque, responde ele, põe o justo à prova e ensina-o e aflige-o com
trabalhos gloriosos, a fim de remunerá-lo com um prémio e mercê mais
vultuosos; ao passo que frequentemente atormenta o injusto e ao cabo
castiga-o com torturas eternas. Por consequência, quem com todo o
empenho se entrega à iniquidade e procura conseguir as mais abundantes
riquezas mediante a violência e o assassínio e se esforça por firmar a
sua posição não no amor e no cumprimento do dever, mas no medo dos
concidadãos, está a destruir com cruel sanha a sua alma. É que está a
acabar com a sua própria vida; fere-se e despedaça-se a si mesmo e por
suas próprias mãos consome-se com tristíssimos cuidados [165] e, quando
se promete uma existência de interminável duração e uma situação firme,
então abate-se sobre ele uma imprevista e repentina desgraça, que derriba
o mofino homem e o precipita violentamente na região da sempiterna
desgraça. É que, assim como outrora com celestial incêndio arderam as
cinco cidades que com as mais torpes ações atentavam contra Deus, da
mesma maneira também hão de ser de súbito destruídos pelo juízo divino
esses homens, quando cuidarem que se encontram na maior prosperidade
e ventura. Com efeito, o Senhor fará cair sobre eles uma chuva de fogo,
que como laços abraçará os desventurados homens a quem as riquezas
ensoberbeceram e inflaram, e hão de ser devorados por repentino incêndio
e perecerão por completo subvertidos por voragem e procela imensas. Será
este o abundantíssimo prémio concedido no fim aos ímpios pelo desvario
e desatino em que se abrasavam. É que o Senhor é justo e recompensa
assaz as ações justas, e contempla com bom semblante aqueles que se
empenham na equidade, por forma a recompensar com bens eternos os
bons, excluindo os perversos de qualquer acesso à Sua compaixão.

SALMO 11
Salva-me, Senhor, porque faltou homem santo.

Quanto mais a alma do homem santo presta atenção aos frutos da


justiça, tanto mais se espanta de que seja escassíssima a raça dos que se
consagram com desvelo à justiça, sendo certo que a maioria dos mortais
têm como único empenho avantajarem-se aos restantes homens através
92 D. JERÓNIMO OSÓRIO

superent, et quo quisque callidius dolum machinatur ut


alienas opes domum auertat, eo clarius sapientiae nomen
apud multitudinem acquirat. Cum uero multis rationibus
iniustitia pugnet ut ciues bonis euertat et pestem rei publicae
comparet, tum nulla ratio funestior est ea quae in linguae
uenenatae maledicentia consistit. Ea namque mendacium
concinnat; calumniam struit; bonorum dignitatem falsa infamia
deformat; odia frequenter exsuscitat; innocentibus pericula
taeterrimae necis intendit; uniuersamque rem publicam
perturbat atque tandem exitium communibus rebus infert.
Haec animo considerans rex sanctissimus stupet et, periculi
magnitudine commotus, exclamat, inquiens:
Serua me, Domine, qui solus potes tantam uim malorum
inuicta uirtute reprimere. Cerno enim apud homines pietatis
studium restinctum, fidem uiolatam, ueritatem oppressam, ita
ut nemo sibi possit operam fidelem a suis etiam domesticis
cum fiducia polliceri. Quilibet enim proximum suum astute
decipere conatur; uerborum blanditiis fraudem uersat; aliud
ore profert, aliud intima cogitatione molitur. Itaque nemo
poterit, in tam pestifera hominum perditorum colluuie, sine
graui cura et anxietate consistere. Exscindat tandem Dominus
omnes qui linguae lenociniis in fraudem ciues suos inducunt;
qui eos quos ad se, uerborum dulcedine, allicere nituntur,
erroribus turbulentis inficiunt; qui in ficta religionis specie,
religionem [166] ueram conatibus perditissimis oppugnant;
qui, dum honestatis studium simulant, hominum mores
flagitiorum foeditate contaminant; qui, linguae uolubilitate
nixi, insolentius efferunturet rei publicae principatum
occupare conantur. Sic enim loquuntur:
– Nos, eloquentiae uiribus freti, dominabimur, nullum enim
erit tantum facinus quod non facillime, orationis efficacia,
cum felicitate moliamur. Malas enim causas obtinebimus,
bonas, cum libuerit, euertemus; cum linguae praesidia
parata semper habeamus, quis tandem nobis imperio suo
repugnare poterit?
Haec quidem illi secum statuunt, et ita tandem cum proiecta
audacia tyrannidem in re publica constituunt. Non tamen,
ut sperant, improbi impunitatem scelerum et flagitiorum
licentiam obtinebunt, nec enim numen diuinum in sceleribus
coniuet, neque res Suorum ope Sua nudat, sed, cum est ad
bonorum salutem tempus opportunum, uim Suam admirandis
operibus insignem facit.
OPERA OMNIA TOMO IV 93

de enganos e injustiças, e quanto mais astutamente cada um maquina


embustes para desviar para a sua casa as riquezas alheias, tanto mais
ilustre reputação de sábio adquire entre as turbas. E sendo certo que a
injustiça combate de inúmeras maneiras para desapossar os cidadãos dos
seus bens e aparelha a perdição do Estado, todavia não existe nenhum
procedimento mais funesto do que aquele que se funda na maledicência
de uma língua envenenada. Esta, com efeito, inventa a mentira; urde a
calúnia; com falsas infâmias afeia a dignidade dos bons; frequentemente
faz nascer o ódio; aos inocentes, ameaça-os com os perigos de uma terrível
morte; perturba a totalidade do Estado e, ao cabo, ocasiona a ruína da
comunidade. O santíssimo rei, ponderando nestas coisas, fica varado de
espanto e, impressionado pela grandeza do perigo, brada, dizendo:
Salva-me, Senhor, que és o único que podes com invencível virtude
rechaçar tão grande ímpeto de males. É que eu vejo entre os homens extinto
o zelo da piedade, violada a lealdade, a verdade oprimida, de tal maneira
que ninguém pode esperar confiadamente dos seus próprios domésticos
um trabalho leal. Na verdade, cada um esforça-se por astuciosamente
enganar o seu próximo; mescla o embuste com palavras de lisonja; com
a boca diz uma coisa e no seu íntimo maquina outra. E assim, por entre
tão pestilencial enxurro de homens perversos, ninguém poderá viver sem
forte cuidado e ansiedade. Que enfim o Senhor quebrante todos os que
com as seduções da língua induzem em engano os seus concidadãos;
os que corrompem com erros aqueles aos quais se esforçam por atrair
para si com doces palavras; os que, sob uma aparência de religião, com
perversíssimos intentos hostilizam a verdadeira religião; [166] os que,
enquanto simulam o amor à virtude, com a torpeza das indignidades
pervertem os costumes dos homens; os que, apoiando-se na facilidade
de linguagem, mais insolentemente se ensoberbecem e envidam esforços
para se tornarem senhores do poder. Com efeito, é destarte que falam:
– Nós, confiando nos recursos da eloquência, empunharemos as rédeas do
poder, pois não haverá crime algum tão grande que, mediante a eficácia das
nossas palavras, nós não ponhamos por obra com a maior das facilidades. De
facto, sairemos vitoriosos nas más causas e, quando nos aprouver, ocasionaremos
a perda das boas; uma vez que temos sempre aparelhadas as armas da língua,
quem conseguirá ao cabo a nós se opor com o seu poder?
Decerto é isto o que eles no seu íntimo supõem, e assim com impudente
audácia acabam por estabelecer na pátria a tirania. Todavia, os ímpios
não hão de conseguir, consoante esperam, a impunidade dos seus crimes
e pecados, porquanto nem a divindade fecha os olhos ao pecado, nem
priva da Sua ajuda os assuntos dos Seus, mas, quando o ensejo se mostra
oportuno para a prosperidade dos bons, através de obras admiráveis dá
a conhecer a Sua força.
94 D. JERÓNIMO OSÓRIO

– Nunc, inquit Dominus, exsurgam minimeque patiar diutius


uastitatem pauperibus, qui in fide mei numinis acquiescunt,
inferri. Clamores egentium, qui in me spem habent, auribus
clementer accipio, ut illos e faucibus hominum impiorum
eripiam. Itaque simul et hostes nominis mei suppliciis
afficiam, et supplicibus meis salutem afferam, eosque opibus
sempiternis egregie cumulabo.
Haec quidem Dominus effatur et in eo quod se facturum
ostendit summa fide permanet, ita ut confestim pios
homines spiritu Suo reficiat omnibusque malis expeditos
bonis sempiternis augeat et, pignore diuinae iucunditatis,
ad firmam spem gloriae immortalis exsuscitet. Sed interim
sollicitos habere poterit multos mortales impiorum hominum
fraus et fallendi artificium, quo persuadere nituntur
imperitis se disciplinam tradere dignitate praeclaram, fructu
salutarem, uoluptate periucundam, ita ut qui se ad eorum
exemplum effinxerint sint merito sapientes existimandi,
reliqui uero, qui aliam sectam secuti fuerint, sint ut
homines amentes, ex prudentum coetu et communione
repellendi. Verba namque illorum sunt illustria et promissa
magnifica et ostentatio decoris et honestatis admiranda.
Quis igitur facile poterit coniectura percipere quae sit uera
disciplina? Quae sit eloquentiae summa laus? Aut quibus
notis uerba fucato splendore nitentia a uerissimo splendore
distinguenda sint? Nihil erit facilius! Disciplina namque
hominum scelestorum indulget flagitiis; alit cupiditatem;
non it obuiam sceleri; non resecat libidinem; non coercet
temeritatem; non cupiditatem diuinitatis incendit, sed in
rebus tantum humanis nimis exquirendis immoratur et
in terrenis opibus, ut in bonorum omnium fine, omnibus
modis insistit.
At eloquia diuina purissima sunt; nullum flagitii commercium
admittunt; omnes cupiditatis fibras euellunt; castimoniam
seuere sanciunt; iustitiae sanctitatem minime de statu conuelli
patiuntur; ad hominum caritatem mentes humanas incitant;
et faciunt denique ut mortales immortalitatis amore flagrent
omnique ratione ad caeli studium rapiantur. [167] Est enim
lex Domini puritatis splendore clarissima, praeceptorum
integritate sanctissima, caritatis ardore flagrantissima ut
nihil possit ardentius excogitari. Tota denique ignea est,
animos ab omni sordium contagione purificans et studio
rerum caelestium atque diuinarum uehementer inflammans.
OPERA OMNIA TOMO IV 95

– Agora, diz o Senhor, me levantarei e não tolero que por mais tempo
sejam vítimas da destruição os pobres que buscam o repouso na minha
proteção. Compassivo escuto os brados dos necessitados que em mim
depositam a esperança, por forma a arrancá-los das fauces dos homens
ímpios. E por isso, do mesmo passo hei de atormentar com suplícios os
inimigos do meu nome, e oferecer a salvação aos que humildemente me
rogam, enchendo-os de extraordinárias riquezas eternas.
Assim fala o Senhor e mantém-se sumamente fiel àquilo que dá a
conhecer que há de realizar, de tal maneira que de imediato com a Sua
inspiração e espírito encoraja os homens piedosos, e, livrando-os de
todos os males, acrescenta-os com bens sempiternos e, com o penhor da
divina alegria, desperta-os para a firme esperança da imortal glória. Mas
entretanto a muitos mortais poderá mantê-los na inquietação o embuste
e a enganosa arteirice dos homens ímpios, com a qual se empenham
por persuadir os inexperientes de que eles ensinam uma doutrina ilustre
pela dignidade, proveitosa pelos frutos e muito agradável pelo prazer, de
tal maneira que aqueles que se amoldarem e seguirem o exemplo deles
devem com justiça ser considerados sábios, ao passo que os demais,
que seguirem outros princípios, devem, como homens desatinados, ser
rechaçados da companhia e comunidade da gente sensata. De facto, as
palavras daqueles homens são brilhantes e magníficas as suas promessas
e admirável o seu aparato de honra e honestidade. Por consequência,
quem poderá facilmente conjeturar qual é a verdadeira doutrina? Qual
é o mais alto merecimento da eloquência? Ou com que traços devem
destrinçar-se da luz da verdade as palavras que resplandecem com um
brilho falso? Não haverá coisa mais fácil! Com efeito, a doutrina dos
homens ímpios é complacente com os pecados; fomenta a cobiça; não
se opõe ao crime; não atalha à sensualidade; não refreia o desatino; não
ateia o desejo da divindade, mas insiste somente na excessiva procura
de coisas humanas e por todas as vias vai empós das riquezas terrenas,
como a meta de todos os bens.
Mas as palavras do Senhor são puríssimas; não toleram nenhuma
associação com a infâmia; arrancam todos os liames da cobiça; prescrevem
estrita probidade; não permitem que a santidade da justiça seja deslocada
da sua posição; incitam os entendimentos humanos à caridade entre os
homens; e, por derradeiro, fazem que os mortais se abrasem no amor
da imortalidade e com todas as veras se sintam arrebatados ao amor do
Céu. [167] É que a lei do Senhor é tão clara pelo esplendor da singeleza,
tão santa pela pureza dos preceitos e tão ardente pelo calor da caridade,
que não pode imaginar-se nada de mais ardente. Finalmente, toda ela é
fogo, que purifica as almas de todo o contágio de sujidade e vivamente as
abrasa no zelo das coisas celestiais e divinas. E, para mais claramente se
96 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Et, ut clarius appareat hoc totum esse diuinae gratiae, et


non soli industriae humanae tribuendum, in humana natura,
qua nihil potest esse fragilius, uirtus diuina perspicitur.
Vt enim argentum in uase fictili conflatum ab omni scoria
ignis ui secretum et liberum splendescit, et quo saepius in
fornace liquefactum in uas terrenum infunditur, eo maiorem
puritatem ex conflatura consequitur, ita caelestis gratiae
splendor in hominis natura, quae quidem tamquam fictile
uas est existimanda, ex diuini amoris ignibus inflammatus,
quo saepius incenditur, eo purius enitescit maioremque in
se uim sempiternae uirtutis ostendit. Nec enim uera uirtus
in uno gradu resistit, sed quotidie exoritur et, cum ad
aliquem gradum honestatis diuinae peruenit, ad altiorem
consequenter adspirat.
Quomodo igitur poterit hominum improbitas diu iustitiam
simulare et sapientiam diuinae legis ementiri, cum nihil
sit in homine diuina gratia uacuo purum et simplex, nihil
non fraudulentum et malitiosum et maleuolentia turpiter
infuscatum et flagitiis innumerabilibus infectum, atque in
dies magis in uitiorum omnium colluuionem deuolutum? At
tamen magnum ex his hominibus periculum multis impendet,
nisi Tu, Domine, Tuis praesentem opem attuleris. Seruabis
Tu quidem eos, quos in fidem recepisti, a tanto uitae
discrimine perficiesque ne electi Tui in errorem pestilentem
inducantur. Nos, inquam, in tam perturbata uiuendi ratione,
a contagione huius pestiferae nationis eripies: erecta namque
circumquaque uolitat impietas, quoties, propter bonorum
paenuriam, homines postremi in re publica dominantur. Erit
igitur, tum uel maxime omnibus qui Te fide et sanctitate
coluerint, elaborandum ut numine Tuo tantum discrimen
salutis effugiant.

Vsquequo obliuisceris.
Psal. 12

Multis incommodis exercentur uiri sancti ut insitae uirtutis


significationem dent et simul animum ardentius excitent ad
opem diuinam implorandam; nullum tamen incommodum
dolentius patiuntur eo quo familiaritate atque iucunditate
numinis diuini ad tempus aliquod exspoliantur. Multa
namque eos sollicitant. Primum quidem opinantur se, propter
OPERA OMNIA TOMO IV 97

reconhecer que isto deve atribuir-se, não apenas à atividade e capacidade


humanas, mas exclusivamente à graça divina, a virtude divina dá-se a ver
na natureza humana, que é a coisa mais fraca que pode existir. É que,
assim como a prata, separada e limpa de toda a escória graças à ação do
fogo, resplandece depois de fundida numa vasilha de barro, e quantas
mais vezes se introduz no forno em estado líquido dentro do vaso de
terra, tanta maior é a pureza que se consegue graças à fusão, da mesma
maneira o esplendor da graça celestial na natureza humana, que deve
considerar-se não mais que uma vasilha de barro, abrasada pelo fogo do
amor divino, quanto mais amiúde se ateia, tanto mais pura reluz e mostra
em si mais eficaz presença da virtude divina. Na verdade, a verdadeira
virtude não permanece num único degrau, mas todos os dias renasce
e, quando se alcandora a algum grau de divina probidade, aspira em
seguida a outro mais elevado.
Por conseguinte, de que maneira poderá a perversidade humana
simular durante algum tempo a justiça e fingir a sabedoria da lei divina,
sendo certo que no homem desprovido da graça divina nada existe de
puro e sincero, nada que não seja embuste e malícia, nada que não esteja
vilmente ensujentado pela malevolência e manchado por infâmias sem
conto, e nada que de dia para dia não se espoje mais no enxurro de
todos os defeitos? Todavia, destes homens há de resultar grande perigo
iminente para muitos, se Tu, ó Senhor, não ofereceres aos Teus o Teu
eficaz socorro. Tu com certeza hás de salvar de tão grande risco de vida
aqueles que acolheste sob a Tua proteção e hás de conseguir que os Teus
eleitos não sejam induzidos em pestilencial erro. A nós, digo eu, que nos
encontramos a viver uma situação tão perturbada, hás de arrancar-nos do
contágio desta raça pestilente: é que a impiedade esvoaça impante por
toda a parte sempre que nas nações, devido à falta de homens bons, os
piores tomam conta do poder. Por conseguinte, todos os que adorarem
com fé e pureza, devem empenhar o seu máximo esforço para, mediante
o Teu divino poder, esquivarem um tão grande risco de salvação.

SALMO 12
Até quando, Senhor, Te esquecerás [de mim ?]

Os varões santos são atribulados com muitos incómodos para darem


mostras da sua arreigada virtude e ao mesmo tempo incitarem mais
ardentemente a sua alma a rogar a ajuda de Deus; todavia, nenhum incómodo
lhes é mais duro de sofrer do que serem privados por algum tempo do prazer
e trato íntimo da divindade. É que são muitas as coisas que os inquietam.
Em primeiro lugar, pensam que, devido às suas infâmias, foram privados do
98 D. JERÓNIMO OSÓRIO

flagitia sua, fuisse diuini spiritus solatio destitutos. Deinde,


cum imbecillitatem suam recognoscunt, casum nimis anxie
reformidant. Tum, desiderio tam admirabilis uoluptatis, quam
fuerant experti, miserrime cruciantur. Accedit ille sensus
acerbissimus, quo intelligunt hostes exsultare gaudio cum
bonos depressos animaduertunt. Opinantur enim [168] fore
sibi facillimam uincendi rationem, cum eos a quibus saepe
superati fuerant ope pristina nudatos esse conspiciunt. Vt
enim, cum Spiritus Sancti munus mentes iucunditate Sua
complet, nihil poterit in terris excogitari ualentius, ita,
cum diuinus spiritus (ut quidem uidetur) abscedit, nihil,
ut opinio est, esse potest imbecillius. Non igitur immerito
sancti homines, cum in hoc statu sunt, dolent et anguntur
et condicionem suam lugubri querimonia lamentantur et a
Deo assidue contendunt ne Se deserat. Hoc est autem,quod
hoc in loco Dauid facit. Vt enim apparet, erat diuino solatio
destitutus. Iacebat igitur sibique displicebat, non ita tamen
ut salutem desperaret, quocirca excitat quantum potest animi
uires Deumque suppliciter orat ne auxilium differat, sibi
namque robur esse non putat ad tantum malum diutius, cum
tanta uitae acerbitate, tolerandum. Ait igitur:
Quousque tandem, Domine, mei memoriam depones?
Quousque faciem Tuam a mente mea remouebis? Equidem,
cum splendore Tui luminis illustrabar, omnes labores et
aerumnas facillime perferebam; omnes dolores et cruciamenta
spiritus Tui iucunditate compensabam. Nunc igitur in tantis
periculis tam firmo praesidio nudatus, quo me conferam?
Quod remedium tantis malis inueniam? Quid faciam ut,
e tenebris emersus, in lucem Tuam aliquando respiciam?
Quamdiu consilia mente uersabo, quibus dolorem, quo
totos dies afflictor, ex animo meo depellam? Quamdiu hostis
immanis et importunus in meis malis insultabit?
Respice, Domine, dolorem quo sum miserabiliter oppressus;
preces meas ad aures admitte; oculis meis lucem Tuam porrige
ne, mortis telo pestifero uulneratus, spem salutis abiiciam;
ne glorietur hostis quod sit de me uictoriam consecutus.
Triumphant enim hostes mei gaudio, quoties me prolapsum
uident. Quid igitur facient, si ruinis extremis oppressum esse
conspexerint? Hostes mei hostes Tui nominis sunt, ut enim
beneficia in me Tua funditus intereant, elaborant. Tantam
igitur gaudiorum materiam illis subtrahe qui sunt potius ui
Tui sanctissimi nominis ab omni conatu repellendi. Quid
OPERA OMNIA TOMO IV 99

refrigério do espírito divino. Em segundo lugar, quando se dão conta da sua


fraqueza, com sobeja angústia se arreceiam de cair. Então são mofinamente
atormentados pelo desejo da espantosa deleitação que experimentaram.
Acresce aquele sentimento pungentíssimo com que compreendem que os
inimigos exultam de contentamento quando vêem prostrados os bons. É que
pensam [168] que o método para vencer há de ser para eles muitíssimo fácil,
quando observam que foram despojados da primitiva ajuda aqueles pelos
quais amiúde foram vencidos. Na verdade, assim como, quando a mercê do
Espírito Santo enche as almas de seu contentamento, é impossível imaginar-
se na terra coisa alguma mais forte, da mesma maneira, quando o Espírito
divino (segundo as aparências) se vai embora, dá visos que nada pode existir
de mais frágil. Por conseguinte, não é sem motivo que os homens santos,
quando se encontram neste estado, se afligem e angustiam e lastimam a
sua condição com chorosos queixumes e incessantemente suplicam a Deus
que não os abandone. Ora, é isto o que David faz nesta passagem. Com
efeito, consoante é manifesto, encontrava-se privado da consolação divina.
Portanto, jazia prostrado e descontente consigo mesmo, porém não tanto que
desesperasse da salvação, razão pela qual incita o mais que pode as energias
do seu espírito e suplicantemente pede a Deus que não protele a Sua ajuda,
porquanto considera que não tem forças para suportar durante mais tempo
um mal tão grande, levando uma vida tão penosa. Por isso diz:
Até quando enfim, Senhor, Te manterás esquecido de mim? Até quando
apartarás o Teu rosto do meu espírito? Na verdade, quando me iluminavas
com o resplendor da Tua luz, com toda a facilidade suportava todos os
trabalhos e provações; com o prazer do Teu espírito compensava todas
as dores e tribulações. Agora, portanto, no meio de tão grandes perigos
e desprovido de tão vigorosa ajuda, para onde me dirigirei? Que remédio
encontrarei para tão grandes males? Que hei de fazer para, saindo das
trevas, algum dia contemplar a Tua luz? Durante quanto tempo revolverei
na minha mente os meios que me permitam expulsar da minha alma a
dor com que todos os dias sou atribulado? Durante quanto tempo o cruel
e duro inimigo há de regozijar-se com os meus males?
Olha, Senhor, para a dor com que mofinamente sou esmagado; dá
ouvidos às minhas preces; oferece a Tua luz aos meus olhos para que,
ferido pelo pestífero dardo da morte, não renuncie à esperança de salvação;
para que o inimigo não se ufane de ter alcançado vitória sobre mim.
É que os meus inimigos celebram alegre triunfo sobre mim sempre que
me veem caído. Portanto, que farão se se derem conta de que me encontro
esmagado pela mais completa ruína? Os meus inimigos são inimigos do
Teu nome, pois esforçam-se para que totalmente pereçam os benefícios
que me fizeste. Por isso, arranca um motivo tão grande para o regozijo
daqueles que antes devem ser impedidos de qualquer ação com a força do
100 D. JERÓNIMO OSÓRIO

igitur faciam? Num spem salutis, quae tota est in clementia


Tua sita, prorsus abiiciam? Nullo modo! Non enim benignitas
Tua est finibus ullis circumscripta nec aditus ad illam
fuit umquam interclusus illis qui ad Te cum fide uigenti
accederent. Tuae igitur benignitatis immensitate fretus,
incedam; animus meus, inexplicabili uoluptate perfusus,
exsultabit; laudes Domini carmine perpetuo celebrabo,
quando postulato meo cumulate satisfecit meamque pietatem
amplissimo praemio munerauit.

Dixit insipiens in corde suo: Non est Deus.


Psal. 13

Non satis habet uir diuinus explicare florentissimum


piorum hominum statum uirtutisque munera diuinitus oblata
recensere, nisi [169] etiam ob oculos ponat extremam eorum
miseriam qui pietatem nefarie uiolant omnesque sanctitates
pro nihilo ducunt. Quod quidem idcirco faciunt uel quia
Deum non putant, uel quod ab Illo res humanas minime
curari censent. Quae quidem est summa dementia et furor
detestabilis et exsecrandus, malorum omnium seminarium
complexu suo continens et in sempiterni cruciatus regionem
animos exturbans. Hos igitur describens, Dauid ait:
Statuit secum uir insipiens, sceleribus uidelicet excaecatus,
Deum non esse. Hac igitur opinione ducti homines,
amentia et furore praecipites, studia et actiones scelerate
contaminant omniaque uitae officia ita peruertunt ut nihil
possit excogitari turbulentius. Cum uero multi sese ad
imitationem eorum qui sceleris huius nefandi principes
exsistunt contulere, nullum est tantum facinus quod non
cum impudentia summa suscipiant. Itaque nullus est inter
illos a quo aliquid boni sperandum sit, cum omnes certatim a
bonis operibus abhorreant et in flagitiis assidue uolutentur.
Dominus e caelo prospexit ut in homines animaduerteret
neminemque uidit, ex illis qui moribus hominum usu
prauo et consuetudine recepti uitam instituunt, qui saperet
Deique praesidium et opem requireret. Omnes simul de
uia deflexerunt, omnes flagitiis intabuerunt; nemo est
qui bonum agat, ne unus quidem reperitur. Non tandem
aliquando homines iniusti sensum aliquem humanitatis
recipient ut intellegat se esse ad iustitiam et officium natos
OPERA OMNIA TOMO IV 101

Teu santíssimo nome. Quer farei pois? Acaso porei de parte a esperança
de salvação que assenta inteiramente na Tua compaixão? De forma
alguma! É que a Tua bondade não está circunscrita por quaisquer limites
nem jamais o acesso a ela foi impedido àqueles que se aproximarem de
Ti com vigorosa fé. Portanto, caminharei apoiado na imensidade da Tua
bondade; a minha alma, inundada por indizível prazer, há de exultar; com
incessante cântico celebrarei os louvores do Senhor, visto que satisfez
abundantemente o meu pedido e com riquíssimo prémio recompensou
a minha piedade.

SALMO 13
O insensato disse no seu coração: “Não há Deus.”

O divino varão não considera que é bastante expor a prosperíssima


condição dos homens piedosos e enumerar as mercês oferecidas pela
divindade, se não apresentar também [169] a extrema infelicidade daqueles
que sacrilegamente transgridem a piedade e têm tudo que é sagrado
na conta de coisa nenhuma. Decerto que assim procedem porque não
consideram que Deus exista ou porque supõem que Ele não se preocupa
com os assuntos humanos. Não há dúvida que esta é a mais rematada
loucura e um desvario abominável e execrável, que encerra dentro de si o
germe de todos os males e que lança as almas na região dos sempiternos
tormentos. Portanto, descrevendo-os, David diz:
O homem ignorante, ou seja, aquele a quem os pecados cegaram,
assenta no seu foro íntimo que Deus não existe. Por conseguinte, os
homens, arrastados por esta opinião, precipitando-se na vesânia e no
desvario, mancham de crime os seus atos e empregos de vida e de tal sorte
pervertem todos os deveres da vida que é impossível imaginar-se algo de
mais perturbado. E quando muitos se consagraram à imitação destes que
se mostram como os cabeças deste sacrílego crime, não existe atentado tão
grande que com a maior das ousadias não cometam. E assim não há entre
eles alguém de quem deva esperar-se seja o que for de bom, uma vez que
todos à porfia se afastam das boas obras e incessantemente se espojam nas
torpezas. O Senhor olhou do alto do céu para observar os homens e, de
entre aqueles que regem a sua existência em conformidade com os costumes
recebidos pelo depravado uso e usança dos homens, não viu nenhum que
conhecesse e apelasse à ajuda e socorro de Deus. Todos do mesmo passo
se desviaram do reto caminho e se mirraram com as infâmias; não existe
ninguém que pratique o bem, não se encontra nem sequer um. Não terão
os homens injustos enfim alguma vez algum sentido de humanidade que
os leve a entenderem que nasceram para a justiça e para o cumprimento
102 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et ita considerent, cum iniquitatem sectantur et humanam


societatem uiolant, se contra naturam facere et ita proprium
statum labefactare et infringere?
Quod tantum abest ut animo secum reputent ut potius
hominum fidelium nationem, qui se mihi commiferunt,
quasi cibum, comedendam, et omni crudelitate lacerandam,
existiment, neque uitae subsidium a Dei benignitate, sed
ab insita prauitate requirendum arbitrentur. Itaque opes
suas iniuriis augent et accumulant et Dei opem minime
flagitandam censent. Atqui tandem flagitiorum conscientia
(uelint, nolint) oppressi, trepidabunt et in rebus aduersis
nullum habebunt firmum uitae fubsidium, quia Deo, bonorum
omnium fonte, neglecto, mendacium et uanitatem acerrime
consectati sunt. At iusti, cum impii funditus euersi corruerint,
in securitate summa cosistent, quia in Domini patrocinio
atque tutela delitescunt. Et tamen, cum homines impii
essent amentissimi, ueram sapientiam ludibrio habuerunt
et eos qui praesidio diuino nitebantur, ut homines mentis
expertes, irriserunt: consilium inopis et afflicti deridendum
existimatis, o miseri, quia ueritatem mendacio praetulit et
opes inanes contempsit, ut ope diuina firmaretur Deique
gratia et benignitate statum suum stabiliret. Nunc igitur
poenas amentiae debitas sustinete et Illius sapientiam, quam
petulantissime derisistis, cum sempiterno inuidiae cruciatu,
in uestris malis admiramini.
O miserandam seruitutem, qua mortales oppressi, minime
cernunt quae sit bene beateque uiuendi ratio, et ideo pro
ueris bonis inania complectuntur, ut ita suppliciis aeuo
sempiterno crucientur. O quis iam uideret oculis illam
felicissimam libertatem quam Dei Filius terris allaturus [170]
est, cum mundi principe, qui nunc tenet mortis imperium,
profligato, noua lux in terris orietur, qua uidebunt homines
quid fugiendum sit, quid modis omnibus adsciscendum,
quae miseriam sempiternam inuehant, quae rursus uitam
beatam sempiternisque bonis affluentem efficiant, quis sit
miseriae sempiternae machinator, quis sempiternae salutis
Architectus, ut miseriae totius effectorem odio persequantur,
salutis Auctorem amore ardentissimo complectantur, ut sic
demum, seruitutis iugo ab Israelis ceruice depulso, summo
gaudio uera Iacobi progenies exsultet et Israel, quem non caro
et sanguis, sed fides et pietas, in stirpem tantae nobilitatis
inseuit, laetitia mirabiliter efferatur.
OPERA OMNIA TOMO IV 103

do dever e dessarte se capacitarem de que, quando praticam a iniquidade


e transgridem a sociabilidade humana, estão a proceder contra a natureza
e desse modo a abater e a destruir a sua própria condição?
Estão tão longe de refletirem consigo mesmos que antes consideram
que devem comer, como se fosse alimento, e com toda a crueldade
estraçalhar, a raça dos homens fiéis, que a mim se confiaram, e não pensam
que cumpra pedir-se à bondade de Deus amparo para a vida, mas sim
buscá-lo na arreigada perversidade. E por isso acrescentam e aumentam
as suas riquezas através das injustiças e consideram que não deve pedir-
se a ajuda de Deus. E contudo ao cabo, esmagados pela consciência das
infâmias (queiram-no ou não), hão de sentir-se agitados pelo medo e na
adversidade não terão nenhum firme apoio para a vida, porque tendo
posto Deus de parte, fonte de todos os bens, seguiram intrepidamente
a mentira e a vaidade. Os justos, porém, quando os ímpios, totalmente
abatidos, se arruinarem, hão de gozar da mais sólida segurança, porque
se abrigam sob a tutela e defesa do Senhor. E mesmo assim, uma vez
que os homens ímpios eram totalmente loucos, zombaram da verdadeira
sabedoria e ridicularizaram como pessoas privadas de entendimento
as que se apoiavam na ajuda divina: mesmo assim pensais, ó mofinos,
que deveis rir-vos da decisão do pobre e atribulado, porque antepôs a
verdade à mentira e desprezou as vãs riquezas para fortalecer-se com a
ajuda de Deus e dar como esteios da sua condição a graça e bondade
divinas. Por consequência, suportai agora as penas devidas à loucura e,
nos vossos males, juntamente com a eterna tortura do ódio, pasmai diante
da sabedoria d' Ele, da qual com enorme petulância zombastes.
Oh lastimável escravidão, pela qual esmagados os mortais não enxergam
qual é a regra de viver bem e santamente, e por isso tomam por bens
verdadeiros coisas vãs, para assim virem a ser eternamente atormentados!
Oh, quem já divisasse com seus olhos aquela venturosíssima liberdade que
o Filho de Deus [170] há de trazer à terra quando, rechaçado o príncipe
do mundo que agora detém o senhorio da morte, nascer na terra uma luz
nova, graças à qual os homens hão de ver o de que cumpre fugir-se, o
que por todas as vias deve adotar-se, as coisas que acarretam a desgraça
eterna e as que proporcionam a vida bem-aventurada e abundosa de
bens sem fim, quem é o responsável pela sempiterna infelicidade e quem
é o Autor da salvação eterna, por forma a sanhudamente hostilizarem
o causador de toda a desventura, com ardentíssimo amor abraçarem o
Autor da salvação, para que enfim assim, depois de repelido da cerviz
de Israel o jugo da servidão, a verdadeira linhagem de Jacob se regozije
com a mais completa alegria e se encha de espantoso contentamento o
Israel, ao qual não a carne nem o sangue, mas a fé e religião enxertaram
numa estirpe de tão grande nobreza!
104 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Domine, quis habitabit in tabernaculo Tuo?


Psal. 14

Hoc carmine explicatur eorum uirtus qui sunt in tabernaculum


Domini intromittendi. Non autem hoc in loco tabernaculum
operis humanis exstructum, sed caeleste atque sempiternum,
sed quod fuit antiquo legis tabernaculo designatum, cogitandum
est. In illud namque multi flagitiis cooperti ingredi solebant,
in hoc autem nemo, nisi qui sancte uitam traduxerit, introibit.
Itaque Dauid sic Deum alloquitur:
Domine, quis sedem stabilem atque sempiternam in
tabernaculo Tuo obtinebit? Quis habitabit in illo caelesti monte,
in quo Tuae maiestatis amplitudo in solio clarissimo collocata
a mentibus beatis conspicitur? Non is certe qui duplici animo
est et iniuriis opes suas augendas atque firmandas existimat,
sed qui mente pura et integra uitam degit; qui iustitiam colit;
qui ueritatem loquitur et non aliud uerbis enuntiat quam id
quod animo et cogitatione amplectitur; qui stat promissis et
fidem quam dedit egregie praestat; qui non machinatur malum
necessario suo; et maculam dedecoris non inurit proximo suo;
qui hominum dignitatem non opibus, sed uirtutibus expendit, ita
ut, qui, propter flagitia, est ignominia sempiterna dignissimus,
quamuis magnas opes habeat, ab illo contemnatur, illosque
solum omni honore dignos deputet qui Deum timent uitamque
religione sanctissima moderantur; qui tanta fide ius iurandum
conseruat ut, quamuis ex eo damnum aliquod sibi subeundum
sit, nihil tamen immutet; qui pecuniam suam fenori non dat nec
ob iudicandum pecuniam accipit, ut contra ius ab innocente
causam abiudicet. Qui haec omnia pura mente studioque
ardentissimo conseruat, numquam de statu suo migrabit, sed
gloriam nullis saeculis interituram obtinebit.

Conserua me, Domine, quoniam speraui in Te.


Psal. 15.

Carmen hoc diuinum, quamuis statum sanctorum hominum


laudibus diuinis exornet, [171] illum tamen auctorem iustitiae
nostraeque salutis architectum praecipue celebret, quem
Dauid ita loquentem inducit:
Conserua me, Domine, quoniam in Te solo omnem spem
salutis collocatam semper habui. Dixi Domino: Deus meus es
OPERA OMNIA TOMO IV 105

SALMO 14
Senhor, quem habitará no Teu tabernáculo?

Neste salmo mostra-se a virtude daqueles que devem ser introduzidos no


tabernáculo do Senhor. Ora, neste texto não deve pensar-se num tabernáculo
erguido por obra humana, mas no celestial e eterno, que foi o simbolizado
pelo antigo tabernáculo da lei. É que naquele costumavam entrar muitos
cobertos de torpezas, ao passo que neste só entrará quem tiver levado uma
vida santa. Por isso David dirige-se a Deus nos termos seguintes:
Senhor, quem alcançará no Teu tabernáculo um lugar estável e eterno?
Quem há de habitar naquele monte celestial no qual os espíritos bem-
aventurados contemplam a grandeza da Tua majestade assentada num sólio
resplandecente? Não certamente aquele que possui uma alma dissimulada
e considera que deve aumentar e defender as suas riquezas mediante a
injustiça, mas o que vive a sua vida com alma pura e isenta; o que respeita
a justiça; o que fala a verdade e não diz com as palavras nada de diverso do
que no seu íntimo e com o pensamento cogita; o que cumpre as promessas
e se mantém rigorosamente fiel à palavra que deu; o que não maquina o mal
contra o seu amigo e não infama com o desdouro o nome do seu próximo; o
que não avalia a dignidade dos homens pelas riquezas, mas pelas virtudes, de
tal maneira que, aquele que, devido às indignidades, é totalmente merecedor
de eterna ignomínia, ainda que possua grandes riquezas, é por ele votado
ao desprezo, e considera que apenas são dignos de toda a honra aqueles
homens que temem a Deus e governam a sua vida em conformidade com
a santíssima religião; o que respeita com tão grande escrúpulo a santidade
dos juramentos que, ainda que em razão disso deva incorrer em alguma
contrariedade, mesmo assim em nada altera o que jura; o que não empresta
dinheiro a juros nem, ao julgar, aceita peitas, a fim de, violando a lei, privar
o inocente dos seus direitos. O que, com espírito puro e ardentíssimo zelo,
respeita tudo isto, nunca será arrancado da sua condição, mas alcançará a
glória que há de durar pelos séculos dos séculos.

SALMO 15
Guarda-me, Senhor, porque eu esperei em Ti.

Este divino salmo, embora condecore com extraordinários louvores


a condição dos homens santos, [171] celebra sobretudo aquele autor da
justiça e responsável pela nossa salvação, ao qual David apresenta a falar
do modo seguinte:
Guarda-me, Senhor, porque sempre depositei unicamente em Ti toda
a esperança de salvação. Eu disse ao Senhor: Tu és o meu Deus. É que
106 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Tu. Nec enim pecuniam ueneratus sum, neque uoluptatem in


diuina sede reposui, neque humanam dignitatem et gloriam,
ut summum bonum, exquisiui, sed Te solum amaui, Te secutus
sum, Tibi placere flagrantissimo studio concupiui. Tu enim es
salutis meae parens, iucunditatis effector, dignitatis architectus,
diuitiarum largitor: omnia denique bona, quorum cupiditate
incensus sum, in Tua benignitate constituta sunt, ita ut nihil sit
mihi praeterea requirendum. Adde quod reliqua omnia, quae
bona nominantur, sunt inania, fluxa et interitura, ea uero quae
numine Tuo continentur uera, constantia, immortalia. Quem
ergo alium Deum adsciscam? Quod aliud numen intuebor?
Quod mihi, praeter Te, praesidium uitae constituam? Sed hoc me
sollicitum habet quod sit factu difficillimum ut, quemadmodum
desidero, liceat mihi hanc mentem meam operibus indicare,
cum mea bona in fructu numinis Tui redundare nullo modo
possint. Tu enim es summus Dominus atque beatissimus et
omnia, quae super subterque sunt, potestate immensa et infinita
complecteris. Ad statum Tuum nihil potest accedere nec ex illo
Tibi quidquam detrahi potest. Laudes humanae non possunt
ullo modo dignitatem Tuam amplificare, quemadmodum neque
contumeliae splendorem illius obscurare, cum uniuersum genus
humanum in conspectu Tuo neque pulueris quidem exigui instar
obtineat. Quid ergo faciam?
Vnum restat opus quod Tibi cordi futurum scio, ut
uiros sanctos, qui in terra uersantur, qui animi excellentis
altitudine, opibus humanis neglectis, ad diuinas adspirant,
summo studio et beneuolentia prosequar; firmo praesidio
muniam; monitis meis, in Tui nominis studium incitem; et
amore Tui sanctissimi nominis inflammem. Hos enim diligis;
hos ad Te allicis eosque patria benignitate complecteris;
et, cum bonitatis Tuae proprium sit bona Tua liberalissime
communicare, nullum officium Tibi gratius esse poterit eo
quod ad Tuum nomen multos eiusmodi filios adiungit. Eos
igitur qui te amant mecum foedere sanctissimo constringam
et illorum consortium repellam qui pro Deo uero numina
commenticia uenerantur, deorum multitudinem adsciscunt
et accelerant ut diis alienis sacra conficiant. Libationes
illorum ad uictimarum sanguinem oblatas exsecrabor; eorum
nomina, quibus homines miseri supplicant, numquam ore
meo proferam; illorumque mentionem numquam oratione mea
fieri sustinebo. Colant alii suas religiones; caerimonias patrias
obseruent; aliae nationes deos sibi alios adsciscant, quos
OPERA OMNIA TOMO IV 107

nem reverenciei o dinheiro, nem coloquei o prazer na morada divina,


nem procurei as dignidades humanas e a glória como bens supremos, mas
só a Ti amei, a Ti segui, a Ti, com ardentíssimo zelo, desejei comprazer.
É que Tu és o progenitor da minha salvação, o causador da alegria, o
autor da dignidade, o distribuidor das riquezas: numa palavra, da Tua
bondade dependem todas as coisas com cujo desejo me abraso, de tal
maneira que para além delas de nada mais sinto a falta. Acresce que
tudo o resto a que se dá o nome de bens, são coisas vãs, passageiras e
perecíveis, ao passo que são verdadeiras, firmes e imortais aquelas que
se encerram no Teu seio divino. Portanto, que outro Deus hei de aceitar?
Em que outra divindade porei meus olhos? Que outra proteção, além da
Tua, hei de estabelecer para a minha vida? Mas causa-me inquietação o
ser muitíssimo difícil conseguir que, da mesma maneira que o desejo, me
seja concedido mostrar mediante obras esta disposição do meu espírito,
uma vez que é impossível que os meus bens redundem em proveito da
Tua divindade. É que Tu és o supremo e bem-aventuradíssimo Senhor
e com Teu imenso e infinito poder abarcas tudo que existe em cima e
por baixo da terra. À Tua condição nada pode acrescentar-se nem dela
se pode subtrair seja o que for. Os louvores humanos de forma alguma
podem adequar-se à Tua dignidade, da mesma maneira que os insultos
não podem obscurecer-lhe o resplandecente brilho, uma vez que na Tua
presença a inteira raça humana não vale sequer um pouco de pó. Por
conseguinte, que farei?
Resta uma única obra, que sei que há ser-Te agradável: com o máximo
desvelo e boa vontade acompanhar os varões santos que vivem na terra
e que, pela excelente elevação dos seus sentimentos, desprezando as
riquezas humanas, aspiram às divinas; protegê-los com firme ajuda; com
os meus conselhos, incitá-los ao zelo do Teu nome; e inflamá-los no
amor do Teu santíssimo nome. É que a estes, Tu os amas; a estes, para
Ti os atrais e os abraças com paternal bondade; e, sendo próprio da Tua
bondade repartir com a máxima liberalidade os Teus bens, nenhum dever
Te poderá ser mais grato do que este que junta ao Teu nome muitos filhos
desta espécie. Por conseguinte, mediante um vínculo santíssimo hei de a
mim ligar estes que Te amam e repelir o trato com aqueles que em vez
do verdadeiro Deus adoram falsas divindades, adotam uma multidão de
deuses e se apressam em prestar culto a deuses alheios. Hei de abominar
as libações por eles oferecidas diante do sangue das vítimas sacrificiais;
nunca a minha boca há de proferir os nomes desses aos quais os mofinos
homens dirigem súplicas; e nunca tolerarei que as minhas palavras a
eles façam referência. Que outros cumpram os rituais dessas divindades
e respeitem as cerimónias tradicionais; que outros povos adotem para si
outros deuses, aos quais prestem culto segundo o ritual do seu povo e,
108 D. JERÓNIMO OSÓRIO

gentis ritu uenerentur et, pro regionum diuersitate, diuersa


sacra procurent; a maioribusque suis traditas ineptissime
sanctitates, quasi hereditatem, summo studio tueantur: at
hereditas mea Dominus semper erit; hoc erit patrimonium
[172] meum praeclarissime constitutum; hoc sacrificii mei
iucundissimum poculum atque libamentum.
Nec erunt irritae preces meae. Tu namque, Domine,
hereditatis meae sortem praesidio Tuo stabiliendam suscepisti
ne umquam labaret, sed potius aucta et amplificata permaneret.
Dimensio namque illius in fertili et opima tellure et in fundis
pulcherrimis obuenit. Itaque hereditas mea mihi pulchritudine
mirabiliter excellit. Non enim opibus humanis, sed diuinis,
continetur, nec in uno genere nationis, sed in omnium
hominum, qui cum iustitia uiuunt, fide et officio consistit, ita
ut praeclarissima sit et in fines orbis terrarum diffundatur.
Nec enim quidquam iustitia praeclarius esse potest et, cum
Dei benignitas angustis Iudaeae finibus inclusa non sit,
consequens est ut omnes orbis terrarum regiones splendore
illius collustratae sint. Gratias agam Domino: cuius consilio
firmatus omnes meas actiones feliciter administraui, qui etiam
nocte intimos meos sensus instruxit nec umquam spiritus Sui
monita a uoluntate mea remouit. Semper enim aures aperui
et sensus excitaui ut uerba Illius exciperem et praeceptis
alacriter obtemperarem. Proposui semper Illum in conspectu
meo, numquam enim a latere meo discedit, ut me fulciat
ne concidam aut uacillem. Idcirco animus meus in summa
semper iucunditate uersatur; gloria mea, quae numine meo
continetur, exsultat; et corpus etiam meum, cum occiderit et
uita functum esse uidebitur, cum firmissima spe decumbet.
Breui namque in uitam excitabitur nec umquam postea mortis
ullum aculeum subibit. Nec enim, Domine, animum meum
infima regione deseres, sed illi uictoriam contra rectores
tenebrarum, contra inferos, contra Satanae copias, cum gloria
summa concedes, et corpus huius sancti Tui, cuius meritis
ab ira deduceris, ab omni corruptione uindicabis.
Perficies deinde ut uoluntas tua manu mea dirigatur, quae
quidem est hominum uita, est animorum summa uoluptas, est
bonorum decus excellens atque sempiternum. Instrues itaque me
uia uitae, quam illis, qui se mihi dediderint, aperiam; cumulabis
me gaudiis, quorum pios homines participes efficiam; me
dextera tua in decore summo collocabis, ad cuius sempiternam
societatem eos, qui sese ad nomen meum contulerint, euocabo,
OPERA OMNIA TOMO IV 109

de acordo com a diversidade das regiões, pratiquem diversas cerimónias


religiosas; que com o máximo escrúpulo respeitem os totalmente ineptos
cultos, transmitidos como uma espécie de herança pelos seus maiores: a
minha herança, porém, será sempre o Senhor; este será o meu património
[172] nobilissimamente instituído; esta a agradabilíssima taça e libação
do meu sacrifício.
E os meus rogos não hão de ser inúteis, pois Tu, Senhor, decidiste
fortalecer com a Tua proteção a sorte da minha herança para que ela nunca
ameaçasse ruína, mas antes fosse em crescimento e aumento. De facto,
a medida dela calhou em terras férteis e produtivas e em propriedades
muito formosas. Por isso a minha herança avantaja-se-me em formosura. É
que não se cifra em riquezas humanas, mas nas divinas, nem numa única
raça, mas assenta na fé e cumprimento do dever de todos os homens que
vivem com justiça, de tal maneira que é muitíssimo ilustre e se espalha
pelos confins da terra. Na verdade, não pode existir nada de mais ilustre
do que a justiça e, sendo certo que a bondade de Deus não se encontra
limitada pelas estreitas fronteiras da Judeia, segue-se como consequência
que todas as regiões da terra são iluminadas pelo Seu resplandecente
brilho. Agradecerei ao Senhor: apoiando-me nos Seus conselhos, levei
a cabo com êxito todos os meus atos, o qual também durante a noite
iluminou os meus pensamentos íntimos e jamais aparta da minha vontade
os avisos do Seu espírito. É que eu sempre abri os ouvidos e incitei os
sentidos a acolherem as Suas palavras e de bom grado acatei os seus
preceitos. Sempre O coloquei na minha presença, pois nunca se aparta do
meu flanco, para me amparar e não permitir que eu caia ou vacile. Por
isso a minha alma está sempre mergulhada no máximo contentamento;
regozija-se a minha glória, que se encerra na minha natureza divina; e
também o meu corpo, quando morrer e parecer que deixou esta vida, há
de cair apoiado em firmíssima esperança. Com efeito, em breve há de
ressuscitar e depois disso jamais há de sentir algum aguilhão da morte.
É que, ó Senhor, não abandonarás a minha alma na mais profunda das
regiões, mas, com a glória suprema, hás de conceder-lhe a vitória contra
os amos das trevas, contra os infernos e contra as hostes de Satanás, e
isentarás de toda a corrupção o corpo deste Teu santo, mediante cujos
merecimentos Te apartarás da ira.
Em seguida, hás de fazer que a Tua vontade seja dirigida pela minha
mão, que é certamente a vida dos homens, e é o prazer supremo das
almas, e é a excelente e eterna glória dos bons. E assim hás de prover-me
com o caminho da vida que eu hei de abrir para aqueles que a mim se
dedicarem; hás de encher-me com as alegrias de que farei participarem
os homens piedosos; com a Tua destra hás de guindar-me à mais alta
glória, para a qual chamarei aqueles que se consagrarem ao meu nome, a
110 D. JERÓNIMO OSÓRIO

ut mecum uita diuina fruantur, uoluptatem summam percipiant


et gloria sempiterna circumfluant.

Exaudi, Domine, iustitiam meam.


Psal. 16

Instat precibus assiduis et ardentibus Dauid, ita ut


oratio non mediocrem animi langorem et afflictationem
significet. Ait enim:
O Domine, cuius munere et benignitate mea iustitia
continetur, in me conseruando tuere beneficium Tuum.
Non enim uiribus meis, sed gratia Tua ex uitiorum tenebris
emersi, nec insitae a natura uirtutis meritis, sed amplitudine
Tuae bonitatis, iustitiae Tuae donum adeptus sum, ita ut,
cum mihi remedium in aduersis rebus attuleris, sis lumen
clarissimum operibus Tuis allaturus. Percipe igitur orationem
[173] meam; praebe clementer aures Tuas precibus meis, quas,
ut cernis, non ficte et simulate, sed uere atque tota mente
supplex adhibeo. Hominum iudicium est tenebris obscuratum,
maleuolentia deprauatum, calumniis inuersum hominumque
potentium gratia corruptum, quo fit ut nemo de me recte
iudicet, sed multi, contra ius et fas, nomini meo insignis
infamiæ dedecus inurant. Reliquum est ut Te solum, penes
quem est summa ueritas, appellem, et a solio iuris sempiterni
summa contentione postulem ut ius meum in lucem proferat
et oculi Tui aequitatem, qua nitor et confido, perspiciant. Tu
namque cor meum iustis ponderibus examinasti; Tu nocturnis
etiam tenebris animi mei puritatem comprobasti; Tu me, quasi
aurum, quod igne conflatur, aerumnis explorasti et nullam
fraudis et malitiae scoriam deprehendisti.
Semper enim uerba mea cum mente mea consentient
neque secus loquar quam sententia in animo penitus infixa
monet. Cum enim intellegam Te mendacio offendi atque
ueritate placari, operam do ne ex ore meo uerbum ullum
excidat quod a ueritate parumper abhorreat. In humanis
autem actionibus id summa uigilantia prouidendum statuo
ne umquam a uerbis Tuis discedam institutisque Tuis
eruditus uias illius tyrani sempiterni, qui est humanae salutis
euersor, effugiam. Quod tamen nullo modo absque praesidio
Tui numinis praesentis efficiam: uiae sunt lubricae, ita ut
nemo, se ipso nixus, queat uestigium stabilire. Tu igitur,
OPERA OMNIA TOMO IV 111

fim de que compartilhem comigo de uma vida divina, desfrutem do mais


elevado prazer e abundantemente gozem da glória que não tem fim.

SALMO 16
Ouve, Senhor, a minha justiça.

David pede com incessantes e apaixonados rogos, por tal forma


que as suas palavras exprimem um grande pesar e aflição da sua
alma. Com efeito, diz:
Oh Senhor, em cuja mercê e bondade se encerra a minha justiça, salvando-
me proteges o Teu benefício! É que não foi mediante as minhas forças,
mas pela Tua graça que eu saí das trevas dos pecados, nem foi através dos
merecimentos da virtude implantada pela natureza, mas graças à grandeza
da Tua bondade que eu alcancei o dom da Tua justiça, de tal maneira
que, quando me ofereceres remédio na adversidade, estarás a iluminar
brilhantemente obras Tuas. Por conseguinte, acolhe [173] as minhas palavras;
escuta compassivo os meus pedidos, que, como vês, suplicantemente Te
faço, não de modo fingido e dissimulado, mas com todas as veras da minha
alma. O juízo dos homens foi obscurecido pelas trevas, desfigurado pela
má vontade, pervertido pelas calúnias e corrompido pela influência dos
homens poderosos, sucedendo assim que ninguém me julga com retidão,
mas muitos, contra o que é justo e de lei, lançam sobre o meu nome o
labéu de uma enorme infâmia. Resta que só a Ti acuda como Aquele que
tem entre as mãos a suprema verdade, e com o máximo empenho solicite
do trono do eterno direito que publicamente dê a conhecer o meu direito
e que os Teus olhos reconheçam a equidade em que me apoio e confio. É
que Tu avaliaste com justa ponderação o meu coração; Tu mesmo nas trevas
da noite Te certificaste da minha inocência; Tu puseste-me à prova com
tribulações, como o oiro que é acendrado pelo fogo, e não me descobriste
nenhuma escória de engano e malícia.
Na verdade, as minhas palavras estarão sempre em consonância com
o meu espírito e não expressarei por palavras senão as opiniões que se
encontram fundamente gravadas na minha alma. É que, porque me dou
conta de que a mentira Te ofende e a verdade Te apraz, ponho todo o
meu empenho em que da minha boca não saia palavra alguma que em um
ápice se desvie da verdade. Ora, tenho para mim que nas ações humanas
devo providenciar com o máximo cuidado no sentido de jamais me apartar
das Tuas palavras e, doutrinado pelos Teus ensinamentos, esquivar-me dos
caminhos daquele eterno tirano que é o destruidor da salvação eterna.
Algo que todavia de forma alguma levarei a cabo sem a ajuda do Teu
eficaz poder divino: os caminhos são escorregadios, de tal maneira que,
112 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Domine, firma gressus meos in semitis Tuis, ne nutent et


labantur pedes mei. In omnibus meis curis et angoribus
unum remedium praesentissimum semper expertus sum,
quod est in oratione mea, qua ad clementiamtuam adeo,
constitutum. Numquam igitur mihi deest uel in morbis
medicina, uel in periculis auxilium, uel in fletu solatium, uel
in iuris defensione testimonium, uel in inopia subsidium.
Numquam preces rneae sunt irritae, sed, cum primum
inclamo, clementer exaudis, Domine.
Hoc igitur oro et obtestor ne umquam me fructu tantae
benignitatis et clementiae destitui patiaris, sed, quemadmodurn
ante hac fecisti, aures Tuas accommoda ut uerba mea
percipias; fac insignem et illustrem in me misericordiam
tuam, Domine, qui das salutem omnibus qui in Te omnem
salutis rationem positam habent eosque a peste, quam parant
hostes importuni, dextera Tua seducis. Sed uide quantum
sit nobis de Tua immensa benignitate concessum. Non enim
peto a Te ut a me, tamquam a seruo fideli, hostilem impetum
reprimas, nec ut, tamquam amicum, opera Tua custodias,
nec, quod multo amplius est, ut, tamquam filium, ope summa
tuearis, sed, uelut Te ipsum atque adeo tamquam pupillam
oculi Tui, animam meam, quam Tecum conglutinare niteris,
summa uigilantia, cura, studio, contentione, defendas. Fac,
summe Pater, ut, tamquam uolucris pullos suos alis protegere
conatur, sic Tu me umbra Tua protegas, alis tuis occultes,
opibus tuis firmes, ne umquam sanguine meo hostis immanitas
expleri possit. Mirum enim est [174] quanta crudelitate in
me homines impii et quam furenter inuehantur, rebus meis
inferunt uastitatem, acerrimo nocendi studio me undique
circumsistunt; os eorum adipe et aruina tumescit; superbe
nimis et iracunde loquuntur; minas iaciunt; insidias ponunt;
gressus meos circumquaque peruestigant; se ipsos in terram
demittunt ut laqueos et retia tendant: omnes enim conatus eo
comparant ut me extremo casu et ruina conficiant. Sunt similes
leonibus qui latitantes ad lacerandum repente prosiliunt. Vt
leunculi, in lustris insidentes, ad interitum meum attentissima
cogitatione meditantur.
Exsurge, Domine, occurre sceleri; eorum faciem contunde et
in terram deprime; libera gladio Tuo animam meam ab impio,
qui rebus secundis extollitur; libera, inquam, me ab hominibus
quos dextera Tua hactenus occulto iudicio protexisti; ab
hominibus quorum animi in terram depressi atque demersi
OPERA OMNIA TOMO IV 113

apoiando-se em si mesmo, não há ninguém capaz de dar firmes passadas.


Por conseguinte, Senhor, Tu dá firmeza aos meus passos nas Tuas sendas,
para evitar que os meus pés vacilem e caiam. Em todos os meus cuidados
e angústias experimentei sempre apenas um remédio de total eficácia, que
se funda na minha oração, com a qual recorro à Tua misericórdia. Portanto,
nunca me falta remédio nas enfermidades, nem ajuda nos perigos, nem
consolação no pranto, nem testemunha na defesa dos meus direitos, nem
socorro na pobreza. Nunca são baldadas as minhas preces, mas, logo que
brado, compassivamente me escutas, Senhor.
Por conseguinte, peço-Te e rogo-Te que jamais permitas que eu fique
privado do fruto de tão grande bondade e misericórdia, mas que, tal como
antes fizeste, aplica os Teus ouvidos a escutarem as minhas palavras; faze
que se veja e em mim resplandeça a Tua compaixão, Senhor, que dás a
salvação a todos que fazem assentar em Ti todo o processo da salvação,
e com a Tua dextra os desvias da perdição que lhes aparelham os cruéis
inimigos. Mas vê o quanto nos foi oferecido da Tua imensa bondade.
É que não Te peço que como um servidor fiel rechaces de mim a arremetida
do inimigo, nem que como a um amigo guardes o Teu obreiro, nem que,
algo que é de muito maior valor, com o Teu socorro me veles como a
um filho, mas que, como a Ti mesmo e até como às meninas dos Teus
olhos, com a máxima atenção, cuidado, desvelo e empenho defendas a
minha alma, que Te esforças por unir contigo. Faze, ó Pai supremo, por,
assim como a ave se empenha em proteger com as asas as suas crias, da
mesma maneira me protegeres com a Tua sombra, me ocultares com as
Tuas asas, me fortaleceres com os Teus recursos, a fim de que o inimigo
não possa jamais saciar com o meu sangue a sua crueldade. Na verdade,
é espantosa [174] a grande desumanidade e sanha com que os homens
ímpios arremetem contra mim, procedem à destruição de quanto me
pertence, por todos os lados me atacam com violentíssima ânsia de fazer-
me mal; com o pingue e gordura a boca deles se ensoberbeceu; falam com
sobeja iracúndia e orgulho; proferem ameaças; armam ciladas; em toda
a volta esquadrinham as minhas passadas; eles mesmos se lançam por
terra para me estenderem laços e redes: é que empregam todos os seus
esforços para me levarem à derradeira perdição e ruína. São semelhantes
a leões que, mantendo-se ocultos, de improviso se arremessam para
estraçalhar. Como cachorros de leão postados no bosque, com vivíssima
atenção maquinam a minha morte.
Levanta-Te, Senhor, atalha ao crime; fere-lhes o rosto e lança-os por
terra; com a Tua espada liberta a minha alma do ímpio que se ensoberbece
com a prosperidade; liberta-me, repito, dos homens aos quais até agora
por oculto juízo protegeste com a Tua destra; dos homens cujas almas
mergulham e se espojam na terra, os quais não se preocupam com a vida
114 D. JERÓNIMO OSÓRIO

sunt, qui de futura uita minime cogitant, sed in hac tantum


patrimonium fundare et amplificare nituntur, quorum domos
opibus egregie, consilio ignoro, cumulasti, qui etiam posteris
suis opes testamento relinquunt, ita ut non solum ipsi, dum
uiuunt, diuitiis per iniuriam partis impune fruantur, uerum et
earum simul cum sceleris exemplo filios heredes instituant.
Itaque illi, rebus secundis elati, feroces et infesti fiunt et in
bonos incitantur, et multi mortales, dum homines iniustos
opibus abundare cernunt, haerent et dubitant, parumque abest
quin statuant iniustitiam, cum tam multas opes accumulet, esse
iustitiae, quae plerumque nimis anguste uitam exigit, longe
praeferendam. Mihi uero numquam eueniet ut tam peruersam
sententiam mente concipiam, immo semper hoc Dominum
iustitiae munus omnibus uitae commodis et emolumentis
anteponam, eoque munitus exsurgam et faciem Tuam cum
inexplicabili iucunditate contemplabor.
Tum demum animus meus, ad imaginem Tuam factus et ad
similitudinern diuinae claritatis expressus, euigilabit. Antequam
enim faciem Tuam uideat et in gratia Tua sit ueterno oppressus
est neque potest de ueris bonis recte ac constanter perpetuo
iudicare, tenebris miserabiliter offusis impeditus. At, cum
iustitiae splendor exoritur caliginemque dispellit et, quoad fas
est, claritatem tui numinis intuemur, tunc expletur animus; tunc
ueris opibus abundat; tunc illius sitis extinguitur; tunc mens,
illustrata caeli lumine, gaudio cumulatur, ita ut nihil amplius
desiderandurn sit. Cum uero nulla opulentia possit ullo modo
animum hominis iniusti satiare, immo, quo affluentius opes
obueniunt, eo cupiditas grauiores de impuris hominibus poenas
expetit, quo enim plura possident, eo cupiditas grauiores de
impuris hominibus poenas expetit, quo enim plura possident, eo
maiore indigentia cruciantur: soli iusti homines, bonis uerissimis
expleti, summa uoluptate potiuntur. Haec cum experrectus
animus clare cernit; cum diuitiarum inanitatem, quibus impuri
homines efferuntur, mente considerat; cum se diuinis opibus
affluentem animaduertit: omnia quae uersantur in uita pro nihilo
ducit et ea quae sibi a Deo donata sunt [175] modis omnibus
amplexatur nec alias opes sibi exquirendas existimat praeter eas
quibus abundat. Haec est felicitas mea, haec bonorum copia,
haec affluentia diuitiarum quibus animus meus expleri et in
caelum euehi potest.
OPERA OMNIA TOMO IV 115

que há de vir, mas que se empenham apenas em juntar e construir nesta


o seu património, cujas casas, por desígnio que desconheço, encheste de
enormes riquezas, os quais também deixam por testamento as suas riquezas
aos descendentes, de tal maneira que não só eles mesmos, enquanto vivem,
impunemente gozam das riquezas adquiridas mediante injustiça, mas também
ao mesmo tempo estão a ensinar os filhos herdeiros com o exemplo do seu
crime. Por isso eles, ensoberbecidos com a prosperidade, tornam-se ferozes
e hostis, e sentem-se estimulados contra os bons, e muitos mortais, ao
verem os homens injustos possuírem abundantes riquezas, sentem dúvidas
e perplexidade, e pouco falta para que assentem consigo mesmos que de
longe deve preferir-se a injustiça, uma vez que junta tão copiosas riquezas,
à justiça, que ordinariamente passa uma vida de excessivas estreitezas.
Mas comigo nunca acontecerá que eu venha a conceber uma tão perversa
opinião, e até sempre hei de antepor este divino dom da justiça a todas as
comodidades e proveitos da vida, e com ele protegido erguer-me-ei e com
indizível alegria hei de contemplar a Tua face.
Então a minha alma, feita à Tua imagem e moldada à semelhança
do divino resplendor, ficará em vela. É que, antes de ver a Tua face e
encontrar-se na Tua graça, acha-se oprimida pela letargia e não pode
correta e firmemente julgar de forma definitiva acerca dos verdadeiros
bens, mofinamente embargada pelas trevas que a rodeiam. Mas, quando
se mostra o resplendor da justiça e dispersa as trevas e, até onde é lícito,
contemplamos o brilho da Tua divindade, então a alma fica cheia; então
possui em abundância as riquezas verdadeiras; então sacia-se a sua sede;
então o entendimento, iluminado pela luz celestial, enche-se de prazer,
de tal maneira que não sente o desejo de mais nada. E sendo certo que
não existe abundância alguma capaz de saciar a alma do homem injusto,
e até, quanto mais abundantes riquezas se lhe apresentam, tanto a cobiça
castiga com mais graves penas os homens impuros, porquanto, quanto
mais coisas possuem, tanto são atormentados com maior carência: só os
homens justos, colmados com os mais verdadeiros bens, obtêm o supremo
prazer. Quando a alma desentorpecida vê claramente estas coisas; quando
pondera o vazio das riquezas, com as quais se ensoberbecem os homens
impuros; quando fica ciente de que possui em abundância as riquezas
divinas: considera como nada tudo aquilo que se encontra na vida e de
todas as maneiras abraça aquilo que lhe é oferecido por Deus [175] e
pensa que nenhumas riquezas merecem ser procuradas para além daquelas
que em abundância possui. É esta a minha felicidade; esta a abundância
de bens; estes os copiosos tesoiros com os quais a minha alma pode
encher-se e ser transportada para o céu.
116 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Diligam Te, Domine.


Psal. 17

Hoc quidem carmine quod sequitur nihil potest grandius


excogitari. Nam et materia estillustris et ampla et genus
scribendi multis luminibus illustratum, et ornamentis
mirabilibus excultum tantisque orationis opibus exaggeratum
ut ad amplitudinem illius nihil possit accedere. Celebrat
autem eam Dei clementiam qua fuit ab hostibus ereprus et in
regia sede locatus. Hostium uero copias et insidias et nimiam
cum magna potentia nocendi cupiditatem totiusque belli diri
et immanis apparatum explicat allegoriis, a tempestatibus
atque procellis totiusque naturae fragore desumptis, ut,
quo maius apparuerit uitae periculum, in quo uersabatur,
eo clarius demostretur auxilium diuinae uirtutis quo fuit
e tantis malorum omnium fluctibus absque ullo humano
praesidio liberatus. Id tamen uelim omnes admonitos, qui
uirum hunc admirati pro dignitate fuerint, ut, quotiens in
scripta illius inciderint, toties Christum respiciant. Neque
enim solum Dauid spiritu illius incensus et incitatus se ad
scribendum contulit, uerum et imaginem illius luculenter
in multis locis expressit, quo factum est ut apud prophetas
uideamus Christum Dauidis nomine saepe designari. Ipseque
Dauid saepenumero ita de se loquitur ut omnis oratio illius
in Christum praecipue dirigatur multaque proferat quae in
se minime conueniant, sed ad Christi uitam et actiones et
cruciamenta et gloriam conferenda sint, quod etiam hoc in
loco erit explorate cognitum. Cum enim Dauid explicat uires
quibus ab hostibus oppugnatus fuit, Satanae bellum et uires
et insidias et odium, quo Christum petiuit, explanat, et auxilia
quae undique ad perniciem illius exquisiuit plane recenset.
Cum rursus numinis seueritatem et uindictam qua hostes
domuit atque contriuit, oratione persequitur iudicium illud
quo mundi princeps expulsus et eiectus fuit, cum interitu
eorum qui Christum in crucem immanissime sustulerunt,
elegantissime narrat. Non est autem hoc multis uerbis
exponendum, cum nihil magis notum sit quam sub Dauidis
persona in litteris sanctis Christi mysteria pertractari. Ait
igitur hoc in loco uir sanctus, in cuius pectore cerni poterat
numen diuini Spiritus inclusum:
Te unum, summe Domine, animo incenso et inflammato
diligam et tota mente complectar, amoreque perpetuo in
OPERA OMNIA TOMO IV 117

SALMO 17
Eu Te amarei, Senhor.

Não é possível imaginar-se nada de mais grandioso do que este salmo


que vem a seguir. Com efeito, não apenas o assunto é nobre e elevado,
como o estilo de escrita iluminado por inúmeros passos brilhantes e
ornamentado com admiráveis atavios, guindando-se mediante recursos de
linguagem tão grandes que para a sua perfeição nada pode acrescentar-
se. De facto, celebra a misericórdia de Deus graças à qual foi arrancado
de entre os inimigos e colocado no trono real. E apresenta os exércitos e
armadilhas dos inimigos e o desejo de fazer mal associado com o grande
poderio e o aparato da terrível e cruel guerra, servindo-se de alegorias,
extraídas das tempestades e procelas e do estrépito da natureza em
peso, a fim de, quanto mais se tornar visível o risco de vida em que se
encontrava, tanto mais claramente se mostrar a ajuda da fortaleza divina,
mediante a qual, sem qualquer auxílio humano, foi libertado de tão grandes
arremetidas de toda a espécie de males. Gostaria, porém, de advertir a
todos os que sentirem admiração por este varão, em conformidade com
o que ele merece, de que, sempre que se debruçarem sobre os seus
escritos, pensem em Cristo. É que David não apenas se dedicou a escrever
inspirado e incitado pelo espírito de Cristo, mas também em muitas
passagens assumiu perfeitamente a figura deste, com o que sucedeu que
vemos nos profetas frequentemente Cristo ser designado com o nome
de David. E o próprio David mui amiúde de tal maneira fala acerca de
si mesmo que todas as palavras têm sobretudo por alvo Cristo e diz
muitas coisas que não se ajustam a ele, mas devem ser aplicadas à vida,
ações, padecimentos e glória de Cristo, tal como neste salmo claramente
se reconhecerá. De facto, quando David expõe a violência com que foi
atacado pelos inimigos, está a expor a guerra, violência, armadilhas e ódio
com que Satanás perseguiu Cristo, e está claramente a passar em revista
as ajudas que para a sua perdição procurou obter de todos os lados.
Quando além disso descreve o rigor divino e severidade punitiva com
que domou e destruiu os inimigos, está a narrar com a máxima elegância
aquele julgamento pelo qual o príncipe do mundo foi expulso e rechaçado
com morte daqueles que com a maior desumanidade levantaram Cristo
na cruz. Ora, não se faz mister explicar isto com muitas palavras, uma
vez que não há cousa mais sabida do que esta: que os mistérios de Cristo
nas Sagradas Escrituras são apresentadas sob a máscara de David. Diz
portanto neste salmo o santo varão, em cujo peito podia ver-se encerrado
o espírito da divindade:
Só a Ti, supremo Senhor, com a alma inflamada e abrasada eu hei de
amar e abraçar com todo o meu entendimento, e com incessante amor
118 D. JERÓNIMO OSÓRIO

studium Tui sanctissimi nominis incitabor. Omnia namque mea


bona in Te posita sunt nec est aliquid extra Te quod uel ad
salutis praesidium uel ad dignitatis ornamentum exquirendum
sit. Tu namque es mihi firmissimum uitae monumentum;
Tu rupes editissima; Tu arx munitissima; Tu salutis uindex
atque uitae liberator; tu Deus meus; [176] Tu inuictum uitae
propugnaculum; in Te spes omnes uitae constituam; Tu me,
ut scuto, protegis; Tu omnia mortifera tela a corpore meo
depellis; Tu diuinis opibus salutem meam corroboras; Tu
me in sublimi et excelso dignitatis gradu constituis. Domini
perpetua laudatione praedicandi opem implorabo; et continuo
salutem, hostibus meis frustra repugnantibus, adipiscar.
Beneficia enim quae iam sum Illius immensa benignitate
consecutus me de futuris dubitare non sinunt. Vt omnes
igitur intellegant quo loco erant res meae, cum Dominus
mihi subsidio occurrit, magnitudinem calamitatis exponam
quae in me impetu furibundo peruaserat.
Exitii funestissimi funibus circumplicatus miserrime
distinebar; et torrentes extremae impietatis et odii
pestillentissimi me circumueniebant, ita ut me appropinquantis
necis metu uehementissime conturbarent; funes Erebi
obsessum et artissime colligatum impedierunt; et laqueis
mortis adstrictus improuiso fui. Hostium uires erant immanes;
odium acerbissimum; imbecillitas mea undique oppressa
tenebatur; auxilium procul abscesserat; omnis humana spes
prorsus euanuerat, ita ut nullum omnino esset necis et
dirissimi cruciatus effugium. Cum igitur fuissem in tantas
angustias adductus, Dominum inuocaui et maximos clamores,
ut opem afferre maturaret, ad Illum sustuli, qui uocem
meam de templo sancto Suo protinus audiuit, uoxque mea
ad aures Illius continuo peruenit, ita ut, sceleris indignitate
permotus, iram Suam in hostes meos, qui in me, sine ulla
causa, inuehebantur, acriter incitaret.
Non fuit autem supplicium, quod de illorum scelere et
impuritate sumpsit, mediocre, nec, ut dissimulari posset, ab
hominum adspectu semotum, sed dirum et exitiosum, et in
oculis omnium constitutum, eaque atrocitate praeditum ut
stuporem mortalibus multis incuteret. Vt enim nullum maius
in communi uita scelus exstiterat (non enim similis puritas et
iustitia tantis iniuriis uiolata fuerat), ita ius diuinum postulabat
ut supplicium tam immani facinori constitutum, et magnitudine
et exemplo, cuncta quae fuerunt ab exordio generis humani
OPERA OMNIA TOMO IV 119

serei incitado a zelar por Teu santíssimo nome. É que todos os meus bens
estão em Ti colocados e fora de Ti nada existe que mereça ser procurado
quer para segurança da salvação quer para ornato da dignidade. Com
efeito, Tu és o mais sólido baluarte da minha vida; Tu és uma rocha
elevadíssima; Tu és uma muralha bem petrechada; Tu és o guardião da
salvação e libertador da vida; Tu és o meu Deus; [176] Tu és a invencível
fortaleza da vida; em Ti depositarei inteiramente a esperança da vida; Tu
proteges-me como um escudo; Tu desvias do meu corpo todos os dardos
mortíferos; Tu com os recursos divinos fortaleces a minha salvação; Tu
elevas-me ao mais alto e elevado grau de dignidade. Implorarei a ajuda do
Senhor que merece ser louvado com incessantes elogios; e logo a seguir
alcançarei a salvação, com a baldada oposição dos meus inimigos. É que
os benefícios que já alcancei por Sua imensa bondade, não me deixam
duvidar sobre os que hão de vir. Por conseguinte, a fim de que todos
compreendam em que situação se encontrava a minha condição quando
o Senhor acorreu em minha ajuda, vou expor a grandeza da desgraça
que me atacara com sanhuda fúria.
Via-me mofinamente enleado, preso pelas amarras de uma funesta
desgraça; e em torno de mim corriam as desatadas torrentes da mais completa
impiedade e de um crudelíssimo ódio, de tal maneira que violentissimamente
me inquietavam com o receio da morte que de mim se aproximava; os nós
do Érebo impediram os movimentos ao que estava paralisado e fortemente
ligado; e fui de improviso atado pelos laços da morte. A violência dos
inimigos era monstruosa; violentíssimo o seu ódio; a minha fraqueza era
maltratada de todos os lados; o socorro fugira para longe; toda a esperança
por completo se desvanecera, de tal maneira que não existia qualquer
escapatória para a morte e o terribilíssimo suplício. Por conseguinte, ao
ser conduzido para tão grandes tribulações, invoquei o Senhor e dirigi-Lhe
os mais fortes clamores, para que se apressasse a prestar-me ajuda, e Ele
desde o alto do Seu santo templo imediatamente escutou a minha voz, e
a minha voz em seguida alcançou os Seus ouvidos, de tal maneira que,
indignado com a infâmia do crime, violentamente moveu a Sua ira contra
os meus inimigos, que me tinham atacado sem qualquer motivo.
Ora, não foi nada pequeno o suplício que para mim tomei por causa
do crime e impureza deles, e não foi apartado da vista dos homens, por
forma a poder dissimular-se, mas terrível e fatal, e executado diante dos
olhos de todos, e revestido de características tão atrozes que causou
pasmo a inúmeros mortais. Com efeito, assim como não houvera na vida
corrente nenhum crime maior (porquanto uma pureza e justiça sem igual
fora transgredida com tão grande injustiça), da mesma maneira a justiça
divina exigia que o suplício estabelecido para tão monstruoso crime,
tanto pela grandeza como pelo valor de exemplo, se avantajassem em
120 D. JERÓNIMO OSÓRIO

sceleribus irrogata longissirno interuallo superaret. Tempestas


igitur illa horribilis atque pertimescenda fuit, quae res hostium
meorum ita perdidit et afflixit ut eorum nomen et opes et
antiquum decus exstingueret. Terra maximis motibus agitata
contremuit; montes in summam altitudinem desederunt;
labes ingentes factae sunt. Nam ira Domini in terras tam
scelesto facinore contaminatas inuaserat. Nec dubiis signis
eam offensionem demonstrauit: fumus e uultu Illius extitit;
ignis ex ore Illius emissus inflammationem hostium rebus
intulit et, quacumque tulit impetum, incendium, quo decoris
antiqui monumenta deflagrarent, incitauit. Caelestem naturam
inflexit ita ut magnitudine turbulentissimae tempestatis caelum
ruere uideretur, ipseque Dominus, ut poenas expeteret, infra
orbem aetherium praesentiam Suam declarauit, ut Sui nominis
hostes magis exanimaret. Densa autem caligo, ut maiestatem
Illius ab adspectu remoueret, [177] in se conglobata, pedes
Illius occultabat. Is autem, cherubino insidens, per caelum
uehebatur; uentorum celeritatem perpeti uolatu superabat.
Nihil est enim mente diuina celerius, quae, cum in sede Sua
sempiterna, intra naturae Suae penetralia, semper immobilis
et fixa permaneat, omnia tamen subito tranat et singulis
naturis occurrit, ut cuncta quae sunt sanctionibus Suis
accommodata perficiat.
Ergo, ut iudicium Suum, cum est opus, exerceat, summa cum
celeritate peruadit, ut malorum tempestatem contra impios
et sceleratos excitet. Se igitur tunc in tenebras densissimas
abdit et atra caligine circumsaepit et quasi tabernaculum
Sibi in nubibus exstruxit, ut inde hostes acerrirne uulneraret.
Itaque tenebrae densantur; aquarum ingens uis et copia
congregatur; nubes celerrime discurrunt, ignes interim ante
Illius conspectum crebro micant; nubes maximis uentis
impelluntur; grandinis ingens uis in terras demittitur; fulgura
nubibus discissis erumpunt; Dominus ipse superne crebro
tonitru naturam uniuersam tremefacit editisque e caelo
uocibus mortales exterret; grando, ignibus admixta, terris
uastitatem et populationem infert; neque solum terrorem
hominibus impuris iniicit, uerum etiam multos sagittis Suis
transuerberat. Vibrat enim fulmina et multos eorum perdit
atque dissipat; fulgura frequentissime iacit; illosque terroribus
obiectis excruciat. Flumina, in alium cursum contorta, suos
alueos, ut possint clare uideri, destituunt; terrarum fundamenta
oculis subiiciuntur.
OPERA OMNIA TOMO IV 121

muitíssimo a todos os que foram aplicados aos crimes desde o começo


do género humano. Por conseguinte, houve aquela terrível e assustadora
tempestade, que de tal maneira destruiu e destroçou as coisas dos meus
inimigos que extinguiu o seu nome, riquezas e antigo prestígio. A terra
tremeu, abalada com violentíssimos movimentos; os montes se abateram
nos mais profundos abismos; houve desabamentos imensos. É que a ira
de Deus se lançara sobre terras manchadas por um atentado tão sacrílego.
E não foi com sinais duvidosos que deu a conhecer a Sua indignação: do
Seu rosto levantou-se o fumo; o fogo, saindo da Sua boca, abrasou com
as chamas os bens dos inimigos e, por onde quer que se arremessou,
ateou o incêndio com que arderam os memoriais do antigo prestígio.
Por tal forma mudou a natureza do céu que este parecia derrubar-se
devido à violência da terribilíssima tempestade, e o próprio Senhor, a
fim de executar o castigo, mostrou a Sua presença por baixo da esfera
do éter, para mais aterrorizar os inimigos do Seu nome. Por outro lado,
densas trevas, por forma a apartarem da vista a Sua majestade, ajuntadas
em um corpo, [177] ocultavam os Seus pés. Ora Ele, era transportado
através dos céus, sentado sobre um querubim; superava em extraordinária
rapidez a celeridade dos ventos. É que nada existe mais veloz do que o
entendimento divino, que, ainda que se mantenha sempre fixo e imóvel
no seu lugar eterno, dentro dos recessos da Sua natureza, mesmo assim
tudo atravessa num ápice e acode a cada natureza, por forma a levar a
cabo tudo que se ajusta às Suas prescrições.
Logo, a fim de, quando é mister, exercer a Sua justiça, avança com
a máxima rapidez, por forma a provocar a procela dos males contra
os ímpios e os perversos. Portanto, esconde-se então em densíssimas
trevas e rodeia-se de negra cerração e como que edificou nas nuvens
um tabernáculo para Si, para a partir daí violentamente ferir os inimigos.
E por isso as trevas se adensam; a abundância e poder das águas se
ajuntam; as nuvens discorrem com grande celeridade; ao tempo em que os
coriscos reluzem amiudados na presença d' Ele; as nuvens são impelidas
por ventos ciclónicos; grande quantidade de granizo cai sobre a terra; os
relâmpagos irrompem de dentro das rasgadas nuvens; o próprio Senhor,
desde o alto, com o frequente atroar faz tremer toda a natureza e com as
vozes lançadas desde o céu aterroriza os mortais; a saraiva, misturada com
os raios, provoca o assolamento e destruição da terra; e não se limita a
despertar o terror nos homens perversos, mas também trespassa muitos
com as Suas setas. É que arremessa os raios e destrói e aniquila muitos
deles; lança incessantemente coriscos; e atormenta aqueles homens com
o medo que lhes incute. Os rios, tomando outro curso, são desviados dos
seus leitos, para que estes se possam ver a toda a luz; os fundamentos
da terra oferecem-se à vista.
122 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Omnes hi motus, summe Domine, irae Tuae magnitudine


fiunt et Tui spiritus offensione concitantur. Non enim, ut
imperiti homines suspicantur, casus et fortuna in natura
dominantur, sed omnia mente, ratione et consilio diriguntur,
iudicio namque Dei tempestates excitantur, fluctus eiiciuntur,
naues ad saxa franguntur et siluae atque nemora dissipantur;
similiter rerum publicarum turbidae seditiones et morbi
pestilentes, et bella dira et exitiosa atque demum gentis
totius euersiones, iuris diuini seueritate aut perrnissu impiis
nationibus inferutur. Itaque supplicia quae pertulerunt hostes
mei, non ad fortunae temeritatem, sed ad Dei sanctitatem
reuocanda sunt. Hoc autem ualde perspectum fuit, quod non
solum hostes meos perculit et abiecit atque tandem ad exitium
funestissimum praecipitauit, uerum etiam me, ex omnium
malorum fluctibus eductum, in sede tutissima collocauit.
Misit enim Dominus e caelo opem Suam mihi, ut me de
mediis fluctibus, quibus eram demersus, extraheret. Eripuit
me de manibus inimici fortissimi et ab hostibus, qui erant
me longe uiribus et potentia superiores, eduxit. Illi quidem,
nullam nocendi facultatem praetermitentes, simul atque me
aerumnis afflictum adspexerunt totis uiribus, ut me funditus
perderent, in cogitatum et meditatum scelus incubuerunt;
at Dominus iacentem erexit et langentem confirmauit. Cum
essem in angustum adductus, ope diuina respiraui et in loco
satis lato atque libero cum iucunditate uersatus sum, omni
cura quae me angebat omnino solutus. Dominus [178] enim
liberauit me, quia gratia Sua et benignitate mihi prospexit.
Explorat enim et perspicit animum meum studio iustitiae atque
pietatis incensum; operum meorum puritate animaduertit; uidet
nihil a me subdole fieri, sed omnia uere et simpliciter ad legem
Illius administrari, et idcirco mercedem mihi huius integritatis
attribuit. Illius enim uias non desero; a Domini mei fide
numquam deficio, omnia namque Illius iudicia in oculis semper
habeo; statuta Illius memoria sine ulla praeuaricatione conseruo.
In Illius conspectu innocentiam et puritatem meam tuebor et, ne
in priscam iniquitatem labar, summa cura, studio et uigilantia
prouidebo. Dominus autem iustitiam meam praemio satis amplo
remunerat et actionum mearum integritati, quam oculis Suis
intuetur, mercedem sane magnam constituit. Quam caeci sunt et
amentes qui opinantur aliquid esse quod mentem Tuam lateat,
Domine, aut sit a procuratione Tua seclusum! Secreta penetras;
abdita pandis; quae sunt crassis occultata tenebris exploras et
OPERA OMNIA TOMO IV 123

Todas estas alterações e comoções são provocadas, ó supremo Senhor,


pela grandeza da Tua ira e são suscitadas pelo Teu descontentamento.
É que, ao contrário do que pensam os homens ignorantes, o acaso e o
destino não dominam na natureza, mas tudo está ordenado de acordo com
um entendimento, razão e propósito, porquanto é por determinação de
Deus que as tempestades são provocadas, as ondas se empolam, os navios
se despedaçam contra os rochedos e os bosques e selvas são destruídos; da
mesma maneira, as tumultuosas revoluções das comunidades, as doenças
contagiosas e as terríveis e funestas guerras e, enfim, a total subversão
de povos, são infligidos às raças perversas pela severidade ou com a
autorização da lei divina. E por isso os suplícios que os meus inimigos
sofreram devem ser assacados, não ao acaso da sorte, mas à santidade de
Deus. Ora, foi assaz notório que não apenas destruiu e derribou os meus
inimigos e acabou por precipitá-los em mortal perdição, mas também que
a mim, depois de me arrancar das procelas e vagas dos males, me colocou
no mais seguro dos lugares. Com efeito, o Senhor me enviou desde o céu
a Sua ajuda, para me tirar do meio das ondas que me tinham engolido.
Arrebatou-me das mãos de fortíssimos inimigos e libertou-me de contrários
que em muito se me avantajavam em poder e forças. Eles, de facto, não
puseram de parte nenhuns meios para fazer mal, e logo que me viram
atribulado com provações, com todas as energias se aplicaram a pensar e
meditar o crime a fim de me perderem; mas o Senhor levantou quem jazia
prostrado e deu forças a quem se encontrava esmorecido. Encontrando-me
numa situação crítica, com a ajuda de Deus pude respirar e com íntima
satisfação encontrei-me num lugar assaz vasto e livre, totalmente isento de
toda a preocupação que me angustiava. [178] É que o Senhor me libertou,
porque com a Sua graça e bondade olhou por mim.
Na verdade, observa e vê a minha alma abrasada pelo zelo da justiça e
da piedade; dá-se conta da pureza das minhas obras; sabe que nada eu faço
de modo ardiloso, mas tudo executo com verdade e singeleza de acordo
com a Sua lei, e por isso me concede a recompensa por esta inteireza.
É que eu não abandono os Seus caminhos; nunca me aparto da lealdade ao
meu Senhor, pois tenho sempre diante dos meus olhos os Seus juízos; sem
qualquer falha conservo na memória os Seus mandados. Na Sua presença
velarei pela minha pureza e inocência e com o máximo cuidado, diligência
e vigilância esforçar-me-ei para não cair na antiga iniquidade. Ora, o
Senhor com prémio assaz elevado remunera a minha justiça e estabeleceu
uma recompensa deveras grande para a pureza das minhas ações, que
com Seus olhos observa. Como são cegos e desatinados os que pensam
que existe algo, Senhor, que se oculta à Tua inteligência ou que esteja
separado do Teu governo! Penetras nos segredos; desvendas o escondido;
conheces o que se mantém oculto por espessas trevas e esquadrinhas o
124 D. JERÓNIMO OSÓRIO

infimis terrarum sedibus immersa perscrutaris. Iudicium Tuum


numquam aut donis corrumpitur aut gratia flectitur aut alicuius
potentia conculcatur, et sic fit ut pro cuiusque meritis aut
praemium proponas aut poenam statuas. Nam et misericordi
misericordiam tribues et cum uiro integrae fidei integritatem
tuebere et cum homine puro puritatem amicitiae retinebis et
peruersum modis omnibus impugnabis. Tu namque hominis
humilis salutem constitues et oculos superborum in terram
deiicies. Siquidem Tu me, quem abiectum cernis, clementissime
subleuas mentisque meae lucernam spiritus Tui lumine comples
tenebrasque meas longissime dispellis animumque meum inuicta
uirtute corroboras. Gratia Tua munitus, hostium aciem perumpam
praesidioque Dei mei hostilem murum transiliam. Nihil enim
est quod possit uires eorum qui tibi adiuncti sunt infringere
aut uirtutem remorari aut conatu impedire quominus omnia
praeclara facinora moliantur. Deus enim integra fide præditus
est, ita,ut numquam Suos opera sua destituat. Verba illius,
igne amoris caelestis conflata et exanimata, nullum impuritatis
consortium admittunt, et ita fit ut is quem uerba illius erudiunt
minime offensionem Illius concitet.
Ad hunc igitur modum semper amicitia Illius erga Suos
inuiolata permanebit et ab illis omnia pericula propulsabit.
Ipse namque est scutum omnibus qui habent in Illo uitae
atque dignitatis praesidia firma fide constituta. Quis enim
est alius Deus quem uereri, quem amare, cuius praesidio niti
debeamus? Quod aliud est munitissimum propugnaculum,
praeter Deum nostrum, in quod nobis confugiendum sit?
Deus est qui me uirtutis inuictae robore saepit et, cum
uirtutis robur in uitae puritate et integritate consistat, Is
omnes meas actiones iustitia sancit atque perficit ne labis
ullius contagione maculentur. Instruxit me celeritate mirabili,
ita ut cum ceruis contendam et cursu collium fastigia
petam et altissimi montis uertice consistam. Instruxit manus
meas ad proelium, arcus aeneus brachiorum meorum [179]
robore perfringetur. Nihil mihi insolenter arrogo; nihil mihi
impudenter assumo; non mea facinora narro, sed beneficiorum
Tuorum multitudinem gratissima mente commemoro. Tu
namque haec in me mirabiliter agis, ita ut non in meam
laudem, sed in gloriam Tuam sint haec omnia quae recenseo
iure optimo referenda.
Tu namque me salutis Tuae scuto protegis et dextera Tua
sustentas et benignitate Tua ad summam dignitatem euehis.
OPERA OMNIA TOMO IV 125

que se encontra enterrado nos mais profundos recessos da terra. O Teu


juízo nunca se deixa corromper por peitas nem dobrar por favores nem
humilhar diante do poder de alguém e assim acontece que estabeleces o
prémio e o castigo em conformidade com os merecimentos de cada um.
Na verdade, oferecerás misericórdia ao compassivo, observarás inteireza
com o varão de fé inteira. terás pura amizade com o homem puro e por
todas as vias hás de atacar o perverso. É que Tu determinarás a salvação
do homem humilde e farás abater-se o olhar dos soberbos. Visto que
Tu, a mim a quem vês prostrado, com a maior compaixão me levantas
e enches com a luz do Teu espírito a candeia do meu entendimento e
dispersas para muito longe as minhas trevas e fortaleces o meu ânimo
com invencível denodo. Abroquelado com a Tua graça, destroçarei as
hostes dos inimigos e com a ajuda do meu Deus transporei as muralhas
dos meus adversários. É que nada existe que possa quebrantar as forças
ou esmorecer a coragem ou impedir o ímpeto dos que a Ti se juntaram
de cometerem as mais nobres façanhas. Com efeito, Deus está provido da
mais pura lealdade, de maneira que jamais priva os Seus da Sua ajuda.
As Suas palavras, fraguadas e vivificadas nas chamas do amor celestial,
não consentem vínculo algum com a impureza e destarte sucede que os
que por elas são instruídos não se movem a ofendê-Lo.
Por consequência, desta maneira a amizade d’Ele para com os Seus
manter-se-á sempre inviolável e deles afastará todos os perigos. É que
Ele é um escudo para todos os que com firme fé n' Ele estabeleceram
a defesa das suas vidas e dignidade. Com efeito, que outro Deus existe
a quem devamos reverenciar e amar e em cuja ajuda apoiar-nos? Que
outro mui fortificado baluarte existe, para além do nosso Deus, dentro
de cujas muralhas nos cumpra refugiar-nos? Deus é quem me rodeia
com o vigor de uma invencível virtude e, uma vez que o vigor da
virtude se funda numa vida pura e íntegra, Ele sanciona com a justiça
todas as minhas ações e faz que não se manchem com o contágio de
nenhuma infâmia. Dotou-me de espantosa celeridade, de tal maneira
que rivalizo com os veados e busco correndo os cumes das colinas e
me detenho na cumeeira da mais alta montanha. Dotou as minhas mãos
para a peleja, e a força dos meus braços há de reduzir a pedaços os
arcos de bronze. [179] Nada de modo soberbo a mim mesmo atribuo;
nada despejadamente me arrogo; não conto façanhas minhas, mas com
espírito deveras agradecido celebro a multidão dos Teus benefícios. É
que és Tu quem fazes em mim estas coisas maravilhosas, por tal forma
que com toda a justiça tudo isto que enumero deve redundar em glória
Tua, e não em louvor meu.
Na verdade, Tu com o Teu escudo me proteges e com a Tua destra me
amparas e com a Tua bondade me conduzes à mais alta dignidade. Tu
126 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Tu facis ut firme atque laxe uestigia ponam, ne nutent atque


labantur pedes mei. Tuo numine firmatus, ex omnibus bellis
uictoriam adipiscar; hostes meos in fugam uersos persequar
nec ab eis caedendis manum retraham donec eos omnino
conficiam. Concidam illos et exsurgere nequibunt et stratos
pedibus meis facile proculcabo. Me namque uirtute inuicta ad
proelium conferendum praecinxisti hostesque meos sub me
prorsus abiecisti. Inimici mei coram me in fugam uersi sunt;
hostes meos exscindam et, quod est omnium malorum maximum,
nullum in cladibus suis remedium aliqua ratione reperient.
Quamuis enim, opibus humanis diffisi, opem diuinam summa
contentione sibi flagitandam statuant, fustra in ope diuina
flagitanda laborabunt. Magnis quidem uocibus quibus malis
circumuallati sint testificabuntur: nullum tamen sibi auxilium
afferri sentient: non deos commenticios, sed Deum uerum, qui
numquam supplicum preces et uota repudiat, orabunt: et tamen
summus ipse Dominus, cuius infinita clementia miserorum
calamitates saepenumero depelluntur, eorum preces aspernabitur.
Numquam enim illis qui sunt in instituto scelere pertinaces
ignoscit. Ergo, cum ueniam denegat iis qui opem cum assiduis
precibus et flebilibus etiam modis implorant, satis profecto
constat illos minime a peccatis discessisse quibus in se Deum
incitarunt, quod contigit hostibus meis qui, neque tantis cladibus
afflicti, ab odio nominis mei discedere uoluerunt. Illos igitur, ut
puluerem uento dispulsum, in uarias regiones dissipabo et, ut
lutum platearum, comminuam. Cum enim impie atque nefarie ab
imperio meo defecerint; cum ad officium, neque tantis cladibus
uexati, redire uoluerint; cum meis sanctionibus immani odio
penitus imbuti perpetuo repugnauerint; cum denique bellum
inexpiabile cum lege mea gesserint, ius diuinum flagitat ut non
modo opera mea minime subleuentur, uerum et opibus meis
funditis euersi corruant et in ruina conterantur.
Iactura quidem dolenda esset et imperii tanta deminutio
aegerrime patienda, nisi tu, Domine, hoc damnum commodo
nimis amplificato resarcires. Eripies enim me ab huius ingrati
populi rebellione et gentium innumerabilium, quae fuerant
antea a placitis Tuis alienae, principem et imperatorem
constitues. Gentes quas, nullis beneficiis quae ad salutem
sempiternam ualerent, obstrinxeram, quae nullis disciplinis
ad notitiam nominis mei instructae fuerunt, simul atque
illorum oculis splendor caelestis affulsit et salutaris lex ad
aures eorum allata fuit, repente animis commutatae sunt atque
OPERA OMNIA TOMO IV 127

fazes que a minha passada seja firme e larga, para que os meus pés não
cambaleiem nem caiam. Fortalecido pelo Teu divino poder, alcançarei
a vitória em todas as guerras; perseguirei os meus inimigos entregues
à fuga e não cessarei de acutilá-los até exterminá-los por completo.
Matá-los-ei e não poderão levantar-se e prostrados por terra facilmente
os hei de calcar com os meus pés. De facto, cingiste-me com invencível
fortaleza para eu pelejar e por completo derrotaste os meus contrários.
Os meus inimigos diante de mim entregaram-se à fuga; despedaçarei os
meus adversários e, algo que é o maior de todos os males, de maneira
alguma encontrarão qualquer remédio nas suas desgraças. É que, ainda
que, perdendo a confiança nos recursos humanos, com enorme empenho
se decidam a pedir a ajuda divina, será baldado o seu esforço em rogar
o socorro de Deus. Com grandes brados proclamarão os males com que
foram cercados: todavia não verão ser-lhes prestada qualquer ajuda; hão
de orar, não a deuses falsos, mas ao Deus verdadeiro, que nunca rejeita
as preces e rogativas dos suplicantes: e mesmo assim o próprio Senhor
supremo, cuja infinita misericórdia amiúde afasta as desgraças dos infelizes,
há de votar a desprezo as preces deles. É que nunca perdoa àqueles que
se obstinam no crime que empreenderam. Logo, quando recusa o perdão
aos que com incessantes rogos e até com prantos O imploram, de sobejo
fica manifesto que não se separaram do pecado aqueles que contra si
incitaram Deus, tal como acontece aos meus inimigos que, nem atribulados
por tão grandes desastres, quiseram desistir do ódio ao meu nome. Por
conseguinte, hei de espalhá-los por diversas regiões, como pó que o
vento dispersa, e despedaçá-los, como a lama das praças. De feito, uma
vez que ímpia e sacrilegamente se desligaram do meu senhorio; uma vez
que não quiseram voltar a cumprir o dever, nem atribulados por tamanhas
desgraças; uma vez que, possuídos por cruel ódio, sempre recusaram as
minhas sanções; finalmente, uma vez que moveram imperdoável guerra
à minha lei, o direito divino requer que não só não sejam por mim
socorridos, mas também desabem e se arruínem totalmente aniquilados
pelas minhas forças.
Seria certamente uma desgraça digna de dó e uma grande diminuição
de poder penosa de suportar, se Tu, Senhor, não reparasses este dano com
proveitos assaz grandiosos. Com efeito, arrancar-me-ás do meio da rebelião
deste povo ingrato e far-me-ás príncipe e imperador de inumeráveis
povos, que antes tinham desconhecido as Tuas leis. Povos, que não me
deveram quaisquer benefícios, que servissem para a eterna salvação, e
que não receberam quaisquer ensinamentos que lhes dessem notícia do
meu nome, assim que aos seus olhos resplandeceu o brilho celestial e aos
seus ouvidos foi comunicada a lei da salvação, de repente ficaram com
as almas transformadas e [180] com fé extraordinária submeteram-se a
128 D. JERÓNIMO OSÓRIO

sese mihi [180] singulari fide subdiderunt; filii alieni suorum


opinionem fefellerunt, cum a principibus suis animo magno
et libero defecerunt, ut mihi inflammato studio seruirent:
quod quidem non absque mirabili animorum motu fieri ab
illis potuit. Cum enim memoria tenerent gentes alienae sese
uitam in flagitiis et turpitudine contriuisse, dolore simul et
pudore conturbatae, finem actionibus suis attulerunt et ex
penetralibus suis operam dederunt ut crucem operibus suis,
cum singulari animorum firmitate, defigerent.
Laudibus sempiternis efferatur Dominus, inuictum
uitae meae praesidium; et in omni saeculorum aeternitate
ingenti uirtutis immensae praeconio celebretur; qui salutis
magnitudinem, cuius me auctorem et principern esse uoluit,
extulit et amplificauit, cum gentes ex ultimis etiam terris ad
communionem Illius euocauit. Eorum quidem scelus, qui
meum imperium accipere noluerunt, acriter ultus est; illorum
uero loco complures populos sub imperium et dicionem
meam facillime subiunxit. Liberauit me ab inimicis meis et ab
hostium importunitate defensum in loco sublimi et excelso
constituit; ab immanissimi tyranni uiolentia qui me opprimere
conabatur uitam meam praesidio Suo custodiuit. Propterea
laudes Tuas in gentibus praedicabo, Domine, et nomen
Tuum carminibus in caelum feram. Nam regis Tui salutem
multis muneribus et ornamentis auxisti Christumque tuum
Dauid sempiterna clementia protexisti, nec enim uoluisti ut
ullis umquam saecu1is a tua misericordia esset semen illius
exclusum, est enim ab illo satu diuino propagatum.

Caeli enarrant gloriam Dei.


Psal. 18. Apud Heb. 19

Nemo qui rationis particeps sit in religionis uel contemptu


uel obliuione potest se ignorationis excusatione defendere,
cum omnes naturae partes clarissimis uocibus testificentur
esse uim diuinam atque sempiternam summumque rerum
omnium Dominum, cuius potentia a principio omnia designata
et constituta sunt, et in omni temporum uarietate regantur
et conseruentur statumque suum moderatione eiusdem
optimi Parentis obtineant. Quod hoc in loco Dauid admodum
luculenter edisserit:
OPERA OMNIA TOMO IV 129

mim; os filhos estrangeiros traíram a opinião dos seus, uma vez que com
espírito alevantado e livre se apartaram dos seus dirigentes, para com
inflamado zelo me servirem: algo que de certo eles não puderam levar a
cabo sem uma espantosa transformação das suas almas. É que os povos
estrangeiros, uma vez que se lembravam de que tinham consumido a vida
mergulhados em infâmias e torpezas, tomados simultaneamente de pejo
e arrependimento, puseram termo às suas indignidades e no interior das
suas almas aplicaram-se a, com extraordinária firmeza de ânimo, pregar
a cruz com as suas obras.
Que seja eternamente louvado o Senhor, invencível amparo da
minha vida; e que seja celebrado por toda a eternidade dos séculos
com o pregão da Sua imensa virtude; Ele que produziu e aumentou a
grandeza da salvação, da qual quis que eu fosse o autor e responsável,
quando chamou os povos dos confins da terra para a comunhão
com Ele. É certo que violentamente se vingou do crime dos que não
quiseram aceitar o meu reino; e em lugar deles mui facilmente ajuntou
inúmeros povos sob o meu mando e direção. Livrou-me dos meus
adversários e, para me proteger dos meus cruéis inimigos, colocou-
me num altíssimo e elevadíssimo lugar; com a Sua defesa guardou a
minha vida da violência do desumaníssimo tirano, que se empenhava
em destruir-me. Por isso apregoarei os Teus louvores entre os Teus
povos, Senhor, e com meus cânticos elevarei aos céus o Teu nome. É
que com muitas mercês e ornamentos acrescentaste a prosperidade do
Teu rei e protegeste a David, Teu Cristo, com incessante misericórdia,
pois não quiseste que a sua semente fosse jamais em tempo algum
excluída da Tua misericórdia, porquanto dele se propagou com
linhagem divina.

SALMO 18
(19 para os Hebreus)
Os céus publicam a glória de Deus.

Ninguém que esteja dotado de razão pode defender-se da acusação


de desprezo ou esquecimento da religião com a desculpa da ignorância,
uma vez que todas as partes da natureza testemunham com claríssimas
vozes que existe uma natureza divina e eterna e um supremo Senhor
de todas as coisas, por cujo poder desde o princípio tudo foi concebido
e criado, e ao longo de toda a sucessão dos tempos é governado e se
conserva, e que é graças à direção deste mesmo excelente Pai que obtêm
a sua condição. É isto que neste salmo David desenvolve com grande
perfeição, dizendo:
130 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Caeli, inquit, claritas et amplitudo Dei immensam gloriam


praedicat operaque Illius admiranda superae regionis
firmamentum et excellens decus annuntiat. Primum enim
naturae caelestis magnitudo omnia quae sub sensum cadere
possunt complexu suo coercet et continet et, cum circum
axem cum incredibili celeritate sine ulla intermissione
feratur, terris stabilitatem dat et formas quas ambitu
circumdat foederis insigni uinculo deuincit. Est deinde
astris elegantissime distinctum, luminibus clarissimis
illustratum, ornamentis sempiternis excultum, ut nihil
cogitari possit in omni natura, quae cerni oculis possit, aut
specie pulchrius aut splendore magnificentius. Iam uero,
lex, ordo, conuenientia [181] qua caelestes orbes cursus
suos definiunt et concentum suauissimum ex diuersis
motionibus ad unam rationem pro certo numero et portione
reductis efficiunt, tam admirabilis est ut ea sola clarissimo
testimonio diuinae sapientiae magnitudinem in oculis et
adspectu proponat. Vt enim turbatio et confusio temeritatis
argumentum continet, ita ordinis insignis constantia summae
sapientiae significationem dat.
Iam uero utilitates quae ex opere tam praeclaro capiuntur
eiusmodi sunt ut nullius oratione explicari possint, cum et
magnitudine humanum ingenium superent et innumerabiles
sint. Animantium namque salus, uitae iucunditas, fructus
quos uel terrae profundunt uel aquae suppeditant, caelesti
beneficio continentur. Caelum igitur nobis summi Conditoris
potentiam demonstrat; sapientiam explicat; beneficentiam
declarat omnibusque modis nos ad cognitionem diuinae
uirtutis instituit, cum facile constet omnia fuisse hominum
gratia a Deo condita omnibusque suis numeris absoluta.
Quid dierum et noctium uicissitudines temporumque
uarietates oratione commemorem? An non liquet diebus
prope singulis aliquid afferri quo, si uelimus uires mentis
excitare, sapientiae muneribus augeamur? An noctes ipsae
non multa cognitionis instrumenta suppeditant, quibus in
caelum cogitatione penetremus? Naturae igitur peruestigatio
nos facillime ad Dei notitiam sine litteris et sine ope ullius
humanae artis erudiet. Adde quod hominum disciplinae certis
regionum finibus continentur neque possunt ita late diffundi.
Nam quaelibet gens natiuum loquendi genus usurpat,
reliquis gentibus ignotum, ita ut quod uni nationi traditur,
non facile ad reliquas transmitti queat. At caeli disciplina,
OPERA OMNIA TOMO IV 131

O brilho e imensidão do céu apregoam a enorme glória de Deus e a


Sua admirável obra revela o firmamento e excelente lustre das regiões
mais elevadas. É que, em primeiro lugar, a magnitude da natureza celestial
abrange e encerra no seu âmbito tudo o que pode cair sob a alçada dos
sentidos e, uma vez que gira em redor de um eixo com incrível rapidez
e sem qualquer pausa, dá firmeza à terra e une com um extraordinário
vínculo de associação as formas que em seu âmbito rodeia. Em segundo
lugar, o céu encontra-se mui formosamente repartido por astros, iluminado
por claríssimos luzeiros e ataviado com ornamentos eternos, por tal
maneira que em toda a natureza é impossível imaginar-se coisa alguma,
das que podem ver-se com os olhos, que seja de mais bela aparência
ou de mais resplandecente brilho. E, por outro lado, a harmonia, ordem
e acordo perfeito [181] com que as esferas celestiais delimitam os seus
cursos e a suavíssima música que produzem, procedente dos diferentes
movimentos, obedecendo a um único plano de acordo com uma certa
ordem e proporção, é tão admirável que por si só coloca diante dos olhos
e visão, com claríssimo testemunho, a grandeza da sabedoria de Deus.
Com efeito, assim como a perturbação e a confusão constituem um indício
de desvario, da mesma forma a harmonia de uma ordem extraordinária
são um testemunho da suprema sabedoria.
Por outro lado, os proveitos que se derivam de uma obra tão luzente são
de tal qualidade que é impossível exporem-se com palavras, porquanto não
só superam em grandeza a inteligência humana, mas também são em número
infinito. Com efeito, a saúde dos seres vivos, a alegria da vida, os frutos que
a terra produz ou que as águas em abundância oferecem, são benefícios que
se derivam do céu. Por conseguinte, o céu dá-nos a conhecer o poder do
supremo Criador; revela-nos a Sua sabedoria; mostra-nos a Sua bondade e
por todas as vias industria no conhecimento da virtude divina, uma vez que
é obviamente manifesto que foi por amor e por causa dos homens que tudo
foi criado por Deus e concluído com toda a devida harmonia. Para que hei de
lembrar a alternância dos dias e das noutes e a mudança das estações? Acaso
não é evidente que quase todos os dias oferecem alguma coisa com a qual,
se quisermos estimular as energias do entendimento, aumentamos os dons
da sabedoria? Por ventura as próprias noites não nos concedem abundantes
instrumentos de conhecimento, mediante os quais penetramos no céu com
o pensamento? Por conseguinte, o esquadrinhar da natureza mui facilmente
nos instruirá no conhecimento de Deus sem recurso às letras e sem qualquer
ajuda de artes humanas. Acresce que as ciências humanas encontram-se
encerradas dentro de certos limites e assim não podem avançar até muito
longe. Com efeito, qualquer povo usa um certo idioma que é desconhecido
para os restantes povos, de maneira que não é fácil que aquilo que é ensinado
a um único povo possa vir ao conhecimento dos restantes povos. A ciência
132 D. JERÓNIMO OSÓRIO

admirabili uia et ratione, in omnes orbis regiones procedit,


mundique totius uox et oratio ab omnibus nationibus audiri
et intellegi potest. Nulla enim gens est quae non facile
possit ex naturae operibus, quae oculis omnium noctes
atque dies subiecta sunt, uim diuinam cogitatione complecti
Rectorisque summi diuinitatem contemplari.
Porro autem, cum summus rerum Opifex sidera finxit et
informauit, tum Solem praecipue magnitudine lucis instruxit,
qua omnes mundi partes collustratae nitescerent. In caelo
illi domicilium et sedem constituit, in qua locatus simul cum
ipso caelo conuersionem ordinatam conficeret et temporum
distinctiones constantissima ratione terminaret. Itaque, ut
sponsus de thalamo suo progreditur ex fecunditate, quam
naturis inducit, exhilaratus, atque inuicto robore munitus
exsultat, ut cursum expedite conficiat. Nihil est enim quod
uires illius infringat aut celeritatem remoretur aut actiones
impediat. Tenebras enim discutit; crassum et caliginosum
caelum dissipat; uim uitalem et salutarem cunctis rebus
impertit. Neque solum lucem suam in omnes terras spargit,
uerum propagandae suboli uirtutem et efficientiam cunctis
animantibus et arboribus et plantis elargitur. Vi illius, quae
sunt iam per illum seminibus grauidata subolem procreant,
et quae sunt generata nutriuntur [182] et ad maturitatem
perueniunt, ut rursus similem fetum propagent, ne umquam
in terris ullum genus et forma deficiat. Vt autem haec omnia
peragat, a caeli extremitate ad aliam extremitatem cursum
incitat, ut totius caeli amplitudinem diurna conuersione
lustret, et ita progressionem annuam temperat ut non sit
regio ulla quae ab illius calore deseratur. Ordine namque
mirabili, ab Austro ad Septentrionem iter instituit, et rursus
a Septentrione ad Austrum conuertionem facit, ut omnia luce
compleatvet florum et fructuum copia et ubertate laetificet.
Illius enim accessu cuncta uirescunt atque frondescunt;
abscessu illius, ornatu spoliata, contrahuntur. Postremo, multis
modis imaginem refert illius Solis, quo mentes humanae,
quae lumen minime fugiunt, illustratae collucent.
Et his quidem naturae operibus optimus Ille Parens et
Dominus homines ad Sui notitiam erudit et ad communionem
cuiusdam diuinitatis inuitat. Sed hoc non fuit summae
bonitati satis, nisi etiam beneficium sanctissimae legis
adiungeret, qua nihil poterat esse praestantius. Superat
enim lex diuina uniuersae naturae decus et magnificentiam.
OPERA OMNIA TOMO IV 133

do céu, porém, através de um meio e método admiráveis, pratica-se em


todas as regiões do mundo e a voz e linguagem da terra pode ser escutada
e entendida por todos os povos. De facto, não existe nenhum povo que, a
partir das obras da natureza, que durante os dias e as noites se apresentam
diante dos olhos de todos, não consiga facilmente abarcar com o pensamento
a natureza de Deus e contemplar a divindade do Senhor supremo.
Ora, além disso, quando o supremo Criador das coisas formou e
modelou os astros, então dotou sobretudo o sol com uma grande luz
para que, iluminadas por ela, todas as partes do mundo brilhassem.
Estabeleceu para ele morada e domicílio no céu, para que aí postado,
em simultâneo com o mesmo céu levasse a cabo a regular rotação e
do modo mais inalterável concluísse as variações das estações. E, por
isso, sai do seu quarto nupcial como marido muitíssimo satisfeito por
ter fecundado, e exulta de alegria, fortificado com invencível vigor, a
fim de prontamente completar a sua corrida. É que nada existe que
quebrante as suas forças ou atarde a sua rapidez ou embargue as suas
ações. Com efeito, dispersa as trevas; dissipa a cerração do torvo céu;
com todas as coisas reparte uma força vivificante e salutar. E não só
derrama a sua luz por toda a terra, mas também prodigaliza a todos os
animais, árvores e plantas a virtude e propriedade de gerarem prole.
Graças à sua força, as coisas que já foram fecundadas por sementes,
dão origem a prole, e são alimentadas e atingem a maturidade as que
foram geradas, [182] por forma a de novo reproduzirem um rebento
idêntico e a jamais faltar na terra qualquer espécie e forma. Ora, a
fim de tudo isto levar a cabo, move-se com célere carreira desde um
extremo do céu até ao outro, por forma a com o seu retorno diário
iluminar inteiramente o amplo céu, e de tal modo regula o avanço do
ano que não existe região alguma que fique privada do seu calor. Com
efeito, graças a uma admirável disposição, estabelece o seu curso de sul
para norte, e retorna de novo do norte para o sul, de maneira a com
a sua luz tudo cobrir e alegrar com a abundância e fecundidade das
flores e frutos. É que, com a sua aproximação, toda a natureza viceja
e se cobre de folhas; entristecendo, com a sua partida, ao ficar privada
de seu atavio. Finalmente, de diversas maneiras representa a imagem
daquele Sol, graças ao qual resplandecem iluminados os entendimentos
humanos, que não fogem da luz.
E é evidente que através destas obras da natureza Aquele ótimo Pai
e Senhor ensina aos homens a conhecê-Lo e convida-os à participação
numa espécie de divindade. Mas isto não foi o bastante para a suma
bondade, se não ajuntasse também o benefício da lei santíssima, que era
a mais excelente coisa que podia existir. É que a lei divina avantaja-se à
magnificência e primores da inteira natureza. De facto, em primeiro lugar,
134 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Primum enim est castimonia et integritate mirabili, omnes


namque sordes expellit; cuncta flagitia detestatur; puritatem
summo studio sancit; nihil omnino decernit quod non sit
purum et sanctum et ab omni turpitudinis faece longissime
segregatum. Deinde, eas uires, postquam est mentibus
humanis opera sancti Spiritus incisa, consequitur ut animas
ab impuritate uitae ad pietatis studium traducat. Continet
praeterea diuinum testimonium quod non potest ulla
suspicione uanitatis infirmari. Est enim Deus constans in
omni aeternitate bonitas atque fides et ueritas sempiterna.
Cum igitur Deus in lege nobis omnia pietatis officia
praescribat et uerae uirtuti sempiternae gloriae praemia
proponat, consequens est ut animi, fide diuinae promissionis
erecti, terras deserant et in caelum euehantur et opibus
diuinae sapientiae cumulentur. Itaque legis beneficio
sapientes fient, non qui sibi omnia animis insolenter
arrogant, sed qui se coram Deo prudenter abiiciunt
omnemque rationem salutis et dignitatis in Dei gratia et
benignitate reponunt. Sic enim Deus superbos et insolentes
expellit ut humiles atque moderatos adsciscat, quibus
sapientiae Suae arcana communicet.
Complectitur praeterea lex exactissimam iuris aequitatem,
nihil enim gratiae concedit; nulla offensione a iustitiae
praescripto deducitur; omniaque officiorurn momenta
exactissimi ponderis examine atque ratione perpendit. Quid
dicam de uoluptate illa eximia qua cumulantur animi eorum
qui lege Domini confirmati sunt? Nihil est enim uel opibus
affluentius, uel gloria magnificentius, uel praesidio inuicto
munitius, uel animi pace tranquillius eorum condicione
qui iustitia florent et spiritu Domini perfruuntur. Quocirca
necesse est, cum se uideant tantis opibus et ornamentis
redundantes, ut laetitia incredibiliter efferantur. Praecepta
Domini singulari claritate splendent et oculos illuminant,
ita ut qui se ad illorum ducum [183] adiungunt labi et
errare non possint, eo quod cernant clarissime uiam qua
sit in caelestem patriam, absque ulla graui offensione,
properandum. Adde nunc diuinae legis constantiam et
aeternitatem, ad quam Dei metus atque insignis uitae puritas
uiam egregie munit. Omnia labuntur et fluunt et momento
temporis exstinguuntur, ita ut ea etiam quae uidentur esse
firmissime stabilita sint interitu consumenda, usque adeo
ut neque caelum neque terra possint immortalitatem sibi
OPERA OMNIA TOMO IV 135

em pureza e inocência admiráveis, porquanto rechaça toda a imundície;


abomina toda a sorte de infâmias; com o máximo zelo prescreve a pureza;
e em absoluto nada determina que não seja puro e santo e apartado do
menor resquício de impura torpeza. Em segundo lugar, depois que por
obra do Espírito Santo foi gravada nos entendimentos humanos, esta lei
obtém tamanhas forças que desvia as almas de uma vida impura para o
culto da piedade. Além disso, encerra em si um testemunho divino que
não pode enfraquecer-se com nenhuma suposição de desvanecimento. É
que Deus é a invariável bondade por toda a eternidade e é a fidelidade
e verdade que nunca morrem. Por conseguinte, uma vez que Deus nos
prescreve na lei todas as obrigações da piedade e nos apresenta os
prémios da eterna glória destinados à verdadeira virtude, segue-se como
consequência lógica que as almas, esforçadas pela fé na promessa divina,
se separem da terra e sejam arrastadas para o céu e colmadas com os
tesoiros da divina sabedoria. E assim por benefício da lei tornar-se-ão
sábios, não os que insolentemente tudo atribuem à sua inteligência, mas os
que com humilde sensatez se prostram diante de Deus e fazem depender
da graça e bondade de Deus todo o processo para conseguir a salvação
e a dignidade. Na verdade, Deus rechaça os soberbos e arrogantes de
tal maneira que chama para junto de Si os humildes e comedidos, para
com eles compartilhar os segredos da Sua sabedoria.
Demais disto, a lei abrange a exatíssima equidade do direito, pois não
faz quaisquer concessões ao favorecimento; nenhumas malquerenças a
desviam das prescrições da justiça; e examina todas as partes do dever
com a mais rigorosa ponderação. Que hei de dizer acerca da singular
deleitação que inunda o espírito daqueles que foram fortalecidos com
a lei do Senhor? É que não existe nada mais opulento em riquezas,
nada de mais esplendoroso em glória, nada de mais protegido por
invencível guarda ou nada de mais tranquilo em paz de alma do que a
condição daqueles que florescem em justiça e desfrutam do espírito do
Senhor. Motivo pelo qual é forçoso que, ao verem-se possuidores de tão
abundantes e tão grandes riquezas e ornatos, se sintam transportados por
um inefável contentamento. Os preceitos do Senhor resplandecem com
uma extraordinária luminosidade e iluminam os olhos, de tal maneira
que, os que se dispõe a por eles ser conduzidos, [183] não podem cair
e transviar-se, porque divisam com toda a claridade a senda pela qual,
sem graves percalços, se deve avançar para a pátria celestial. Acrescente-
se agora a firmeza e caráter eterno da lei divina, para a qual aparelham
egrégia estrada o temor de Deus e uma excecional pureza de vida. Tudo
passa e flui e se desvanece num ápice de tempo, da tal maneira que até
aquelas coisas que parecem ter os mais firmes fundamentos devem perecer,
em grau tal que nem o céu nem a terra podem prometer a si mesmos a
136 D. JERÓNIMO OSÓRIO

polliceri: sola tamen diuini uerbi sententia est eodem statu


atque dignitate semper immobilis permansura. Itaque, cum
sit aeterna, efficitur ut omnes qui sunt illius sanctionibus
alligati aeternitatem consequantur.
Sed, quid tandem est in singulis rebus diutius immorandum?
Satis est ad legis diuinae perfectionem explicandam, statuere
omnia Dei iudicia esse constanti fide roborata et singulari
iustitiae obseruantia constabilita, ut intellegi possit nihil esse
nec in siderum pulchritudine, nec in solis splendore, nec in
caeli constantia, neque in totius naturae concinnitate, cum
Illius uel amplitudine, uel elegantia, uel utilitate, uel luce,
uel aeternitate comparandum. Cui igitur potest esse dubium
quin Dei iudicia sint magis quam auri purissimi ingentes
acerui sanis hominibus expetenda illorumque suauitas mellis
e fauo defluentis dulcedini longe praeponenda? Mundi igitur
fabrica Dei gloriam clarissimis argumentis illustrat, sed
longe clarius lex diuina, in mentibus humanis impressa et
insculpta, eiusdem Domini sempiternas laudes exornat. In
hoc etiam maxime tantae dignitatis magnitudo declaratur,
quod, cum beneficium sit amplitudine maximum, dignitate
clarissimum, diuitiis opulentissimum, atque adeo diuinitatis
cuiusdam opibus ornatissimum, neminem tamen uoluit
clementissimus Dominus esse illius expertem, modo uellet
uera bona fallacibus, caelestia terrestribus, sempiterna fluxis
et interituris anteferre, et in salutis ipsius Auctorem puris
semper oculis intueri. Immo, quo dona maiora sunt, ex magis
prompta atque parata sunt omnibus qui illis potiri uoluerint.
Summae namque bonitatis proprium est non opes inuidiose
comprimere, sed summa largitate et beneficentia eas omnibus,
qui magna atque praeclara concupierint, elargiri.
Nam et ego ipse, quamuis humilis et abiectus sim et
tantis muneribus prorsus indignus, minime fui ab aditu tam
admirandae benignitatis exclusus.
Hic etiam, inquam, seruus Tuus, o Domine, legis
sanctissimae disciplinis instructus, uitam sapienter instituet
et, cum praeceptis Tuis fuerit obsecutus, amplissimam
mercedem assequetur. Est enim hoc ualde etiam in
magnitudine Tuae bonitatis admirandum, quod amplissimis
muneribus ea seruorum officia remuneras, quae non possum
absque nefario scelere et insigni perfidia praeteriri. Sed,
quis tandem officium suum cumulate praestabit? Quis
sibi commissum munus adeo uigilanter exsequetur ut
OPERA OMNIA TOMO IV 137

eternidade: todavia, só a sentença da palavra de Deus há de permanecer


para sempre imutável no mesmo estado e dignidade. Por isso, uma vez
que é eterna, sucede que alcançam a eternidade todos os que acataram
estreitamente as suas determinações.
Mas, para que nos cumpre deter-nos por mais tempo em cada coisa?
Para expor a perfeição da lei de Deus basta dar por assente que todos os
juízos de Deus estão fortalecidos por uma invariável lealdade e reforçados
por um singular acatamento da justiça, a fim de que se possa entender que
nem na formosura dos astros, nem no resplendor do sol, nem na firmeza
do céu, nem na harmonia da natureza inteira existe nada de comparável
com a Sua grandeza, beleza, utilidade, luz e eternidade. Por conseguinte,
quem pode duvidar de que os juízos de Deus devem ser deveras mais
desejados pelos homens do que imensas quantidades de puríssimo oiro
e que a sua suavidade deve ser de longe preferida à doçura do mel
pingando do favo? Portanto, a fábrica do mundo ilumina com claríssimos
testemunhos a glória de Deus, mas a lei divina, impressa e gravada nos
entendimentos dos homens, atavia com muito maior lustre os sempiternos
louvores do mesmo Senhor. A grandeza de tão grande dignidade também e
sobretudo se dá a conhecer no facto de que, sendo certo que o benefício
é o maior em grandeza, o mais nobre em dignidade, o mais opulento em
riquezas e o mais rico nos recursos até de uma espécie de divindade,
mesmo assim o mui misericordioso Senhor não quis que ninguém ficasse
dele privado, desde que quisesse antepor os verdadeiros bens aos falsos,
os celestiais aos terrenos e os eternos aos passageiros e perecíveis, e
contemplar com olhos sempre puros o Autor da sua própria salvação. E
até, quanto maiores são as mercês, tanto mais disponíveis e aparelhadas
estão para todos que quiserem obtê-las. Com efeito, é próprio da suprema
bondade não guardar ciosamente para si as riquezas, mas antes com a
mais completa largueza e generosidade liberalmente as repartir por todos
os que vivamente almejarem coisas grandes e nobres.
Com efeito, também eu mesmo, embora seja humilde e baixo e
totalmente indigno de tão grandes mercês, não fui excluído do acesso a
uma tão espantosa bondade.
Aqui também o Teu servo, Senhor, instruído pelos ensinamentos
da Tua santíssima lei, há de sabiamente regular a sua vida e, quando
acatar os Teus preceitos, há de alcançar uma imensa recompensa. É
que na imensidão da Tua bondade também existe de assaz admirável a
circunstância de recompensares com enormes mercês aqueles serviços
dos escravos que não podem omitir-se sem sacrilégio e medonha
aleivosia. Mas, enfim, quem há de cumprir cabalmente o seu dever?
Quem há de desincumbir-se da função que lhe foi atribuída de forma
tão escrupulosa que não falhe em alguma parte? Os caminhos são de
138 D. JERÓNIMO OSÓRIO

nusquam offendat? Viae sunt ita lubricae ut uix quisquam


ita possit firmare uestigium ut minime labatur. Adeo multi
errores [184] in uita uersantur ut difficillimum sit ab
officiis delicta secernere. Si ergo haec omnia ad uiuum
resecta fuerint, et Tu nostras actiones ad exactissimam
legis normam reuocaueris, quis in uita poterit innocentiam
tueri? Precor igitur, o clementissime Domine, ut non
summo iure mecum agas et mihi ea quae in me, per
ignorantiam lapsus, admisero, clementer ignoscas. Ea uero
quae obfirmata in suscepto scelere uoluntate fiunt et a
contumacia depromuntur, prohibe, Domine, ne me foede
contaminent et a gratiae Tuae coniunctione diuellant.
Quantum enim in me fuerit, operam dabo ne, superbia
ductus, in contemptum Tuae legis incurram et sponte
mea nefarie delinquam. Id tamen praestare nullo modo
potero nisi Tu me praesidio Tuo munieris. Quod, si me
tutum et incolumem a superbiae malis conseruaueris,
et ita nullum aliud peccatum animum meum dominatu
oppressum tenuerit, tunc eam innocentiam retinebo quae
potest ab homine pietatis amantissimo in hac imbecillitate
naturae retineri, et contagionem sceleris detestandi a me
propulsabo. Tunc igitur clementia Tua fiet ut oratio mea
Tibi grata sit et meditatio cordis mei in conspectu Tuo
iucunda, o Domine summe, cuius praesidio defensus et
persoluto pretio in libertatem uindicatus sum.

Exaudiat te Dominus in die tribulationis.


Psal. 19. Apud Heb. 20

Rex summus atque sempiternus, qui imperium cruce


stabiliuit, cum esset etiam sacerdos sanctissimus, qua die in
crucem actus fuit, et regni sui opes firmauit, et sacerdotii
munere perfunctus est. Hostium enim copias excidit et proprio
sanguine litauit. Hoc igitur sacrificium prospiciens spiritu
Dauid, exclamans, ait:
Exaudiat te Dominus eo tempore quo doloribus eximiis
cruciaberis; contumelia laceraberis; impetum hostium
patientissime sustinebis. Protegat te uirtus Dei, qui Iacob,
generis nostri principem, aerumnis afflictum et sollicitudine
summa conturbatum, ex malis quibus erat circumuentus
OPERA OMNIA TOMO IV 139

tal maneira escorregadios que dificilmente alguém pode dar firmes


passadas sem cair. A vida está cheia de tantos [184] enganos e erros
que é muitíssimo difícil destrinçar os deveres dos delitos. Logo, se
todos estes forem julgados com todo o rigor e Tu avaliares os nossos
atos de acordo com a estrita letra da lei, quem poderá manter-se
inocente durante a vida? Por consequência, ó mui misericordioso
Senhor, rogo-Te que não procedas comigo com a máxima severidade
da lei e que compassivo me perdoes as faltas em que incorri, pecando
por ignorância. E preserva-me, Senhor, daquelas que se cometem com a
vontade obstinada no pecado incorrido e que resultam da contumácia:
não deixes que torpemente me manchem e me separem da união com
a Tua graça. É que, na medida das minhas capacidades, esforçar-me-
ei por não incorrer, deixando-me guiar pela soberba, no desprezo da
Tua lei nem sacrilegamente e por minha livre e espontânea vontade
delinquir. Todavia será totalmente impossível fazer isto se não me
apoiares com a Tua ajuda. Pelo que, se me conservares seguro e a
salvo dos males da soberba e sem que, deste modo, nenhum outro
pecado mantenha a minha alma sob o seu senhorio, então conservarei
aquela inocência que é possível a um homem que muito ama a
piedade conservar nesta fraca condição da natureza, e afastarei de
mim o contágio do abominável pecado. Por conseguinte, graças à
Tua compaixão acontecerá que as minhas palavras Te serão gratas e
agradáveis aos Teus olhos os pensamentos do meu coração, ó supremo
Senhor, com cuja ajuda sou defendido e alcanço a liberdade, depois
de pago o devido preço.

SALMO 19
(20 para os Hebreus)
O Senhor te ouça no dia da tribulação.

O sempiterno e supremo Rei, que firmou na cruz o seu poder, sendo


também santíssimo sacerdote, naquele dia em que foi levantado na cruz
não só assegurou as riquezas do seu Reino, como também desempenhou
a função do sacerdócio. É que destruiu as tropas dos inimigos e ofereceu
o sacrifício do seu próprio sangue. Por conseguinte, David, contemplando
em espírito este sacrifício, exclama, dizendo:
Que o Senhor te escute nesse momento em que serás atormentado com
dores lancinantes; em que serás ferido com ultrajes; em que suportarás com
a máxima paciência a arremetida dos inimigos. Que te proteja a virtude
de Deus, que arrebatou Jacó, iniciador da minha linhagem, atribulado por
provações e angustiado por enorme inquietação, do meio dos males que o
140 D. JERÓNIMO OSÓRIO

eripuit. Mittat similiter tibi praesidium de templo sancto


Suo, in quo sedem Sibi exstruxit ut inde sanctorum precibus
et uotis occurreret, et ex Sione caelesti auxilium tibi
praesentissimum, cum in te hostium furor exarserit, importet.
Teneat ille semper memoria oblationis tuae sanctitatem
et sacrificii acceptissimi religionem, qua illum placandum
suscipies. Non enim pecudes immolabis, non hircorum
aut uitulorum sanguinem fundes; non odores terrestres
adolebis, sed te ipsum ad sacrificium offeres precesque
sanctissimas adhibebis, quibus nos a lege diuina nefarie
dissidentes, cum Deo in gratia ponas. Cum uero in lege illud
sacrificium omnium gratissimum esse uideatur, quod totum
flammis absumitur, illud certe sacrificium acceptissimum
atque gratissimum [185] Patri fore confidimus quod erit
a te igne ardentissimi amoris inflammandum. Amor enim
te ad supplicium adiget illiusque uis tibi uitam eripiet,
ut uitam multis mortalibus opere caritatis ardentissimo
largiaris. Nihil est enim Deo in procuanda religione animo
uehementer inflammato iucundius.
O admirandum diuinae caritatis exemplum, in omni
saeculorum aeternitate hominum et angelorum praedicatione
celebrandum! Serui liberandi gratia Dominus immolatur; ut
hominis nocentis scelus expietur, innoxius sanguis atque plane
diuinus effunditur, et ut ignis caelestis in animis hominum
qui fuerant a caeli conspectu diuulsi implicetur, diuini amoris
incendium ab ipso Dei filio, quo ipse ardeat, excitatur. Erit igitur
hoc sacrificium Deo gratissimum, qui postulatis tuis omnibus
egregie satisfaciet Illiusque gratia et benignitate consilia tua
exitum felicissimum consequentur. Mors enim ad uitam aditum
aperiet; ignominia decus et honestatem constituet; mentes,
humi defixae, caelestem maiestatem intuebuntur; homines,
addicti flagitiis, in studio diuinae uirtutis elaborabunt; gentes,
a diuinis placitis alienae, acerrima sese contentione ad tuum
nomen adiungent, quarum tandem aemulatione prouocatus
Israel, e tenebris emersus, lucem amissam recipiet. Huc enim
preces tuae referuntur, huc consilia tua diriguntur, ut omnibus
qui tantum beneficium contumaciter aspernati non fuerint,
aeterna salus afferatur: quod quidem admodum feliciter
effectum Dei Parentis benignitate conspicies. Non igitur, ut
sperabant improbi, fuit morte tua interitus cogitationibus tuis
sanctissimis allatus, immo tunc omnia, quae mente uersabas,
fuerunt egregie constituta.
OPERA OMNIA TOMO IV 141

assoberbavam. Que igualmente te mande ajuda a partir do Seu santo templo,


no qual edificou morada para Si a fim de desde lá acorrer às rogativas
e preces dos santos, e que desde a celestial Sião te traga eficacíssimo
socorro, quando a sanha dos inimigos se inflamar contra ti. Que Ele
conserve sempre na memória a santidade da tua oblação e a religiosidade
do sacrifício a ti muito aceito mediante o qual empreenderás aplacá-Lo.
Com efeito, não imolarás ovelhas e cordeiros, nem derramarás o sangue de
bodes ou almalhos; não queimarás essências da terra, mas oferecer-te-ás
a ti mesmo em sacrifício e pronunciarás as santíssimas preces mediante
as quais nos hás de colocar na graça de Deus, a nós que sacrilegamente
nos tínhamos separado da lei divina. E, uma vez que na lei parece que o
mais grato de todos os sacrifícios é aquele que é inteiramente consumido
pelas chamas, certamente que temos confiança de que o sacrifício mais
aceito e grato [185] ao Pai há de ser aquele em que tu deverás arder
ateado pelo fogo do mais ardente amor. É que é o amor quem te compele
ao sacrifício e a força dele há de arrancar-te a vida, por forma a por obra
da tua ardentíssima caridade presenteares com a vida inúmeros mortais.
Com efeito, nada é mais agradável para Deus do que uma alma vivamente
abrasada no cumprimento das obrigações religiosas.
Oh admirável exemplo da caridade divina, que merece ser celebrada
por todos os séculos dos séculos pelo pregão dos homens e dos anjos!
O Senhor é imolado a fim de libertar os escravos; para que o crime do
homem perverso seja expiado, derrama-se o sangue inocente e totalmente
divino, e para que o fogo celestial penetre nas almas dos homens que se
tinham separado da visão do céu, o incêndio do amor divino é ateado
pelo próprio Filho de Deus, para nele abrasado arder. Por conseguinte,
este sacrifício há de ser muitíssimo grato a Deus, o qual há de satisfazer
de sobejo a todos os teus pedidos e com a Sua graça e bondade os
teus desígnios hão de alcançar venturoso cumprimento. Com efeito, a
morte abrirá o acesso à vida; a ignomínia criará o lustre e honra; os
entendimentos, fixos na terra, hão de contemplar a majestade celestial;
os homens, ligados às indignidades, hão de consagrar-se ao zelo da
divina virtude; os povos, alheios aos divinos mandados, com ardentíssimo
empenho hão de seguir o teu nome, incitando a emulação de Israel, que,
por fim, saindo das trevas, há de acolher a luz que perdera. É que os
teus rogos dirigem-se e as tuas deliberações encaminham-se a um só fim,
que é oferecer a salvação eterna a todos os que de modo obstinado não
desprezarem um tão grande benefício: algo que decerto verás levado a
cabo assaz venturosamente pela bondade de Deus Pai. Por conseguinte,
ao invés do que esperavam os ímpios, com a tua morte não se deu fim
aos teus santíssimos desígnios, e até então se estabeleceu de modo
extraordinário tudo quanto em teu espírito pensavas.
142 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Exsultabimus igitur Dominique laudes concinemus et salutem,


non exiguo tempore definitam, sed sempiternam, non Iudaeae
finibus inclusam, sed in omnes gentes latissime diffusam, quam
Deus opera tua nobis attribuit, celebrabimus, et signum, ad
quod omnes gentes undique confluent, erigemus. Multi namque
mortales tibi nomina dabunt; apud te sacramento dicent; sub te
imperatore stipendia facient; illustremque uictoriam de perenni
hoste generis humani consequentur. His operibus admirandis
certus sum Deum salutem Christo Suo contulisse, fierique non
posse ut ullo tempore postulata illius repudiet. Itaque, precibus
illius a seueritate ad misericordiam inflexus, dexterae Suae
robore fundit hostes, prosternit acies et eorum, qui te sequuntur,
salutem et dignitatem mire constituit.
Hac igitur fide muniti, nullum bellum metuemus; nullas
hostium minas formidabimus; nullae res, specie horribili
metuendae, nos de mentis statu deiicient. Alii quidem
curribus inuecti nos adorientur; alii equos in nos acriter
incitabunt; at nos Domini et imperatoris nomen fidenter
inuocabinus. Et illi quidem, uiribus elati, animis atque telis
instructi, multitudine circumsaepti, cum in nos impetum
tulissent, miserrime conciderunt et ruina grauiter oppressi
sunt, at nos, ab opibus humanis inopes omniumque
mortalium auxilio destituti, constitimus et uictoriam adepti
sumus. [186] O Domine, salutem conferi regnique huius
statum perpetua felicitate confirma: ipse Rex summus,
qui omnia potestate infinita complectitur, nos exaudiat
quotiens Illius nomen inuocabimus.

Domine, in uirtute Tua laetabitur rex.


Psal. 20. Apud Heb. 21

Eundem Regem, quem Dauid praecedenti carmine celebrauit,


hoc quod sequitur laudibus diuinis ornate et illius maiestatem
et amplitudinem luculentissima oratione complectitur. Non
enim se neque Solomonem neque quemquam alium regem,
definito imperio florentem, laudibus efferendum suscipit,
sed illum summum caeli Imperatorem, regem sempiternum,
in Sione a Patre summo constitutum admiratur, et extollit
illiusque diuinam uirtutem elegantissimo dicendi genere
describit. Sic igitur Deum alloquitur:
OPERA OMNIA TOMO IV 143

Portanto, exultaremos de alegria e entoaremos os louvores do Senhor


e celebraremos a salvação, que por obra tua Deus nos concedeu, não
limitada por escasso prazo de tempo, mas eterna, nem restringida às
fronteiras da Judeia, mas vastamente derramada por todos os povos, e
ergueremos o pendão, para a ele de toda a parte acudirem todos os povos.
Na verdade, muitos mortais hão de colocar-se sob as tuas bandeiras;
prestarão juramento diante de ti; receberão soldo tendo-te como seu
general; e hão de alcançar brilhante vitória sobre o perpétuo inimigo
do género humano. Por estas obras admiráveis estou convencido de que
Deus ofereceu a salvação ao Seu Cristo, e que não pode acontecer que
em tempo algum rejeite os seus pedidos. Por isso, desviado pelos rogos
dele da severidade para a misericórdia, com a força da Sua destra põe em
fuga os inimigos, derriba-lhes as hostes e de modo admirável estabelece
a dignidade e prosperidade daqueles que te seguem.
Por conseguinte, protegidos com esta fé, não temeremos guerra alguma;
não nos arrecearemos com quaisquer ameaças de inimigos; coisa alguma,
apresentada sob a mais assustadora aparência, há de fazer-nos perder a
nossa tranquilidade de ânimo. É certo que alguns hão de lançar-se contra
nós transportando-se em carros; outros violentamente contra nós hão de
esporear os seus cavalos; nós, porém, confiantemente havemos de invocar o
nome do nosso Senhor e general. E decerto que eles, tendo arremetido contra
nós ensoberbecidos com as suas forças, munidos de coragem e dardos e
esforçados pelo grande número, tombaram do modo mais miserável e ficaram
gravemente destruídos, ao passo que nós, pobres de recursos humanos e
privados do auxílio de todos os mortais, mantivemo-nos firmes e alcançámos a
vitória. [186] Oh Senhor, concede a salvação e com perpétua ventura fortalece
a situação deste reino: que o próprio Rei supremo, que com infinito poder
tudo abarca, nos ouça sempre que invocarmos o Seu nome!

SALMO 20
(21 para os Hebreus)
Senhor, o rei se alegrará na Tua fortaleza.

Ao mesmo rei, a quem David celebrou no salmo anterior, de modo


divino o louva neste que se segue e com palavras as mais perfeitas fala da
sua majestade e grandeza. De facto, não se propôs encarecer com louvores
nem a si mesmo, nem Salomão, nem qualquer outro rei, venturoso por
deter um poder concreto, mas admira e elogia aquele supremo Senhor
do céu, rei eterno, estabelecido em Sião pelo Pai supremo, descrevendo
com elegantíssimo estilo literário a sua divina fortaleza. Por conseguinte,
dirige-se a Deus nos termos seguintes:
144 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Domine, patientia tua laetabitur Rex et salute, quam


imperio et opibus Illius attulisti, mirabiliter exsultabit. Cum
enim laetitia e lumine uerae uirtutis oriatur, consequens
necessario est ut maximis uirtutibus maximae laetitiae sint
affines. Ergo, cum nullius uirtutis decus sit cum Regis huius
sanctissimi decore et honestate comparandum, certe constat
gaudium, quo triumphat, esse omnium maximum maximisque
munerum et donorum accessionibus amplificatum. Non enim
opibus humanis, sed diuinis, efficitur, non bonis interituris,
sed aeternis, cum insigni gloria, cumulatur. Viribus namque
Tuis hostes domuit atque contriuit, salutemque, benignitate
Tua egregie constitutam, suis impertiuit, quae non poterit ullis
umquam saeculis interire. Quis igitur animi tam florentis atque
beati laetitiam explicare dicendo poterit? Votorum omnium
compos effectus est; quae optabat, feliciter inuenit; quae
flagitabat, impetrauit; cuncta quae uoluit, ei cumulatissime
praestitisti. Optabat suis lucem, at Tu eos omnes clarissima
luce collustrasti; postulauit illis libertatem, Tu uero eos in
sempiternam libertatem asseruisti; omniaque tandem quæ
uehementer expetiuit, de Te consecutus est.
O admirabilem diuinae benignitatis amplitudinem, quae tam
effuse omnes diuinas opes in humanum genus, Christi meritis
et sanctitate, congessit! Itaque non lente et fastidiose, sed
tam libenti animo et cum tanta festinatione ut liberalitas Tua
orationem illius anteuerteret et, propemodum prius quam eius
preces ad aures Tuas peruenissent, omnia bona Tua, insigni
iucunditate referta, in illum contulisti; coronam, ex auro purissimo
factam, capiti illius imposuisti, ut Regnum sempiternum legibus
sempiternis adstringeret et rempublicam diuitiis uerissimis
opulentam redderet. Nominis aeternitatem a Te postulauit, quam
ei liberalissime concessisti; aeui sempiterni spatium Regno suo
concupiuit, et non fuit uoti sui fructu, aliqua ex parte, destitutus.
Sic enim statuisti ut nulla malorum tempestas aut saeculorum
uetustas [187] Regnum illius labefactaret, sed semper eadem uis
et maiestas et gloria Regis et Imperatoris nostri opibus summis
exaggerata permaneret. Illustre sane decus et amplum illius
exstitit, cum abs Te fuit salutem, quamsuis conferret, adeptus.
Omnes enim, quibus diuinae lucis splendor illuxit, perspectum et
cognitum habuerunt meritis illius omnia bona fuisse ad generis
humani salutem, Tuo beneficio, comparata.
Haec tamen gloria non in uno gradu restitit, sed in dies
magis illustrata et amplificata fuit; cum signis clarissimis
OPERA OMNIA TOMO IV 145

Senhor, o Rei se alegrará com a tua paciência e exultará de modo


admirável com a prosperidade que trouxeste ao Seu poder e riquezas. É
que, uma vez que a alegria nasce da luz da verdadeira virtude, segue-
se como necessária consequência que as maiores alegrias estejam
estreitamente vinculadas com as maiores virtudes. Logo, porque o lustre
e glória de nenhuma virtude é comparável com o lustre e glória deste
santíssimo Rei, é certamente manifesto que o regozijo com que Ele
triunfa é de todos o maior e aumentado com os maiores acréscimos de
dádivas e mercês. Com efeito, ele não resulta de recursos humanos, mas
dos divinos, nem aumenta com bens perecíveis, mas com os eternos, em
união com extraordinária glória. De facto, com as Tuas forças dominou e
esmagou os inimigos, e repartiu com os seus a salvação, estabelecida pela
Tua bondade singular e que não poderá em tempo algum perecer. Por
conseguinte, quem poderá expor por palavras a alegria de uma alma tão
próspera e venturosa? Viu realizados todos os seus desejos; ditosamente
encontrou o que anelava; alcançou o que pretendia; tudo o que quis, Tu
lho concedeste abundantemente. Pedia para os seus a luz, mas Tu com luz
claríssima a todos iluminaste; para eles rogou a liberdade, e Tu puseste
à disposição deles a liberdade eterna; e, enfim, tudo que vivamente Te
suplicou, de Ti alcançou.
Oh admirável grandeza da bondade divina, que tão abundantemente
ajuntou todas as riquezas divinas para, pelos merecimentos e santidade
de Cristo, as oferecer ao género humano! Por isso, não foi de modo tardo
e com enfado, mas de tão bom grado e com presteza tão grande que a
Tua liberalidade se antecipou às palavras dele e, quase antes que os seus
rogos tivessem chegado aos Teus ouvidos, lhe ofereceste todos os Teus
bens, transbordantes de extraordinário contentamento; colocaste sobre a
sua cabeça uma coroa feita do mais puro oiro, para que sujeitasse o reino
sempiterno às leis eternas e tornasse a pátria opulenta nas mais verdadeiras
riquezas. Pediu-Te um nome eterno, que com a máxima liberalidade lhe
concedeste; vivamente anelou para o seu reino um prazo de tempo eterno,
e o seu pedido não deixou de ser atendido em nenhuma das suas partes.
É que Tu determinaste que nenhum flagelo de males nem o longo curso
de tempo [187] abalariam o seu reino, mas que a força, majestade e glória
do nosso Rei e Senhor se manteriam para sempre acrescentadas com as
mais subidas riquezas. Sua beleza grande e resplandecente sobressaem,
ao obter de Ti a salvação, para oferecê-la aos seus. É que todos aos
quais iluminou o esplendor da luz divina entenderam e souberam que
foi mediante os merecimentos dele que, por bondade Tua, se alcançaram
todos os bens para a salvação do género humano.
Esta glória todavia não se restringe a um único grau, mas de
dia para dia foi crescendo de dimensões e resplendor; com sinais
146 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et operibus admirandis perfecisti ut decus illius augeretur,


et homines, quo lumen clarius assumebant, eo maiora et
altiora de amplitudine illius cogitarent. Non enim opes illius
in terra fundatae, sunt tempestatibus humanis obiectae,
sed in diuino patrimonio et hereditate constitutae, ut in
omni aeternitate stabiles et fixae permaneant. Illum igitur
summa laetitia, quae ex uultus Tui splendore perpetuo
manat, egregie cumulabis. Rex enim, Dei praesidio nixus,
eam fidem constantissime retinebit et, cum summi et
excelsi Domini misericordia munitus sit, numquam a statu
suo demigrabit nec a Dei coniunctione diuelli poterit, et
ita semper in gaudio summo uersabitur, quia numquam a
laetitiae fonte deseretur.

Et tamen erit quisquam, o Rex clementissime, qui te, quem


summus Pater tantis donis et muneribus affecit, tantis uirtutis
diuinae praesidiis instruxit, cuius gratia tam saepe ueniam
hominum sceleribus impertiuit, immani odio persequatur?
Qui, pro acceptis beneficiis, tibi interitum machinetur?
Qui numen sanctissimum perditis conatibus oppugnet?
Vlciscere tantum scelus, ne facinus infandum hostium tuorum
maneat impunitum, dextera tua poenas de tam detestabili
et exsecranda inimicorum tuorum perfidia reposcat. Cum
autem opportuno tempore fuerit a te iudicium cum debita
seueritate constitutum, illos, quasi incenso fornace, flammarum
incendio cruciabis; ira Dei eos populabitur et ignis ardore
sempiterno conficiet. Interim uero eorum posteritatem ex
terrarum finibus exterminabis, perditorum hominum semen
ex hominum memoria funditus euelles. Te namque odio
acerbissimo insectati sunt, tibique pestem impie machinati
sunt, eaque consilia suscepere quae ad exitum perducere
minime potuerunt. Ipsam namque lucem tenebris obruere,
uitae fontem morte delere, decus sempiternum insigni
dedecore maculare conabantur. Irritis igitur conatibus in
caelum inuecti sunt; et temeritatis insuper et extremae
dementiae poenas luent. Eos namque libertate spoliabis, ut
humeris suis intoleranda pondera et tyrannorum immania
tributa sustineant sagittisque frequenter emissis grauissime
sauciabis, usque eo dum in cruciatum sempiternum coniicias.
Fac, o summe Domine, insigne iudicium Tuum; et arma Tuae
potentiae atque iustissimae seueritatis assume, ut hymnis et
canticis potentiae Tuae magnitudinem celebremus.
OPERA OMNIA TOMO IV 147

muitíssimo claros e obras espantosas fizeste que o lustre e honra dele


aumentassem, e que os homens, quanto mais claramente os inundava
a luz, tanto pensassem cousas maiores e mais elevadas acerca da sua
grandeza. É que as riquezas dele não estão expostas aos flagelos
humanos, como as fundadas na terra, mas constituem um património e
herança divinos, por forma a permanecerem estáveis e firmes por toda
a eternidade. Por conseguinte, hás de singularmente enchê-lo com a
mais elevada alegria, que nasce do perpétuo esplendor do Teu rosto.
É que o rei, apoiando-se na ajuda de Deus, há de conservar esta fé
com a máxima firmeza e, uma vez que se encontra abroquelado com
a misericórdia do altíssimo e supremo Senhor, jamais perderá a sua
alta condição e não poderá ser apartado da união com Deus, e deste
modo viverá sempre no mais cabal contentamento, porque nunca se
afasta da fonte da alegria.
Mas mesmo assim, ó mais misericordioso dos reis, haverá alguém
que a ti, a quem o Pai supremo concedeu tão grandes dádivas e
mercês, proveu de tão grandes ajudas de divina fortaleza, cuja graça
tão amiúde ofereceu liberal perdão aos crimes dos homens: haverá
alguém que desumanamente te odeie? Que maquine a tua morte em
pago dos benefícios recebidos? Que com per versos atentados se
arremesse contra a tua santíssima divindade? Castiga um tamanho
crime; para que não fique impune o abominável pecado dos teus
inimigos, que a tua destra dê o castigo de uma tão detestável e execrável
aleivosia dos teus adversários. Ora, quando, no momento oportuno,
com o devido rigor, procederes ao julgamento, hás de atormentá-los
com o fogo das chamas, como abrasada forja; a ira de Deus há de
aniquilá-los e o fogo destrui-los com eterno ardor. E entretanto hás
de expulsar os seus descendentes dos confins da terra, arrancarás
de raiz da memória humana a semente dos homens perversos. É que
com entranhadíssimo ódio se encarniçaram contra ti, e sacrilegamente
maquinaram a tua perdição, e empenharam-se em empresas que não
lograram levar a termo. Com efeito, esforçavam-se por esconder a
própria luz com as trevas, por destruir com a morte a fonte da vida
e por manchar com desdouro infamante a glória sempiterna. Por
conseguinte, arremeteram contra o céu com inúteis tentativas; e, além
disso, serão punidos pelo desatino e pela rematada sandice. De facto,
hás de privá-los de liberdade, por forma a carregarem sobre os seus
ombros o intolerável peso e os cruéis tributos dos tiranos e feri-los-ás
com bastas e amiudadas frechadas, até os arremessares nos tormentos
sempiternos. Procede, ó supremo Senhor, ao Teu terrível julgamento;
pega nas armas do Teu poder e do Teu justíssimo rigor, para que
celebremos com hinos e cânticos a imensidão do teu poder.
148 D. JERÓNIMO OSÓRIO

[188]

Deus, Deus meus, respice in me:


quare me dereliquisti?
Psal. 21. Apud Heb. 22

Hoc in loco uir diuinus, instinctu diuini Spiritus, Christum


inducit cruciamenta, quae pertulit, acerbissime lamentantem,
ut deinde ‘posteriores glorias’, ut Petrus ait, quas sibi
cruciatibus comparauit, ostenderet. Inquit igitur ipse nostrae
salutis architectus, qui se ad supplicium pro nobis obtulit:
O Domine, quem semper amaui, colui, ueneratus sum,
in quo solo omnia praesidia uitae constitui, cur me in tam
insigni calamitate deseris? Num ob id quod opem Tuam non
imploro? Hoc dici non potest, tanta enim contentione ad te
clamo ut uox mea, ui summi doloris emissa, magis rugitus
leonis quam uox humana uideatur. Et tamen, quo magis
inclamo, eo longius remedium meae salutis abscedit. Die
clamoribus summis auxilium peto, et non exaudis; nocte,
cum lacrimis et fletu, ut misericordiam mihi tribuas, oro, et
tamen nullum experior acerbissimi cruciatus alleuamentum.
Dicemus Te eorum res qui nomen Tuum metuunt et in Te
spem suam positam habent neglegere? Nullo modo. Nam
in templo sancto Tuo sedem collocasti ut Tuorum preces
audires et, cum, pressi aerumnis, exclamarent, opem
confestim afferres. Porro autem haec semper fuit populi Tui
gloria, ut numquam sine fructu ad gratiae Tuae thronum
confugeret, et, cum reliquae nationes a diis commenticiis,
quibus erroris opinione supplicabant, auxilium flagitarent,
frustra in auxilio flagitando laborarent: hi soli qui ad
Te, uerum Deum, pie atque fidenter adibant, remedium
praesentissimum continuo sentiebant. Quis enim fuit
umquam eorum qui in Te spem salutis suae ponebant ab ope
Tua derelictus? Patres nostri Tibi se firma fide commiserunt
et fuerunt ope uirtutis Tuae potentissima liberati. Ad Te
clamauerunt et salui facti sunt; in Te omnem spem salutis et
dignitatis collocatam habuerunt et nullo ex ea fide dedecore
contaminati sunt. Non enim eos fefellit spes quam in Te,
unico uitae praesidio, collocarant.
Quid igitur dicam? Mihi soli esse clementiae Tuae
magnitudinem, quae semper omnibus patuit qui in fide
Tui sanctissimi nominis acquiescunt, interclusam? Mihi soli
OPERA OMNIA TOMO IV 149

[188]

SALMO 21
(22 para os Hebreus)
Deus, Deus meu, olha para mim: porque me desamparaste?

Neste lugar, o divino varão, por inspiração do Espírito de Deus, introduz


Cristo a lamentar-se pungentissimamente dos tormentos que suportou,
para mostrar depois a glória que se lhe seguiria, consoante diz S. Pedro,
[1 Ped 1. 11.] que obteve através dos seus sofrimentos. Portanto, o obreiro
da nossa salvação, que se ofereceu por nós à morte, diz:
Ó Senhor, a quem sempre amei, adorei e venerei, que és o único em
quem estabeleci toda a salvaguarda da vida, porque é que me abandonas
no meio de tão grande calamidade? Porventura porque não imploro a
Tua ajuda? Tal não pode afirmar-se, porquanto por Ti clamo com brados
tão elevados que a minha voz, lançada com o ímpeto da dor mais
cruciante, mais parece o rugido de um leão do que uma voz humana.
E não obstante, quanto mais brado, tanto se aparta para mais longe o
remédio da minha saúde. Durante o dia peço ajuda com os mais altos
clamores, e não me escutas; durante a noite, com lágrimas e lamentos
imploro-Te que tenhas misericórdia de mim, e todavia não experimento
nenhum refrigério para o meu acerbíssimo padecer. Haveremos de
dizer que Tu desprezas os interesses daqueles que temem o Teu nome
e têm posta em Ti a sua esperança? De forma alguma. Com efeito,
estabeleceste morada no Teu santo templo para ouvires as preces dos
Teus e para imediatamente os socorreres, assim que, obrigados pelas
tribulações, soltavam bramidos. Ora, a glória do Teu povo sempre se
fundou em que nunca recorreu em vão ao trono da Tua graça, e, uma
vez que os restantes povos rogavam auxílio aos falsos deuses, a quem,
por erro de opinião, dirigiam súplicas, era debalde que se esforçavam
em pedir ajuda: só imediatamente sentiam a ação eficaz do remédio os
que com piedade e fé Te invocavam a Ti, Deus verdadeiro. De facto, a
qual deixaste jamais de prestar a Tua ajuda, de entre aqueles que em
Ti punham a esperança da sua salvação? Os nossos antepassados a Ti
se entregaram com firme fé e foram libertados graças à potentíssima
ajuda da Tua virtude. Por Ti chamaram e salvaram-se; colocaram em Ti
toda a esperança de salvação e dignidade e, devido a esta fé, não foram
manchados por nenhum desdouro. De facto, não os enganou a esperança
que tinham posto em Ti, que és o único sustentáculo da vida.
Por conseguinte, que hei de dizer? Que só eu fui privado da grandeza
da Tua misericórdia, que esteve sempre à disposição de todos os que
repousam na fé do Teu santíssimo nome? Que só para mim secou a
150 D. JERÓNIMO OSÓRIO

fontem inexhaustum atque perennem immensae benignitatis


exacuisse? Me solum, in tanta sanctorum hominum multitudine,
ope Tua destitutum, inimicis deridendum atque cruciandum
relictum esse? Num dici potest illos sanctos patres, qui a
Te adiuti sunt, e grauissimis malis ereptos fuisse, me uero
multo leuioribus afflictari? Non prorsus. Quis enim umquam
grauiores dolores hausit acerbioraque supplicia perpessus
est? Omnes in me sic animis efferati sunt ut nihil mihi secum
commune esse statuant et proinde, quamuis me uideant
intolerandis doloribus excruciari, ad nullam partem lenitatis
et mansuetudinis impelluntur. Itaque me non hominem, sed
uermiculum [189] ducunt. Sum hominum insigne dedecus et
probrum multitudinis, illis qui me sequuntur obiectum, ita
ut multi ex meo nomine contumeliam sumant quam in illos,
quos uelint conscindere maledictis, intorqueant. Omnes qui
me uident mihi petulanter illudunt; labia distorquent; crebris
capitum motibus meis cladibus insultant eaque maledicta
iaciunt quae in contumeliam Tui nominis et gloriae redundant.
Sic enim loquuntur:
“Id semper hic prae se tulit ut ex omnibus curis suis in
solo Deo, unico suae uitae praesidio, conquiesceret. Videamus
igitur huius fidei quem fructum ferat. Liberet nunc eum Deus;
dolorem abstergat; uulnera sanet eumque a mortis faucibus
eripiat, si actiones illius gratia Sua complexus est.”
Haec illi saepe dicunt. Quibus uerbis non mediocrem
ignominiae maculam sanctitati Tui nominis inurunt. Cum
enim me temeritatis insimulant quod, humanis opibus omnino
contemptis, Te solum salutis uindicem et uitae defensorem
adoptauerim, non de Tua fide male sentiunt? Non secum
statuunt Te supplicum Tuorum salutem neglegere? Non
opinantur Te minime seruare pacta, quibus Te ad spem Tuis
afferendam foederibus sanctissimis adstrinxisti? Haec igitur
contumelia, quam in me iaciunt, nomen Tuum grauissime laedit
et, cum mihi uitio uertunt quod uitam non alio praesidio quam
spe benignitatis Tuae munierim, indignissimum conuicium
Tuae probitati, promissorum Tuorum constantiae, faciunt.
Suscipe, igitur, Domine, causam dignitatis Tuae eorumque
audaciam comprime qui laudibus Tuis maculam insignis
dedecoris adspergere nituntur.
Si igitur clementiae magnitudo qua semper erga Tuos usus
es, et si doloris asperitas, qua indignissime torqueor; si gloriae
Tuae causa, quae ab improbis hominibus infando conuicio
OPERA OMNIA TOMO IV 151

fonte inesgotável e perene da imensa benignidade? Que, em tão grande


multidão de homens santos, só eu fiquei privado da Tua ajuda e fui
deixado para ser zombado e atormentado pelos inimigos? Acaso pode
dizer-se que aqueles santos patriarcas, aos quais Tu ajudaste, foram
arrancados de males gravíssimos, ao passo que são muito mais ligeiros
aqueles que me afligem? Seguramente que não. Com efeito, quem é que
jamais padeceu dores mais fortes e suportou suplícios mais pungentes?
Todos de tal maneira se assanharam contra mim que crêem que nada
existe de comum entre nós e por isso, embora me vejam ser atormentado
por dores intoleráveis, nenhum sentimento de mansidão e de bondade os
comove. E assim consideram-me não como um homem, mas como uma
sevandija.[189] Sou o opróbrio dos homens e a infâmia da multidão,
lançada em rosto àqueles que me seguem, de tal maneira que muitos tiram
do meu nome o ultraje que arremessam contra aqueles a quem querem
humilhar com insultos. Todos os que me vêem de mim impudentemente
escarnecem; fazem esgares com os lábios; com meneios frequentes da
cabeça, insultam a minha desgraça e proferem aquele tipo de injúrias
que redundam em afronta do Teu nome e glória. Na verdade, as suas
palavras são deste teor:
“Este sempre fez gala de que só em Deus, único sustentáculo da sua
vida, repousaria de todos os seus cuidados. Vejamos então qual é o fruto
que colhe desta confiança. Que Deus o liberte agora; que lhe dissipe a
dor; que lhe cure as feridas e o arranque das fauces da morte, se é que
com a Sua graça abraçou as ações dele.”
É isto o que amiúde eles dizem. Com estas palavras irrogam uma mancha
nada pequena à santidade do Teu nome. Com efeito, ao acusarem-me de
desatino, por, com total desprezo de todos os recursos humanos, Te haver
escolhido como único garante da salvação e defensor da vida, não é que
estão a ter uma ruim opinião acerca da Tua retidão? Não estão a pensar
para consigo que desprezas a salvação dos que Te pedem socorro? Não
estão a supor que não respeitas os pactos pelos quais Te comprometeste,
através de santíssima aliança, a cumprir as esperanças dos Teus? Portanto,
estes insultos, que contra mim proferem, ultrajam gravemente o Teu
nome, e, ao censurarem-me por não me abroquelar com outra guarda
que não seja a esperança da Tua bondade, cometem um indigníssimo
agravo contra a Tua probidade e a firmeza das Tuas promessas. Por isso,
Senhor, defende a causa da Tua dignidade e reprime a audácia daqueles
que se empenham em lançar a mancha de um enorme desdouro sobre
os Teus merecimentos.
Por conseguinte, se a grandeza da misericórdia de que sempre usaste
para com os Teus, e se a violência da dor, com que imerecidamente sou
atribulado; se a causa da Tua glória, que homens perversos violam com
152 D. JERÓNIMO OSÓRIO

uiolatur; si omnes istae rationes a Te misericordiam flagitant:


cur diutius quam imbecillitas humana sustinere queat opem
Tuam differendam censes? Nec enim dici potest uel Te meum
nomen odio semper habuisse uel me parum sancte religionem
Tuam coluisse. Tu enim me ex utero genitricis eduxisti et
in uberibus matris meae gratia Tua protexisti; beneficio Tuo
singulari me mater enixa est; ut Tibi ardentissimo studio
et acerrima contentione seruirem in lucem editus sum, et
iam ex utero matris meae Tu mihi Deus fuisti, et ego ad
religionem Tuam sanctissime procurandam Spiritus Tui
monitis et disciplinis incitatus sum, et ita me semper gessi ut
numquam imperium Tuum ullo modo recusarem. Si igitur me
semper insigni fauore et gratia amplexus es, et ego Te summa
semper fide ueneratus sum, uide quantum ad dignitatem
Tuam pertineat me praesidio Tuo e tantis cruciatibus educi.
Te igitur quantum possum oro et obsecro, et per immensam
magnitudinem Tuae probitatis obtestor, ne praesidium Tuum
a me longe remoueas, cum tam prope sit angor et cruciatus,
et nemo sit qui auxilium ferat.
Circumdederunt me uituli permulti et tauri ualde truculenti
me obsessum tenuerunt. Non homines, sed immanes belluae
sunt ii quos in me odium et furor incitauit, et illorum [190]
omnium conatus eo comparantur ut me omni crudelitate
dilacerent. Quilibet eorum impudentissimioris hiatu mihi
maledicit et, quasi leo, ut rapiat atque dilaniet in me furenter
inuehitur. Effusus sum sicut aqua; omnia ossa mea locis diuulsa
atque dissipata sunt; cor meum, intra uiscera mea liquefactum,
tamquam cera diffluxit; robur meum ut testa exsecatum
contabuit; lingua mea palato meo uehemeter adhaesit; corpus
meum, uulneribus concisum et plagis foede contusum, in mortis
puluerem detrusisti. Ea enim quae homines impii in me nefarie
moliuntur et efficient ad Tuum permissum reuocanda sunt, eo
quod per Te a pestifero conatu depelli facillime potuissent.
Illi, Te inspectante, ut canes, horribili latratu, me, ut morsibus
discerperent, circumdederunt; homines malefici, consensione
sceleris in meam perniciem conspirantes, me circumuenerunt;
manus meas et pedes meos immanissime transfixerunt; arcus
mei tanta ui distenti sunt ut emineant ossa mea ita ut a me
numerari possint. At illi, nihilo mitiores effecti, oculis in me
defixis uoluptatem e cruciatu meo capiebant et sanguine meo,
in eorum adspectu profuso, suam crudelitatem satiabant. Milites
qui me ad crucem adegerant, inter se uestem meam diuiserunt,
OPERA OMNIA TOMO IV 153

um ultraje abominável; se todos esses motivos instantemente reclamam a


Tua misericórdia: por que Te parece que deves atardar o Teu auxílio por
mais tempo do que é capaz de suportar a fraqueza humana? É que nem
se pode dizer que Tu sempre odiaste o meu nome nem que eu pratiquei
com pouca santidade a Tua religião. De facto, foste Tu que me tiraste
do ventre da minha mãe e com a Tua graça me protegeste no seio da
minha progenitora; foi por Teu benefício singular que a minha mãe me
deu à luz; nasci para servir-Te com ardentíssimo desvelo e inquebrantável
esforço, e foste o meu Deus já desde o útero materno, e pelos conselhos
e ensinamentos do Teu Espírito fui incitado a santissimamente me ocupar
da Tua religião, e por tal forma sempre me comportei que de modo
algum jamais recusei o Teu poder. Portanto, se sempre me abraçaste
com extraordinário favor e graça, e se eu sempre Te respeitei com a
mais completa fé, vê o quanto tange à Tua dignidade que o Teu socorro
me arranque de tão grandes tormentos. Por isso, com todas as veras do
meu espírito Te peço e suplico, e Te rogo pela imensa grandeza da Tua
bondade, que não apartes de mim o Teu socorro, quando sobre mim tão
próximas se abatem a angústia e a tribulação, e não havendo ninguém
para me acudir.
Muitos bezerros me rodearam e touros sobremodo violentos mantiveram-
me cercado. Não são homens, mas bestas-feras aqueles a quem o ódio
e a vesânia incitaram contra mim, [190] e todos os seus esforços se
encaminham a dilacerar-me com toda a espécie de crueldades. Qualquer um
deles abre a boca para me ultrajar e, à semelhança do leão, furiosamente
arremete sobre mim, para me arrebatar e despedaçar. Derramei-me como
a água; todos os meus ossos foram desconjuntados e destruídos; o meu
coração, liquefeito no interior das minhas entranhas, dissolveu-se como
cera; o meu vigor definhou como barro cozido; a minha língua colou-se
fortemente ao meu palato; precipitaste no pó da morte o meu corpo,
retalhado de ferimentos e horrivelmente moído de pancadas. É que, tudo
isto que contra mim sacrilegamente obram e fazem os homens ímpios, deve
ser atribuído ao Teu consentimento, uma vez que com a maior facilidade
eles teriam podido ser desviados por Ti do seu perverso empenho. Sob o
Teu olhar, eles me rodearam como cães, ladrando horrivelmente, para me
despedaçarem com as suas mordeduras; os homens ruins, concordes no
desígnio criminoso, atacaram-me por todos os lados; desumanamente me
trespassaram os pés e as mãos; com tamanha violência me distenderam o
tórax que os meus ossos ressaltavam de tal maneira que me era possível
contá-los. Eles, porém, sem se amansarem um pouco, com os olhos postos
em mim, sentiam prazer com o meu tormento e cevavam a sua crueldade
no meu sangue, derramado à frente deles. Os soldados, que me tinham
conduzido até à cruz, repartiram entre si as minhas roupas; mas à túnica
154 D. JERÓNIMO OSÓRIO

tunicam uero (non fuit enim illis consilio Tuo permissum ut


eam similiter diuiderent) sorti commiserunt, ut eam is, cui tali
iactus contingeret, solus asportaret. Sic autem de rebus méis
inter se deliberabant, ut appareret animos omnium desperatione
meae salutis occupatos fuisse.
Nunc igitur, o Domine, cum hostes se uictoriam consecutos
arbitrantur, robur inuictum Tuae uirtutis assume, et ostende
nullam esse uim quae potentiae Tuae possit obsistere, cum
etiam mortem, quae omnia demolitur, exstinguat. Hoc autem
explorate perspici poterit cum me, uita functum et in sepulcro
conditum, in uitam reuocaueris. Tu enim es uita mea atque
robur meum. Si igitur a me digressus minime fueris, neque
poterit uita mea exstingui neque robur infirmari. Accelera
igitur ut mihi opem feras et uirtutis infinitae uim in hominum
oculis et adspectu propone, ut quorundam pietas propemodum
exstincta reuiuiscat. Libera a gladio mortifero, hoc est, a
Satanae tyrannide, animam meam, Tui solius ope confidentem;
e leonis faucibus eripe me et a cornibus unicornium, qui in
me furenter irruunt, ut uitam meam furibunde conficiant.
Hostes enim generis humani, qui me, generis humani uindicem,
crudelissime persequuntur, rabidi canis impudentiam et leonis
immanis truculentiam et unicornis robustissimi uiolentiam
assumunt, ut non solum mihi uitam eripiant, sed etiam
memoriae nominis mei sempiternum exitium moliantur.
Sed abscedant gemitus, querellae sileant: praesidium
adest; dolori est finis impositus; summae gloriae lumen
exoritur. Tantum igitur abest ut hostes, quod conantur,
efficiant ut ipse potius sim eorum acies profligaturus et ipsi
morti necem illaturus, ut deinceps nemo sit ex illis, qui ad
nomen meum adiuncti fuerint, qui uim mortis extimescat.
Tunc igitur, summe Domine, [191] cum de uictis hostibus
clarissimum triumphum egero, annuntiabo nomen Tuum
fratribus meis et in medio sanctae contionis Te laudibus
sempiternis afficiam.
Iure fratres meos appello quos Tu, Pater sanctissime, filios
Tuos effecisti. O gentes uniuersae, quae hucusque a diuinis
sacris abhorrentes exstitistis, quae gloriam Deo debitam ad
falsa et inania simulacra, per summum furorem et amentiam,
transtulistis ânimos, ad spem firmissimam tantae felicitatis erigite.
Nullum enim est apud Deum generis aut conditoris discrimen.
Omnes igitur, per me, ad societatem gloriae immortalis inuitat.
Non sunt enim opes diuinae per inuidiam comprimendae, cum
OPERA OMNIA TOMO IV 155

(porquanto por Tua decisão não lhes foi permitido que a dividissem do
mesmo modo), submeteram-na a sorteio, para que o único a levá-lo fosse
aquele a quem calhasse o lance do dado. Ora, desta forma se ocupavam
dos meus pertences, para que se tornasse manifesto que os espíritos de
todos não tinham qualquer confiança na minha salvação.
Por isso agora, ó Senhor, ao tempo em que os inimigos pensam
que hão de conseguir a vitória, arma-Te com o vigor invencível da Tua
virtude; e mostra que não existe nenhuma força capaz de fazer frente
ao Teu poder, uma vez que até derrota a morte, que tudo destrói. Ora,
isso poderá ver-se claramente quando, estando eu morto e sepultado,
me chamares de novo à vida. É que Tu és a minha vida e a minha
força. Por isso, se não Te afastares de mim, nem a minha vida poderá
extinguir-se, nem a minha força debilitar-se. Portanto, dá-Te pressa
em ajudar-me e põe diante da vista e dos olhos dos homens o poder
da Tua virtude infinita, para que renasça a religiosidade quase extinta
de alguns. Liberta a minha alma, que unicamente confia na Tua ajuda,
liberta-a da mortífera espada, isto é, da tirania de Satanás; arranca-me
das fauces do leão e dos chifres dos unicórnios, que furiosamente contra
mim arremetem, a fim de enfurecidos acabarem com a minha vida. É
que os inimigos do género humano, que com a máxima crueldade me
perseguem, a mim que sou o defensor do género humano, adotam a
impudência do cão raivoso, a truculência do terrível leão e a violência
do fortíssimo unicórnio, a fim de não apenas me matarem, mas também
provocarem a ruína sempiterna da lembrança do meu nome.
Mas deixemos os gemidos e calemos os queixumes: o socorro está
presente; pôs-se termo à dor; a luz da glória suprema vem nascendo.
Portanto, de tal maneira os inimigos estão longe de realizarem aquilo em
que se empenham que até sou eu mesmo quem há de derrotar o exército
deles e matar a própria morte, para que, em seguida, entre aqueles que
se juntarem ao meu nome, não exista nenhum que se atemorize com a
violência da morte. Por isso, ó supremo Senhor, [191] quando obtiver
um ilustríssimo triunfo sobre os vencidos inimigos, então anunciarei o
Teu nome aos meus irmãos e Te exalçarei com louvores sempiternos no
meio da assembleia.
Com razão chamo meus irmãos àqueles a quem Tu, Pai santíssimo,
fizeste Teus filhos. Ó vós, todos os povos que até aqui vos mantivestes
hostis à sagrada religião, e que, induzidos pela mais completa loucura
e demência, transferistes para falsos e vãos simulacros a glória devida
a Deus, animai-vos com a firmíssima esperança de uma tão grande
felicidade. É que para Deus não existe qualquer discriminação de
raça ou de condição. Portanto, através de mim a todos convida para
participarem da glória imortal. De facto, às riquezas divinas a inveja
156 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Deus opulentissimus sit ad omnes, qui nomen Illius inuocant,


locupletandos. Vos igitur, gentes, ad tantum bonum e longinquis
regionibus adscitae, perpetua praedicatione laudate Dominum,
cuius gratia atque magnificentia fuistis tam diuinis muneribus
ornatae et excultae. Vos etiam, qui Iacob satu propagati estis,
hortor et moneo ut, patris sanctissimi uestigiis insistentes,
Domini nomen et gloriam celebretis. Nomen Illius reueremini,
iudicium pertimescite, omnes qui ab Israele originem ducitis,
et amore complectimini illos quos Deus ex gentibus uobis
fratres adiunxit. Omnes enim Israelis semine procreatos esse
cognoscite quos in unam stirpem, una fides, una religio, unus
sensus et unus spiritus inseuit. Omnes in memoriam saepe
redigite quemadmodum Dominus nullo modo contempserit et
abiecerit Christi pauperis, quem mundus aspernatur, humilitatem.
Numquam ab illo faciem auertit; numquam postulata repudiauit;
numquam illius ordinandi facultatem praetermisit. Illum uictoriis
mirabiliter illustratum ab inferis excitauit; illum in maiestatis
sempiternae solio locauit, ut caelum atque terram sempiterno
imperio contineret.
Tuas igitur laudes perpetuo canam; numquam beneficia,
quae in me contulisti, silebo et coram omnibus, qui pietatem
unice colunt, nuncupata uota persoluam. Pauperes, qui fame
premebantur, dapibus diuinis expleti, laetabuntur; qui Deum
inquirunt, uotorum rei, Deum perpetuo laudabunt, animique
uestri, o fratres mei, sempiterna uita perfruentur. Erant
quidem homines insitae legis obliti, officiorum atque uirtutis
immemores, neque solum memoriam pietatis abiecerant, sed
multis etiam se sceleribus alligauerant; qui tamen, beneficio
meo, Dei legem in memoriam reuocabunt et ad Deum incenso
animo conuertentur, ita ut qui antea sceleris immanitate
flagrabant, studio et cupiditate pietatis inflammentur. Non
erit autem hoc tantum beneficium Iudaeae angustissimis
finibus inclusum, sed cum omnibus gentibus liberalissime
communicatum. Ex ultimis enim terrarum finibus innumerabilis
multitudo confluet, quae Te, Domine, supplex adoret et in
studium Tui nominis incensis animis incitetur. Non enim
tunc regnabit libido, non cupiditatis impotentia, non Satanae
tyrannis eos, quos in libertatem uindicauero, oppressos
importuno dominatu tenebit, sed solius Domini regnum
in gentibus [192] erit opibus florentissimum, stabilitate
fundatissimum atque sempiterno praesidio munitissimum.
Terrae etiam principes caelestis pabuli suauitatem gustabunt
OPERA OMNIA TOMO IV 157

não as oculta, porquanto Deus é muitíssimo generoso em fartar todos


aqueles que invocam o Seu nome. Por isso vós, ó povos, para um bem
tão grande chamados de tão longínquas regiões, louvai com incessante
pregão o Senhor por cuja graça e generosidade fostes ornados e
ataviados com mercês tão divinas. Também a vós, que fostes gerados
na linhagem de Jacob, vos admoesto e aconselho a que, seguindo as
pisadas do santíssimo patriarca, celebreis o nome e glória do Senhor.
Reverenciai o Seu nome e temei o Seu juízo, vós todos os que descendeis
de Israel, e abraçai com amor aqueles que, de entre os gentios, Deus
a vós juntou como irmãos. Na verdade, sabei que foram gerados na
semente de Israel todos os homens a quem uma única fé, uma única
religião, um único sentimento e um único espírito dotaram de uma
única linhagem. Recordai amiúde de que maneira o Senhor de nenhum
modo menosprezou e desdenhou a humildade de Cristo pobre, a quem
o mundo despreza. Nunca desviou dele o rosto; nunca rejeitou os seus
pedidos; nunca deixou de respeitar a sua faculdade de dispor. Fê-lo sair
dos infernos, maravilhosamente abrilhantado pelas vitórias; colocou-o
no sólio da majestade sempiterna, para senhorear o Céu e a Terra com
eterna soberania.
Por conseguinte, cantarei perpetuamente os Teus louvores; nunca
calarei os benefícios que me ofereceste e pagarei por inteiro as minhas
promessas diante de todos os que praticam de modo singular a piedade.
Os pobres, que eram assoberbados pela fome, fartos com os manjares
divinos, alegrar-se-ão; os que, ligados por votos, buscam ao Senhor, hão
de louvá-Lo incessantemente, e o vosso espírito, ó meus irmãos, há de
gozar da vida sempiterna. A verdade é que havia homens esquecidos
da lei instintiva e deslembrados dos deveres e da virtude, e não apenas
puseram de lado a recordação da piedade, como também se tornaram
culpados de muitos crimes; estes homens, todavia, graças a mim, hão de
recordar-se da lei de Deus e com espírito abrasado hão de converter-se
a Deus, de tal maneira que, aqueles que anteriormente eram presa da
monstruosidade do crime, se inflamarão no zelo e desejo da piedade. Ora,
este tão grande benefício não há de ficar circunscrito aos estreitíssimos
limites da Judeia, mas há de ser muito liberalmente partilhado com todos
os povos. Com efeito, dos últimos confins da Terra há de acorrer uma
inumerável multidão para, Senhor, Te adorar em atitude de súplica e com
espírito abrasado ser incitada ao zelo do Teu nome. Na verdade, então
não reinará a sensualidade nem a insolência da cobiça nem a tirania
conservará oprimidos sob o seu insuportável jugo aqueles a quem eu
libertar, mas os povos encontrar-se-ão sob o reinado exclusivo do Senhor,
[192] abastadíssimo de riquezas, de firmeza inabalável e completamente
seguro com a guarda sempiterna. Também os príncipes da terra hão de
158 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et illi supplicabunt et omnes se coram illo in terram abiicient


qui uitam pro salute omnium libentissime profudit. Gens, quae
illi seruierit, in Domini familia et posteritate censebitur, iisdem
uestigiis ingredietur, et populo, qui ex sanctis disciplinis
ortus exstiterit, admirandas actiones, quas salutis auctor
effecit, ut iustitiae diuinae satisfaceret et suos opibus iustitiae
cumularet, annuntiabit.

Dominus regit, etc.


Psal. 22. Apud Heb. 23

Quanta cura et uigilantia Deus uitae bonorum prospiciat


nullis uerbis explicari potest. Non enim solum uniuersa ea
prouidentia quae per omnia pertinet, sed singulari studio,
perinde Suis consulit atque si nihil aliud operis et muneris
habuisset. Quemlibet enim illorum alit, instituit, erudit; illum,
cum est opus, absterret, cum rursus salutis ratio flagitat, ad
Se clementer allicit; ab illo omnia pericula propulsat; ita Se
denique gerit in negotio cuiusuis hominis pii conseruandi
ut nihil malle uideatur quam illum diuinis opibus auctum et
ornatum et in caelesti sede repositum tandem adspicere. Hanc
tam admirabilem benignitatem ut aliquo modo litterae sanctae
significent, Deum ‘pastorem’ nominant, non quod pastoris
nomen huius bonitatis immensitatem possit exprimere, sed
ut, aliqua ratione, a rebus a nobis cognitis similitudo ducatur,
qua ad notitiam diuinae erga nos caritatis adspiremus; ad
hanc enim caritatem aliqua ratione designandam reperiri
uix potest aliquod nomen nomine ‘pastoris’ accommodatius.
Pastor enim, ea ratione qua pastor est, non suum commodum,
sed ouium salutem sibi proponit. Itaque uigilat; calores
perfert; frigora sustinet; lupos arcet; gregem in laeta pascua
deducit, a locis pestilentibus abducit omnique tandem cura
et sollicitudine laborat ut pecus sanum atque bene ualens sit
et suboles illius multiplicetur. Hac igitur similitudine Dauid
mirifice delectatus, ait:
Dominus in me alendo et nutriendo pastoris officio fungitur.
Quo circa nihil mihi deesse potest, nec ad corporis et animi
pabulum nec ad ualetudinis firmitatem. Reliqui enim pastores,
uel propter inopiam et imbecillitatem non possunt, uel propter
socordiam nolunt ouium incolumitati prospicere. At Deus, cum
OPERA OMNIA TOMO IV 159

provar a suavidade do alimento celestial e hão de dirigir-lhe preces e


prostrar-se-ão todos diante daquele que de muitíssimo bom grado ofereceu
a vida pela salvação de todos. O povo que o servir passará a fazer parte
da família e descendência do Senhor, seguirá as mesmas pisadas, e à
raça, que vier a nascer dos santos ensinamentos, anunciará as admiráveis
ações que o autor da salvação realizou, a fim de reparar o agravo feito
à justiça divina e encher os seus com as riquezas da justiça.

SALMO 22
(23 entre os Hebreus)
O Senhor me governa [e nada me faltará].

Não pode exprimir-se mediante nenhumas palavras o grande cuidado


e vigilância com que Deus olha pela vida dos bons. É que não apenas
com aquela providência geral que se estende por todas as coisas, mas
com particular desvelo olha pelos Seus, como se não tivesse tido nenhum
outro trabalho e dever. Com efeito, a qualquer um deles alimenta; educa;
instrui; e, quando é necessário, desvia-o, e quando, de novo, os interesses
da sua salvação o requerem, misericordiosamente o atrai para Si; enfim,
de tal maneira procede no que concerne ao negócio da preservação de
qualquer homem piedoso, que nada parece preferir a vê-lo acrescentado
e ornamentado com divinas riquezas e, ao cabo, estabelecido na morada
celestial. As Sagradas Escrituras, para de alguma forma exprimirem esta
tão admirável bondade, chamam a Deus ‘pastor’, não porque a designação
pastor possa expressar a grandeza desta bondade, mas para, por alguma
maneira, a partir de realidades que conhecemos, tirarmos uma comparação
que nos ajude a termos uma noção do amor de Deus para connosco; na
realidade, para designar este amor de alguma maneira, dificilmente pode
encontrar-se um nome mais adequado do que este nome de ‘pastor’. É que
o pastor, por isso mesmo que é pastor, tem como seu objetivo, não o seu
proveito, mas o bem estar das ovelhas. E por isso está atento; suporta as
calmas; aguenta os frios; repele os lobos; conduz o rebanho para viçosos
pastos, afasta-o de lugares malsãos e, numa palavra, com todo o desvelo e
cuidado esforça-se por que o gado esteja vigoroso e de boa saúde e que
se multiplique em crias. David, portanto, extraordinariamente satisfeito
com esta comparação, diz:
O Senhor em alimentar-me e nutrir-me desempenha as funções de pastor,
motivo pelo qual nada pode faltar-me nem para alimento do corpo e alma
nem para o fortalecimento da minha saúde. Na verdade, os restantes pastores,
ou devido a pobreza e fraqueza não podem, ou devido a indolência não
querem velar pela segurança das ovelhas. Deus, porém, uma vez que é
160 D. JERÓNIMO OSÓRIO

rerum omnium Dominus et probitate infinita praeditus sit,


fieri non potest ut uel imbecillitate impeditus uel neglegentia
ductus officium deserat et oues Suas aut fame confici aut a
feris laniari patiatur. Cum igitur Illi custodiam meae uitae
commiserim qui et omnipotens est et optimus est, nullius rei
indigentia uexari possum. Operam dat ut in locis herbidis
et amoenis accumbam, et pastum me ad aquas summae
iucunditatis adducit ut sitim meam facillime [193] copia et
ubertate Sui spiritus exstinguat. Quod, si casu dispulsus a uia
deflexero, Is continuo animam meam conuertet et in uiam
reuocabit et per semitas iustitiae deducet ut omnes uiae meae
ad legis sanctitatem dirigantur, ut ab Eo gloriam immortalem
adipiscar. Et hoc quidem iustitiae dono et munere, quo
nullum potest esse clarius et magnificentius aut quod magis
ad splendorem diuinae lucis accedat, me donabit, non meritis
meis, sed gratia tantum Sua prouocatus. Nam quae merita
mea gratiam Illius antegredi potuissent, quae Illum aliquo
nexu iuris obligarent ad flagitiorum meorum offensiones
prorsus oblitterandas et similitudinem Suae pulchritudinis
in animo meo penitus insculpendam? Non igitur mihi, non
meis cogitationibus et actionibus, sed nomini Suo sanctissimo
hoc tantum munus attribuit, cum me a peccatis eripuit et in
iustitiae diuinae fructu et possessione collocauit.
Neque solum me cumulat beneficiis sempiternis, uerum
et inuicto praesidio communit, ne hostium insidiis spolier
et, a uia salutis abstractus, in baratrum miseriae detrudar.
Hoc est enim summae bonitatis officium ut omnem muneris
Sui gloriam, quam Suis elargitur, praesidio suo protegat,
ne possint opes diuinae de manibus eorum, qui in Dei
gratia positi sunt, hostium uiribus extorqueri. Si igitur,
o Pastor optime et uigilantissime, per uallem crassam et
caliginosam, horrenda tyrannide mortis oppressam, iter
habuero, minime pertimescam, quoniam Tu mecum semper
es, ut me ab omni calamitate incolumem tuearis. Virga
Tua, qua me dirigis, baculus Tuus, quo me sustentas, mihi
maxima solacia dant. Quomodo enim possum aerumnis
angi aut doloribus ullis succumbere, cum animaduertam
quam singulari disciplina me erudias, monitis instituas,
subsidio tuearis, iucunditate permulceas? Ne labi autem et
concidere possim, uires meas reficis mensamque dapibus
diuinis instruis, quibus in conspectu inimicorum meorum
ualde confidenter utor, ita ut nec illorum minas metuam
OPERA OMNIA TOMO IV 161

Senhor de todas as coisas e está dotado de infinita bondade, é impossível


que a fraqueza o impeça ou o descaso o leve a deixar de cumprir a Sua
obrigação e a deixar que as Suas ovelhas sejam atormentadas pela fome ou
estraçalhadas pelas feras. Por conseguinte, porquanto entreguei a guarda
da minha vida Àquele que não apenas é omnipotente, mas também ótimo,
não posso ser atribulado pela falta seja do que for. Empenha-se em que
eu repoise em lugares tapetados de erva e aprazíveis, e para lugar de
pasto me conduz, junto a águas sumamente agradáveis, a fim de que sem
qualquer empeço mate a minha sede [193] abundantemente me fartando
de Seu espírito. Pelo que, se por um acaso me desviar do caminho, Ele em
seguida converterá a minha alma e me chamará para o caminho e através
das sendas da justiça me conduzirá por forma a que todos os meus caminhos
tenham como meta a santidade da lei, para alcançar d' Ele a glória imortal.
E isto, como mercê e dádiva de justiça, que são as mais elevadas e ricas que
podem existir ou que mais aproximam do esplendor da luz divina, isto há
de dar-me, movido não pelos meus merecimentos, mas somente pela Sua
graça. Com efeito, que merecimentos meus teriam podido preceder a graça
d' Ele, capazes de por algum nexo de justiça O obrigarem a completamente
apagar os agravos das minhas infâmias e de profundamente esculpirem na
minha alma a semelhança com a Sua formosura? Por consequência, não é
a mim, nem aos meus pensamentos e atos, mas ao Seu santíssimo nome
que exclusivamente se deve atribuir esta tão grande mercê, de me arrancar
dos pecados e colocar-me na posse e gozo da justiça divina.
E não apenas me colma de eternos benefícios, mas também me fortalece
com invencível defesa, para que os ardis dos inimigos nem me despojem
nem, desviando-me do caminho da salvação, me lancem no báratro da
infelicidade. É que o dever da bondade suprema é proteger com a Sua
ajuda toda a glória da Sua dádiva, que liberalmente oferece aos Seus, de
maneira a não deixar que as riquezas divinas possam ser arrancadas pela
violência dos inimigos das mãos daqueles que estão colocados na graça
de Deus. Por conseguinte, ó vigilantíssimo e excelente Pastor, se tiver de
fazer jornada através de um vale sombrio e tenebroso, senhoreado pela
medonha tirania da morte, não hei de sentir receio, visto que Tu encontras-
Te sempre comigo, para me conservares a salvo de toda a desgraça. Dão-me
total consolação a Tua vara, com que me encaminhas, e o Teu báculo,
com que me amparas. De facto, como posso sentir-me angustiado com as
provações ou sucumbir por efeito de quaisquer dores, ao dar-me conta dos
extraordinários ensinamentos com que me doutrinas, dos conselhos com
que me iluminas, dos cuidados com que por mim velas e das alegrias com
que me afagas? Por outro lado, para que eu não possa cair e sucumbir,
restauras-me as forças e preparas-me uma mesa com divinos manjares,
de que me sirvo com grande confiança na presença dos meus inimigos,
162 D. JERÓNIMO OSÓRIO

nec impetum, contra imbecillitatem naturae factum,


reformidem. Vires enim colligo quibus facillime conatus
eorum despiciam, cibus namque caelestis robur caeleste
suppeditat, epulumque diuinum animum diuina uirtute
fulcit, ita ut omnes aduersarias potestates et copias pro
nihilo putet.
Perfudisti praeterea unguento caput meum, mentem namque
meam Spiritus Sancti gratia cumulasti, qua copiosissime
delibuta nitescat et odores suauissimos longe diffundat et ad
sempiternas uoluptates odoris summi fragrantia deducatur.
Quid dicam de poculi illius repleti dulcedine, qua animum
meum laetificas et studio immortalitatis incendis? Omnibus
denique modis bonitas et clementia Tua me prosequentur
omnibus diebus uitae meae, usque eo dum plenissime iura
caelestis Ciuitatis adipiscar et habitem in Domo Domini,
immortalitatem gloriae consecutus.

[194]

Domini est terra, et plenitudo eius.


Psal. 24

Non satis est reuocare saepe in memoriam quae beneficia


in nos Liberator generis humani contulerit, nisi simul illius
maiestatem, quoad licet et fas est, animo complectamur. Quo
enim altius de illius amplitudine fuerit a nobis cogitatum, eo
pluris beneficia accepta faciemus. Cum igitur Dauid nobis Christi
preces, sacerdotis officium, sanguinis profusionem, sacrificii
sanctitatem, Imperatoris summi uictoriam exposuisset, nunc
ostendit eundem qui pro nobis necem et cruciatum libentissime
perpessus est, qui hostem profligauit et in caelum ascendit ut
iurisdictionem sempiternam administret, illum esse qui caelum
atque terram condidit et omnia potestate infinita complectitur.
Nec enim dubium esse potest quin carminis huius sententia ad
Dei Filium referatur, quod clarius apparet cum illius triumphus
et aditus in caelum describitur. Ait igitur Dauid:
Hic summus Dominus, qui Patrem nobis placauit; qui
sanguinem et uitam suam hominum generi largitus est; qui in
nostra salute conseruanda uigilantissimi pastoris officio fungitur:
terrae Dominus est, et omnia, quae illius amplitudine continentur,
et uniuersus orbis et omnes denique illius cultores, sub illius
OPERA OMNIA TOMO IV 163

de tal maneira que nem me arreceio das suas ameaças nem sinto medo
das arremetidas contra a minha fraca natureza. É que junto forças com as
quais mui facilmente desprezo as suas tentativas, porquanto o alimento
celestial fornece um vigor e robustez celestiais, e o repasto divino fortifica
a alma com um denodo divino, de tal maneira que tem na conta de coisa
nenhuma todos poderes e hostes adversárias.
Além disso, derramaste unguento sobre a minha cabeça, pois encheste
o meu entendimento com a graça do Espírito Santo, para que, com esta
abundantemente ungido, ele brilhe e espalhe ao longe suavíssimos
perfumes e seja conduzido até às sempiternas deleitações pela fragrância
do supremo perfume. Que direi sobre a doçura daquela taça transbordante,
com que alegras a minha alma e a abrasas no desejo da imortalidade?
Enfim, por todos os modos e durante todos os dias da minha vida me
cumularás com a Tua bondade e compaixão, até que eu alcance os foros
completos de cidadão da Cidade celestial e habite na Casa do Senhor,
obtendo a imortalidade da glória.

[194]

SALMO 24
Do Senhor é a terra e tudo o que a enche.

Não basta trazer amiúde à memória os benefícios que o Libertador do


género humano nos ofereceu, se ao mesmo tempo não abarcamos com
o nosso espírito, até onde tal nos é lícito e permitido, a Sua majestade.
Com efeito, quanto com maior profundidade pensarmos na Sua grandeza,
tanto mais estimaremos os benefícios recebidos. Por conseguinte, tendo-
nos David exposto as súplicas de Cristo, o seu ofício de sacerdote, como
derramou o seu sangue, a santidade do seu sacrifício e a vitória que
alcançou como supremo Senhor, agora mostra que o mesmo que de livre
e espontânea vontade padeceu morte e suplício, o que derrotou o inimigo
e subiu ao céu para exercer o governo sempiterno, é aquele que criou
o céu e a terra e tudo abraça com infinito poder. De facto, não pode
duvidar-se de que o conteúdo deste salmo se refere ao Filho de Deus,
tal como mais claramente se percebe quando se descreve o seu triunfo
e entrada no céu. Ora, assim fala David:
Este Senhor supremo, que para nós aplacou o Pai; que liberalmente
ofereceu ao género humano o seu sangue e a sua vida; que para conservar
a nossa salvação desempenha o cargo de atentíssimo pastor: é o Senhor da
terra, e todas as coisas, que se encerram em sua vasta extensão, e todo o
orbe e, enfim, todos os seus habitantes, encontram-se submetidos debaixo de
164 D. JERÓNIMO OSÓRIO

dictionem et imperium subiuncti sunt. Quod mirum uideri non


debet, cum ipse terram uniuersam condiderit. Est igitur rationi
consentaneum ut, qui conditor est, sit etiam imperator. Is autem
a principio, cum omnia creauisset et terra fuisset aquis immersa,
imperio sanxit ut aquae unum in locum defluerent et terra ex
marinis aquis et ex fluminibus emineretur, fruges et pabula,
non solum hominibus alendis, sed cunctis etiam animantibus
large suppeditaret. Nunc autem, quamuis aquis circumfusa sit et
undique aeris ambientis motibus assiduis exclusa, adeo stabilita
est ut nullo pacto de loco sibi assignato conuellatur. Vt autem
Dominus hic noster non naturae tantum operibus, uerum etiam
caelestibus disciplinis ad sui notitiam humanum genus adduceret,
religionem instituit, et montem sibi dedicauit, quem sanctissimo
templo consecraret, ut homines, sacris sanctissimis instituti, ad
cupiditatem caelestis atque sempiternae Ciuitatis incitarentur.
Non enim uoluit ut in monte terrestri et in templo hominum
manibus exstructo mentes humanae resisterent, sed etiam assidua
mentis commentatione de illo monte atque templo cogitarent
cuius id, quod est oculis obiectum, imaginem gerit.
O beatos illos, quibus ascensus in caelestes illas sedes datus
erit! Quis adscendet in illum montem Domini, sempiterna
claritate diuinae lucis splendentem, etcaelitum frequentia et
celebritate decoratum? Quis ad templum sanctum Domini, in
quo ipse non adumbrate, sed uere, semper habitat; altitudine
mentis adspirabit? Non certe [195] nocentes et facinorosi; non
flagitiis infames; non homines malefici et in Deum scelerati,
sed qui ab iniuria et maleficio manus abstinent et ita purum
animum gerunt ut nullum malum cogitatione moliantur,
qui nullo modo fidem, qua se ad perpetuum legis diuinae
studium adstrinxerunt, uiolant nec homines, interpositi
iuris iurandi religione confidentes, dolo circumueniunt. Hi
clementiae diuinae beneficiis erunt large et munifice cumulati
et iustissima meritorum suorum praemia consequentur. Eadem
namque opera optimus parens et Dominus et misericordiae
et iustitiae Suae satisfacit. Misericordiae quidem, quia
illos quorum flagitiis erat infensus in gratiam recepit et
spiritu Suo confirmauit, ut opera praeclarissima molirentur;
iustitiae uero, quia diuinam uirtutem diuinae gloriae praemio
ornamentisque diuinis affecit, et quod se facturum receperat,
summa fide perfecit.
Qui sic uitam instituunt omnesque suas actiones ita
moderantur ut numquam a diuina lege in alterutram partem
OPERA OMNIA TOMO IV 165

seu senhorio e mando supremo. Algo que não deve parecer espantoso, uma
vez que ele mesmo criou a terra inteira. Por conseguinte, é conforme com a
razão que quem é o criador seja também o senhor. Ora, ele desde o princípio,
ao criar tudo e cobrir com águas a terra, ordenou que as águas corressem
para um lugar e que a terra se erguesse de entre as águas marinhas e as
dos rios, e abundantemente forneceu produtos e alimentos para alimentar
não apenas os homens, mas também todos os seres vivos. Ora, hoje, embora
a terra se encontre rodeada de água e por todas as partes excluída dos
incessantes movimentos do ar que a cinge, a tal ponto se encontra firme
que de forma alguma é arrancada do lugar que lhe foi destinado. Ora, este
nosso Senhor, estabeleceu a religião a fim de não só através das criações
naturais, mas também de ensinamentos celestiais conduzir o género humano
ao conhecimento dele, e a si mesmo dedicou um monte, para consagrá-lo
com um santíssimo templo, a fim de que os homens, depois de ensinados
com ritos muito santos, fossem incitados ao desejo da celestial e sempiterna
Cidade. Na verdade, não pretendeu que os entendimentos humanos se
detivessem no monte terreno e no templo edificado por mãos de homens,
mas quis também que com incessante meditação refletissem sobre o ser de
que era símbolo aquele monte e templo que viam diante dos olhos.
Oh bem-aventurados aqueles aos quais há de ser concedido ascenderem
àquelas celestiais moradas! Quem há de ascender àquele monte do Senhor,
resplandecente com a eterna claridade da luz divina e aformoseado com
a grande multidão e afluência dos moradores do céu? Quem há de aspirar
com a profundidade do entendimento ao templo santo do Senhor, no qual
Ele sempre habita não em sombra, mas deveras? Não certamente [195] os
que fazem mal e perpetram o crime; não os infamados pelas torpezas; não
os homens malévolos e que pecam contra Deus, mas os que se abstêm
da injustiça e de fazer mal e apresentam uma alma de tal modo pura que
não maquinam no seu pensamento mal algum, os que de forma alguma
transgridem a promessa pela qual se comprometeram ao perpétuo zelo da
lei divina e com embustes não enganam os homens que confiam no respeito
sagrado por um juramento feito. Estes serão liberal e copiosamente cumulados
com os benefícios da misericórdia divina e obterão os justíssimos prémios
dos seus merecimentos. Com efeito, o ótimo Pai e Senhor com o mesmo
cuidado satisfaz à Sua misericórdia e à Sua justiça. À misericórdia certamente,
porque acolheu na Sua graça aqueles contra os quais estava irado pelas suas
indignidades e fortaleceu-os com o Seu espírito, para que empreendessem
obras de grandíssima nobreza; e à justiça, porque condecorou a virtude
divina com o galardão da glória divina e com ornatos divinos, e com mais
cabal fidelidade levou a cabo aquilo que garantira haver de cumprir.
Os que assim regulam a sua existência e governam os seus atos de tal
modo que nunca se desviam, quer para um lado quer para o outro, da lei
166 D. JERÓNIMO OSÓRIO

declinent, ardentissimoque studio puritatem conseruant,


in sanctorum patrum sobole adscribendi et in populo Dei
censendi sunt, non illi qui, secundum rationem sanguinis
a stirpe Iacob propagati, ab illius sanctitate degenerant.
Non enim seminis propagatio, sed pietatis imitatio ueros
Iacob filios facit, nec enim apud Deum multum refert
quali genere ortus sis, sed quibus disciplinis et exemplo
conformeris. Qui igitur Te quaerunt, Domine, qui faciem
Tuam nimis ardenter expetunt, hi filii Iacob numerandi
sunt, et non illi qui Deum non metuunt et ius humanae
societatis nefarie perfringunt.
O sapientissimi iudicis aequitatem, qui nihil hominum
generi aut assimulatae religioni tribuit, sed uerissimae uirtutis
studium et solidae et expressae sanctitatis rationem gratia
et fauore suo complectitur, neque pietatis ostentationem,
sed uerissimam religionem et hominum caritatem praemio
sempiterno remunerat!
Sed uenit mihi repente quodam inflatu et instinctu diuini
Spiritus in mentem admirari illam pompam et celebritatem,
qua Dominus, nostrae salutis auctor, hostibus deuictis et
nostra libertate constituta, in templum suum ingredietur. Non
de templo hominum operis aedificato, in quod Arca Foederis
inferetur, orationem habeo. Non enim signis et umbris,
sed studio ipsius ueritatis, inflammor. Itaque ipsius summi
Regis, in aditum caeli, cum amplitudine et magnificentia
summi decoris inuecti, clarissimam speciem uidere iam
uideor, angelorumque theatrum mihi in oculis et aspectu
constituo eorumque uocibus circumsonant aures meae
quibus alii alios excitant et ad laudem Imperatori summo
debitam perpetuo tribuendam monitis crebris adhortantur.
O fores caeli sempiternae, capita festinanter attollite, aditum
confestim aperite, et introibit Rex gloriae. Fuit quidem
post primi hominis occasum caeli aditus interclusus et hae
fores nemini umquam patuerunt. Quis igitur est iste tam
excellenti uirtutis specie praecellens ut ad illius aduentum
caeli aditus aperiatur? Quis est iste Rex gloriae? Hominis
naturam intuemur, insigni quidem claritate rarae et insolitae
dignitatis illustratam, ingressus tamen in caelum, nisi diuina
uirtus accesserit, [196] nemini concedi potest. – Verum,
sed in hoc principe diuina uirtus semper eluxit. Est enim
Deus uerus immensa uirtute praeditus et inuicto robore
praecellens, bellorumque omnium uictor, insigni gloria in
OPERA OMNIA TOMO IV 167

divina, e com ardentíssimo zelo preservam a pureza, devem ser colocados


entre a descendência dos santos padres e contados como fazendo parte
do povo de Deus, não aqueles que, pertencendo pelos vínculos do sangue
à linhagem de Jacó, degeneram da sua santidade. É que, o que faz os
verdadeiros filhos não é a descendência da semente, mas a imitação da
religiosidade, e tão-pouco aos olhos de Deus tem muita importância a
linhagem de que nasceste, mas as doutrinas e exemplos de acordo com
os quais te moldaste. Por conseguinte, os que Te procuram, Senhor, os
que com vivo desejo buscam o Teu rosto, estes é que devem ser contados
como filhos de Jacó, e não aqueles outros que não temem a Deus e de
modo sacrílego quebrantam as leis da sociedade humana.
Oh equidade do sapientíssimo juiz, que não concede qualquer
importância à linhagem dos homens ou à falsa religiosidade, mas com
o seu favor e graça abraça o zelo da mais verdadeira virtude e a causa
da sólida e genuína santidade, e não recompensa com prémio eterno a
ostentação de piedade, mas sim a verdadeira religiosidade e a caridade
pelo próximo!
Mas de súbito, através de uma espécie de inspiração e sopro do
Espírito de Deus, o meu espírito fica a olhar pasmado para aquele
cortejo e pompa com que o Senhor, autor da nossa salvação, depois de
totalmente vencidos os inimigos e estabelecida nossa liberdade, há de
entrar no seu templo. Não me refiro ao templo, edificado por obra dos
homens, no qual se há de guardar a Arca da Aliança. É que o que me
inflama não são sombras nem símbolos, mas o amor à própria verdade.
E por isso parece-me que já vejo a claríssima imagem do próprio Rei
supremo, na entrada do céu, levado com a grandiosidade e magnificência
da mais elevada dignidade e lustre, e coloco diante dos meus olhos e
vista o teatro dos anjos, e soam ao meu redor as vozes com que estes
mutuamente se incitam e com repetidas admoestações se exortam a
eternamente dirigir os devidos louvores ao Senhor supremo. Ó portas
eternas do céu, levantai rapidamente as cabeças, abri imediatamente
a entrada, e o Rei da glória entrará. É certo que a entrada do céu se
fechou após a queda do primeiro homem e estas portas jamais se
franquearam a ninguém. Por conseguinte, quem é esse que se avantaja
por tão excelente aparência de virtude que com a sua chegada a entrada
do céu se abre? Quem é esse Rei da glória? Contemplamos uma natureza
de homem, sem dúvida que enobrecida por um incomum brilho de rara
e insólita dignidade, todavia o ingresso no céu a ninguém pode ser
concedido, se a virtude divina não der assentimento. [196] – É verdade,
mas neste príncipe sempre resplandeceu a virtude divina. De facto,
é o Deus verdadeiro dotado de imensa virtude e que se avantaja por
invencível vigor, e o vencedor de todas as guerras, transbordante de
168 D. JERÓNIMO OSÓRIO

omni aeternitate circumfluens. Is enim, in hominis habitu


delitescens, Satanae uires elisit, peccatum inuicta uirtute
deleuit, inferorum acies profligauit in caelumque uiam
non sibi tantum, sed suis etiam praeclarissime muniuit. O
fores caeli sempiternae, capita festinanter attollite, aditum
confestim aperite, et introibit Rex gloriae. Quis est iste Rex
gloriae? Caelestis naturae Dominus et caelitum imperator,
cui omnes angeli atque beatissimae mentes obtemperant,
est ipse Rex gloriae.

Ad Te leuaui animam meam.


Psal. 24. Apud Heb. 25

Hac quidem oratione uir sanctus non solum Deum pro


salute propria ueneratur, uerum etiam nos ad pias preces
erudit et qua ratione, cum labimur, excitari debeamus
egregie demonstrat.
Domine, inquit, si naturae meae imbecillitatem
recognoscam et animi labem et corruptellam considerem,
omnis spes mea debilitabitur et euanescet, sed, cum
benignitatis Tuae magnitudinem mente atque ratione
comprehendo, rursus erigor et uires assumo quibus omnia
mala depellam. In Te igitur semper salutis spem animo
maximo reponam et ita fore confido ne ignominiae atque
dedecoris insigni labe conturber. Non enim mihi hostes
insultabunt et amentiam obiicient, quod Tui solius ope
nixus sim, neminem enim umquam spes in Te collocata
fefellit, quia neque potestas tua debilitari neque fides labare
potest. Numquam igitur ero ludibrio inimicis méis, nemo
enim, qui in praesidio Tui sanctissimi nominis acquieuerit,
erubescet, quia numquam ab ope Tua deseretur. Qui igitur
erubescent? Illi qui, Te neglecto, subsidia sibi inanissima
comparauerint.
Omnes igitur uitae meae rationes huc in summa referuntur
ut Te unum spectem, Tibi placeam, a Te numquam diuellar,
Tecum sim foedere amoris sanctissimo copulatus. Quod fieri
nullo modo potest, nisi fuerim Tuae legis obseruantissimus.
Eos namque solum Tibi deuincis qui placitis Tuis obtemperant,
eosque a coniunctione Tua repellis qui legis Tuae imperium
recusant. Ex quo sequitur omnem meae salutis atque dignitatis
OPERA OMNIA TOMO IV 169

extraordinária glória por toda a eternidade. Na verdade, ele, ocultando-se


sob aparência de homem, esmagou as forças de Satanás, com invencível
fortaleza destruiu o pecado, derrotou as hostes dos infernos e, do modo
mais admirável, construiu, não só para si, mas também para os seus
a estrada para o céu. Ó portas eternas do céu, levantai rapidamente
as cabeças, abri imediatamente a entrada, e o Rei da glória entrará.
Quem é esse Rei da glória? O Senhor da natureza celestial e amo dos
habitantes do céu, ao qual obedecem todos os anjos e os entendimentos
bem-aventurados, é o próprio Rei da glória.

SALMO 24
(25 para os Hebreus)
A Ti elevei a minha alma.

Com estas palavras o santo varão não apenas roga a Deus pela
sua própria salvação, mas também nos instrui nas piedosas preces
e mostra muito bem de que maneira, quando caímos, devemos ser
encorajados. Diz:
Senhor, se reconhecer a debilidade da minha natureza e ponderar
a queda e corrupção da minha alma, toda a minha esperança há de
enfraquecer-se e desvanecer-se, mas, quando com o meu entendimento e
razão abarco a grandeza da Tua bondade, de novo me reanimo e recupero
as forças para com elas rechaçar todos os males. Por conseguinte, em
Ti sempre hei de colocar com a máxima determinação a esperança de
salvação e desse modo estou confiante em que não serei manchado por
nenhum labéu de infâmia e desdouro. É que os inimigos não me hão de
insultar nem acusar-me de desatino por ter-me apoiado exclusivamente
na Tua ajuda, porquanto ninguém jamais ficou logrado por ter depositado
em Ti a esperança, porque nem o Teu poder pode enfraquecer-se nem
a esperança em Ti malograr-se. Por conseguinte, nunca serei objeto de
zombaria dos meus inimigos, pois não há de corar de pejo ninguém que
repouse na ajuda do Teu santíssimo nome, porque nunca ficará desprovido
do Teu socorro. Por conseguinte, quem são os que coram de pejo? Aqueles
que, desprezando-Te, obtiverem para si apoios totalmente vãos.
Portanto, todo o meu sistema de vida, em síntese, apontará no sentido
de ter os meus olhos postos unicamente em Ti; agradar-Te; nunca ser de
Ti desviado; a Ti me unir mediante um santíssimo vínculo de amor. Isto
só pode realizar-se se eu for um mui escrupuloso respeitador da Tua
lei. Com efeito, só ligas a Ti aqueles que acatam os Teus mandados, e
repeles da Tua vizinhança os que recusam o senhorio da Tua lei. Daqui
se segue que toda a causa da minha salvação e dignidade assentam no
170 D. JERÓNIMO OSÓRIO

rationem esse in legis ardenti studio constitutam. Sed, quis


legem Tuam seruare poterit, in tanta naturae corruptella et
imbecillitate? Nemo certe, nisi is quem Tu instituendum et
erudiendum susceperis et gratia Tua confirmaueris ad pietatis
munera feliciter obeunda et hostium insidias constanti animo
repellendas. Demonstra Tu igitur, Domine, mihi uias Tuas, et
semitas tuas, quae perfecto Tuae legis studio continentur, doce
me. Deduc me in uerissimam sanctitatis et iustitiae disciplinam
et doce me ne de uia deflectam et mentis errore praeceps
miserrime concidam. Non ullis operibus meis innitor; non est
in me aliquid quod ostentem; nulla iuris ratio est qua Te mihi
obstrictum esse contendam, sed omnes postulati mei rationes
a Tua clementia depromuntur. Tu enim Deus [197] meus es,
quem solum pura et integra mente colui; Tu salus mea es, quae
me multis in locis a peste seducit; in Te solo omnem spem
collocatam semper habui, quia numquam mihi defuisti et reliqua
uitae praesidia quam essent inania expertus sum.
Non peto ut opera mea recorderis, quae per se uel nullius
momenti sunt, uel, si ponderis alicuius sunt, non certe tanti
sunt ut illis fretus opinari debeam me fuisse ex omni parte
serui fidelis officio perfunctum; maxime, cum flagitia multa
commiserim quae non poterat nullo modo sacris ullis a me
rite procuratis expiari aut officiis cum sedulitate praestitis
aequabili aestimatione compensari. Quid igitur a Te petam
ut clementiam Tuam et misericordiam Tuam recorderis, qua a
primordio generis humani erga supplices Tuos usus es? Dele,
Domine, ex animo Tuo memoriam flagitiorum et scelerum
quae in me, cum essem iuuenis, propter imbecillitatem
iudicii et uim temeritatis, admisi. Amplitudine misericordiae
Tuae fretus, ad Te fidenter adeo Teque suppliciter oro ut
mei recorderis et in me tuendo et conseruando non me, sed
bonitatem Tuam respicias. Cur ego a Deo meo non debitum
exigam, quo Ille non mihi, sed benignitati et iustitiae Suae
est admodum uehementer adstrictus?
Benignus est enim et rectus Dominus et idcirco eos qui
aberrant, disciplina Sua ab errore deterret et in rectam
uiam reducit. In quo quidem et benignitati consulit, cum
non delictis impeditur quominus homines ad Se clementer
alliciat et ad uiam et rationem salutis erudiat, et iustitiae
prospicit, cum non aliis, quam iis qui rectam uiam tenent,
aditum in caelum aperiendum esse docet, et idcirco prius
iustitiae muneribus ornat homines quam iustitiae praemia
OPERA OMNIA TOMO IV 171

ardente zelo da lei. Mas, quem poderá observar a Tua lei, imerso em
tão grande corrupção e fraqueza da natureza? Certamente que ninguém,
a não ser aquele a quem Tu Te moveres a ensinar e instruir e com a
Tua graça deres forças para cumprir os deveres da piedade e para com
perseverança rechaçar os ardis dos inimigos. Por conseguinte, ó Senhor,
mostra-me os Teus caminhos, e ensina-me as Tuas sendas, que se cifram
no perfeito zelo da Tua lei. Leva-me a aprender a verdadeira doutrina
da santidade e da justiça e ensina-me a não me desviar do caminho nem
a mofinamente me precipitar por erro do entendimento. Não me apoio
em quaisquer obras minhas; em mim nada existe de que me ufane; não
existe nenhuma razão de justiça que me permita pretender que estás em
obrigação para comigo, mas todos os fundamentos da minha demanda
tomo-os da Tua misericórdia. É que Tu és o meu Deus, [197] a quem
exclusivamente adorei com alma pura e isenta; Tu és a minha salvação,
que em muitas situações me desvia da perdição; só em Ti tive sempre
depositada toda a esperança, porque nunca me faltaste e tive a experiência
que como eram vãos os restantes socorros da vida.
Não peço que lembres as minhas obras, as quais em si mesmas ou
não têm qualquer valor ou, se têm algum peso, não é certamente tão
grande que apoiando-me nelas eu deva pensar que desempenhei em
todos os aspectos a função de servo fiel; sobretudo, tendo em conta
que cometi inúmeras indignidades que de forma alguma poderiam ser
expiadas com a escrupulosa realização de quaisquer cerimónias sagradas
ou equitativamente compensadas mediante serviços diligentemente
prestados. Por conseguinte, que hei de pedir-Te para que Te lembres da Tua
misericórdia e compaixão, de que usaste no princípio do género humano
em relação aos que Te suplicaram? Apaga, ó Senhor, da Tua memória a
lembrança das infâmias e pecados que cometi, por ser jovem, devido à
fraqueza do meu discernimento e à grande força do desatino. Apoiando-
me na grandeza da Tua misericórdia, a Ti confiantemente me dirijo e
suplicantemente Te rogo que Te lembres de mim e, ao protegeres-me e
por mim velares, atendas não a mim, mas à Tua bondade. Por que razão
não hei de reclamar ao meu Deus a dívida, que Ele mui estreitamente
contraiu não comigo, mas com a Sua bondade e justiça?
É que Deus é bondoso e reto e por isso àqueles que se desviam, afasta-os
do erro com os Seus ensinamentos e torna a conduzi-los ao bom caminho.
Deste modo, não só atende à bondade, ao não serem os delitos impedimento
para compassivamente atrair até Si os homens e ensinar-lhes o caminho e
doutrina da salvação, mas também tem em consideração a justiça, ao mostrar
que a entrada no céu deve franquear-se não a outros senão àqueles que
seguem o reto caminho, e por isso ornamenta primeiro os homens com os
presentes da justiça antes de liberalmente lhes oferecer os prémios da mesma.
172 D. JERÓNIMO OSÓRIO

illis largiatur. Hoc tamen tam diuinum beneficium non omnes


accipiunt. Non quod summa atque sempiterna bonitas inuida
sit et opes suas compressas habere studeat, sed quia multi,
pestiferis erroribus inflati et falsa specie cuiusuis splendoris
elati, insaniunt et insolescunt; Dei obliuiscuntur Illiusque
beneficia aspernantur atque repudiant. Soli igitur qui se
coram solio diuinae maiestatis obiiciunt; qui flagitiorum
ueniam petunt; quos ita impuritatis susceptae paenitet ut
nouae uitae rationem constanter instituant; qui se denique
totos ad Dei misericordiam conferunt, eius monitis instructi, in
iustitiae uiam ingrediuntur, ut ita tandem iustitiae propositam
mercedem, Eiusdem Domini clementia et benignitate,
consequantur. Dominus enim humilibus ductor est; iudicii
magister est; neminem qui uelit Sibi subiici a doctrina Sua
repellit; hominibusque sapienter abiectis atque demissis qui
non ex seipsis, sed ex Deo, suspensas uiuendi rationes habere
constituunt, uiae disciplinam clementissime tradit.
Quae autem maior dementia potest excogitari ea qua miseri
homines, uia Domini neglecta, se in uias tenebris demersas
dant ut praecipites in miseriam sempiternam deturbentur?
Omnes enim uiae Domini misericordia constratae sunt et
ueritate constabilitae; misericordia quidem quia, nullis
antecedentibus meritis obligatus, iustitiae diuinum beneficium
hominibus large atque munifice contulit; ueritate porro, quia
fidem [198] quam dederat cumulate praestitit. Receperat
enim fore ut omnes qui ad Se cum fide uigente et incitata
redirent, participes diuinae claritatis efficeret. Sed, qui sunt
ii qui tantae felicitatis compotes sunt? Num omnes qui uerbis
et oratione religionem profitentur? Non certe, sed qui in
foedere cum ipso Domino sanctissimo sanguine percusso
permanent summaque fide testimoniis Illius adhaerescunt
et sanctionibus Illius obtemperant. Sed, qua tandem ratione
fiet ut promissis maneam et legis Tuae sanctitatem minime
uiolem, nisi fuero per spiritum Tuum monitus et eruditus
et robore confirmatus, ita ut neque errore ullo a uia deduci
neque uiribus ullis debilitari possim? Quo modo autem
Ipsius ductu et imperio iustitiae cursum conficiam, si ab
Illius coniunctione fuero propter flagitia mea diuulsus? Te
igitur oro, Domine, propter nominis Tui gloriam, quae tum
demum clarissime splendet et amplissimis laudibus illustratur
cum homines, e luculentis uitiis emersos, iustitiae muneribus
ornas et, ex flagitiosis et impuris, sanctos et immaculatos
OPERA OMNIA TOMO IV 173

Todavia, nem todos acolhem este tão divino benefício. Não porque a suprema
e eterna bondade seja invejosa e deseje manter escondidas as suas riquezas,
mas porque muitos, ensoberbecidos por erros pestilenciais e envaidecidos
pela falsa aparência de um qualquer esplendor, ensandecem e tornam-se
soberbos; esquecem-se de Deus; desprezam e rejeitam os Seus benefícios.
Por consequência, só os que se prostram diante do sólio da divina
majestade; os que pedem perdão pelos crimes; os que se sentem tão
arrependidos pela impureza em que incorreram que de forma decidida se
dispõem a adotar um novo sistema de vida; finalmente, os que inteiramente
se confiam a Deus, ensinados pelos Seus conselhos, entram no caminho
da justiça, por forma a assim acabarem por alcançar, mediante a clemência
e bondade do mesmo Senhor, a oferecida recompensa da justiça. É que
o Senhor é guia para os humildes; é mestre de justiça; não recusa os
seus ensinamentos a ninguém que queira a Ele sujeitar-se; e com a maior
misericórdia transmite os Seus ensinamentos aos homens que sabiamente
se humilhando e prostrando se decidem a fazer depender o seu sistema
de vida não de si mesmos, mas de Deus.
Ora, que maior loucura pode imaginar-se do que aquela por culpa da
qual os mofinos homens, desprezando o caminho do Senhor, se afoitam
por vias mergulhadas em trevas, de maneira a precipitarem-se na eterna
perdição? De facto, todos os caminhos do Senhor estão pavimentados pela
misericórdia e firmados na verdade; na misericórdia porque, sem estar
obrigado por quaisquer anteriores merecimentos, larga e generosamente
ofereceu aos homens o divino benefício da justiça; e, por outro lado,
na verdade, porque cumpriu plenamente a promessa [198] que fizera.
Com efeito, garantira que, àqueles que com fé viva e vigorosa a Ele
regressassem, haveria de torná-los quinhoeiros da luz divina. Mas, quem
são os que possuem uma ventura tão grande? Porventura todos os que
proclamam a sua religião com palavras e discursos? Certamente que não,
mas sim aqueles que se mantêm firmes no acordo assinado com sangue
com o próprio santíssimo Senhor e prestam todo o crédito aos Seus
testemunhos e obedecem aos Seus mandados. Mas, por derradeiro, de que
modo há de ser possível que eu mantenha as promessas e não transgrida
a santidade da Tua lei, se não for ensinado e instruído pelo Teu espírito
e revigorado com a Tua força, por forma a não poder ser afastado do
caminho por algum erro nem enfraquecido por quaisquer ataques? Por
outro lado, de que maneira hei de levar ao termo a carreira da justiça,
sob a Sua direção e mando, se for apartado da união com Ele por causa
das minhas indignidades? Por conseguinte, rogo-Te, ó Senhor, por amor
da glória do Teu nome, que só resplandece com toda a claridade e se
ilumina com imensa honra quando ornamentas com as mercês da justiça
homens que saem de faltas notórias e, de infames e impuros, os tornas
174 D. JERÓNIMO OSÓRIO

efficis, ut mihi flagitiorum meorum, quae sunt nimis multa,


ueniam clementer impertias.
O beatum illum uirum quem metus Dei in officio continet!
Quot bonis expletus erit? Primum enim Dominus illum
docebit et, in quocumque genere uitae quod sibi recta ratione
delegerit, sic instituet ut ad exitum quem expetit facillime
perducatur. Tum anima illius uerissimis bonis affluet et in
summa iucunditate uersabitur; deinde posteritas illius in
patrimonio, sibi a maioribus relicto, sine cura et sollicitudine
permanebit. Qui enim positum a parentibus exemplum iustitiae
atque pietatis imitantur, nullo pacto de possessione patriae
atque sempiternae hereditatis expellentur. Postremo, quod
omnium maximum est, Deus cum illo arcana sapientiae Suae
communicabit et multarum rerum intelligentia illum instruet,
quae sunt ab humana cognitione remotissimae. Nam, quo
tandem pacto homo humi stratus poterit caelestia atque
diuina contemplari, nisi Spiritus Sanctus illum excitauerit et
instituendo et erudiendum et illustradum susceperit? At omnes
qui Deum metuunt Illique se totos in disciplinam tradunt,
hoc Illius gratia consequuntur ut mysteria diuinae legis,
integumentis inuoluta, perspiciant; ut in legis finem aciem
mentis intendant; ut ipsi summo Domino amoris sempiterni
foedere sanctissimo copulentur; ut Spiritus Diuini familiaritate
et consuetudine iucundissima perfruantur; ut multa denique
speculentur et uideant ad quae mentes humanae, uiribus
tantum suis innixae, adspirare nullo modo possunt. Illum igitur
semper intuebor; Illum in animo semper habebo; oculos ab Illo
numquam deiiciam, Ille namque pedes meos reti uehementer
implexos expediet, hostiumque fraudes et insidias perrumpet,
ut libere possim cursum tenere et, quo tendit animus, ope et
gratia Illius absque offensione peruenire.
Respice me, Domine, et miserere mei. Nec enim aliud
umquam in meis aerumnis auxilium exquisiui aut alium
patrocinium contra calumniatores adoptaui. Itaque, omni
praesidio nudatus, omnium gratia destitutus, multis [199]
curis et angoribus afflictus, ad Te, unicum uitae meae
subsidium, supplex accedo: animi namque mei dolores et
anxietates amplificatae sunt. Te igitur oro et obsecro ut me
e tantis malis, quibus sum miserrime circumuentus, eripias.
Vide quibus aerumnis oppressus sim, quibus solliciter et
peccatis meis, quae me in hanc calamitatem impulerunt,
ignosce. Adspice quam multi sint inimici mei, qui me nimis
OPERA OMNIA TOMO IV 175

santos e imaculados, rogo-Te, pois, que compassivamente me concedas


o perdão dos meus pecados, que são assaz sobejos.
Oh bem-aventurado aquele varão, a quem o receio de Deus faz cumprir
o seu dever! Com quão numerosos bens há de ser colmado? É que o
Senhor primeiro há de ensiná-lo e, para qualquer género de vida que com
reta ponderação escolher, de tal modo há de prepará-lo que com a maior
facilidade chegue ao fim que pretende. Então a sua alma transbordará
dos bens mais verdadeiros e viverá no contentamento supremo; depois, a
sua descendência sem inquietação e cuidados há de manter-se na posse
do património que os seus antepassados lhe deixaram. Com efeito, os
que imitam o exemplo de justiça e piedade que os progenitores lhes
deram, de forma alguma serão privados da posse da pátria e da herança
eternas. Finalmente, e algo que é de tudo o mais importante, Deus há
de partilhar com ele os segredos da Sua sabedoria e há de instrui-lo na
compreensão de muitas cousas, que se encontram totalmente apartadas
do conhecimento humano. Com efeito, como é que enfim o ser humano,
rojado na terra, poderá contemplar as coisas celestiais e divinas, se o
Espírito Santo não o mover e não se decidir a ensiná-lo, instrui-lo e
iluminá-lo? Mas todos os que temem a Deus e inteiramente seguem os
Seus ensinamentos, por Sua graça conseguem divisar os mistérios da lei
divina, envoltos em espessos véus; fixar os olhos do entendimento no
fim da lei; unirem-se ao Senhor supremo através da santíssima aliança
do amor eterno; gozar da agradabilíssima intimidade e trato familiar com
o Espírito de Deus; finalmente, enxergar e perscrutar muitas coisas às
quais os entendimentos humanos, apoiados apenas nas suas forças, de
forma alguma podem guindar-se. Por conseguinte, sempre terei n' Ele
fitos os olhos; sempre O terei na alma; nunca apartarei d' Ele os meus
olhos, porquanto Ele soltará os meus pés fortemente presos por redes,
e reduzirá a nada os embustes e ardis dos inimigos, por forma a que
eu possa seguir o meu caminho e, com a Sua ajuda e graça, chegar sem
tropeços ao destino para onde a alma se dirige.
Olha para mim, Senhor, e tem compaixão de mim. É que tão-pouco
nas minhas provações procurei outro socorro nem acudi a outra ajuda
contra os caluniadores. E por isso, desprovido de toda a ajuda, despojado
do favor de todos, atribulado por muitos [199] cuidados e angústias,
suplicante aproximo-me de Ti, único amparo da minha vida: é que as
dores e ansiedades da minha alma aumentaram. Por conseguinte, peço-te
e suplico-Te que me arranques de tão grandes males com que, ai de mim!,
me vejo violentamente cercado. Vê as tribulações que me esmagam e me
atormentam, e perdoa os meus pecados, que me empurraram para esta
situação desgraçada. Atenta em quão numerosos são os meus adversários,
que assaz cruelmente me perseguem; atenta na grande violência com que
176 D. JERÓNIMO OSÓRIO

crudeliter insectantur; quantis me uiribus oppugnent hostes


mei, quam acerbo et immani odio impetum in me ferant.
Esto custos et defensor animae meae et libera me; perfice
ut spes, quam in Te positam habeo, non mihi dedecoris
extremi causa sit: quod eueniet si ope tua fuero in mei
laboris atque doloris magnitudine destitutus. Erubescant
illi qui sibi subsidia fallacissima comparant; non ego, qui
in sola spe Tui sanctissimi numinis acquiesco. Nec enim ita
sum demens ut solo nomine fidei et religionis ineptissime
glorier, et officia, quae fidei penitus inhaerentis et insitae
religionem testificantur, impudenter abiiciam. Integritas
enim uitae, qua labes omnes aspernor, et aequitas, qua
iniurias omnes reuello, quam uera et constans fides mea
sit facile demonstrant. Haec igitur officia me tuebuntur,
eo quod ortum habeant a fide, qua mirifice sustentor, cum
recordor me Tibi omnes uitae meae rationes credidisse.
O Domine, redime populum Tuum, Israelis exemplo, uera
fide et religione subnixum, ex omnibus angustiis quibus
opprimitur.

Iudica me, Domine.


Psal. 25. Apud Heb. 26

Nihil esse conscientia rectae et integrae uitae iucundius,


et bonis et improbis, est satis exploratum. Bonis quidem,
quia sensu dulcedinis, quam ex uirtutis fructu percipiunt, id
experiuntur. Malis autem, quia maleficiorum suorum assiduo
cruciatu lacerantur et obiectis terroribus exanimantur, et
idcirco necesse est ut (uelint, nolint) illos beatos esse iudicent
qui minime tam pestiferis morbis affliguntur. Cur igitur
uirtutem colere recusant? Quia se nefariis cupiditatibus in
miserrimam seruitutem addixerunt et durissimis illis uinculis
laxari non possunt nisi praesentissimi Dei ope, quam illi
minime requirunt. Duo autem maxima solacia continet recti
conscientia: unum est infamiae falsae contemptio; alterum est
constans et perpetua diuinae benignitatis spectatio. Facillime
namque qui sibi nullius sceleris conscius est ignominiam
inimicorum calumnia comparatam despicit, quia scit omne
mendacium, modico spatio temporis interiecto, in lucem
ueritatis incursurum, et ita ad nihilum confestim recisurum,
OPERA OMNIA TOMO IV 177

os meus inimigos me atacam, com quão desumana e entranhada sanha


arremetem contra mim. Sê guardião e defensor da minha alma e liberta-
me; faze que a esperança, que em Ti tenho depositada, não se converta
em causa do meu completo desdouro: algo que sucederá se, na imensidão
dos meus trabalhos e dores, ficar privado da Tua ajuda. Ruborizem-se de
vergonha aqueles que para si obtêm os mais enganosos socorros; não eu,
que só encontro descanso na esperança do Teu santíssimo poder divino.
De facto, não sou tão desatinado a ponto de, dando mostra de enorme
inépcia, me ufanar exclusivamente do título e nome de fé e religião, e
impudentemente desprezar os deveres e mostras que dão testemunho da
pureza da fé profundamente entranhada e abraçada. Na verdade, a pureza
de vida, mediante a qual desprezo todas as infâmias, e a equidade, com
a qual arranco todas as injustiças, são fácil demonstração de quanto é
verdadeira e firme a minha fé. Por conseguinte, esses serviços hão de
proteger-me, uma vez que têm a sua origem na fé, que de modo admirável
me ampara, quando me lembro de que depositei nas Tuas mãos todo o
encaminhamento da minha vida. Senhor, a exemplo do que fizeste com
Israel, liberta o Teu povo, apoiado na fé e religião verdadeiras, de todas
as opressões que o afligem.

SALMO 25
(26 entre os Hebreus)
Julga-me, Senhor.

É sobejamente sabido que nada existe de mais agradável tanto para


os bons como para os ruins do que a consciência de uma vida reta e
pura. Para os bons, evidentemente porque o experimentam através da
sensível doçura que o fruto da virtude lhes oferece. Ao passo que para
os ruins, porque são atormentados com o incessante remorso das suas
malfeitorias e são aterrorizados por visões pavorosas, e por isso é forçoso
que (de bom grado ou contrariados) julguem como venturosos aqueles
aos quais tão terríveis moléstias não atribulam. Mas então, porque se
recusam a prestar culto à virtude? Porque, devido a sacrílegos desejos,
ficaram sob o jugo de uma mui mofina escravidão e não podem libertar-
se daqueles duríssimos grilhões se não através da eficacíssima ajuda de
Deus, que eles não pedem. Ora, a consciência do reto encerra em si as
duas maiores consolações: uma, é o desprezo da inventada infâmia, e a
outra é a incessante e firme visão da bondade divina. Com efeito, quem
tem a consciência de não ter praticado pecado algum, vota a desprezo a
infâmia que sobre ele lança a calúnia dos adversários, porque sabe que
toda a mentira, volvido breve prazo, há de ficar exposta à luz da verdade,
178 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et quia exploratum habet solis obstinatis, improbis et


sceleratis esse fontem diuinae benignitatis interclusum, et
nulla recordatione grauissimi criminis exterretur, cum summa
fiducia et exspectatione ad Deum accedit, ut, Illius ope fultus,
omnes contumeliarum aculeos facile retundat et praemia etiam
insignia ex contumeliarum descipientia consequatur. Dauid
igitur, cum hominum perditorum [200] maledicentia carperetur,
utrumque facit, nam et suae conscientiae testimonio gloriatur,
et causam suam iudicio sanctissimi Illius Iudicis qui neque
labi neque in errorem induci potest, et a quo innocentiae
praemium sibi pollicetur, fidenter sane committit, non ita
tamen ut ad se diuinam gloriam transferat, cum sapienter
intellegat nullo bono se perfrui quod non ab ipso Deo, ex
quo omnia bona frequenter emanant, acceperit, sed ut ab
eodem suae salutis et dignitatis auctore clarius iustitiae
testimonium consequatur. Ait igitur:
Cernis, Domine, quam fallax sit humanum iudicium, nam
ueritas apud homines aut ignorantiae tenebris obscuratur, aut
interclusa, uariis calumniis opprimitur, aut odio improbitatis
in exsilium pellitur, ita ut in loco, etiam iuris examini
destinato, ueritas ipsa raro consistendi locum habeat. Tu
igitur, cuius sanctissimum solium numquam a ueritate
deseritur et quem nihil latere potest, qui non solum iudex
integerrimus, sed testis etiam fidelissimus es, et mentem
meam penitus exploratam habes, de me iudicium fac et
sententiam quam cernis iustissimam esse pronuntia, ut
inimicorum meorum maleuolentia conticescat. Nihil enim
subdole gessi, nihil fraudulenter administraui, sed simpliciter
et candide, cum animi singulari integritate, uixi; spem meam
non in humanis opibus, sed in clementia Tua cum fide
firmissima collocaui. Quocirca fore confido ut numquam
de statu meoconuellar. Explora atque peruestiga penitus
mentem meam; sensus diligenter examina et, quasi quadam
conflatura, renes meos et cor meum igne comproba, et
quam recte uitam sim moderatus experire. Nam primum
misericordiam Tuam in oculis semper habeo, ita ut me, illa
ualde fretum, nulla grauior causa sollicitet, et ueritatis Tuae
constantiam saepe cogito, quae spem meam ita cofirmat ut
nihil interueniat quod me ulla ratione labefactet. Intellego
enim cui me, cui salutem et dignitatem meam et omnia
mea crediderim: Illi nempe cuius nec opes exhauriri nec
clementia diminui neque promissa fluctuare possunt.
OPERA OMNIA TOMO IV 179

e de tal maneira que imediatamente há de ficar reduzida a nada, e porque


está ciente de que a fonte da divina bondade é inacessível apenas aos
obstinados, desonestos e criminosos, e nenhuma lembrança de pecado
muitíssimo grave o atemoriza, quando se aproxima de Deus com enorme
confiança e esperança, de maneira que, apoiado na Sua ajuda, facilmente
embota todas as pontas dos insultos e até obtém notáveis prémios do
desdém pelos ultrajes. Portanto, David, ao vituperar a maledicência dos
homens perversos, [200] faz estas duas coisas, porquanto não apenas se
ufana com o testemunho da sua consciência, mas também confiadamente
entrega a sua causa ao julgamento daquele santíssimo Juiz que não pode
enganar-se nem ser induzido em erro, e do qual se promete o prémio da
inocência, todavia não de tal maneira que transfira para si a glória de
Deus, uma vez que sabiamente compreende que não goza de bem algum
que não tenha procedido do próprio Deus, de quem frequentemente
derivam todos os bens, mas para alcançar um mais claro testemunho de
justiça do mesmo autor da sua salvação e dignidade. Diz, portanto:
Vês, Senhor, como é falso o juízo dos homens, pois a verdade entre
os homens ou é obscurecida pelas trevas da ignorância, ou é esmagada,
tomada de assalto por inúmeras calúnias, ou é obrigada a exilar-se,
devido ao ódio da perversidade, de tal maneira que raramente a própria
verdade tem lugar onde tomar assento até nos sítios destinados à
aplicação da lei. Por conseguinte, Tu, cujo santíssimo sólio nunca se
aparta da verdade e a quem nada se pode ocultar, que és não só juiz
integérrimo, mas também a mais fiel testemunha, e a fundo penetraste
no meu espírito, julga-me e profere a sentença que vês ser a mais
justa, para calar a malevolência dos meus inimigos. É que nada levei
a cabo ardilosamente, de nada me ocupei com enganos, mas vivi
singela e inocentemente, com extraordinária pureza de alma; com a
mais firme fé, depositei a minha esperança, não nas riquezas humanas,
mas na Tua misericórdia. Motivo pelo qual tenho confiança em que
jamais hei de ser arrancado da minha posição. Esquadrinha e examina
bem a fundo o meu espírito; sonda atentamente os meus sentidos, e,
como se fosse por uma espécie de fusão, prova pelo fogo os meus
rins e o meu coração, e verifica como encaminhei retamente a minha
vida. É que, primeiramente, tenho sempre diante dos olhos a Tua
misericórdia, de tal maneira que, nela assaz apoiado, não me inquieta
nenhuma causa de certa gravidade, e amiúde penso na firmeza da Tua
verdade, que de tal forma fortalece a minha esperança que nada se
interpõe que de modo algum me abale. Na verdade, sei a quem me
entregarei e a quem confiarei a minha salvação, dignidade e todas as
minhas coisas: como é evidente, Àquele, cujas riquezas não se gastam
nem cuja compaixão se diminui nem cujas promessas podem sofrer
180 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Hac igitur fide omnes uitae meae rationes instituo et ad


uoluntatem Tuam omnes cogitationes et actiones accommodo.
Cum igitur uideam Te odio persequi uanitatem et malitiam
detestari, consessum eorum qui uanitatem sectantur effugio
et homines ueteratores et callidos detestor. Hominum
maleficorum contionem odi et iudicium impiorum nullo
umquam modo comprobaui. Manus meas puras ab omni
iniquitatis et iniuriae macula conseruaui et religionem Tuam
summo semper studio et sanctitate colendam suscepi.
Curaui enim ut altare Tuum, frequentibus sacrificiis
imbutum, homines ad pietatem acrius incitaret, et laudes
Tuae clarissima uoce canerentur, et ipse mirabilia opera Tua
praedicarem. Amore miro dilexi domum Tuam, eo uidelicet
quod in illa gloria Tua carminibus et concentu perpetuo
celebretur et in illa sede et domicilio diuini decoris et
sanctitatis similitudo operis altissimi, in quod angeli semper
incumbunt, cum summa iucunditate referatur. Omnis enim
beatae uitae perennitas in laude nominis Tui et in gloria Tua,
studio [201] acriter inflammato praedicanda, consumitur, ita
ut nihil fieri possit in terris quod propius ad caelitum uitam
accedat neque ad uitam recte constituendam salutarius.
Qui enim Deum semper intuetur et beneficia Illius mente
recolit et angelos uita et actione sequi nititur, numquam,
quamdiu in eo studio permanserit, in se offensionem diuinae
maiestatis incitabit. Ergo, cum is sim qui neque iniuriam
hominibus inferam neque Dei mei religionem neglegam,
consequens est ut, quemadmodum gratia Tua hunc iustitiae
et sanctitatis statum assecutus sum, ita misericordia sim
semper adiutus et praesidio Tuo, in omni temporum
uarietate, munitus.
Ne igitur animam meam, Domine, cum nocentibus interitu
sempiterno conficias neque cum homicidis et facinorosis
hominibus mihi uitam eripias. Illorum namque opera fraudes
et insidias moliuntur; manus eorum donis atque muneribus
ad corrumpendum iudicium repletae sunt; at ego, contra,
pura et integra mente semper incedo, ita ut neque homines
offendam neque religionis sanctitatem polluam. Non tamen
meritis meis, sed clementia Tua nitor. Redime igitur me,
Domine, a peste sempiterna et misericordia Tua animam
meam complectere. Pedes enim mei in uia iustitiae uestigia
firme ponunt et in coetu fidelium hominum laudes Tuas
oratione mea praedicabo.
OPERA OMNIA TOMO IV 181

dúvidas. Por conseguinte, fundo nesta fé todas as determinações da


minha vida e ajusto à Tua vontade todos os meus atos e pensamentos.
Portanto, ao ver que Tu odeias a vaidade e detestas a maldade, fujo
da companhia daqueles que seguem a vaidade e detesto os homens
astuciosos e matreiros. Odeio a reunião dos homens maléficos e de
modo algum jamais aprovei as opiniões dos ímpios. Conservei as
minhas mãos limpas da mancha de toda a iniquidade e injustiça e
entreguei-me ao culto da Tua religião sempre com o mais completo
escrúpulo e santidade.
É que sempre me preocupei em que o Teu altar, assinalado por
frequentes sacrifícios, mais vivamente incitasse os homens à piedade, e
em que com claríssima voz se cantassem os Teus louvores, e em eu mesmo
apregoar as Tuas obras admiráveis. Com admirável amor amei a Tua casa,
como é evidente porque nela se celebrava com cânticos e harmonias
incessantes a Tua glória e naquela morada e mansão da divina honra e
santidade com a maior alegria se fazia a reprodução da altíssima obra a
que os anjos sempre se entregam. Com efeito, toda a incessante duração
da vida bem-aventurada se emprega no louvor do Teu nome e na Tua
glória, [201] que merece ser vivamente apregoada com inflamado amor,
de tal maneira que na terra nada pode fazer-se que mais se aproxime da
vida dos moradores do céu nem mais salutar para levar um teor de vida
reto. É que quem tem sempre os olhos postos em Deus e pondera os
Seus benefícios e com os seus atos e vida se esforça por imitar os anjos,
nunca, enquanto perseverar neste empenho, há de despertar contra si a
malquerença da divina majestade. Logo, uma vez que eu me comporto
de modo tal que nem cometo injustiças contra os homens nem desprezo
a religião do meu Deus, segue-se como consequência lógica que, da
mesma maneira que mediante a Tua graça alcancei esta condição de
justiça e santidade, assim seja ajudado pela Tua misericórdia e, em toda
a variedade de situações, defendido pelo Teu socorro.
Por conseguinte, ó Senhor, não castigues com a morte eterna a minha
alma juntamente com os culpados nem me arrebates a vida juntamente
com os homicidas e criminosos. Na verdade, as obras deles tecem
embustes e ardis; as mãos deles estão cheias de presentes e dádivas
para peitar os juízes; eu, porém, pelo contrário, sempre avanço com
espírito puro e inteiro, de tal maneira que nem ofendo os homens
nem mancho a santidade da religião. Todavia apoio-me, não nos meus
merecimentos, mas na Tua misericórdia. Portanto, ó Senhor, livra-me
da eterna perdição e abraça com a Tua compaixão a minha alma. É
que os meus pés pisam com determinação a senda da justiça e com
as minhas palavras hei de entoar os Teus louvores na assembleia dos
homens fiéis.
182 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Dominus illuminatio mea et salus mea: quem timebo?


Psal. 26. Apud Heb. 27

Quam firmo praesidio cincti sint qui ad nomen


Domini adiuncti sunt explicat hoc in loco Dauid. Erat
ille quidem omni humano praesidio nudatus; insidiis
undique circumuentus, a rege potentissimo magnis copiis
obsessus, multis difficultatibus implicatus, nulla spes salutis
ostentabatur; nullum miseriae perfugium patebat; omnia
denique erant desperatione plenissima, cum subito diuina
affulsit et uirum sanctum in summas angustias adductum
obsidione liberauit. Vnde poterat esse perspicuum nullas
esse uires, nullas copias, nullas machinationes quae possint
eos, qui sint fide et amore cum Deo copulati Eiusque ope
muniti, de statu dimouere. Quae namque humanae uires
esse possunt quae diuinis obsistant? Hac consideratione
uir diuinus sapienter elatus, exsultat omnesque hostium
impetus facillimne contemnit. Itaque ait:
Dominus est mentis meae clarissimum lumen et sempiterna
salus animi mei. Quo tandem igitur modo uel offensionem
et ruinam, uel pestem et exitium pertimescam? Dominus est
munitissimum meae uitae praesidium: cuius igitur pauore
concutiar? Homines melefici, odio et immanitate flagrantes,
arma corripuerunt; hostes mei, acerrima nocendi cupiditate
insanientes, in me impetum fecerunt: tantum uero abfuit ut
ipsi conata perficerent, ut potius grauiter offensi corruerint.
Si castra fuerint contra me posita, minime trepidabit [202]
cor meum; si bellum contra me uehementer exarserit, diuini
praesidii fiducia constantiam retinebo; firmissimamque uictoriae
spem in Domino collocabo. Nullo igitur pacto metu mortis
a statu demigrabo neque animum meum ullus angor curis
tristissimis agitabit. Omni igitur sollicitudine et cura solutus,
de una tantum re sollicitus ero; id solum a Domino petam; hoc
precibus assiduis flagitabo: ut, in Illius tandem domo sempiterna
locatus, beatissima illa uita aeuo sempiterno perfruar, Illiusque
decus et pulchritudinem clare uideam, et tabernaculum illud
praeclarissimum, in quo Sibi sedem stabilem atque sempiternam
exstruxit, insigni quodam mentis ardore conspiciam.
Ad hoc autem tantum bonum impetrandum non merita
mea recensebo, sed bonitatem Illius, quae me confidentem
efficit, adducam. Is enim, cum me mala circumuallarent,
OPERA OMNIA TOMO IV 183

SALMO 26
(27 entre os Hebreus)
O Senhor é a minha luz e a minha salvação: a quem temerei?

Neste salmo, David expõe quão firme é a proteção com que se encontram
protegidos aqueles que se colocaram sob as ordens do Senhor. Tinha, de
facto, sido privado de toda a ajuda humana; rodeado de todos os lados por
ciladas, cercado pelos grandes exércitos de um rei muito poderoso, enleado
por dificuldades sem conto, não se divisava nenhuma esperança de salvação,
não se antolhava escapatória alguma para a desgraça; enfim, tudo ressumava
a mais completa desesperação, quando de súbito a fortaleza divina brilhando
se deu a conhecer e libertou do cerco o santo varão que se encontrava nas
maiores dificuldades. Daqui poderia tornar-se manifesto que não existem
nenhumas forças, nenhuns exércitos e nenhumas maquinações capazes de
arrancar da sua alta posição aqueles que pela fé e amor se uniram com Deus
e se encontram protegidos com a Sua ajuda. De facto, que forças humanas
podem existir que se oponham às divinas? Sabiamente orgulhoso com
este pensamento, o santo varão exulta de alegria e com a maior facilidade
despreza todas as arremetidas dos inimigos, e por isso diz:
O Senhor é uma brilhantíssima luz do meu entendimento e a eterna
salvação da minha alma. Por conseguinte, como é que ao cabo hei de
arrecear-me da ruína e derrota ou da perda e destruição? O Senhor é a
guarda seguríssima da minha vida: portanto, de quem hei de sentir pavor? Os
homens malvados, abrasados em sanha e crueldade, pegaram em armas; os
meus inimigos, ensandecidos pelo penetrante desejo de fazer mal, atacaram-
me: mas estiveram tão longe de levar a bom termo as suas tentativas,
que pelo contrário antes tombaram seriamente derrotados. Se contra mim
levantarem arraiais, o meu coração não [202] tremerá de medo; se a guerra
se atear violentamente contra mim, conservarei a firmeza com confiança no
socorro divino; e depositarei no Senhor solidíssima esperança de vitória.
Por conseguinte, de modo algum abandonarei a minha posição por medo
da morte nem ansiedade alguma perturbará o meu ânimo com quaisquer
cuidados. Por conseguinte, isento de quaisquer inquietações e cuidados,
preocupar-me-ei apenas com uma única coisa; só isso pedirei a Deus; isto
suplicarei com incessantes rogativas: que, postado enfim no Seu eterno
domicílio, goze por toda a eternidade daquela vida bem-aventurada, e veja
claramente a Sua formosura e glória, e, com uma espécie de extraordinário
abrasamento do entendimento, contemple aquele nobilíssimo tabernáculo
no qual construiu para Si uma morada estável e imorredoura.
Ora, para pedir um tão grande bem não enumerarei os meus
merecimentos, mas alegarei a Sua bondade, que me torna confiante. É
que Ele, quando os males por todas as partes me rodeavam, fez-me sair
184 D. JERÓNIMO OSÓRIO

ex aerumnis eduxit et in tentorio Suo constituit, ne malum


ullum extimescerem. In tabernaculi Sui intimam sedem
introduxit, ut ab omni calamitatis incursione protegeret et
in rupem munitissimam, quo hostes euadere nullo modo
possent, me sublimem euexit. Quin etiam hoc tempore,
cum me hostes obsidione cingerent, extulit caput meum,
ut de omnibus insignem uictoriam reportarem. Quocirca
gratissimas et magnificentissimas laudis uictimas, cum maxima
uoce et clarissima Illius in me beneficiorum testificatione,
in tabernaculo Illius immolabo; Illi semper gratias agam;
in gloriam Illius carmina modulabor; laudes Illius canam;
nec de tantis in me beneficiis ullo tempore silebo. Sit modo
hic spiritus qui me magnis uiribus incitat et amore tantae
bonitatis inflammat in mente mea perennis; numquam
abscedat tam diuinae gratiae iucunditas et tam inuicti
praesidii firmamentum. Illo namque amoto, concidam et
summa molestia et angore conficiar. Exaudi igitur orationem
meam, Domine, et misericordiam mihi tribue et postulato
meo satisfac, ita ut numquam ope Tua praesenti destituar.
Vota namque mea Tibi nota sunt; opes terrestres non
appeto; popularem celebritatem non ambio; reliqua omnia
quae uulgus hominum diligenter exquirit pro nihilo habeo:
Te unum quaero; Te summo studio sequor; Te animo nimis
inflammato frui desidero. Huc igitur omnes preces meae in
summa referuntur, ut numquam mens mea a mentis Tuae
iucundissimo conspectu diuellatur, et ex hac tam suaui
familiaritate, quam summa contentione peto, fructum quem
uolo percipiam. Non igitur auertas faciem Tuam a me, ne,
flagitiis infensus, iram ita in me conuertas ut, repentino
Tuae lucis abscessu, animum meum in terram deiicias. Quod
enim mihi supplicium grauius irrogari potest? Cum enim me
pericula circumsistunt, solus Tu auxilium afferre soles. Non
igitur me deseras neque orbatum derelinquas, o Domine,
quando solus Te mihi Auctorem praebuisti. Pater enim meus
et mater mea nullam mihi opem in rebus asperis attulerunt:
Tu solus me, ab omni ope et solacio destitutum, in fidem
recepisti; nomine Tuo protexisti; et a capite meo hostium
impetum repressisti. Tu igitur es mihi uitae praesidium; Tu
salutis meae propugnaculum; Tu denique [203] mihi pater
es amantissimus. Si igitur a Te fuero derelictus, ab auxilio
desertus, salute spoliatus, ope sanctissimi parentis orbatus,
hostium praedae et direptioni relinquar.
OPERA OMNIA TOMO IV 185

das provações e recolheu-me na Sua tenda, para que eu não sentisse


receio de mal algum. Introduziu-me no recesso mais interior do Seu
tabernáculo, para me proteger de qualquer arremetida da desgraça e
levou-me para uma fraga assaz resguardada, em lugar alto, para que
aí os inimigos de forma alguma pudessem chegar. E até nesse tempo,
encontrando-me cercado pelo assédio dos inimigos, ergueu-me a cabeça,
por forma a obter uma notável vitória sobre todos. Por este motivo, no
Seu tabernáculo hei de imolar mui agradecidos e esplendorosos sacrifícios
de louvor, com as mais elevadas palavras gratulatórias e como claríssimo
testemunho dos benefícios que me fez; sempre Lhe darei graças; entoarei
cânticos para glorificá-Lo; cantarei os Seus louvores; e em tempo algum
calarei os tão grandes benefícios que me fez. Que seja agora perpétua na
minha alma esta inspiração que me incita com grandes forças e abrasa
no amor de tão grande bondade; que nunca me abandone este grande
contentamento da graça divina e a grande segurança desta invencível
ajuda. É que, se ela é removida, cairei e serei atribulado pelas maiores
incomodidades e angústia. Por isso, ouve as minhas palavras, ó Senhor,
sê comigo misericordioso e concede-me o que Te peço, de tal maneira
que nunca seja privado da Tua ajuda.
Com efeito, conheces os meus pedidos; não são riquezas terrenas o
que apeteço; não sinto ambições de popularidade; tenho na conta de
coisa nenhuma tudo o mais que o vulgo dos homens desveladamente
persegue: só a Ti busco; com o máximo desvelo vou empós de Ti; com
a alma assaz abrasada desejo gozar de Ti. Por conseguinte, todos os
meus rogos resumem-se a que nunca o meu espírito se aparte da Tua
jucundíssima presença, e a colher desta tão doce intimidade, que com o
máximo empenho peço, o fruto que desejo. Por conseguinte, não desvies
de mim o Teu rosto, nem, hostilizando as indignidades, encaminhes contra
mim de tal maneira a Tua ira que, pela repentina ausência da Tua luz,
lances por terra a minha alma. Na verdade, que suplício mais pesado do
que este se pode infligir-me? É que, quando os perigos me rodeiam, só
Tu costumas oferecer-me auxílio. Por conseguinte, não me abandones
nem me deixes desamparado, ó Senhor, visto que mostraste que és o meu
único Criador. É que nem o meu pai nem a minha mãe me ajudaram fosse
no que fosse na adversidade: só Tu, quando eu estava privado de todo
o socorro e consolo, me recebeste sob a Tua proteção; defendeste-me
com o Teu nome; e desviaste da minha cabeça a arremetida dos inimigos.
Por consequência, Tu és a defesa da minha vida; Tu és o baluarte da
minha salvação; Tu, enfim, [203] és para mim o mais amado dos pais. Por
conseguinte, se por Ti for abandonado, privado do Teu auxílio, despojado
do Teu salutar socorro, orfanado da ajuda do mais santo dos pais, ficarei
entregue como presa à rapina e saque dos inimigos.
186 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Sed dices me, multis in locis, delictis meis causam


attulisse ut a me discederes. Fateor, Domine. Sed, ne hoc
malum in me saepius incurset, perfice clementia Tua ut
numquam in offensionem Tuam incidam. Demonstra mihi
uiam Tuam et in semitas iustitiae dirige mentem meam, ut
numquam ulla cupiditas rerum humanarum me transuersum
a disciplina pietatis abducat, ut sic tandem, ope Tua
confirmatus, hostes meos despiciam. Legis namque Tuae
rectissimus cultus homines fortes et inuictos efficit, sicut
legis neglegentia et religionis obliuio timidos et imbecillos.
Vt igitur hostes profligare queam, inscribe in animo meo
legem Tuam, ne umquam a studio illius adducar. Ne me
inimicorum meorum libidini et crudelitati dedas, quorum
omnes conatus in meam perniciem conferuntur; in me
furenter insurgunt, neque uiribus tantum pugnant, sed
etiam falsis testimoniis in eo uehementer elaborant ut
nomen meum ignominiae extremae notis inurant, ut iure
facere contra me omne uideantur, cum in meum exitium
tyrannicae uiolentiae scelus anhelant. Quid de me fieret, si
me spes illa non mirifice confirmaret, qua bona Domini uera
atque sempiterna in regione uiuentium me uisurum esse
confido? Potuissemne tot hostium incursiones sustinere?
Tot insidiis ocurrere? Tot dolores excipere? Tot contumelias
et conuicia pati?
Non prorsus. Sed, cum uitae breuitatem cogito et bonorum
quæ uersantur in uita inanitatem considero, neque bona
esse statuo illa quae tot malis admixta et contaminata sunt
et, cum momento temporis effluxerint, animos hominum
maerore conficiunt, nec illam uitam ducendam esse quae
tanta celeritate in interitum tendit et mortis repentinae ui et
atrocitate consumitur.
Illa igitur demum bona sunt existimanda quae neque
calamitas ulla peruertit, neque mortis uis et impetus extrudit,
nec ulla temporis uetustas obliuione conterit, sed in omni
aeternitate uigerit et animos semper florentes atque beatos
efficiunt. Similiter illi tantum uiuere sunt existimandi qui
sunt cum ipsa uita foedere indissolubili colligati, quorum
neque uires infringuntur, neque laudes emoriuntur; neque
uoluptates ullo interuentu maestitiae contaminantur, sed
saeculis infinitis in eodem semper statu permanebunt.
Haec me spes in omni rerum uarietate consolatur, ita ut
omnia pericula, quae mihi ab improbis intenduntur, pro
OPERA OMNIA TOMO IV 187

Mas dir-me-ás que em muitas ocasiões eu, com os meus delitos, dei
motivo para que Te apartasses de mim. Reconheço-o, Senhor. Mas, para
que este mal não me acometa mais amiúde, faze com a Tua misericórdia
que eu nunca incorra em ofensa contra Ti. Mostra-me o Teu caminho e
guia o meu espírito pelas sendas da justiça, por forma a que nunca desejo
algum das coisas humanas me transvie arrancando-me aos ensinamentos
da piedade, para que assim, fortalecido com a Tua ajuda, acabe por votar a
desprezo os meus inimigos. É que o respeito indefectível da Tua lei torna
fortes e invencíveis os homens, da mesma maneira que o seu desprezo e o
esquecimento da religião os torna covardes e fracos. Por conseguinte, para
que eu possa vencer os inimigos, grava na minha alma a Tua lei, a fim de
que jamais seja desviado do seu zeloso cumprimento. Não me entregues
ao capricho e crueldade dos meus adversários, que têm como único
empenho a minha perdição; contra mim se levantam com dementada fúria,
e não lutam apenas com a violência, mas também com falsos testemunhos
vivamente se esforçam por infamar o meu nome com o labéu da mais baixa
ignomínia, para que pareça que é justo todo o seu procedimento contra
mim, ao respirarem para minha perdição o crime de uma tirânica violência.
Que seria feito de mim, se não me fortalecesse de modo admirável aquela
esperança mediante a qual tenho confiança que na região dos vivos hei de
ver os bens verdadeiros e eternos do Senhor? Teria acaso podido arrostar
com tão grande número de arremetidas dos inimigos? Atalhar a tão grande
número de ardis e maquinações? Suportar tão grande número de tribulações?
Tolerar tão grande número de ultrajes e baldões? Certamente que não. Mas,
quando penso na brevidade da vida e reflito na inanidade dos bens que se
encontram na existência, concluo que não podem ser bens aquelas coisas
que se encontram misturadas e contaminadas por tão grande número de
males e, depois de se desvanecerem num ápice de tempo, mergulham na
tristeza as almas dos homens, e que não merece prolongar-se uma vida que
se encaminha com tamanha rapidez para o fim e é engolida pela inesperada
violência e horror da morte.
Por conseguinte, devem ter-se na conta de bens, exclusivamente aqueles
que nenhuma calamidade destrói, nem a violência e arremetida da morte
expulsam, nem o longo passar do tempo gasta com o esquecimento, mas
os que duram por toda a eternidade e tornam as almas sempre florescentes
e bem-aventuradas. De modo semelhante, deve considerar-se que vivem
só aqueles que se encontram unidos com a própria vida por um pacto
indissolúvel, cujas forças não se quebrantam, cujos louvores não perecem
e cujas deleitações não se maculam com nenhuma presença da tristeza,
mas hão conservar-se durante séculos infinitos sempre na mesma condição.
Em toda a variedade de situações, é esta a esperança que me consola, de
tal maneira que tenho na conta de coisa nenhuma todos os perigos que os
188 D. JERÓNIMO OSÓRIO

nihilo ducam. Quocirca uos hortor et moneo, qui uitam


et salutem caram habetis, ut, rebus aliis neglectis, in Deo
omnia uitae praesidia collocetis, qui uos in hac uita non
deseret, et in futura uobis diuinitatis cuiusdam praemia
sempiterna constituet. Hac spe, languida uirtus excitatur,
et animus deiectus inuictum robur assumit et altior in dies
efficitur. Summa igitur fide in Deum respicite, et ad spem
immortalitatis inflammati, omnia, quae hominum uulgus
nimis sitienter exquirit, contemnite, ut fructum spei in Deo
positae feratis et sempiterna gloria perfruamini.

[204]

Ad Te, Domine, clamabo.


Psal. 27. Apud Heb. 28

Ostendit Dauid numquam sine fructu orationem a piis


hominibus apud Deum haberi. Quamuis enim in orationis
principio se incommodis uexari, doloribus angi et uehementer
afflictari demonstret, in fine tamen uoces laetitiae ingentis
indices emittit et Deo gratias summas agit, clementiaeque diuinae
magnitudinem ampla et illustri praedicatione prosequitur. Hoc
igitur institutum ut hoc etiam in loco teneat, ait:
Ad te, Domine, munitissimum uitae meae propugnaculum,
contenta uoce et studio clamo; Te, quantum possum, oro ne
abhorreant aures Tuae a precibus meis, neue me silentio Tuo
suspensum et summa pertubatione perculsum diu teneas. Si
enim me non audieris, si opem mihi minime, cum calamitas
instat, attuleris, similis ero illis qui, ab ope Tua derelicti, in
imam terrae uoraginem, et in miseriae sempiternae regionem
deprimuntur. Cum enim uita mea in Tua benignitate sita sit,
consequens necessario est ut, a Te neglectus, a uita diuellar
et spem salutis abiiciam et illis, qui sepulti sunt tenebris
sempiternis, annumerer. Ne igitur tantum malum subeam, o
clementissime Domine, preces meas ad aures admitte. Non
enim neglegenter et frigide loquor, noui enim Te socordiam
in maximis rebus exsecrari et postulatum animi languidi
atque neglegentis aspernari. Signum est enim neque iusto
doloris sensu commoueri nec firmam spem in benignitate
Tua reponere illos qui neglegenter opem Tuam implorant.
Quod flagitium ne in me turpiter admittam, maxima animi
OPERA OMNIA TOMO IV 189

perversos tramam contra mim. Razão pela qual vos aconselho e admoesto,
a vós que dais muito apreço à vida e à saúde, a que, deixando de parte
tudo o mais, coloqueis toda a proteção da vida em Deus, o qual nesta não
há de abandonar-vos, e na que há de vir há de reservar-vos os sempiternos
prémios de uma espécie de divindade. A virtude debilitada com esta esperança
cobra forças, e o ânimo abatido adquire um invencível vigor e torna-se mais
arrojada de dia para dia. Por conseguinte, olhai para Deus com enorme fé,
e abrasados pela esperança na imortalidade, desprezai tudo o que o comum
dos humanos busca com excessiva sede, por forma a colherdes o fruto da
esperança depositada em Deus e gozardes da sempiterna glória.

[204]

SALMO 27
(28 entre os Hebreus)
A Ti clamarei, Senhor.

David mostra que Deus nunca deixa sem fruto a oração dos homens
piedosos. É que, embora no princípio do seu discurso mostre que se
encontra assoberbado por incomodidades, e angustiado e vivamente
atribulado por sofrimentos, todavia no final solta palavras indicadoras de
imensa alegria e dá as maiores graças a Deus, e com brilhante e magnífico
elogio encarece a grandeza da misericórdia divina. Por conseguinte, a
fim de manter este desígnio também neste lugar, diz:
A Ti, Senhor, bem protegido baluarte da minha vida, clamo com ardente
voz e paixão; a Ti peço, o mais que posso, que os Teus ouvidos não fujam
aos meus rogos, e que não me mantenhas durante mais tempo suspenso
do Teu silêncio e abalado por enorme inquietação. É que, se não me
escutares, se, quando a desgraça espreita, não me ofereceres ajuda, serei
semelhante àqueles que, abandonados pelo Teu socorro, tombam nas
profundezas da terra e na região da sempiterna infelicidade. Na verdade,
uma vez que a minha vida assenta na Tua bondade, segue-se como forçosa
consequência que, se me desprezas, sou arrancado da vida e renuncio
à esperança de salvação e passo a fazer parte do número daqueles que
foram mergulhados nas trevas sempiternas. Por conseguinte, para que
não incorra em tão grande desgraça, ó clementíssimo Senhor, atende às
minhas rogativas. Na verdade, não falo com frouxidão e desprezo, pois sei
que Tu nas mais importantes matérias abominas a frouxidão e desprezas
o pedido de uma alma negligente e remissa. Pois os que pedem a Tua
ajuda com frouxidão dão prova de que nem os comove a justa dor do
remorso nem depositam na Tua bondade uma firme esperança. Para não
cometer esta torpe infâmia, brado com todas as forças do meu espírito
190 D. JERÓNIMO OSÓRIO

contentione clamo manusque meas ad aditum sancti templi Tui,


in quo sempiternam sedem locasti, frequenter intendo.
Ne igitur me cum impiis ad aeternum supplicium trudas; ne
me poenis, quae sunt iniquis propositae, torqueri patiaris, cum
ab illorum moribus et peruersitate uehementer abhorream.
Ego numque simpliciter et sine fallacia uitam instituo, illi
uero dolos struunt et insidias perpetuo moliuntur. Verbis
quidem pacem ostentant, animo autem bellum comparant,
et cum maxime humanitatem et beneuolentiam simulant,
tum uel maxime dolos cogitatione uersant et pestem nefarie
machinantur. Quid igitur illis poterit esse nocentius et
communibus rebus infestius? Malum enim perspectum uirtute
reprimitur; insidiae latentes difficillime praecauentur. Solius
igitur Dei uirtus potest machinis adeo sceleratis occurrere.
Vlciscere igitur, Domine, tantum facinus et poenam, tantis
sceleribus debitam, hominibus profligatis impone; pro
ratione malitiae, supplicium illis irroga, et mercedem illis
pro magnitudine sceleris et impietatis attribue. Quiud enim
aliud eis, qui nomen Tuum impudentissime contemnunt,
qui beneficentiam Tuam aspernantur, qui nullis beneficiis
leniuntur, qui multis monitis absterrentur, qui animis
obstinatis in prauitate perseuerant, optandum est nisi ut
magnitudine Tuae seueritatis exscindantur, et qui opes
immensas Tuae benignitatis despiciunt, opibus [205] immensis
tuae seueritatis oppressi, aeuo sempiterno sceleris infandi
poenas luant.
Numquam enim caeli candorem et amplitudinem suspexerunt;
non mentis aciem in siderum spendorem intenderunt;
non uniuersae naturae consensum ad hominum salutem
contemplati sunt; non legis sanctitatem, non reliqua opera
diuina animo comprehendere uoluerunt; in quibus si mentem
defigere uoluissent, facillime a se, ope diuina firmati, morbos
animi depulissent et uirtutibus diuinis instructi opibusque
sempiternis cumulati fuissent. Non est igitur cur merito de
ulla externa ui conqueri possint, cum ipsi sibi, offirmatae
uoluntatis in scelere pertinacia, perniciem intulerint et in
sceleribus suis gloriati sint. Illos igitur funditus euertes neque
umquam illorum statum instaurari et in antiquam spendoris
speciem restitui patieris. Nomen Domini laudibus sempiternis
efferatur omniumque praedicatione celebretur qui orationem
meam clementer exaudiuit. Dominus est robur meum, quo
bellorum omnium tempestates animo inuicto sustineo; est
OPERA OMNIA TOMO IV 191

e frequentemente elevo as minhas mãos para a entrada do Teu santo


templo, no qual assentaste eterna morada.
Por conseguinte, não me empurres para o suplício eterno juntamente
com os ímpios; não deixes que eu seja atormentado com os castigos
que estão destinados aos iníquos, uma vez que sinto viva repugnância
pelos seus costumes e perversidade. É que eu levo um teor de vida
singelo e isento de enganos, ao passo que eles maquinam embustes e
incessantemente tramam ardis. É certo que com as palavras dão mostras de
paz, mas no seu íntimo aparelham a guerra, e quando mais simulam boa
vontade e afabilidade, é então que mais se aplicam a pensar em enganos
e mais sacrilegamente urdem a perdição. Por conseguinte, que poderá
haver de mais nocivo e de mais prejudicial às comunidades do que eles?
É que o mal visível, reprime-se mediante a virtude; mui dificultosamente
se tomam precauções contra os ardis ocultos. Portanto, só a virtude de
Deus pode atalhar a maquinações em tal grau criminosas. Por isso, ó
Senhor, vinga um tão grande atentado e impõe aos homens perversos o
castigo devido por tão grandes crimes; em proporção com a maldade,
aplica-lhes o castigo, e concede-lhes a recompensa proporcional à grandeza
do pecado e da impiedade. De facto, para eles, que menosprezam com
a maior impudência o Teu nome, que rejeitam a Tua bondade, aos quais
nenhuns benefícios abrandam, aos quais nenhumas admoestações desviam
e assustam, que com obstinação perseveram na perversidade, para eles,
pois, que outra coisa deve desejar-se senão que sejam aniquilados pela
Tua grande severidade, e que os que desprezam as imensas riquezas da
Tua bondade, esmagados pelo peso [205] imenso da Tua severidade,
sofram por toda a eternidade o castigo pelo abominável crime.
De facto, nunca contemplaram a grandeza e brilho do céu; não
aplicaram a penetração da inteligência ao esplendor dos astros; não
consideraram o acordo da natureza inteira em ordem a servir o homem;
não quiseram abranger com o entendimento a santidade da lei nem as
restantes criações de Deus; se nestas coisas tivessem querido fixar a sua
inteligência, com a máxima facilidade, apoiados na ajuda divina, teriam
rechaçado as enfermidades do espírito e teriam sido providos das virtudes
divinas e colmados com as riquezas sempiternas. Por conseguinte, não
existe motivo pelo qual com razão possam queixar-se de alguma violência
exterior, uma vez que eles mesmos ocasionaram a sua própria perdição
pela obstinação no crime da teimosa vontade e se ufanaram dos seus
pecados. Por isso, hás de destrui-los por completo e não permitirás
que alguma vez recuperem a sua alta posição ou se vejam restituídos à
antiga aparência de prestígio. Que o nome do Senhor seja exalçado com
louvores sempiternos e celebrado pelos pregões de todos Aquele que
escutou compassivo as minhas palavras. O Senhor é a minha força, com
192 D. JERÓNIMO OSÓRIO

scutum meum, quo facillime hostium tela in corpus meum


immissa repello. Animus meus Illius fide nixus semper
exstitit et, ope Illius defensus, exsultauit; gaudio triumphat
cor meum: hymnis igitur et canticis laudes Domini celebrabo
omniaque mea studia et cogitationes ad Illius gloriam
conferentur. Dominus robur Suorum est opibusque summis
atque sempiternis Christi Sui salutem constituit. Per illum
namque terras gratia constabiliuit; caelum gloria cumulauit;
homines cum caelestibus amoris foedere coniunxit; multisque
modis Christi opera ad multorum salutem sempiternam usus
est; uoluntateque sua decreuit ut Christi Sui nomen nullis
saeculis interiret.
O Domine, salutem confer populo Tuo, quem non religionis
species, terrestribus sacrificiis atque caerimoniis adumbrata,
unica rei publicae consensione colligauit, sed solidae et
expressae ratio sanctitatis inter se caritatis uinculo deuinxit;
et hereditatem Tuam tibi a Patre traditam, quae ultimis etiam
terrarum finibus continetur, beneficiis Tuis auge, et illorum
opes amplifica; eos, ut uigilantissimus pastor, in salutaria
pascua deduc et in sublimi dignitatis gradu coloca, ut non
solum bonorum ubertate et copia redundent, sed etiam
dignitate sempiterna circumfluant.

Afferte Domino filii Dei.


Psal. 28. Apud Heb. 29

Cum multa sint quibus homines pii ab impiis differant,


tum maxime quantum sit inter utrosque discrimen ostendit.
Viri namque pii certum habent ui diuina caelum conuerti,
terram motibus interdum horrendis conquassari, mare
in nubes fluctus immanes attollere, imbres immodicos
ab aetheria regione decidere, micare fulgura, emmiti
fulmina uniuersamque naturam cum fragore ualde metuendo
contremiscere. At impii, cum ad naturam rationis expertem
et casum omnia referant, quamuis metu trepident [206]
et in maximis tempestatibus animum, maxima formidine
consternati, despondeant, non ita tamen ut ualde uim
diuinam cogitent et, illius timore perculsi, in desertam uiam
redire constituant; sic etiam bellorum tempestates, rerum
publicarum conuersiones et imperiorum euersiones atque
OPERA OMNIA TOMO IV 193

a qual arrosto com ânimo invencível as procelas de todas as guerras;


é o meu escudo, com o qual facilmente desvio os dardos dos inimigos
arremessados contra o meu corpo. A minha alma apoiada na fé n'Ele
sempre se manteve firme e, defendida pela Sua ajuda, exultou de alegria;
o meu coração triunfa de contentamento: por isso celebrarei com cânticos
e hinos os louvores do Senhor e todos os meus desvelos e pensamentos
estarão encaminhados a glorificá-Lo. O Senhor é o vigor dos Seus e nas
maiores e eternas riquezas estabeleceu a salvação do Seu Cristo. É que
através dele fortaleceu com a graça a terra; encheu de glória o céu; com
um pacto de amor uniu os homens com os seres celestiais; e por obra de
Cristo serviu-se de muitas vias para a salvação eterna de muitos; e decidiu
por Sua vontade que o nome do Seu Cristo não perecesse jamais.
Senhor, concede a salvação ao Teu povo, ao qual não foi uma aparência
de religião, bosquejada com sacrifícios e cerimónias terrenos, quem reuniu
mediante uma única conformidade de sentimentos nacionais, mas que é
antes povo cujos membros, por vínculo de caridade, se uniram entre si
em virtude de uma sólida e forte santidade; e acrescenta com os Teus
benefícios a Tua herança, a Ti transmitida pelo Pai, que tem como limites
os últimos confins da terra, e aumenta a riquezas deles; e condu-los, como
vigilantíssimo pastor, para pastos salutares e coloca-os em elevado grau de
dignidade, para que não só transbordem de abundância e cópia de bens,
mas também sejam largamente providos de sempiterna dignidade.

SALMO 28
(29 entre os Hebreus)
Trazei ao Senhor, ó filhos de Deus.

Sendo muitas as coisas em que os homens piedosos divergem dos ímpios,


mostra sobretudo a grande diferença que existe entre uns e outros. Com
efeito, os varões piedosos têm por certo que é graças ao poder divino que
o céu gira, que a terra por vezes é abalada com horríveis movimentos, que
o mar com enormes vagas toca nas nuvens, que as chuvas excessivas caem
da região do éter, que os raios brilham, que os relâmpagos são lançados
e que a natureza inteira treme com um estrondo deveras assustador. Os
ímpios, porém, como tudo atribuem ao acaso e a uma natureza desprovida
de razão superior, ainda que tremam de medo [206] e percam a coragem
nas mais violentas tempestades, transidos pelo mais profundo terror,
todavia não se amedrontam a ponto de pensarem muito num poder
divino e, abalados pelo receio dele, se decidirem a retomar o caminho
abandonado; do mesmo modo também as convulsões das guerras, as
transformações dos estados e as destruições e assolamentos dos impérios,
194 D. JERÓNIMO OSÓRIO

uastitates, ad Fortunae temeritatem reuocant, quam deam


esse fingunt summa potentia praeditam, eam tamen orbant
consilio, ut in omni rerum humanarum euentum non possint
homines suis flagitiis, sed inuictae Fortunae temeritati,
magnitudinem cladis qua opprimuntur adscribere. Ea uero
ratione sic offirmati sunt ut nullis cladibus resipiscant et
uitia quibus sunt cooperti detestentur. Ab hoc autem tanto
furore et amentia longe absunt ii qui pietatem unice colunt
et diuinam mentem pura et integra mente uenerantur,
quibus persuasum est nullum motum in uniuersa natura
fieri qui non sit Dei uoluntate concitatus, uel ut flagitiosis
supplicium inferat nuel saltem ut eos, qui sanari possunt,
absterreat et in sanitatem reducat.
Quod adeo uerum est ut nullae tempestates absque Illius
iudicio concitari existimandae sint. Itaque (ut credibile
est) cum illa memoria saeuissima tempestas atque procella
animos hominum ingenti formidine perculisset, et Dauid
inde materiam sibi praeberi diuinae potentiae praedicandae
intellexisset, noluit facultatem tam diuini muneris luculenter
obeundi praetermittere. Admonet igitur omnes, qui summo
studio pietati operam dant, quos Dei filios appellat, ut Deo
non uitulos, non hircos, non agnos, more antiquae legis,
ad aram statuant, sed noui et sempiterni foederis uictimas
offerant, quae sunt in ardentissimo studio pietatis, in diuinae
bonitatis assidua praedicatione et in iudiciis Illius perpetua
oratione celebrandis constitutae. Ait igitur:
O uiri diuini, qui in Dei adoptiua sacra uenistis, in familiam
Illius, per eiusdem gratiam, adsciti: offerte Domino, non
quadrupedum sanguinem neque uitulorum adipem neque
hostias in umbris et imaginibus uerissimae sanctitatis et
iustitiae constitutas, sed sacrificia et munera Illius maiestate
dignissima: nempe, gloriae summae et uirtutis inuictae
confessionem. Offerte Domino gloriae laudem nomenque
Illius modulati carminis iucundissima symphonia celebrate.
Ipse est qui uapores in nubes cogit, et aquis densissimis
intonat: Deus immensa gloria praecellens intonat in aquarum
multarum copia et densitate. Vox Illius, robore ingenti
praedita, terram uniuersam concutit humanumque genus
ingenti formidine perterret. Vox Illius, gloria insigni atque
sempiterna circumfluens, hominum tandem mores et instituta
commutat. Vox Domini cedros altissimas perfringit et dissipat;
perfringit et dissipat Dominus cedros Libani. Arbores,
OPERA OMNIA TOMO IV 195

tudo isso assacam ao capricho da fortuna, que fingem ser uma deusa dotada
de poder supremo, conquanto a privem de deliberação, de tal maneira
que em todas os sucessos da existência humana os homens não podem
atribuir aos seus crimes, mas sim ao capricho da todo-poderosa fortuna,
a grandeza da desgraça que os oprime. E de tal modo se obstinam nesta
explicação que nenhumas desgraças os levam ao arrependimento e não
abominam as faltas de que são culpados. Ora, de tão grande demência e
loucura estão muito longe os que exclusivamente se entregam à piedade
e com entendimento puro e casto adoram o entendimento divino, os quais
estão persuadidos de que em toda a natureza não se dá movimento algum
que não tenha sido provocado pela vontade divina, ou para inferir castigo
aos infames ou pelo menos para atemorizar os que podem ser curados e
restituir-lhes a saúde.
Isto a tal ponto é verdade que cumpre pensar-se que tempestade alguma
se desencadeia sem deliberação d' Ele. E por isso, consoante é de crer,
tendo-lhe uma medonha tempestade e procela, abalando com imenso
temor o espírito dos homens, trazido isto à lembrança, e havendo David
compreendido que daí se lhe oferecia matéria para pregar o poder de
Deus, não quis desperdiçar a possibilidade de executar muito bem uma
tão santa função. Por conseguinte, aconselha a todos que com o máximo
desvelo se entregam à piedade, aos quais chama filhos de Deus, a que
não coloquem bezerros, bodes e cordeiros no altar de Deus, segundo o
costume da lei antiga, mas que ofereçam as vítimas sacrificiais da nova
e eterna aliança, que consistem no ardentíssimo zelo da piedade, na
incessante proclamação da bondade de Deus e em celebrar os Seus juízos
com perpétuas orações. Por isso, diz:
Ó varões de Deus, que acudistes aos sacrifícios da divindade em cuja
família, por graça Sua, entrastes por adoção: oferecei ao Senhor, não
sangue de quadrúpedes, nem gordura de almalhos, nem vítimas sacrificiais
que em bosquejo e símbolo representam a verdadeira santidade e justiça,
mas sacrifícios e presentes os mais dignos da Sua majestade: ou seja, a
confissão da glória suprema e da invencível virtude. Oferecei ao Senhor
o louvor da glória e celebrai o Seu nome com a mui alegre melodia de
cântico harmonioso. É Ele quem com os vapores forma as nuvens, e com
densíssimas águas troveja: o Deus que se avantaja por Sua imensa glória
troveja na abundância e bastidão das muitas águas. A Sua voz, provida de
imenso vigor, abala a terra inteira e aterroriza com um medo profundo o
género humano. A Sua voz, que ressuma extraordinária e eterna glória,
altera ao cabo os costumes e instituições dos homens. A voz do Senhor
racha e espalha os altíssimos cedros; o Senhor quebra e destrói os cedros
do Líbano. As árvores, que se apoiam em profundíssimas raízes, são
arrancadas pela voz do Senhor e, à semelhança de vitelos, afastam-se
196 D. JERÓNIMO OSÓRIO

altissimis radicibus nixae, Domini uoce conuelluntur et,


tamquam uituli, in uarias partes saltu deferuntur. Libanum
et Sarion, montes editissimi, de sede conuulsi subsultant et,
ut unicornes, impetu uehementi desiliunt, ut intellegi possit
potentia Domini superbiam concidere, insolentiam deprimi,
tyrannides exscindi, imperia dissipari et [207] omnia denique
quae uidentur esse fundatissima et sublimi dignitatis gradu,
in extremam humilitatem et abiectionem detrudi. Vox Domini
ex atris nubibus flammas disiicit, quas in terras eiaculetur.
Vox Domini nimio terrore conturbat Arabiae solitudinem;
Arabiae uastitatem et solitudinem tanta formidine conturbat
ut nulla sit in lustris illis tam immanis et fera bellua quae
non toto corpore contremiscat. Cum enim malorum tempestas
ui infensi numinis incitata desaeuit, feritas exhorret et omnis
ferocia, formidine compressa, humi procumbit et dolore,
quasi parturientis dolore, conficitur.
Illo namque iudicio multa, quae latebant in uisceribus,
in lucem prodeunt et flagitia, in animorum penetralibus
occulta, in apertum, cum hominum ignominia, proferuntur,
ut calamitatis inuectae causa, cum Domini gloria,
cognoscatur. Itaque uox Domini perficit ut ceruae etiam,
quorum partus est difficillimus, ferum repente edant,
siluasque densissimas peruastat saltusque omni fronde
spoliat, ut nihil sit quod occuli possit. Porro autem
omnes qui religionem sancte coluerunt et uirtutem
flagitiis et iustitiam terrenis emolumentis antetulerunt, et
fidem in Domini summa constantia locauerunt, in rerum
communium uastitate animos ad spem summae felicitatis
erigunt, quia sciunt tum maxime bonorum salutem
constitui, cum improborum status euertitur. In templum
igitur una mente conueniunt, ut goriam Domini laudibus
summis afficiant. Dominus enim, cum opes hominum
eluuione consumuntur, in iudicii Sui solio sedet, ut
intellegant omnes seueritatis Suae sententiam notumque
sit non temere et casu, sed iudicio diuino impiorum opes
et imperia peruerti. Semper enim Rex sempiternus in
solio iustitiae sedebit, ut praemia cuique pro meritis et
dignitate constituat. Cum igitur euertet impios et ingenti
pauore concutiet, tum populum Suum inuicto robore
confirmabit. Dominus enim populum Suum uerbis bonis
egregie cumulabit illiusque pacem foedere sempiterno
constituet, ut labefieri numquam possit.
OPERA OMNIA TOMO IV 197

pulando em diferentes direções. Líbano e Sarion, montes mui elevados,


arrancados da sua base, saltam de alegria e, como unicórnios, dançam
com vivo arrebatamento, para que possa entender-se que com o poder
do Senhor a soberba abate-se, a insolência é humilhada, as tiranias são
aniquiladas, os impérios desaparecem e, [207] numa palavra, tudo o que
parece ter firmíssimos fundamentos e encontrar-se no mais alto grau de
dignidade, é precipitado na mais extrema vileza e humildade. A voz do
Senhor lança chamas do interior de nuvens cor de breu, arremessando-
as contra a terra. A voz do Senhor espalha sobejo terror pelos desertos
da Arábia; tamanho é o pânico que espalha pelos ermos e desertos
da Arábia que naquelas paragens não existe nenhuma fera tão feroz e
selvagem cujo corpo não fique todo a tremer. É que, quando a procela
dos males se desata enfurecida pela violência da divindade irritada, as
feras arrepiam-se de medo e todos os seres bravios, esmagados pelo
terror, rojam-se pelo chão e são tomados por uma dor que se assemelha
à dor de quem está a parir.
Com efeito, por aquele julgamento aparecem à luz muitas coisas que se
encontravam escondidas nas entranhas e, com ignomínia dos homens, são
mostradas em público as torpezas, que se ocultavam nos íntimos recessos
das almas, a fim de que, juntamente com a glória de Deus, se conheça o
motivo da desgraça que se inflige. Por isso a voz do Senhor faz que até as
corças, cujos partos são muito trabalhosos, deem à luz num ápice, e assola
inteiramente as densíssimas selvas e despoja os bosques de toda a folhagem,
para que não haja nada que possa ocultar-se. Ora, além disso, todos os que
santamente veneraram a religião e antepuseram a virtude às infâmias e a
justiça aos proveitos humanos, e depositaram fé na inquebrantável constância
do Senhor, na destruição das nações sentem-se animados pela esperança
na suprema felicidade, porque sabem que a salvação e prosperidade dos
bons sobretudo se firma quando a condição e bom estado dos perversos se
arruína. Por conseguinte, acodem ao templo todos com igual disposição de
ânimo, a fim de exaltarem a glória do Senhor com os mais elevados louvores.
É que o Senhor, quando as riquezas dos homens são levadas pela enxurrada,
senta-se no sólio do Seu juízo, para que todos entendam a severidade da Sua
sentença e fiquem cientes de que as riquezas dos ímpios e os impérios não
são destruídos por capricho e obra do acaso, mas pelo juízo de Deus. Com
efeito, o Rei eterno há de tomar sempre assento no sólio da justiça, para
destinar a cada um os prémios em conformidade com os seus merecimentos
e dignidade. Por conseguinte, quando destruir os ímpios e os abalar com
imensos sustos, estará a fortalecer o Seu povo com um invencível vigor.
Com efeito, o Senhor há de cumular extraordinariamente o Seu povo com
boas palavras e com aliança eterna há de estabelecer a sua paz, por forma
a que nunca possa sofrer abalos.
198 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Exaltabo Te, Domine.


Psal. 29. Apud Heb. 30

Dauid, hostibus deuictis et imperio constituto, domum


et arcem exstruxerat quam, de more gentis, antequam in
illa habitaret rite dedicauit. Is enim erat qui nihil agendum
existimaret quod non esset auspiciis uerissimae pietatis
inchoatum et sanctissimis Dei laudibus absolutum. Agit
interim Deo gratias, quod, cum fuisset grauissimo morbo
et multis malis oppressus et inimici periculo illius ualde
laetarentur, esset ex omnibus periculis eductus. In quo
quidem ualde luculenter exprimit imaginem Christi crudeliter
exstincti et magna cum gloria suscitati. Itaque ait:
Summis Te laudibus efferam, Domine, quia me iacentem
erexisti; languenti uires pristinas reddidisti; morti impiorum
hominum iudicio destinatum in uitam reuocasti; et inimicis
meis uoluptatem [208] eripuisti quam ex mei interitus
exspectatione capiebant. Cum periculoso morbo grauisissime
laborarem, ad Te clamaui, et mihi confestim sanitatem attulisti.
Minime autem mirandum fuit corpus meum fuisse, gratia
Tua, e morbis pestiferis emersum, cum id quod multo pluris
faciendum est mihi clementissime praestitisses. Animam
namque meam, mortis atra caligine circumfusam, ex inferis
extulisti, uitamque meam Tua gratia tuendam suscepisti, ne
cum illis annumerarer qui in profundum miseriae lacum
praecipites eiiciuntur. O uiri sancti, qui pietatem unice
colitis et omnes res humanas, prae studio rerum diuinarum,
contemnitis, animos assumite, gaudio triumphate, laetitiam
ingentem percipite et laudes Domini concentu suauissimo
celebrate. Vestri enim labores non erunt inanes et irriti,
cum pietati sint praemia ingentia et sempiterna constituta et
dolores exiguo termino circumscriptos firma spes aeternae
et immensae iucunditatis facile consoletur. Itaque bonorum
uita maxima ex parte summa iucunditate perfruitur. Iusti
quidem cum labuntur, breui ira Domini in eos animaduertit,
ut morbis atque laboribus eruditos ad officium reducat;
at Illius gratia et benignitate uitae longitudo atque adeo
aeternitas ipsa continetur.
Breuis autem maestitiae gaudio diuturno concluditur; ad
uesperum fletus excitatur, mane uero lumen clarissimum
ingentis laetitiae atque uoluptatis exoritur. Hoc tamen uos
OPERA OMNIA TOMO IV 199

SALMO 29
(30 entre os Hebreus)
Eu Te glorificarei, Senhor.

David, depois de vencidos os inimigos e na posse do poder, mandara


edificar uns paços e um baluarte que, de acordo com os costumes do seu
povo, consagrou segundo o ritual antes de neles se instalar. É que o seu
modo de ser era tal que considerava que nada deveria fazer sem iniciá-lo
sob os auspícios da mais verdadeira piedade nem concluí-lo sem dar a Deus
os mais santos louvores. Entretanto, agradece a Deus por ter ficado livre de
todos os perigos, depois de ter estado gravissimamente doente e atribulado
por inúmeros males, e causado com o seu perigo enorme alegria aos seus
inimigos. Nisto reproduz com grande aproximação a imagem de Cristo
cruelmente morto e ressuscitado com grande glória. E por isso diz:
Glorificar-te-ei com os maiores louvores, Senhor, porque, encontrando-
me prostrado, levantaste-me; restituíste as forças primitivas a quem se
encontrava abatido; chamaste à vida quem fora condenado à morte pelo
julgamento dos homens ímpios; e aos meus inimigos [208] esbulhaste-os do
prazer que sentiam com o meu esperado passamento. Ao ser terrivelmente
atribulado por perigosa enfermidade, por Ti clamei e imediatamente me
concedeste saúde. Ora, não causou espanto algum que por Tua graça o
meu corpo tenha sido liberto de doenças terríveis, uma vez que com a
máxima misericórdia comigo obraste algo que é muito mais valioso. É que
tiraste do inferno a minha alma, que se encontrava rodeada pelas negras
trevas da morte, e tomaste a peito defender com a Tua graça a minha
vida, para não deixar que eu seja arrolado no número daqueles que são
precipitados no lago profundo da infelicidade. Ó santos varões que praticais
unicamente a piedade e, por amor das cousas divinas, a desprezo votais
todas as cousas humanas, alentai-vos, triunfai com alegria, enchei-vos de
um contentamento imenso e com suavíssima melodia celebrai os louvores
do Senhor. Na verdade, os vossos trabalhos não serão baldados nem inúteis,
uma vez que para a piedade estão reservadas imensas e eternas recompensas
e a firme esperança de uma alegria eterna e incomensurável facilmente
alivia padecimentos que estão limitados por um breve prazo. Por isso, a
vida dos bons na quase totalidade goza da mais elevada alegria. É certo
que quando os justos caem, a ira do Senhor não tarda em castigá-los, a
fim de, ensinando-os com as enfermidades e trabalhos, os fazer regressar
ao cumprimento do dever; mas é na Sua graça e bondade que se cifra a
duração da vida e até a própria eternidade.
Ora, uma tristeza breve dá passo a uma perdurável alegria; até à
tarde o pranto derrama-se, mas com a arraiada nasce a luz claríssima
de um prazer e contentamento imensos. Todavia aconselho-vos a que
200 D. JERÓNIMO OSÓRIO

admoneo, ne nimis rebus ex animi sententia contigentibus


insolescatis, quasi sit uobis exploratum fieri non posse ut
mutationem ullam subeant. Veniat saepe uobis in mentem
imbecillitatis humanae et quam subito ea, quae firme stabilita
uidentur, de statu suo concidant, cum animis uestris assidue
reputate. Subitae sunt et improuisae rerum humanarum
conuersiones, ad quas parati atque meditati semper esse
debemus, ne inopinate perculsi frangamur et propemodum
exanimemur. Repentina namque uulnera, praeter opinionem
hominibus lautis inflicta, animum intolerabili dolore conficiunt,
quae uero sunt ante cogitatione percepta facile sustinentur.
Caput autem uerissimae consolationis est ut omnia ad
consilium summi Domini et Parentis optimi referamus, qui,
ne per insolentiam spollemur bonis quae sunt moderationi
et humilitati proposita, plagas nobis imponit, quibus animi
turgentis inflationem comprimat et salutarem modis omnibus
medicinam adhibeat.
Equidem, cum mihi secundae res essent, statuebam fore
me eodem semper statu mansurum. Hostes erant perterriti;
bella omnia profligata; ualetudo satis commoda; domus ab
omni seditionis metu tranquilla; opes erant ingentes; populus
singulari erga me studio deuinctus. Quod uero opinionem
meam mirifice confirmabat erat animaduertere opes meas
non humana industria partas, sed gratia Tua, o clementissime
Domine, in me magnificentissime congestas fuisse. Itaque
non minori robore domum meam per Te fundatam arbitrabar
quam sint montes editissimi quos nulla tempestas de sede
conuellit. Hic erat status meus, cum Tu faciem [209] Tuam,
cuius gratia sustentabar, auertisti. Quo facto, omnia repente
conuersa sunt. Hostes recentes exorti; ualetudo uariis morbis
afflicta; opes auersae; fides nefarie prodita; coniuratio in
meam perniciem facta; domus turbulentissimo tumultu
conuulsa; omnia denique sic confusa fuerunt ut appareret
Te a me animum clementissimi parentis abiecisse. Nec enim
mens mea erat ea spiritus Tui iucunditate perfusa quæ me
a sensu totius doloris auerteret et in tot malis dulcedine
aliqua subleuaret. Quocirca, ualde perturbatus, in maerorem
incidi, non ita tamen ut fides mea attenuata languesceret
aut spem salutis amitterem. Nam ad Tuum sanctissimum
nomen clamores sustuli opemque Tuam, Domine, assiduis
precibus suppliciter imploraui. Ad hunc autem modum Deum
meum affatus sum:
OPERA OMNIA TOMO IV 201

não deixeis que a vossa alma se ensoberbeça com coisas demasiado


contingentes, como se tivésseis a certeza de que é impossível que
sofram alguma mudança. Lembrai-vos amiúde da fraqueza humana e
incessantemente refleti no vosso íntimo em como tombam rapidamente
da sua alta posição aquelas coisas que parecem estar firmemente
assentadas. São súbitas e imprevistas as reviravoltas da vida humana,
para as quais sempre devemos estar preparados e prontos, para, perante
um imprevisto abalo, não ficarmos abatidos e quase descoroçoados.
Com efeito, os ferimentos repentinos, infligidos de forma inesperada
aos homens mimosos, atormentam-lhes o espírito com um sofrimento
intolerável, mas facilmente se suportam os que primeiro se sentiram com
o pensamento. Ora, o essencial da mais verdadeira consolação é tudo
fazermos depender da deliberação do supremo Senhor e Pai excelente,
o qual, para que, devido à nossa soberba, não sejamos despojados dos
bens que foram prometidos ao comedimento e à humildade, nos aplica
pancadas, para com elas abater o orgulho do ânimo inflado e por todas
as vias nos oferecer um remédio salutar.
De facto, porque as coisas me corriam a contento, cuidava que sempre
me haveria de conservar na mesma situação. Os inimigos estavam tomados
de medo; vencidas todas as guerras; a saúde assaz próspera; o lar a salvo de
qualquer ameaça de perturbação; as riquezas não tinham conto nem medida;
o povo unido a mim por um extraordinário vínculo de afeição. E o que de
modo extraordinário corroborava a minha opinião era dar-me conta de que
todas as minhas riquezas não tinham sido adquiridas por atividade e engenho
humano, mas com a máxima generosidade a mim oferecidas pela Tua graça,
ó mui misericordioso Senhor. Por isso pensava que a minha casa tinha sido
por Ti edificada com alicerces não menos robustos do que aqueles em que
assentavam os altíssimos montes que tempestade alguma arranca do seu
lugar. Era esta a minha situação quando Tu [209] desviaste o Teu rosto, cuja
graça me sustinha. Depois que o fizeste, tudo de repente se alterou. Surgem
novos inimigos; a saúde é atribulada por diversas enfermidades; as riquezas
pilhadas; a lealdade sacrilegamente atraiçoada; conjuras maquinadas para
perder-me; o lar perturbado por conflitos violentíssimos; numa palavra, tudo
por tal forma se transtornou que ficou manifesto que Tu desviaste de mim
o sentimento de mui compassivo progenitor. É que pela minha alma não
se derramava uma alegria do Teu espírito tão forte que bastasse para me
desviar do sentimento de qualquer dor e em tão grande número de males
me aliviasse com alguma doçura. Por este motivo, sobremaneira perturbado,
caí na tristeza, não todavia de tal maneira que a minha fé se debilitasse
e elanguescesse ou perdesse a esperança na salvação. Na verdade, bradei
pelo Teu santíssimo nome e, ó Senhor, com incessantes rogativas, implorei
a Tua ajuda. Ora, foi assim que me dirigi ao meu Deus:
202 D. JERÓNIMO OSÓRIO

“Quae utilitas ex sanguine et interitu meo in gloriam Tuam


redundabit? Num, si fuero in foueam altissimam depressus,
illustrabitur ob id nomen Tuum? Num reliquiae sepulti
pulueris fidei Tuae summis laudibus efferendae materiam
suppeditabunt? Recordare beneficiorum quibus me affecisti;
fœderis quo Tuam mihi fidem ualde clementer adstrinxisti;
perfice ne causam arripiant homines impii gloriae Tuae
calumniis obscurandae, qui, quotiens hominem, in fidem
Tuam receptum, ope Tua nudatum adspiciunt, toties nomen
Tuum conuicio infando deformare nituntur. Nam uel Te
imbecillitatis insimulant, quod nequiueris, uel perfidiae,
quod nolueris opem afferre illis quos Tibi deuinxisti et qui
in praesidio Tui sanctissimi nominis acquiescunt. Hac autem
ratione fit ut multi, impiorum oratione retardati, a studio
pietatis abducantur: quod certe eueniet si me, hominem
Tibi tantis et tam admirabilibus beneficiis obstrictum et tam
sacrosancto fœdere ad spem Tuae benignitatis excitatum, a Te
desertum animaduerterint. In mea igitur salute, gloriae Tuae
consule. Audi oratiomem meam, Domine, et miserere mei,
et auxilium Tuum mihi, quo e malis, quae me circumstant,
eripiar, importa.”
Haec quidem dicebam et his precibus opem Tuam
implorabam, quam mihi confestim attulisti. Itaque planctum
meum in gaudium eximium, choreis et canticis festiuis
celebratum, conuertisti; lugubre sagum, acerbissimi maeroris
insigne, mihi detraxisti, et illius loco me insignibus laetitiae
uestibus et ornamentis excoluisti. Hominum igitur fidelium
cœtus hoc beneficium commune arbitrabitur, cum propter
caritatis eximiae sacramentum, quo nemo aliquid fratribus
attributum a se alienum putat, tum, quia sibi aditum ad
eandem clementiae magnitudinem apertum uidebit. Tuam
igitur gloriam laude perpetua prosequetur et numquam
gratiae Tuae amplitudinem silebit. Ego uero, summe Domine,
qui Deus meus es, in quo solo uitae firmissimum praesidium
et excellens dignitatis ornamentum constitui, Tibi gratias
immortales agam et omni saeculorum aeternitate nomen
Tuum debita pietate et ueneratione prosequar.
OPERA OMNIA TOMO IV 203

“Em que aproveitarão à Tua glória o meu sangue e a minha morte?


Acaso, se eu for arremessado numa profunda cova, por via disso ficará
mais ilustre o Teu nome? Acaso os restos do sepultado pó fornecerão
matéria para levantar os mais altos louvores à Tua fé? Recorda os
benefícios com que me dotaste; o pacto, mediante o qual assaz
compassivamente Te obrigaste a proteger-me; faze que os homens ímpios
não se apossem de matéria que sirva para com calúnias obscurecer
a Tua glória, eles que, sempre que vêem despojado da Tua ajuda um
homem que recebeste sob a Tua proteção, logo se empenham em
ultrajar o Teu nome com abomináveis insultos. Com efeito, falsamente
Te acusam ou de fraqueza porque não pudeste ou de deslealdade
porque não quiseste prestar ajuda àqueles com os quais Te ligaste e
que descansam na proteção do Teu santíssimo nome. Ora, por este
motivo acontece que muitos, enleados pelas palavras dos ímpios, se
afastam do zelo da piedade: algo que certamente sucederá se se derem
conta de que fui abandonado por Ti, eu, um homem a Ti vinculado por
tão grandes e tão admiráveis benefícios e por pacto tão sacrossanto
impelido à esperança da Tua bondade. Por conseguinte, com a minha
salvação, vela pela Tua glória. Escuta as minhas palavras, ó Senhor,
e tem compaixão de mim, e traze-me a Tua ajuda, para com ela ser
arrebatado aos males que me cercam.”
Ora, isto era o que eu dizia e com estes rogos suplicava o Teu
socorro, que imediatamente me prestaste. Por isso transformaste o meu
pranto em singular alegria, celebrada com coros e cânticos festivos;
arrancaste-me o meu fúnebre burel, sinal de tristeza pungentíssima, e
em lugar dele ornamentaste-me com vestes e atavios significativos de
alegria. Por conseguinte, a assembleia dos homens fiéis há de considerar
como comum este benefício, por um lado devido ao juramento da
singular solidariedade através do qual ninguém considera como alheio
a si mesmo seja o que for que se concede aos irmãos, por outro lado,
porque verá que lhe foi aberto o acesso à mesma grandiosa misericórdia.
Por consequência, há de celebrar com perpétuo louvor a Tua glória e
nunca calará a grandeza da Tua graça. E eu, ó supremo Senhor, que és
o meu Deus, no qual exclusivamente estabeleci a firmíssima proteção e
o superior ornamento da dignidade, hei de dar-Te graças para sempre
e pelos séculos dos séculos hei de adorar com a devida piedade e
reverência o Teu nome.
204 D. JERÓNIMO OSÓRIO

[210]

In Te, Domine, speraui:


non confundar in aeternum.
Psal. 30. Apud Heb. 31

Iusti quidem multis aerumnis exercentur, ut uirtus eorum


in dies magis illustretur et ipsi ampliora praemia ab Eo qui
bonorum patronus et uindex et pater est, adipiscantur. Sed,
cum iustitiae princeps et auctor Christus sit, omnia quae de
iustis hominibus prophetae locuti sunt ad Christum praecipue
conferuntur. Quis enim fuit ab impiis oppugnatus infensius?
Quis acriora supplicia pertulit? Quis pluribus conuiciis et
contumeliis laceratus umquam fuit? Quis, hominum opinione,
fuit in terris abiectior? Quis clariore Patris sempiterni
testimonio ab ignominia liberarus? Quis maius et amplius
praemium fuit umquam ex diuina uirtute et religionis
purissimae sanctitate consecutus? Cum igitur homini Diuino
haec de Christo cogitatio diuinitus esset iniecta, sic de se et
de quouis alio homine iusto loquitur, ut animus illius sit in
Christi consideratione defixus. Vt igitur illum sequamur, opus
est ut, tam in hoc carmine, cuius sententiam nunc explicandam
suscepimus, quam in multis aliis, animum a Dauide, qui
Christi imaginem gessit, ad ipsum Christum, qui multis in
locis Dauid a prophetis appellari uoluit, transferamus, ita
tamen ut memoriam christianae sanctitatis, quae in Dauide
mirabiliter eluxit, animo conseruemus. Inquit igitur:
Multis quidem periculis undique cinctus sum; hostes
innumerabiles, odio immani flagrantes, copiis maximis
circumsaepti, multis mihi modis exitium moliuntur; hominem,
omnium praesidio nudatum, multitudini, propter ardentissimum
studium puritatis, inuisum, insidiis circumueniunt; armis
adoriuntur in eoque pugnant, ut non solum me uita priuent,
sed etiam nomen meum grauissima contumelia deforment. Quid
igitur faciam? Quibus praesidiis hostibus ualentissimis obsistam?
Vno certe, quo nullum poterit esse securius. In Te, Domine,
salutis et dignitatis spem collocatam semper habui, quocirca
numquam labe dedecoris adspersus ero. Non enim umquam
me praesidio Tuo spoliabis neque hostibus meis ludibrio esse
patieris. Fac igitur, Domine, quod Te facturum recepisti: ut,
secundum iustitiam Tuam, me ex perditorum hominum insidiis
OPERA OMNIA TOMO IV 205

[210]

SALMO 30
(31 entre os Hebreus)
Em Ti, Senhor, esperei,
não permitas que eu seja eternamente confundido.

É certo que os justos são atribulados por muitas provações, a fim


de que a sua virtude de dia para dia mais se acrisole e alcancem
maiores prémios d'Aquele que é defensor, vingador e pai dos bons.
Mas, sendo certo que Cristo é o iniciador e autor da justiça, tudo o
que os profetas falaram acerca dos homens justos refere-se sobretudo
a Cristo. De facto, quem foi mais hostilmente atacado pelos ímpios?
Quem sofreu mais dolorosos tormentos? Quem jamais foi agredido com
mais insultos e baldões? Quem, em opinião dos homens, foi na terra
mais vil? Quem se livrou da infâmia por mais claro testemunho do Pai
eterno? Quem obteve jamais maior e mais ilustre prémio pela virtude
divina e santidade da puríssima religião? Por conseguinte, tendo este
pensamento acerca de Cristo sido divinamente inspirado ao santo varão,
exprime-se do modo seguinte acerca de si e de qualquer outro homem
justo, a fim de que o seu espírito se fixe na consideração de Cristo.
Por conseguinte, para que o sigamos, é mister que, tanto neste salmo,
cujo sentido agora nos propusemos expor, como em muitos outros,
transfiramos a nossa atenção de David, que representa a imagem de
Cristo, para o próprio Cristo, que em muitas passagens quis que os
profetas designassem por David, todavia por tal forma que tenhamos
presente a lembrança da santidade cristã, que resplandeceu em David
de modo maravilhoso. Diz, portanto:
Estou cercado por inúmeros perigos por todos os lados; incontáveis
adversários, abrasados em monstruosa sanha, acompanhados de imensos
exércitos, por muitas vias empenham-se na minha perdição; acabrunham
com ciladas um homem privado da ajuda de todos, odioso às turbas
por causa do seu apaixonado zelo da pureza; assaltam-me com armas e
põem todo o seu fito não apenas em privar-me de vida, mas também em
aviltar o meu nome com um gravíssimo ultraje. Que farei, pois? Com que
socorros hei de fazer frente a fortíssimos inimigos? Certamente que com
um, que é o mais seguro que poderá existir. Em Ti, ó Senhor, sempre
tive depositada a esperança de salvação e dignidade, razão pela qual
nunca serei ensujentado com as manchas da desonra. É que jamais hás de
despojar-me da Tua ajuda nem tolerarás que os meus inimigos zombem
de mim. Faze portanto, ó Senhor, o que prometeste haverias de fazer:
segundo a Tua justiça, arranca-me das ciladas dos homens perversos. Estás
206 D. JERÓNIMO OSÓRIO

eripias. Innocentia mea Tibi cognita est; iustitiam meam Tu


penitus exploratam habes; hostium calumnias animaduertis;
ius meum postulo: nempe, ut sententia Tua mihi testimonium
sanctitatis des et hostium maledicentiam acri iudicio contundas.
Praebe mihi aures Tuas; auxilium ne differas; instat discrimen;
accelerant hostes, urgent et insectantur; nec ullum spatium
animi reficiendi concedunt. Tu igitur appropera. Ne sint illi
magis de mea pernicie quam Tu de salute solliciti. Festinanter
igitur accurre, ut me liberes.
Esto Tu mihi rupes editissima, domus ad salutis defensionem
omnibus rebus instructissima, ut mihi salutem afferas. Tu
namque es mihi firmissimum [211] e petra propugnaculum
et arx munitissima uitae meae. Propter nominis Tui gloriam
duces me, ne a uia deflectam et mihi in uia praesens aderis,
ne Tui spiritus pabulo destitutus accumbam. Gloria namque
Tua illustratur quotiens ii qui toti ex gratia Tua pendent e
periculis eximuntur. Venit autem apud homines in discrimen
quotiens boni ab ope Tua deseruntur. Expedies igitur a
rete quod inimici mei mihi tetenderunt, quoniam Tu solus
es animae meae robur atque firmamentum. Manibus tuis
commendo spiritum meum, Tu namque Deus es cuius nec
immensa potestas infringi neque summa ueritas a promissi
constantia deduci umquam poterit. Si igitur nihil est uel
quod uim Tui nominis impedire uel fidem Tuam commutare
queat, et Tu fidem dederis Te numquam officio patentis
optimi defuturam, reliquum est ut fides mea, Tua potentia
atque probitate nixa, numquam labet, sed in extremo etiam
uitae discrimine me ope Tua defensum iri confidat. Eos enim
qui malitia confidunt et mendaciis innituntur et sperant se
calliditate sua posse imminentia pericula propulsare detestatus
sum, et in Te solo omne salutis praesidium spe firmissima
collocaui. Fructum igitur fidei amplissimum ex gratia Tua
percipiam. Exsultabo enim et ingenti laetitia cumulabor
cum me, multis cladibus circumuentum, misericordia Tua
subleuaueris et opibus diuinis instruxeris.
Vidisti enim dolores quibus afflictus sum et angores quibus
anima mea excruciata fuit te minime latuerunt, quia numquam
oculos a me deiicere uoluisti. Non me inimici manibus atque
potestati tradidisti; pedes meos, ex angustiis eductos, in
uia latissima posuisti, ut feliciter pietatis et iustitiae cursum
conficerent. Numquam igitur antehac fui ab hostibus alacriter
atque uehementer oppugnatus quin Tu subsidio occurreres
OPERA OMNIA TOMO IV 207

bem ciente da minha inocência; conheces perfeitamente a minha justiça;


apercebes-Te das calúnias dos meus adversários; requeiro o meu direito:
ou seja, que com a Tua sentença me dês testemunho de santidade e com
Teu implacável juízo abatas a maledicência dos inimigos. Abre para mim
os Teus ouvidos; não proteles a Tua ajuda; o perigo impende; os inimigos
dão-se pressa, acossam-me e perseguem-me; não me concedem tempo
algum para tomar fôlego. Por isso, apressa-Te. Que não sejam eles mais
diligentes em perder-me do que Tu em salvar-me. Portanto, vem prestes
acudir-me, para libertar-me.
Sê para mim elevadíssima rocha, mansão mui aparelhada de todos
os recursos para a defensa, a fim de me ofereceres a salvação. É que és
baluarte de pedra inexpugnável [211] e seguríssima fortaleza da minha
vida. Por amor da glória do Teu nome hás de guiar-me, para não me
deixar desviar do caminho e na estrada estarás presente ao meu lado,
para não sucumbir por privação do alimento do Teu espírito. Com efeito,
a Tua glória resplandece sempre que se livram dos perigos aqueles que
totalmente dependem da Tua graça. Ora, aquela está em risco entre
os homens sempre que os bons são abandonados pela Tua ajuda. Por
conseguinte, livrar-me-ás da rede que os meus inimigos me estenderam,
porquanto és o único vigor e firmeza da minha alma. Nas Tuas mãos
entrego o meu espírito, pois Tu és Deus, cujo imensa potência não poderá
jamais ser abalada e cuja suprema verdade não poderá desviar-se nunca
do que firmemente prometeu. Por conseguinte, se não existe cousa alguma
capaz de empecer à força do Teu nome ou de mudar a Tua promessa, e
se prometeres que jamais hás de faltar aos deveres de melhor dos pais,
resta que a minha fé, apoiada no Teu poder e bondade, nunca hesita,
mas sente confiança em que até nos maiores perigos da vida eu hei de
ser defendido pela Tua ajuda. É que eu abominei aqueles que confiam
na maldade e se apoiam nas mentiras e têm esperança em que, com a
sua astúcia, podem desviar os perigos que os ameaçam, e com firmíssima
esperança coloquei exclusivamente em Ti toda a proteção da minha
salvação. Por conseguinte, hei de receber da Tua graça o mui abundante
fruto da fé. É que exultarei e ficarei cheio de imensa alegria quando, ao
encontrar-me cercado por inúmeras desgraças, me socorreres com a Tua
misericórdia e me guarneceres com recursos divinos.
Na verdade, viste os sofrimentos que me atribulam e não se Te ocultaram
as angústias com que a minha alma foi atormentada, porque nunca
quiseste desviar de mim os olhos. Não me entregaste nas mãos e poder
do inimigo; em estrada larga colocaste os meus pés, fazendo-os sair de
estreitíssimos espaços, para que facilmente empreendessem a carreira da
piedade e da justiça. Por conseguinte, nunca antes fui violenta e fortemente
atacado pelos inimigos que com a Tua ajuda não me tenhas acudido e
208 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et me ab impendente calamitate liberares. Nunc igitur, cum


hostis immanitas ad summum peruenit, cum multo maiore
conatu in meam perniciem incitetur acerbioreque odio
mihi pestem moliatur, accelera, Domine, ut misericordia
Tua me e tantis malis eruas. Instat enim grauissimus angor
et cruciatus; acies oculorum meorum assiduitate maeroris
hebescit, scelestissimi namque facinoris offensio maximum
fletum excitat et aspectum grauissime laedit, et intimis animi
sensibus altissimum doloris ta uulnus imponit.
Vita mea acerbissima cura conficitur; anni mei in gemitu
et suspirio consumuntur; robur meum propter iniquitatis
poenam mihi irrogatam prolabitur; et ossa mea, grauata
magnitudine doloris, intabescunt. Omnes hostes mei
ut probrum nomen meum obiectant illis quos afficere
contumelia statuunt, itaque eram pudori uicinis meis et
formidini notis meis, usque adeo ut qui me foras in aspectu
multitudinis aspicerent se a me longissime segregarent,
ne uiderentur mecum aliquod commercium iuris aut
consuetudinis habuisse, tantus erat metus multis mortalibus
ne me sequerentur, iniectus. Quemadmodum mortuus
tumulo obrutus obliuione etiam sepelitur, ita ex hominum
memoria prorsus excideram et, tamquam testa confracta et
comminuta, [212] quae nullis usibus seruire potest, uulgo
contemnebar. Maculam dedecoris mihi a multis inustam
auribus accepi et simul pauorem undique circumfusum
quo non pauci, ne publico mei nominis studio tenerentur,
anxie formidabant, oculis usurpaui, cum hostes mei secum
communi consilio deliberarent quo modo mihi et dignitatem
et uitam eriperent. At ego quas copias ad resistendum
comparaui? Quibus praesidiis uitam meam muniendam
esse duxi? Religionis purissimae sanctitate firmissimaque
benignitatis Tuae fiducia. Tibi enim tantum confido, Domine;
Te unum colo; Tuum nomen ueneror; simulacra detestor:
summum omnium bonoruni in Te solo constituo.
Cum igitur alii pecuniae diuinitatem tribuant, alii famae
populari, tamquam Deo, uota faciant; ego omnia mea bona in
Te solo sita constitui idque oratione professus sum, Te solum
Deum meum esse. Tu enim es uerissimae atque tranquillissimae
uoluptatis Architectus; tu diuinarum opum largitor; Tu sempiternae
dignitatis effector; Tu denique inuictum in omni rerum discrimine
praesidium atque firmamentum. Quem igitur alium mihi Deum
adsciuissem, cum reliqua omnia uitae subsidia sint fluxa et
OPERA OMNIA TOMO IV 209

libertado da desgraça que sobre mim se abatia. Agora, portanto, quando a


perversidade do inimigo atinge o seu suge, uma vez que com um ímpeto
muito mais violento se empenha na minha perdição e com sanha mais
entranhada procura a minha destruição, dá-Te pressa, ó Senhor, em com
a Tua misericórdia me arrancares de tamanhos males. É que uma angústia
e tribulação terríveis me ameaçam; a acuidade dos meus olhos embaça-se
com a incessante aflição, pois o desprazer de um atentado perversíssimo
provoca um pranto imparável e fere mui gravemente a visão, e infere ao
íntimo sentir da alma um profundo e doloroso ferimento.
A minha vida é atribulada por pungentíssimos cuidados; os meus anos
decorrem entre gemidos e suspiros; o meu vigor desvanece-se devido ao
castigo de iniquidade que me foi imposto; e os meus ossos desfazem-
se esmagados pela imensidão da dor. Todos os meus inimigos usam o
meu nome como insulto contra aqueles aos quais pretendem ultrajar, e
por isso era motivo de vergonha para os meus vizinhos e de pavor para
os meus conhecidos, a tal ponto que os que me olhavam por fora, na
presença da multidão, apartavam-se para muito longe de mim, para não
dar visos de que tinham tido algum laço jurídico ou de amizade comigo,
tão grande era o medo incutido a muitos mortais para que não me
acompanhassem. Da mesma maneira que um morto encerrado no túmulo
também é enterrado pelo esquecimento, assim eu tinha sido totalmente
expungido da lembrança dos homens e era desprezado pela populaça
como um caco de barro quebrado e esmigalhado, [212] que não pode
ter qualquer serventia. Escutei a mancha de desdouro que muitos me
imprimiram e ao mesmo tempo vi com os olhos espalhado por todos os
lados o pavor com que não poucos angustiadamente se arreceavam de
serem acusados de honrarem publicamente o meu nome, uma vez que os
meus adversários consultavam-se mutuamente sobre como me arrancarem
a vida e a dignidade. Eu, porém, que exércitos aparelhei para fazer-lhes
frente? Quais os recursos defensivos com que pensei deveria proteger a
minha vida? Com a santidade da puríssima religião e a firmíssima confiança
na Tua bondade. É que apenas confio em Ti, ó Senhor; só a Ti adoro; o
Teu nome reverencio; abomino os simulacros: só Tu constituis para mim
o supra-sumo de todos os bens.
Por conseguinte, ainda que uns atribuem caráter divino ao dinheiro e
outros dirijam votos à fama popular, como a um deus; eu decidi colocar
exclusivamente em Ti todos os meus bens e confessei com as minhas
palavras que só Tu és o meu Deus. É que Tu és o Autor do mais verdadeiro
e mais tranquilo prazer; Tu, quem liberalmente concede as riquezas
divinas; Tu, quem oferece a dignidade eterna; Tu, enfim, a proteção e firme
segurança em todos os perigos da vida. Por conseguinte, que outro Deus
teria adotado para mim, sendo certo que todos os restantes apoios da vida
210 D. JERÓNIMO OSÓRIO

inania breuissimoque temporis spatio consumenda, Tuque solus


idem semper in omni aeternitate sis solusque immensas atque
sempiternas opes obtineas? Fides mea in Tua gratia locata facit
ut minime sim de termino uitae sollicitus. Temporum meorum
opportunitates in manu Tua sunt. Tunc igitur confido fore ut
a uita discedam cum fuerit magis gloriae Tuae, cui seruio, et
claritati mei nominis opportunum. Hoc igitur tantum oro et
obsecro, ut eruas me a manibus inimicorum meorum et eorum
perditissimos conatus, qui me persequuntur, ulciscare. Inuidia
enim furentes, sunt disciplinae caelesti et hominum saluti et
Auctori salutis infestissimi. Illustra, Domine, splendore uultus Tui
hunc seruum Tuum, qui numquam imperium Tuum, nec mortis
quidem formidine, recusauit, et salutem meam magnitudine
misericordiae Tuae confirma. Fac, Domine, ne umquam dedecore
afficiar ego, sed me semper ope Tua protege, ut ita lumen Tuae
bonitatis in ultimas etiam terras diffundi possit.
Hostes autem mei dedecore omni maculentur: quod fiet
cum illos ope Tua nudaueris; cum eorum maledicentiam
ueritatis luce compresseris; cum mutos et elingues reddideris;
cum denique contumaces in scelere in imas inferorum
sedes iudicio Tuo detruderis. Linguae fallacissimae, quae
mendacia perpetuo conflant, obmutescant; qui superbe
nimis et insolenter, contra iustum, testimonium dicunt,
summumque sanctitatis exemplum impietatis insimulant,
et salutis auctorem salutis euersorem asserere conantur.
Hi quidem poenas facinoris exsoluent; at illi qui nomen
Tuum metuunt et religionem Tuam sancte colunt, quot
opibus affluent? Quanta laetitia cumulabuntur? Quot
praesidiis et ornamentis in omni genere redundabunt?
Quam magna Spiritus Tui iucunditate atque dulcedine
perfruentur? Hae quidem animi uolluptates ab hominum
sensu et cognitione remotae sunt; per Te reconditae et
asseruatae, [213] ut illis eos perfundas qui ad studium
pietatis incumbunt; operaque multa nimis admiranda moliris
et efficis in hominum conspectu, gratia illorum qui toto
animo in immensitate Tuae benignitatis acquiescunt. Nam
in intimis domus Tuae penetralibus, ubi maxime species
Tua mirifico splendore te intuentes illuminat, eos proteges
a cuiusuis perditissimi uiri petulantia et duritate; eos in
tabernaculo Tuo occultabis et contra linguarum contentione
tuebere, ita ut, quamuis homines scelestissimi mendacia
conflent ut notam turpitudinis sanctis, qui in Tua tutela et
OPERA OMNIA TOMO IV 211

são passageiros e inúteis e devem desvanecer-se em brevíssimo espaço de


tempo, e só Tu és sempre o mesmo por toda a eternidade e és o único
que possuis riquezas eternas e imensas? A fé que depositei na Tua graça
faz que nunca me preocupe com o fim da vida. Em Tua mão se encontram
os ensejos dos meus anos. Por conseguinte, tenho confiança em que hei
de deixar a existência quando for mais oportuno para a Tua glória, a cujo
serviço estou, e ao lustre do meu nome. Portanto, só peço e suplico que
me arranques das mãos dos meus adversários e que tires vingança das
perversíssimas arremetidas, com que me atacam. É que ensandecidos pelo
ódio, hostilizam violentissimamente os ensinamentos celestiais, a salvação
dos homens e o Autor da salvação. Ilumina, ó Senhor, com o resplendor
da Tua face este Teu servidor, que nunca rechaçou o Teu senhorio, nem
sequer com medo da morte, e fortalece a minha salvação com a Tua grande
misericórdia. Faze, ó Senhor, que eu nunca fique coberto de infâmia, mas
protege-me sempre com a Tua ajuda, para que assim possa espalhar-se a
luz da Tua bondade até nos confins do mundo.
Por outro lado, que os meus inimigos fiquem manchados com todo o
desdouro: como há de suceder quando os despojares da Tua ajuda; quando
esmagares a sua maledicência com a luz da verdade; quando os tornares
mudos e sem voz; quando, por derradeiro, com o Teu julgamento precipitares
os contumazes no crime nas mais profundas mansões infernais. Que as
línguas enganosas, que incessantemente proferem mentiras, se emudeçam;
e os que, com sobeja insolência e soberba, levantam falsos testemunhos
contra o justo, e aleivosamente acusam de impiedade o paradigma máximo da
santidade, e se esforçam por sustentar que o autor da salvação é o destruidor
da mesma. Certamente que estes hão de pagar as penas pelos seus crimes;
aqueles, porém, que temem o Teu nome e santamente praticam a Tua religião,
quantas riquezas hão de abundantemente possuir? De quão grande alegria
hão de ficar cheios? De quão numerosas proteções e ornamentos de toda
a espécie não transbordarão? Quão grande será o prazer e contentamento
do Teu espírito de que gozarão? Decerto que estas deleitações do espírito
se encontram apartadas dos sentidos e capacidade cognitiva dos homens;
Tu as ocultaste e guardaste, [213] para as derramares sobre aqueles que se
consagram ao zelo da piedade; e fazes e realizas muitas obras assaz admiráveis
na presença dos homens por amor daqueles que com todo o seu espírito
encontram repouso na imensidade da Tua bondade. Com efeito, nos mais
interiores recessos da Tua morada, onde mais do que em nenhures a Tua
aparência com admirável resplendor ilumina aqueles que Te contemplam,
hás de protegê-los da insolência e brutalidade de qualquer perversíssimo
varão; hás de ocultá-los no Teu tabernáculo e defendê-los contra a agressão
das línguas, de tal maneira que, ainda que os mui sacrílegos homens forjem
falsidades a fim de imprimirem o labéu da torpeza sobre os santos que se
212 D. JERÓNIMO OSÓRIO

patrocinio latent, inurant, conata minime perficiant. Labes


enim fraudulenter adspersa, ueritate perspecta diluitur,
et summus Ille bonorum omnium patronus Suos diu falsa
infamia flagrare non patitur.
Nomen Domini in caelum laudibus sempiternis efferatur,
qui misericordiam Suam admirandam in me tuendo et
ornando demonstrauit in ciuitate munitissima. Me namque,
a meis repudiatum et eiectum, in gentium dominatu
constituit. A Ierosolymae terrestris finibus expulsum, in
Ierosolyma caelesti, angelorum praesidio cincta, regem
collocauit. Multae quidem aduersae cogitationes animos
peruagantur et humani sensus dant insitae imbecillitatis
indicium, usque adeo ut, quamuis fides inuicta sit, multa
tamen sint in sanctis etiam hominibus quae fidem illorum
uehementius oppugnent quam hominis natura patiatur.
Spiritus tamen, ope diuina subnixus, de omnibus eiusmodi
cogitationibus uictoriam insignem consequitur, quod in
me ualde expertus sum. Cum enim essem in summas
angustias adductus et instantis mortis formidine trepidarem,
corporis sensus animo meo suspicionem afferebat me
esse ab oculorum Tuorum aspectu seclusum et ab ope
Tua omnino derelictum. Idque flebilibus modis et lugubri
ualde querimonia lamentabar, cum tamen, in ipsius summae
acerbitatis angore, mens in bonitate Tua defixa confidens
atque secura consisteret. Eaque fide uehementer incensus
ad Te clamaui et Tu preces meas iustissimas accepisti et
opem confestim attulisti.
O uiri, qui Deum sancte colitis et hominum caritatem
summo studio retinetis: Deum tota mente diligite. Seruat
enim constantissime fidem Dominus, ita ut, quemadmodum
promisit, iustitiam et pietatem praemio gloriae sempiternae
remuneret et illis qui insolenter efferuntur mercedem
debitam cruciatu sempiterno constituet. Nemo igitur ex
uobis, o uiri meis placitis addicti, diffidat; animos assumite;
corda robore inuicto stabilite, omnes qui spem in Domino
collocatam habetis: cum exploratum omnibus bonis sit
numquam summum illum Dominum Suorum preces et
uota repudiasse et semper fidem et pietatem muneribus
diuinis affecisse.
OPERA OMNIA TOMO IV 213

escondem debaixo da Tua guarda e proteção, não conseguem levar avante


os seus intentos. É que, ao dar-se a conhecer a verdade, desaparece a nódoa
com que a mentira sujara, e Aquele supremo defensor de todos os bons não
consente que os Seus fiquem cobertos de infâmia durante muito tempo.
Que com louvores eternos se exalce até ao céu o nome do Senhor,
que mostrou a Sua admirável misericórdia ao defender-me e ornar-
me na cidade assaz protegida. De facto, estabeleceu-me como senhor
dos povos, depois de ter sido rechaçado e expulso pelos meus.
Expulso das fronteiras da Jerusalém terrena, colocou-me como rei
na Jerusalém celestial, cingida pela proteção dos anjos. É certo que
muitos pensamentos hostis entram nos espíritos e os sentidos humanos
dão mostras da congénita fraqueza, a tal ponto que, embora a fé seja
invencível, mesmo assim até nos homens santos há muitas coisas que
se opõem à sua fé mais fortemente do que a natureza humana suporta.
Todavia, o espírito, apoiado na ajuda divina, alcança uma brilhante
vitória sobre todos os pensamentos desta casta, tal como eu de sobejo
tenho experimentado comigo. De facto, tendo sido levado às maiores
angústias e tendo sentido os sustos de uma morte iminente, os meus
sentidos corporais produziam-se a íntima suspeita de que eu fora
afastado da presença dos Teus olhos e completamente abandonado da
Tua ajuda. E disso me lamentava com modos chorosos e queixumes
sobremaneira pesarosos, ainda que, mesmo assim, na angústia do mais
pungente sofrimento, o meu espírito se mantinha firme, confiante e
seguro, com os olhos fitos na Tua bondade. E vivamente abrasado
nesta fé, por Ti clamei e Tu acolheste as minhas justíssimas rogativas
e imediatamente me prestaste ajuda.

Ó varões que santamente adorais a Deus e com o máximo desvelo


mostrais caridade para com os homens: amai a Deus com todo o
vosso espírito. É que o Senhor respeita com a máxima firmeza a Sua
palavra, de tal maneira que, tal como promete, recompensa a justiça e
a piedade com o prémio da glória eterna, e, com os tormentos eternos,
estabelecerá o merecido pago para aqueles que insolentemente se
ensoberbecem. Por conseguinte, ó varões que aprovais as minhas
ensinanças, que nenhum de vós sinta desconfiança; ganhai coragem;
esforçai com invencível vigor os vossos corações, todos os que
colocastes no Senhor a esperança: uma vez que todos os bons sabem
que aquele supremo Senhor nunca rechaçou as preces e pedidos dos
Seus e sempre recompensou a fé e a piedade com divinas mercês.
214 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Beati quorum remissae sunt iniquitates.


Psal. 31. apud Heb. 32

In principio operis huius Dauid, longe aliter uitae beatae


rationem atque multi philosophi faciunt, definiuit, neque
enim bona corporis nec huius uitae commoda ad beatae uitae
cumulum, [214] aliqua ex parte pertinere demonstrauit, sed
tantum in assiduo diuinae legis studio, hoc est, in iustitiae
sanctissimo cultu uitam beatam constitutam esse docuit.
Iustus autem est qui ita iure diuino deuinctus est ut nihil
agat, nihil dicat, nihil animo moliatur quod non sit ex legis
diuinæ sententia et sempiterni iuris sanctione. Qui autem
hunc statum fuerit assecutus, beatus erit, Deo enim, qui
est iustitiae parens, erit similitudine uitae coniunctus. Qui
autem Deo, bonorum omnium fonti, coniunctus est, expletus
omnibus bonis sit necesse est. Iusti igitur solum beati sunt,
et omnes iniusti, eo quod a Deo dissideant, quo feliciores
ab imperitis iudicantur, eo miseriores habendi sunt.
Cum autem hoc ita sit, uidendum est qui iusti nominandi
sint. Si ad uiuum omnia resecare uelimus, is iustus est qui ita
uitam semper instituit ut numquam, ne cogitatione quidem,
a legis diuinae praescriptione deflexerit. Quis autem ille tam
felix inter homines exstitit qui nusquam legis sanctitatem
aliquo pacto uiolauerit? – Nemo prorsus. Primus parens generis
humani legem nefarie transgressus est, et uiri sanctitatis gloria
praecellentes saepenumero in offensionem sanctissimi numinis
inciderunt et omnes ita nati sumus ut satis appareat insitum
esse in nobis peccati quoddam seminarium, quod nos ad
legis ipsius odium furibunde sollicitet. Quid ergo dicendum?
Neminem umquam iusti nomen obtinere potuisse? In quem
igitur finem lex diuina lata fuit, si nulla erat ex ea utilitas
capienda? Si nemo eam ita seruare poterat ut non interdum
laberetur et rueret? Quod, si nemo iustus umquam fuit et
beatus nemo potest esse nisi qui iustitiae muneribus excultus
fuerit, frustra operam ponunt uiri sapientes in beatae uitae
ratione describenda, si ad illam adspirare minime licet. Hanc
dubitationem ut expediat, Dauid docet quomodo possimus
iustitiam consequi et ita fieri status beatissimi atque adeo
diuini participes:
Non, inquit, beatum appello eum qui numquam peccauit,
is enim numquam in terris exstitit, sed eum qui, cum peccatis
OPERA OMNIA TOMO IV 215

SALMO 31
(32 entre os Hebreus)
Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas.

David, no princípio desta obra, definiu a condição da vida venturosa


de forma assaz diferente de como o fazem muitos filósofos, pois [214]
demonstrou que para a perfeição da vida venturosa de nenhuma forma
importavam os bens do corpo e as comodidades desta vida, mas ensinou
que a vida venturosa tem o seu fundamento apenas no zelo constante da
lei divina, isto é, no culto santíssimo da justiça. De facto, é justo quem de
tal modo foi ligado pelos vínculos da justiça divina que nada faz, nada diz,
nada medita em seu ânimo que não seja conforme com os mandados da
lei divina ou não possua a sanção da justiça sempiterna. Será sem dúvida
venturoso quem tiver conseguido uma tal condição, pois pela similitude da
vida ter-se-á unido a Deus, que é pai da justiça. Na verdade, é forçoso que
quem se uniu a Deus, manancial de todos os bens, fique repleto de todos
os bens. Portanto, só os justos são venturosos, e todos os injustos, por isso
que se encontram apartados de Deus, quanto os ignorantes os proclamam
mais felizes, tanto mais devem ser tidos na conta de desafortunados.
Ora, sendo isto assim, cumpre que vejamos a quem deve dar-se o
nome de justos. Se queremos aprofundar até ao cerne da questão, é
justo quem de tal sorte sempre regulou a sua vida que jamais – nem
sequer em pensamento – se desviou dos preceitos da lei divina. Qual foi,
porém, o homem a tal ponto feliz que, de algum modo, não tenha violado
alguma vez a santidade da lei? – Seguramente que nenhum. Os primeiros
pais do género humano transgrediram impiamente a lei, os varões mais
eminentes pela glória da santidade caíram frequentes vezes em ofensas
contra a santíssima omnipotência e todos nascemos de tal guisa que se
torna assaz evidente que foi plantado em nós um verdadeiro alfobre de
pecados, para com toda a sanha nos aliciar ao ódio contra a própria lei.
Então, que cumpre dizer-se? Que jamais alguém pôde alcançar o título
de justo? Portanto, para que fim foi divulgada a lei divina, se dela não
se deveria colher qualquer utilidade? Se ninguém a poderia de tal modo
respeitar que, por vezes, não deixasse de claudicar e cair? Pelo que, se
jamais existiu alguém justo e se só pode ser venturoso quem tiver sido
ataviado com os dons da justiça, é em vão que os sábios se dão ao trabalho
de descrever a norma da vida venturosa, pois que é totalmente impossível
ter aspirações a ela. A fim de dissipar esta dúvida, David mostra de que
modo podemos alcançar a justiça e, dessarte, tornarmo-nos partícipes de
uma condição muitíssimo venturosa e quase divina:
Não chamo, diz ele, venturoso àquele que jamais pecou, pois um tal
homem nunca existiu na Terra, mas dou esse nome àquele que, depois
216 D. JERÓNIMO OSÓRIO

inquinatus esset, fuit a Deo in gratiam receptus et omni


crimine liberatus, ut deinceps iustitiae fructu potiretur
seque totum ad effigiem diuinae uirtutis effingeret. Hoc
autem beneficium peccati dolor et spes in gratia Dei posita
et oratio humilis et pia consequitur, ita ut non sit uitae
sanctitas naturae et studio nostro, sed amplitudini diuinae
clementiae atque benignitatis adscribenda. – Vt hoc igitur
explicet, ait:
O beatum illum qui peccatorum ueniam impetrauit,
quorum flagitia nouae uitae cultus obtexit, ita ut omnia
illius crimina cum primum iustitiae uestem induxerit ex
oculis euanescant! O beatum illum uirum cui Deus peccatum
non exprobrat: eo nempe quod peccatum sit omnino, Illius
gratia, deletum, nam si peccatum, post tributam ueniam, in
animis inhaesisset, crimini certe datum fuisset et in iudicium
uocaretur. Eum igitur qui probro liber est, peccato liberum
esse constat. Sed qua tandem ratione is, qui uitiis coopertus
erat, nunc iustitiae diuinis ornamentis excolitur? – Quia ad
Deum non ficte, ad [215] tempus, ut poenam aliquo pacto
declinaret, accessit, sed toto animo conuersus est. Itaque
non honestatem simulauit, non sanctitatem ementitus est;
non in eo elaborauit ut, ficta pietatis specie, intestinas
fraudes occuleret, sed flagitia fua, sine ullo fuco atque
fallacia, confessus est.
Quod quidem officium cum, post admissum crimen, ego
distulissem et scelus confiteri minime uoluissem, eam plagam
a seueritate offensi numinis accepi, tantusque dolor ossibus
(quasi senio debilitatis) inustus est ut mihi necesse esset
per totum diem lugubres uoces emittere. Itaque, qui peccati
uulnus animo inflictum – quod erat maxime dolendum –
minime lamentatus sum, morbi multo lenius ferendi dolore
uictus, eiulatus maximos edidi. Tunc enim quantum malum
esset in crimine cognoui et in corpus etiam mala redundare
percepi, manus enim Tua grauissimum corpori meo uulnus
imposuit, neque die neque nocte quidquam de seueritate
remisit. Itaque corporis succulenti uiriditas sic arefacta est
ut uideretur aestatis solibus ardentissimis perusta. O rem
summa consideratione dignissimam!
Cum ad hunc modum uehementer afflictusin lecto
decumberem, non alium medicum, quam illum ipsum a quo
sauciatus eram, accersendum duxi, illiusque iram mihi acerrima
peccati confessione placaui. – Facinus meum, Domine, in oculis
OPERA OMNIA TOMO IV 217

de ter sido manchado pelos pecados, foi acolhido por Deus em graça e
absolvido de toda a culpa, de forma a logo a seguir gozar do fruto da
justiça e por inteiro se moldar à imagem da virtude divina. Ora, este
benefício alcançam-no o remorso sentido pelo pecado, a esperança
depositada na graça de Deus e a oração humilde e devota, mas de maneira
tal que a santidade de vida não deva ser atribuída à natureza e ao nosso
desvelo, mas à grandeza da clemência de Deus. – Por conseguinte, a fim
de esclarecer este ponto, David diz:
Oh, afortunado aquele que exorou o perdão dos pecados, a cuja infâmia
serviram de cobertura os costumes de uma vida renovada, de tal sorte que
a totalidade dos seus crimes se desvanece de diante dos olhos logo que
trajar as vestes da justiça! Oh, afortunado aquele varão ao qual Deus não
lança em rosto o pecado! Seguramente porque, por Sua graça, o pecado foi
por completo expungido, pois, se o pecado tivesse permanecido aderido
às almas após o perdão ter sido concedido, então decerto que teria sido
considerado crime e seria chamado a juízo. Pelo que é evidente que, quem
se acha livre de censura, acha-se livre de pecado. Mas qual é, ao cabo, a
razão pela qual aquele que fora por inteiro coberto de defeitos é agora
ataviado com os ornamentos divinos da justiça? – É porque não se aproximou
de Deus momentaneamente e de modo fingido, [215] com a tenção de, em
alguma maneira, esquivar o castigo, mas converteu-se com toda a sua alma.
Por isso não simulou honestidade, não fingiu santidade, não se empenhou
em encobrir os enganos do seu íntimo sob uma falsa aparência de piedade,
mas, sem qualquer rebuço ou ardil, confessou as suas faltas.
Como quer que eu, após cometer pecado, tivesse diferido esta obrigação
e não tivesse querido confessar o crime, recebi este golpe da parte da
severidade de Deus ofendido, e tão grande dor foi infligida aos ossos
(como a de quem enferma de gota) que era obrigado a soltar plangentes
vozes durante o dia inteiro. Por isso, eu, que não deplorei a ferida do
pecado infligida à alma – ferida tão merecedora da minha lástima –,
vencido pela dor de uma doença muito mais fácil de suportar, lancei
gritos muitíssimo pungentes. É que então dei-me conta de quão grande
ruindade havia no crime e percebi que os males também recaíam sobre
o corpo, pois a Tua mão inferiu uma ferida gravíssima ao meu corpo e,
quer de dia, quer de noite, não afrouxou nem um ponto no rigor. Por
isso, de tal modo se emurcheceu a robustez de um corpo vigoroso que
semelha agostada pelas solheiras do Estio. Oh matéria que tanto merece
a maior ponderação!
Ao jazer no leito, atribulado a este ponto, não julguei que devia
chamar outro médico senão precisamente aquele por quem tinha sido
ferido e, mediante a pungentíssima confissão do pecado, aplaquei a
sua ira contra mim. – Pus diante dos Teus olhos, Senhor, a minha má
218 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Tuis aperui; non suppressi silentio iniquitatem meam; statui


mecum ut me ipse criminis suscepti coram Domino nimis
acriter accusarem, at Tu, cum me criminis dolore perculsum
et stratum animaduerteres et preces meas audires, remisisti
continuo poenam sceleri meo constitutam. O clementiae
nimis admirandae magnitudinem, quanta facilitate ueniam
supplicibus impertit et quam praesenti remedio eorum uulnera
sanat qui minime salutare Illius medicinam aspernantur!
Idcirco ad Te omnis uir sanctus, cum piis precibus,
confidenter adibit, quotiens per imbecillitatem in peccati
morbum inciderit, qui tamen non est alia curatione, quam
gratia Tua, depellendus. Numquam enim, quamdiu tempus est
precibus accipiendis opportunum, hoc est, quamdiu huius uitae
status manet et homines, peccati dolore uehementer afflictati,
opem suppliciter implorant, erunt ab aditu Tuae benignitatis
exclusi. Si enim Tu, ubi primum aliquis in officio deliquisset,
Te implacabilem praebuisses et numquam seueritas iustitiae
ad lenitatem et misericordiam inflecti ulla ratione potuisset,
quis, in desperatione salutis, preces adhiberet? Reliquum erat
igitur ut omnes spem salutis abiicerent, cum nemo possit uitae
cursum absque aliqua prolapsione conficere. Sed, cum lumen
clementiae Tuae omnibus, qui in Te intuentur, expositum sit,
homines qui sanctitatis studio tenentur, quamuis interdum
concidant, ad Te fidenter accedunt, et eos quidem Tu, plaga
mediocri eruditos, sanabis, quos tamen in communi rerum
strage tueberis. Itaque, cum aquarum eluuione hominum
multitudinem, sceleribus nefariis infectam et contaminatam,
consumpseris, eluuionis impetus homines pios non attinget,
sed, quemadmodum Noe, cum liberis suis, e fluctibus [216]
illis immensis ereptus fuit, ita et illi ab omni calamitatis
incursione Tuo praesidio seruabuntur.
Tu mihi latibulum es et doloris acerbi perfugium; Tu me
ab omni afflictione tutum et incolumem conseruabis; uocibus
multorum, mihi deliberatione gratulantium, aures meae
undique circumsonabunt; et omnes, summo consensu, Tibi
laudis uictimas immolabimus.
O bonitatis admirandae magnitudinem! Clementia enim
Domini nullis finibus arcetur, sed in dies amplificatur.
Itaque non satis habuit morbum a me depellere et pericula
impendentia propulsare, nisi etiam iacentem animum excitaret
et ad spem certissimam muneris multo amplioris erigeret.
Nam promittit et spondet se fore mihi itineris ductorem,
OPERA OMNIA TOMO IV 219

ação; não ocultei com o silêncio a minha iniquidade; decidi-me a fazer


diante de Deus com toda a veemência a acusação do crime que cometi,
mas Tu, ao dares-Te conta de que eu fora abalado e abatido pelo
remorso do crime e ao escutares as minhas preces, logo atalhaste ao
castigo ordenado contra o meu delito. Oh imensa clemência, digna de
tão grande admiração, com quão grande facilidade concede o perdão
a quem suplica e como sara, através de um remédio eficaz, as feridas
dos que não rejeitam a Sua mezinha salutar!
Por isso, com toda a confiança, usando de piedosos rogos, a Ti recorrerá
todo o varão santo, sempre que, por azo da debilidade de suas forças, cair
na moléstia do pecado, a qual, todavia, não é possível esquivar com outro
tratamento que não seja a Tua graça. É que, enquanto for tempo oportuno
para receber preces, isto é, enquanto permanece a condição desta vida e,
veementemente aflitos pelo remorso do pecado, com humildade imploram
auxílio, nunca os homens serão excluídos do acesso à Tua benignidade.
Na verdade, se assim que alguém faltasse ao seu dever, Tu te mostrasses
implacável e de forma alguma jamais fosse possível que a severidade da
justiça se mudasse em clemência e misericórdia: sem esperança de salvação,
haveria alguém que rezasse? Restava, portanto, que todos renunciassem à
esperança de salvação, visto como não há ninguém capaz de chegar ao termo
da existência sem alguma falta. Mas, como quer que a luz da Tua clemência
haja sido mostrada a todos quantos em Ti põem os olhos, aproximam-se
fielmente de Ti os homens a quem possui o zelo da piedade, ainda que
por vezes caiam, e, após tê-los ensinado mediante golpes nada excessivos,
certamente os curarás, por eles velando em meio do geral assolamento
das coisas. Por isso, ao destruíres pela inundação das águas a multidão
dos homens, ensujentada e contaminada por crimes abomináveis, a fúria
do dilúvio não alcançará os homens piedosos, mas, do mesmo modo que
Noé, juntamente com os seus filhos, [216] foi arrancado daqueles turbilhões
imensos, assim igualmente aqueles, graças ao teu auxílio, serão preservados
de qualquer investida da calamidade.
Tu és a minha guarida e o refúgio para a dor lancinante; Tu me
guardarás protegido e salvo de toda a aflição; os meus ouvidos ressoarão,
ecoando com as vozes de muitos que, a todo o meu redor, me felicitam
pela minha libertação; e todos, com o máximo acordo, Te imolaremos
sacrifícios de louvor.
Oh grandiosidade da admirável bondade! É que a clemência do Senhor
não se encerra em nenhuns limites, mas aumenta sem cessar. Por isso,
não lhe pareceu suficiente afastar de mim o mal e repelir os perigos que
ameaçavam, se do mesmo passo não desse esforço ao ânimo prostrado nem
o elevasse à certíssima esperança de uma dádiva muito mais considerável.
De facto, Ele promete e garante que há de ser o guia da minha jornada,
220 D. JERÓNIMO OSÓRIO

uitae magistrum, atque adeo parentem, ut non imperio Illius


tantum, uerum monitis et consilio possim, Eius ope firmatus,
in caelestem uitae sempiternae regionem absque ullo errore
peruenire. Me namque in hanc sententiam alloquitur:
“Instruam te mentis intellegentia et deducam te per uiam
in quam ingredieris, ne a semita iustitiae in alterutram partem
deducaris. Tantaque facilitate monitis meis obtemperabis ut,
ex oculi mei nutu facillime, quem sint salutis consilia, mente
percipias. Animos enim faciles et ad bonitatem flexibiles, qui,
Spiritus Sancti nutu, in studium pietatis impelluntur, amo,
duros autem et contumaces, qui nullo modo, nisi grauissimo
malo, coacti fuerint, in aliquo officii genere continentur, a
familiaritate repello.”

Hac quidem sententia in animo meo penitus impressa


et insculpta, me Spiritus Sanctus admonet ut etiam omnes
suos nutus obseruem nec ullam actionem, nisi de illius
sententia et uoluntate, suscipiam. Vos autem, ciues mei,
hortor et moneo ut rectae rationi pareatis et nullo modo
impetu libidinis effrenatae, tamquam bruta animantia, in
flagitia et scelera rapiamini. Ne sitis similes equi et muli
qui, cum mentis expertes sint, non libera uoluntate et
consilio, sed ui et malo coguntur domini sui imperium
accipere, ita tamen ut, acriores freno coercendi, tardiores
capistro cohibendi sint, aliter enim domini sui imperium
detrectabunt. Cogitate cum animis uestris quanta sint
praemia illis proposita qui suauissimum summi Domini
iugum sponte atque uoluntate sua subeunt et quantis
supliciis sint expositi qui, ut cupiditatibus suis turpissime
seruiant, a Regis sempiterni fide deficiunt. Multi sunt
dolores impiis hominibus, qui diuinam legem, prae libidine
sua, contempserunt, inusti, at eos qui in Dei benignitate
fidentibus animis acquiescunt, ipsius Dei misericordia
circumsaepiet et diuinorum bonorum affluentia cumulabit.
Laetamini et exsultate, iusti, tam multis bonis, quam multis
eritis a Domino, qui uos in amicitiam recepit, expleti;
et omnes qui pura et integra mente in iustitiae studium
incitamini, uoces maximas, indices summae uoluptatis,
effundite!
OPERA OMNIA TOMO IV 221

o mestre – ou melhor, o pai – da vida, a fim de que, apoiado no Seu


auxílio, eu possa, tanto mediante o Seu poderio, como graças aos Seus
conselhos e doutrina, chegar sem qualquer desvio à celeste região da
vida sempiterna. Com efeito, dirige-se-me neste teor:
“Aparelhar-te-ei com o discernimento da inteligência e conduzir-te-ei
através do caminho para onde te dirigires, para que não sejas desviado
noutra qualquer direção que não seja a senda da justiça. E com tamanha
facilidade te conformarás com os meus conselhos que, só pelo movimento
dos meus olhos, a tua inteligência entenderá sem qualquer dificuldade quais
são os conselhos salutares. É que eu amo os espíritos prontos e dispostos
para a bondade, aos quais a vontade do Espírito Santo impele ao zelo da
piedade, porém aparto da minha amizade os duros e contumazes, que de
nenhum modo – a menos que algum pesadíssimo mal os constranja – são
refreados por qualquer espécie de sentimento do dever.”
Com este conselho fundamente impresso e gravado no meu espírito, o
Espírito Santo exorta-me a que também cumpra todas as suas vontades e a
não empreender ação alguma, exceto as que estão em conformidade com o
seu conselho e vontade. E a vós, meus concidadãos, aconselho e admoesto
a que retamente vos conformeis com a razão e a que, de nenhum modo,
à semelhança de brutas alimárias, sejais arrastados à torpeza e aos crimes
pelo furor da sensualidade desatada. Para que não vos torneis semelhantes
ao cavalo e à mula, os quais, ao estarem privados de entendimento, são
obrigados, não por sua livre vontade e decisão, mas à força e com violência,
a aceitar o domínio do seu senhor, todavia de tal sorte que, quanto mais
fortemente devem ser reprimidos pelo freio, tanto mais cumpre retê-los
pelo cabresto, pois de outro modo se esquivarão ao mando do seu senhor.
Meditai em vossos espíritos quão grandes são os galardões aparelhados para
aqueles que, espontaneamente e por sua vontade, se põem sob o suavíssimo
jugo do Senhor supremo e a quão grandes tormentos estão sujeitos os que
renunciam à lealdade para com o Rei eterno, a fim de torpissimamente se
escravizarem aos seus apetites. São muitas as dores infligidas aos homens
impiedosos que, por causa da sua sensualidade, desprezaram a lei divina,
mas a misericórdia do próprio Deus cercará e cumulará com a abundância
dos bens divinos aqueles que, com ânimos confiantes, descansam na
benignidade de Deus. Alegrai-vos e exultai, ó justos, com um número tão
grande de bens, qual há-de ser aquele com que vos há de encher o Senhor,
que vos acolhe em sua amizade; e vós todos, os que sois incitados ao zelo
da justiça por um entendimento puro e íntegro, lançai brados fortíssimos,
que sejam sinal do maior prazer!
222 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Exsultate, iusti, in Domino.


Psal. 32. Apud Heb 33

Animum sollicitudine liberum et tristissimis curis uacuum


oratio consequitur, [217] quemadmodum ex animo tabificis
curis exulcerato oratio tristis atque plena desperationis
erumpit. Ergo, cum boni nullo cruciatu sceleris angantur,
nullis facinorum poenis exagitentur et diuinis bonis semper
affluant et ad spem immortalis gloriae diuinis promissis
excitati sint, necesse est ut iucudissime uiuant et omnem
uitam in Dei gloria laudibus celebranda consumant. Vt igitur
impiorum animi, cum scelerum conscientia cruciantur et
iudicii diuini metu, quotiens res aliqua paulo horribilior
moueri uidetur, exanimantur, nihil sibi laetum ominari
possunt, ita boni, cum ueris bonis egregie cumulati sint et
Spiritus diuini iucunditate perfruantur, qui eos de futura
gloria, si permanserint in officio, dubitare non sinit, gaudio
certe triumphabunt et salutis Auctorem gratissima mente
et oratione prosequentur. Bonis enim, et non improbis,
concessum est Dei laudes in ore semper habere. Ornamenta
namque ab homine impuro tributa clarum nomen non
exornant, sed inclitae dignitati, quantum possunt, insignem
labem dedecoris adspergunt. Dauid igitur, cum tota mente
esset in ea gloria defixus qua boni ab optimo Parente
cumulantur, eos ad summam laetitiam excitat et ad Domini
laudes oratione perpetua celebrandas impellit. Sic enim
inquit:
Concinite Dei laudes, o iusti. Vos enim, qui animum
rectum geritis et linguae puritatem summo studio
conseruatis, decet optimum Parentem et Dominum continua
laudatione celebrare. Scelesti namque homines, cum Deum
laudibus afficere nituntur, non Illlius gratiam ineunt,
sed offensionem concitant: tum, quia officium, quo sunt
prorsus indigni, insolenter usurpant; tum, quia insignis
impudetiae significationem dant, cum numen oratione
laudant, quod uita et moribus oppugnant. Vos igitur, quibus
tam diuinum officium curandum est, in studium diuinae
laudis totis uiribus, inflammatis animis et sensibus acriter
incitatis, incumbite, neque uocibus tantum, sed omnibus
instrumentis musicis, laudes Domini in caelum, quantum
potestis, extollite: inducantur citharae; importentur nablia;
OPERA OMNIA TOMO IV 223

SALMO 32
(33 entre os Hebreus)
Exultai, ó justos, no Senhor.

A linguagem acompanha uma alma livre de inquietações e isenta de


raladores cuidados, da mesma maneira que [217] uma linguagem triste sai
de uma alma pungida por consumidores cuidados e cheia de desesperança.
Logo, uma vez que os bons não são atormentados por nenhuma punição do
crime, nem inquietados por nenhuns castigos das malfeitorias e possuem
sempre em abundância os bens divinos e se sentem incitados pelas promessas
divinas à esperança da glória imortal, é forçoso que vivam na mais profunda
alegria e passem a vida inteira a celebrar com louvores a glória de Deus. Por
consequência, assim como as almas dos ímpios, quando são atormentadas
com a consciência dos crimes e pelo medo do juízo de Deus, descoroçoam
sempre que parece mexer-se alguma coisa um pouco mais espantosa, nada
para si podem pressagiar de alegre, da mesma maneira os bons, uma vez
que se encontram singularmente colmados com os bens verdadeiros e gozam
da alegria do Espírito divino, que não os deixa duvidar da futura glória, se
perseverarem no cumprimento do dever, certamente hão de jubilosamente
triunfar e hão de profundamente agradecer com palavras e com a alma o Autor
da salvação. É que foi aos bons, e não aos perversos, que foi concedido ter
sempre na boca os louvores de Deus. Com efeito, os elogios tributados por
um homem impuro não dão lustre a um nome nobre, mas mancham com um
labéu de grande desdouro e de forma desmesurada uma dignidade insigne.
David, portanto, tendo o olhar do seu entendimento inteiramente fixo naquela
glória com a qual o Pai supremo colma os bons, incita-os à suprema alegria
e impele-os a celebrarem os louvores do Senhor com incessante oração. Com
efeito, são estas as suas palavras:
Entoai os louvores de Deus, ó justos. É que a vós, que possuís uma
alma reta e com o máximo desvelo preservais a pureza da língua, fica-
vos bem celebrar com incessantes loas o melhor dos pais e senhores.
De facto, os homens sacrílegos, quando se esforçam por cobrir Deus
de louvores, não incorrem na Sua graça, mas despertam a sua aversão:
por um lado, porque atrevidamente desempenham um dever de que são
totalmente indignos; por outro, porque dão mostras de uma desmedida
impudência, ao louvarem com as suas palavras uma divindade, que com
a sua vida e costumes hostilizam. Por conseguinte, vós, a quem cumpre
ocupar-se de tão divina função, aplicai-vos com todas as forças, com
ânimo apaixonado e com os sentidos vivamente empenhados, ao afetuoso
louvor de Deus, e não apenas com as vozes, mas, o mais que podeis,
com toda a sorte de instrumentos musicais exalçai até aos céus as loas
do Senhor: que se tragam as cítaras; que venham os nablos; que acudam
224 D. JERÓNIMO OSÓRIO

decem chordarum testudines afferantur omnibusque modis


gaudium, quo estis mirabiliter affecti, testificamini.
Non uos hortor ut antiqua beneficia celebretis: nempe, ut
memoria replicetis quo pacto Pharao cum omnibus copiis suis
fuit maris gurgite demersus et Israel in libertatem uindicatus
et in quietis sedibus, sancti hominis opera, constitutus; non
commemoro uictorias insignes quas fortissimi olim duces fuerunt,
ut a ceruicibus uestris seruile iugum depellerent, ope diuina
consecuti. Haec enim uetusta nimis sunt et recentis muneris
et beneficii splendor magnitudine sua antiquis obscuritatem
affert. Vmbrae namque rerum diuinarum facillime, interuentu
solidae et expressae ueritatis, euanescunt.
Aliud igitur multo maius et amplius beneficium nouo cantico
paedicate. Nouum enim beneficium, nouumgenus carminis et
concentus efflagitat. Mundi namque princeps exterminatus est,
imperium illius euersum, sempiterna libertas egregie constituta,
pax animorum conciliata, hominibus in caelum uia praeclare
munita. Rectum est enim uerbum Domini et omnia opera illius
summa fide constabilita. Fuerat salutem pollicitus: salutem
cumulate [218] praestitit; spem sempiternae libertatis ostenderat:
libertatem sempiternam mirabili ratione confirmauit; maiestatem
Suam hominibus propitiam fore praedixerat: hominum mentes
Secum sanctissimo foedere conglutinauit. Cum autem iustus
sit Dominus et iustitiam et iudicium diligat, et iniuriam odio
prosequatur, fieri non poterat ullo modo ut opes Suas cum
iniquis hominibus communicaret, nisi prius eos iustos atque
sanctos efficeret. Sanctissimis igitur sacris recenter institutis
humanum scelus expiauit et flagitiorum maculas omnes abstersit
ab illorum animis qui se totos in Illius fidem, incenso studio,
contulerunt. Legem namque suam, non in tabulis lapideis, sed
in cordibus humanis, insculpsit, hominumque genus, a nimia
cupiditate terrenae felicitatis abstractum, desiderio gloriae
caelestis inflammauit. Hoc tamen tantum beneficium noluit
esse angustis Iudaeae finibus inclusum, sed ita longe lateque
diffundi ut ad omnes nationes perueniret.
Nam et probitas Illius opes Suas minime comprimit, et
iustitia nullum generis discrimen, sed uim fidei et studium
pietatis agnoscit. Itaque omnis terra illius misericordia
plena est. Haec est materia noui carminis, quo uobis
foederis noui beneficium est perpetuo celebrandum. Vt
melius autem possitis muneris amplitudinem considerare,
in Auctoris et administri maiestatem, quoad licet et fas
OPERA OMNIA TOMO IV 225

as liras de dez cordas e, por todos os modos, dai testemunho do júbilo


de que maravilhosamente estais tomados.
Não vos exorto a que celebreis os antigos benefícios: ou seja, a que
recordeis de que maneira o Faraó com todas as suas tropas foi engolido
pelos abismos do mar e Israel recuperou a liberdade e, por obra de um
santo homem, se instalou em tranquilas moradas; não lembro vitórias
insignes que antanho denodados generais obtiveram com a ajuda divina,
para rechaçarem da vossa cerviz o jugo da escravidão. É que tudo isto
é muito antigo e o esplendor da mercê e benefício recentes com a sua
grandeza lançam as trevas sobre os antigos. Com efeito, as sombras e
bosquejos das coisas divinas mui facilmente se desvanecem quando se
apresenta a sólida e indesmentível verdade.
Por conseguinte, apregoai com um cântico novo outro benefício muito
maior e mais considerável. É que um novo benefício demanda uma espécie
nova de cântico e poesia. Na verdade, o príncipe do mundo foi desterrado;
destruído o seu império; singularmente estabelecida a eterna liberdade;
obtida a paz das almas; aparelhada admiravelmente para os homens a
estrada para o céu. É que a palavra do Senhor é reta e todas as Suas obras
solidamente firmadas na suma verdade. Prometera a salvação: cumpriu
dando plenamente a salvação; [218] mostrara a esperança da eterna
liberdade: de modo admirável consolidou a eterna liberdade; predissera
que a Sua majestade haveria de ser propícia aos homens: através de um
santíssimo pacto ligou consigo os espíritos dos homens. Ora, uma vez
que o Senhor é justo e ama a justiça e o juízo, e odeia a injustiça, de
forma alguma poderia acontecer que partilhasse as Suas riquezas com
homens iníquos, a menos que primeiro os tornasse justos e santos. Por
conseguinte, expiou com santíssimos sacrifícios recentemente instituídos
o crime dos homens e limpou todas as manchas das infâmias das almas
daqueles que com abrasado desvelo inteiramente se entregaram à Sua
proteção. De facto, gravou a Sua lei, não em tábuas de pedra, mas nos
corações dos homens, e abrasou o género humano, separado do excessivo
apetite da ventura terrena, no desejo da glória celestial. Todavia, não quis
que este tão grande benefício ficasse circunscrito às limitadas fronteiras
da Judeia, mas que se espalhasse tão ao longe e ao largo que chegasse
a todos os povos.
Na verdade, não só a Sua bondade não oculta as Suas riquezas,
como tão-pouco a Sua justiça estabelece qualquer distinção fundada
na raça, mas apenas na força da fé e no zelo da piedade. Por isso a
terra inteira está cheia da Sua misericórdia. Esta é a matéria de um
novo cântico, com o qual deveis incessantemente celebrar o benefício
do novo pacto. Para que possais melhor avaliar a grandeza da mercê,
aplicai a vossa inteligência, na medida do que é possível e permitido,
226 D. JERÓNIMO OSÓRIO

est, aciem mentis intendite. Non enim aut angelis aut


hominibus sanctis hoc officium et munus delegauit, sed
Ipse per se tantum et tam excellens opus, quod ex omni
aeternitate designauerat, instituit ad summumque perduxit.
Verbo Domini ipsius caelestis natura perfecta fuit; spiritu
Illius astra omnia constiterunt. Includit, quasi in utrem,
undas maris, ne redundent et effluant et terris uastitatem
inferant; et comprimit, quasi thesauro, profundam aquarum
immensitatem, non ad perniciem generis humani, sed ad
utilitatem, reseruatam. Capite Illius notitia et potentiam
Illius extimescite, omnes qui terras incolitis, omnesque
orbis cultores metuant illius iudicia. Hoc enim expetit,
ut uniuersae nationes, Dei sanctissimi metu perculsae et
abiectae, admissa scelera et flagitia detestentur et in studium
sanctissimae religionis incitentur, ut sic tandem diuinae
gloriae communionem, pro fidei ratione, consequantur.
Quod quidem assequi gratia Illius cuius potestas est
infinita non erit difficillimum. Ipse namque duxit et, quod
non erat, repente, ui uerbi Illius, exstitit; Ipse imperio
sanxit, et omnia quae nunc cohaerent et permanent, ad
uoluntatem Illius informata sunt. Ita ut nihil aliud rerum
natura sit existimanda quam diuinae mentis opus et Spiritus
Sancti salutaris atque iucunda comprobatio. Verbo tantum
Illius uniuersae rerum formae consistunt et ad Illius uocem
ea, quae non erant, accurrunt. Ad hunc igitur modum uoce
et imperio Illius, impuri homines expiabuntur, et ii, qui in
terram depressi erant, excitabuntur diuinamque formam
induent. Multi quidem pietatis hostes bellum durum et
immane contra Dei filios comparabunt, sed eorum labores
erunt irriti et inanes, confringit enim Dominus consilia
gentium et populorum cogitationes eludit. Quod enim
moliuntur, [219] ad irritum cadit; quod impedire nituntur,
felicissime procedit; et, quo uehementius pugnant, eo
diuina uirtus se clarius ostendit. Consilium enim Domini
in perpetuum permanebit et cogitationes Illius in omni
memoria hominum exitum, quem Ille uelit, inuictissima
felicitate consequentur. Nec enim ullis humanis uiribus
diuina potestas infringi nec ulla hominum calliditate frustrari
umquam poterit. Ineant igitur homines sceleris plena consilia;
copias cogant; acies instruant; omnia conentur ut disciplinae
caelestis lumen exstinguant et ex hominum memoria Christi
nomen deleant: omnes tamen conatus frustra comparabuntur
OPERA OMNIA TOMO IV 227

à majestade do Seu autor e propinador. É que não delegou em anjos


ou homens santos a execução deste cargo e ofício, mas Ele mesmo,
por Si, construiu uma tão grande e excelente obra, que desde toda a
eternidade tinha deliberado, e levou-a a cabo. A natureza foi criada
pela palavra do próprio Senhor celestial; pelo Seu sopro todos os
astros passaram a existir. Encerrou as ondas do mar como que num
odre, para que não extravasem e se derramem e causem a destruição
da terra; e reteve como num depósito a profunda imensidade das
águas, recolhida, não para perdição do género humano, mas para seu
proveito. Tomai conhecimento d' Ele e temei o Seu poder, todos os
que habitais a terra, e que se arreceiem dos Seus juízos todos os que
cultivam o mundo. É que Ele pede que todos os povos, humilhando-
se e abalados pelo medo do santíssimo Deus, abominem os crimes
e indignidades cometidos e sejam incitados ao zelo da santíssima
religião, para que assim ao cabo alcancem a comunhão na divina
glória, em proporção com a fé.
De certo que não será muitíssimo difícil conseguir isto mediante a graça
d' Aquele cujo poder é infinito. Com efeito, Ele mandou, e de repente, pela
força da Sua palavra, aquilo que não existia passou a existir; Ele com o
seu mando ordenou, e tudo que hoje entre si se harmoniza e permanece,
tomou forma obedecendo à Sua vontade. De tal maneira que não se deve
considerar a natureza como outra cousa senão uma obra do entendimento
humano e uma salutar e alegre aprovação do Espírito Santo. Todas as
formas das coisas subsistem unicamente mediante a Sua palavra e à Sua
voz acode tudo aquilo que não existia. Por conseguinte, desta maneira os
homens impuros hão de ser expiados pela Sua voz e senhorio, que hão de
fazer erguer-se os que se encontravam prostrados no chão, e hão revestir
uma forma divina. De certo que muitos inimigos da piedade hão de mover
cruel e dura guerra contra os filhos de Deus, mas os seus esforços serão
vãos e baldados, pois o Senhor quebranta os desígnios dos povos e reduz
a nada os pensamentos das nações. De facto, o que maquinam, [219]
redunda em nada, e o que se empenham em impedir, progride com grande
prosperidade, e quanto mais intensamente se esforçam, tanto a fortaleza
divina mais claramente se dá a conhecer. É que a deliberação do Senhor
há de permanecer para sempre e os Seus pensamentos hão de alcançar
com invencível ventura pelo decorrer de todos os tempos o êxito que
Ele quiser. Na verdade, nenhumas forças humanas podem abalar o poder
divino nem jamais poderá enganá-lo qualquer astúcia dos homens. Por
conseguinte, que os homens urdam planos cheios de crime; que ajuntem
tropas; que as disponham em linha de batalha; empenhem todos os esforços
para extinguirem a luz dos ensinamentos celestiais e expunjam o nome
de Cristo da memória dos homens: mesmo assim todas as tentativas hão
228 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et tunc uel maxime Euangelium progredietur cum furentius


impugnatum exstiterit.
Ergo, cum omnes homines beatae uitae nimis appetentes
sint et ea cupiditate maximo ducantur ut, omnibus bonis
expleti et cumulati, iucundissime uiuant, et constet illorum
cogitationes esse uanissimas et spes fallacissimas, efficitur
certe nemimen illorum beatum fore, immo, quo quisque
ardentius ad propositum sibi finem omnibus modis enititur,
eo turbulentius in miseriam praecipitari. Qui igitur erunt
beati? Illi tantum qui summum Dominum, uniuersae
naturae Conditorem et humanae salutis architectum, cuius
consilia sempiterna sunt et nullis opibus retardari possunt,
Deum habuerint, et in Illius potentia et fide omnem spem
salutis et dignitatis suae collocauerint. Beatus ille tantum
populus erit quem Dominus, ut hereditatis opulentissimae
patrimonium, gratia Sua curandum et tuendum suscipiet.
Quamuis enim omnium nationum odio flagret et undique
in illum hostes irruant, semper auxilio Domini defensus et
inuictus permanebit. Nec enim dici potest Deum maioribus
curis implicitum res humanas minime curare et res Suorum
neglegere. De caelo enim oculos in terram coniicit ut in
homines animaduertat et uideat quid quisque, pro institutae
uitae ratione et studio, mereatur. Non quod Ipse mutationem
subeat ullam aut a loco in locum migret, sed quod, in
aeternitatis Suae solio locatus, immensa et infinita mentis
intellegentia cuncta peruestiget atque penetret et habitatores
terrae perspiciat. Neque dici potest aliquid Illum ignorare
quod sit in humanis animis penitus abditum et abstrusum.
Ipse namque hominum corda finxit et informauit, humani
animi recessus omnes explorat, usque adeo ut nihil ullo
modo possit, quamuis intima cogitatione reconditum, oculos
diuinos effugere.
Rex igitur non sibi salutem exercitus multitudine
comparabit; uir fortis et in armis acerrimus minime robore
suo necis periculum uitabit; frustra parabitur maximus
equitatus ad salutem; nemo denique robore suo nixus
pestem effugiet. Nam omnes opes humanae, cum sint fragiles
et inanes et mendacio atque uanitate subnixae, momento
temporis euertuntur. At oculus Domini se timentibus et
spem in misericordia Sua reponentibnus adiicitur, ut animas
eorum a morte liberet eosque tempore famis enutriat. Anima
nostra Domini opem fidenter exspectabit, Ille namque nobis
OPERA OMNIA TOMO IV 229

de mostrar-se baldadas, e o Evangelho há de avançar mais do que nunca


quando for atacado com dementada sanha.
Logo, uma vez que todos os homens vivamente apetecem uma vida
venturosa e são acima de tudo dirigidos por este desejo no sentido de,
colmados e cheios de todos os bens, poderem viver na mais perfeita
alegria, e sendo certo que são completamente vãos os seus pensamentos
e enganosas as suas esperanças, daqui decorre certamente que nenhum
deles há de ser venturoso, e até, quanto mais ardentemente cada um por
todas as vias se esforçar por alcançar o fim que se propôs, tanto mais
violentamente se precipita na infelicidade. Por conseguinte, quem serão os
bem-aventurados? Aqueles somente que tiverem por Deus aquele supremo
Senhor, Criador da natureza inteira e obreiro da salvação humana, cujas
deliberações são eternas e nenhumas riquezas podem impedir, e colocarem
no Seu poder e proteção toda a esperança da sua salvação e dignidade. Só
será bem-aventurado aquele povo a quem o Senhor se dispuser por Sua
graça a cuidar e proteger, como património de opulentíssima herança. É
que, embora todas as nações se abrasem em ódio contra ele e os inimigos
por todas as partes contra ele arremetam, sempre permanecerá invencível
e defendido pelo auxílio do Senhor. E tão-pouco pode dizer-se que Deus,
enleado com preocupações maiores, não cuida dos negócios humanos
e despreza os interesses dos Seus. Com efeito, desde os céus lança os
olhos para a terra, para castigar os homens e ver o que cada um merece,
em proporção com o seu teor de vida e diligências em que se ocupa.
Não porque Ele experimente alguma mudança ou se transfira de um
lugar para outro, mas porque, postado no sólio da Sua eternidade, com
a imensa e infinita penetração do Seu entendimento, tudo esquadrinha
e penetra e divisa os habitantes da terra. E ninguém pode dizer que Ele
ignora alguma coisa que se encontre profundamente escondido e oculto
nas almas humanas. Com efeito, Ele moldou e deu forma aos corações
dos homens; entra nos mais fundos recessos da alma humana, a tal ponto
que é impossível que cousa alguma possa escapar ao olhar de Deus, ainda
que jaza no mais íntimo do pensamento.
Por consequência, o rei não há de conseguir a sua salvação com
um exército numeroso; o varão forte e mui denodado nas armas não
esquivará o perigo de morte com o seu vigor; em vão hão de esforçar-se
por conseguir a salvação os melhores cavaleiros; numa palavra, ninguém
há de fugir da perdição apoiando-se nas suas forças. Com efeito, todos os
recursos humanos, uma vez que são frágeis e vãos e estribados na mentira
e na vaidade, ficam destruídos num átimo de tempo. Mas o olho de Deus
fixa-se nos que o temem e depositam esperança na Sua misericórdia, a
fim de libertar da morte as almas deles e alimentá-los em sazão de fome.
A nossa alma há de esperar com confiança a ajuda do Senhor, porquanto
230 D. JERÓNIMO OSÓRIO

est in asperis rebus auxilium et in pugna [220] scutum,


ne ulla tela in nostrum corpus adhaerescant, sed a nobis
longissime repellantur. Idcirco cor nostrum, praesidio Illius
cinctum, efferetur summa laetitia. Non enim mendacio freti,
sed nomine Domini confirmati sumus, ut opera salutaria
moliamur. Cum uero, Domine, spes in Te locata neminem
umquam fefellerit, quid erit nobis impedimento ne gaudio
triumphemus? Impertire nobis misericordiam Tuam, quando,
illius tantum fiducia nixi, in omni rerum uarietate uitam
animo tranquillo ducimus.

Benedicam Dominum in omni tempore.


Psal. 33. Apud Heb. 34

Dauid, necis metu quam illi Saul omnibus modis inferre


conabatur, in aliud se discrimen mortis iniecit. Ad Palaestinos
enim se contulit, perennes Hebraei generis hostes, quos ipse
multis pugnis attriuerat, sed tanta erat Saulis immanitas ut
Dauid se facilius apud hostes uitam tueri confideret quam
apud regem sibi summa coniunctione deuinctum et quem
multis atque magnis beneficiis adstrinxerat. Vnde colligitur
nihil inuidia pestilentius excogitari posse, omnem enim
naturae coniunctionem dirimit; iuris societatem dissoluit;
foederis religionem uiolat; odium acerbum et immane
concitat; et fratres denique ad mutuam perniciem sibi ipsis
inferendam sollicitat. Cum tamen Dauid fuisset a Palaestinis
agnitus, timuit ne hostes, propter cladium, quas illi intulerat,
memoriam, sibi caedem molirentur. Vt igitur periculum
declinaret, stultitiam simulauit, ut hostes eum, cuius uirtutem
metuerant, propter dementiae speciem, contemnerent. Cum
ita fuisset, ut demens, ad Paelestinae regem intromissus, is ut
stultum expelli ab aula regia iussit. Fortasse minime decorum
existimabat locum, quem sapientes apud regem tenere
debuerant, a multis imperitis et amentibus occupari. Itaque
Dauid, ad hunc modum periculo non mediocri perfunctus,
Deo, cuius ope fuerat ex hostium manibus ereptus, in hanc
sententiam gratias agit:
In omni rerum uarietate Domini laudes perpetua laudatione
praedicabo et numquam Illius nomen ex animo et ex ore meo
discedet. Secundae namque res a benignitate Illius emanant;
OPERA OMNIA TOMO IV 231

Ele é para nós auxílio na adversidade e escudo na luta, [220] a fim de


que nenhuma dardo se crave no nosso corpo, mas seja repelido para
muito longe de nós. Por esse motivo, o nosso coração, cingido com a
Sua proteção, enche-se da maior das alegrias. É que, apoiados, não na
mentira, mas no nome de Deus, encontramo-nos fortalecidos, por forma
a realizarmos obras salutares. E, Senhor, uma vez que a esperança em
Ti depositada nunca falhou a ninguém, que é que há de impedir-nos de
alegremente triunfarmos? Reparte connosco a Tua misericórdia, visto que,
apoiando-nos exclusivamente na confiança nela, em todas as variadas
situações prolongamos a vida com tranquilidade de ânimo.

SALMO 33
(34 entre os Hebreus)
Bendirei o Senhor em todo o tempo.

David, com medo da morte que Saul por todas as vias se esforçava
por inferir-lhe, precipitou-se em outra situação de perigo de morte. É
que dirigiu-se para a terra dos Palestinos, inimigos imemoriais do povo
hebreu, aos quais ele tinha derrotado em muitas batalhas, mas era tão
grande a desumanidade de Saul que David confiava em que mais facilmente
preservaria a sua vida entre os adversários do que junto do rei a quem
estava ligado por estreitíssima união e a quem prestara numerosos e
importantes benefícios. Daqui se conclui que não pode imaginar-se
nada de mais terrível do que a inveja, pois suprime todos os laços da
natureza; destrói os vínculos legais; viola a santidade dos pactos; desperta
ódios monstruosos e penetrantes; e, por derradeiro, incita os irmãos a
mutuamente se destruírem. Tendo-o, todavia, os Palestinos reconhecido,
David sentiu receio de que os inimigos procurassem matá-lo, lembrando-
se das derrotas mortíferas que lhes infligira. Por conseguinte, a fim de
desviar o perigo, fingiu-se de louco, de maneira a que os inimigos, diante
da aparência de sandice, votassem a desprezo aquele cuja valentia tinham
temido. Tendo sido levado como louco à presença do rei dos Palestinos,
este ordenou que, como louco, o expulsassem da corte. É provável que
não considerasse decoroso que o lugar que diante dos reis deveriam
ocupar os sábios, fosse ocupado por muitos ignorantes e dementes. E por
isso David, tendo desta maneira passado por um perigo nada pequeno,
dirige a Deus, graças a cuja ajuda fora arrancado das mãos dos inimigos,
as seguintes palavras de agradecimento:
Em toda a variedade de situações hei de apregoar os louvores do Senhor
com incessante elogio e nunca o Seu nome estará afastado da minha alma
e da minha boca. É que as coisas favoráveis procedem da Sua bondade;
232 D. JERÓNIMO OSÓRIO

aduersae praesidio Illius sustinentur: in omni loco cunctis, qui


opem Illius precibus puris et castis implorant, praesens adest.
Numquam denique pii homines ab Illius auxilio deseruntur.
Non igitur diuitiis efferar; non sapientiae laudes assumam;
non robore militari atque uiribus insolescam, sed Deo tantum
meo gloriabor. Ille mihi thesaurus inexhaustus est, omnium
diuitiarum copia refertus; Ille summae sapientiae magister; Ille
robur mihi inuictum et animi uires elargitur. Quomodo igitur
aliunde gloriae segetem quam ex Illo summo auctore totius
dignitatis et honestatis adsciscam ? Mites atque mansueti, qui
sese ad studium pietatis adiunxerint, cum audierint quo modo
fuerim a Domino in periculis defensus, in afflictione subleuatus,
ex humilitate ad summum gradum dignitatis euectus, laetabuntur,
et communem eam gratiam existimabunt, et sibi aditum ad
eiusdem [221] benignitatis fructum apertum intuebuntur.
O uiri sanctimonia praecellentes, societatem mecum
huius tam praeclari muneris inite simulque Domini nomen
laudibus sempiternis extollite. Fui quidem ab illis ipsis
quos summis beneficiis affeceram sceleris insimulatus; a
meis impie atque nefarie proditus; omnibus regis uiribus
et copiis ad caedem quaesitus; rerum omnium paenuria
uexatus; insidiis saepenumero circumuentus; ex patriae
denique finibus expulsus, in hostium manus incidi; in his
malis omnibus Deum precibus et uotis exquisiui et Ille me
ex omni calamitatis metu et sollicitudine liberauit. In Illum
respicite et illuminabimini; Illiusque opem implorate et nullum
dedecus erit animis uestris impressum, numquam enim uos
salutari praesidio nudari patietur; me uobis insigne fidei huius
exemplum ad imitandum proponite. Hic pauper, omnium
praesidio spoliatus, expulsus, uagus, egens et incommodis
multis oppressus, clamauit ad Dominum, et fui continuo
ab omnibus aerumnis ipsius Domini ope praesentissima
liberatus. Erigant animos omnes iusti neque patiantur ullo
modo spem suam debilitari. Intellegant quanta cura summus
Dominus eorum saluti, qui nomen Suum timent, et quanta
sedulitate prospiciat. Angelorum enim exercitus circum eos
castra locat qui pietatem unice colunt et spem firmam in
Dei bonitate constituunt. Gustate et uidete quam suauis sit
Dominus. Beatus ille demum uir existimandus est qui in Dei
bonitate omnes spes suas positas habet.
O uiri sancti, qui Dei gratia et benignitate hunc statum
assecuti fuistis, Deum timete et nihil uobis umquam deerit,
OPERA OMNIA TOMO IV 233

as adversas, suportam-se mediante o Seu socorro: em todos os lugares


está presente para todos os que com rogos puros e castos imploram a
Sua ajuda. Enfim, os homens pios nunca ficam privados do Seu socorro.
Por conseguinte, não me ensoberbecerei com riquezas; não me arrogarei
os louvores de sábio; não me ufanarei de superior na guerra ou em
forças, mas gloriar-me-ei apenas do meu Deus. Ele é para mim um tesoiro
inesgotável, abundantemente repleto de todas as riquezas; Ele é o mestre
da mais alta sabedoria; Ele liberalmente me oferece um invencível vigor e
forças de alma. Por consequência, como é que hei de obter a colheita da
glória de outro lugar senão d' Aquele supremo autor de toda a dignidade e
honestidade? Os mansos e brandos, que se entregarem ao zelo da piedade,
quando escutarem como é que eu fui pelo Senhor defendido nos perigos,
aliviado nas tribulações, levantado de humilde posição até o supremo grau
da dignidade, hão de alegrar-se, e considerarão esta graça como comum, e
verão para si franco o acesso ao fruto da mesma [221] bondade.
Ó varões que em santidade vos avantajais, associai-vos a mim nesta
tão nobre tarefa e ao mesmo tempo que eu exalçai sempiternos louvores
ao nome do Senhor. É certo que fui falsamente acusado de crime por
aqueles mesmos que cobrira com os maiores benefícios; fui ímpia e
sacrilegamente atraiçoado pelos meus; procurado para ser morto por
todas as forças e tropas do rei; atribulado pela privação de todas as
coisas; amiúde cercado por emboscadas; por derradeiro, desterrado do
território da pátria, caí nas mãos dos inimigos; no meio de todos estes
males dirigi-me a Deus com preces e rogativas e Ele libertou-me de
toda a inquietação e medo da desgraça. Ponde n'Ele os olhos e há de
iluminar-vos, e implorai-Lhe ajuda e nenhum desdouro há de gravar-se
em vossas almas, pois nunca há de permitir que sejais despojados de
salutar proteção; ponde diante dos vossos olhos esta minha fé como
singular exemplo a imitar. Este pobre, despojado do socorro de todos,
desterrado, errante, indigente e oprimido por inúmeras incomodidades,
chamou pelo Senhor, e imediatamente graças à eficacíssima ajuda do
próprio Senhor fui libertado de todas as provações. Que todos os
justos tomem alento e de forma alguma deixem que a sua esperança
se enfraqueça. Entendam com quão grande cuidado e com quão grande
diligência o supremo Senhor vela pela salvação daqueles que temem o
Seu nome. É que o exército dos anjos assenta os seus arraiais à volta
daqueles que são singularmente piedosos e depositam firme esperança
na bondade de Deus. Provai e vede como é suave o Senhor. Só deve
ser tido na conta de bem-aventurado aquele varão que deposita na
bondade de Deus todas as suas esperanças.
Ó varões santos que mediante a graça e bondade de Deus alcançastes
esta condição, temei a Deus e jamais nada vos faltará, quer socorro para
234 D. JERÓNIMO OSÓRIO

nec ad uitae tuendae subsidium, nec ad dignitatis ornamentum.


Fieri enim non potest ut quidquam illis desit qui sunt cum
rerum omnium Domino amoris foedere copulati. Tyranni,
magnis opibus opulenti et leonina feritate truculenti, de statu
conciderunt et, ad summam inopiam redacti, fame confecti
sunt; at qui, neglectis humanis opibus, Deum inflammato
studio quaerunt Illiusque gratiam omnibus uitae emolumentis
anteponunt, omnibus bonis abundabunt. Accedite, filii (iure
filios appello quos animo patrio complexus sum) et doctrinam
meam attentissima consideratione percipite. Non uos caeli
atque terrae dimensionibus erudiam; non disciplinis hominum
ingenuis excogitatis instituam; non ea uobis tradam quae sunt
plus inanis admirationis quam solidae utilitatis allatura, sed id
quo uerissimae sapientiae lumen continetur: nempe, timorem
Domini. Timor enim Domini extrahit ex animis flagitia; uirtutes
inserit; offensionem oblitterat; gratiam acquirit; mortis aciem
retundit; uitam aeternam dat; mala cuncta propellit; omnia bona
confert. Nihil denique mali potest in illis residere qui uitam
timore Domini sancto praefulciunt; nullum bonum deesse illis
quorum oculis iudicia sempiterni Iudicis obuersantur.
Quis est igitur qui uitam diligit et cupit dies bonis omnibus
affluentes inspicere? Omnes [222] certe mortem exhorrent
et uitae ardentissima cupiditate ducuntur. Omnes igitur
hortor et moneo ut moribus atque uita Domini timorem prae
se ferant. Vnusquisque igitur linguam coerceat ne malum
proferat ullum aut dolum et fraudem machinetur. Nihil est
enim lingua nimis effrenata funestius, ea namque maledicit et
hominibus dignitatem atque uitam detrahit. Non potest igitur
Deum habere propitium qui lingua ad iniquitatem et scelus
abutitur. Ab omni deinde maleficio manus contineat omnesque
suas cogitationes ad hominum caritatem et beneficentiam
conferat. Summa namque legis in caritatis studio consistit.
Pacem postremo diligenter exquirat eamque summa cura et
uigilantia tueatur. Qui enim pacis, quoad licet, appetentes
sunt, diuino officio et munere funguntur, et ea de causa
Illius familia et subole numerantur. Qui haec officia optima
fide praestiterit Deo gratissimus erit, et ita demum uitam
deget florentem atque beatam et eximia iucunditate refertam.
Oculi enim Domini in iustos admodum benigne respiciunt et
Illius aures sunt semper ad bonorum clamores excipiendos
intentae. Contra uero uultus Illius est omnibus qui conflant
iniurias infestissimus idque decretum habet ut eos exscindat
OPERA OMNIA TOMO IV 235

preservar a vida, quer ornamento para a dignidade. De facto, é impossível


que falte seja o que for àqueles que se uniram por pacto de amor com o
Senhor de todas as coisas. Os tiranos, abundantes de todas as riquezas
e violentos com a ferocidade de leões, tombaram da sua alta posição e,
reduzidos à mais extrema miséria, foram atribulados pela fome; aqueles,
porém, que, desprezando as riquezas humanas, com abrasado zelo buscam
a Deus e antepõem a Sua graça a todos os humanos proveitos, hão de
possuir em abundância todos os bens. Aproximai-vos, ó filhos (com razão
chamo filhos àqueles aos quais abracei com disposição de pai) e escutai
com muitíssima atenção os meus ensinamentos. Não vou ensinar-vos as
medidas do céu e da terra; não vos inculcarei conhecimentos adquiridos
pelas inteligências de homens; não vos transmitirei saberes que mais vos
hão de oferecer uma vã admiração do que um sólido proveito, mas sim
aquilo em que se cifra a luz da mais verdadeira sabedoria: isto é, o temor
do Senhor. É que o temor do Senhor arranca das almas as indignidades;
semeia as virtudes; expunge os agravos; obtém a graça; embota a espada
da morte; dá a vida eterna; rechaça todos os males; concede todos os bens.
Por derradeiro, nada de mau pode tomar assento naqueles que apoiam
a vida no santo temor do Senhor; nenhum bem pode faltar àqueles que
têm diante dos olhos os juízos do Juiz sempiterno.
Por conseguinte, quem é que ama a vida e deseja ver dias plenos de todos
os bens? [222] Com certeza que todos se arreceiam vivamente da morte e são
dominados por um desejo ardentíssimo da vida. Por consequência, a todos
exorto e aconselho a que, nos seus costumes e vida, façam alarde do temor
de Deus. Portanto, que cada um impeça a língua de proferir algo de indigno
e se esforce por não maquinar enganos e embustes. É que nada existe de
mais funesto do que uma língua excessivamente desenfreada, pois esta ao
maldizer rouba aos homens não apenas a dignidade, mas também a vida.
Por conseguinte, não pode estar nas boas graças de Deus quem ruimmente
se serve da língua para a iniquidade e para o crime. Além disso, impeça as
suas mãos de fazer qualquer mal e consagre os seus pensamentos a amar
e bem-fazer aos homens. Com efeito, a síntese da lei consiste no zelo da
caridade. Finalmente, busque a paz com todo o desvelo e conserve-a com o
máximo cuidado e vigilância. É que os que procuram a paz, até onde é lícito,
desempenham uma obrigação e dever santos, e por esse motivo fazem parte
do número dos familiares de Deus. Será muitíssimo benquisto aos olhos de
Deus quem com a melhor das fés cumprir estes deveres, e só destarte levará
uma vida próspera, venturosa e colmada de extraordinária alegria. É que os
olhos do Senhor fitam-se nos justos de modo sobremaneira benigno e os
Seus ouvidos estão sempre prontos para acolherem os clamores dos bons.
Pelo contrário, porém, o Seu rosto mostra-se assaz agastado contra todos
os que cometem injustiças e determinou aniquilá-los e expungir totalmente
236 D. JERÓNIMO OSÓRIO

eorumque memoriam e terris funditus euellat. Iusti uero, cum


pressi fuerint aerumnis, ad Dominum clamabunt et erunt
Illius ope e malis omnibus erepti.
Maxima igitur spes salutis est iustis ostensa. Quid, si
deliquerint in officio? Quid, si prolapsi aliquando fuerint?
Quid, si aliquod in se flagitium et dedecus admiserint?
Numquid ob id erit illis ad Dei benignitatem aditus omnino
praeclusus? Non certe. Dominus enim praesto est omnibus
quos impuritatis susceptae ualde paenitet et animis dolore,
propter uitia, confixis et suppliciter abiectis, facile ueniam
tribuit et salutem clementissime dat, ita ut qui iacent,
erigantur, et qui saucii erant, repente sanentur, et qui
uersabantur in maerore, uoluptatem peccatis amissam
recipiant.
Sed inquiet fortasse aliquis hanc sententiam nostram
uitae communis exemplis saepenumero refelli. Videmus
enim iustos incommodis uexari; cum doloris acerbitate
conflictari et ab impuris hominibus impugnari, cum interim
improbi multis opibus affluant et in assidua uitae iucunditate
uersentur.
Fateor iustos multis laboribus atque doloribus exerceri
ad multo maiorem uirtutis spectatae claritatem; ex omnibus
tamen illis ipsius Domini manibus eruuntur, ut ampliore
deinde gloria cum summa iucunditate circumfluant. Tanta
enim cura Dominus iustos et tanta uigilantia tuetur ut ossibus
eorum studio non mediocri prospiciat. Vnum enim ex illis
frangi minime patietur, itaque non languescit eorum uirtus;
nulla ex parte robur infringitur; constantia inuicta permanet;
in omnibus tormentis et cruciatibus pietas uictrix exsultat,
ut facile appareat uirtutem diuinam in illis semper incidere
qui iustitiam totis uiribus amplexantur. At impios malum
[223] quod in eorum uisceribus inhaeret foede conficiet
pestiferoque leti genere mactabuntur; et qui iustum odio
persequuntur scelere se constringent cruciatu perpetuo
uindicando. Redimet Dominus a peste sempiterna uitam
seruorum Suorum et nemo illorum, qui omnem spem suam
in Eo ponunt et hac fide uitam moderantur, erit in Illius
iudicio sceleris damnatus, et sic tandem fiet ut iusti, omni
crimine liberi, gloria sempiterna perfruantur.
OPERA OMNIA TOMO IV 237

da terra a lembrança deles. Mas os justos, quando forem atribulados pelas


provações, hão de chamar pelo Senhor e serão arrancados de todos os males
mediante a Sua ajuda.
Por conseguinte, aos justos foi mostrada a máxima esperança de salvação.
Que sucede, se faltarem ao cumprimento do dever? Ou se algum dia caírem?
Ou se incorrerem em alguma infâmia ou desdouro? Acaso por essa razão há
de cerrar-se-lhes por completo o acesso à bondade de Deus? Certamente que
não. É que o Senhor protege aqueles que sentem profundo arrependimento
pelas indignidades cometidas e sem dificuldade concede o perdão às almas
às quais trespassa a dor pelos pecados e que humildemente Lho suplicam,
concedendo-lhes com sobeja misericórdia a salvação, de tal maneira que, os
que estavam prostrados, se levantam, e os que estavam feridos, de repente
se curam, e os que estavam mergulhados na tristeza, recuperam o prazer
que os pecados lhes tinham feito perder.
Mas dirá talvez alguém que esta minha opinião é mui amiúde
contrariada pelos exemplos da vida corrente. É que vemos que os justos
são atormentados por contrariedades; atribulados por pungentíssimas
dores e atacados por homens perversos, sendo certo que entretanto os
perversos possuem abundantes riquezas e vivem uma existência venturosa
sem descontinuidades.
Reconheço que os justos são postos à prova com muitos trabalhos e
tribulações para muito maior luzimento da virtude; todavia são arrancados
de todas estas provações pelas mãos do próprio Senhor, para depois, com
a mais completa alegria, gozarem em abundância de uma glória maior. De
facto, o Senhor cuida dos justos com tão grande desvelo e vigilância que com
preocupação não pequena está atento aos ossos deles. É que não permite
que destes se quebre um só, e por isso a virtude deles não afrouxa; o vigor
não sofre quebras por nenhuma banda; a firmeza mantém-se invencível;
em todos os padecimentos e provações a piedade exulta vencedora, por
forma a que se torne de toda a evidência que a virtude divina sempre se
apresenta naqueles que com todas as suas forças abraçam a justiça. Mas, aos
ímpios, [223] há de castigar-lhes de um modo horrível o mal que se aninha
nas suas entranhas e serão mortos com um terrível género de morte; e os
que odeiam o justo tornam-se culpados de um crime que deve ser punido
com tormentos perpétuos. O Senhor livrará da perdição eterna a vida dos
Seus servidores e nenhum dos que n' Ele depositam toda a sua esperança
e regulam a sua existência de acordo com esta fé há de ser condenado por
crime no Seu juízo, e assim sucederá ao cabo que os justos, isentos de todo
o crime, hão de gozar da sempiterna glória.
238 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Iudica, Domine, nocentes me.


Psal. 34. Apud Heb. 35

Cum Dauid inuidorum odio premeretur et Saulis armis


sine ulla causa peteretur, a Domino poscit ut bellum
suscipiat, humanis enim opibus non poterat bellum immane
et inexpiabile profligari. In quo quidem ostendit quanta
cura Deus iustorum salutem atque famam tueatur, usque
adeo ut, illorum causa, Ipse, per Se, contra iustorum hostes
bellum gerat et iniurias bonis illatas dirissimis suppliciis
ulciscatur et, quo quisque maiores in iustitiae studio
progressus habet, eo acrius illius causa in bellum incumbat
et grauiores poenas ab hostibus piorum reposcat. Cum igitur
nullius hominis sancti iustitia fuerit aliqua ex parte cum
Christi iustitia comparanda et a Iudaeis fuerit adeo uexatus
et afflictus ut omnium sanctorum cruciatus longo interuallo
superarit, factum est ut nulla gens umquam fuerit magis
ab ope diuina derelicta, acriore bello uexata, acerbioribus
poenis exposita, maioribus suppliciis afflicta et diuturniore
clade et uastitate consumpta, ita tamen ut manus Domini
non sit a plagis inferendis auersa, sed adhuc ad feriendum
intenta. Cum igitur Dauid similitudinem Christi multis in
locis expresserit, sic res illius memoriae replicandae sunt
ut interim de Christo multo acrius et attentius cogitemus.
Dauidis igitur aut, ut rectius dicam, ipsius Christi preces
audiamus. Sic autem ait:
Pugnam suscipe, Domine, contra illos qui me crudeliter
oppugnant; proelio contra eos dimica qui me scelestissimo
proelio et animis infestissimis adoriuntur. Non leue bellum est
neque mediocri contentione gerendum, sed acerrimo studio
et totis uiribus, administrandum. Arripe igitur scutum ut a
me hostium tela propulses. Arripe hastam ut illis mortiferum
uulnus infligas et, rebus admirandis in armis fortiter editis,
insurge ut mihi praesentem opem afferas. Stringe gladium;
illis, qui me persequuntur, occurre; include illis uiam qua
in me impetum facere conantur omnibusque modis ostende
Te mihi salutem attulisse. Erubescant et insigni dedecore
maculentur omnes qui uitam meam petunt: quod fiet cum
frustra pugnauerint; cum nihil eorum, quae conantur, efficient;
cum illius gloriam, quem euertere nituntur, ornamentis diuinis
illustrari perspicient. Retrocedant cum summo dedecore;
OPERA OMNIA TOMO IV 239

SALMO 34
(35 entre os Hebreus)
Julga, Senhor, os que me fazem dano.

David, ao ser, sem qualquer motivo, assoberbado pelo ódio dos invejosos
e perseguido pelas armas de Saul, pede a Deus que empreenda a guerra,
porquanto com armas humanas ser-lhe-ia impossível vencer uma guerra
implacável e desumana. Deste modo mostra claramente com quão grande
cuidado vela Deus pela salvação e fama dos justos, a tal ponto que, por causa
deles, Ele mesmo, por Si, faz guerra contra os inimigos dos justos e com
terríveis suplícios castiga as injustiças perpetradas contra os bons e, quanto
são maiores os avanços que cada um faz no zelo da justiça, tanto por causa
deste mais vigorosamente se empenha na guerra e mais graves são as penas
com que pune os inimigos dos homens piedosos. Portanto, uma vez que a
justiça de nenhum homem santo pode ser de alguma maneira comparada
com a justiça de Cristo e que a tal ponto foi vexado e atribulado pelos
Judeus que em muito os seus tormentos superaram os de todos os homens
santos, sucedeu que jamais nenhum povo foi mais desamparado da ajuda
divina, nem atacado por guerra mais vigorosa, nem exposto a castigos mais
rigorosos, nem atribulado por maiores suplícios, nem consumido por uma
desgraça e devastação mais duradouras, todavia de tal forma que a mão do
Senhor não desistiu de desferir os golpes, mas ainda se aplica a ferir. Por
conseguinte, dado que David representa em muitas passagens a figura de
Cristo, cumpre-nos que recordemos os episódios da sua vida de uma forma
tal que, do mesmo passo, nos leve a pensar com muito mais intensidade
e atenção em Cristo. Portanto, escutemos as rogativas de David, ou, para
dizê-lo mais corretamente, de Cristo. Ora, é assim que ele fala:
Põe-te em campo, Senhor, contra aqueles que cruelmente me atacam;
peleja contra aqueles que me assaltam com guerra sacrílega e ânimo hostil.
Não se trata de uma guerra de somenos nem que deva ser empreendida
com um esforço mediano, mas tem de ser levada a cabo com o máximo
empenho e com todas as forças. Por isso, embraça o escudo para afastares
de mim os dardos dos inimigos. Pega na lança para lhes infligires uma
ferida mortal e, mediante espantosas façanhas valorosamente realizadas
pelas armas, dá-Te a conhecer para assim me prestares ajuda eficaz.
Desembainha a espada; lança-Te contra aqueles que me perseguem;
intercepta-lhes o caminho em que tentam arrojar-se sobre mim e mostra por
todos os modos que me ocasionaste a salvação. Ruborizem-se de vergonha
e recaia um enorme desdouro sobre todos os que atentam contra a minha
existência: algo que sucederá quando combaterem em vão, quando não
conseguirem nada daquilo em que se empenham, quando virem que é
ataviada com ornamentos divinos a glória daquele que se esforçam por
240 D. JERÓNIMO OSÓRIO

fugam sine fructu quaerant omnes qui mihi [224] malum


inferre moliuntur; sint instar pulueris a uento dissipati et
angelus Domini eos praecipites exturbet. Sit illorum uia
circumfusa densis tenebris et nimis lubrica, ita ut neque
quo tendant adspiciant neque uestigium firme in lutulentis
locis imprimere queant, et passim labantur et concidant; et,
ut furentius in magnitudinem totius cladis incurrant, angelus
Domini eos a tergo mucrone gladii micantis insequatur.
Iure haec omnia imprecor illis qui, sine ulla causa, in meam
perniciem insidias machinati sunt profundamque foueam, in
quam detrusus uita spoliarer, exstruxerunt. Quid enim possunt
magnitudini tam scelesti facinoris obtendere? Me fuisse illis
perniciem machinatum, qui ab eorum capitibus perniciem,
ab hostibus illatam, mea uirtute repressi? Commodis eorum
defuisse, qui rem publicam uniersam bonis quamplurimis
egregie cumulaui? Contumeliis ciues meos affecisse, quorum
maledicta patientia inuicta sustinui? Itaque mihi, pro beneficiis,
innumerabilia maleficia retulerunt. Irruat in principem tanti
sceleris improuissa calamitas quam minime cogitarat et rete,
quod mihi intenderat, impediatur et in pestem incidat, quam
mihi fuerat, absque ullo meo merito, impie machinatus. Anima
uero mea exsultabit in Domino et summa laetitia efferetur cum
fuerit salutem, Illius gratia et benignitate, consecuta. Omnes
animi uires, ad laudes Tuas celebrandas excitatae, dicent:
Domine, quis tui similis est? Homines enim iis qui parum
possunt aduersarii sunt et ad eorum se studium adiungunt quos
uident in re publica dominari. Itaque pauperes, omni patrocinio
destituti, potentium rapinae et direptioni relinquuntur. At Tu
subsidio occurris pauperi et liberas eum ab illius tyrannide
qui multo ualentior est et inopem et egenum ab immanitate
illius qui pauperes omni uictu spoliat illorumque tenues opes
praedam suam putat clementissime liberas.
Etenim insurrexerunt in me testes, iniquitate et mendacio
subnixi et ad iniuriam afferendam uiolenti, et me de rebus
his, quas penitus ignorabam, quasi opera mea constatae
fuissent, interrogabant. Pro bonis, quibus illos affeceram,
mala reponebant et, ut omni prorsus auxilio orbaretur anima
mea, summa contentione laborabant. At ego, cum illi in
morbum periculosum incidissent, lugubrem uestem, insitae
sollicitudinis atque doloris indicem, induebar, et uitam ieiuniis
afflictabam et ea, quae illis a Domino precibus assiduis
flagitabam, mihi ipsi proueniant; non minus atque si quilibet
OPERA OMNIA TOMO IV 241

destruir. Que retrocedam com enorme ignomínia e que debalde busquem


fugir todos os que [224] se ocupam em causar-me mal; que o vento os
dissipe como pó e o anjo do Senhor os destrua. Que o seu caminho fique
cercado de densas trevas e se torne muito resvaladiço, de tal maneira
que nem vejam para onde se dirigem nem possam pisar com firmeza em
lugares lamacentos, tombando e caindo por todos os lados; e, para que
se venham a precipitar mais desvairadamente num enorme desastre, que
o anjo do Senhor os persiga com a ponta reluzente da espada.
É com razão que lanço todas estas imprecações contra aqueles que, sem
qualquer causa, urdiram intrigas para me perder e armaram uma profunda
armadilha para que caindo nela fosse privado da vida. Com efeito, que
pretexto podem alegar para um tão grande e hediondo crime? Que eu
maquinei a ruína deles, eu que com a minha virtude desviei das cabeças
deles a ruína infligida pelos inimigos? Que eu não atendi ao proveito
deles, eu que de modo extraordinário cumulei toda a comunidade de
inumeráveis bens? Que ultrajei os meus concidadãos, cujos insultos suportei
com inalterável paciência? E deste modo me pagaram os benefícios com
incontáveis malefícios. Abata-se sobre o responsável por tamanho crime
uma inesperada calamidade que nunca imaginara e fique preso na rede que
me armara e sofra a sorte mofina que, sem que houvesse qualquer culpa
da minha parte, impiamente tramara contra mim. A minha alma, porém,
rejubilará no Senhor e encher-se-á da mais completa alegria, quando,
mediante a Sua graça e bondade, obtiver a salvação. Todas as energias do
espírito, incitadas a celebrarem os Teus louvores, hão de dizer: Senhor,
quem é semelhante a Ti? É que os homens opõem-se àqueles que podem
pouco e procuram a amizade daqueles que vêem senhorear o Estado. E
destarte os pobres, privados de toda a proteção, são abandonados à rapina
e saque dos poderosos. Mas Tu acodes com ajuda ao pobre e livra-lo
da tirania daquele que é muito mais forte e com a máxima misericórdia
salvas o indigente e o necessitado da desumanidade daquele que esbulha
os pobres de todos os meios de subsistência e que considera como sua
presa os seus escassos recursos.
Com efeito, surgiram testemunhas contra mim, fundadas na mentira
e na iniquidade e violentamente desejosas de praticarem a injustiça, e
interrogavam-me acerca de coisas que eu por completo desconhecia,
como se tivessem sido realizadas por mim. Pagavam com males os
bens que eu lhes tinha dado e com o máximo afinco se empenhavam
em privar por completo a minha alma de auxílio. Eu, porém, uma
vez que eles tinham contraído uma enfermidade perigosa, vestia uma
roupa lutuosa, reveladora da inquietação e dor interiores, e atribulava
a minha vida com jejuns e a mim mesmo sucedia aquilo que com
incessantes rogativas pedia ao Senhor para eles; andava triste, tal qual
242 D. JERÓNIMO OSÓRIO

eorum mihi ualde necessarius atque adeo frater germanus


esset, maestus incedebam; quasi in funere matris abiectus,
assidue lamentabar. At illi, cum ego paullulum claudicarem,
laetitia gestiebant et, ut de meo casu inter se gratularentur,
conueniebant; conueniebant et se ad illos aggregabant
homines obscuri et ignoti, qui me absentem maledictis
omnibus, sine ulla intermissione, lacerabant. Adulatores
et parasiti, qui uilissimo cibo libertatem in turpissimam
seruitutem addixerant, in me dentibus [225] frendebant et
in nomen meum conuicia iaciebant.
O Domine, quando tandem respicies? Educ animam
meam ab hominum perditorum maledicentia; eam, quae
est omnium ope nudata et in Te solum intuetur, a leonum
faucibus eripe: ut hostes confusi et perturbati contremiscant.
Hac igitur gente perdita, quae sese a gratia Tua sceleribus
abalienauit, prorsus abiecta, aliam gentem ad Tuum nomem
adiungam et in maximo hominum fidelium coetu Tibi gratias
immortales agam et in populo uiribus diuinis instructo Te
laude perpetua celebrabo. Perfice ne, mendaciis elati, me
derideant inimici mei, et, qui sine causa in me odio furentes
inuehuntur et oculorum nutibus inclusam malitiam ostentant,
ne mihi in cruciatibus insultent. Nec enim pacem cogitant,
sed in antris atque latibulis fraudes struunt et perturbandae
pacis consilia inter se scelerate consociant. Os suum contra
me nimis impudenter aperiunt, cum proiecta audacia et
impunita maledicentia conuicia iactant et, cum me uulneribus
conscissum et doloribus intolerandis afflictum cernant,
incredibiliter exsultant, et crudelitatem suam sanguine meo
satiant, omnibusque modis ualde petulanter efferuntur. “Euge!
Euge!”, inquiunt. “Oculi nostri, quod misere cupiebamus,
adspexerunt. Cernimus enim hominem nobis uehementer
odiosum et inuisum acerbissimo supplicio mactari et omnium
conuicio derideri et spes eorum, qui sibi erant opes ingentes
de illius benignitate polliciti, prorsus euanuisse. Iam non
habebimus qui nobis molestus sit et cupiditatibus nostris
aduersetur et dignitati nostrae notam impietatis inurat.”
Vidisti, Domine, haec maledicta in nominis Tui gloriam a
perditis hominibus impudentissime coniici: ne igitur taceas
ne ultionem differas, ne malum longius serpat et multorum
animos contagione taeterrimae pestis inficiat. Ne Te a me
procul amoueas, ut intellegant omnes mortales me fuisse
semper Tuis iussis sanctissimis obsecutum. Animaduersionem
OPERA OMNIA TOMO IV 243

como se qualquer um deles me fosse muito próximo ou até um irmão;


continuamente me lamentava, abatido como se estivesse no funeral
da minha mãe. Mas eles, como eu coxeasse um pouco, davam pulos
de alegria e reuniam-se para uns com os outros se regozijarem com
a minha queda; reuniam-se e ajuntavam-se a eles homens obscuros
e desconhecidos, que, na minha ausência, sem qualquer trégua me
dilaceravam com toda a espécie de insultos. Os lisonjeiros e os
parasitas, que a troco de um vilíssimo alimento se tinham sujeitado à
mais infame servidão, rangiam os dentes contra mim [225] e lançavam
baldões contra o meu nome.
Oh! Senhor, quando, enfim, olharás para isto? Liberta a minha alma da
maledicência dos homens perversos; arranca-a das fauces dos leões, a ela
que está privada da ajuda de todos e só em Ti tem postos os olhos: para
que, confusos e perturbados, os inimigos tremam de medo. Portanto, posto
completamente de parte este povo perverso, que com os seus crimes se
apartou da Tua graça, associarei outro povo ao Teu nome e na assembleia
suprema dos fiéis dar-Te-ei graças imortais e celebrar-Te-ei com louvor
perpétuo no meio de uma raça provida de forças divinas. Impede que,
ensoberbecidos com as mentiras, os meus inimigos zombem de mim, e,
que no meio dos meus tormentos, me ultrajem aqueles que, dementados
pelo ódio, sem motivo me invectivam e que, com os esgares dos olhos,
dão a conhecer a perversidade interior. É que tão-pouco pensam na paz,
mas nos antros e covis tramam embustes e põem-se criminosamente de
acordo para perturbarem a paz. Com sobeja impudência abrem contra mim
as suas bocas, com impudente atrevimento e desenfreada maledicência
lançam insultos e, ao verem-me retalhado de feridas e atribulado por
dores intoleráveis, exultam de um modo extraordinário, e saciam a sua
crueldade com o meu sangue, e assaz insolentemente se ensoberbecem de
todas as maneiras. Dizem: “Bravo! Bravo! Os nossos olhos contemplaram
aquilo que vivamente desejávamos. É que vimos que um homem que muito
odiávamos e detestávamos era castigado com um suplício muitíssimo
doloroso e ridicularizado com os ultrajes de todos e que se desvaneceu
por completo a esperança daqueles que da bondade dele esperavam
grandes prosperidades. Já não teremos quem nos importune nem quem
se oponha aos nossos apetites nem quem lance o labéu da impiedade
sobre a nossa dignidade.”
Viste, Senhor, que os homens perversos lançaram impudentemente
contra a glória do Teu nome estas palavras injuriosas: portanto, não
cales nem adies a Tua vingança, para que o mal não se espalhe mais
nem infeccione as almas de muitos com o contágio da horribilíssima
peste. Não Te afastes de mim, para que todos os mortais se dêem conta
de que sempre acatei os Teus santíssimos mandados. Desperta a Tua
244 D. JERÓNIMO OSÓRIO

excita; ad opem confestim afferendam euigila; iudicium Tuum,


Domine, quem unicum mihi Deum, in omni uitae ratione
summa pietate colendum proposui, mea causa constitue:
ut, cum fuero, sententia Tua, omni crimine liberatus, ora
pestilentia comprimantur. O Domine, cuius propositum mihi
semper exstitit, omnes meas actiones iudicii Tui examine
perpende, et, quam grata Tibi fuerit omnis uita mea, signis
clarissimis demonstra, ne insultent mihi inimici mei. Ne, si
uiderint causam meam a Tuo patrocinio derelictam, cum
animis suis statuant sibi omnia ex animi sententia processisse
et petulanter insultent et dicant: “Eum tandem, qui erat nobis
grauis aduersarius et actionibus nostris infensus, machinis
et industria nostra confecimus.” Erubescant insignique
dedecore et ignominia deformentur qui supplicio meo
delectantur; confusionem induant et ignominiam qui contra
me insolenter insurgunt. Qui uero iustitiam gratis animis
amplexantur meritisque meis gratiam Tuam consequuntur,
laetis acclamationibus exsultent et perpetuo dicant: “Laudibus
sempiternis efferatur [226] Dominus, qui serui Sui statum
opibus auxit et amplificauit Suoque praesidio stabiliuit.”
Lingua uero mea ad Tuam iustitiam celebrandam meditabitur
et numquam de laude Tua conticescet.

Dixit iniustus, ut delinquat in semetipso.


Psal. 35. Apud Heb. 36

Ita uiuunt multi qui se religione adstrictos esse profitentur


ut orationem illorum facile refellat improbitas. Non enim
mediocriter peccant, ut sit in illis commune aliquod et
usitatum uitae flagitium naturae imbecillitati condonandum,
sed ita se in omne genus libidinis et immanitatis proiiciunt
ut nullo Dei metu deterreri queant quin uitam suam
omnibus exsecrandis sceleribus foede contaminent. Qui
enim hominum iudicia nimis anxie reformidant, quomodo
non multo magis caeleste uim extimescerent, si statuissent
Deum esse qui res humanas animaduerteret et omnia cum
summa iuris integritate gubernaret? Sed illud est aut Deum
esse non credunt aut ab Illo res humanas omnino neglegi
atque contemni suspicantur, et, ea de causa, cum uires
colligunt, temere ruunt et facinora taetra suscipiunt, et eos,
OPERA OMNIA TOMO IV 245

atenção; não Te descuides em prestar-me um pronto auxílio; julga a


minha causa, ó Senhor, Tu que és o meu único Deus, a quem decidi
adorar com a máxima religiosidade em todas as situações da vida:
para que se fechem as bocas pestilenciais quando, por Tua sentença,
eu for absolvido de todas as acusações. Ó Senhor, cujos desígnios eu
tive sempre presentes, ajuíza ponderadamente as minhas ações, e, para
que os meus inimigos não me insultem, faz saber com sinais muito
claros o quanto a minha vida foi do Teu agrado. Para que, se virem
que deixaste de patrocinar a minha causa, nem cuidem para si que
tudo lhes acontece a pedir de boca, nem me insultem insolentemente,
nem digam: “Graças às nossas maquinações e expedientes, destruímos
finalmente este homem, grande adversário nosso e hostil a tudo o que
fazíamos.” Que corem de vergonha e sejam manchados com um enorme
desdouro e ignomínia os que se comprazem com o meu suplício; que
experimentem o vexame e a infâmia os que insolentemente se levantam
contra mim. Que aqueles, porém, que abraçam com ânimo agradecido
a justiça e obtêm a Tua graça por causa dos meus merecimentos,
exultem soltando brados de alegria e digam incessantemente: “Com
louvores sempiternos seja glorificado [226] o Senhor, que aumentou e
acrescentou com riquezas a condição do Seu servo e o fortaleceu com
a Sua guarda.” E a minha língua aplicar-se-á a celebrar a Tua justiça e
nunca emudecerá no Teu louvor.

SALMO 35
(36 entre os Hebreus)
Disse o injusto entre si mesmo que ele delinquiria.

De tal maneira vivem muitos que proclamam que estão ligados à religião
que a sua perversidade facilmente lhes refuta as palavras. De facto, pecam
muitíssimo, de tal maneira que neles não existe alguma debilidade corrente
e comum que deva ser atribuída a fraqueza da natureza, mas por tal forma
se entregam a toda a sorte de paixões e monstruosidades que nenhum
temor de Deus tem eficácia para deixarem de torpemente manchar a sua
vida com toda a espécie de abomináveis crimes. De facto, os que olham com
angustiado receio para o julgamento dos homens, como é que não temeriam
muito mais a força de Deus, se tivessem assentado consigo mesmos que
existe um Deus, que olha para os acontecimentos humanos e tudo governa
com a suprema inteireza da Sua lei? Mas sucede que ou não acreditam que
Deus existe ou supõem que Ele despreza completamente e não se preocupa
com os negócios humanos, e, por este motivo, quando ajuntam forças,
precipitam-se às cegas e perpetram abomináveis crimes, e cinicamente
246 D. JERÓNIMO OSÓRIO

qui religione tenentur ne tyrannidem occupent, aut saltem


iniuriam conflent, utilitatisque suae gratia in ciues suos
taeterrimi sint, petulanter irrident et homines animi pusilli
et angusti iudicant. Hac autem mente Dauid erat ut statueret
omnia summa scelera ab impietate in Deum ad hominum
perniciem profluxisse. Vt enim uera religio omnes uirtutes
gremio suo complectitur, ita religionis contemptum omnia
infanda flagitia et scelera consequuntur. Ait igitur:
Saepe mecum cogito hanc sententiam esse in animis
impiorum, qui taetra facinora cum proiecta audacia
et impudentia moliuntur, insculptam, Deum non esse
metuendum, aut quia nullum esse putant qui mundum regat
atque moderetur, aut, si est, fieri non posse suspicantur,
cum sit caeli mouendi curis implicitus, ut res infimas, quae
uersantur in terris, animaduertat. Quid enim aliud suspicari
licet, cum uideamus illos perpetuo de iniquitate et iniuria
cogitare? Sibi enim ipse adulatur impius; sibi sapientiae
laudem arrogat, eo quod multas iniuriae conflandae et
multitudinis opprimandae rationes excogitet; et, quo sagacius,
rei augendae et dominationis comparandae gratia, fraudes
inuenerit, eo magis nomine singularis industriae et acuminis
insolescit, tantoque studio ingenium ad omnem malitiam
uersat ut nihil malle uideatur quam in odium uniuersae
plebis irruere. Non enim se diligi, sed timeri percupit,
illud enim simplicis et ingenuae bonitatis, hoc animi
fortis et excelsi, plurimum de imperio cogitantis, opinatur:
quorum alterum contemnendum, alterum plurimi faciendum
existimat. Omnia uerba illius ad iniquitatem et fraudem
conferuntur; officii recti [227] atque uerae uirtutis disciplinam
aspernatur atque repudiat, neque tempore quieti tributo
sine cura et sollicitudine consistit. Noctem enim in lecto
in iniquitatis meditatione consumit; per uiam improbitatis
atque peruersitatis incedit; nullum impuritatis et malitiae
facinus exsecratur; et interim, cum tam multis sceleribus
adstrictus sit, ita de Deo male sentit ut sibi impunitatem
polliceri non dubitet. Quantis uero bonis affluant qui Deum
metuunt et iudicia Illius in oculis semper habent, homines
perditissimi, propter exsecrandam mentis impurissimae
caecitatem, prorsus ignorant.
Misericordia namque tua, Domine, caelestis naturae
altitudinem penetrat et fides Tua aetheriam regionem tranat,
ut pios homines in caelum clementer euehas et, eodem
OPERA OMNIA TOMO IV 247

zombam daqueles aos quais a religião impede de se tornarem tiranos ou de


pelo menos praticarem injustiças e de, por amor do seu pessoal proveito,
se volverem terríveis contra os seus compatriotas; e têm-nos na conta de
homens pusilânimes e apoucados. Ora, David era de parecer que todos os
maiores crimes nasceram, para perdição dos homens, da impiedade contra
Deus. É que, assim como a verdadeira religião abarca em seu seio todas as
virtudes, da mesma maneira o menosprezo da religião traz consigo todas
as abomináveis indignidades e crimes. Por isso, diz:
Muitas vezes penso comigo mesmo que nas almas dos ímpios, que
cometem medonhos crimes com total despudor e atrevimento, encontra-se
gravada a opinião que diz que não se deve sentir medo de Deus, ou porque
pensam que não existe Deus algum para governar e dirigir o mundo, ou,
se existe, supõem que não é possível, uma vez que está ocupado em dar
movimento ao céu, que preste atenção às coisas de somenos importância
que se passam na terra. Ora, que outra coisa pode cuidar-se, ao vermos
que eles não pensam senão incessantemente na iniquidade e na injustiça?
É que o ímpio adula-se a si mesmo; arroga-se os méritos de sábio, só
porque congemina inúmeros modos de maquinar a injustiça e oprimir a
multidão; e quanto mais astutamente descobrir enganos para aumentar
a sua riqueza e obter o poder, tanto mais se ensoberbece com a fama
de excecionalmente astucioso e de sagaz engenho, e com tão grande
empenho se consagra a toda a espécie de maldades que parece nada
preferir a incorrer no ódio do povo inteiro. É que vivamente anela, não
que o amem, mas que o temam, pois cuida que o amarem-no resulta
de uma bondade símplice e ingénua, e o temerem-no é próprio de um
espírito decidido e elevado, que se preocupa assaz com o poder: e pensa
que de ambas as atitudes, a primeira é digna de desprezo, e a segunda
merecedora de grande apreço. Todas as suas palavras se encaminham
à iniquidade e ao engano; despreza e rechaça os ensinamentos do reto
dever [227] e da verdadeira virtude, e não se aquieta, isento de cuidados
e preocupações, nem no tempo reservado ao descanso. De facto, passa
a noite na cama, ocupado em maquinar injustiças; avança pela senda da
perversidade e da desonestidade; nenhum cometimento impuro e maldoso
lhe causa repugnância; e entretanto, uma vez que perpetrou tão grandes
crimes, de tal maneira pensa erradamente acerca de Deus que não hesita
em prometer-se a impunidade. Mas, devido à abominável cegueira de seu
impuríssimo entendimento, os perversíssimos homens totalmente ignoram
os grandes bens de que transbordam os que temem a Deus e sempre têm
diante dos olhos os Seus juízos.
Na verdade, Senhor, a Tua misericórdia penetra as alturas da natureza
celeste e a Tua fé atravessa a região dos ares, a fim de compassivamente
conduzires para os céus os homens piedosos e, depois disto feito,
248 D. JERÓNIMO OSÓRIO

facto, fidem Tuam liberes, cum sedes quietas in caeli fastigio


piis paratas fore promiseris. Numquam enim fides Tua a
misericordiae coniunctione secluditur neque misericordia
a fidei sanctitate diuellitur. Iustitia Tua tamquam montes
altissimi, qui nullis motibus de sede firmissima conuelluntur,
stabilitate sempiterna continetur, ita ut, quamuis homines
interdum longe secus opinentur, nemo possit uim illius
effugere; iudicia Tua in profundissima obscuritate demersa
sunt. Nec enim humana ratio causas cogitatione consequitur,
quibus inductos homines sanctos incommodis affictari et
facinorosos opibus redundare permittis, cum Tu bonos
aerumnis exerceas ut eos multo amplioribus donis et
ornamentis afficias; et improbos, qui propter contumaciam
sanari nolunt et tempore sibi ad paenitendum concesso ad
incrementum sceleris abutuntur, in sempiternum supplicium
reserues; omniaque tandem sapientissime, quemadmodum
uides Tuorum gloriae conuenire, dispensas. Ecquid enim
est quod sit a fructu Tuae immensae benignitatis exclusum?
Neque enim solum homines alis atque sustentas, ut eos
tandem ad cognitionem Tui perducas, uerum et iumentis,
eo quod humanis uiribus seruiant, pabula passim fundis,
et sic demum omnium animantium salutem, pro cuiusque
ratione, constituis. Non igitur mirandum est si homines
impios toleres, cum etiam illi Tuorum gloriae seruiant
et eorum uirtutem, quos pessime oderunt, perditissimis
conatibus illustrent.
Illud tamen considerandum est: cum Tu scelestissimos
etiam homines saluos esse uelis, eosque ad te beneficiis, quod
fieri potest, allicias; cum brutorum etiam animantium uitam
tuearis: quanta erit illa benignitas qua Tuos amplexabere?
Nullis certe uerbis explicari poterit quanta sit illius summae
benignitatis amplitudo qua eos, qui toti ex bonitate Tua
pendent, amplecteris. Vt enim uolucres, de pullorum uita
sollicitae, eos, quantum possint, alis expansis ab accipitris
cuiusuis inuolatu praemuniunt, sic Tu, extensis latissimeque
diffusis clementiae Tuae praesidiis, omnes homines, qui sub
umbra Tuae benignitatis requiescunt, tutos ab omni hostium
incursione conseruas. Neque solum eos inuicto praesidio
defendis, sed etiam mirifica spiritus Tui iucunditate perfundis.
Ab ubertate namque domus Tuae perennes aquae summae
uoluptatis emanant, quibus [228] sancti homines ebrii,
sensibus intimis exhilarantur, ad quos Tu potu suauissimo
OPERA OMNIA TOMO IV 249

cumprires a Tua palavra, uma vez que prometeste que para os pios seriam
preparadas no cimo do céu moradas tranquilas. É que nunca a Tua fé
se separa da união com a misericórdia nem a misericórdia se aparta da
santidade da fé. A Tua justiça, como os montes muitíssimo elevados que
nenhuns abalos conseguem mover da sua firmíssima base, funda-se em
eterna firmeza, de tal maneira que, embora por vezes os homens pensem
muito diferentemente, ninguém pode escapar à sua ação; os Teus juízos
encontram-se mergulhados nas mais profundas trevas. Na verdade, tão-
pouco a razão humana alcança pela reflexão as causas pelas quais permites
que os homens santos sejam atribulados pelas provações e os perversos
possuam abundância de riquezas, sendo certo que com tribulações pões
à prova os bons para os galardoares com muito mais elevadas mercês e
ornamentos; e reservas para os tormentos sem fim os perversos que, devido
à sua obstinação, não querem curar-se e usam para aumentar o pecado
o tempo que lhes foi concedido para o arrependimento; e, finalmente,
tudo regulas em conformidade com o que vês que se ajusta à glória
dos Teus. Com efeito, existe alguma coisa que esteja excluída do fruto
da Tua imensa bondade? De facto, não alimentas e sustentas apenas os
homens, a fim de conduzi-los por fim ao conhecimento de Ti, mas também
por toda a parte ofereces alimento aos jumentos, para que estejam ao
serviço das forças humanas, e do mesmo modo atendes à sobrevivência
de todos os seres vivos, em conformidade com as necessidades de cada
um. Por conseguinte, não é de espantar se toleras os homens ímpios,
uma vez que também eles estão ao serviço da glória dos Teus e com os
seus perversíssimos intentos tornam brilhante a virtude daqueles que
mui maldosamente odeiam.
Todavia, cumpre que se pondere que, sendo certo que tu também
pretendes que se salvem os homens mais perversos e, com benefícios,
dentro do possível os atrais para Ti; sendo também certo que velas pela
vida dos brutos animais: quão grande não há de ser aquela bondade com
que hás de abraçar os Teus? De certo não poderá expor-se por nenhumas
palavras a imensa grandeza daquela suprema bondade com que abraças
aqueles que inteiramente dependem dela. É que, assim como as aves,
preocupadas com a vida das suas crias, com as asas estendidas as protegem,
na medida do possível, do ataque de alguma ave de rapina, do mesmo
modo Tu, com os extensos e mui derramados socorros da Tua compaixão,
manténs seguros de qualquer ataque dos adversários todos os homens que
repousam sob a sombra da Tua bondade. E não apenas os defendes com
invencível proteção, como também os inundas com a maravilhosa alegria
do Teu espírito. Com efeito, da abundância da Tua morada jorram as águas
perenes da suprema deleitação, que, [228] embriagando os homens santos,
enchem de contentamento o íntimo do seu peito, para o qual encaminhas
250 D. JERÓNIMO OSÓRIO

reficiendos flumen eximiae iucunditatis inducis. Tecum enim


semper est uitae sempiternae fons, cuius haustu omnium,
qui caelesti luce fruuntur, uita continetur.
Tu lumen animis nostris praefers, cuius splendore illuminati
lumen Tuae diuinitatis in dies clarius cernimus. Non enim in
uno tantum gradu magnitudo Tuae benignitatis insistit, sed,
acceptis iam beneficiis, incrementa quotidie alicuius diuini
muneris afferuntur et opes, apud animos pios reconditae,
multis accessionibus accumulantur. Sic autem fit ut illi, quos
uera lux illuminauit, progressus magnos saepe faciant et
clariorem in dies notitiam diuinae atque sempiternae lucis
accipiant. Tribue misericordiam Tuam, Domine, omnibus qui
notitia Tui sanctissimi nominis instructi sunt, diuinaeque
iustitiae beneficium cunctis, qui recto animo ad Te suppliciter
adeunt, impertire. Superbiae pedem imprimere penes me
uestigium minime patiaris et impiorum manus nullo me pacto
de statu meo conuellat, ut illis semper annumerer quos Tu
ope Tua fulciendos et ornamentis diuinis excolendos in fidem
et patrocinium recepisti.
Hic est bonorum status, quem impii derisione prosequuntur:
opibus locuples, praesidio tutus, pace tranquillus, honoribus
clarus, uoluptate iucundus et ad spem cuiusdam diuinitatis
erectus; cum interim impiorum condicio in summa indigentia
uersetur, curis assiduis afflicta sit et metu impendentis
calamitatis frequenter exanimetur, et tunc uel maxime ruina
illius appareat cum pietatis fructus amplior exsistit. Tunc
enim corruerunt omnes qui iniquitatis opera moliuntur; tunc
aduersi nominis impulsu miserrime conciderunt; tunc omnes
spes illorum prorsus incisae sunt. Numquam enim poterunt
exsurgere et in amissum statum restitui.

Noli aemulari in malignantibus, neque ...


Psal. 36. Apud Heb. 37

Inueterauit apud hominum uulgus opinio perniciosa


moribus, infesta rei publicae, contra religionis sanctitatem
sacrilega: eum nempe, qui magnas opes habet esse beatum,
quamuis scelerum omnium colluuione contamiatus sit et
iniuriis innumerabilibus ciues afficiat. Quod, si multi eum
OPERA OMNIA TOMO IV 251

o rio do inefável contentamento, a fim de o fortalecer com uma suavíssima


bebida. É que em Ti sempre se encontra a fonte da vida eterna, em cuja
linfa se encerra a vida de todos os que gozam da luz celestial.
Tu ofereces às nossas almas a luz que, iluminando-nos com o seu
resplendor, nos permite enxergar cada dia com mais nitidez a luz da
Tua divindade. É que a grandeza da Tua bondade não fica parada num
único degrau, mas, depois de já recebidos os benefícios, todos os dias se
concedem acréscimos de alguma mercê divina e com inúmeros aumentos
nas almas piedosas as riquezas vão ocultamente medrando. Ora, assim
acontece que aqueles, que foram iluminados pela verdadeira luz, amiúde
fazem grandes avanços e recebem de dia para dia um conhecimento mais
claro da divina e eterna luz. Oferece a Tua misericórdia, ó Senhor, a todos
os que foram iniciados no conhecimento do Teu santíssimo nome, e reparte
o benefício da justiça divina a todos os que com ânimo reto sempre em
atitude suplicante para Ti se dirigem. Não deixes que o pé da soberba
imprima em mim a sua pegada nem que a mão dos ímpios de modo algum
me faça cair da minha posição, para que eu sempre seja contado no número
dos que Tu, amparando-os com a Tua ajuda e ornamentando-os com os
Teus atavios, acolheste sob a Tua guarda e proteção. É esta a condição
dos bons, da qual os ímpios zombam: abastada de riquezas, segura pela
proteção, tranquila pela paz, ilustre pelas honrarias, satisfeita com os
prazeres e animada pela esperança de alcançar uma espécie de divindade;
sendo certo que, entretanto, a situação dos ímpios se caracteriza pela mais
total privação, é atribulada por incessantes cuidados e frequentemente se
inquieta com o medo das desgraças que rondam, tornando-se sobretudo
visível a sua perdição quando foi mais abundante o fruto da piedade.
É que então se arruinaram todos os que maquinaram obras iníquas;
então mofinamente caíram pelo impulso de um nome inimigo; então se
interromperam completamente todas as esperanças deles. De facto, nunca
poderão erguer-se e ser restituídos à posição perdida.

SALMO 36
(37 entre os Hebreus)
Não queiras imitar os malignos
[nem invejes os que praticam iniquidade].

Arreigou-se entre a populaça uma opinião, prejudicial para os costumes,


nefasta para a comunidade e sacrilegamente atentatória da santidade da
religião, segundo a qual é venturoso quem possui grandes riquezas, ainda
que se encontre manchado pelo enxurro de todos os pecados e faça sofrer os
concidadãos com inumeráveis injustiças. Pelo que, se muitos não se guindam a
252 D. JERÓNIMO OSÓRIO

statum non assequuntur, in quo possint ex alienis bonis


praedas agere ut, maximis opibus affluentes, ad tyrannidem
adspirent, id fieri putant quod deficiat eos uel consilium uel
industria uel animi magnitudo. Quantum tamen sunt in eam
sententiam propensi iudicium declarat quo eos, qui malis
artibus opes summas adepti sunt, admirantur, et homines
uigilantes et industrios et fortes existimant honoreque
summo dignissimos. Iustitiam namque animis pusillis et
abiectis conuenire statuunt, quibus, propter tenuitatem,
non licet impunitatem sibi proponere, iniustitiam uero
animi acrioris et altioris esse credunt, qui possit uel
consilio, uel gratia, uel potentia legum poenis [229] elabi,
et id, quod ui aut dolis obtinuit, sine metu et sollicitudine
possidere. Eum igitur qui tantum ualet ut impune in opes
alienas inuadat et ita ad summos honores adscendat,
(omnes enim summi rei publicae magistratus ad summam
pecuniam plerumque deferuntur) uirum magnum atque
plane beatum arbitrantur. Hanc opinionem in humanis
animis penitus insitam, cum in multis aliis locis, tum in
hoc, quem in manibus habemus, Dauid conatur euellere.
Demonstrat enim quam multis malis afflicta sit impiorum
uita; quantis curis implicita; quantis doloribus interclusa;
quanto denique supplicio crucianda sit. Contra uero,
quam florentes atque beati sint qui nullis commodis et
emolumentis adduci possunt ut iuris Diuini praescripta
transiliant. Ait igitur:
Non ueniat tibi in mentem indignissime pati te a maleficis
hominibus opibus et potentia superari, et ita putes esse
tibi cum illis assidue decertandum ut ad eundem honoris
gradum, simili studio et contentione, peruenias: neue eos
qui iniquitatis opera moliuntur aemuleris. Nam, tamquam
fenum, celerrime succidentur, et, tamquam uiridis herba,
solibus adusta, uiriditatem atque uires amittent, ita ut,
uel ui extrinsecus illata funditus pereant, uel inuersa
temporis condicione, de florente statu repente decidant.
Nihil enim malis artibus partum poterit esse diuturnum,
nam hominum inuidia flagrat et Dei offensionem acerrime
concitat, et omnia humana, quae non sunt ex diuinis nexa,
momento temporis effluunt. Si igitur amplas opes expetis
et honores stabiles adipisci desideras, in Deo omnem spem
rerum tuarum colloca; et in studium sanctorum operum
uigilanter incumbe; in telluris tuae possessione, hoc est,
OPERA OMNIA TOMO IV 253

esse estado, a partir do qual lhes é possível fazer depradação nos bens alheios
por forma a, ficando possuidores das maiores riquezas, aspirarem à tirania,
cuidam que tal acontece porque esses homens carecem ou de inteligência
ou de diligência ou de determinação. Todavia, o quanto são inclinados a
este modo de pensar demonstra-o a avaliação mediante a qual olham com
admiração para aqueles que através de ruins manhas adquiriram as maiores
riquezas, e o considerarem-nos homens diligentes, vigilantes e fortes, muitíssimo
merecedores das mais elevadas honrarias. Com efeito, são de parecer que a
justiça assenta bem em pessoas pusilânimes e de ânimo apoucado, às quais não
é lícito esperarem impunidade, devido à sua fraqueza, ao passo que crêem que
a injustiça é própria das almas mais arrojadas e ambiciosas, que são capazes
de esquivar-se aos castigos das leis, ou mediante a sua inteligência, ou graças
a favores ou ao seu poder, [229] e de, sem temor ou escrúpulo, apossarem-
se daquilo que obtiveram pela violência ou pelo embuste. Por conseguinte,
consideram como um varão grande e deveras venturoso aquele que é tão forte
que impunemente se apodera das riquezas alheias e desse modo se guinda
às mais elevadas honrarias, pois de ordinário os mais altos cargos do estado
são concedidos às maiores riquezas. David empenha-se em destruir esta
opinião profundamente gravada nos entendimentos humanos, fazendo-o aqui,
no salmo que temos entre mãos, tal como o faz em outras passagens. Com
efeito, mostra-nos o grande número de males de que se encontra atribulada
a existência dos ímpios; os grandes cuidados que a enleiam; os grandes
trabalhos que a assoberbam; e, enfim, os grandes tormentos com que deve ser
castigada. E, pelo contrário, como são prósperos e bem-aventurados aqueles
aos quais nenhuns proveitos e vantagens são capazes de levar a transgredirem
as determinações da lei de Deus. Por isso, diz:
Que não te ocorra a ideia de mui indignamente admitir que os homens
maléficos se te avantajam em riquezas e poder, e pensares que com eles
incessantemente de tal maneira te cumpre contender que com um desvelo
e esforço semelhantes alcanças o mesmo grau de honra: para que não
procures imitar os que edificam as obras da iniquidade. Com efeito,
tal como o feno, muitíssimo prestes hão de ser ceifados, e, tal como a
verde erva, queimada pelos sóis, hão de perder seu viço e vigor, de tal
maneira que, ou totalmente perecem devido a uma violência inferida de
fora, ou de súbito decaem de uma posição próspera por causa de uma
mudança das condições do tempo. É que não poderá durar muito qualquer
coisa que se obteve por meios ruins, pois atiça a inveja dos homens e
violentamente desperta o descontentamento de Deus, e desvanecem-se
num ápice de tempo todas as coisas humanas que não estão entrelaçadas
com as divinas. Por conseguinte, se desejas avultadas riquezas e pretendes
obter estáveis honrarias, deposita em Deus toda a esperança de teus
negócios; e zelosamente te consagra e aplica a obras santas; faze assentar
254 D. JERÓNIMO OSÓRIO

in iustitiae fructu, stabile domicilium constitue, et aruum


mentis tuae diligenter cole, ut omnium uirtutum fruges
exares et fidem enutrias. Fides enim otio languescit et
attenuatur, exercitatione uero nutritur et alitur, et maiores
in dies uires acquirit.
Oblectare Domini spiritu, qui summis opibus cumulabit
animum tuum, neque solum te diuinis muneribus atque
beneficiis augebit, sed omnia, quae ab Illo cum fide
postulaueris, magnificentissime largietur. Si te uideris curis
afflictum et oneribus oppressum et difficultatibus implicatum,
ita ut consilium leuandae sollicitudinis minime consistat,
ne despondeas animum, sed refer ad Dominum omnes
cogitationes tuas, et fidem in Illius bonitate loca, et Is omnes
difficultates expediet et tibi uiam salutis et dignitatis curabit,
ut sine offensione cursum uitae conficias. Cum fueris ab
inuidis criminis insimulatus, dignitatis tuae patrocinium
suscipiet et in lucem adducet iustitiam tuam atque perficiet
ut ius tuum sit meridiana luce clarius. Nullo animi motu
perturberis. Sile tantum et, Domini fiducia nixus, tranquillitate
perfruere, et euentum diuini consilii fidenter exspecta; neque,
cum res indignis prospere cadunt, angaris; nec homini, qui
fraudibus ad honores obrepsit, inuideas. Iracundiam remitte;
indignationem contine; noli nimium, cum animaduertis
indignos augeri opibus, irasci; neque [230] illius studia,
qui uel adulationibus uel dolis uel calumniis ad honores
euectus est, ulla spe similis condicionis adductus, imiteris,
ut aliquod maleficium designes. Malefici enim, quamuis
opibus et principum gratia floreant, exscindentur; qui uero
spem habent in Domino, hereditatis legitimae possessionem
perpetuo retinebunt.
Intra breuissimum tempus impii fallax status et fucatus
splendor euanuit; si locum, ubi constiterat, intueri
uelis, ne uestigium quidem illius apparebit. At mansueti
possidebunt terram sempiternamque hereditatem adibunt
et, ex tranquillissimae pacis fructu bonorumque omnium
affluentia, summam uoluptatem percipient. Impius exitium
iusti cogitatione intima machinatur; dentibus stridet; minas
feroces iactat et pericula extremae calamitatis intendit.
Dominus autem ridet hominis furentis insaniam. Videt
enim diem illus quo, omni spe salutis incisa, miserae uitae
obitu et cruciatu sempiterno est scelerum poenas daturus,
appropinquare. Gladium distringunt impii; arcum intendunt
OPERA OMNIA TOMO IV 255

morada estável na terra que adquiriste, isto é, no fruto da justiça, e cultiva


diligentemente a leiva do teu espírito, para colheres os frutos de todas
as virtudes e alimentares a fé. De facto, a fé na ociosidade enlanguesce
e torna-se fraca, mas alimenta-se e medra com o exercício, adquirindo
maiores forças de dia para dia.
Deleita-te com o espírito do Senhor, que há de encher a tua alma
com as maiores riquezas, e não só te acrescentará com mercês e
benefícios divinos, mas também mui liberalmente te há de oferecer
tudo que com fé Lhe pedires. Se te vires atribulado por cuidados e
oprimido por cargas e enleado por dificuldades, de tal maneira que
a prudência não baste para aliviar a inquietação, não descoroçoes,
mas expõe ao Senhor todos os teus pensamentos, e confia na Sua
bondade, e Ele livrar-te-á de todas as dificuldades e aparelhará para
ti o caminho da salvação e da dignidade, por forma a concluíres
sem reveses a carreira da tua vida. Quando os invejosos falsamente
te acusarem de crime, tomará a defesa da tua dignidade e porá em
evidência a tua justiça e fará que os teus direitos fiquem mais claros
que a luz do meio-dia. Não serás inquietado por nenhuma perturbação
de ânimo. Cala somente e, apoiado na confiança do Senhor, goza da
tranquilidade, e espera confiante o resultado da decisão divina; e não
te angusties quando a prosperidade sorrir aos que a não merecem nem
sintas inveja do homem que alcançou as honrarias mediante sinuosos
enganos. Refreia a ira; contém as mostras de indignação; que não te
tome sanha sobeja ao veres os indignos prosperarem; nem [230] imites,
induzido por alguma esperança de conseguir uma situação semelhante,
as diligências daquele que se guindou a lugares honrosos mediante
adulação ou enganos ou calúnias. É que os que fazem o mal, embora
prosperem em riquezas e na graça dos príncipes, serão aniquilados; ao
passo que os que têm esperança no Senhor conservarão para sempre
a posse da legítima herança.
Em brevíssimo prazo de tempo desvaneceu-se a falsa condição e
fingido esplendor do ímpio; se quiseres ver o lugar onde vivera, nem
sequer dele aparecerão as ruínas. Mas os mansos possuirão a terra e
encaminhar-se-ão para a herança eterna e gozarão o prazer supremo,
que lhes virá do fruto da mais tranquila paz e da abundância de todos
os bens. O ímpio no seu íntimo maquina a perdição do justo; range
com os dentes; ameaça-o ferozmente e esforça-se por fazê-lo sofrer a
derradeira ruína. Deus, porém, ri-se da loucura do homem desvairado.
É que vê aproximar-se o dia em que, suprimida toda a esperança de
salvação, com a morte da mofina vida e com os tormentos sempiternos
há de castigar-lhe os crimes. Os ímpios empunham a espada; retesam o
arco para com mortífera frecha matarem o pobre e o indigente e com a
256 D. JERÓNIMO OSÓRIO

ut pauperem et egenum mortifero telo conficiant et eos, qui


integritatis et iustitiae uiam tenent, crudelissime iugulent. At
eorum gladius in ipsos conuersus eorum corda transfiget et
arcus eorum perfringetur. Nec est enim permissum impiis
ut illis malum inferant qui in Dei praesidio latent, immo,
quo pertinacius in eo perseuerant homines perditissimi, ut
bonorum statum euertant, eo clarius eorum nomen illustrant
et gloriam inuiti multis incrementis amplificant.
At inquiet aliquis fortasse esse nimis indignum malos
diuitiis abundare, bonos autem plerumque tenues opes
habere. Hoc qui dixerit non intellegit diuitias animo,
non arca, contineri, et ita fieri ut iustus in paruis opibus
multo opulentior sit impiis, qui domi pecuniae ingentes
aceruos inuidiose custodiunt. Iusti enim, cum mediocri
uictu contenti sint, non magnas opes exquirunt, impii
uero, cum nihil illis satis esse possit, indigentia perpetuo
cruciantur, magis enim eos torquet id quod non habent quam
delectet id quod habent. Deinde, iusti in suos et suorum
usus opes suas conferunt, at impii, ne cumulum aliqua
ex parte diruant, opes suas non audent attingere. Itaque
non diuitiarum domini, sed mancipia sunt. Postremo, cum
iusti bonis uerissimis expleti sint, in summa iucunditate
uersantur; at impii, cum omnibus bonis animi nudati sint
et corporis commodis, propter infinitam cupiditatem, satiari
non possint, et, conscientia sceleris oppressi, animi angore
crucientur: nullum solidum fructum ex diuitiis immanibus
umquam percipient.
Vnde clare perspicitur quanto ditiores sint iusti pauperes
quam impiis nimis opulenti. Si enim opes ad status defensionem
expetuntur, impiorum uires perfringentur et iustos Dominus
ipse tuebitur et sustentabit. Si ad uitae propagationem et
posteritatis amplum patrimonium omni studio et sollicitudine
comparantur, uita hominum qui pure et caste et integre
actiones moderantur et numquam a Diuinae legis imperio
deficiunt, gratia diuina fulcitur et [231] hereditas eorum
erit sempiterna. Si ad uitae decus et elegantiam abundantia
pecuniae desideratur, iusti nulla umquam dedecoris infamia
notabantur et, cum Dominus iusto iudicio uastitatem rebus
humanis intulerit, ab Illius ope non erunt derelicti et in diebus
famis saturabuntur: quod impiis minime continget. Quamuis
enim opibus summis oppleti sint, tamen egestate contabescent,
et omnes qui oderunt Dominum, tamquam adeps agnorum
OPERA OMNIA TOMO IV 257

maior crueza degolarem os que seguem a senda da pureza e da justiça.


Mas a sua espada, voltada contra eles mesmos, há de trespassar-lhes
os corações e o seu arco quebrar-se-á. Na verdade, aos ímpios não foi
permitido que infiram o mal àqueles que se ocultam sob a proteção
de Deus, e até, quanto mais obstinadamente os perversíssimos homens
perseverarem em destruir a posição dos bons, tanto mais brilhantemente
iluminam o nome deles e com muitos acréscimos (mau grado seu) lhes
aumentam a glória.
Mas retrucará talvez alguém que é muito impróprio que os maus abundem
em riquezas, ao passo que os bons as mais das vezes têm parcos haveres.
Quem isto disser não entende que as riquezas se guardam não em arcas, mas
na alma, e assim acontece que o justo nas suas pequenas riquezas é muito
mais opulento que os ímpios que em sua casa guardam ciosamente imensas
quantidades de dinheiro. É que os justos, uma vez que se satisfazem com um
mediano passadio, não procuram obter grandes riquezas, ao passo que os
ímpios, como nada os consegue satisfazer, são perpetuamente atormentados
pela indigência, pois mais os tortura aquilo que não têm do que os deleita
aquilo que possuem. Em segundo lugar, os justos empregam as suas riquezas
em benefício seu e dos seus, ao passo que os ímpios não se atrevem a tocar
nas suas riquezas, para não lhe diminuírem em alguma quantidade o montante.
Por isso não são donos das riquezas, mas seus escravos. Finalmente, uma vez
que os justos se encontram repletos dos bens mais verdadeiros, a sua vida
decorre no mais completo contentamento, ao passo que os ímpios, como se
encontram despojados de todos os bens do espírito, e não conseguem saciar-
se com todas as comodidades corporais, devido à sua infinita cobiça, e vivem
as torturas da ansiedade, acabrunhados pela consciência dos seus crimes:
jamais hão de colher algum consistente fruto das suas desumanas riquezas.
Daqui claramente se colige quão mais ricos são os justos pobres do que
os ímpios sobremaneira opulentos. Com efeito, se se requerem riquezas
para a defensa da posição, as forças dos ímpios serão quebrantadas e o
próprio Senhor há de acudir e socorrer os justos. Se aqueles com todo
o desvelo e solicitude adquirem um vasto património para extensão da
vida e da descendência, a vida dos homens que regulam os seus atos pela
pureza, santidade e honestidade e que nunca se desviam do senhorio da
lei divina, apoia-se na graça divina e [231] a herança deles será eterna.
Se se pretende abundância de dinheiro para lustre e dignidade de vida,
os justos jamais serão desacreditados por nenhuma nota de infamante
desdouro e, quando o Senhor por Seu justo juízo inferir a destruição sobre
a humanidade, não serão privados da Sua ajuda e serão saciados nos
dias da fome, algo que não acontecerá com os ímpios. É que, embora se
encontrem atochados das maiores riquezas, mesmo assim hão de mirrar-
se à míngua, e todos os que odeiam o Senhor ficarão reduzidos a nada,
258 D. JERÓNIMO OSÓRIO

qui in templo quotidianis flammis absumitur, ad nihilum


recident, tamquam fumus euanescent, et ita euanescent, ut
intellegatur illorum euersionem esse Deo minime ingratum
sacrificium. Ea mamque et iustitiae munus administratur, et
misericordia bonis tributa clarius splendescit.
Sic autem impius, eo etiam tempore quo opibus affluere
uidetur, est egentissimus. Mutuo namque accipit, et non
soluit, siue quia fidem sanctam non habet, et eam seruare
nullo modo uult; siue quia non potest, imperio cupiditatis
adstrictus, attrectare pecuniam. Et ita fit ut, quamuis interdum
fidem liberare studeat, ab ea uoluntate, auaritiae summae
tyrannide, reuocetur. At iustus ex sua etiam tenuitate in
egentes frequenter insumit et benigne facultates suas illis,
quibus est opus, impertit. Sic autem habet caros Dominus
omnes iustos ut illis etiam ualde benigne prospiciat qui
sunt iniustos, eo quod iusti sunt uoluntate ualde propensi.
Qui enim iustos laudant in terra uiuentium hereditatem
sempiternam obtinebunt; qui eos uituperant, exscindentur,
ut, a uita sempiterna seclusi, mortis sempiternae tenebris
obruantur, laude namque et uituperio, bonorum pietas ab
impietate distinguitur. Nemo enim potest uere et ex animo
iustitiam laudare nisi ipsius iustitiae elegantiam et decus
amauerit; nemo similiter eam uituperare conabitur nisi
fuerit iniustitiae durissimis uinculis adstrictus. Praetera,
tanta est Diuinae probitatis cum hominibus iustis amicitia ut
omnium etiam rerum sit inter Deum et pios homines summa
coniunctio. Sic autem fit ut, qui pios homines laudat, Deum
laudet; qui illis maledicit, Deo, pietatis auctori, maledicat.
Nec enim iustitia aliunde ad homines quam a Deo promanat:
unde sequitur eum, qui iustitiam exsecratur, opus Diuinum,
omnium clarissimum, exsecrari.
A Domino enim uiri magni gressus diriguntur et illius uia,
qui iustitiam amat, diuina gratia comprobatur. Cum ceciderit,
non erit ea ruina grauiter oppressus, quia Dominus illum
iacentem confestim excitabit manuque Sua tuebitur. Puer fui,
et consenui, et numquam uidi iustum a Domino derelictum
nec illius posteritatem emendicare panem. Plerumque enim
bonorum filii sunt patriae bonitatis heredes et ita, cum parentum
uestigiis insistant, fieri non potest ut a Deo deserantur. Vnde
colligitur quam magnum et amplum sit uirtutis et iustitiae
patrimonium: nempe, quod posteritatem uniuersam egregie
locupletet. Sic autem fit ut iustus misericordia semper utatur,
OPERA OMNIA TOMO IV 259

como a gordura dos cordeiros que todos os dias as chamas devoram no


templo, e hão de desvanecer-se como fumo, e assim se hão de esfumar
para que se entenda que a sua destruição é um sacrifício deveras grato a
Deus. Com efeito, desta forma não só se cumpre a função da justiça, como
mais luminosamente resplandece a misericórdia concedida aos bons.
Ora, assim o ímpio, até quando parece possuir riquezas em abundância,
encontra-se na mais completa penúria. De facto, recebe em depósito, e
não paga, ou porque não respeita a inviolabilidade da palavra e de forma
alguma a quer respeitar, ou porque não pode, subjugado pela tirania da
cobiça, pegar no dinheiro para devolvê-lo. E deste modo acontece que,
embora por vezes se esforce por cumprir a palavra, desvia-se desse propósito
dominado pelo senhorio da avareza. O justo, porém, frequentemente até
tira do pouco que tem para gastá-lo com os necessitados e generosamente
reparte os seus recursos com aqueles que precisam. Ora, o Senhor de tal
sorte ama todos os justos que até vela com grande bondade por aqueles que
sentem boas disposições em relação aos justos, só por serem justos. É que
os que louvam os justos hão de alcançar uma herança eterna na terra dos
que vivem; os que os vituperam, hão de ser destruídos, de tal maneira que,
excluídos da vida eterna, hão de mergulhar nas imortais trevas da morte,
porquanto mediante o encómio e o vitupério se destrinça a piedade dos
bons da impiedade. Com efeito, ninguém pode com verdade e sinceramente
louvar a justiça se não amar a beleza e lustre da mesma justiça; tal como,
igualmente, ninguém se empenhará em vituperá-la, se não se encontrar
senhoreado pelo duríssimo jugo da injustiça. Além disso, é tão grande a
amizade da bondade divina com os homens justos que até existe a mais
completa partilha de todas as coisas entre Deus e os homens piedosos.
Ora, deste modo acontece que, quem louva os homens piedosos, louva a
Deus; quem deles fala mal, fala mal de Deus, autor da piedade. De facto,
a justiça não provém para os homens de outra fonte que não seja Deus,
seguindo-se daqui que quem abomina a justiça, obra de Deus, abomina a
mais nobre de todas as coisas.
Na verdade, as passadas do varão grande são dirigidas pelo Senhor
e o caminho daquele que ama a justiça é confirmado pela graça divina.
Quando cair, não ficará gravemente abalado com este acidente, porque o
Senhor imediatamente o erguerá do chão e ampará-lo-á com a Sua mão.
Fui criança e envelheci, e nunca vi o justo ser abandonado pelo Senhor
nem a sua descendência mendigar o pão. É que as mais das vezes os filhos
dos bons herdam a bondade dos pais e assim, ao seguirem as pisadas dos
progenitores, é impossível que Deus os abandone. Daqui se conclui como
é grande e avultado o património da virtude e da justiça, pois enriquece de
modo extraordinário toda a descendência. Ora, deste modo acontece que
o justo sempre tem a misericórdia à sua disposição, e quer liberalmente
260 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et uel benigne tribuat egenti, uel cum facilitate mutuum det


omni a se bono animo postulanti et genus illius erit [232]
a Domino bonis egregie cumulatum. Summa igitur eximiae
felicitatis, Dei coniunctione et amicitia continetur. Quam si
tueri uis, contine te ab omni maleficio; et iuua omnem, quem
poteris, beneficio; et sic demum hereditatem sempiternam
adibis. Cum enim Dominus amet iudicium, maleficium debito
supplicio uindicabit; et, cum misericordes eximie diligat,
beneficia sempiterno praemio munerabit. Numquam enim
sanctos Suos deseret, sed illos perpetuo tuebitur et conseruabit,
impiorumque genus funditus interibit.
Porro autem, cum omnes homines studio immortalitatis
incensi rapiantur, et id natura mortalis assequi nulla ratione
possit, soli iusti compotes immortalitatis erunt. Terrae
namque felicissimae heredes exsistent; illius commodis aeuo
sempiterno cum summa animi tranquillitate perfruentur.
Operae pretium autem erit attendere quae sint in summa
hominis iusti cogitationes, quae uitae consilia. Os illius in
uerissimae sapientiae meditatione uersatur et lingua eius
iudicium continua oratione pronuntiat. Cum enim id quod
inclusum in animo latet necessario tandem foras erumpat, et
ita semper oratio cum animi habitu et affectione consentiat, et
iustus in studio legis diuinae, qua summa sapientia continetur,
assiduus sit, mentemque gerat diuinis opibus refertam, necesse
est ut orationem fugiat noxiam et pestilentem et importunam
et petulantem et cum turpitudine et flagitio coniunctam,
eaque tantum crebris sermonibus usurpet quae ex thesauris
insitae sapientiae depromuntur, omnesque illius sententiae ad
exactissimam iustitiae normam dirigantur. Lex enim Domini
in illius animo incisa est et ita fieri nequit ut illius uestigia,
tamquam hominis praecipitis et deuii, prolabantur.
Obseruat impius oculis iustum ut illi necem machinetur;
Dominus tamen hominem, aequitatis gloria praecellentem,
minime deseret, nec hominis scelestissimi manibus opprimi
patietur illum quem summa cura tuendum suscepit. Nec
improbitatis calumnia uires ullas habebit, cum enim iustus,
contra ius et fas, sceleris insimulatus exstiterit, Domini
sententia liberabitur. Itaque neque uis neque dolus nec ullus
denique conatus, in iusti pestem et perniciem comparatus,
illum exitum, quem perditi homines sperabant, consequetur,
cum Dominus et uim comprimat et fraudes eludat et
calumniam refutet. Quid igitur est amplius requirendum
OPERA OMNIA TOMO IV 261

ofereça ao necessitado, quer de boa vontade empreste a quem quer que


lhe peça, o Senhor há de singularmente recompensar a sua linhagem [232]
com todos os bens. Por conseguinte, o supra-sumo da ventura cifra-se na
união e amizade com Deus. Se a quiseres preservar, livra-te de praticar
qualquer má ação; e a todo aquele a quem puderes, ajuda-o com os teus
benefícios; e só assim alcançarás a sempiterna herança. Com efeito, como
Deus ama a justiça, vingará com a merecida pena o malefício; e como
estima de modo particular os misericordiosos, recompensará os benefícios
com eterno prémio. Na verdade, nunca abandonará os Seus santos, mas
deles cuidará e os conservará perpetuamente, destruindo totalmente a
raça dos ímpios.
Ora, por outro lado, sendo certo que todos os homens se sentem vivamente
senhoreados pelo desejo de imortalidade, algo que a natureza mortal de
modo algum pode conseguir, apenas os justos participarão da imortalidade.
Com efeito, tornar-se-ão herdeiros da mais venturosa das terras; com a
mais completa tranquilidade de alma gozarão das suas vantagens por toda
a eternidade. Ora, merecerá a pena prestar atenção a quais são em síntese
os pensamentos do homem justo e quais as suas deliberações em relação à
vida. A boca dele ocupa-se na meditação da mais verdadeira sabedoria e a
sua língua com palavras incessantes dá a conhecer a sensatez. Com efeito,
uma vez que aquilo que se mantém oculto na alma é forçoso que acabe por
sair, e que deste modo as palavras estejam sempre de acordo com os afetos
e sentir da alma, e que o justo seja assíduo no zelo da lei divina, na qual
se encerra a suprema sabedoria, e possua um entendimento transbordante
de riquezas divinas, segue-se necessariamente que foge de uma linguagem
nociva e pestilencial, impertinente e arrogante, unida à torpeza e infâmia, e
se sirva apenas das ricas palavras que procedem dos tesoiros da congénita
sabedoria, e que todas as suas opiniões estejam conformadas de acordo
com a estrita norma da justiça. É que a lei do Senhor encontra-se gravada
na sua alma e assim torna-se impossível que os seus pés resvalem, como
os de um homem que tropeça e sai do caminho.
O ímpio fita atentamente o justo para maquinar a sua morte; todavia o
Senhor não abandonará o homem que se avantaja na glória da equidade,
nem consentirá que seja oprimido pelas mãos de um homem sacrílego
aquele a quem decidiu proteger com o máximo cuidado. Tão-pouco terá
eficácia alguma a calúnia da desonestidade, pois, quando o justo, contra
o que é lícito e de direito, for falsamente acusado de crime, há de ser
libertado por sentença do Senhor. E por isso nem a força nem o engano
nem enfim qualquer tentativa realizada para a ruína e perdição do justo há
de conseguir aquele resultado que os perversos homens esperavam, uma
vez que o Senhor contém a força, frustra os enganos e rechaça a calúnia.
Por conseguinte, que mais deve pedir aquele que é senhoreado pelo desejo
262 D. JERÓNIMO OSÓRIO

illi qui bene beateque uiuendi desiderio tenetur, quam ut


in Dei praesidio delitescat? Vita enim, salus, lux, dignitas,
pax, diuitiae, uoluptates, summa tranquillitas omniaque
diuina atque sempiterna bona Illius gratia continentur. In
Domino igitur spem colloca, et in uiam, quam tibi monstrat,
ingredere nec ab ea in alterutram partem declines, et Is te in
excelso dignitatis gradu locabit, ut hereditatem sempiternae
regionis obtineas. Tum demum cum tu, opibus diuinis
circumfluens, impiorum exitium uideris, quam sint opes
iniquitate quaesitae detestandae et omnes labores pro iustitiae
sanctitate praeferendi longe clarius cernes.
Vidi quidem impium robore ualentem et sic altitudine
[233] popularis dignitatis elatum ut cum cedri proceritate
contenderet, honorum titulis, tamquam frondibus uiridissimis,
late diffusis, subiectam planitiem opacantem, ut nihil cogitari
posse uideretur illustrius, cum subito omnia conuersa sunt et
omnis illa species decoris et amplitudinis ex oculis emigrauit,
ut nullam sui memoriam in uita reliquerit. Dicebam igitur:
Quo redacta est illa diuitiarum affluentia? Illa supremi
honoris insolentia? Illa stipantium hominum multitudo? –
Omnia tandem morte deleta et obliuione sepulta iacent! Non
locus apparet; non splendoris effigies; non dignitatis regiae
simulacrum: omnia mors et puluis iniectus occupauit. Cum
igitur tam fluxa et inania sint ista quae hominum uulgus
admiratur, reliquum est ut illa contemnamus et, quae nullis
umquam saeculis interitura sunt, summo studio, cura, uigilantia
consectemur. Vitae igitur integritatem conserua; splendorem
aequitatis intuere; et in posterum aciem mentis intende, ut
intellegas quae praemia tandem sint uiro iusto constituta. Est
enim illi pax, hoc est, absoluta bonorum omnium complexio
atque sempiterna felicitas, a Deo proposita. At omnes qui ab
imperio Domini desciuerunt, simul euertentur et impiorum
finis erit sempiternum excidium; at iustorum salus constans
et stabilis in omni aeternitate permanebit, quia non terrenis
opibus, sed diuinis, innititur, nec est ab hominibus, sed a
Deo, constituta.
Ergo, cum neque diuina uirtus infringi neque fides labare
umquam possit, sequitur necessario ut salus quam Is amicis
Suis afferre solet interire non possit. Nam, si eo etiam tempore
quo manent in hac uita mortali, morbis innumerabilibus
exposita, diuina tamen uirtute et robore firmati sunt, ita ut
ex omnibus aerumnis clarissimam uictoriam consequantur,
OPERA OMNIA TOMO IV 263

de viver bem e venturosamente do que ocultar-se sob a proteção de Deus?


Com efeito, na graça d' Ele contêm-se a vida, a salvação, a luz, a dignidade,
a paz, as riquezas, os prazeres, a suprema tranquilidade e todos os bens
santos e sempiternos. Por conseguinte, deposita no Senhor a esperança,
e avança pela senda que te mostra e não te afastes para um ou o outro
lado dela, e Ele há de colocar-te no mais elevado grau de dignidade, para
que alcances a herança da região sempiterna. Como são abomináveis as
riquezas adquiridas através da iniquidade e como são de longe preferíveis
todos os trabalhos que se sofrem pela santidade da justiça só o enxergarás
com maior nitidez quando, atochado com todas riquezas divinas, assistires
à ruína dos ímpios.
É certo que vi o ímpio ressumante de forças e de tal maneira ensoberbecido
com a altura [233] do prestígio popular que, por causa dos títulos das
honrarias, pedia meças à agigantada talha do cedro, com viçosas ramagens,
que profusamente se expandem, cobrindo de sombras o terreno sotoposto,
de guisa tal que parecia que não poderia imaginar-se nada de mais ilustre,
quando de súbito tudo se transformou e toda aquela aparência de honra
e grandiosidade se sumiu de diante dos olhos, por forma que não deixou
de si no mundo a menor lembrança. Por consequência, eu dizia: Para onde
se retirou aquela abundância de riquezas? Aquela soberba da suprema
dignidade? Aquela multidão de homens que lhe faziam séquito? – Tudo jaz
ao cabo destruído pela morte e sepultado pelo esquecimento! O lugar não
aparece; nem a imagem do esplendor; nem a estátua da dignidade régia:
a morte e as esparzidas cinzas tudo ocuparam. Por conseguinte, uma vez
que são tão passageiras e vãs essas coisas que o vulgo admira, resta que
as desprezemos e que com o máximo desvelo, cuidado e atenção vamos
empós daquelas que jamais hão de perecer. Portanto, preserva a pureza
de vida; põe os olhos no esplendor da equidade e aplica a tua penetração
intelectual ao porvir, para que entendas quais os prémios que ao cabo
estão destinados ao varão justo. É que Deus ofereceu-lhe a paz, isto é, a
completa reunião de todos os bens e a ventura sempiterna. Todos, porém,
os que se afastaram do mando do Senhor, do mesmo passo serão destruídos
e o fim dos ímpios será o eterno aniquilamento; mas a salvação dos justos
será firme e estável, há de durar por toda a eternidade, porque se apoia,
não nas riquezas terrenas, mas nas divinas, e foi estabelecida, não pelos
homens, mas por Deus.
Logo, uma vez que nem a fortaleza divina pode quebrar-se nem vacilar
jamais a ajuda de Deus, segue-se forçosamente que a salvação que Ele
costuma oferecer aos Seus amigos não pode faltar. Com efeito, se até
durante este tempo em que permanecem nesta vida mortal, exposta a
inumeráveis moléstias, mesmo assim eles são fortalecidos com o vigor e
virtude divinas, de tal maneira que alcançam uma nobilíssima vitória de
264 D. JERÓNIMO OSÓRIO

quid erit existimandum de futura illa pace qua tandem, cum


bonorum omnium copia, perfruentur? Semper enim Deus illos
adiuuit et ex omnibus malis eripuit; eripuit illos ex impiorum
manibus eisque salutem attulit, quia spem suam non in humano
praesidio, sed in Diuino, semper positam habuerunt.

Domine, ne in furore Tuo arguas me.


Psal. 37. Apud Heb. 38

In hoc diuino uiro mirum humanae imbecillitatis exemplum


cum clarissimo diuinae clementiae testimonio coniunctum
habemus, ut, et casum timeamus et, si lapsi fuerimus,
spem salutis non abiiciamus, sed semper Illius immensae
misericordiae confidamus qui numquam animi supplicis et
abiecti postulata repudiat.
Dauid uidit se opera filii perditissimi a suis desertum, regno
spoliatum, in fugam compulsum, plagis afflictum, conuiciis
proscissum multorumque derisione et contumelia laceratum.
Audiuit domum suam esse insigni dedecore maculatam; eos,
quos multis beneficiis affecerat, hostes in se acerbissimos [234]
expertus est; animos subditorum, a quibus fides erat in rebus
asperis exspectanda, non perfidia metuenda, sic immutatos esse
sensit, ut omnes ferme ab eo, cuius inclinatam fortunam uitebant,
deficerent ad filiique nomen, cuius florentissimam condicionem
admirabantur, se per summum scelus adiungerent. Omnia haec
summe dolenda uidebantur, sed nihil eum magis angebat aut
cruciatu grauioris doloris afflictabat quam peccati conscientia.
Recordabatur enim se adulterio et caede innocentibus illata
in offensionem grauissimam sanctissimi numinis incidisse et
idcirco, cum aerumnis omnibus premeretur, multo magis eum
causa doloris quam dolor ipse cruciatur. Non tamen spem
deponit neque fidem suam languescere et attenuari sinit, sed
animi summa constantia et firmitate ad Deum preces fundit,
cui sacrificium cordis afflicti et ualde paenitentis immolauit. In
hac tamen calamitate quam perferebat gessit etiam imaginem
Christi, non pro peccatis suis, sed pro alienis, quae tamen, ui
caritatis impulsus, ut sua lamentabatur, acerbissime laborantis.
Sic enim, atque adeo multo crudelius, fuit proditus, expulsus
et eiectus, a suis derelictus, a multitudine derisus, hostium
contumeliis atrocissime uiolatus, ad summumque tandem
OPERA OMNIA TOMO IV 265

todas as provações, que deverá pensar-se acerca daquela paz vindoura,


da qual ao cabo, com abundância de todos os bens, hão de gozar? Com
efeito, Deus ajudou-os sempre e arrancou-os de todos os males; arrancou-
os das mãos dos ímpios e oferece-lhes a salvação, porque tiveram sempre
a sua esperança depositada, não na ajuda humana, mas na divina.

SALMO 37
(38 entre os Hebreus)
Senhor, não me repreendas no Teu furor.

Neste var ão de Deus possuímos um mar avilhoso exemplo da


debilidade humana unido a um claríssimo testemunho da clemência
divina, para que, não só nos arreceemos da queda e, se tivermos caído,
não renunciemos à esperança de salvação, mas também confiemos
sempre na imensa misericórdia d'Aquele que nunca rejeita os pedidos
de uma alma suplicante e abatida.
David viu que, por culpa do perversíssimo filho, foi abandonado pelos
seus, espoliado do reino, forçado à fuga, atribulado pelas desgraças,
difamado pelos insultos e atormentado pela derrisão e afronta de muitos.
Ouviu que a sua casa fora manchada por enorme ignomínia; teve que
suportar como aspérrimos inimigos aqueles a quem concedera inúmeros
benefícios; [234] sentiu que de tal modo se tinham mudado os ânimos dos
súbditos – dos quais não era de esperar perfídia, mas sim lealdade nas
adversidades –, que quase todos abandonaram aquele cuja boa estrela se
achava em declínio e se ligaram ao partido do filho, cuja prosperíssima
condição olhavam com admiração. Semelhava que tudo isto era penoso
em extremo grau, mas nada o atormentava mais ou o afligia com um
sofrimento mais intensamente doloroso do que a consciência do pecado.
De facto, recordava que, através do adultério e do assassínio perpetrado
contra inocentes, tinha incorrido em gravíssima ofensa à potestade de
Deus e, por isso, ao ser acabrunhado por toda a sorte de penalidades,
torturava-o muito mais a causa da dor do que a própria dor. Todavia, não
dá de mão à esperança nem deixa que a sua fé afrouxe ou se entibie, mas,
com toda a constância e firmeza, dirige preces a Deus, a quem imolou
o sacrifício de um coração abatido e sobremodo repeso. Todavia, nesta
desgraça que suportava, representou também a figura de Cristo, o qual
padecia acerbamente, não por culpa dos seus pecados, mas sim pelos
alheios, os quais, porém, levado pelo impulso da caridade, chorava como
próprios. É que de idêntico modo – ou antes, com muito maior crueza
– foi atraiçoado, repelido e repudiado, desamparado pelos seus, alvo da
irrisão da multidão, injuriado de modo atroz pelos insultos dos inimigos
266 D. JERÓNIMO OSÓRIO

supplicium, cum summa (ut apparebat) ignominia perductus.


Nos tamen imaginem Christi, plagis contusam et debilitatam,
ita uideamus ut interim in ea Christi supplicia contemplemur.
Ait enim Dauid:
Domine, scio me multo grauiora supplicia commeruisse,
nam fidem et officium prodidi; lectum genialem hominis
fidelissimi adulterio maculaui exemploque meo multis
materiam libidinis effrenatae praebui; necem postremo illi,
quem tam indigna iniuria laesi, et comitibus illius, intuli, et,
quod multo grauius est, maiestatem Tuam immensam, cum
tam multis a Te beneficiis auctus et ornatus exstitissem,
nimis grauiter offendi. Si igitur mecum iure summo agere
uelis, non uenia, sed sempiterno cruciatu dignissimus
sum. Sed immensa benignitas Tua meum animum iacentem
excitat et facit ut ad Te preces adhibere non dubitem. Neque
supplicium recuso, sed ut debito supplicio modum statuas
enixe contendo. Nam, si iram in me totam pro criminis
ratione profuderis et secundum iustissimam indignationem
me punire uolueris, non poterit imbecillitas mea tantam uim
doloris aequo animo sustinere, siquidem his plagis quas
mihi imposuisti sic abiectus sum ut respirare non possum.
Sagittae namque in animum meum penitus adhaeserunt et
manus Tua in me ut grauiter oppressus abiicerer uehementer
inuasit. Itaque non humanis telis, sed diuinis miserrime
confixus sum.
Nullam sanctitatis et integritatis partem ira Tua in corpore
meo reliquam fecit et indignatio Tua sic me perturbauit
ut nihil in animo aliqua ex parte quietum et tranquillum
dimiserit. Iniquitates enim transfixerunt mentem meam
illarumque poenae multo grauiores quam sustinere ullo pacto
queam me intolerabili pondere depresserunt. Cum autem
[235] non simul atque deliqui sceleris medicinam muneri
inflicto adhibendum curarem, propter hanc stultitiam meam
factum est ut ulcera mea taeterrimum odorem exhalarent
eo quod purulenta sanie contabuissent. Non enim continuo
ueniam flagitaui et quo magis curatio dilata fuit, eo mihi
malum grauius incubuit. Nunc igitur nimis afflictatus, nunc
mirandum in modum depressus, nunc lugubri ueste amictus
et atratus, incessi, et omnibus signis quo dolore animus
meus excruciaretur ostendi. Lumbi namque mei flagitio et
dedecore maculati sunt; nihil sanitatis et integritatis fuit in
corpore meo derelictum. Vitio impuritatis eneruatus, uires
OPERA OMNIA TOMO IV 267

e, ao cabo, arrastado para o máximo suplício com (na aparência) suma


ignomínia. Nós, porém, de tal sorte olhemos para a prefiguração de Cristo,
abatida pelos golpes e enfraquecida pelas desgraças, que entretanto nela
contemplemos os suplícios do próprio Cristo. Ora, David diz:
Senhor, sei que mereci suplícios muito mais pesados, pois traí a
lealdade e o dever; manchei com o adultério o leito conjugal de um
homem fidelíssimo e, com o meu exemplo, forneci a muitos pretexto para
o desenfreio da luxúria; ao cabo, inferi morte violenta àquele a quem
ultrajei com uma ofensa tão indigna, assim como aos seus companheiros,
e, o que é muito mais grave, ofendi de modo descomedidamente grave a
Tua imensa majestade, apesar de ter sido por Ti acrescentado e adornado
com tão inúmeros benefícios. Portanto, se quiseres proceder para comigo
com o máximo rigor da lei, sou completamente merecedor, não de perdão,
mas de tormento sempiterno. Mas a Tua imensa benignidade esforça o
meu espírito abatido e faz que eu não me arreceie de te oferecer preces.
Tão-pouco deixo de aceitar o suplício, mas afincadamente procuro
alcançar que estabeleças moderação ao merecido suplício. De facto, se
manifestares por inteiro a ira proporcionada ao crime e se me quiseres
punir em conformidade com a justíssima indignação, a minha fraqueza
não poderá suportar com ânimo constante um tão grande ímpeto de dor,
pois de tal modo fui derribado por estes golpes que me infligiste que
não posso respirar. Na verdade, as Tuas setas cravaram-se bem fundo
no meu espírito e a Tua mão lançou-se violentamente contra mim para
derribar quem já estava gravemente oprimido. E assim fui miseravelmente
trespassado por dardos não de homens, mas divinos.
A Tua ira nada deixou de são e de inteiro no meu corpo e a Tua
indignação de tal maneira me perturbou que não deixou no ânimo
nenhuma parcela quieta e tranquila. É que as iniquidades vararam a
minha mente, e os castigos por elas devidas, muito mais pesados do
que eu poderia de alguma forma tolerar, abateram-me com um peso
insuportável. Com efeito, porque, [235] assim que delinqui, não tratei
de aplicar a mezinha contra o pecado à ferida que me infligi, por culpa
desta minha estultícia sucedeu que as minhas chagas exalavam um
cheiro muitíssimo pestilento, visto que se tinham desfeito em sânies
purulenta. É que não supliquei incessantemente perdão e, quanto mais
se protelou a cura, tanto mais o mal se assanhou contra mim. Por
isso, agora, posto em grande aflição, agora, espantosamente oprimido,
agora avancei, trajando lúgubres vestes e coberto de luto, e fiz ver
com todos os sinais quão grande era a dor com que o meu espírito era
atormentado. De facto, o meu dorso foi manchado pela infâmia e pela
desonra; nada de são e inteiro foi deixado no meu corpo. Enfraquecido
pela deformidade da impureza, perdi as forças; quebrado por excessiva
268 D. JERÓNIMO OSÓRIO

amisi; nimioque dolore fractus, eos eiulatus ex intimis cordis


sensibus emisi ut essent cum leonis rugitubus conferendi.
Domine, quae cupiditas me incensum rapiat optime nosti,
quo gemitus mei tendant Te minime latet. Omnes enim
meae cogitationes ad Tuam gloriam referuntur, omnes mei
gemitus hanc penitus insitam in animo meo cupiditatem
testificantur, pristinum enim statum recuperare percupio, ut
omnis uita mea in nominis Tui praedicatione consumatur,
ut, cuius maiestatem grauissime multis peccatis laesi,
gratiam multis pietatis actionibus inire laborem. Quod sine
ope praesentissima Tuae benignitatis efficere nullo modo
possum. Nam, quomodo nunc res est, totus iaceo. Cor meum
circumquaque uagatur; robur meum a me semigrauit; lumen
oculorum meorum a me recessit; amici mei et necessarii mei
in plaga mea immobiles ex aduerso constiterunt: ut satis
appareret eos nihil dolore mihi impsoito commoueri. Quin
et proximi mei longe se continuerunt, ne maerorem meum
aliquo solacio subleuarent. Qui uero uitam et sanguinem
meum petunt ut laqueis intentis me implicatum tenerent
elaborabant; qui mala mihi perpetuo moliuntur, inter se
de mea pernicie coniurationem inierunt et in meditatione
fraudum et insidiarum tota die uersati sunt.
“At ego, tamquam surdus”, maledicta auribus accipere
recusabam et os meum ut conuicia refutarem non aperiebam.
Omnes igitur iniurias et omnes calumnias summa patientia
tolerabam nec ulla indignatione commotus sum, ut eos,
qui me adeo crudeliter insectabantur, ulla uerborum
contumelia perstringerem et, quasi illis criminibus quibus
me condemnabant euictus essem, et nullam ad refellendum
facultatem haberem, et omni dicendi ratione qua maledicta
obiecta diluerem omnino carerem, ita silui perinde atque
si nihil auditione percepissem aut respondere minime
potuissem.
Tibi enim causam meam reseruaui firmaque spes me
tenet futurum ut Tu pro me respondeas et dignitati meae
iudicio Tuo satisfacias et, cum in rebus afflictis magnus ex
inimicorum gaudio et derisione doloris cumulus accedat,
hanc orationem apud Te habui, qua postulabam ne laetando
causam in mea calamitate inimicis meis afferres, qui sic
sunt inter se ad mutuam de aliquo meo casu gratulationem
intenti ut, quauis pedis mei prolapsione delectati, conueniant
[236] ut mihi nimis insolenter insultent. Ego enim ad plagas
OPERA OMNIA TOMO IV 269

dor, dos íntimos recessos do coração lancei lamentos tais que eram
comparáveis a rugidos de leão.
Senhor, conheces à perfeição o grande desejo em que me abraso e não
se Te oculta para onde se endereçam os meus gemidos. É que todos os
meus pensamentos se encaminham à Tua glória, todos os meus gemidos
testemunham este desejo, fundamente gravado no meu espírito, pois desejo
vivamente recuperar a minha primeira condição, para que toda a minha vida
seja consumida na proclamação do Teu nome e a fim de que, através de muitas
ações piedosas, me esforce por alcançar a graça daquele cuja majestade ofendi
assaz gravemente através de muitos pecados. E isso de modo algum posso
realizá-lo sem o auxílio muitíssimo eficaz da Tua indulgência. Na verdade,
tal e como as coisas agora se apresentam, acho-me inteiramente abatido. O
meu coração erra em todo o meu derredor; a minha força abandonou-me;
a luz dos meus olhos deixou-me; os meus amigos e parentes conservaram-
se imóveis, nada fazendo diante da minha desgraça: para que se visse com
toda a evidência que não sentiam qualquer comoção com a dor que me
fora infligida. E até os que me eram mais íntimos se mantiveram à distância,
para não terem de aliviar com alguma consolação a minha pena. Mas os
que reclamam o meu sangue e a minha vida empenhavam-se em colher-me
em apertados laços; os que sem cessar contra mim aparelham ruindades,
empreenderam uma conjuração para ocasionar a minha perdição e a tempo
inteiro se entregaram a maquinar enganos e ardis.
Mas eu, como um surdo, não deixava que os meus ouvidos dessem
entrada às injúrias e eu não abria a boca para rechaçar os doestos. Por
isso, suportava com imensa paciência todas as ofensas e todas as calúnias
e não me deixei abalar por nenhum sentimento de indignação, de tal sorte
que viesse a tocar com alguma palavra insultuosa aqueles que assim tão
cruelmente se encarniçavam contra mim, e, como se tivesse sido provada
a culpa daqueles crimes de que me condenavam, e carecesse de meios
para desmentir, e estivesse por inteiro desprovido de quaisquer recursos
de linguagem para fazer a refutação dos ultrajes que me assacavam,
calei-me de tal maneira como se nada houvesse escutado ou me fosse
impossível responder.
É que, para Ti reservei a minha causa e tenho a firme esperança de que
hás de tomar a minha defesa e, em Teu juízo, reparar a minha dignidade,
e como quer que, nas ocasiões de aflição, se dá grande acréscimo de
dor com o júbilo e derrisão dos inimigos, pronunciei diante de Ti estas
palavras, com as quais pedia que não desses pretexto para os meus inimigos
se alegrarem com a minha desventura, os quais de tal modo puseram o
intento em reciprocamente se felicitarem com aquela minha queda que,
comprazidos com qualquer deslize do meu pé, põem-se de acordo [236]
para me insultarem com a máxima insolência. É que eu fui exposto para
270 D. JERÓNIMO OSÓRIO

excipiendas expositus sum et dolores mihi semper imminere


perspicio; eos enim me ipsum meruisse confiteor, propter
crimina quibus alligatus sum, eaque de causa peccatum
meum me uehementer sollicitum habet: ex eo namque
dolorum tempestas impendet qua mihi subeunda est. At
inimici mei (qui me, odio flagrantes, fallacissimo testimonio
persequuntur), et uita fruuntur et opibus atque potentia
florent et eorum numerus multiplicatur, et qui malum
mihi pro bono reddunt in me totis uiribus inuehuntur eo
solum nomine quod uita mea ab eorum moribus et uita
uehementer abhorreat. Illi enim flagitia, ego puritatem
consector; illi auaritiae student, ego hominum caritate
ducor; illi sacrilegi sunt, ego summa uigilantia et alacritate
in studium pietatis incumbo; illi postremo cum terrenis
rebus addicti sint, ita mente in terra uersantur ut caelum
minime suspiciant: ego iam sic sum mente in caelo defixus
ut de terra parum cogitandum existimem. Non igitur iniuriis
offensi (non enim iniuriis a me, sed beneficiis affecti
sunt), sed uitae dissimulatione confusi atque perturbati,
in me nimis crudeliter incitantur. Non igitur me deseras,
Domine, neque, cum prope sint qui me perdere statuerunt,
Te procul amoueas: adiumentum mihi festinanter importa;
ad praesidium ferendum accelera, quando in Te solo est
remedium meae uitae constitutum.

Dixi, Custodiam uias meas.


Psal. 38. Apud Heb. 39

Cum nihil sit lingua magis mobile et incitatum e in


quamcumque partem uelis flexibile, consequenter euenit
ut nihil facilius labatur in uitium et maiore cum periculo
delinquat. Nam, ut animus aut iracundia aut odio aut inuidia
flagret aut quauis alia eiusmodi perturbatione concitetur,
reliquae partes corporis non ea celeritate motibus animi
parum considerati subseruiunt paenitendi et consilium
cum maturitate capiendi praeripiant, nec enim manus
neque pes neque quidquam aliud tanta festinatione imperio
temeritatis obtemperat ut non aliquod tempus interponi
possit quo melius saluti consulatur. At lingua repente motibus
turbulentis obsequitur; immoderatius incitata, proiicitur et,
OPERA OMNIA TOMO IV 271

que me inferissem golpes e vejo que as dores sempre rondam por perto
de mim; de facto, confesso que as mereci, em razão dos crimes de que
fui culpado e, por esta causa, o meu pecado traz-me profundamente
angustiado: é por isso que se abate sobre mim a tempestade das dores que
devo suportar. Ao invés, porém, os meus inimigos (os quais, abrasados em
ódio, me perseguem usando de testemunhos completamente falsos), não
apenas usufruem da vida, como também florescem em riquezas e poderio
e vêem engrossar-se o número destes bens, e quantos me pagam o bem
com o mal atacam-me com todas as energias com o único pretexto de que
a minha vida está em profunda contradição com os costumes e vida deles.
É que eles seguem as torpezas, e eu a pureza; eles entregam-se à avareza,
enquanto a mim me guia o amor pelos homens; eles são sacrílegos, ao passo
que eu com sumo desvelo e ardor me empenho no zelo da piedade; eles,
por derradeiro, porque se entregaram às coisas terrenas, de tal maneira
têm o espírito ocupado com a terra que é impossível erguerem os olhos
para o Céu: mas eu já de tal sorte tenho o meu espírito fixo no Céu que
cuido que não devo pensar muito acerca da terra. Por conseguinte, com
demasia e crueldade se ensanham contra mim, não porque se sintam
ofendidos pelas minhas injustiças (pois de mim não receberam injustiças,
mas benefícios), mas porque os confunde e perturba a vida de fingimento
que levam. Por isso, Senhor, não me abandones nem Te apartes para longe,
pois rondam por perto aqueles que decidiram causar-me a perdição: traz-
me prestes socorro; dá-Te pressa em auxiliar-me, visto como só em Ti foi
colocado o remédio para a minha vida.

SALMO 38
(39 entre os Hebreus)
Disse: Guardarei os meus caminhos.

Sendo certo que nada existe de mais móvel e rápido do que a língua
nem capaz de com tanta facilidade se dobrar para qualquer parte que
se pretenda, segue-se como consequência que nada mais facilmente
incorre em falta e erra com maior perigo. Com efeito, para que o ânimo
se inflame em ira, ou ódio ou inveja, ou seja movido por qualquer outra
perturbação deste género, as restantes partes do corpo não obedecem às
emoções do ânimo inconsiderado com uma rapidez tal que não concedam
um espaço de tempo para se arrepender e reconsiderar com madureza
a decisão tomada, pois nem as mãos nem os pés nem outra qualquer
coisa obedecem com tamanha celeridade que não possa interpor-se algum
tempo para melhor deliberar o que é proveitoso. A língua, porém, obedece
de imediato a emoções violentas; posta em movimento, arremessa-se
272 D. JERÓNIMO OSÓRIO

multo furentius elata, in pestem ruit iisque se difficultatibus


implicat e quibus expediri difficillimum sit. Verbum enim
furenter emissum reuocari nequit. Deinde, quod uel manu,
uel armis, uel industria geritur non ita late diffunditur
ut uniuersam multitudinem tabe pestilenti conficiat, at
lingua discordias serit, turbas ciet, bella concitat, sectas
pestilentes inducit, res publicas de statu conuellit, multas
hominum nationes exscindit, contumelias impudentissime in
sanctissimum numen intorquet. Recte igitur diuinus ille uir
uitae perfectionem in linguae moderatione ponit. Perfecti
namque uiri munus Iacobus [237] statuit esse linguae
frenum iniicere. Haec mente cum praeditus esset Dauid, in
eo uehementer eleborauit ut linguam ita coerceret ut non
solum a maledictis abstineret, uerum et, cum iure poset
aliquando asperius conuicia refutare, mallet conuicium
sustinere quam aliquod uerbum immoderatius in eos, a
quibus lacessebatur, emittere. Itaque, in illa lamentabili fuga
qua sese ab Absalonis filii scelere proripiebat, cum illi Semei,
uir scelestissimus, multa probra nimis impudenter ingessisset,
non solum os suum a maledicto continuit, uerum neminem
suorum passus est illum debitis tantae audaciae poenis
insectari. In quo quidem illum summum mansuetudinis et
humilitatis auctorem, quem mente prospiciebat, secutus est,
qui, cum impiorum hominum oratione et conuicio carperetur,
os suum non aperuit. Ait igitur:
Animo ualde obfirmato cosntitui sic omnes actiones meas a
linguae quauis immoderatione conseruare ut numquam uerbo
delinquerem. Sic igitur os meum continebo et comprimam ut,
quamuis impius coram, ut Semei fecit, me multis conuiciis
stimulet, numquam maledicta reponam. Obmutui alto silentio;
quod effari licebat, compressi; cum iure possem ius meum
tueri et bona mea commemorare uirique pestilentissimi
maledicentiam oratione refellere, silentium tamen orationi
praeposui, ne uerbum mihi ullum immoderatum excideret,
quo non hominis amentiam retunderem, sed acrius irritarem
et ipse patentiae mercedem amitterem. Neque dici potest
ideo me responsum minime dedisse quod doloris sensu
minime commotus essem, non est enim patientiae laus, sed
oppressi sensus argumentum, cum nihil dolet de illatis iniuriis
querimoniam non habere. Dolebam certe et non mediocri
motu perturbatus angebar; aestuabat cor meum in medio
pectoris mei; et cogitatione sceleris contra me a filio meo
OPERA OMNIA TOMO IV 273

de forma descomedida e, arrebatada com sobejo desvario, precipita-se


na perdição e enleia-se em complicações de que é muitíssimo difícil
desenredar-se. É que a palavra, desatinadamente pronunciada, não pode
voltar atrás. Além disso, aquilo que se faz quer com a mão, quer com as
armas, quer através da atividade não se espalha de tal forma que destrua
toda uma multidão com um pestilencial flagelo, ao passo que a língua
semeia as discórdias, agita as turbas, provoca as guerras, introduz nefastas
divisões, ocasiona quedas de países, faz desaparecer muitas nações e com
a maior desfaçatez profere baldões contra a santíssima divindade. Por
conseguinte, aquele santo varão atiladamente assenta a perfeição da vida
no comedimento da língua. Na verdade, S. Tiago ensina que é obrigação
do varão perfeito [237] refrear a língua. [Tg 3] Uma vez que se encontrava
na posse deste conhecimento, David vivamente se empenhou em de tal
maneira senhorear a língua que não só se abstinha de falar mal, mas
também, ainda que por vezes pudesse rechaçar com certa aspereza os
insultos, antes queria suportar o ultraje do que soltar alguma palavra mais
descomedida contra aqueles que o agrediam. E por isso, naquela lastimável
fuga com a qual se escapava do criminoso intento de Absalão, quando
Semei, varão sobremaneira sacrílego, com sobeja impudência contra ele
proferiu muitos insultos, não apenas se absteve de retorquir ao ultraje,
mas tão-pouco consentiu que algum dos seus justamente o castigasse com
as merecidas penas por um tão grande atrevimento. E de certo que nisto
seguiu aquele supremo autor da mansidão e da humildade, que em seu
espírito contemplava, o qual, ao ser atribulado pelas palavras e insultos
dos homens ímpios, não abriu a sua boca. Portanto, exprime-se assim:
Com firmíssima determinação me propus preservar todos os meus atos
de qualquer descomedimento de língua por forma a nunca pecar por
palavras. Por conseguinte, encerrarei a minha boca, de maneira a, ainda
que o ímpio, diante de mim, me provoque com muitos insultos, tal como
fez Semei, eu nunca lhe retruque com palavras injuriosas. Calei-me com
profundo silêncio; retive o que era lícito responder-lhe; ainda que pudesse
com toda a razão defender os meus direitos e alegar as minhas qualidades
e refutar com palavras a maledicência do perversíssimo varão, todavia
antepus o silêncio às palavras, para evitar que me escapasse alguma palavra
descomedida, com a qual não respondesse ao desvario daquele homem,
mas mais o encolerizasse e eu mesmo perdesse o mérito da paciência. E
não pode dizer-se que eu não respondi porque não tivesse sido abalado
pelo sentimento de dor, pois não é merecimento da paciência, mas prova
de insensibilidade, uma pessoa não se queixar quando não sente dor
com as injúrias que lhe infligem. É que eu sofria deveras e angustiava-me
afligido por um desgosto nada pequeno; o meu coração agitava-se no meio
do meu peito; e abrasei-me em fogo com o pensamento do crime contra
274 D. JERÓNIMO OSÓRIO

conflati, eoque redactus sum ut me uitae taederet et mortem,


tamquam dolorum finem, exoptarem. Non erat autem mihi in
tantis malis mediocre solatium mortis exspectatio. His curis
anxius, sic Deum meum affatus sum:
Domine, ostendi mihi ultimum uitae meae terminum, ut
quo spatio dies mei circumscripti sint exacte considerem, et
intellegam, cum sim natura mortalis, non esse mihi, in uita
adeo breui tantisque malis obsessa, uel diuturnam felicitatem
postulandam, uel de aduerso casu ualde conquerendum.
Breuissimaque dimensione dies meos definitos esse uoluisti
et aetas mea in oculis Tuis est pro nihilo reputanda. Omnis
enim homo ipsi uanitati simillimus et cum inani simulacro
et effigie comparandus.
O uitae ad speciem florentis insomnia! O naturae infinitis
erroribus implicatae ludibria! O cogitationes inanes hominum
de rebus tam breui spatio consumendis quasi de sempiternis
temere cogitantium! Homo etiam, ampla et illustri specie
praecellens, tamquam inanis imago oculis obseruatur, et
interim uita illius cum celeritate praeterfluit et in interitum
properat, et tamen ipse, quasi sibi sit exploratum numquam
se fore uita spoliandum, inanissimis curis [238] sollicitatur,
in opibus augendis tumultuatur, cum minime sciat ad quos
patrimonium, tantis curis et laboribus exaggeratum, sit tandem
peruenturum. Saepe enim non suis, sed alienis, non liberis,
sed inimicis opes summa cura, studio et sollicitudine et cum
multorum iniuria congestae, deferuntur. Sic euenit ut, cum
homo a spe futurae uitae deiectus exstiterit, huius etiam
miserae uitae reliquias posteritas illius amittat.
Non igitur, cum tam breue sit huius uitae curriculum; cum
splendor illius angustissimo spatio temporis exstinguatur;
cum tanta malorum colluuies bona contaminet; cum
uoluptates omnes dolore eximio concludantur; cum omnia
tandem mors importuna consumat: quid est, Domine,
quod me possit exspectatione boni alicuius stabilis in
hac uita consolari? Spes certe quam in Tua sempiterna
benignitate reposui. Caelum enim corruet; terra conuelletur;
omnia, quae cernimus, incendio deflagrabunt; et clementia
numquam interibit et fides Tua numquam deficiet, ex quo
sequitur eos qui in fide Tui sanctissimi nominis acquiescunt
esse bonis sempiternis in altera uita cum insigni gloria
cumulandos. Reliqua igitur omnia mihi contemnenda sunt
et unum tantum summa uigilantia, studio, contentione
OPERA OMNIA TOMO IV 275

mim perpetrado pelo meu filho, e fiquei reduzido à situação de a vida me


enfadar e desejar a morte, como fim das minhas dores. Ora, a esperança
na morte não era para mim pequeno refrigério, em meio de tão grandes
males. Atormentado por estes cuidados, assim me dirigi a Deus:
Senhor, mostra-me o termo derradeiro da minha vida, para que avalie
exatamente por que prazo os meus dias estão limitados, e para que
entenda, uma vez que por natureza sou mortal, que, numa vida tão breve
e assoberbada por tão grandes males, ou não devo pedir uma ventura
duradoura, ou não me cumpre queixar-me muito da adversidade. Com
efeito, quiseste que os meus dias se circunscrevessem a limites muitíssimo
breves e aos Teus olhos o meu tempo de vida deve contar o mesmo que
nada. De facto, todo o homem se assemelha ao vazio e é comparável a
uma imagem e simulacro totalmente oco. Oh sonhos de uma vida que
parece florente! Oh joguetes de uma natureza enleada em erros sem
conto! Oh pensamentos vãos dos homens, que desatinadamente pensam,
como se fossem eternas, em coisas condenadas a ser consumidas em
breve prazo! Até o homem, que se avantaja por uma aparência imponente
e luzida, é visto pelos olhos como uma imagem vã, e entretanto a sua
vida flui com rapidez e apressa-se na direção da morte, e mesmo assim
ele, como se tivesse a certeza de que nunca há de ser privado da vida,
inquieta-se com cuidados totalmente vãos, [238] vive em agitação para
aumentar as riquezas, sendo certo que não sabe a que mãos chegará ao
cabo o património acumulado mediante tantos trabalhos e aflições. É que
muitas vezes as riquezas ajuntadas com o máximo desvelo, aplicação e
trabalho, e com injustiças contra muitos, são levadas, não pelos seus, mas
pelos alheios, não pelos filhos, mas pelos inimigos. E assim acontece que,
quando o homem viver apartado da esperança de uma existência vindoura,
os seus descendentes perdem até os restos desta vida mofina.
Por conseguinte, uma vez que é tão breve a duração desta vida; uma
vez que o seu brilho se extingue em um estreitíssimo prazo de tempo;
uma vez que um tão grande aluvião de males contamina os bens; uma
vez que todos os prazeres se acabam em extraordinária dor; uma vez que
tudo termina por ser consumido pela morte cruel: que é que nesta vida
pode consolar-me com a expectativa de algum firme bem, Senhor? Com
certeza que a esperança que depositei na Tua eterna bondade. Com efeito,
os céus hão cair; a terra subverter-se-á; tudo quanto enxergamos há de
ser devorado pelo fogo; e a misericórdia nunca perecerá e a Tua ajuda
nunca faltará, daqui se seguindo que aqueles que vivem tranquilos com
a confiança no Teu santíssimo nome devem ser na outra vida cumulados,
com glória extraordinária, com os bens sempiternos. Por conseguinte,
tudo o mais por mim deve ser desprezado e cumpre que com o máximo
desvelo, aplicação e esforço unicamente me preocupe em obter para
276 D. JERÓNIMO OSÓRIO

curandum, ut gratiam Tuam perpetuo retineam, ne meis


flagitiis a coniunctione Tua diuellar.
Libera me a peccatis meis; omnes offensiones meas
clementia Tua dele et perfice ne probrum, mihi a stulto
per summum scelus obiectum, me de dignitatis gradu
deiiciat, sed animi statum constantia summa in omni rerum
uarietate conseruem. Sic autem fiet ut, cum me stultissimus
quisque maledictis consciderit, id animo aequissimo patiar:
quod feci cum Semei me conuiciis indignissimis insectatus
fuisset. Obmutui enim, os non aperui, eas contumelias
cum patientia summa pertuli eo quod uidi consilio et
uoluntate Tua permissum amentissimis hominibus fuisse
ut in me maledicta coniicerent. Illam igitur plagam per Te
mihi propter grauitatem a me commissi criminis inflictam
existimaui et in ea magnitudine Tuae benignitatis agnoui.
Ideo enim me contumeliis lacerari uoluisti ut seueritatis
iuris afflictum rursus bonitate recreares. Aufer a me plagam
Tuam, Domine, nam magnitudine cladis quam in me Tua
manus inuexit uires meae omnino deficiunt. Dum enim, ut
hominem cui propter magnitudinem iniquitatis infensus es
poenas coerceas, debitas poenas illius temeritati constituis,
quidquid in illo expetendum esse uidebatur tamquam a
tinea paulatim exeditur atque conficitur, ita ut omnis illius
splendor obscuretur atque prorsus intereat. Vnde colligitur
omnem hominum uitam in summa uanitate uersari.
O summam hominum dementiam, qui tanta confidentia in tam
lubricis et tam breui interituris rebus, tamquam in sempiternis,
insistunt! Audi, Domine, orationem meam; clamorem meum
auribus percipe; lacrimas meas non asperneris; clementiae
Tuae signis clarissimis ostende Te minime preces maxima uoce
cum multis lacrimis adhibitas despexisse. Non enim humi [239]
defixus sum; non in opibus terrenis summum bonum ponendum
esse duxi; non in hac uita sedem et domicilium collocaui, sed
me ita in conspectu Tuo comparaui ut me in terra hospitem et
peregrinum, quemadmodum fuerunt patres mei, iudicarem, et ad
caelestem uitam eniterer. Vt igitur de immortali uita, antequam
huius finem faciam, liberius cogitare possim, Te suppliciter oro
ut mei puniendi seueritatem remittas, et confirmabo me atque
uires assumam quibus ad gratiam Tuam ineundam fortius et
constantius adspirem.
OPERA OMNIA TOMO IV 277

sempre a Tua graça, por forma a que as minhas indignidades não me


apartem da união contigo.
Livr a-me dos meus pecados; com a Tua compaixão apaga as
minhas ofensas e não deixes que o insulto, que o louco com o maior
dos crimes contra mim proferiu, me derrube da altura da minha
dignidade, mas faze que eu com a máxima firmeza em todas as
variadas situações da vida conserve um ânimo tranquilo. Ora, assim
sucederá que, ao ser enxovalhado pelos insultos do mais estulto dos
homens, suportarei essa situação com inquebrantável serenidade: tal
como fiz ao ser ultrajado pelos indigníssimos baldões de Semei. É
que me calei, não abri a boca e tolerei com a maior das paciências
aqueles insultos, porque vi que foi decisão e vontade Tua permitir que
homens totalmente ensandecidos me ultrajassem. Por consequência,
considerei que aquele golpe me foi infligido por Ti devido à gravidade
do crime que cometi e reconheci nele a grandeza da Tua bondade.
É que quiseste retalhar-me com ofensas ultrajantes, a fim de mediante
a bondade fazeres nascer de novo o atribulado pelo rigor da lei. Desvia
de mim o Teu golpe, Senhor, pois faltam-me totalmente as forças com
a grandeza da desgraça que a Tua mão fez cair sobre mim. É que
quando, para castigares o homem a quem és hostil devido à grandeza
da sua iniquidade, estabeleceste os castigos devidos ao seu desatino,
tudo que nele parecia ser desejável, é como que aos poucos roído e
consumido pela traça, de tal maneira que todo o seu esplendor se
obscurece e totalmente fenece. Daqui se colige que a inteira existência
humana assenta no mais completo vazio.
Oh total demência dos homens, que com tamanha confiança se
apoiam, como se fossem eternas, em coisas tão incertas e destinadas a
tão próxima morte! Escuta, Senhor, as minhas palavras; acolhe em Teus
ouvidos o meu clamor; não desestimes o meu pranto; com sinais claros
da Tua compaixão mostra que não votaste ao desprezo rogos feitos com
a mais sentida voz e acompanhados de lágrimas. É que não estou preso
à terra; [239] não julguei que o bem supremo deveria colocar-se nas
riquezas terrenas; não assentei meu lar e domicílio nesta vida, mas de tal
modo me estabeleci na Tua presença que me considerei na terra como
um peregrino e estrangeiro, tal como o foram os meus antepassados, e
me esforcei por obter a vida celestial. Por conseguinte, a fim de mais
livremente poder meditar sobre a vida imortal, antes que chegue ao
fim desta, humildemente Te suplico que abrandes a severidade do meu
castigo, e fortalecer-me-ei e adquirirei as forças com que mais vigorosa
e firmemente aspirar a entrar na Tua graça.
278 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Exspectans exspectaui Dominum et intendit mihi.


Psal. 39. Apud Heb. 40

Cum in multis aliis prophetarum monumentis, tum in


Dauidis carminibus quantae sint tenebrae Iudaeorum animis
offusae clare perspicitur. Consulto enim lucem fugiunt et
tenebras summo studio persequuntur. At Dauid, cum lucem
ipsam, quae illuminat omnem hominem, quae illuminat
omnem hominem in mundum, hoc est, in conuentum fidelium
uenientem, illustri mente prospiceret, ea uidit et cecinit et in
scriptis reliquit, quae Iudaei, quamdiu animum crassum et
obtusum et tenebris immersum gesserint, intueri non poterunt.
Dauid in Christo mente defixus est: illum admiratur; illum
ardenter mata; laudes illius quantum potest amplificat; illius
denique maiestatem summa pietate ueneratur cui Iudaei impio
et sacrilego sanctissimi nominis deformandi conatu perpetuo
maledicunt. Quomodo igitur fieri potest ut ad sententiam
sanctissimi regis adspirent ii qui toti sunt a luce quae homini
diuino semper illuxit auersi? Qui igitur uoluerit Dauidis
mentem probe tenere, rabinorum explicationem exsecretur et
se, quoad fieri potest, ad disciplinam diuini spiritus adiungat,
ut in Sanctis Litteris queat Christi diuinitatem pura mentis
acie contueri. Quod quidem in hoc psalmo clarissime cernere
licebit. In hoc enim, sub Dauidis persona, Christus inducitur
antiquam legem infirmans, ut Euangelium et fidem constituat.
In hanc autem sententiam generis humani Liberator nostrae
salutis rationem oratione persequitur:
Omnem spem salutis in Deo summa fide constitui, cuius
nomen ardentissimis precibus inclamaui, qui, repente ad
misericordiam inflexus, clamorem meum exaudiuit. Itaque
eduxit me de turbido lacu, horrendis motibus agitato, de
loco sordibus ualde lutulentis oppleto, et constituit me in
rupe munitissima, ad quam hostes nullis machinis euadent,
gressusque meos, ne umquam laberentur, et caelesti disciplina
et inuicto robore stabiliuit. Nec enim me populi rebellis atque
furentis inuidia neque mortis acerbissimae truculentia nec
inferorum manium uiolentia de statu detorquere potuerunt.
Populum enim merito supplicio contriui; mortis uires exstinxi;
inferorum claustra reuelli; mundi principem spoliaui uictoriaque
parta clarissimum [240] triumphum duxi; et ad dexteram
Patris summi locatus sum, in quam arcem nulla umquam
OPERA OMNIA TOMO IV 279

SALMO 39
(40 entre os Hebreus)
Aguardei com expectação o Senhor, e me atendeu.

Tal como acontece em muitos outros textos dos profetas, assim nos
salmos de David claramente se dão a conhecer as grandes trevas em
que os espíritos dos judeus se encontravam mergulhados. Com efeito,
fogem deliberadamente da luz e com o máximo empenho procuram as
trevas. David, porém, como via, com entendimento inspirado, vir ao
mundo a própria luz que ilumina todo o homem, isto é, a assembleia
dos fiéis, viu e cantou e deixou em seus escritos aquilo que os judeus
não poderão contemplar enquanto tiverem o espírito espesso, obtuso e
imersos nas trevas. David tem em Cristo fitos os olhos do entendimento;
contempla-o com admiração; ardentemente o ama; exalça-os com louvores
o mais que pode; com o mais fundo sentimento religioso reverencia a
majestade daquele a quem os judeus amaldiçoam com ímpio, sacrílego
e incessante propósito de aviltar o santíssimo nome. Por conseguinte,
como pode suceder que aspirem a estar de acordo com o mais santo
dos reis estes que inteiramente hostilizaram a luz que sempre brilhou
para o divino homem? Portanto, quem quiser compreender perfeitamente
a intenção de David, abomine a exposição dos rabinos e, até onde lhe
for possível, ligue-se aos ensinamentos do espírito divino, a fim de nas
Sagradas Escrituras poder divisar a divindade de Cristo com um puro
olhar da inteligência. Algo que com certeza neste salmo poderá com
toda a clareza enxergar, pois nele é apresentado sob a figura de David
refutando a antiga lei, para estabelecer o Evangelho e a fé. Ora, neste
sentido o Libertador do género humano ocupa-se do processo da nossa
salvação com as seguintes palavras:
Com a máxima confiança depositei em Deus toda a esperança de
salvação, por cujo nome bradei com ardentíssimas rogativas, o qual,
inclinando-se de repente para a misericórdia, escutou os meus brados.
E por isso tirou-me do turbulento lago, agitado por medonhas vagas, de
um lugar que transbordava lamacenta sujidade, e colocou-me numa fraga
assaz defendida, até onde os inimigos não chegarão com nenhum de seus
bélicos engenhos, e, com celestiais ensinamentos e invencível vigor, deu
firmeza aos meus passos, para não permitir que alguma vez tropeçassem.
É que nem o ódio do povo rebelde e desvairado nem a violência da
impiedosa morte nem a crueldade dos espíritos infernais poderão afastar-
me da minha posição. É que castiguei com justiça o povo; extingui as
forças da morte; arranquei as portas dos infernos; despojei o príncipe
do mundo e, depois de obtida a vitória, celebrei um mui vistoso [240]
triunfo; e fui colocado à destra do Pai supremo, baluarte no qual jamais
280 D. JERÓNIMO OSÓRIO

hostium immanium tela penetrabunt. Praebuit Dominus ori


meo materiam noui carminis, ut nouo genere cantici, nouum
et nimis admirandum, beneficium celebrarem summisque
laudibus Deo nostro uota persoluerem. In profundo namque
peccata demersit; Suos in libertatem uindicauit; et omnibus
quietas sedes, cum amplissimo iustitiae fructu, constituit. Multi
uidebunt (non enim erit claritas tanti splendoris interclusa,
sed ad gentes quamplurimas emanabit) et Domini potentiam
uerebuntur, et religionem illius sancte colent, omnemque
spem salutis in Domini benignitate collocabunt.
Quo quid felicius esse potest? Nec enim gentis nobilitas,
nec insignis opulentia, nec adumbrata religio, nec quidquam
aliud in terris est quod uere felices atque florentes efficiat,
sed fides cum caritate inflammato studio in numine
diuino locata. Ille igitur tantum uir uirtute praecellens
atque beatus existimandus est qui, Dei praesidio semper
innixus, non principum gratiam sollicite requirit nec
illorum uestigia sectatur qui uanitate atque mendacio se
tutos fore confidunt, et idcirco fallaces opes auxilio diuino
longe praeponunt. Quod profecto, summe Domine, non
fecissent, si mentis aciem in immensitatem Tuae benignitatis
intentam habuissent, multa namque opera nimis admiranda
hominum gratia perfecisti; multo plura in nos beneficia
conferre statuisti, ad quae mente et cogitatione recolenda
non est qui se confirmare possit. Cum ea praedicare et
recensere statuo, animus numero tam multiplicis gratiae et
liberalitatis obruitur, cum multitudo memoriae facultatem
longissimo interuallo uincat et superet. Caelum namque,
terra, mare totiusque mundi decus et amplitudo et uniuersae
naturae regiones Tuis erga genus humanum beneficiis
refertae et cumulatae sunt. Si in singulis rebus conditis
insistere, et uim, sollertiam et consilium quo res quaelibet
condita et confirmata fuit, recensere uelim; si corporis
humani figuram, si mentis acumen, ingenium, indolem,
docilitatem explicare coner, exitum minime reperiam. Cum
uero ratio humana fuisset obscurata flagitiis et erroribus
perniciosis imbuta, oculos e caelo deiiceret et monstra in
diuina sede reponeret, legem clementissime tulisti, quae
tenebras discuteret et notitiam Dei in animis instauraret
et religionem sanciret, quae iustitiae imaginem contineret,
ut paulatim posse intellegi quibus sacris esset hominum
scelus expiandum.
OPERA OMNIA TOMO IV 281

hão de entrar os dardos dos desumanos inimigos. O Senhor ofereceu à


minha boca o tema para um cântico novo, a fim de que eu celebre com
uma nova espécie de cantar um benefício novo e admirável e com os
mais elevados encómios dirija os agradecimentos ao nosso Deus. É que
Ele mergulhou nas profundezas os pecados; libertou os Seus; e a todos
concedeu tranquilas moradas, juntamente com o abundantíssimo fruto
da justiça. Muitos hão de ver (pois a claridade de tão grande resplendor
não será limitada, mas espalhar-se-á por inúmeros povos) e sentirão
receio do poder do Senhor, e santamente hão de adorá-Lo no seu culto,
e depositarão toda a esperança de salvação na bondade do Senhor.
Que pode existir de mais venturoso do que isto? De facto, nem a
nobreza de estirpe, nem a extraordinária riqueza, nem uma religião em
bosquejo, nem qualquer outra coisa existe na terra capaz de torná-los
deveras felizes e prósperos, mas apenas a fé juntamente com a caridade
depositada, com abrasado zelo, na divindade. Por conseguinte, deve-se
ter na conta de varão venturoso e insigne em virtude apenas aquele
que, apoiando-se sempre na proteção de Deus, não anda solícito a
procurar a graça dos príncipes nem segue as pisadas dos que com
vaidade e mentira confiam em que hão de estar seguros, e por isso
antepõem as falsas riquezas à ajuda divina. Algo que certamente não
teriam feito, ó supremo Senhor, se tivessem aplicado atentamente a sua
perspicácia intelectual à imensidade da Tua bondade, pois fizeste em
atenção aos homens muitas obras sobremaneira admiráveis; e muitos
mais benefícios decidiste oferecer-nos, que não há ninguém capaz de
repassá-los no espírito e recordá-los. Quando me decido a apregoá-los
e enumerá-los, o espírito esmorece desanimado diante de uma graça
e liberalidade tão multiplicadas, uma vez que a sua multidão supera e
avantaja-se em muito à capacidade da memória. Com efeito, o céu, a
terra, o mar e a formosura e grandeza do mundo inteiro e os domínios
de toda a natureza estão cheios e repletos dos Teus benefícios para
com os humanos. Se eu quiser debruçar-me sobre cada cousa criada, e
enumerar o modo, artifício e atenção com que foi feita e aperfeiçoada;
se me esforçar por expor a figura do corpo humano, a penetração,
engenho, índole e capacidade de aprendizagem do entendimento, não
serei bem sucedido. E, uma vez que a razão humana foi obscurecida
por indignidades e, impregnada com erros perniciosos, apartava os
olhos do céu e colocava aberrações na morada divina, Tu, com a
máxima misericórdia, promulgaste uma lei que dispersasse as trevas
e introduzisse nas almas o conhecimento de Deus e sancionasse a
religião, que contivesse em si uma imagem da justiça, a fim de que aos
poucos pudesse entender-se mediante que sagrados rituais se deveria
expiar o crime dos homens.
282 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Non tamen hic restitit clementia Tua, partim quia quod est
immensum et infinitum terminis definiri non potest, partim
quia lex non in se iustitiam, sed iustitiae umbram continebat,
itaque non solum dabat, sed spem salutis ostendebat.
Non enim scelerum maculae animis inustae uel brutorum
animantium sanguine uel odorum terrestrium suffimentis
eluuntur; neque Tu, sanctissime Domine, hominum peccatis
innumerabilibus grauissime offensus, humanis muneribus
placari et a seueritate deduci potes. Itaque neque pecudes
ad sacrificium [241] statui uoluisti neque dona atque munera
Tibi grata esse docuisti. Malam enim de Te opinione homines
recipiunt qui suspicantur opibus fluxis iustitiam sempiternam
deleniri atque a iuris sanctitate ad indulgentiam sceleris
inflecti. Quod ergo remedium restabat? Vnum certe: ut ego
me Tibi in perpetuam seruitutem addicerem et pro omnium
salute meum corpus opponerem. Maiestas enim Tua, rebellione
ad uindictam incitata, non erat adumbratis sacris, sed
oboedientia sanctissima placanda. Cum uero nullus umquam
in terris exsistisset qui sic fuisset lege deuinctus ut non eam
saepenumero transgrederetur, nulla erat oboedientia quae
posset rebellionem uniuersi generis humani compensare, nisi
illius tantum qui numquam deliquisset et ideo non alterius
ope indiguisset ad gratiam Tuam recuperandam. Praeterea,
nulla tanta poterant esse sanctorum hominum merita quae
offensiones Tibi per nefarium scelus illatas sanctitatis
magnitudine compensarent.
In me autem solo uoluisti, propter naturae diuinae
coniunctionem, ut esset facultas et meritum quo posset
humanum genus hoc debito, quo erat obstrictum, liberari,
et, ne in sempiternum supplicium truderetur, a peste, qua
miserrime laborabat, abduci. Vt igitur seruituti perpetuae
mancipatis aures erant ad postem, iudicum auctoritate,
transfixae, sic Tu mihi, iudicio Tuo, aures perforatas, hoc est,
oboedientiam meam Tibi semper addictam esse uoluisti, ut
debitum alienum dissoluerem et uoluntaria seruitute nomini
Tuo, humana rebellione grauiter offenso, satisfacerem. Non
enim sacrificium flammis absumptum Tibi cordi fuit; non
hostiam piacularem ad scelus expiandum flagitasti, non enim
caedem pecudum, sed interitum nequitiae requiris; non igne,
ex lignis aridis facto, sed diuini amoris incendio delectaris;
non brutorum animantium sanguine, sed ea oboedientia,
quae numquam fuerit leuissima rebellionis contagione
OPERA OMNIA TOMO IV 283

Todavia, a Tua misericórdia não se ficou por aqui, em parte porque


aquilo que é imenso e infinito não pode ficar circunscrito por limites,
e em parte porque a lei não continha em si a justiça, mas uma sombra
da justiça, e por isso não apenas dava, mas mostrava a esperança de
salvação. É que as manchas dos pecados impressas nas almas não se
lavam com o sangue de brutos animais nem com as fumigações de
perfumes da terra; nem Tu, ó santíssimo Senhor, gravemente ofendido por
incontáveis pecados dos homens, podes aplacar-Te e desviar-Te da Tua
severidade movido por dádivas humanas. Por isso não quiseste que se
estabelecessem sacrifícios de reses [241] nem ensinaste que as dádivas e
presentes eram do Teu agrado. Na verdade, perfilham uma errada opinião
a Teu respeito os homens que pensam que com passageiras riquezas a
justiça eterna se suaviza e se desvia da santidade do direito e se torna
indulgente com o crime. Então, que remédio restava? Certamente que
um só: que eu me entregasse a Ti em perpétua servidão e como penhor
oferecesse o meu corpo pela salvação de todos. É que a Tua majestade,
movida à vingança pela rebelião, não deveria ser aplacada por rituais
esboçados, mas pela santíssima obediência. E, uma vez que jamais
existiu na terra alguém que de tal maneira estivesse ligado pela lei que
a não transgredisse amiudadas vezes, não existia obediência alguma
que pudesse compensar a rebelião da totalidade do género humano, a
não ser unicamente a daquele que nunca tivesse delinquido, e por isso,
para recuperar a Tua graça, não precisasse da ajuda de ninguém. Além
disso, nunca poderiam ser tão grandes os merecimentos dos homens
santos que compensassem em grandeza de santidade as ofensas contra
Ti infligidas pelo sacrílego crime.
Ora, quiseste que só em mim, devido à união da divina natureza,
existisse a capacidade e merecimento mediante os quais o género humano
pudesse libertar-se desta dívida a que se encontrava obrigado, e, para
não ser lançado no suplício eterno, ser arrancado do estado de perdição
em que mui mofinamente penava. Por conseguinte, tal como antigamente
aos homens vendidos como escravos perpétuos por autoridade dos juízes
as orelhas eram furadas junto da entrada do ouvido, assim, por juízo
Teu, quiseste que as minhas orelhas fossem perfuradas, ou seja, que a
minha obediência sempre a Ti estivesse ligada, para que eu pagasse a
dívida alheia e através da voluntária servidão satisfizesse o Teu nome,
gravemente ofendido pela rebelião humana. Na verdade, não Te agradou o
sacrifício devorado pelas chamas; não pediste uma vítima sacrificial para
a expiação do crime, pois não requeres matança de reses, mas a morte
da perversidade; não Te deleitas com o fogo, feito com secos lenhos, mas
com o incêndio do amor divino; não com o sangue das brutas alimárias,
mas com aquela obediência, que nunca se manchou com o mais ligeiro
284 D. JERÓNIMO OSÓRIO

maculata, a peccati puniendi seueritate ad misericordiam iis


qui peccauere tribuendam inflecteris. Haec cum numquam
in terris exstitisset neque tanta esse potuisset ut merito suo
posset offensionem immensae maiestatis oblitterare, me
ipsum obtuli ut alacritate summa perfectissimum munus
oboedientiae maxime salutaris absoluerem. Veni igitur
humanamque naturam ualde clementer assumpsi ut, sub
humana forma et specie delitescens, in Tuae uoluntatis
perfunctione labores omnes patienter exciperem, dolores
libenter haurirem, conuicia sustinerem omnesque corporis
et animi uires in oboediento consumirem, usque eo dum
uitam in cruciatibus pro omnium salute profunderem.
Haec autem oboedientia, olim ab hominibus sanctissimis
diuina mente praeuisa, tantae admirationi fuit ut omnes eam
diuinis laudibus efferendam susceperint. Itaque omnia quae in
legis uolumine, siue a Mose siue ab aliis prophetis scripta sunt,
huc in summa referuntur, ut salutem [242] generis humani,
opera mea constituendam, praedicerent, et pro meo in terras
aduentu animis acriter incensis uota facerent. Hoc summum
diuinae bonitatis beneficium fuit ab exordio generis humani
patribus a Deo praemonstratum; hoc sacrificiis et signis
adumbratum; hoc litterarum monumentis ad sempiternam
memoriam consecratum: ut nemo sanus umquam posset de tam
excellentis muneris amplitudine dubitare. Itaque omnis mea
cura, sollicitudo, uigilantia in uno studio tota consumitur, ut
uoluntati Tuae semper oboediam, ut numquam uoluntati meae
morem geram, sed Tuae semper obtemperem, ut, dum uoluntati
Tuae plene satisfaciam, nullam suppliciorum acerbitatem
recusem. Hic fuit mihi cibus in omni loco iucundissimus; haec
animi summa iucunditas; hac uoluptate mirifice perfusus sum,
quae in oboedientiam perfectione consistit.
In uisceribus autem meis legem Tuam inscriptam et insculptam
perpetuo gessi, ut numquam a sanctionibus illius aliqua ex parte
deflecterem. Cum autem exploratum haberem Te omnes saluos et
ornatos et ad speciem Tuae claritatis informatos esse uelle, et id
sine ardenti iustitiae studio nemini contingere posse (fructus enim
sacrificii, quod pro omnibus immolaui, oboedientibus tantum et
non imperium recusantibus promptus atque paratus est), iustitiae
disciplinam in hominum lucem et celebritatem magnam protuli;
nihil, quod ad salutarem disciplinam pertineret, omisi; numquam
labi mea ab hominibus instituendis et erudiendis subtracta sunt;
multosque, per me atque meos, rerum diuinarum intellegentia
OPERA OMNIA TOMO IV 285

assomo de rebelião, Te desvias do rigor em punir o pecado para conceder


misericórdia àqueles que pecaram. Como jamais na terra tivesse existido
nem tivesse podido existir uma tal e tão grande obediência capaz de
com os seus merecimentos fazer esquecer a ofensa contra a imensa
majestade, ofereci-me a mim mesmo para com o máximo entusiasmo
cumprir a perfeitíssima função da muitíssimo salutar obediência. Por
conseguinte, vim e com grande compaixão assumi a natureza humana
a fim de, ocultando-me sob a forma e aparência humana, no exercício
da Tua vontade aceitar pacientemente todos os trabalhos, de bom grado
tragar as dores, suportar os insultos e, no cumprimento da obediência,
consumir todas as energias e forças do meu corpo e alma, até oferecer
a vida no meio de tormentos pela salvação de todos.
Ora, esta obediência, outrora antevista pelo espírito divinamente
inspirado de homens muitíssimo santos, causou tão grande admiração
que todos se empenharam em celebrá-la com divinos louvores. E, por
isso, tudo que se escreveu nos rolos da lei quer por Moisés quer pelos
outros profetas tem, em síntese, como fito [242] predizer a salvação do
género humano, que deverá ser estabelecida por obra minha, e com
almas vivamente inspiradas fazerem votos pela minha vinda à terra.
Este altíssimo benefício da divina bondade foi desde o princípio dado
antecipadamente a conhecer por Deus aos patriarcas do género humano;
foi bosquejado mediante sacrifícios e sinais; imortalizado pelo registo
das letras para sempiterna lembrança: a fim de que ninguém de são
juízo alguma vez pudesse duvidar da grandeza de uma tão avantajada
mercê. E por isso todo o meu cuidado, diligência e solicitude têm como
exclusiva preocupação obedecer sempre à Tua vontade, nunca atender
à minha vontade, mas acatar sempre a Tua, de maneira a, ao satisfazer
inteiramente a Tua vontade, não me recusar a nenhuma dolorosa tribulação.
Este foi em todos os lugares para mim o mais saboroso alimento; esta a
suprema alegria da minha alma; fui maravilhosamente inundado por esta
deleitação, que se funda na perfeita obediência.
Ora, nas minhas entranhas levei incessantemente gravada e esculpida a
Tua lei, para nunca me desviar em nada das suas determinações. Por outro
lado, uma vez que estou ciente de que Tu queres que todos se salvem e
se embelezem e moldem à semelhança do Teu brilho, e ninguém pode tal
conseguir sem o ardente zelo da justiça (pois o fruto do sacrifício, que
por todos imolei, está à disposição e pronto apenas para aqueles que
obedecem, e não para os que recusam o senhorio), publicamente divulguei
à multidão dos homens os ensinamentos da justiça; não deixei de fazer
nada do que tinha a ver com o ensino da salvação; nunca os meus lábios
se afastaram de doutrinar e instruir os homens; e diligentemente, por
mim e pelos meus, ensinei a muitos a compreensão das coisas divinas,
286 D. JERÓNIMO OSÓRIO

diligenter instruxi, quemadmodum Tu, Domine, recte nosti. Non


abstrusam et reconditam tenui penes me iustitiam Tuam. Veritatem
Tuam et salutem Tuam omnibus passim annuntiaui. Non inuidi
uniuersitati hominum opes misericordiae Tuae atque fidei Tuae,
sed eas omnibus, qui eas intueri cuperent, explicatas et euolutas
ostendi. Cum enim summa bonitas nullo modo inuidiae sit affinis
et idcirco cum omnibus hominibus, quoad fieri potest, diuitias
suas communicatas esse cupiat, non poteram ullo modo ad
uoluntatem Tuam commissum mihi munus administrare, nisi me
totum ad homines docendos ita darem ut neminem, qui uellet de
rebus diuinis instrui, a coniunctione mea repellerem. Tu igitur,
Domine, ne compressam teneas misericordiam Tuam, ut me illius
ope destituas, nam omnis salus mea et uitae meae firmamentum
et propugnaculum in misericordia atque fide Tua consistit.
Innumerabilia namque mala me undique circumsistunt;
poenae iniquitatum, quas mihi subeundas existimaui, tanto
me numero consecutae sunt ut eas dispicere non queam.
Nam capillos capitis mei multitudine uincunt, usque adeo ut
cor meum, propter intolerandi doloris acerbitatem, robore
destitutum sit. Respice, Domine, innocentiam afflictam;
oboedientiam malis oppressam, sanctimoniam suppliciis
excruciatam, ut me confestim e magnitudine tam indignae
cladis eripias, et ad opem mihi afferendam accelera. [243]
Contumelia afficiantur et omni dedecore ii qui uitam meam
immani odio persequuntur. Retrocedant, in fugam se cum
ignominia summa dent qui mihi, qui meis, qui nomini meo
perniciem moliuntur. Pro mercede dedecoris, quod mihi
inurere modis omnibus conati sunt, euertantur funditus omnes
qui in cruciatibus meis mihi nimis petulanter insultant et, in
crucem intuentes, uerba immoderatam laetitiam significantia
temere profundunt.
Perfice, Domine, ne multi, proposita crucis ignominia,
conturbati, salutis uiam deserant aut saltem ad sanctissimam
religionem profitendam tardiores fiant. Quapropter Te oro et
obsecro ut gaudio cumulentur et laetitia efferantur omnes qui,
meis monitis incensi, Te quaerunt, et dicant perpetuo, qui Te
salutem a Te datam uoluntate gratissima prosequuntur: Domini
nomen sempiternis laudibus efferatur. De me uero non est
quid dicam, cum enim sim pauper et egenus, Dominus est
qui de mea salute et dignitate cogitat: in Illo namque habeo
in rebus aduersis praesens auxilium, in salutis discrimine
salutare praesidium constitutum. Hoc igitur a Te, Domine,
OPERA OMNIA TOMO IV 287

consoante Tu, Senhor, muito bem sabes. Por toda a parte a todos anunciei
a Tua verdade e a Tua salvação. Não retive, oculta e escondida em meu
poder, a Tua justiça. Não recusei à totalidade dos homens as riquezas
da Tua misericórdia e da Tua fé, mas, expostas e patentes, mostrei-as
a todos os que as desejavam contemplar. Com efeito, uma vez que a
suprema bondade não tem qualquer espécie de afinidade com a inveja e
por isso deseja, até onde é possível, repartir os seus tesoiros com todos
os homens, eu não podia de modo algum desempenhar segundo a Tua
vontade a tarefa que me foi cometida, se não me entregasse inteiramente
a ensinar de tal maneira os homens que não afastasse de junto de mim
ninguém que quisesse ser ensinado nas coisas divinas. Por conseguinte
Tu, ó Senhor, não mantenhas escondida a Tua misericórdia, de maneira a
privares-me da Tua ajuda, pois toda a minha salvação, proteção e esteio
se fundam na Tua ajuda e misericórdia.
Na verdade, estou rodeado de males por todos os lados; os castigos
das iniquidades, que considerei que deveria suportar, acompanham-me
em tão grande número que não sou capaz de discerni-las bem. Com
efeito, ultrapassam em quantidade os cabelos da minha cabeça, a tal
ponto que o meu coração, devido à violência da intolerável dor, ficou
privado de forças. Põe os Teus olhos, Senhor, na inocência atribulada,
na obediência oprimida pelos males, na santidade atormentada pelos
suplícios, por forma a arrancares-me de imediato de uma tão enorme e
indigna desgraça, e dá-Te pressa em trazer-me ajuda. [243] Que sejam
ultrajados e sofram todo tipo de desdouro aqueles que com cruel sanha
perseguem a minha vida. Que recuem, que se entreguem à fuga com
imenso descrédito seu os que maquinam a minha perdição, a dos meus
e a do meu nome. Que sejam totalmente destruídos, como recompensa
pelo desdouro com que por todos os modos procuraram aviltar-me, todos
aqueles que nas minhas tribulações com sobeja impudência me insultam
e, com os olhos postos na cruz, desatinadamente proferem palavras que
exprimem uma descomedida alegria.
Não permitas, Senhor, que muitos, sentindo-se perturbados ao verem
por diante a infâmia da cruz, abandonem o caminho da salvação ou sequer
se tornem remissos em confessarem a santíssima religião. Razão pela qual
Te peço e rogo que fiquem cheios de contentamento e se arrebatem de
alegria todos os que, animados pelos meus conselhos, Te procuram, e
que incessantemente digam, os que Te agradecem de todo o coração a
salvação que lhes deste: Que seja exalçado com eternos louvores o nome
do Senhor. Mas acerca de mim nada tenho que dizer, pois, sendo pobre
e mendigo, o Senhor é quem pensa na minha salvação e dignidade: é
que n' Ele tenho estabelecido um auxílio eficaz na adversidade e nos
perigos da salvação uma salutar ajuda. Por conseguinte, pedir-Te-ei com
288 D. JERÓNIMO OSÓRIO

summo studio contendam, ne opem differas, sed subsidio


mihi festinanter occurras, ut sic et gloriae Tuae et meorum
saluti prospicias.

Beatus uir, qui intellegit super egenum et pauperem.


Psal. 40. Apud Heb. 41

Nihil poterit esse gratius Deo quam diuinae bonitatis


exemplum. Cum igitur Is pauperes non excludat; cum illorum
preces clementer audiat; cum eorum causam suscipiat; cum
denique illis Regnum caeleste spondeat: quid poterit a nobis
fieri aut ad dignitatem elegantius aut ad parandas opes
utilius aut ad uitae praesidium salutarius quam misericordiam
egentibus impertiri? Si enim misericordes fuerimus, Dei
similitudinem operibus sanctis arripiemus et ita gratiam Illius
retinebimus ut numquam nos uel in paenuria, uel in morbo,
uel in quouis alio discrimine uitae despiciat. In paenuria
igitur bonis explebimur; in morbis sanitatem recuperabimus;
in periculis inuicto praesidio fulciemur, ita ut semper, ex
omnibus malorum fluctibus emersi, in salutis portum feliciter
inuehamur. Hoc tamen in loco Dauid, quamuis uniuerse
loqui uideatur, unum tamen praecipue pauperem oratione
complectitur, qui est Christus, qui, cum esset rerum omnium
Dominus, pro nobis factus est egentissimus, ut nos illius
inopia diuites essemus. Omnes enim qui de illo noctes et dies
cogitauerint et gratissimis animis tam admirabilem bonitatem
complexi fuerint et in illius se imitationem contulerint, erunt
beatissimi. Nos igitur in hoc carmine, quemadmodum in
praecedenti factum est, non tam illius imaginem, quam Dauid
probitatis et humilitatis [244] et patientiae aliqua similitudine
referebat, quam ipsum Christum inopem e nudatum et cruci
clauis affixum cogitemus. Illum igitur in hanc sententiam
loqui statuamus:
Beatus erit is qui inopem illum pro salute humani generis
inopia et mendicitate laborantem et ueste spoliatum omniumque
auxilio atque solacio destitutum adspexerit, amauerit omni
studio et pietate ita consectatus fuerit ut numquam ab illius
exemplo et imitatione discedat. Sic autem in primis me
pascet esurientem, cum me iustitiae suae pabulo recreauerit.
Sic etiam me potabit sitientem, cum me uitae sanctimonia
OPERA OMNIA TOMO IV 289

todo o empenho, Senhor, que não adies a Tua ajuda, mas rapidamente
me acudas com auxílio, por forma a assim atenderes não apenas à Tua
glória, mas também à salvação dos meus.

SALMO 40
(41 entre os Hebreus)
Bem-aventurado o que cuida sobre o necessitado e o pobre.

Nada poderá ser mais agradável a Deus do que o exemplo da divina


bondade. Por conseguinte, uma vez que Ele não afasta os pobres; uma
vez que escuta compassivo os pedidos deles; uma vez que toma a Seu
cargo a causa deles; uma vez que, finalmente, lhes promete o Reino
celestial: que poderemos fazer ou de mais formoso para a dignidade ou
de mais proveitoso para a aquisição de riquezas ou de mais salutar para
a segurança da vida do que repartir a misericórdia com os necessitados?
É que, se formos misericordiosos, através das obras santas apossar-nos-
emos da semelhança com Deus e de tal maneira conservaremos a Sua
graça que Ele jamais nos desprezará quer na penúria, quer na doença,
quer em outra qualquer situação de risco da existência. Portanto, na
penúria seremos colmados de bens; nas doenças recuperaremos a saúde;
nos perigos seremos protegidos por ajuda invencível, de maneira tal
que, arrancados de entre as procelas de todos os males, seremos sempre
venturosamente conduzidos ao porto da salvação. Todavia neste texto
David, embora pareça falar de modo geral, refere-se porém sobretudo
a um único pobre, que é Cristo, o qual, ainda que fosse o Senhor de
todas as coisas, por amor de nós se fez paupérrimo, para que nós através
da sua pobreza nos tornássemos ricos. É que todos os que dia e noite
pensarem nele e com alma muitíssimo agradecida lhe derem as graças
por tão admirável bondade e se consagrarem a imitá-lo, serão totalmente
bem-aventurados. Por consequência, nós neste salmo, tal como se fez no
anterior, pensemos não tanto na imagem dele, que David representava
devido a alguma semelhança de honestidade e humildade e [244] paciência,
mas antes no próprio Cristo pobre e despido e com pregos pregado na
cruz. Por conseguinte, suponhamos que ele fala do modo seguinte:
Será bem-aventurado o homem que olhar para aquele pobre que,
pela salvação do género humano, padeceu pobreza e pediu esmola e foi
despojado de roupas e privado da ajuda e consolo de todos, e o amar e
com todo o desvelo e religiosidade de tal maneira o seguir que nunca se
aparte do seu exemplo e imitação. Ora, assim, primeiramente, a mim que
tinha fome há de alimentar-me, quando me alentar com a nutrição da sua
justiça. Assim também, a mim que tinha sede há de dar-me de beber, quando
290 D. JERÓNIMO OSÓRIO

atque benignitate refecerit. Similiter etiam nudum uestiet,


cum caritatis uestibus et ornamentis opertus exstiterit. Ad
hunc etiam modum me hospitio recipiet, cum me toto animo
complexus fuerit et in mente sua mihi domicilium exstruxerit,
in quo sane libenter acquiescam. Nam, quae alia fuit fames
et sitis et nuditas et peregrinatio, quae me ualde cruciaret,
quam desiderium ardentissimum, quo flagrabam, humani
generis alendi et excolendi et in quietis iustitiae sedibus
opera mea collocandi? Hoc igitur primum studium erit illius
qui beatus esse studet. Ex hoc autem aliud nascetur, quod
in paupers erit impensum ita tamen ut singulis pauperibus
alendis et reficiendis sic animatus quisque sit ut existimet
omnia beneficia quae nomine meo in paupers conferuntur in
me ipsum conferri. Sic enim accipiam officium illud pauperi
tributum atque si mihi praestitum fuisset.
Dominus autem illum custodiet; illi uitam conferet; illum
in terra felicem omnibusque bonis affluentem reddet; neque
inimicorum ac uoluntati tradet. Quod, si in morbum inciderit,
Dominus lecto illius assidebit uimque illius debilitatam sustentabit
atque reficiet et lectum (ut aegrotis fieri solet ut melius cubent)
assidue uersabit, usque eo dum omnem morbum admodum
salutari curatione depellat. Cum essem ipse peccati pondere
grauatus (peccati enim poenam corpore meo sustinebam), dixi:
“Domine, miserere mei, quia peccati in Te commisi supplicium
pendo illiusque poenas, perinde atque si meum esset, exsoluo.”
Porro autem inimici mei mihi mala imprecabantur et dicebant:
“Quando morietur homo actionibus nostris semper infensus?
Quando uidebimus nomen illius ex hominum memoria funditus
euulsum?”
Quod, si aliquis me ficta specie sanae uoluntatis inuisit,
uanissima oratione blanditur; corde uero scelus nefarie
machinatur; deinde foras egreditur, ut, quod responsum uerbis
insidiose concinnatis dederim, sociis confestim enuntiet.
Tum omnes inimici mei clanculum inter se de pernicie mea
consultant et, ut in me pestem et exitium machinentur,
excogitant. Cum uero exitus quos optabant consecuti sunt,
ut cruciatibus summis afflictum crudelissimaque morte
damnatum uideant, quibus cogitationibus efferuntur? Quae
portenta loquuntur’
“Deus iratus illum acriter inuasit ut de illius impietate
meritas poenas sumat. [245] Occumbet igitur tandem nec
umquam excitari poterit, cum semel uita perfunctus exstiterit.
OPERA OMNIA TOMO IV 291

me reconfortar com a santidade de vida e a bondade. Semelhantemente


também vestirá o nu, quando estiver coberto com as vestes e atavios da
caridade. Também do mesmo modo há de receber-me como seu hóspede,
quando com toda a boa vontade me abraçar e no seu espírito edificar para
mim uma morada, para que nela eu de bom grado descanse. Com efeito,
que outras fome e sede e nudez e viagem, que assaz me atormentavam,
foram essas, senão o ardentíssimo desejo, em que eu ardia, de, por obra
minha, alimentar, aperfeiçoar e colocar o género humano nas tranquilas
moradas da justiça? Por conseguinte, este será o primeiro desvelo daquele
que esteja interessado em ser bem-aventurado. Ora, deste nascerá outro,
que consistirá em interessar-se pelos pobres, todavia de tal maneira que
cada um se sinta animado a alimentar e reconfortar cada pobre de modo
tal que considere que todos os benefícios que em meu nome são feitos
aos pobres, a mim mesmo são feitos. É que assim acolherei aquela boa
ação oferecida ao pobre como se fosse feita a mim.
Por outro lado, o Senhor há de protegê-lo; dar-lhe-á vida; torná-
lo-á venturoso na terra e possuidor de toda a espécie de bens; e
não o entregará às mãos e arbítrio dos adversários. Pelo que, se cair
doente, o Senhor assistir-lhe-á perto do seu leito e reparará e avigorará
as forças debilitadas e incessantemente lhe alisará a cama (como é
costume fazer-se aos enfermos, para que fiquem mais confortavelmente
deitados), até afastar todas as doenças com um tratamento assaz salutar.
Ao incorrer em grave pecado (é que pagava com o meu corpo a pena
do pecado) disse: “Senhor, tem compaixão de mim, porque expio o
castigo pelo pecado cometido contra Ti e dele sofro as penas como
se ele fosse meu.” Ora, além disso, os meus inimigos desejavam-me
males e diziam: “Quando morrerá esse homem sempre hostil aos nossos
atos? Quando veremos o nome dele arrancado de raiz da lembrança
dos homens?”
Pelo que, se alguém, com falsas mostras de boa vontade, por mim sente
ódio, com palavras totalmente mentirosas lisonjeia-me; mas no coração
maquina sacrilegamente o crime; depois sai para fora, para imediatamente
ir contar aos companheiros que respondi com palavras aleivosamente
compostas. Então todos os meus adversários às ocultas ocupam-se uns
com os outros em preparar a minha perdição e pensam em como maquinar
a minha ruína e destruição. E quando conseguiram o bom êxito do que
desejavam, ao verem-me atribulado pelos maiores tormentos e condenado
à morte mais cruel, que pensamentos os ensoberbecem? Que aberrações
proferem?
“Deus irado violentamente se lançou sobre ele para que pague o merecido
castigo pela sua impiedade. [245] Por conseguinte, há de enfim morrer e
jamais poderá ressuscitar, depois de ter vivido e morrido uma vez. Se ele
292 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Si ille tantum sanctitatis gloria praestitisset quantum prae se


ferebat, Deus certe illum minime deseruisset neque tantis
doloribus excruciari siuisset. Ex eo igitur quod fuerit Dei
ope destitutus et inimicorum uoluntati permissus, certissime
constat illum in fictae religionis specie scelestissimi facinoris
immanitatem occultasse.”
His quidem illi uerbis me sceleris arguere conabantur. Quin
etiam uir familiaris atque domesticus, cui ratio admonebat
ut ualde confiderem, qui mecum in mensa, more amici atque
adeo fratris, accumbebat, eisdemque dapibus utebatur meisque
disciplinis alebatur, a fide desciuit et, inimicis addictus, in me
calcibus insultauit. Tu, Domine, miserere mei; excita me ab
inferis et in destinato regiae maiestatis et amplitudinis solio
colloca, ut eis mercedem, tam immani sceleri debitam, fame,
uastitate, urbis excisione, perpetuo exitio, extrema ignominia
rependam. Hoc quidem argumento clarissimo perspiciam
mea studia Tibi semper gratissima fuisse, quod inimicum
meum de me gloriari laetitiamque insanis uocibus ostentare
minime passus sis. Tu uero me, propter meae sanctitatis et
innocentiae, magnitudinem salutari praesidio confirmasti
et ad maiestatis Tuae dexteram collocasti, ut in conspectu
Tuo sempiternum imperium administrem. Laudiis summis
et immortalibus efferatur Dominus Deus, qui uerum Israel
satu diuino propagatum, tantis beneficiis auxit et cumulauit
et in omni saeculorum aeternitate nomen illius sine ulla
intermissione celebretur.

Quemadmodum desiderat ceruus ad fontes aquarum.


Ps. 41. Apud Heb. 42

Summae uoluptatis expertes et ignari sunt omnes qui a


Dei placitis auersi sunt et corporis blanditias et lenocinia
persequuntur. Animus enim hominis iusti tranquillissima
pace fruitur; splendore diuino illustratur; pulchritudinem
diuinae mentis intuetur; Deo amore summo deuincitur; diuinis
opibus expletur et ad spem firmam gloriae sempiternae atque
diuinitatis erigitur. His bonis omnibus carent ii qui se, per
summum scelus atque dementiam, a Deo, bonorum omnium
fonte, disiungunt. Sunt enim illorum animi turbulentis motibus
de statu conuulsi; tenebris taetris immersi; a Dei tutela et
OPERA OMNIA TOMO IV 293

se avantajasse pela glória de uma santidade tão grande como a de que ele
fazia alarde, certamente que Deus o não teria abandonado nem permitido
que fosse atormentado por tão grandes dores. Por conseguinte, pelo facto de
que foi privado da ajuda de Deus e abandonado ao capricho dos inimigos,
conclui-se com a máxima certeza que ele ocultou a monstruosidade do
maior dos crimes sob a aparência de uma fingida religiosidade.”
Eles com certeza esforçavam-se por acusar-me de crime com palavras
como essas. E até um homem da minha amizade e intimidade, em quem
a razão aconselhava que eu tivesse grande confiança, que comigo se
sentava à mesa, como é costume entre amigos e até irmãos, e se servia
das mesmas comidas que eu e era nutrido pelos meus ensinamentos,
me atraiçoou e, aliando-se aos meus inimigos, agrediu-me a pontapés.
Tu, Senhor, tem compaixão de mim; faze-me sair dos infernos e coloca-me
no sólio da régia grandeza e majestade que me está destinado, para que
com a fome, a devastação, a ruína da cidade, a perpétua destruição e a total
infâmia eu lhes retribua a paga devida por um crime tão monstruoso. A
claríssima prova com que nitidamente verei que os meus desvelos sempre
Te foram muitíssimo gratos é que não toleres que o meu inimigo se glorie
de vencer-me nem demonstre alegria com desatinadas palavras. Mas Tu,
devido à minha grande santidade e inocência, fortaleceste-me com salutar
proteção, e colocaste-me à destra da Tua majestade, para que eu exerça
na Tua presença o poder sempiterno. Que com os mais altos e imortais
louvores seja exalçado o Senhor Deus, que com tão grandes benefícios
acrescentou e cumulou o verdadeiro Israel, produzido por geração divina,
e que o Seu nome sem qualquer interrupção seja celebrado por toda a
eternidade dos séculos.

SALMO 41
(42 entre os Hebreus)
Assim como o cervo suspira pelas fontes das águas.

O mais elevado prazer, desconhecem-no e dele se acham privados


todos quantos se afastam da vontade de Deus e vão empós das seduções e
encantos do corpo. Com efeito, o espírito do homem justo goza de uma paz
muito tranquila; é iluminado pelo esplendor divino; contempla a formosura
da inteligência divina; liga-se a Deus pelo amor mais alto; é colmado com
riquezas divinas e alça-se a uma firme esperança de glória sempiterna e de
uma condição divina. Carecem de todos estes bens os homens que, por causa
do sumo crime e loucura, se afastam de Deus, fonte de todos os bens. É que
violentas agitações arrancam os seus espíritos da quietação; mergulham-nos
em horríveis trevas; desamparados da guarda e proteção paterna de Deus,
294 D. JERÓNIMO OSÓRIO

patrocinio paterno derelicti, scelerum conscientia uexati et


iudicii formidine, quamuis eam opprimere conentur, assidue
perterriti. Sed, quo maiorem boni uoluptatem ex diuini
spiritus familiaritate percipiunt, eo maiore cura, maestitia,
sollicitudine torquentur cum ab illius iucunditate deserentur,
molestissimum enim est carere bonis quorum suauitatem
experiundo gustaueras. [246] Ad salutem tamen firmius
constituendam, opus est ut nostrae uitae Parens et salutis
auctor aliquando eam uoluptatem subtrahat, uel ut animum
(paulo fortasse confidentius elatum) ad studium humilitatis
erudiat, uel postremo ut sancti hominis patientiam exerceat,
ut deinde mentem ad breue tempus afflictam multo maiore
suauitate perfundat.
Haec autem in se rex sanctissimus Dauid saepius expertus
est, quod operibus suis admodum luculenter exponit. Nunc
enim uoluptatis eximiae significationem dat, nunc dolet
et angitur et curis (ut apparet) intabescit, rursus gaudio
mirabiliter exsultat et quodammodo triumphum ducit.
Deinde uehementius afflictatur ut multo pleniore Gaudio et
diuturniore uoluptate cumuletur. Tanta est enim, dum haec
uita manet, sollicitudinis et angoris in statum hominis florentis
ut neque sancti homines possint ab illa tuti et incolumes
omnino permanere. Cum autem Dauid a filio expulsus
desertam solitudinem peragraret et multis curis acerbissimis
premeretur, nulla tamen hominem sanctum grauius excruciabat
ea qua se spiritus iucunditate destitutum cernebat: maxime
autem cum memoria recoleret uoluptatem illam qua erat
affectus cum in Domini tabernaculum se conferebat; cum
dies festos cogitabat, cum hostias, quae uictimae salutaris
imaginem continerent, immolabat; cum denique animo
uehementer inflammato gratiarum uota persoluebat. Desiderio
igitur incensus et cupiditate pristinae condicionis stimulatus,
exclamat, inquiens:
Vt ceruus, ardentissima siti cruciatus, aquae fluentis
desiderio ingemiscit et fremit, sic anima mea cupiditate Tui
spiritus, o Domine, frequenter anhelat et magnos ex imo
pectore gemitus edit. Non opes humanas sitit anima mea, non
exquirit uoluptates inanes, non ambit gloriam popularem,
sed ad cupiditatem tantum diuini numinis exardescit fruique
Deo uero, ex quo uita omnium qui uiuunt, tamquam ex
perenni fonte, deriuatur acerrime concupiscit. Sic igitur
mecum assidue loquor:
OPERA OMNIA TOMO IV 295

são atormentados pela consciência dos crimes e sentem-se frequentemente


aterrorizados com a assustadora perspetiva do julgamento, muito embora se
esforcem por subjugá-la. Mas, quanto maior é o prazer que os bons recebem
da familiaridade com o Espírito divino, tanto mais se sentem atribulados por
maiores cuidados, tristezas e angústias quando são abandonados pela Sua
deleitável presença, porquanto é sumamente desagradável estar privado de
coisas boas de cuja doçura tínhamos gozado pela experiência. [246] Todavia,
a fim de obtermos a salvação em bases mais sólidas, é necessário que o Pai
da nossa vida e autor da salvação faça, por vezes, desaparecer esta deleitação,
quer para aperfeiçoar o espírito (quiçá o seu tanto ensoberbecido) no amor
pela humildade, quer enfim para exercitar a paciência do homem santo, com
o propósito de, após a alma ter sido provada por breve espaço de tempo,
sobre ela derramar uma doçura muito maior.
Ora, o santíssimo o rei David conheceu isto muitas vezes por experiência
própria, de tal dando relação nas suas obras de forma assaz excelente. É
que, ora dá mostras de um prazer sem par, ora sofre e se aflige e (como
é manifesto) o consomem cuidados, para exultar em seguida com uma
alegria extraordinária, celebrando de certa forma o triunfo. Depois, é mais
violentamente avexado a fim de que seja cumulado de um contentamento
muito mais completo e de um prazer mais duradouro. Com efeito, enquanto
dura esta vida, é tão poderosa a arremetida das inquietações e aflições
contra a tranquilidade do homem feliz que nem mesmo os homens santos
podem manter-se sempre inteiramente resguardados e a salvo dela. Ora,
ainda que David, depois de expulso pelo filho, vagasse pelo ermo e
fosse acabrunhado por inúmeros cuidados, todavia nenhum atormentava
mais dolorosamente o santo varão do que dar-se conta de que tinha sido
privado da alegria de espírito: sobretudo ao rememorar o grande prazer
que tinha sentido quando se dirigia para o tabernáculo do Senhor; ou
quando pensava nos dias de festa, quando imolava animais em sacrifício,
que serviam para representar simbolicamente a vítima salutar; quando,
por derradeiro, com um espírito vivamente inflamado, cumpria os votos
de agradecimento. Por isso, abrasado pela saudade e incitado pelo desejo
do anterior estado, brada as seguintes palavras:
Como o cervo, atormentado por uma sede ardentíssima, suspira
e geme com desejo da água corrente, assim a minha alma, Senhor,
arqueja amiúde com o desejo do Teu espírito e lança grandes gemidos
do mais fundo do peito. A minha alma não tem sede de riquezas
humanas, não procura vãs deleitações, não pretende a glória popular,
mas abrasa-se somente no desejo da divindade e vivamente apetece
gozar do verdadeiro Deus, de quem, como de uma fonte perene, se
deriva a vida de tudo quanto vive. Por isso, de contínuo assim falo
para mim mesmo:
296 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Quando Hierosolymam reuertar, ut religionem instaurem


et faciem Domini in Illius domo, quantum in hac uita licet,
inspiciam? Interim uero dapes omnes aspernor et cibi etiam
iucundissimi mihi fastidio sunt et lacrimis tantum pascor, quae
ex oculis meis continenter emanant. Neque uicem tantum
meam doleo, uerum et illud me ualde torquet quod gloria
sanctissimi numinis in discrimen apud homines ueniat qui,
ex meo acerbissimo casu, multis persuadere nituntur amentis
hominis esse religione sanctissima niti, cum credant me nullum
ex pietate fructum tulisse, quasi Deus aut nolit aut non possit
Suis optulari. Hoc enim mihi, quasi probrum, atque dies atque
noctes obiiciunt, quod nimia benignitatis diuinae fiducia ductus
sim et religionem meam iocis petulantissimis insequuntur,
dicunt enim: “Vbi est Deus tuus? Quem tibi fructum attulit
iustitiae cultus? Quod emolumentum ex sanctitate studio
consecutus es? Quid tibi rerum humanarum contemptio
profuit? Quanto fuisset utilius statum tuum humanis opibus
praemunire quam [247] nimia confidentia opem tibi diuinam
polliceri! Stultum enim est praesidia quae uidis contemnere
ut iis quae non uides statum praefulcias.”
Haec me hominum oratio discruciat, nam et meis calamitatibus
insultat, et nomini Tuo labem adspergere conatur. Hac
recordatione, Domine, anima mea intra pectus meum in
conspectu Tuo tota proiicitur ut Te summis conatibus, contento
studio, totis uiribis oret, obsecret et obtesteur ut sibi salutare
praesidium afferas: quod quidem minime despero, sed dilatio
me uehementissime descruciat. Itaque his curis ualde sollicitor
et haec uerba frequenter ex imo pectore fundo: “Quando
Iordanem transibo ut, cum sollemnis pompae celebritate,
hominum multitudine circumsaeptus, incaedam et ita in domum
Domini gradiamur cum laetis acclamationibus, cum gratiarum
actionibus, cum carminum concinne modulatorum festiuitate?”
Anima mea, cur ita deiiceris? Quid tumultuaris et me
cura molestissima conturbas? – Excita spem, uires assume,
Deo confide! Non enim erunt irrita uota mea: confido enim
futurum ut, in Illius conspectum admissus, pro multiplici
salute gratias agam. O Domine, anima quidem mea, curis
abiecta, deprimitur. Verum ego huic malo fidei remedium
uigilanter adhibebo. Nam, quamuis in uia quae trans Iordanem
est uagus inambulem, quamuis in Hermonim – monte modico
et ob idi satis infirmo uitae praesidio insistam –, numquam
tamen memoriam infinitae Tuae benignitatis abiiciam. Vt in
OPERA OMNIA TOMO IV 297

Quando regressarei a Jerusalém, para de novo celebrar os ritos e


contemplar, quanto é possível nesta vida, a face do Senhor na Sua
casa? Mas entretanto voto ao desprezo todas as iguarias e até sinto
fastio por viandas saborosíssimas e apenas me alimento de lágrimas,
que sem cessar correm dos meus olhos. E não só lastimo a minha
sorte, mas também sobremodo me atormenta o facto de a glória do
santíssimo Deus correr perigo entre homens que se fundam na minha
rigorosíssima desventura para persuadir a muitos que é próprio de um
homem insensato apoiar-se na santíssima religião, visto como estão
convencidos de que eu não colhi fruto algum da piedade – como se
Deus não quisesse ou não pudesse auxiliar os Seus. Com efeito, dia
e noite me censuram por ter-me deixado levar por uma excessiva
confiança na benignidade divina e atacam a minha religiosidade com
gracejos muitíssimo insolentes, pois dizem: “Onde está o teu Deus?
Que fruto alcançaste do culto da justiça? Que ganho obtiveste do zelo
da santidade? De que te serviu o desprezo das coisas humanas? Como
te teria sido mais útil proteger a tua condição com recursos humanos
do que, [247] com sobeja confiança, prometeres-te a ajuda divina! Na
verdade, é tolice desprezar os socorros que tens diante dos olhos para
te apoiares naquilo que não vês.”
Este discurso dos homens excruciou-me, pois não só insulta as minhas
desventuras, como também se esforça por manchar o Teu nome. Com
esta lembrança, ó Senhor, sob o Teu olhar, a minha alma inteira dentro
do meu peito abalança-se a, com os maiores esforços, ardente desvelo
e todas as forças, pedir, rogar e suplicar que lhe dês um auxílio salutar:
do que certamente não desconfio, mas a delonga atormenta-me do modo
mais intenso. Por isso sou muito atribulado por estes cuidados e do mais
fundo do peito solto frequentemente estas palavras: “Quando cruzarei o
Jordão, para, rodeado pela multidão dos homens, caminhar com a pompa
de um cortejo solene e assim avançarmos para a casa do Senhor, com
festivas aclamações, com ações de graças e com a alegria de cânticos
elegantemente modulados?”
Minha alma, porque é que te achas assim abatida? Por que motivo
te agitas e me perturbas com inquietações molestíssimas? – Desperta a
esperança, fortifica-te, confia em Deus! É que os meus votos não serão
vãos: de facto, estou confiante em que, admitido à Sua presença, hei de
dar graças por uma saúde múltipla. Oh Senhor, certamente que a minha
alma, abatida pelas minhas tribulações, se acha deprimida! Mas eu aplicarei
cuidadosamente a este mal o remédio da fé. Na verdade, embora vague
errante na estrada que se acha para além do Jordão, embora caminhe no
Hérmon – monte pequeno e por isso socorro assaz fraco para a vida –,
todavia nunca renunciarei à lembrança da Tua infinita benignidade.
298 D. JERÓNIMO OSÓRIO

me aquarum immensitas irruat et eluuio malorum eluuionem


excipiat, imbribus maximis, cum horrendo tonitru et caeli
fragore, uocis Tuae imperio demissis; ut inuectam calamitatem
alia calamitas repente consequatur; ut omnes fluctus Tui
in me uiolenter erumpant: semper tamen Tuae clementiae
memoriam conseruabo.
Dominus enim, discussis malorum tenebris, die Suae
misericordiae lucem spargebat et nocte carminis et
symphoniae laetam mihi materiam suppeditabat, ut uictorias
Illius benignitate partas concinerem Illiusque fide firmissime
nixus, non ad commenticia numina uita carentia, sed ad
Deum uerum immortali uita praecellentem quem semper
sancte colui supplices preces adhiberem. Itaque nunc,
eo tempore quo tantis curis et aerumnis afflictor, Deus,
cuius ope tamquam rupe munitissima quam nullis uiribus
expugnare possunt hostes mei maxime confido, huiusmodi
uerbis alloquor:
Domine, cur mei obliuisceris atque pateris ut tamdiu
pullatus incedam, dum hostis me modis omnibus afflictat
ossaque mea perfringit? Neque solum me capitali odio
prosequuntur inimici mei, sed etiam dedecore et ignominia
deformare nituntur, dum dicunt mihi: “Vbi est Deus tuus?”
At ego, quamuis praesidii dilatione nimis angar et curae
sanctissimae interdum animum meum peruagentur, numquam
tamen ita spem depono ut opiner Te mihi auxilio defuturum.
Me igitur colligo; [248] spiritum a timore reficio; animam
meam ad perferendum his uerbis exhortor: “Anima mea,
cur ita deiiceris? Quid tumultuaris et me cura molestissima
conturbas? Excita spem; uires assume; Deo confide! Non
enim erunt irrita uota mea; confido enim futurum ut in Illius
conspectum admissus, Illi pro salute multiplici immortales
gratias agam.”

Iudica me, Deus, et discerne causam meam.


Psal. 42. Apud Heb. 43

Cum calumnia falso rumore dissipatur sic insidet in animis


imperitorum ut difficillimum negotium sit eam prorsus euellere.
Inuidia namque facit ut, quemadmodum uirtutis egregiae fama
molestiam multis exhibit, ita infamia delectet eorum animos
OPERA OMNIA TOMO IV 299

Ainda que caia sobre mim a imensidade das águas e a inundação se


suceda à inundação dos males, tombando os maiores aguaceiros à Tua
voz imperiosa, com horrendo estrondo e estrépito do céu; ainda que
uma calamidade arraste subitamente consigo outra calamidade; ainda
que todas as Tuas procelas se desencadeiem violentamente contra mim:
mesmo assim conservarei sempre a memória da Tua clemência.
É que o Senhor, depois de dissipadas as trevas dos males, derramava de
dia a luz da sua misericórdia e, durante a noite, fornecia-me alegre motivo
de cânticos e música, para que eu pudesse celebrar harmoniosamente as
vitórias alcançadas pela Sua benignidade e, com muita firmeza apoiado
na fé n'Ele, oferecer preces suplicantes, não a divindades inventadas
despojadas de vida, mas ao verdadeiro Deus, eminente em vida imortal,
a quem sempre honrei religiosamente. Por isso agora, numa ocasião em
que sou atribulado por tão grandes cuidados e provações, tenho a máxima
confiança em Deus, cujo socorro é como um rochedo seguríssimo que os
meus inimigos não podem expugnar com nenhumas forças, e dirijo-me
a Ele com palavras deste teor:
Senhor, porque Te esqueces de mim e permites que ande há tanto tempo
vestido de luto, enquanto o inimigo me maltrata de todas as maneiras
e quebra os meus ossos? Os meus inimigos não apenas me perseguem
com um ódio mortal, mas também se empenham em aviltar-me através
da infâmia e da ignomínia, quando me dizem: “Onde está o teu Deus?”
Mas eu, embora assaz me aflija com a demora do auxílio e, por vezes,
cuidados santíssimos penetrem o meu espírito, todavia nunca a tal ponto
dou de mão à esperança que chegue a pensar que o Teu auxílio me faltará.
Por isso, recolho-me a mim mesmo; [248] encorajo o espírito, apartando-o
do temor; com estas palavras exorto a minha alma a perseverar até ao
fim: “Minha alma, porque te achas assim abatida? Porque motivo te agitas
e me perturbas com inquietações molestíssimas? Desperta a esperança;
fortifica-te; confia em Deus! É que os meus votos não serão vãos; de
facto, tenho confiança em que, admitido à Sua presença, hei de dar-Lhe
graças imortais por uma saúde múltipla.”

SALMO 42
(43 entre os Hebreus)
Julga-me, ó Deus, e decide a minha causa.

Quando a calúnia através de um falso rumor se espalha, de tal maneira se


instala nos espíritos dos ignorantes que se torna algo de muito difícil destruí-la
por completo. É que o ódio faz que, da mesma maneira que a fama de uma
excecional virtude ocasiona o pesar de muitos, assim a infâmia deleita as
300 D. JERÓNIMO OSÓRIO

qui alicuius insignem gloriam molestissime patiuntur. Sic autem


fit ut bonorum ius multis in locis oppressum conticescat quia
omnium aures, ne defensionem bonorum audiant, obstruuntur.
Quid igitur tunc erit faciendum cum homines iudices iniqui sint
et reiici nulla ratione possunt? Id, quod hoc in loco facit Dauid:
appellare Deum Illiusque sanctissimo iudicio causam commitere.
Cum is igitur esset sibi integritatis et innocentiae conscius et opera
inimicorum apud multos in suspicionem sceleris et immanitatis
ueniret, in hanc sententiam orationem ad Deum dirigit:
Domine, uides quam falso sim sceleris insimulatus? Quantis
calumniis sint ciuium animi in me furenter incitati? Quam
fallax sit humanum iudicium et quam libenter homines
calumniam comprobent et quam inuiti innocentiae patrocium
suscipiant? Cum enim omnem uirtutis excellentiam oderint
illam exstinctam cupiunt et ideo, cum sint ad damnandum
summa celeritate praecipites, sunt ad absoluendum tardissimi.
Tu igitur iudicio Tuo quam falso mihi crimen intendatur
ostende; causae meae defensionem suscipe; a gente scelerum
maculis infecta et ab homine perditissimo qui fraudibus et
iniuriis multitudinem instigat ut mihi interitum moliatur
eripe. Non enim mihi quidquam arrogo; iustitiam et pietatem
et reliquas uirtutes quibus excultus sum in beneficiis Tuis
numero; Tibi omnia in acceptis refero; non insolenter efferor,
sed me ipsum coram Te semper obiicio. Tu enim es fortitudo
mea et in Te solo spem salutis et dignitatis positam habeo.
Confido enim fore ut Tu beneficia Tua firmissimo praesidio
tuaris. Cur igitur in hac causa me dereliquisti? Cur pateris ut,
dum hostis me calumniis insequitur omnibusque modis pestem
et exitium machinatur, ego desertus et atratus incedam?
Emitte lucem Tuam, quae depellat et discutiat omnem erroris
caliginem; emitte ueritatem Tuam, ut illis opem celeriter
afferas quos in fidem recepisti. Haec spes me consolatur;
his [249] opibus sustentor; haec me praesidia confirmant.
Gratiae namque Tua esplendor et fidei Tuae constantia me
dirigent atque deducent in tabernacula Tua, ut in caelesti
ciuitate ciuibus beatis annumerer.
Accedam ad altare Tuum ut uictimas Tibi laudis immolem.
O summe Domine, meae uoluptatis et laetitiae Parens. Te
enim praesente, animus meus incredibili laetitia cumulatur,
cum uero Te subtrahis et me familiaritate Tua destituis,
sollicitudine et tristissima cura conficitur. Cum igitur fuero ope
Tua praesentissima liberatus et ad altare Tuum intromissus,
OPERA OMNIA TOMO IV 301

almas daqueles que de muitíssimo mau talante suportam a assinalada glória


de alguém. Ora, deste modo sucede que em muitas ocasiões fica reduzido ao
silêncio o direito dos bons porque os ouvidos de todos se tapam para não
ouvirem a defesa deles. Portanto que deverá fazer-se quando os homens são
juízes injustos e de maneira alguma podem ser afastados? Isto, que faz David
neste texto: chamar Deus e entregar a causa ao Seu santíssimo juízo. Por
conseguinte, uma vez que ele tinha consciência da sua pureza e inocência,
e por obra dos inimigos despertava em muitos a suspeita de ser culpado de
crime e desumanidade, dirige a Deus as seguintes palavras:
Senhor, vês com quanta falsidade sou acusado de crime? Com quão
grandes calúnias as almas dos meus concidadãos se encontram desatinamente
ensanhadas contra mim? O quanto é falso o juízo dos homens e de quão
bom grado os homens aprovam a calúnia e quão contrariados se dispõem a
tomar a defesa da inocência? É que, uma vez que odeiam toda a excelência
da virtude, desejam-na extinta, e por isso, sendo sumamente céleres
para se lançarem a condenar, são sobremaneira lentos para absolver. Por
conseguinte, mostra através do Teu juízo o como são falsos em acusar-me de
crime; toma a Teu cargo a defesa da minha causa; arranca-me do poder de
um povo manchado pelas nódoas dos crimes e do poder do perversíssimo
homem que com embustes e injustiças instiga a multidão a procurar matar-
me. Com efeito, não me arrogo seja o que for; a justiça e a piedade e as
demais virtudes conto-as entre os benefícios que me concedeste; de tudo
Te sou devedor; não me ensoberbeço arrogantemente, mas sempre me
prostro diante de Ti. É que Tu és a minha fortaleza e só em Ti deposito a
esperança de salvação e dignidade. Na verdade, confio em que Tu hás de
proteger com firmíssima defesa os Teus benefícios. Por conseguinte, por que
razão me abandonaste nesta causa? Por que razão permites que, enquanto
o inimigo me persegue com calúnias e de todas as maneiras maquina a
minha ruína e perdição, eu caminhe abandonado e coberto de luto? Lança
a Tua luz, para que ela expulse e disperse toda a cerração do erro; faze
ouvir a Tua verdade, por forma a rapidamente ofereceres ajuda àqueles
aos quais acolheste sob a Tua proteção. Esta esperança me consola; estas
[249] riquezas me amparam; estas ajudas me esforçam. É que o esplendor
da Tua graça e a firmeza da Tua proteção hão de dirigir-me e conduzir-me
até ao Teu santo monte e aos Teus tabernáculos, por forma a ser arrolado
na celestial cidade no número dos cidadãos bem-aventurados.
Aproximar-me-ei do Teu altar para Te imolar as vítimas sacrificiais do
Teu louvor. Ó Senhor supremo, Pai do meu prazer e alegria. Na verdade,
tendo-Te presente, a minha alma enche-se de inefável alegria, mas quando
Te apartas e me privas da Tua intimidade, sou atribulado pela inquietação
e tristíssimos cuidados. Por conseguinte, quando for libertado da Tua
eficacíssima ajuda e introduzido ao Teu altar, cantarei acompanhado à
302 D. JERÓNIMO OSÓRIO

ad citharam laudes Tuas canam, o Domine, cuius potentiam


uereor, cuius bonitatem amo, cuius religionem colo, a cuius
studio umquam aerumnis abducar. Anima mea, cur maerore
deiieceris? Cur tumultuaris et me sollicitudine tua conturbas?
Spem habe in Domino, fore enim confido ut ab omni calamitate
ope Illius eripiat et Illi gratias agam, qui meam salutem
praesidio Suo saepe constituit.

Deus, auribus nostris audiuimus.


Psal. 43. Apud Heb. 44

Populus Dei multis interdum malis opprimitur et hostes


uictores insultant seque Deo carissimos arbitrantur eo
quod suum imperium augeatur et uictoriae multiplicentur.
Inde diffidentia quaedam exoritur, quae multorum animos
sollicitudine non mediocri conturbat. Haerent enim et dubitant
num religio qua sunt adstricti ea sit qua Deus propitius fieri
possit. Non enim sceleribus suis ea mala quibus uexantur
adscribenda censent, sed ad fortunae temeritatem quae
potuisset diuino consilio coerceri reuocanda putant. Dum
igitur culpam agnoscunt et peccata commissa aliis longe
grauioribus in dies accumulant, ius diuinum postulat ut
qui corrigi et emendari nolunt exscindantur. In hac tamen
communi strage, pietas bonorum longe clarius enitescit, nam
doloribus et cruciatibus exercentur et eorum fides de hostium
tyrannide, de principum odio, de mortis postremo immanitate
uictoriam illustrem consequitur, et tunc uel maxime uirtus
diuina perspicitur cum maximi impiorum conatus ad illam
infringendam sine ullo fructu comparantur. Interim tamen
imperitorum fides languescit et religio uiolatur et mala
opinio a multis de uerissima sanctitate recipitur. Hoc est
autem quod homines sancti indignissime patiuntur, non quod
diuinum consilium damnent, sed quod Dei gloriam apud
multitudinem obscurari et religionem paulatim in obliuionem
uenire perspiciant. Orant igitur summo studio et contentione
Deum ut modum suppliciis imponat; ut res perditas instauret;
ut gloriae Suae consulat; ut nominis Sui hostes euertat et
populum Suum in splendorem tandem restituat.
[250] Dauid igitur, cum diuina mente praesentiret clades
quae erant Israeli ab Assyriis et Aegyptiis et Chaldaeis et
OPERA OMNIA TOMO IV 303

cítara as Tuas loas, ó Senhor cujo poder temo, cuja bondade amo, cuja
divindade adoro e de cuja amizade provações algumas jamais me afastarão.
Ó minha alma, por que razão a tristeza te abate? Por que razão te agitas
e com a tua inquietação me perturbas? Deposita esperança no Senhor,
pois tenho confiança em que mediante a Sua ajuda hei de ser arrancado
de todas as desgraças e darei graças Àquele que amiúde funda a minha
salvação na Sua proteção.

SALMO 43
(44 entre os Hebreus)
Nós, ó Deus, com as nossas orelhas ouvimos.

O povo de Deus é por vezes oprimido por inúmeros males, e os


inimigos vencedores insultam-no e cuidam que Deus os tem em grande
estima porque o seu poderio se acrescenta e as vitórias se multiplicam.
Daqui nasce uma certa desconfiança que perturba as almas de muitos com
uma inquietação nada pequena. De facto, assalta-os a dúvida e hesitam
sobre se a religião que professam é aquela mediante a qual Deus se
lhes pode tornar propício. É que pensam que não devem ser imputados
a crimes seus aqueles males com os quais são atribulados, mas cuidam
que cumpre assacá-los aos acasos do destino, que a deliberação de Deus
teria podido evitar. Por consequência, quando se reconhecem culpados e
de dia para dia juntam aos pecados cometidos outros muito mais graves,
as leis divinas exigem que os que não querem corrigir-se nem emendar-
se sejam destruídos. Todavia, nesta geral ruína, a religiosidade dos bons
resplandece com muito maior luz, pois são postos à prova pelas dores
e tribulações, e a sua fé alcança uma brilhante vitória sobre a tirania
dos inimigos, o ódio dos poderosos e a final crueldade da morte, e a
virtude divina dá-se sobretudo a conhecer quando os ímpios empenham
sem qualquer êxito os máximos esforços para quebrantá-la. Entrementes,
todavia, a fé dos ignorantes enlanguesce, a religião é violada e muitos
passam a perfilhar uma errada opinião acerca da mais verdadeira santidade.
Ora, é isto algo que os homens santos suportam a mui duras penas, não
porque condenem as determinações de Deus, mas porque se apercebem
de que entre a multidão a glória de Deus se obscurece e a religião vai
aos poucos caindo no esquecimento. Por consequência, pedem com o
máximo desvelo e empenho a Deus que modere os castigos; restaure os
bens perdidos; atenda à Sua glória; destrua os inimigos do Seu nome e
acabe por restituir ao Seu povo o perdido luzimento.
[250] David, portanto, como antecipadamente e por inspiração de
Deus tivesse conhecimento das desgraças que Israel deveria sofrer da
304 D. JERÓNIMO OSÓRIO

ab aliis hostibus accipiendae, Deum orat et obsecrat ut


seueritatem Suam breui termino circumscribat ne, si tempus
tam dirae acerbitatis extra modum prodierit, bonorum etiam
salus in discrimen incidat. Hoc tamen erit operae pretium
admonere Dauidem non de Iudaeis tantum, sed de Christianis
etiam, propter studium pietatis afflictis, omni contumelia
laceratis et suppliciis excruciatis, orationem habere. Sanctos
igitur inducit de tantis et tam atrocibus iniuriis querimoniam
habentes in hanc sententiam:
Domine, auditione percepimus et maiores nostri
commemorando retulerunt et memoriae sempiternae
mandauerunt opus admirandum quod illorum diebus effecisti.
Manus enim Tua gentes e sedibus suis exstirpauit et in
earum loca patrum nostrorum plantaria transtulit, ut illic
altissimas radices agerent uberrimosque fructus in opima tellure
profunderent. Multis plagis populos sceleribus horrendis infames
attriuisti eosque tandem expulisti et eiecisti. Parentes nostri,
non armis suis, sedes illas hostium occupauerunt; non hominum
sortium multitudine et insito robore salutem consecuti sunt,
sed dextera Tua inuicta et brachium sanctum Tuum et splendor
uultus Tui eos quos in gratiam recepisti uictoriis admirandis
illustrauit. Tu idem ipse es Rex meus, cuius sanctissimis legibus
obtemperabo; Tu Deus meus, cuius ope salutari confido nec est
quidquam quod Te inuertere et immutare possit, cum Tibi sis
in omni saeculorum aeternitate simillimus. Ergo, quemadmoum
olim patribus nostris salutem multis in locis attulisti, sic nunc
oramus ut Iacobi propagini salutem afferre digneris. Gratia Tua
freti, hostes nostros facillime fundere et fugare et aduersarios
nostros ui et robore nominis Tui proculcare poterimus. Nec
enim arcu meo nitar neque gladius meus mihi salutem dabit.
Tu solus nos ab hostium nostrorum uiribus et impetu tutos et
incolumes seruauisti; Tu inimicos nostros feroces et infestos
strauisti, adeo ut dedecore et ignominia sempiterna notarentur.
Eorum enim conatus fracti sunt et spes quae illis animos
afferebant euanuerunt. Itaque omnibus diebus, non uirtute
nostra, sed ope diuna gloriabimur, nomenque Tuum laudibus
sempiternis efferemus.
Quae igitur tanta nunc rerum mutatio facta est? Quae tam
horribilis et pertimescenda condicionis antiquae conuersio?
Nos enim deseruisti et ignominiae maculis inussisti, neque Te
ducem et imperatorem, ut olim, nostris exercitibus parebuisti.
Proiicis nos et hosti terga dare compellis et qui nos oderunt
OPERA OMNIA TOMO IV 305

parte de assírios, egípcios, caldeus e outros inimigos, roga a Deus e


suplica-Lhe que limite o Seu rigor a um breve prazo de tempo, para
evitar que, caso se prolongue para além da medida o tempo de uma tão
terrível provação, também corra perigo a salvação dos bons. Todavia,
valerá a pena avisar que David está a falar não só dos judeus, mas
também dos cristãos que, devido ao seu zelo da religiosidade, são
atribulados, ultrajados e torturados com toda a sorte de suplícios.
Portanto, apresenta do modo seguinte os santos que se queixam de
tão grandes e tão medonhas injustiças:
Senhor, ouvimos contar e os nossos antepassados lembrando nos
relataram e conservaram em eterna memória a espantosa obra que no
tempo deles levaste a cabo. É que a Tua mão arrancou os gentios dos seus
lugares e mudou para os seus territórios os rebentos dos nossos pais, para
que aí lançassem profundíssimas raízes e produzissem abundantes frutos na
fertilíssima terra. Com muitas pragas arruinaste os povos infames por seus
abomináveis crimes e ao cabo expulsaste-os e desterraste-os. Os nossos
pais ocuparam, não com as suas armas, aqueles territórios dos inimigos;
alcançaram a prosperidade, não mediante o grande número e o ingénito
vigor de homens fortes, mas a Tua destra invencível e o Teu santo braço
e o resplendor da Tua face iluminou com espantosas vitórias aqueles
que acolheste na Tua graça. Tu és o mesmo meu Rei a cujas santíssimas
leis hei de obedecer; Tu és o meu Deus, em cuja salutar ajuda confio e
não existe coisa alguma capaz de modificar-Te e mudar-Te, uma vez que
por toda a eternidade dos séculos és totalmente semelhante a Ti mesmo.
Logo, da mesma maneira que outrora ofereceste em muitas ocasiões a
salvação aos nossos antepassados, assim hoje Te pedimos que Te dignes
conceder a salvação à prole de Jacó. Apoiados na Tua graça, poderemos
mui facilmente desbaratar e afugentar os nossos inimigos e com a força
e vigor do Teu nome esmagar os nossos adversários. É que nem buscarei
amparo no meu arco nem a minha espada me dará a salvação. Só Tu
nos conservaste seguros e incólumes diante da violência e arremetidas
dos nossos inimigos; Tu deitaste por terra os nossos ferozes e odientos
inimigos, a tal ponto que ficaram marcados com a vilta da ignomínia e
desdouro eternos. É que os seus ataques frustraram-se e desvaneceram-
se as esperanças que os ensoberbeciam. E por isso todos os dias nos
gloriaremos, não da nossa fortaleza, mas da ajuda divina, e exalçaremos
o Teu nome com eternos louvores.
Por conseguinte, que tão grande mudança da situação é agora esta?
Que transformação tão horrível e temerosa do antigo estado? De facto,
abandonaste-nos e gravaste-nos com o labéu da ignomínia, e não Te
mostraste como guia e general dos nossos exércitos, como antigamente.
Abandonas-nos e obrigas-nos a fugir diante do inimigo e, os que
306 D. JERÓNIMO OSÓRIO

omnia bona nostra sibi impune deripiunt. Dedisti nos, tamquam


pecora caedi in conuiuium destinata et sedibus exterminatos
in uarias gentes, a notitia Tui nominis abhorrentes, dispulisti.
Vilissimo pretio [251] populum Tuum in seruitutem exteris
gentibus addixisti, nec enim labore neque magnis sumptibus
de nobis uictoriam consecuti sunt, paruoque certamine nos
sibi seruire compulerunt. Insigne dedecoris exemplum uicinis
nostris facti simus; gentes finitimae in nos asperis uerbis
inuehuntur; maledictis nos atque derisione proscindunt,
ita ut nemo sit qui in tantis calamitatibus nobis aliquid
humanitatis impertiat. Apud gentes in extremae ignominiae
prouerbio uersamur ut, qui uelit in aliquem contumeliam
iacere, Israelis nomen usurpet eumque nobiscum comparet,
ut nihil esse uideatur in terris genere nostro contemptius. Nos
conuiciis omnibus insequuntur; nobis capitibus in utramque
partem frequenter agitatis illudunt; nullumque locum nostri
nominis maledictis configendi praetermittunt. Quotidie
cerno me contumelia lacerari faciesque mea, uerecundia
perturbata, magnitudine ruboris obducitur. Aures meae probris
et maledictis in me coniectis circumsonant; uoces eorum
qui se poenas persequi maiorum suorum in nostro supplicio
dicunt audiendi sensus obtundunt.
Omnes hae calamitates in nos inuectae et importatae sunt,
cum interim numquam Tui obliuiscamur neque foederis et
pactionis Tuae sanctitatem uiolemus. Cor enim non auersum
est, ut debitum officum proderet, gressusque nostri a uia
Tua non deflexerunt, quamuis fuissemus malis omnibus
oppressi et impediti. In locum enim serpentibus uenenatis
infestum nos detrusisti et densa taetrae mortis caligine
circumfusi sumus. Quod, si nos obliuio nominis Domini
cepisset aut manus nostrae fuissent in deos alienos intentae
ut ab illis opem flagitarent, numquid tam scelestum facinus
Deum latere potuisset? Non profecto. Ille namque etiam ea
quae in intimo cordis recessu latent perscrutatur et nihil
est, tantis motibus obstrususm atque reconditum, quod non
perspectum atque recognitum habeat. Haec cogitatio facit ut
numen Illius perpetuo uereamur nihilque esse possit quod
nos a studio pietatis abducat. Neque solum contumelias et
conuicia sustinemus, uerum et ad moriendum animis prompti
atque parati sumus et, propter nominis Tui gloriam, morti
singulis prope diebus addicimur et pro ouibus ad lanienam
perducendis uulgo numeramur.
OPERA OMNIA TOMO IV 307

nos odeiam, arrebatam para si impunemente todos os nossos bens.


Entregaste-nos ao abate, como reses destinadas a serem comidas em
banquetes e, desterrando-nos das nossas terras, espalhaste-nos por vários
povos, hostis a conhecerem o Teu nome. Por baixíssimo preço [251]
vendeste o Teu povo como escravo a raças estrangeiras, pois alcançaram
vitória sobre nós sem trabalho e sem grandes despesas, e com pequeno
esforço nos obrigaram a ficar ao seu serviço. Tornamo-nos um notório
exemplo de desdouro para os nossos vizinhos; os povos confinantes
arremetem contra nós com palavras duras; enxovalham-nos com baldões
e zombarias, de tal maneira que no meio de tão grandes desgraças
não existe ninguém que mostre connosco um pouco de humanidade.
Tornamo-nos entre os povos um exemplo da mais baixa desonra, de
tal maneira que, quem quiser insultar outrem, usa o nome de Israel e
compara-o connosco, para que dê visos que na terra nada existe de
mais desprezível do que a nossa raça. Somos ultrajados com toda a
sorte de insultos; fazem mofa de nós, movendo muitas vezes a cabeça
para ambos os lados; e não há lugar em que deixem de aviltar o nosso
nome. Todos os dias me vejo ferido por injúrias e o meu semblante,
perturbado pelo pejo, cobre-se de intenso rubor. Aos meus ouvidos
ressoam as maldições e doestos lançados contra mim; ensurdecem-me
os brados daqueles que dizem que com o nosso suplício vingam os
seus antepassados.
Todas estas desgraças foram lançadas e arremessadas contra nós, sendo
certo que entretanto nunca nos esquecemos de Ti nem transgredimos a
santidade do pacto e aliança contigo celebrado. É que o nosso coração não
se desviou, por forma a faltar ao cumprimento do seu dever, e os nossos
passos não se apartaram do Teu caminho, embora tivéssemos sido oprimidos
e estorvados por toda a sorte de males. Na verdade, atiraste-nos para uma
paragem infestada de peçonhentas serpentes e fomos cercados pela densa
cerração de uma medonha morte. Pelo que, se se tivesse apoderado de
nós o esquecimento do nome do Senhor ou tivéssemos erguido as nossas
mãos para deuses estranhos, a fim de pedir-lhes ajuda, acaso um tamanho
sacrilégio teria podido esconder-se aos olhos de Deus? Com certeza que
não. De facto, Ele esquadrinha até aquelas coisas que se ocultam no mais
fundo recesso do coração e não existe nada, que se encontre encerrado e
oculto por tão grandes emoções, que ele não tenha examinado e perscrutado.
Este pensamento faz que incessantemente reverenciemos a Sua divindade
e nada possa existir que nos desvie do zelo da piedade. E não apenas
suportamos baldões e insultos, mas também estamos em nossas almas
prontos e preparados para morrer e, por amor da glória do Teu nome,
quase todos os dias nos entregamos à morte e somos considerados pelo
vulgo como ovelhas que são conduzidas à tosquia.
308 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Periculum tamen, Domine, uides quod ex magnitudine


tantae afflictionis intenditur. Excita igitur uim et potentiam
Tuam. Cur enim tantis rebus indormies? Cur, in scelestissimo
facinore hominum, qui nos cogere nituntur falsis numinibus
immolare, coniues? Cur a nobis pestem, per homines serpentina
truculentia praeditos, importatam non auertis? Si ad punienda
Tuorum flagitia et gloriam nominis Tui clarius illustrandam
opus fuit nos tantis incommodis afflictari: utrumque iam
perfectum est. nam flagitiorum uulnera, quae erant sanabilia,
plagis sanata sunt et iam satis perspectum est diuinam
uirtutem nullis posse suppliciis infringi. Expergiscere iam
tandem aliquando neque in perpetuum auxilium Tuum a nobis
remouendum [252] censeas. Cur enim faciem Tuam tamdiu
occultabis, ne gratiae Tua esplendor in nobis appareat? Cur
miseriam et aerumnam quam diutissime passi sumus obliuione
conterendam existimabis? Anima enim nostra in terram
depressa est animique sensibus intimis multae telluris iniectu
sepulti sunt. Non igitur corporum uita tantum in discrimen
inducitur, uerum et animis grauissima pericula subeunda
sunt, si diutius auxilium distuleris. Exsurge et ut spem feras
accelera nosque, propter clementiae Tuae magnitudinem, e
tam misera seruitute in libertatem uindica.

Eructauit cor meum uerbum bonum.


Psal. 44. Apud Heb. 45

Hoc carmine Dauid laetitia incredibiliter elatus exsultat;


Christi laudes diuina oration persequitur; Ecclesiae de nuptiis
felicissimis gratulatur; regni sempiterni opes exaggerat; amoris
diuini uim miris uerbis amplificat. Hac igitur oratione nihil
grandius et magnificentius, nihil elegantius atque iucundius,
nihil denique utilius et salutarius poterit excogitari. Sed
diuiunum dicendi genus humanas laudes minime requirit.
Praestat igitur diuinum Spiritum qui ex pectore sanctissimi
regis oracula fundit audire quam diutius in admiratione
tanti carminis immorari. Hoc tamen est animaduertendum
Dauid et summum poetam fuisse et summum etiam carminis
a se compositi modulatorem. Cum igitur is carmina sua
modulabatur, non erat cur in operis principio aliud nomen
quam suum apponeret. Cum uero alii cantores sonum
OPERA OMNIA TOMO IV 309

Todavia, Senhor, vês o perigo que se abate sobre muitos devido à grandeza
de uma tão grande tribulação. Por conseguinte, mostra a Tua força e o Teu
poder. De facto, por que motivo hás de ser indiferente a tão grave situação?
Por que motivo fechas os olhos ao perversíssimo atentado dos homens que
se esforçam por obrigar-nos a imolar às falsas divindades? Por que motivo
não desvias de nós a perdição, trazida por homens dotados da crueldade
de serpentes? Se para castigar as infâmias dos Teus e mais claramente
nobilitar a glória do Teu nome foi necessário que nós fôssemos atribulados
com tão grandes incomodidades: uma e outra coisa já foram levadas a
cabo. Com efeito, as feridas das infâmias, que eram curáveis, foram curadas
com golpes e já se vê de sobejo que não há nenhuns suplícios capazes de
quebrantar a divina fortaleza. Desperta enfim e não Te pareça que devas
apartar de nós o Teu incessante auxílio. [252] Com efeito, por que razão
hás de ocultar durante tanto tempo a Tua face, não deixando que apareça
em nós o resplendor da Tua graça? Por que razão hás de considerar que
devem ser votadas ao esquecimento a mofina e provações que padecemos
há muitíssimo tempo? De facto, a nossa alma jaz de rojo no chão e o ânimo
ficou sepultado no mais íntimo, coberto com muita terra. Por conseguinte,
não é só a vida dos corpos que corre perigo, mas também as almas devem
expor-se a gravíssimos riscos, se por mais tempo protelares o Teu auxílio.
Por conseguinte, levanta-Te e dá-Te pressa em trazer a esperança e, em razão
da Tua grande misericórdia, liberta-nos de uma tão mofina servidão.

SALMO 44
(45 entre os Hebreus)
O meu coração proferiu uma palavra boa.

Neste salmo David rejubila arrebatado por uma extraordinária alegria;


com palavras divinas eleva louvores a Cristo; congratula-se com as núpcias
da Igreja; encarece as riquezas do reino sempiterno; com uma linguagem
admirável engrandece a força do amor divino. Por isso, será impossível
imaginar-se algo de mais grandioso, de mais esplendoroso, de mais
elegante, de mais festivo e, por derradeiro, de mais útil e mais salutar do
que este cântico. Mas a linguagem divina não requer louvores humanos.
Por conseguinte, é preferível ouvir o divino Espírito, que faz ouvir os
Seus oráculos a partir do peito do mais santo dos reis, a determo-nos por
mais tempo na admiração de um poema tão extraordinário. Todavia, deve
ter-se em consideração que David foi não apenas o maior poeta, como
igualmente o maior intérprete do poema por ele composto. Por conseguinte,
quando era ele quem interpretava os seus poemas, não havia motivo para
colocar no início da composição outro nome que não fosse o seu. Mas,
310 D. JERÓNIMO OSÓRIO

modulabantur, eorum nomina minime silentio supprimenda


putabat. Ita autem fiebat ut aliquando nomen suum tantum,
aliquando rursus eorum qui modos fecerant nomina referret,
et saepe etiam nomen suum cantorum nominibus adiungeret.
Haec diximus ut admoneamus eos qui in Dauidis operibus
uersari cupiunt non esse cur existiment haec diuina carmina
esse ad alios auctores referenda propterea quod Dauidis
nomen adscriptum minime interdum uideant: sed id plerisque
satis notum arbitror. Vt igitur id omittam, illud tantum
admoneo nihil hoc in loco triste, nihil lugubre, nihil querulum,
nihil aliqua contagione sollicitudinis inquinatum esse, sed
flores et lilia et amoris diuini festiuitates et summi decoris
uenustatem et elegantiam contineri. Quocirca necesse est
ut laetantibus animis tam dulcis atque iucundi carminis
sententiam audiamus. Sic igitur ait Dauid:
Cum animus sit iucundissimis cogitationibus expletus et
Spiritus diuini dapibus egregie saturatus, necesse profecto
est ut ex cordis abundantia foras redundet et effluat oratio
salutaris atque iucunda et inclusis uenis unde profluit
consona, quae diuitiarum diuinarum affluentiam in oculis et
adspectu constituat. Haec autem opera mea Regi sempiterno,
qui omnia [253] potestate summa complectitur, dedico et
consecro, et nihil a me concinnatum esse uolo quod non ad
Illius gloriam dirigatur. Quamquam, quid attinet opera mea
nominare quae Spiritus sancti consilio designata, constituta
omnibusque numeris perfecta et absoluta sunt? Ille mentem
meam illustrat, ut uideam; ille animum incendit, ut cupiam;
ille uires suppeditat, ut possim ornamenta tantae uirtutis
exponere. Vt enim calamus in manu scribae diligentis et
expediti positus ita litterarum notas exarat ut sententia minime
calamo, sed scribae qui calamum uersat adscribenda sit, ita
lingua mea, non quae sunt ab illa excogitata, sed quae sunt
a Spiritu diuino, qui me monet, impellit et incitat, dictata
diligenter et expedite persequitur. Adeste igitur animis, et non
orationem meam, sed diuinam, attentissima consideratione
percipite. Materia uero carminis est summi decoris excellentia,
quam in Rege nostro intuens obstupesco. Eam enim, quantum
licet, uerbis exprimere conor.
Quanta elegantia et uenustate praecellis, o rex inuictissime!
Sapientiae namque Tuae lumen radios latissime diffundit;
iustitiae tuae splendore omnia circumquaque posita collucent;
uirtutis tuae inuicto praesidio omnes opes tuae muniuntur;
OPERA OMNIA TOMO IV 311

quando os cantores eram outros, considerava que os seus nomes de modo


algum deveriam ser silenciados. Ora, deste modo acontecia que algumas
vezes indicava apenas o seu nome, outras os nomes dos que faziam o
acompanhamento musical, e amiúde juntava também o seu nome aos
nomes dos cantores. Fizemos esta observação para advertirmos aquelas
pessoas que pretendem dedicar-se às obras de David de que não há razão
para pensarem que estas poesias divinas devam ser atribuídas a outros
autores levados pela circunstância de que por vezes não vêem escrito o
nome de David: mas creio que a maioria das pessoas está ciente disto.
Deixando portanto isso de parte, tão somente advirto que neste texto
não há nada de triste, nada de lúgubre, nada de lamuriento, nada que
ressumbre desassossego, mas nele se encerram flores e lírios e regozijos
do amor divino e a formosura e agrado da mais elevada honra. Por isso é
necessário que escutemos com ânimo jubiloso a mensagem de um poema
tão doce e tão alegre. Ora, é assim que David se exprime:
Porque o espírito se encontra repleto dos mais alegres pensamentos e de
modo singular saciado das iguarias do Espírito divino, torna-se inevitavelmente
forçoso que da abundância do coração transbordem e se derramem para o
exterior palavras alegres e salutares e em harmonia com os veios de onde
mana, as quais servem para dar a conhecer e exteriorizar a abundância das
riquezas divinas. Ora, estas minhas obras dedico-as e consagro-as ao Rei
sempiterno, que com o poder supremo abarca tudo quanto existe, [253] e
não quero que a minha arte componha senão aquilo que tem como alvo a
Sua glória. Ainda que, que sentido faz dar o nome de obras minhas àquilo
que foi traçado, criado, aperfeiçoado em todas as suas partes e concluído
por inspiração do Espírito Santo? É ele quem me ilumina, para que eu veja;
ele quem me abrasa o ânimo, para que eu deseje; ele quem me concede as
forças, para que eu possa dar a conhecer ornamentos de tamanho valor. É
que, assim como a pena colocada na mão de um escriba hábil e expedito
traça os caracteres por tal forma que a mensagem escrita deve ser atribuída
não à pena, mas sim ao escriba que dela se serve, do mesmo modo a minha
língua expõe de modo diligente e expedito, não aquilo que ela pensou, mas
sim o que lhe é ditado pelo Espírito divino que me move, impele e incita.
Por conseguinte, prestai atenção, e com grande concentração de espírito
atendei, não às minhas palavras, mas às palavras de Deus. Na verdade,
o assunto do cântico é a excelência da beleza suprema, com a qual fico
estupefacto ao contemplá-la no nosso Rei. Ora, é a ela que me esforço por
exprimir, na medida em que tal me é permitido.
Ó rei invencível, quão grande é a formosura e primor com que te
avantajas! De facto, a luz da tua sabedoria estende até muitíssimo longe
os seus raios; tudo que está posto à volta brilha com o resplendor da tua
justiça; todas as tuas riquezas são protegidas pela invencível guarda da tua
312 D. JERÓNIMO OSÓRIO

moderatione ornatus et totius animi concinnitas quae in te


mirabiliter elucet, caeli concentum et harmoniam uincit;
omnes denique homines qui pulchritudine mentis excellentes
exsititerunt, in quibus nempe Deus imaginem Suae claritatis
impressit, a te longissimo interuallo superantur. Illorum
namque pulchritudo a te, tamquam a perenni decoris et
elegantiae fonte, hausta atque delibata fuit.
Quid de eloquentiae magnitudine dicam? Tu enim dicendo
iacentes erigis; tu elatos et confidentes de statu detorques;
et tu maestos et afflictos consolaris; tu mortales ad te
iucunditate orationis allectas; tu mentes humanas disciplinis
diuinis instituis; tu homines rebus terrenis addictos studio
immortalitatis inflammas. Ignem implicas in uisceribus
hominum ita ut multi nihil malint quam omnibus terrenis rebus
spoliari ut expediti in caelum facilius euehantur. Neque mirum
si tantum eloquentia uales. Ea namque, qua tam admiranda
opera moliris, non humano ingenio atque disciplinae, sed
Deo tantum, qui te opibus diuinis et ornamentis sempiternis
instruxit, adscribenda est. Excita ergo, uir fortissime, uires
tuas et gladio tuo, quod est uerbum Dei, super femur
apte succingere, ut summum decus et gloriam consequare.
Nam libidinis immanitatem resecabis, flagitiorum fibras
euelles; inimicorum omnium copias fundes; hostis sempiterni
tyrannidem delebis, ut regnum modertione singulari constituas,
quod quidem longe diuersa ratione ab ea quam homines in
regio gradu locati sequi plerumque solent gubernabis. Illi
namque huic uni curae praecipue incumbunt ut milites cogant,
equitatus parent, tributa imperent, pecuniam coaceruent
statumque suum et armorum praesidio et subditorum metu
praefulciant. Cum enim parum de rei publicae salute et
multum de dominatione sua cogitent, non ut diligantur, sed
ut metuantur [254] elaborant. Sic autem euenit ut deterrime
illis omnia plerumque cadant. Tu uero, gloria uerissima, quae
uirtutum maximarum excellentibus meritis continetur, innixus,
regnum feliciter administrabis. In ueritatis igitur firmitatem
inscende, animos subditorum tibi mansuetudine et lenitate
concilia, iustitiam summo studio conserua hisque praesidiis
cinctus dextera tua res admirabiles et nimis horrendas bellicis
in rebus efficies. Sagittae enim tuae erunt acutissimae et in
cordibus hostium turoum figentur; populi sub te sternentur;
et omnium tandem nationum imperium continebis regnumque
tuum erit opibus diuinis stabilitum. Deus enim uerus est et
OPERA OMNIA TOMO IV 313

virtude; a formosura do equilíbrio e a harmonia de todo o espírito que


em ti resplandecem de modo admirável, vencem a consonância e acordo
do céu; finalmente, superas por uma distância incrível todos os homens
que se singularizaram por uma excepcional formosura de entendimento,
isto é, aqueles nos quais Deus imprimiu a imagem da Sua claridade. De
facto, a formosura deles foi bebida e tomada de ti como de fonte perene
da beleza e do primor.
Que direi acerca da grandeza da eloquência? É que tu, ao falares,
levantas os abatidos; derribas da sua posição os soberbos e os insolentes;
e tu consolas os tristes e os atribulados; com palavras alegres, atrais até
ti os mortais; tu instruis os entendimentos humanos com as doutrinas
divinas; tu abrasas no amor da imortalidade os homens dedicados às coisas
terrenas. Ateias fogo nas entranhas humanas de tal forma que muitos nada
mais querem senão serem privados de todos os bens terrenos para sem
empeços mais facilmente subirem ao Céu. E não é para causar espanto se
a tua eloquência tem tão grande poder. Com efeito, é que esta eloquência,
graças à qual realizas obras tão admiráveis, não deve ser atribuída à
inteligência e saber humanos, mas unicamente a Deus, que te proveu de
riquezas divinas e de ornamentos sempiternos. Portanto, ó fortíssimo varão,
desperta as tuas energias e cinge bem a tua espada, que é a palavra de
Deus, sobre a tua coxa, para que consigas a glória e honra supremas. É que
destruirás a monstruosa sensualidade e arrancarás as raízes das indignidades;
derrotarás os exércitos de todos os contrários; acabarás com a tirania do
inimigo sempiterno, para estabeleceres a tua soberania em consonância
com uma direção extraordinária, porque decerto governarás de um modo
muito diferente daquele que as mais das vezes costumam seguir os homens
colocados na posição régia. É que eles têm como preocupação exclusiva
ajuntar soldados, aprestar tropas de cavalaria, impor tributos, amontoar
dinheiro e fortalecerem a sua posição não só com o apoio das armas como
também com o temor dos súbditos. Com efeito, uma vez que se preocupam
pouco com a prosperidade do Estado e muito com o seu poder absoluto,
esforçam-se, não por serem amados, mas por serem temidos. [254] Ora, deste
modo o que se dá é que ordinariamente tudo lhes acontece pelo pior. Mas
tu, apoiado na verdadeira glória, que se encerra nos excelentes merecimentos
das máximas virtudes, hás de governar prosperamente o teu reino. Portanto,
firma-te sobre o chão sólido da verdade, atrai o ânimo dos teus súbditos
com a mansidão e a brandura, com o máximo desvelo respeita a justiça e,
armado com estas defesas, com a tua dextra realizarás na guerra façanhas
admiráveis e muito espantosas. É que as tuas setas serão muitíssimo afiadas
e cravar-se-ão no coração dos teus inimigos; os povos submeter-se-ão ao
teu poder; e, ao cabo, dominarás todas as nações e o teu reino consolidar-
se-á com as riquezas divinas. Na verdade, Deus é verdadeiro e por isso é
314 D. JERÓNIMO OSÓRIO

idcirco necesse est ut solium regni tui sempiternum sit et


infinitis saeculis supremi honoris ornamenta retineas.
Sceptrum regni tui est sceptrum iustitiae et aequitatis, quam
numquam uiolari aut labefactari aut inflecti patieris. Dilexisti
semper iustitiam; impietatem, quae est iniquitas summa, odio
prosecutus es. Te enim uerum Deum Deus ipse, a quo sine
ullo temporis initio genitus es, regem praeposui, et ita ut in
te legis ritu consecrando non unguentum legis adhiberet, sed
animum tuum Spiritus sancti, eodem numine praediti, gratia
et uirtute perfunderet. Vt enim Christi sanctissimi nomen
augustissimum obtineres humanam formam induisti; sub ea
unguento laetitiae tanta copia delibutus exstitisti ut omnibus
dignitatis tuae consortibus longe multumque praecelleres.
Quo enim alio nomine gratiam sancti Spiritus appellem, quae
reges et sacerdotes instituit, quae maestitiam pellit, quae
mentes exhilarat, quae animis nitorem inducit? Aut quo uerbo
conuenientibus hominum iustorum dignitatem exprimam eo
quo amplitudinis et gratiae, societas qua eos tibi inuiolabili
foedere deuinxisti significatur? Cum igitur omnes iusti diuina
quadam ratione eo quod diuini Spiritus unctione nitescant, et
reges sint, quia animos regio imperio moderantur et numquam
a legis aeternae praescriptione recedant, et sacerdotes sint,
quia sacrificia iustitiae et laudis immolant Deique numen
rite placandum suscipiunt, ‘christi’ iure nominantur. Tantum
tamen dignitate et sanctitate omnibus antecellis, quantum
uerbis explicari non potest.
Porro autem omnes humanae naturae partes, uirtutum
diuinarum odorem suauissimum redolentes, tamquam uestem
odoribus murrae, aloes et casiae perfusam, et ex capsa
eburnea depromptam, ex uisceribus sanctissimae Virginis,
caelesti candore et integritate, praecellentis, assumpsisti: quo
cultu et ornatu mirifice laetatus incedis. Non est igitur mirum
si uirgines undique tam admiranda suauitate diuini odoris
allectae conueniant ut, oris tui speciem et pulchritudinem
propius intuentes, amore tui nominis ardentius inflammentur.
Filiae regum, hoc est, castae mentes, sanctorum hominum
disciplinis eruditae in aedibus tuis frequentes sunt ut tibi
seruiant et conspectu tuo iucundissimo frui possint, uxor uero
tua, quam tecum tam sancto matrimonii foedere copulasti
ut nihil habere uelles ab illa seiunctum, ad dexteram tuam
sedem regiam tenet, ornata corona ex auro [255] facta, quam
illius capiti imponi iussisti. Regia enim est Ecclesiae sanctae
OPERA OMNIA TOMO IV 315

forçoso que o sólio do teu reino seja sempiterno e que detenhas por toda
a eternidade os ornamentos da suprema dignidade.
O ceptro do teu reino é o ceptro da justiça e da equidade, que nunca
permitirás que sejam violadas, abaladas ou desviadas. Amaste sempre a
justiça; perseguiste com ódio a impiedade, que é a suprema iniquidade. É
que o próprio Deus, por quem foste gerado desde toda a eternidade, a ti,
verdadeiro Deus, pôs-te à testa como rei, e de tal maneira que ao consagrar-
te segundo o ritual da lei não empregava o óleo da lei, mas inundava a tua
alma com a graça e virtude do Espírito Santo, dotado da mesma divindade.
De facto, para obteres o nome augustíssimo de santíssimo Cristo, tomaste a
forma humana; debaixo desta forma, foste ungido em tanta abundância com
o óleo da alegria que de longe e em muito te avantajavas a todos os que
compartilhavam da tua dignidade. Com efeito, com que outro nome designaria
eu a graça do Espírito santo, que investe em suas dignidades os reis e os
sacerdotes, que repele a tristeza, que alegra os entendimentos e que leva o
brilho às almas? Ou, com que palavra exprimiria eu mais convenientemente a
dignidade dos homens justos do que com esta com que se designa a associação
no prestígio e na graça, associação mediante a qual os ligaste a ti com uma
aliança inviolável? Por conseguinte, é com razão que se chamam cristos aos
justos, uma vez que todos os justos, de uma certa maneira divina, por isso
que se tornam brilhantes com a unção do Espírito divino, não só são reis,
porque governam o espírito com senhorio régio e jamais se apartam das
prescrições da lei eterna, como são igualmente sacerdotes, porque imolam
sacrifícios de justiça e de louvor e tratam de aplacar a majestade de Deus de
acordo com os rituais. Todavia é impossível dizer-se por palavras o quanto
és superior a todos em santidade e em dignidade.
Ora, todas as partes da natureza humana, trescalando o suavíssimo
cheiro das virtudes divinas, revestiste-as como uma roupa perfumada com
os odores da mirra, do aloés e da cássia, e retirada de uma arca ebúrnea,
do seio da santíssima Virgem, sobre-excelente pela pureza e inocência
celestiais: tomado de extraordinária alegria, vais caminhando com este
atavio e ornato. Por conseguinte, não é de admirar se de todos os lados
acodem donzelas reunidas por tão extraordinária suavidade do perfume
divino que, contemplando de mais perto a beleza e formosura do teu rosto,
se abrasam mais ardentemente no amor do teu nome. As filhas dos reis,
isto é, os entendimentos castos, instruídos pelos ensinamentos dos homens
santos, frequentam assiduamente a tua habitação para te servirem e para
poderem gozar da tua vista, ao passo que a tua esposa, a quem te ligaste
por uma tão santa aliança de matrimónio que não querias possuir coisa
alguma separada dela, ocupa à tua dextra um lugar régio, ornamentada
com uma coroa [255] feita de ouro puríssimo, que mandaste que fosse
colocada sobre a sua cabeça. É que a dignidade da santa Igreja é régia;
316 D. JERÓNIMO OSÓRIO

dignitas; species caelestis atque diuina, quam quaelibet anima,


sui prorsus oblita ut omnem suum amorem in Regem summum
transferat, Illius gratia uel benignitate consequitur.
Audi, igitur, filia (iure enim filiam appello quam monitis
salutaribus instituo) disciplinam quae te in caelestes sedes
inferet; intende mentis aciem ut amplitudinem praemii
sempiterni contempleris; aures uigilanter applica ut animo
orationem diuini Spiritus usurpes. Ne te implices curis quae
te possint ab amore tam admirandae iucunditatis auertere.
Si ita opus fuerit, ne caritas ulla ex parte refrigescat,
obliuescere populum tuum et domum patris tui, genus,
familiam et omnia quae sunt in uita cara atque iucunda
desere, ut immortales atque diuinas opes ex amore diuino
consequaris. Quo enim magis omnia humana prae Christi
amore contempseris, eo species animi tui clarius enitescet et
pulchritudo tua ornamentis illustrabitur. Verissima namque
formae uenustas et pulchritudo non rerum humanarum
sollicitudine, sed diuinarum contemplatione perficitur. Quo
enim diutius mentis diuinae pulchritudinem intuebere, eo
magis ad illius similitudinem accedes diuinaeque formae
decus et elegantiam retinebis.
Si igitur omnia quae tibi sunt impedimento quo minus
speciem diuinam perspicias repudiaueris, formae tuae
claritas in dies amplificabitur. Sic autem fiet ut Rex
cupiditate tuae pulchritudinis incendatur: quo quid uel ad
uitae suauitatem iucundius, uel ad decoris amplitudinem
magnificentius, uel ad spem gloriae sempiternae firmius
poterit excogitari? Rex enim cuius matrimonium tenes
summus Deus est, ita ut non solum ardenter amandus, sed
sanctissima etiam religione colendus et adorandus tibi sit.
Omnia igitur ab Illo, cum sit omnium rerum dominator,
polliceri tibi poteris. Tyriae res publicae et nationes, quae
fuerant a diuinis placitis alienae et simulacris immolabant,
animis commutatae, Deum uerum agnoscent et ad te cum
muneribus adibunt et principes etiam populorum ad te
preces suppliciter adhibebunt. Sed, unde tanti motus
exsistent aut tam subita uitae conuersio? Num ex imperio
armis latissime propagato? Num ex ea forma corporis,
quae pulchritudine nimis admiranda et ornatu, gemmis
et auro, elegantissime perfecto, gentes ad uoluntariam
seruitutem alliceret? Nullo modo. Regina enim, quae sponsa
et filia regis habenda est, decus et ornamentum non foris
OPERA OMNIA TOMO IV 317

celestial e divina a beleza que, pela graça e misericórdia do Rei supremo,


consegue qualquer alma, por tal forma completamente esquecida de si
mesma que nele emprega todo o seu amor.
Portanto, filha (pois é com razão que dou o nome de filha àquela a
quem educo com conselhos salutares), escuta a doutrina que te há de
pôr num lugar celestial; aplica a tua atenção a contemplar a grandeza
do prémio sempiterno; mantém-te de orelha fita para que o teu espírito
se aperceba das palavras do Espírito divino. Que não te embaracem
cuidados capazes de desviar-te do amor de uma alegria tão extraordinária.
Se assim for necessário, para que o amor não esfrie nem um pouco,
esquece-te do teu povo e da casa do teu pai, separa-te da tua raça, da
tua família e de tudo quanto te é caro e agradável na vida, a fim de que
obtenhas do amor divino as riquezas imortais e divinas. É que, quanto
mais desprezares todas as coisas humanas por causa do amor divino,
tanto mais claramente brilhará a beleza da tua alma e com maiores atavios
se celebrizará a tua formosura. Na verdade, a verdadeira perfeição e
primor da forma não se consegue através dos cuidados com as coisas
humanas, mas sim através da contemplação das divinas. Quanto mais
continuamente tiveres os olhos postos na formosura da inteligência
divina, tanto mais te aproximarás da sua semelhança e te apropriarás
do primor e elegância da forma divina.
Por conseguinte, se rejeitares tudo aquilo que te impede de
contemplares a beleza divina, o brilho da tua forma crescerá de dia
para dia. Ora, deste modo o Rei virá a inflamar-se no desejo da tua
beleza: e poderá imaginar-se algo de mais agradável do que isto para a
alegria da vida, ou algo de mais grandioso para o prestígio da honra,
ou algo de mais sólido para a esperança da glória sempiterna? É que
o Rei com quem te casas é o supremo Deus, de maneira que não só
deves amá-Lo ardentemente, como também adorá-Lo e cultuá-Lo com o
mais santo sentimento religioso. Por isso, d’Ele poderás esperar todas
as coisas, uma vez que Ele é o soberano de tudo. As nações e povos
tírios, que se tinham mostrado alheios aos ensinamentos divinos e faziam
sacrifícios aos ídolos, mudando a sua disposição hão de reconhecer o
Deus verdadeiro e hão de ir até ti com presentes e os dirigentes dos
povos também te hão de dirigir preces em atitude de súplica. Mas,
de onde hão de provir tão profundas emoções ou uma mudança tão
inopinada de teor de vida? Porventura de uma soberania vastamente
imposta pelo poder das armas? Porventura de uma forma corporal tal
que, devido a uma formosura assaz admirável e a um elegantíssimo
adorno que consistia em ouro e pedras preciosas, atraía os povos para
uma servidão voluntária? De maneira nenhuma. Com efeito, o primor
e atavio da rainha, que deve ser tida como esposa e filha de rei, não
318 D. JERÓNIMO OSÓRIO

exstat et eminet, sed intus in animo latet; non est in


ostentatione positum, sed intus in animo latet; non est in
ostentatione positum, sed in uerissima gloria constitutum;
non corporis uenustatem excolit, sed mentis praestantiam
opibus sempiternis exornat. Qui tamen oculis mentis in
ea quae sunt intus abdita penetrare potuerit, cultum et
ornatum admirabitur. Cernet enim uestibus miro candore
fulgentibus aurum purissimum summo artificio intextum
elegantissimaque uarietate distinctum, ut in summa uitae
puritate inspicere liceat multiplicis uirtutis et honestatis
excellentiam, diuino fulgore mirifice collucentem. Hoc
[256] ornato ad Regem introducitur, ut cum illo bonorum
omnium societate coniungatur. Eam uero uirginum, quas
illas sibi socias et fidei participes adsciuit, comitatus et
forma et ornatu pulcherrimus animo uehementer incenso
sequitur, ut Te, caeli Rectorem, in aula regia perpetuo
uitae studio ardentissimaque pietate prosequatur. Qua uero
laetitia, qua mentis exsultatione, qua uoluptate perfusae
uirgines sint cum ad Regem, incensae reginae monitis,
adducuntur, difficillimum est dicere. Virgines autem sunt
omnes mentes quae sunt e tenebris emersae ut lucem
respiciant, e flagitiorum tyrannide liberatae sunt ut uirtutem
et pietatem colant, ab immanitate infestissimi daemonis
ereptae ut Spiritus diuini suauitatem sentiant, a peste
sempiterna seductae ut gloriae sempiternae hereditatem
adeant. Quomodo igitur non incredibili gaudio triumphabunt
cum, fidei monitis eruditi radiisque diuinae lucis illustratae,
perspexerint quae mala uitauerint et ad quae bona adscitu
summi Principis euocatae sint?
Te igitur, o sempiterni Regis sponsa, hortor et moneo ut
isto tanto bono perfruaris et gaudeas. Cum te admonebam ut
memoriam humanae cogitationis abiiceres, no neo pertinebat
consilium meum ut opes tibi detraherem, sed ut multis
accessionibus amplificarem. Pro patribus enim quos reliquisti
sponsus tuus te prole ualde multiplicata remunerabit e qua
principes diuinis uirtutibus deligentur, qui uniuersum orbem
terrarum imperio salutari deuinctum teneant et subditos
(quod bonis principibus officium iniunctum est) felices atque
beatos efficiant. Tuam uero laudem monumentis meis ad
sempiternam memoriam consecrabo; populi multi dignitatem
tuam oratione perpetua celebrabunt nec ulla consequens aetas
de tuae uirtutis amplitudine conticescet.
OPERA OMNIA TOMO IV 319

sobressai nem se manifesta exteriormente, mas esconde-se dentro da


alma; não depende da ostentação, mas funda-se na verdadeira glória;
não aperfeiçoa a formosura do corpo, mas ornamenta a superioridade
do entendimento com riquezas sempiternas. Todavia quem, com os
olhos do entendimento, conseguir alcançar aquilo que se encontra
oculto no interior, há de contemplar com admiração a sua beleza e
ornato. É que verá o mais puro ouro, com extremada arte entrelaçado
a vestes que resplandecem com um brilho espantoso e, de modo
belíssimo, apresentando as mais diversas formas, a fim de, na mais
completa pureza de vida, poder divisar a excelência da múltipla virtude
e da honestidade, maravilhosamente reluzindo com um fulgor divino.
Com este ornato [256] é apresentada ao Rei, para com ele se unir na
comunhão de todos os bens. E, com disposição muito alegre, segue-a
uma comitiva de donzelas, muitíssimo formosa tanto pela forma como
pelo atavio, e a quem tomou como companheiras e confidentes, para que,
ó Senhor do Céu, Te sigam na corte com perpétuo empenhamento da
vida e ardentíssima piedade. Mas é dificílimo exprimir a grande alegria,
o grande júbilo do entendimento e o grande prazer que inundam as
donzelas quando, inflamadas pelos conselhos da rainha, são levadas à
presença do Rei. Ora, por donzelas se significam todos os entendimentos
que saíram das trevas para contemplarem a luz, que se libertaram da
tirania das infâmias para se consagrarem à virtude e à piedade, que
escaparam da crueldade do hostil demónio para sentirem a doçura do
Espírito divino, que se afastaram da perdição eterna para se aproximarem
da glória eterna. Portanto, de que modo não hão de triunfar com um
extraordinário contentamento ao darem-se conta, depois de instruídas
pelos conselhos da fé e iluminadas pelos raios da luz divina, de quais
foram os males que evitaram e os bens para que foram chamadas por
chamamento do Príncipe supremo?
Por isso, ó esposa do Rei sempiterno, aconselho-te e admoesto-
te a que gozes e desfrutes desse bem tão grande. Quando te
a c o n s e l h av a a q u e e s q u e c e s s e s p e n s a m e n t o s h u m a n o s , o m e u
conselho não tinha em vista tirar-te as riquezas, mas aumentá-las
com muitos acréscimos. De facto, em troca dos pais, que deixaste,
o teu esposo recompensar-te-á com uma vasta descendência, de
entre a qual serão escolhidos príncipes com virtudes divinas, para
manterem toda a ter r a unida debaixo de um salutar gover no e
tornarem os súbditos felizes e bem-aventurados: que foi o dever
imposto aos bons governantes. Com os meus escritos imortalizarei
o teu louvor; muitos povos celebrarão com imorredoura linguagem
a tua dignidade e nenhum tempo vindouro guardará silêncio acerca
da grandeza da tua virtude.
320 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Deus noster refugium et uirtus.


Psal. 45. Apud Heb. 46

Cum praecedenti carmine Dauid Ecclesiae matrimonium,


cultum, ornatum, dignitatis amplitudinem et felicissimam
procreandae subolis rationem exposuisset, consequens fuit
ut illius etiam praesidia contra perennes hostes exprimeret.
Aliter enim, quo maior dignitas est et status magnificentior,
eo magis erat ruina metuenda. Tyranni undique ruunt ut illam
nimis acriter oppugnent; hostes innumerabiles insurgunt;
illam obsidione cingunt et omnes exitus intercludunt;
haeretici uenenum spargunt ut multos qui sunt in Christiana
Republica censi pessimo genere leti conficiant. Inferorum
manium princeps copias suas effundit tantaque immanitate
bellum contra illam gerit ut nullam ei partem respirandi
et uires reficiendi concedat. Sanctorum hominum copiae
minuuntur; malum in dies ingrauescit; furor nihil remittit,
immo sanctitaibus cunctis exitium furibunde minitatur. Quid
igitur in tantis aerumnis et angoribus erit nobis faciendum?
Num erit spes salutis omnino deponenda? Nullo modo, [257]
inquit Dauid. Praesidiis enim quibus circumsaepti sumus non
sunt humana, sed diuina. Nam, et ex maiorum monumentus,
et ex mamoriae nostrae quotidianis exemplis, satis exploratum
et cognitum habemus Deum esse nobis in hostium concursu
monumentum firmissimum, in ipso proelio uirtutis robur
inuictissimum, in omni discrimine salutis auxilium ad hostium
conatus arcendos paratissimum. Quid igitur esse poterit fide
uiua in Dei benignitate locata uel ad statum animi tuendum in
omni rerum asperitate constantius uel ad pestem auertendam
salutarius? Propterea, quamuis terra, motibus horrendis
conquassata, de sedibus suis conuellatur, et montes in medium
maris profundi gurgitem impetu deferantur et ruant, tamen
interitum minime formidabimus. Fremat ipsum mare; fluctus
immanes attollat; horrendae tempestates excitentur; montes
altissimi, motibus tremefacti, horrendum fragorem dent: nos
intrepidi permanebimus.
O rem miram! Hominem, quo quidem nihil est in rerum
natura fragilius, eas repente uires ex incensae fidei studio
consequi ut sit terrarum soliditate firmior et montium stabilitate
constantior? Ruunt uenti; intumescit mare; fluctus eiiciuntur;
spiritus, in terrae cauernis inclusi, in angustum contrahuntur,
OPERA OMNIA TOMO IV 321

SALMO 45
(46 entre os Hebreus)
O nosso Deus é refúgio e esforço.

Sendo certo que no precedente salmo David expôs o matrimónio, luxo,


ornato, grandiosa dignidade e feliz capacidade de gerar prole da Igreja,
seguia-se como consequência natural que também desse a conhecer as
defesas da mesma contra os seus constantes inimigos. É que, caso contrário,
quanto maior é a dignidade e mais esplendorosa a sua condição, tanto
mais era de recear a sua ruína. Por todos lados os tiranos se precipitam
para atacá-la com sobeja violência; levanta-se um sem número de inimigos;
fazem-lhe cerco e impedem todas as saídas; os hereges espalham a
peçonha para causarem a pior espécie de morte a muitos que fazem parte
da cristandade. O príncipe dos infernos esparze as suas tropas e move
contra ela guerra com tamanha crueldade que não lhe deixa nenhum
espaço por onde possa respirar e recuperar forças. Minguam as hostes
dos homens santos; o mal agrava-se de dia para dia; a dementada sanha
não diminui, e até desatinadamente a perdição ameaça tudo quanto é
sagrado. Por conseguinte, que nos cumprirá fazer no meio de tão grandes
provações e angústias? Acaso deverá pôr-se de parte toda a esperança de
salvação? De forma alguma, [257] diz David. É que os socorros que temos
ao nosso redor não são humanos, mas divinos. Com efeito, tanto pelas
memórias dos nossos antepassados, como pelos quotidianos exemplos da
nossa experiência estamos assaz cientes e convencidos de que no ataque
dos inimigos temos em Deus uma solidíssima defensa, um invencível
vigor nos próprios combates e, enfim, em todas as situações de perigo
uma ajuda sobejamente aparelhada para rechaçar todas as tentativas dos
adversários. Por conseguinte, que poderá existir de mais firme para velar
pela segurança da alma em todas as contrariedades da vida ou de mais
salutar para afastar a perdição do que uma fé viva depositada na bondade
de Deus? Por isso, ainda que a terra, abalada por movimentos assustadores,
seja arrancada do seu lugar, e os montes sejam arrastados impetuosamente
e se precipitem no meio de um abismo nas profundeza do mar, todavia
nós não sentiremos medo da morte. Que ruja o mar; que se encrespe com
medonhas ondas; que se levantem assustadoras tempestades; que os mais
altos montes, fortemente abalados, soltem ruídos atroadores: nós manter-
nos-emos cheios de coragem.
Oh coisa espantosa! Que o homem, que é sem dúvida a criatura mais
frágil da natureza, de repente obtenha do apego a uma abrasada fé uma
força tal que se torne mais firme que a sólida terra e mais estável que as
inabaláveis montanhas? Os ventos arremetem; o mar empola-se; as vagas
arremessam-se; os vapores, encerrados nos antros da terra, aglomeram-
322 D. JERÓNIMO OSÓRIO

qui, dum erumpere contendunt, terram concutiunt; et montium


cacumina labefactant: et tamen homo fide stabilitus minime
commouetur. Quam causam esse huius tantae firmitatis, in
tanta generis infirmitate, dicemus? Illam certe fidem, acriter
et ardenter incitatam, quae Dei gratia nititur atque confidit.
Ex redundatia enim fluminis agmine lenissimo fluentis, riui
diuinae gratiae ad animos hominum fidelium, Sancti Spiritus
opera, deducuntur, qui Dei Ciuitatem mire laetificant. Est enim
hoc Spiritus munus et beneficium amoris diuini pignus et
firmissimum praesentissimi numinis argumentum. Cum igitur
Deus tabernaculum, in quo semper inhabitet, in medio Ciuitatis
Suae collocauerit, ut Suorum preces exaudiret et eis auxilium,
quotiens opus esset, afferret, non est cur ii, qui sunt in Ciuitatem
sanctam recepti, hostium impetus et minas extimescant.
Cum enim Deus in media Ciuitate stabilem sedem habeat,
simul atque splendor aurorae tenebras ex ortu suo discusserit
et oppressis flagitiis iustitiae lumen eluxerit, opem confestim
afferet omniaque bella profligabit. Gentes uniuersae tumultus
excitent; reges, furore et amentia flagrantes, acerrime delectus
habeant; et, coniunctis uiribus, in eo uehementer omnes neruos
intendant ut Ierosolymae caelestis turres et moenia diruant,
uniuersisque ciuibus perniciem machinentur: cum primum
Dei uox intonuerit, arma de manibus elabentur; homines
exanimati concident et terra, motibus agitata, in summam
altitudinem desidet. Dominus enim, cui omnes exercitus
caelestes obtemperant, nobiscum semper est; pro nobis pugnam
capessit; ab omnibusque nos malis educit atque salutari
praesidio confirmat. Vt enim Iacobo, patri nostro, nullo in
loco defuit, ita numquam a nobis, quamdiu fuerimus uestigiis
optimi Parentis ingressi, [258] opem Suam remouebit.
O beneficium excellens et admirandum sempiternisque
laudibus efferendum! Venite et uidete, cuncti mortales, obstupenda
facinora quae Dominus in terra designauit et singulari uirtute
confecit. Omnibus enim bellis finem imposuit et pacem constituit
extremis orbis terrarum terminis definitam. Arcus confregit;
hastas excidit; currus et omnia bellica instrumenta combussit.
Bellum dirissimum erat inter genus humanum et numen diuinum,
absque ulla spe compositionis, naturae ui excitatum. Humanum
genus legem diuinam perditis conatibus oppugnabat; numen
diuinum erat sceleribus humanis acriter atque uehementer
infensum. Erat igitur hominibus spes salutis incisa. Hoc tam
funestum et exitiosum certamen uerbi diuini clementia diremit,
OPERA OMNIA TOMO IV 323

se em espaços estreitos, e, quando se esforçam por irromper, fazem


tremer o solo; e abatem-se as cumeadas das montanhas: e mesmo assim
o homem que se firma na fé não se abala. Qual diremos que é a causa
desta tamanha firmeza num ser de raça tão fraca? Certamente que aquela
fé, penetrante e ardentemente avivada, que se apoia e confia na graça de
Deus. É que da abundância do rio que desliza com mansíssima corrente
são, por obra do Espírito Santo, desviados para as almas dos homens
fiéis os riachos que maravilhosamente alegram a Cidade de Deus. É que
esta dádiva e mercê do Espírito Santo é um penhor do amor divino e
uma mui sólida prova do seu eficacíssimo poder. Por conseguinte, uma
vez que Deus colocou no meio da Sua Cidade o tabernáculo, em que
sempre mora, para escutar as preces dos Seus e lhes oferecer o auxílio,
sempre que fosse mister, não há razão para que os que foram acolhidos
na Cidade santa se arreceiem dos ataques e ameaças dos inimigos.
De facto, sendo certo que Deus possui uma morada estável no meio da
Cidade, logo que o esplendor da aurora dispersar as trevas do seu berço e
iluminar com a luz da justiça os oprimidos pelas infâmias, imediatamente
oferecerá ajuda e terminará todas as guerras. Que todos os povos se
desmandem em rebeliões; que os reis, abrasados em loucura e desvario,
decretem violentas mobilizações; e, ajuntando forças, consagrem todas as
energias e empenho no fito de derrubar as muralhas e torres da celestial
Jerusalém e maquinem a perdição da totalidade dos seus cidadãos: logo que
soar a voz de Deus, as armas cair-lhes-ão das mãos; os homens tombarão
inanimados e a terra, agitada por tremores, afundar-se-á no mais profundo
abismo. É que o Senhor, a quem obedecem todos os exércitos celestiais,
está sempre connosco; empreende a guerra em nossa defensa; e desvia-
nos de todos os males e fortalece-nos com salutar socorro. Com efeito,
assim como em nenhuma situação faltou a Jacó, nosso pai, da mesma
maneira nunca há de desviar de nós a Sua ajuda, enquanto seguirmos
[258] as pisadas do melhor dos pais.
Oh benefício excelente e admirável e que merece ser exalçado com
sempiternos louvores! Vinde e vede, ó mortais todos, os pasmosos
feitos que o Senhor dispôs na terra e com singular fortaleza levou
a cabo. É que impôs o fim a todas as guerras e estabeleceu a paz,
dando-lhe por limite os confins da terra. Quebrou os arcos; desfez as
lanças; queimou as carroças e todo o material de guerra. Existia uma
terribilíssima guerra entre a raça humana e a divindade, sem qualquer
esperança de acordo, provocada pelo poder da natureza. A raça humana
atacava a lei divina com perversos atentados; a divindade sentia-se viva
e violentamente irritada com os crimes dos humanos. Por conseguinte,
tinha sido retirada aos homens a esperança de salvação. A misericórdia
da palavra divina acabou com este tão funesto e pernicioso conflito,
324 D. JERÓNIMO OSÓRIO

cum aduentu suo cupiditatis effrenatae uires exstinxit; cum


immanem et importunam peccati tyrannidem deleuit; cum
Satanae superbissimum dominatum funditus euertit et sustulit.
His autem pestibus resectis, facillimum uerbo diuino atque
sempiterno fuit homines cum Deo in gratia ponere.
Haec autem est illa pax iucunda et salutaris atque
sempiterna, quam uerbi diuini in humana forma latentis
benignitas terris attulit, ut homines ad honores diuinos
eueheret. Vt autem huius pacis utilitas latius euagaretur,
commodum fuit ut alia pax fieret quae pacis huius imaginem
contineret. Ita factum ut omnes hominum nationes ad
aliquod tempus arma deponerent, ut sic tandem facilius
ad omnes gentes Euangelii disciplina perueniret. Sic igitur
fuit in orbe terrarum otium constitutum ut nulla mentio
durioris certaminis agitaretur. Quis autem non uidet hanc
uniuersarum gentium pacem opus diuinum fuisse, cum
omnes homines, cupiditate caeci, in mutuam perniciem
adeo furenter irruant ut neque a suorum sanguine manus,
dum aliqua species emolumenti proponitur, abstinendas
esse statuant? Quod, si haec humana pax argumentum
certissimum praesentis numinis obtinebat, quid de illa
existimandum est qua mentes humanae cum mente diuina
amoris foedere sempiterno coniunguntur? Quocirca ipse
pacis sequester et interpres, qui se medium inter Deum
et homines interposuit, hoc tam diuini operis argumento
uim suae diuinitatis ostendit. Sic enim Iudaeorum genus
alloquitur ne beneficium diuinum repudient:
“O homines sanctissima stirpe propagati, sensum recipite;
spatium ad cogitandum sumite; tempus aliis curis uacuum in
studiis diuinis impendite, ut uideatis me Deum uerum esse.
Cernitis enim me ab exteris gentibus sanctissime cultum
nomenque meum summa religione celebratum, et dubitatis
quin ego sim Deus uerus expressaque sanctissimi Patris imago?
Quae enim alia uis homines a uitiis abducere, a uoluptatibus
abstrahere, a superstitione qua erant a teneris annis imbuti
reuocare, nisi diuina, potuisset? Quibus opibus, quibus artibus,
quo genere orationis potuisset uniuersum genus humanum
gratiam et pacem Dei, a quo hostili odio dissidebat, obtinere,
nisi Dei infiniti uis et auctoritas [259] intercessisset? Ne igitur
uobis gentes alienae gloriam hanc uniuersam admirabili fide
praeripiant, illas imitamini et quem illae colunt tandem, moniti
patrum institutis et exemplis, agnoscite.”
OPERA OMNIA TOMO IV 325

quando extinguiu, com a sua vinda, as forças da desenfreada cobiça;


quando destruiu a monstruosa e cruel tirania do pecado; quando
arrancou de raiz e suprimiu o soberbíssimo senhorio de Satanás. Ora,
depois de expungidas estas pestes, foi muitíssimo fácil à palavra divina
e sempiterna repor os homens na graça de Deus.
Por outro lado, esta é aquela jucunda, salutar e eterna paz, que a bondade
da palavra divina oculta sob forma humana trouxe à terra, para guindar
os homens às honras divinas. Ora, a fim de que os proveitos desta paz se
difundissem mais amplamente, foi conveniente que se fizesse outra paz que
contivesse em si uma imagem desta paz. E assim sucedeu que todas as raças
de homens depuseram durante algum tempo as armas, para que deste modo
mais facilmente acabassem por chegar a todos os povos os ensinamentos
do Evangelho. Por conseguinte, estabeleceu-se deste modo em toda a terra
a tranquilidade por forma a que não fosse agitada por qualquer menção de
um conflito de alguma violência. Ora, quem não vê que esta paz universal
dos povos foi uma obra divina, sendo certo que todos os homens, cegos
pela cobiça, de tal maneira loucamente arremetem uns contra os outros para
destruir-se que, quando se lhes põe por diante alguma aparência de lucro,
têm para si que não devem abster-se de derramar com as próprias mãos
o sangue dos seus? Pelo que, se esta paz humana era prova certíssima da
presença pessoal da divindade, que deve pensar-se acerca daquela outra paz
pela qual os espíritos dos homens se unem com o espírito de Deus através
de uma aliança eterna de amor? Pelo que o próprio mediador e intermediário
da paz, que se interpôs entre Deus e os homens, mostrou a força da sua
divindade com esta tão grande prova de obra divina. De facto, dirige-se nos
termos seguintes à raça dos judeus, exortando-os com grandes brados a que
não recusem o benefício divino:
“Ó homens que provindes de santíssima linhagem, recuperai o senso; tomai
algum espaço para pensar; consagrai aos assuntos divinos o tempo deixado
por outros cuidados, por forma a verdes que eu sou o verdadeiro Deus. De
facto, divisais que eu sou santissimamente adorado por nações estrangeiras e
meu nome por elas celebrado com a máxima religiosidade, e duvidais que eu
sou o verdadeiro Deus e a evidente imagem do santíssimo Pai? Na verdade,
que outra força teria podido desviar os homens dos pecados, arrancá-los dos
prazeres, fazê-los deixar as superstições em que tinham sido embebidos desde
os mais tenros anos, senão a força divina? Com que riquezas, com que artes,
com que espécie de linguagem teria podido a totalidade do género humano
alcançar a graça e a paz de Deus, do qual estava separado por hostil ódio, se
não se tivesse posto de permeio a força e autoridade do infinito Deus? [259] Por
conseguinte, para que estes povos estrangeiros com sua espantosa fé não vos
arrebatem toda esta glória, imitai-os e, ensinados pelos exemplos e doutrinas
dos vossos pais, acabai por reconhecer aquele a quem eles adoram.”
326 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Haec quidem Dominus effatur. Reliquum est igitur ut


Illum uereamur; Illi gratias agamus; Illius auxilio freti, nullo
impendentium periculorum metu perturbemur. Imperator
caelestis est qui nobiscum semper est; summus Deus est,
qui Iacobum, generis nostri parentem, praesidio Suo texit;
idemque Dominus nos ab omni malorum tempestate, si
manserimus in uiua fide, liberabit. O admirandum beneficium,
in omni aeternitate predicandum!

Omnes gentes plaudite manibus.


Psal. 46. Apud Heb. 47

Vt serui, libertate; tenebris inclusi, lucis adspectu;


aegroti, periculose laborantes, sanitate; capite damnati,
summi principis uenia gaudent, ita fuit necesse ut gentes,
cum primum illis lux disciplinae caelestis illuxit, maximo
gaudio triumpharent; et tanto maius gaudium earum esset,
quanto acerbius erat his malis, quae diximus, uniuersis quam
singulis afflictari, et quanto miserius erat,animarum morbis,
qui natura sunt insanabiles atque sempiterni, quam corporis
morbis impediri. Erant gentes a studio diuinae legis alienae;
mancipia turpitudinis; erroribus pestiferis imbutae; morbis
pestilentissimis infectae; supplicio sempiterno destinandae.
Nam dedecori seruiebant; in sanguine et caede uersabantur;
iura diuina et humana uiolabant; relictoque uero Deo,
impurorum hominum et quadrupedum et serpentium
simulacris immolabant, cum subito, e tenebris emersae et
in libertatem uindicatae, diuinam lucem adspexerunt et,
ueniam consecutae, ad hereditatem Regni caelestis euocatae
sunt. Quae igitur tanta uoluptas animo fingi potest quae
sit cum tam insoliti gaudii magnitudine comparanda? Nam,
quamuis omnes, qui nunc iustitiae iucunditate fruuntur,
eadem suauitate perfusi sint, tamen id bonum, quod
est inusitatum et praeter exspectationem euenit, multo
uehementius animos afficit atque propemodum insanire prae
gaudio compellit. Gentibus igitur antea exteris et alienis,
deinde, Christi gratia, domesticis et coniunctissimis, Dauid
hoc in loco maxima uoce gratulatur easque ad festos dies
agitandos, quantum potest, incendit.
Quod autem haec non ad Senacheribi casum nisi sub
obscura quadam similitudinem referenda sint multis argumentis
OPERA OMNIA TOMO IV 327

Ora, foi assim que falou o Senhor. Resta portanto que O reverenciemos;
que Lhe demos graças; que, amparados no Seu apoio, não sejamos
perturbados por nenhum temor dos perigos que se aproximam. É o
Imperador dos céus Aquele que sempre está connosco; é o Deus supremo,
que com a Sua ajuda protegeu Jacó, o progenitor da nossa linhagem;
e o mesmo Senhor há de libertar-nos de toda a procela de males, se
perseverarmos na viva fé. Oh benefício admirável, que merece ser
apregoado por toda a eternidade!

SALMO 46
(47 entre os Hebreus)
Todas as gentes, aplaudi com as mãos.

Assim como os prisioneiros se alegram com a liberdade; os encerrados


nas trevas, com a visão da luz; os enfermos, que corriam risco de vida, com
a cura, e os condenados à morte, com o perdão do príncipe, da mesma
maneira foi forçoso que os povos, logo que para eles resplandeceu a luz
dos ensinamentos celestiais, rejubilassem com a maior das alegrias; e tanto
maior seria o seu contentamento, quanto mais doloroso era ser atribulado
por todos estes males, que dissemos, do que por cada um, e quanto mais
mofino era ser estorvado por enfermidades da alma, que por natureza são
incuráveis e eternas, do que por doenças do corpo. Eram povos alheios
ao respeito pela lei de Deus; escravizados à torpeza; imbuídos de erros
pestilenciais; corrompidos por funestas perversões e merecedores de
serem condenados aos tormentos eternos. Com efeito, eram escravos da
infâmia; arrastavam-se na sangueira e no crime; transgrediam as leis divinas
e humanas; e, deixando de lado o verdadeiro Deus, faziam sacrifícios a
imagens dos mais impuros homens, de quadrúpedes e de serpentes, quando
de repente, irrompendo das trevas e adquirindo a liberdade, contemplaram
a luz divina e, alcançando o perdão, foram chamados à herança do Reino
celestial. Por conseguinte, que prazer tão grande pode imaginar-se no
espírito que possa comparar-se com a grandeza de um contentamento tão
fora do comum? Na verdade, embora todos, que agora gozam da alegria da
justiça, tenham sido inundados pela mesma suavidade, todavia, esse bem
que é inusitado e sobrevém sem ser esperado, deleita muito mais fortemente
e pela intensidade do contentamento quase leva ao ensandecimento. Por
conseguinte, David neste texto com alevantadíssima voz felicita os povos
que antes eram estrangeiros e alheios, e que depois, por graça de Cristo,
se tornaram familiares e estreitamente unidos, e, na medida que lhe é
possível, incita-os a passarem os dias em regozijos.
Ora, que estas coisas só se aplicam à queda de Senaquerib debaixo
de uma certa velada semelhança é algo que pode provar-se mediante
328 D. JERÓNIMO OSÓRIO

demonstrari potest. Primum enim ea Senacheribi ruina


gentes magis attonitae et obstupefactae quam sanatae sunt.
Deinde, Dauid non gentes tantum finitimas, sed uniuersas,
in quacumque orbis terrarum parte sedes possideant, ad
laetitiam uocauit. Tum ex Assyriorum euersione nullum
fructum ad gentes alias, sed ad Iudaeos tantum peruenire
constat. Postremo, in tyranni illius exitio Deus non tam claris
signis quam in Pharaonis clade et interitu praesentiam Suam
declarauit. At hic nomen Domini sic celebratur ut nullum
[260] Illius beneficium antea tributum sit cum hoc aliqua
ex parte conferendum. Est enim non Iudaeis tantum, sed
uniuerso generi humano tributum; non temproum spatiis
definitum, sed immortale atque sempiternum. Nos igitur
Iudaeorum caecitatem detestemur et diuinum uirum Christi
spiritu concitatum audiamus. Ait igitur:
O populi, o gentes uniuersae, o hominum multitudines,
siue quae confinia nostrae regionis incolitis, siue quae in
ultimis terris habitatis, plausum date; hymnos in Dei laudem
concinite; maximis clamoribus magnitudinem insitae uoluptatis
ostendite. Deus enim magnus et excelsus, cuius numen
ualde metuendum est omnibus qui legitimum imperium
recusant, Regnum Suum clarioribus multo legibus instituit
et sanxit et in ultimos terrarum fines dilatauit, ut non
esset iam Israelis terminis definitum, sed in omnibus terris
populorum salutari oboedientia constitutum. Non erit igitur
ullum generis, aut condicionis, aut religionis discrimen;
non erit aditus ad salutem gentibus exteris obstructus; qui
erant locis disiunctissimi, erunt consensu unius fidei atque
religionis coniunctissimi. Odium erit funditus sublatum;
caritas instituta; flagitia demersa; uirtutes excitatae; metus
abstersus; spes gloriae immortalis omnibus ostensa. Non
pietatis simulacrum, sed pietas ipsa laudabitur, ea uero, in
quocumque hominum genere fuerit, praemium diuinum, sine
ulla dignitatis humanae distinctione, consequetur. Haec igitur
uobis summae uoluptatis materia sit, quod, cum essetis antea
a nobis discriminati et a diuinis promissionibus exclusi, nunc
estis in omnium bonorum societatem conuocati. Altera uero,
quod diaboli tyrannidem euersam conspicitis.
Vbi enim Deus regnum possidet, ibi potestas hostis
sempiterni, qui cum Dei sanctitate perpetuum bellum gerit,
exscinditur. Cum praeterea regis officium sit rei publicae
commodis omni studio et uigilantia consulere, tum id multo
OPERA OMNIA TOMO IV 329

muitos argumentos. De facto, em primeiro lugar, com esta ruína de


Senaquerib os povos mais ficaram estupefactos e atónitos do que
curados. Em segundo lugar, David chamou para a alegria não apenas
os povos vizinhos, mas todos, independentemente da parte do mundo
onde tivessem as suas moradas. Ora, com a destruição dos assírios não
é manifesto que tenha advindo qualquer proveito para outros povos,
mas apenas para os judeus. Finalmente, na morte violenta daquele
tirano Deus não deu a conhecer a Sua presença com sinais tão claros
como na morte e perdição do faraó. Mas aqui celebra-se o nome do
Senhor de tal maneira que [260] nenhum benefício Seu anteriormente
concedido merece de alguma maneira ser comparado com este. É que
é oferecido não apenas aos judeus, mas a todo o género humano;
não está limitado por espaço de tempo, mas é imortal e eterno. Por
conseguinte, que nós abominemos a cegueira dos judeus e escutemos
o divino varão movido pela inspiração de Cristo. Diz pois:
Ó povos, ó raças todas, ó multidões de homens, quer os que
habitais os confins da nossa região, quer os que viveis nas terras mais
longínquas, aplaudi; entoai hinos em louvor de Deus; com os mais
estrondosos clamores mostrai como é grande o vosso íntimo prazer.
É que o grande e excelso Deus, cuja divindade é assaz temível para
todos que recusam Seu legítimo senhorio, estabeleceu e ratificou o Seu
Reino com leis muito mais ilustres e dilatou-o até aos últimos confins da
terra, para que já não ficasse delimitado pelas fronteiras de Israel, mas
se estabelecesse na terra inteira com a salutar obediência dos povos.
Por conseguinte, não haverá nenhuma espécie de distinção de raça,
ou condição, ou religião; o acesso à salvação não será impedido aos
povos estrangeiros; os que se encontravam muitíssimo apartados pelo
espaço, ficarão estreitissimamente unidos pelo acordo de uma única fé
e religião. O ódio será suprimido de raiz; estabelecer-se-á o amor; as
infâmias serão enterradas; as virtudes estimuladas; o medo expungido;
a esperança da glória imortal será oferecida a todos. Há de louvar-se
a genuína piedade, e não o seu simulacro, e ela, em qualquer espécie
de homem que se encontrar, há de alcançar um divinal galardão, sem
atender-se a qualquer distinção de jerarquia humana. Portanto, que vos
seja primeiro motivo da mais profunda deleitação, o facto de que, tendo
sido no passado por nós postos de parte e excluídos das promessas
divinas, hoje fostes chamados para a comunhão de todos os bens. E
segundo, o facto de que vedes destruída a tirania do diabo.
Com efeito, onde Deus detém o poder, aí desvanece-se o domínio do
eterno inimigo, que trava incessante guerra com a santidade de Deus.
Sendo, além disso, certo que o dever do rei é velar com todo o desvelo
e atenção pelo proveito da comunidade, tal se vê muito mais claramente
330 D. JERÓNIMO OSÓRIO

clarius in regio Dei munere et maiestate conspicitur. Non


enim Suum commodum exspectat, cum sit beatissimus; nec
ira Illius est implacabilis, cum sit clementissimus; nec opes
Suas comprimit, cum sit ab inuidia remotissimus. Ergo,
quemadmodum eorum uita qui erant tyranni dominatu
uehementer oppressi erat ualde miseranda, ita qui sub Regis
sempiterni imperio uiuunt consequens est ut sint omnibus bonis
egregie cumulati. Sub imperium ditionemque nostram Dominus
multos populos et regna subiunxit. Homines enim, radiis
diuini splendoris illustrati, uiris sanctissimis, Iacobi sanguine
procreatis, quorum doctrina fuerant ad cognitionem diuini
nominis eruditi libentissime paruerunt, ad illorumque se pedes
suppliciter abiecerunt eorumque imperium alacriter exsecuti
sunt. Hereditatem nostram Dominus auxit et amplificauit
ornamentisque diuinis illustrauit, cum ex omnibus nationibus
elegit quos ad Iacobi gloriam et nomen adiungeret.
O rem admiratione dignissimam: ex omnibus hominibus
impuris et flagitiosis innumerabilem multitudinem, a suis
cupiditatibus abstractam, ad Hebraei nominis claritatem
peruenisse? Et in stirpem [261] sanctorum, a qua erat
alienissima, penitus insitam ita coaluisse ut unum corpus
ex utraque gente fieret? Deus, qui in terras delapsus est
ut sacris sanctissimis omnium hominum hominum scelus
expiaret, in caelum omnium bellorum uictor cum summa
angelorum celebritate et gratulatione, cum maximis laetitiae
uocibus adscendit, ut piis hominibus sedes, in quibus omnibus
summis bonis aeuo sempiterno fruerentur, exstrueret et
impiis bellum, horrendo sono tubae, denuntiaret. Canite Deo,
canite gentes uniuersae; canite, inquam, Regi nostro; canite,
qui nullam nationem siue Solis orientis, siue occidentis Solis
horas incoleret, siue ad austrum, siue ad Septemtrionem
sedes haberet esse uoluit tantae felicitatis expertem. Nec
enim Deus Iudaeorum tantum est Deus, gentium etiam Deus
est, et omnibus, et Iudaeis et gentibus, qui fidem et officium
minime produnt, ex aequo consulit et in Regni sede locatus,
ut omnium postulata aequitate summa, tam Iudaeorum quam
gentium aliarum ad aures admittat, et omnium qui cum ardenti
fide opem Illius implorauerint uitam et dignitatem tueatur.
Principes gentium qui fuerant antea a studio sanctissimae
religionis abhorrentes, ardenti studio sese ad nomen
summi Dei, quem Abraham sancte coluit, applicabunt. Non
enim deseret Deus principes terrae qui rerum publicarum
OPERA OMNIA TOMO IV 331

quando quem desempenha a régia função é a majestade de Deus. Na


verdade, não tem em mira o Seu proveito, uma vez que é totalmente
venturoso; nem a Sua ira é implacável, uma vez que é misericordioso no
mais elevado grau; nem retém as Suas riquezas, uma vez que se encontra
totalmente isento de inveja. Logo, da mesma maneira que a vida daqueles
que eram brutalmente oprimidos pelo poder do tirano era sobremodo
lastimável, assim os que vivem sob o senhorio do Rei eterno é lógico
que se encontram singularmente cumulados de todos os bens. O Senhor
colocou debaixo do nosso senhorio e soberania muitos povos e reinos. É
que os homens, iluminados pelos raios do esplendor divino, de muitíssimo
bom grado obedeceram aos santíssimos varões, gerados pelo sangue de
Jacó, mediante cujos ensinamentos foram industriados no conhecimento
do nome de Deus, e humildemente prostraram-se a seus pés e alegremente
acataram o seu mando. O Senhor aumentou e acrescentou a nossa herança
e nobilitou-a com ornamentos divinos, quando escolheu de todas as
nações aqueles que faria participar da glória e nome de Jacó.
Ó ação digníssima de admiração: que viesse a alcançar a nobreza do
nome hebreu uma imensa multidão, que se apartou dos seus desejos,
provinda de toda a espécie de homens impuros e infames? E de tal maneira,
enxertando-se profundamente na linhagem [261] dos santos, da qual se
encontrava totalmente apartada, se tenha com esta unido que se tenha
formado um único corpo com ambas as raças? Deus, que desceu à terra
a fim de com santíssimo sacrifício expiar o crime dos homens, subiu aos
céus como vencedor de todas as guerras, acompanhado do aplauso e
grande multidão dos anjos, por entre as mais expressivas vozes de louvor,
para edificar para os homens piedosos as moradas em que possam gozar
durante a eternidade de todos os bens supremos e para, com o medonho
som do clarim, declarar guerra aos ímpios. Erguei cânticos a Deus, erguei-
Lhe cânticos, todos os povos; repito: erguei cânticos ao nosso Rei; entoai
cânticos Àquele que não quis que povo algum ficasse privado de tão grande
felicidade, quer os povos que habitam o oriente, quer os do ocidente,
quer os que têm suas moradas no sul, quer no norte. É que Deus não é
Deus só dos judeus, mas é também Deus dos gentios, e por todos, quer
sejam judeus quer gentios, que não atraiçoam a sua fé e o cumprimento
do seu dever, por todos por igual vela e está colocado na sede do Reino,
por forma a escutar com a máxima equidade os pedidos de todos, tanto
dos judeus como dos gentios, e a velar pela vida e dignidade de todos
os que com ardente fé implorarem a Sua ajuda.
Os príncipes dos gentios que anteriormente se opuseram ao culto da
santíssima religião, com abrasado desvelo hão de consagrar-se ao nome
do Deus supremo, a quem Abraão santamente adorou. É que Deus não
abandona os príncipes da terra que empreendem a defesa das suas pátrias.
332 D. JERÓNIMO OSÓRIO

defensionem suscipiunt. Nam, cum omnes saluos et ornatos


esse uelit, tum uel maxime principes, quorum exemplis incitata
multitudo facillime poterit in studium religionis et pietatis
impelli. In hac igitur gentium conuersione Dei gloria aucta
et amplificata est et, quo minus spes ulla communis salutis
ostendebatur, eo clarius et magnificentius amplitudo diunae
gratiae et benignitatis innotuit.

Magnus Dominus et laudabilis nimis.


Psal. 47. Apud Heb. 48

Illis qui in Sanctarum Litterarum studio uersari cupiunt duo


sunt in primis animaduertenda. Vunum est, impios Iudaeorum
sensus esse illis uehementer exsecrandos; alterum, numquam
mentis oculos a legis fine, qui Christus est, ullo pacto eiiciendos.
Quod si fecerint, Christum cernent apud prophetas figuris
expressum, oraculis praenuntiatum, diuino praeconio celebratum
et in sempiterno solio constitutum ut mundi totius imperium
administret. Aliter enim, si Iudaeis aliqua ex parte fuerint addicti,
a luce deserentur et in tenebras incurrent et nutabunt atque
uacillabunt nec exitum ullum reperient. Quod quidem in hoc
psalmo facile uideri potest. Si enim sanctae ciuitatis laudes,
quae hoc in loco continentur, ad terrestrem Hierosolymam
transferre uoluerint, impliciti tenebuntur ita ut expedire non
possint. Primum enim dicitur Deum esse in Ciuitate Dei summis
laudibus exornatum. Quaeram a Iudaeis quis Deus iste sit, in
cuius ciuitate summi honores ad [262] Deum deferantur. Deinde,
cum paulo inferius scriptum sit ciuitatem hanc esse regis magni,
quaeram quis rex magnus iste sit. Ne autem mihi Dauidis aut
Salomonis nomen obiiciant, ostendam eum ipsum quem Deum
Dauid nominauerat, regem magnum appellare. Dixit praeterea
Hierosolymam esse gaudium uniuersae terrae. Quando, aut
quibus terris, gaudio esse potuit? Dum Iudaeorum nomen et
imperium uigebat? Non certe. Imperium enim ciuitatis erat
exiguis sane terminis definitum; deinde, erat uicinis gentibus
odiosum et inuisum; longinquis autem prorsus ignotum. Non
igitur tunc poterat esse gaudio uniuersae terrae. Postquam
uero deletum est, quod gaudium poterat misera ciuitas alienis
gentibus afferre, cum ciuibus suis non gaudium, sed maerorem
et ignominiam et cruciatum sempiternum intulisset?
OPERA OMNIA TOMO IV 333

Com efeito, não só quer que todos fiquem salvos e honrados, mas mui
especialmente os príncipes, impelida por cujos exemplos a multidão com
a máxima facilidade poderá sentir-se incitada ao zelo da religião e da
piedade. Por conseguinte, a glória de Deus aumenta-se e acrescenta-se com
esta conversão dos gentios e, quanto menor era a esperança que havia
de geral salvação, tanto mais clara e opulentamente se deu a conhecer
a grandeza da graça e bondade divinas.

SALMO 47
(48 entre os Hebreus)
Grande é o Senhor e muito digno de louvor.

Àqueles que desejam consagrar-se ao estudo das Sagradas Escrituras,


devem antes de mais fazer-se duas advertências. Uma é que devem
vivamente abominar os ímpios sentidos dos judeus; a outra é que nunca
de forma alguma devem apartar os olhos do fim da lei, que é Cristo. Se
assim procederem, verão Cristo nos profetas representado através de
figuras, preanunciado nas profecias, celebrado com pregões divinos e
assentado no eterno sólio a fim de com seu poder governar o mundo
inteiro. É que, caso contrário, se derem algum tipo de assentimento aos
judeus, apartar-se-ão da luz, cairão nas trevas e vacilarão e hesitarão e
não acharão saída alguma. Algo que facilmente se pode ver neste salmo.
Com efeito, se quiserem transpor os louvores da santa cidade, que nele
se contêm, para a terrenal Jerusalém, ficarão de tal maneira enleados
que não conseguirão desenredar-se. É que, em primeiro lugar, diz-se que
Deus na Cidade de Deus é glorificado com os mais elevados louvores.
Perguntarei aos judeus que Deus seja esse, em cuja cidade os mais elevados
louvores [262] são oferecidos a Deus. Em segundo lugar, uma vez que
um pouco mais abaixo se encontra escrito que esta cidade é do grande
rei, perguntarei que grande rei seja esse. Por outro lado, para que não
me lancem em rosto com o nome de David ou de Salomão, mostrarei que
aquele mesmo a quem David dera o nome de Deus se chama o grande
rei. Afirmou, além disso, que Jerusalém é a alegria da terra inteira.
Quando, ou para que terra, pôde ser alegria? Quando o nome e poderio
dos judeus florescia? Certamente que não. É que o poder da cidade estava
circunscrito por modestas fronteiras; além disso, era odiado e hostilizado
pelos povos vizinhos; e, quanto aos longínquos, totalmente ignorado. Por
conseguinte, então não poderia ser a alegria da terra inteira. E depois
que foi completamente destruído, que alegria poderia a mofina cidade
ocasionar aos outros povos, sendo certo que causou aos seus cidadãos
não alegria, mas pesar, ignomínia e eterno sofrimento?
334 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Postremo, cum dicitur ciuitatem esse uirtute diuina fundatam


et stabilitam inuictoque praesidio defensam, ita ut nullis
saeculis euertenda sit: quaeram utrum malint sanctissimum
prophetam uanitatis esse conuictum, an potius omnia haec
esse ad laudes caelestis Hierosolymae transferenda? Credo,
ut est genus hominum religiosum et elegans, malint uirum
diuinum uanitatis insimulari, quam hoc in loco sensum
diuinum profiteri, partim, quia splendorem sanctae ciuitatis
ignorant; partim, quia nequeunt animum in luto demersum
erigere, ut caelestia atque diuina suspiciant.
Quod, si ea mente fuerint ut terrestrem Hierosolymam hic
summe laudari contendant, suam impudentiam, cum summa
impietate coniunctam, declarabunt. Nam Hierosolymam illam
Aethipes spoliarunt; Aegypti dominatu oppressam tenuerunt;
Babylonii funditus euersam flammis absumpserunt. Quid?
Postquam instaurata fuit, nunquid non a Graecis capta
omnibusque ruinis oppressa fuit? Quid de ultimo excidio,
a Romanis illato, dicam? Num relictum est aliquod ciuitatis
uestigium aut antquae religionis simulacrum? Ergo, cum utrumque
constet, et Hierosolymam terresterm a Deo, propter infanda
scelera, derelictam et ab hominibus funditus euersam fuisse, et
diuinum spiritum, qui in homine diuino loquebatur, neminem
umquam uana spe salutis in errorem induxisse, necesse profecto
est ut diuinum sensum hominis sanctissimi sequamur et quo mens
illius intendit, quantum fieri poterit, adspiremus. Hierosolyma
uero, cum similitudinem obscuram sanctae ciuitatis habuisset,
sic inducitur ut ex illa ad ueritatem, quam adumbrabat, gradus
necessario faciendus sit. Ait igitur uir diuinus:
Deus quidem, quamuis, propter omnia opera siue quae in
caelo, siue quae in terra designauit atque perfecit, perpetua
laude celebrandus sit, tamen uim sapientiae et probitatis Suae
in ciuitate Domini, quem a sempiterno tempore imagine solida
et expressa Sui splendoris impressit, multo clarius indicauit, et
in monte sancto Suo, sempiternae religioni consecrato, multo
clarioribus signis, quanta fuisset benignitate genus humanum
complexus, ostendit. In eo enim non legem plenam horroris
et sollicitudinis, in lapideis tabulis, inscripsit, sed benignam
[263] atque salutarem legem in animis sanxit; non mentes metu
mortis abiecit, sed adiectas spe uitae immortalis erexit; non
adumbratam imaginem religionis ad certum tempus induxit,
sed religionem sempiternam, qua peccata omnia delerentur,
instituit. Situs est ad adspectum pulcherrimus et oculis omnium,
OPERA OMNIA TOMO IV 335

Finalmente, quando se diz que é uma cidade fundada e estabelecida


pela fortaleza divina e defendida por uma ajuda invencível, de tal maneira
que não deve ser destruída em tempo algum: pergunto se preferem que o
santíssimo profeta seja acusado de vaidade, ou antes que cumpre transpor
e aplicar tudo isto aos louvores da Jerusalém celestial? Creio, como é
uma espécie de homens religiosa e distinta, prefiram falsamente acusar o
santo varão de vaidade, a reconhecer nesta passagem um sentido divino,
em parte, porque ignoram o esplendor da santa cidade; em parte, porque
não conseguem erguer um espírito que se espoja na lama, por forma a
levantarem-se à contemplação das coisas celestiais e divinas.
Pelo que, se o seu desígnio for empenharem-se em que aqui se louve
com grande elevação a Jerusalém terrena, estarão a dar mostras da sua
impudência, consorciada com a mais completa impiedade. Com efeito, os
etíopes saquearam aquela Jerusalém; os egípcios mantiveram-na sob o
seu domínio; os babilónios totalmente a destruíram com as chamas. Pois
quê? E depois que foi reconstruída, acaso não foi tomada pelos gregos
e reduzida a ruínas? E que dizer da sua derradeira destruição, causada
pelos romanos? Acaso sobrou algum vestígio da cidade ou imagem da sua
antiga santidade? Logo, sendo indubitável não só que a Jerusalém terrena
foi abandonada por Deus, devido a abomináveis crimes, e totalmente
destruída pelos homens, mas também que o espírito de Deus, que falava
no santo varão, a ninguém jamais induziu em erro com uma vã esperança
de salvação, é forçoso que sigamos o sentido divino do santíssimo varão e,
na medida do possível, aspiremos a chegar ao ponto para onde se dirige
o seu entendimento. Ora, Jerusalém, uma vez que tivera uma obscura
semelhança com a cidade santa, é apresentada de maneira tal que se
deve forçosamente caminhar desde ela até à verdade, que representava
em esboço. Diz pois o divino varão:
Deus, ainda que, devido a todas as obras que concebeu e criou, quer
no céu, quer na terra, deva ser celebrado com louvores perpétuos, todavia
muito mais claramente deu a conhecer a essência da Sua sabedoria e
bondade na cidade do Senhor, ao qual marcou desde a eternidade com
a imagem sólida e nítida do Seu esplendor, e mostrou no Seu santo
monte, consagrado à sempiterna religião, com sinais muito mais claros,
a grande bondade com que abraçara o género humano. É que nele não
gravou em tábuas de pedra uma lei cheia de horror e inquietação, mas
estabeleceu nas almas uma lei benigna [263] e salutar; não prostrou as
almas com o medo da morte, mas encorajou-as com a esperança da vida
imortal; não introduziu por um certo tempo uma bosquejada imagem da
religião, mas estabeleceu uma religião eterna, para que com ela todos
os pecados fossem apagados. O local onde assenta é formosíssimo para
a vista e sobremodo agradável para os olhos de todos os que de todas
336 D. JERÓNIMO OSÓRIO

qui undique colendae regionis gratia conueniunt, ualde


iucundus. Omnes autem regiones ex illo insignem laetitiam et
uoluptatem percipiunt, quia ad omnes lex illa perlata salutis
lumen diffundit. Non est autem in Arabiae uastitate, in monte
Sinai horrido et inculto Regis magni et excelsi ciuitas exstructa,
sed in regione satis fertili et opima, in Sionis montis amoenitate,
ad latera Aquilonis, aedificata. Fuit enim habita ratio uenustatis
et elegantiae, in sublime propositae, ut omnes qui ad urbem
tenderent eam cum non mediocri iucunditate e longinquo
prospicerent; fuit habita etiam securitatis, cum in loco edito et
excelso fundata fuit et ea parte quae Septemtrionem spectabat
diligentius munita, ut facilius pericula, quae impendebant ab
Aquilone, propulsaret. In aedibus illis ualde magnificis Dominus
semper operibus admirandsi praesens esse cognoscitur, ut Suos
ex imminentibus malis eripiat.
Reges conueniunt; foedere coniunguntur; de ciuitatis exitio
coniurant; omnes opes suas comparant ut illam exscindant
nomenque Regis aeterni ex omni memoria penitus euellant;
leges immanes scribuntur; terrores iaciuntur; supplicia
excogitantur; illi diuina et humana iura transiliunt ut, quod
ratione non possunt, uiribus coniunctis efficiant. Sed diuina
uirtus, quae in ciuibus sanctis mirabiliter elucet, de statu
conuelli aut aliqua ex parte labare non potest. Ipsi tandem
tyranni, cum munitiones adspexissent et Deum esse ciuitatis
defensorem intellexissent, et stupore defixi et formidine
conturbati et in fugam nimis trepide conuersi sunt. Inuasit
in illos tremor; dolor acerbissimus, tamquam dolor mulieris
parturientis et ab abortione conflictatae, eos interclusit ne
possent ullo modo quod cogitatione scelerata conceperant
in lucem edere et pestem atque perniciem in sanctam rem
publicam machinari. Tu enim, Domine, imperia magna deles;
tyrannorum insolentiam de statu deturbas; et perinde atque
Assyrium perculisti et abiecisti atque tandem suorum gladio
confecisti, ita omnes tyrannos qui ciuitatem sanctam sceleris
atque perditis conatibus oppugnant, terrore conturbas, seditione
dilaceras, bello interneciuo consumis, ut tandem omnes
mortales intellegant Te patrocinium ciuitatis Tuae, quae est
fidelium multitudo, diuino iure sociata, suscepisse, et idcirco
illam oppugnari quidem posse, deleri non posse. Neque mari
quidem copiae atque machinae importabuntur quae possint
illius fundamenta subruere. Classes enim Ciliciae, quae in
nostram perniciem comparantur, Tu uehementissima tempestate
OPERA OMNIA TOMO IV 337

as partes acodem para habitar a região. Por outro lado, todas as regiões
dela recebem uma alegria e prazer extraordinários, porque aquela lei
a todos levada derrama a luz da salvação. Ora, não foi edificada nos
desertos da Arábia, no sáfaro e medonho monte Sinai a cidade do grande
e excelso Rei, mas numa região assaz fértil e fecunda, no aprazível
monte Sião, sobre os lados do norte. É que se teve em conta a beleza
e encanto da localização, oferecida à vista em lugar elevado, a fim de
que todos os que se dirigissem para a cidade desde longe olhassem
para ela com agrado nada pequeno; teve-se também em consideração
a segurança, ao fundar-se em lugar elevado e sobranceiro, e com mais
cuidado protegida pela parte que estava virada para o norte, por forma a
mais facilmente rechaçar os perigos que ameaçavam a partir do aquilão.
Conhece-se que naquelas casas assaz sumptuosas o Senhor está sempre
presente com Suas admiráveis obras, a fim de arrancar os Seus dos
males que os ameaçam.
Os reis ajuntam-se; unem-se em aliança; tramam a destruição da
cidade; reúnem todos os seus recursos com o propósito de a aniquilarem
e expungirem totalmente da lembrança o nome do Rei eterno; decretam-
se leis desumanas; espalha-se o terror; meditam-se suplícios; desprezam
as leis humanas e divinas a fim de, ajuntando as forças, poderem levar
a cabo aquilo de que não são capazes mediante a inteligência. Mas a
fortaleza divina, que maravilhosamente resplandece nos cidadãos santos,
não pode ser arrancada da posição que detém ou de alguma maneira
vacilar. Os próprios tiranos, ao cabo, ao olharem para as muralhas e ao
compreenderem que Deus era o defensor da cidade, varados de espanto
e perturbados pelo medo, entregaram-se à fuga mui desordenadamente.
Um tremor deles se apossou; uma penetrantíssima dor, como a dor da
mulher ao parir e atormentada por um aborto, impediu-os de poderem por
alguma forma pôr em execução o que tinham concebido no seu perverso
pensamento e maquinarem a perdição e o assolamento contra a santa
comunidade. É que Tu, ó Senhor, destróis os grandes impérios; fazes
tombar das suas posições os insolentes tiranos; e assim como derrotaste
e lançaste por terra o Assírio e no final o mataste com a espada dos seus,
da mesma maneira incutes o terror a todos os tiranos que com perversas
e sacrílegas tentativas arremetem contra a cidade santa; os despedaças
com as convulsões internas; com mortais guerras os destróis, para que
todos os mortais acabem por entender que tomaste a Teu cargo a defesa
da Tua cidade, que é a multidão dos fiéis, associada através da lei de
Deus, e que por isso ela, ainda que possa ser atacada, não pode ser
destruída. Nem sequer entrarão nas águas do mar tropas e engenhos de
guerra capazes de destruir os seus alicerces. É que às esquadras da Cilícia,
que se aprestam para nos destruir, Tu, com violentíssima procela, hás de
338 D. JERÓNIMO OSÓRIO

conteres atque dissipabis. Quo futurum audiuimus in ciuitate


Dei, qui caelitum imperator est, uidimus in ciuitate (inquam)
Dei nostri; opera Illius admiranda conspeximus; certique sumus
Deum [264] ita illius fundamenta iecisse ut opibus florens et
gloria circumfluens in omni aeternitate permaneret.
O diuinum beneficium atque munus nimis admirandum!
Audiuimus fore ut Deus Filium Suum, unctione Spiritus Sancti
perfusum, in terris mitteret. Illum mortales oculi in terris
adspexerunt. Vt lucem suam longe lateque diffunderet? Lucem
diuinam in omnes regions sparsam conspicimus. Vt salute
atque libertatem constitueret? Salute atque libertate sempiterna
perfruimur. Vt nos fratres et heredes efficeret? Ad spem
firmissimam hereditatis diuinae Spiritus sancti uocibus excitamur.
Omnia denique quae legis foedere de salute generis humani
pacta fuerant, quae diuini uiri praedixerant, quae designate
mysteriis sacrosanctis exstiterant, oculis usurpauimus, mente
percepimus illorumque fructum animo consecuti sumus. Illam
misericordiam Tuam insignem, o Domine, ad cuius cupiditatem
nostrae mentes exarserant, in medio templi Tui sensibus imis
experti sumus, cum generis humani liberator, in humana forma
diuinitatem occultans, se Tibi pro nobis obtulit, ut debitum,
quo eramus obstricti, dissolueret atque doceret omnem spem
misericordiae esse in templo sanctissimo, hoc est, in humanae
naturae, in qua sibi domicilium sempiternum exstruxit, meritis
atque sanctitate collocandam.
Pro Tui nominis amplitudine et excellentis operis et
uehementer admirandi magnitudine, o summe Domine, laus
et gloria Tua in fines terrae summa cum celeritate peruasit et
dextera Tua, iustitiae plena, separatis hostibus omnibus, qui
cum fide ad cultum Tui nominis adiuncti sunt, ipsius iustitiae
munera large et effuse donauit. Mons Sion summa opere
laetatus est; filiae Iudae ingenti gaudio cumulatae fuerunt
cum iudiciorum Tuorum sapientiam cognouissent; summam
uoluptatem capiebant sanctissimi ciues, cum animaduerterent
multitudinem prope infinitam, e tanta flagitiorum colluuie et
errorum caligine liberatam, ad numerum ciuium ex omnibus
nationibus aggregari; uidebant neminem excludi, sed omnibus,
qui cum incenso studio sanctissimae religionis accederent,
aditum ad sanctam ciuitatem aperiri. Neque generis ullum esse
discrimen, sed fidei uiuae tantum magnitudinem ponderari,
et nimium confidentes intolerando fastu Hebraei nominis
insolentes expelli, et gentes animis demissas et abiectas
OPERA OMNIA TOMO IV 339

desfazê-las e dispersá-las. O que escutámos que há de acontecer na cidade


de Deus, que é o amo dos seres celestiais, vimo-lo na cidade (insisto)
do nosso Deus; contemplamos as Suas admiráveis obras; e sabemos que
Deus [264] de tal maneira assentou os alicerces dela que, próspera de
riquezas e abundosa de graça, subsiste por toda a eternidade.
Ó divino benefício e dádiva mui para admirar! Escutamos que Deus
há de enviar à terra Seu Filho, assinalado com a unção do Espírito
Santo. Os olhos mortais contemplaram-no na terra. Como se espalharia
a sua luz ao longe e ao largo? Vimos a luz divina espalhada por todas
as regiões. Como instauraria a salvação e a liberdade? Gozamos de
salvação e liberdade eternas. Como faria de nós irmãos e herdeiros?
Somos incitados pelas vozes do Espírito Santo à firmíssima esperança
da herança divina. Finalmente, vimos com os olhos, percebemos com o
entendimento e obtivemos para a alma o fruto de todas as coisas que,
através do pacto da lei, tinham sido assentadas acerca da salvação do
género humano, todas as que os santos varões tinham profetizado e
todas as que estavam simbolizadas pelos sacrossantos mistérios. Aquela
Tua misericórdia extraordinária, ó Senhor, em cujo desejo se abrasaram
os nossos espíritos, experimentámo-la nos íntimos recessos da alma no
meio do Teu templo, quando o libertador do género humano, ocultando
a sua divindade sob forma humana, a Ti se ofereceu por nós, a fim de
saldar a dívida com que estávamos onerados e nos ensinar que toda a
esperança de misericórdia deve ser depositada no santíssimo templo,
isto é, nos merecimentos e na santidade da natureza humana, na qual
construiu para si uma eterna morada.
Na proporção da gr andeza do Teu nome e da excelência da
extraordinária e admirabilíssima obra, ó Deus supremo, os Teus
louvores e a Tua glória com a máxima rapidez estenderam-se até aos
confins da terra e a Tua destra, cheia de justiça, a todos os inimigos
afastados, que com fé se ajuntaram à adoração do Teu nome, deu-
lhes larga e profusamente as mercês da própria justiça. O monte Sião
alegrou-se sobremaneira; as filhas de Judá foram inundadas de imenso
contentamento ao conhecerem a sabedoria dos Teus juízos; os mais
santos cidadãos sentiam o maior prazer ao darem-se conta de que uma
multidão quase infinita, liberta de tão grande enxurro de infâmias e das
trevas dos erros, se tinha ajuntado ao número dos cidadãos procedentes
de todas as raças; viam que ninguém era excluído, mas que a todos, que
se aproximavam com abrasado zelo da santíssima religião, se franqueava
o acesso à cidade santa. E que não existia nenhuma discriminação de
raça, mas apenas se atendia à grandeza da viva fé, e que eram repelidos
como soberbos os que excessivamente confiavam no intolerável orgulho
do nome de hebreu, e compassivamente admitidos os povos de alma
340 D. JERÓNIMO OSÓRIO

clementer admitti, et diuinas opes, quae erant superbiae


denegatae, et humilitatem et moderationem transferri. Hanc
igitur iudiciorum Tuorum aequitatem et infinitam clementiam
considerantes exsultabant.
O ciues beatissimi, qui tam florentis atque beatae ciuitatis
iura retinetis, cernite quam illustris et ampla sit et quantis iuris
uacua eorum condicio qui in eam peruenerunt. Circum Sionem
ambulate; ciuitatis uniuersae moenia oculis circumspicite;
turres numerate; murorum firmitatem animaduertite; aedium
magnificentiam uerbis extollite, ut posteritati uestrae urbis
amplitudinem et splendorem luculentius explicare possitis.
Quid enim illi, uel ad uires et robur, uel ad elegantiam et
ornatum [265] deesse poterit? Num sapientiae excellentia
altitudo? Num uirtutis inuictae magnitudo? Num eloquentiae
ubertas et amplitude? Num legis sanctissimae disciplina? Num
caritatis mutuae uinculum, quo ciues inter se iure sempiterno
deuincti sunt? Num postremo animorum tanta puritas ut in
eis Spiritus sanctus habitare dignetur? Nihil horum. Nihil
igitur illa magnificentius, nihil fortius, nihil opulentius, nihil
purius et elegantius excogitari potest.
Vt autem ciuitatis laudes in summa complectamur, tam illustris
et opulenta est ut hic Deus, qui nos ad speciem Suam finxit et
informauit et in seruitutem hostibus sempiternis adductos in
libertatem asseruit, qui, quamuis sit rerum omnium Dominus,
singulari quadam ratione Deus noster esse et nominari uoluit:
eam incolit; in illius medio uersatur; ab illa numquam demigrat;
ut nos erudiat et ad extremum usque spiritum dirigat, ut uitam
tandem immortalem Eius benignitate et gratia consequamur.

Audite haec, omnes gentes.


Psal. 48. Apud Heb. 49

Qui Hierosolymae caelestis opes, facultates, ornamenta,


praesidia, munitiones, animo secum reputauerit eos felicissimos
iudicabit qui in illam adscripti fuerint. Si enim diuitiae
expetuntur, ciuitatis huius diuitiae sunt ingentes atque
sempiternae; si dignitas optabilis est, horum ciuium dignitas
et amplitudo ad caelitum dignitatem proxime accedit; si
uoluptates exquirendae sunt, nihil poterit excogitari iustitiae
splendore iucundius; si uitae tranquillitas est desideranda, non
OPERA OMNIA TOMO IV 341

abatida e humilde, e transferidas para a humildade e o comedimento as


riquezas divinas, que tinham sido recusadas à soberba. Por conseguinte,
exultavam de alegria ao refletirem nesta equidade e infinita clemência
dos Teus juízos.
Ó mui bem-aventurados cidadãos, que conservais os foros desta tão
próspera e bem-aventurada cidade, vede como é ilustre e vasta, e de
quão grandes isenções legais goza a condição daqueles que chegaram
até ela. Caminhai em redor de Sião; com vossos olhos observai em torno
as muralhas de toda a cidade; prestai atenção à solidez dos baluartes;
exalçai com vossas palavras a sumptuosidade das casas, para que possais
expor melhor à vossa descendência a grandiosidade e esplendor da vossa
cidade. Na verdade, que poderá faltar-lhe, quer em forças e poderio, quer
em formosura e ornato? [265] Acaso a superioridade de uma avantajada
sabedoria? Acaso uma eloquência fecunda e de amplo fôlego? Acaso os
ensinamentos da santíssima lei? Acaso os laços do amor recíproco, mediante
os quais os concidadãos se ligam entre si com vínculo eterno? Acaso,
por derradeiro, uma pureza tão grande das almas que o Espírito Santo
se digna habitar nelas? Nenhuma destas coisas lhe falta. Por conseguinte,
é impossível imaginar-se nada de mais sumptuoso, nada de mais forte,
nada de mais opulento, nada de mais puro e formoso.
Ora, a fim de resumirmos os merecimentos da cidade, ela é tão
ilustre e opulenta que este Deus, que nos criou e formou à Sua imagem
e nos libertou do estado de servidão em que nos encontrávamos
dos inimigos eternos, que, embora seja o Senhor de todas as coisas,
quis de um modo deveras único ser, e ser chamado, nosso Deus: Ele
habita-a; encontra-se no meio dela; nunca dela se aparta; para nos
ensinar e encaminhar até ao derradeiro suspiro, por forma a que ao
cabo alcancemos a vida imortal mediante a Sua graça e bondade.

SALMO 48
(49 entre os Hebreus)
Ouvi isto, todas as gentes.

Quem no seu íntimo considerar as riquezas, recursos, ornamentos,


defesas e fortificações da celestial Jerusalém há julgar muitíssimo venturosos
os que receberem o direito de seus cidadãos. É que se se desejam riquezas,
as riquezas desta cidade são imensas e eternas; se o que se pretende é
a dignidade, a dignidade e prestígio destes cidadãos aproxima-se muito
da dignidade dos seres celestiais; se o que se busca são prazeres, nada
poderá imaginar-se de mais agradável do que o esplendor da justiça; se é
apetecível a tranquilidade de vida, não poderão estar muito preocupados
342 D. JERÓNIMO OSÓRIO

poterunt esse ualde de uita solliciti qui caelitum praesidio


muniuntur; si spes firma alicuius emolumenti omnium animos
cura et sollicitudine leuat, omnes ciuitatis sanctissimae ciues
ad spem firmam immortalitatis atque adeo diuinitatis diuini
spiritus instinctu rapiuntur. Adde quod in hac ciuitate non
est qui possit de inopia sua iure conqueri, opes enim illius
omnibus promptae atque paratae sunt qui uoluerint in illarum
studio laborem et industriam suam consumere. Quid igitur
obstat quo minus omnes, qui in sanctam ciuitatem sunt admissi,
omni studio, industria, uigilantia, contentione nitantur ad tantas
opes comparandas? Cupiditas certe earum rerum quae mortales
ficta et inani specie iucunditatis atque uoluptatis alliciunt. Sic
autem fit ut multi in uanissimis imaginibus illusi, quantum
sollicitudinis in specie ficta commoditatis impendunt, tantum
de uerissimae felicitatis studio remittant. Eo igitur deducuntur
ut omnis illorum uita in mendacio et inanitate uersetur; in
somnio uanissimo consumatur, ut mens semper humi defixa
sit ut numquam uera atque sempiterna bona suspiciat. Ad
hunc autem modum inanissimis curis semper anguntur, cum
uel quod optanto non assequantur, uel, si assequuntur, [266]
minime partis opibus expleantur et, quo plura possident,
eo grauiore indigentia crucientur. Accedit ille angor animi,
sceleris conscientia assidue cruciati. Difficillimum enim est
sine iniuria pecuniae aceruos domi construere. Iniuriae uero
metus est comes assiduus, qui perditos homines (uelint, nolint)
frequenter exanimat et, quamuis diuina contemnere uideantur,
non possunt ita maleficiorum recordationem opprimere quin
saepe furiis agitentur et iudicii diuini formidine contremiscant.
Vir igitur diuinus hoc in loco omnes mortales exhortatur;
ingentes clamores edit; maximam audientiam facit; pericula
uitae proponit; mendacia humanae sollicitudinis explanat
et in eo, quamuis quantum potest elaborat ut homines a
studio fallacissimo uanitatis abducat, ut sic tandem possint
cum maximo fructu cupiditate ueritatis ipsius inflammari.
Ait igitur:
Audite, populi uniuersi; aures intendite uerbaque mea
attentissima consideratione percipite, omnes qui mundi huius
interituri sedes incolitis. Neminem uolo a fructu nostrae
orationis excludi; ad homines tam obscuros et ignotos quam
nobiles et spectatos inclamo; tam diuites quam pauperes ut
quae sum dicturus audiant maximis uocibus obtestor. Non
enim fabulas meditatus ad loquendum prodeo, non de rebus
OPERA OMNIA TOMO IV 343

com a vida seres que se encontram assegurados com a proteção dos seres
celestiais; se a firme esperança de algum ganho alivia de cuidados e
inquietações as almas de todos, todos os cidadãos da santíssima cidade são
arrebatados por inspiração divina para a firme esperança de imortalidade
e até de divindade. Acresce que nesta cidade não existe quem possa com
motivo queixar-se da sua pobreza, pois as suas riquezas estão sempre
prontas e à disposição de todos os que quiserem consagrar o seu trabalho
e atividade ao zelo delas. Por conseguinte, que impede que todos os
que foram admitidos na santa cidade se empenhem com todo o zelo,
atividade, esforço e desvelo em obter tão grandes riquezas? Certamente
que o desejo daquelas coisas que seduzem os mortais com sua fingida
e vã aparência de contentamento e prazer. Ora, deste modo sucede que
muitos, iludidos por imagens completamente vãs, deixam de consagrar
à busca da mais verdadeira ventura o que despendem nos cuidados com
a falsa aparência de comodidades. Por consequência, são levados a que
toda a sua vida se passe na mentira e vaidade; se consuma num sonho
totalmente vão, de maneira a que o entendimento esteja sempre fixo
na terra e nunca contemple os bens verdadeiros e eternos. Ora, deste
modo vivem sempre angustiados com cuidados totalmente vãos, uma
vez que, ou não conseguem o que desejam, ou, se conseguem, [266] não
ficam satisfeitos com as riquezas obtidas e, quanto mais possuem, tanto
maior sentimento de pobreza os atormenta. Adita-se aquela ansiedade,
da alma incessantemente torturada pela consciência do crime. De facto,
é muitíssimo difícil ajuntar sem injustiça em casa grandes quantidades
de dinheiro. E o receio é um acompanhante assíduo da injustiça, que
(queiram-no ou não) frequentemente atormenta os homens perversos e,
embora pareçam desprezar as coisas divinas, não podem de tal maneira
suprimir a lembrança das malfeitorias que amiúde não sejam agitados
pelas fúrias nem tremam com medo do juízo de Deus. Por conseguinte,
o divino varão nesta passagem exorta todos os mortais; solta enormes
clamores; pede grande atenção para que o escutem; põe diante dos olhos
os perigos da vida; expõe as mentiras da inquietação humana e esforça-
se o mais que pode por desviar os homens do enganosíssimo gosto da
vaidade, para que assim ao cabo possam, com o máximo fruto, abrasar-se
no desejo da própria verdade. Diz pois:
Escutai, povos todos; prestai ouvidos e acolhei as minhas palavras
com a mais pronta atenção, todos vós que tendes morada neste mundo
que há de acabar-se. Não quero que ninguém seja excluído do fruto das
minhas palavras; dirijo-me tanto aos homens obscuros e ignorados, como
aos nobres e conhecidos; tanto aos ricos como aos pobres, com as mais
veementes palavras rogo-lhes que oiçam o que vou dizer. É que não me
apresento em público para contar fábulas que inventei, nem discursarei
344 D. JERÓNIMO OSÓRIO

inanibus, quae nullum fructum sunt audientibus allaturae,


sermonem instituam, sed de rebus amplissimis, de pietatis
et iustitiae fructu, de uerissimae sapientiae disciplinis
orationem habiturus sum. Quae uero sim dicturus non a
me ipso deprompsi, sed a mente diuina percepi. Vt enim
disciplinam caelestem hauriam, aures mentis meae, quantum
licet, uocibus diuini spiritus accommodo, qui me genere
orationis ornato atque figurato eaque ratione composito ut
in animo meo firmiter insideat frequenter alloquitur. At ego
diuinas opes non inuidiose comprimo, sed eas ad communem
utilitatem confero, itaque carminibus ad cytharam modulatis,
ut iucundius possint in audientium mentes influere, res
obscuras et figuris inuolutas et admirandas enuntio.
Quid est de quo in rebus aduersis, cum periculum communis
uastitatis et euersionis impendet afflictari possum? Iniquitas
certe mea, quae me paene a tergo poenis insequetur uestigiaque
mea premet atque circumdabit ita ut respirare non facile
sinat. Nihil est enim iniquitate turbulentius; nihil pestilentius;
nihil magis omni tempore formidandum. Cum uero calamitas,
iudicio Dei inuecta, communibus rebus exitium minitatur,
tum uel maxime quantam uim malorum iniquitas importet
clare perspicitur. Tunc enim iniquis occurrunt iniuriae; tunc
eorum animos conscientia perterret; tunc acerbissimae curae
conficiunt. Cogitant enim quae fecerint et quae meriti sint
et se nulla ratione iudicio elapsuros esse praesentiunt. Qui
igitur sine cura et sollicitudine uitam degere cupiunt, opus est
ut iniquitatem odio summo persequantur et iustitiam modis
omnibus amplexentur, aliter enim sempiternum supplicium
uitare non poterunt. Qui igitur diuitiis suis confidunt, qui
pecuniarum insolentius efferuntur, delirant et insaniunt. Cum
enim [267] Dei iudicium fuerit constitutum, quid iuuabunt
opes? Quem fructum feret genus? Quod adiumentum amicitiae
humanae in angustiis importabunt? Quilibet enim tunc aequitate
causae suae, non alienis opibus liberabitur; onus suum quilibet
sustinebit; alter alteri subsidio esse non poterit; frater fratrem
a peste sempiterna non redimet; nec ullo pacto meritis poenis
addictum pretio redemptionis persoluto uindicabit. Non enim
Deus ullis piaculis placabitur; uix se ipsum poterit quisquam
a proposita poena tueri, omnes enim peccatis impliciti fuerunt
et, si per diuinam clementiam non stetisset, erant cruciatibus
sempiternis obnoxii: tantum abest ut possit quispiam fratrem
aut amicum a poenis irrogatis eximere.
OPERA OMNIA TOMO IV 345

sobre cousas vãs, que não hão de trazer qualquer fruto aos ouvintes,
mas irei falar em público acerca dos mais elevados assuntos, acerca
dos frutos da piedade e da justiça e acerca do conhecimento da mais
verdadeira sabedoria. E aquilo que irei dizer não o extraí de mim mesmo,
mas aprendi-o com o espírito de Deus. Com efeito, a fim de acolher os
ensinamentos celestiais, ajusto, na medida do possível, os ouvidos do
meu entendimento às vozes do espírito divino, que amiúde me fala,
num tipo de linguagem ornada e figurada, de tal maneira harmonioso
que fica firmemente gravado no meu espírito. Eu, porém, não escondo
ciosamente as riquezas divinas, mas ofereço-as para proveito de todos, e
assim exponho em poemas acompanhados à citara, para que possam mais
agradavelmente influir nos entendimentos dos ouvintes, estas matérias
admiráveis, obscuras e apresentadas de forma figurada.
Que é o que me pode inquietar na adversidade, quando ronda ameaçador
o perigo da destruição e assolamento gerais? Certamente que a minha
iniquidade, que me perseguirá de perto para castigar-me e me seguirá o rasto
e de tal sorte me assediará que quase não me deixará respirar. É que nada
existe de mais inquietador do que a iniquidade; nada de mais pestilencial;
nada que cause mais incessante temor. E é quando a desgraça, provocada
por juízo de Deus, ameaça a ruína da comunidade, que sobretudo se vê com
toda a clareza a grande quantidade de males que a iniquidade acarreta. É
que é então que os iníquos se lembram das injustiças; então que as suas
consciências lhes atemorizam as almas; então que pungentíssimos cuidados os
atribulam. É que pensam no que fizeram e no que mereceram e pressentem
que de nenhum modo hão de escapar ao juízo. Por consequência, os que
desejam levar uma vida sem cuidados e inquietações, é mister que odeiem
profundamente a iniquidade e por todos os modos abracem a justiça, pois
caso contrário não poderão evitar os suplícios eternos. Portanto, aqueles
que confiam nas suas riquezas e que mais insolentemente se ensoberbecem
com a abundância de dinheiro, tresvariam e estão tomados de sandice. Na
verdade, quando [267] chegar a hora do juízo de Deus, de que servirão
as riquezas? Que proveito advirá da linhagem? Que ajuda hão trazer no
momento do aperto as amizades humanas? É que então cada um será
ilibado pela equidade da sua causa, não pelas riquezas alheias; cada um
carregará a sua carga; ninguém poderá prestar ajuda a outrem; o irmão não
libertará o irmão da sempiterna desgraça; nem de forma alguma resgatará
com o preço da redenção quem foi entregue ao merecido castigo. É que
então Deus não se deixará aplacar por quaisquer sacrifícios expiatórios;
mui dificultosamente poderá cada um livrar-se do castigo em que incorreu,
pois todos cometeram pecados e, se não tivesse dependido da misericórdia
divina, estavam sujeitos aos tormentos eternos: tão longe está cada ser
humano de libertar o irmão ou o amigo dos castigos infligidos.
346 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Rara igitur erit illarum animarum libertas atque redemptio


quibus mors minime subeunda est, quae uita felicíssima
aeuo sempiterno perfruentur, quae interitum et exitium
minime formidabunt. Pauci enim sunt qui considerare
uelint quam fluxae et inanes sunt opes humanae; quantis
casibus et ruinis expositae: et idcirco, earum cupiditate
praepediti, a studio pietatis abducuntur. Rari sunt qui
uideant homines callidos et astutos, sapientiae opinione
subnixos, emori, quemadmodum stulti et imperiti moriuntur,
ita ut nemo ingenii sui acumine uim mortis effugiat. Immo
tunc amentia eroum qui sibi falso sapientiam assumebant
aperte conuincitur. Opes enim quas tanto studio et labore
congesserant; quas tanta cura et sollicitudine noctes et
dies asseruauerant, in quibus parandis et accumulandis
omnem uitam consumpserant, alienis diripiendas atque
perfruendas, cum dolore exímio, relinquent. Ex aedibus
amplis et magnificis elati, in túmulos suos inferentur.
Itaque inanissimae dignitatis amplitudo, in puluerem
redacta, amentiam eorum, qui sibi quodammodo fuerant
immortalitatem polliciti, coarguit. Eorum uero palatia
immanibus impensis aedificata, uarii successores, aetate
conseqüente, per uices occupabunt. Sic autem fiet ut qui
nihil de caelesti uita cogitabant, sed omnia sua studia in
terrestria monumenta conferebant operamque enixe dabant
ut memoriam nominis sui operibus ualde sumptuosis in terra
diutissime propagarent, obliuione sempiterna conterantur.
Nec enim homo, terrenis opibus addictus, in honore diuturno
uersabitur, cum enim mentis expers sit atque iumentorum
similis, similiter interibit.
Hanc hominum uitam quis non uidebit esse summam
dementiam? Quis, cum exitum eorum qui potentia
praecellebant, animaduertit, non intellegit stultiam summam
esse opibus humanis inflari? Omnem enim splendorem mors
exscindit; memoriam delet; insolentiam deprimit; honoribus
securim infligit; opes tandem, uel casibus repentinis, uel
temporis uetustate consumit: et tamen homines, exemplis
uitae quotidianis eruditi, minime sensum recipiunt ut fluxa
et interitura despiciant et in studium uirtutis et immortalitatis
incumbant, atque eorum furorem et insaniam detestentur
qui opibus sempiternis uitae ludibria praetulerunt; et tamen
posteritas eorum nomen qui tantam extremae dementiae
[268] significationem dederunt in ore semper habet ut
OPERA OMNIA TOMO IV 347

Por conseguinte, será rara a liberdade e redenção daquelas almas que


não devem incorrer em morte, que gozarão de uma bem-aventuradíssima
vida por toda a eternidade, que não se arrecearão da morte e ruína. De
facto, são poucos os que estão dispostos a ponderar quão passageiras e
vãs são as riquezas humanas; as grandes desgraças e ruínas a que estão
expostas: razão pela qual, embaraçados pelo desejo delas, se desviam
do culto da piedade. São raros os que vêem que os homens astutos e
ardilosos, que se apoiam na opinião de sábios, morrem, exatamente
do mesmo modo que morrem os ignorantes e sandeus, de tal maneira
que ninguém se esquiva à violência da morte graças à sua penetração
intelectual. E até é especialmente então que claramente se prova a
demência daqueles que falsamente se arrogavam de sábios. É que as
riquezas que tinham acumulado com tamanho desvelo e trabalho, que
tinham juntado por dias e noites com tão grande cuidado e inquietação,
em cuja aquisição e obtenção tinham consumido a existência inteira, com
extraordinário desgosto hão de deixá-las a outros para que as desbaratem
e gozem. Retirados de amplas e sumptuosas casas, serão sepultados nos
seus túmulos. E por isso a grandiosidade das suas vãs honrarias, reduzida
a pó, prova a loucura daqueles que a si mesmos em certa maneira se
prometiam a imortalidade. Mas os palácios deles, edificados com imensos
gastos, hão de ser sucessivamente ocupados, com o passar do tempo,
por variados herdeiros. Ora, assim sucederá que, aqueles que nada
pensavam sobre a vida celestial, mas consagravam todo o seu desvelo aos
monumentos terrenais e com todo o afinco se empenhavam em dilatarem
por muitíssimo tempo a lembrança do seu nome mediante obras sobremodo
sumptuosas, serão reduzidos a nada pelo eterno esquecimento. É que
tão-pouco o homem que se consagra às riquezas terrenas há de gozar
de honra duradoira, pois, uma vez que está privado de entendimento e
se assemelha ao jumento, do mesmo modo há de perecer.
Quem não enxergará que este viver dos homens é a mais completa
loucura? Quem não entende, ao prestar atenção ao fim daqueles que
se avantajavam em poder, que o cúmulo da sandice é ensoberbecer-
se com as riquezas humanas? Com efeito, a morte põe termo a todo o
esplendor; apaga a memória; abate o orgulho; cerceia de um golpe as
honrarias; consome, finalmente, as riquezas, ou através de repentinos
golpes da sorte, ou por força da passagem do tempo: e mesmo assim,
ensinados com os exemplos da vida de todos os dias, não aprendem
a desprezar as coisas passageiras e perecíveis nem a consagrar-se ao
amor da virtude e da imortalidade, e a abominarem a vesânia e desvario
dos que antepuseram as ilusões da vida às riquezas eternas; e mesmo
assim a posteridade tem sempre nos lábios o nome destes que deram
tão grande importância à mais rematada sandice, [268] de tal maneira
348 D. JERÓNIMO OSÓRIO

facta pessima laudet et eadem summae iniquitatis uestigia


persequatur. O caecitatem exsecrandam! Vt pecora ad
laniendam apud inferos statuti sunt; sempiterna mors illos
exedet; cum diuinae lucis exortu iusti collustrati fuerint,
eos dominatu uehementer oppriment; illorum species, quae
illustris et ampla uidebatur, euersa funditus euanescet; in
infera regione domicilia semper habebunt.
At ego longe secus uitam institui, et idcirco ueniam et
gratiam consecutus sum. Deus enim animam meam ex
Orci faucibus et a miseriae sempiternae regione redemit,
misericordia namque Sua me clementissime complexus est. o
immensam Domini benignitatem, quae numquam supplicum,
quamuis grauissime in uita deliquerint, preces et uota repudiat!
Omnes enim quos impuritatis susceptae paenitet et animo
ualde perculso et abiecto ueniam petunt, in fidem et amicitiam
recipit. Haec monita memoriae tradite; haec bonorum exempla
sequimini; foeda perditorum hominum consilia detestamini. Si
uideris hominem malis artibus pecuniam immanem consecutum
eaque opulentia domum suam populari nobilitate illustrem
reddidisse, ne potentiam illius extimescas. Cum enim impetu
mortis oppressus exstiterit et maximo animi cruciatu a uita
discesserit, nihil omnino secum auferet, opes et gloriam
relinquet; nudus, inops, ignobilis, turpis, sordibus inquinatus
in conspectu Summi Iudicis apparebit. Quamdiu in uita
manebat, adulatorum laudibis ornabatur, quorum officium est
eorum nomen in caelum efferre a quibus beneficium aliquod
sperant. Nec enim laudem uerae uirtuti, sed insolentiae et
amentiae tribuendam censent, ut ab hominibus elatis et
inflatis utilitatem fraudibus aucupentur. Haec igitur gloria uita
functum minime persequetur, nam adulatores nihil ab illis
quos in uita deluserant post mortem aucupari iam poterunt.
A suis igitur omnino desertus, migrabit ad maiores suos, ut
eos quorum disciplinis et exemplis ad iniquitatem institutus
fuit propositis iniquitati suppliciis imitetur, et cum illis ita
tenebris damnabitur ut lucem numquam respiciat. Homo
enim, cum in honore est, si non sapientia praeditus est qua
intellegat quam breuis et fallax sit popularis gloria esplendor,
quam uaria et commutabilis sit celebritatis humanae conditio,
iudicio mentis spoliatur et iumentis simillimus efficitur. Itaque
nomen illius et gloriae similiter interibit. Apud inferos igitur
poenas cruciatu sempiterno luet et in hac uita post mortem ita
ex hominum memoria excidet atque iumentum exstitisset.
OPERA OMNIA TOMO IV 349

que louva seus péssimos feitos e segue as mesmas pisadas da mais


completa iniquidade. Ó abominável cegueira! São postos no inferno
como gado que vai ser esquartejado; a morte eterna há de devorá-los;
quando os justos forem iluminados com o arraiar da luz divina, hão
de violentamente esmagá-los com seu senhorio; a aparência deles, que
parecia brilhante e ilustre, desvanecer-se-á totalmente desfeita; sua
morada será para sempre nas regiões infernais.
Eu, porém, estabeleci para mim um tipo de vida totalmente diferente,
e por isso alcancei perdão e graça. É que Deus libertou a minha alma das
fauces do Orco e da região da sempiterna desventura, pois com a Sua
misericórdia abraçou-me mui compassivamente. Ó imensa bondade do
Senhor, que nunca rejeita as preces e rogativas dos suplicantes, ainda que
em vida tenham cometido gravíssimos pecados! É que acolhe na Sua amizade
e proteção todos os que se arrependem das impurezas perpetradas e com
alma deveras abatida e humilhada Lhe pedem perdão. Lembrai-vos destes
conselhos; segui estes exemplos dos bons; abominai os torpes conselhos dos
homens perversos. Se vires que um homem obteve imensa quantidade de
dinheiro através de ruins meios e com esta riqueza, graças a uma nobreza
comprada, tornou ilustre a sua casa, não te arreceies do seu poder. Na
verdade, quando for arrebatado pela arremetida da morte e deixar esta
vida com enorme tormento da alma, absolutamente nada levará consigo,
deixará para trás riquezas e glória; há de aparecer na presença do Supremo
Juiz nu, pobre, infame, torpe e coberto de sujidade. Enquanto permanecia
vivo, condecoravam-no as louvaminhas dos lisonjeiros, que têm por ofício
pôr nos cornos da lua o nome daqueles de quem esperam algum benefício.
Na verdade, consideram que devem endereçar elogios, não à verdadeira
virtude, mas à vaidade e vesânia, por forma a mediante embustes obterem
proveitos dos homens soberbos e presumidos. Por conseguinte, esta glória
não a alcançará depois de deixar esta vida, porquanto os aduladores já
nada poderão depois da morte obter daqueles aos quais durante a vida
enganaram. Portanto, totalmente abandonado pelos seus, dirigir-se-á
para junto dos seus maiores, a fim de imitar, nos tormentos reservados
à iniquidade, aqueles por cujos ensinamentos e exemplos foi industriado
na iniquidade, e juntamente com eles há de por tal forma ser condenado
às trevas que jamais veja a luz. É que o homem, quando se encontra em
lugar honroso, se não foi provido de sabedoria que lhe permita entender
como é breve e enganoso o brilho da fama popular, como é tornadiça e
variável a condição da reputação humana, fica privado de sensatez e torna-
se totalmente idêntico aos jumentos. E por isso do mesmo modo perecem
seu nome e sua glória. Por conseguinte, será castigado no inferno com
tormentos eternos e nesta vida depois da sua morte há ser expungido da
memória dos homens como se tivesse sido um jumento.
350 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Deus deorum Dominus locutus est.


Psal. 49. Apud Heb. 50

Tam admirabilis est in Sanctis Litteris continuatio et series


rerum diuinarum et sic respondent [269] media primis, ultima
mediis ut nihil aptius et conuenientius possit excogitari.
Euangelium legi lucem attulit; lex Euangelium non adumbrauit
solum, uerum et multis in locis luculenter expressit; interiecti
prophetae et legis mentem interpretati sunt, et in Euangelium,
tamquam in finem, omnia retulerunt. Itaque alia ex aliis
mirabiliter apta atque nexa sunt eoque uinculo inter se
colligata ut ex omnibus unus sensus et consensio fiat. Paulus
opera legis infirmat et fidem mirifice sancit. Opera legis
appellat ea quae non iustitiam continebant, sed iustitiam
designabant, fidem uero nominat eam quae non in credendo
solum, sed etiam in oboediendo perspicitur. Idem Moses
facit, qui corporis circumcisionem non plurimi facit et animi
circumcisionem acriter amplexatur multisque in locis ostendit
non in lege, sed in Christi fide atque Dei gratia salutem
generis humani consistere. Omnes uero prophetae eandem
sententiam persequuntur et de ea luculentissime disserunt.
Idem facit hoc in loco Dauid. Legem enim ea ratione qua
iustitiae umbram continebat eleuandam suscipit ut Euangelii
dignitatem amplificet. Est autem animaduertendum per
iudicium, cuius hic apparatus elegantissime describitur, non
ultimum iudicium designari, sed illud quo princeps mundi
huius expulsus est et uires illius excisae sunt.
Est praeterea notandum his magnum motum in terris
exstitisse. Primus maximum terrorem praebuit hominibus, cum
diuina lex in Sinai promulgata fuit, mons enim, propemodum
de sede conuulsus et horribili incendio flagrans, Hebraeos
exanimabat. Eo igitur metu animis iniecto, conuersio magna
facta fuit et mores hominum immutati sunt. Ille tamen motus
Arabiae tantum solitudinem horrendo fremitu concussit,
reliquas autem nationes minime conquassauit, et mores non ita
fuerunt immutati ut non multae reliquiae pristinae impuritatis
in animis residerent. Alter autem motus Hierosolymis auditus
est, cum in Sione diuina atque sempiterna lux promulgata
est et in mentibus impressa diuinitus, quae terras uniuersas
commouit et sic hominum mores immutauit ut nullum uestigium
antiqui sceleris in illis, qui ad Deum uerum conuersi fuerant,
OPERA OMNIA TOMO IV 351

SALMO 49
(50 entre os Hebreus)
O Deus dos deuses, o Senhor falou.

Nas Sagradas Escrituras é tão admirável a concatenação e sequência


das matérias divinas e de tal maneira [269] as do meio correspondem
às do princípio e as últimas às do meio que é impossível imaginar-se
algo de mais ajustado e harmonioso. O Evangelho trouxe luz à lei; a
lei não só iluminou o Evangelho, mas também em muitas partes muito
claramente o explicitou; os profetas interpostos não apenas interpretaram
a intenção da lei, mas também tudo remeteram para o Evangelho, como
para seu fim. E por isso umas coisas se harmonizam e encaixam com
outras de modo espantoso e encontram-se unidas entre si com um
vínculo tal que é um só o sentido e acordo que resulta de todas. S.
Paulo diminui a importância das obras da lei e prescreve admiravelmente
a fé. Chama obras da lei aquelas que não continham em si a justiça,
mas representavam a justiça, ao passo que designa por fé aquela que
se dá a conhecer não apenas no crer, mas também no obedecer. O
mesmo faz Moisés, que não faz muito caso da circuncisão do corpo e
vivamente abraça a circuncisão da alma e mostra em muitos lugares que
a salvação do género humano se funda, não na lei, mas na fé em Cristo
e na graça de Deus. E todos os profetas perfilham a mesma opinião e
sobre ela discorrem mui perfeitamente. O mesmo faz David neste texto.
Com efeito, empreende encarecer a lei, na qual se encerrava a sombra
da justiça, a fim de aumentar a dignidade do Evangelho. Ora, é mister
ter-se em consideração que o juízo, cuja pompa aqui formosamente se
descreve, não designa o Juízo final, mas aquele pelo qual o príncipe
deste mundo foi banido e as suas forças destruídas.
Além disso, cumpre notar-se que houve dois grandes terramotos.
O primeiro incutiu nos homens imenso terror, quando a lei divina foi
promulgada no Sinai, pois o monte, quase que arrancado do seu lugar e
ardendo com horrível incêndio, amedrontava os hebreus. Por conseguinte,
transidos os ânimos com este terror, deu-se uma grande conversão e os
costumes dos homens transformaram-se. Todavia aquele terramoto com
seu terrível tremor abalou apenas o deserto da Arábia, mas não sacudiu as
outras nações, e os costumes não se transformaram tanto que nas almas
não persistissem muitos resquícios da primitiva impureza. Ora, o outro
terramoto escutou-se em Jerusalém, quando em Sião se promulgou a lei
divina e eterna e foi por inspiração divina gravada nos entendimentos,
terramoto este que abalou a terra inteira e de tal maneira transformou os
costumes dos homens que, naqueles que se converteram ao verdadeiro
Deus, não aparecia nenhum vestígio do antigo crime. David, a fim de
352 D. JERÓNIMO OSÓRIO

appareret. Hoc diuinum iudicium et hunc admirabilem motum


ut Dauid magnificentius describat, ipsum Dei Filium, qui legem
tulit, de legis ipsius sententia disserentem inducit:
Summus, inquit, Deus, agminum caelestium imperator et
Dominus, orationem uerbis atque sententiis grauissimam apud
uniuersas gentes habuit; terram maximis uocibus appellauit.
Verborum sonitus admirandus a Solis ortu usque ad occasum
cum incredibili celeritate peruenit. Ex Sione perfectus et
absolutus pulchritudinis summae splendor eluxit et Dominus
omnes nationes luce clarissima diuinae legis illustrauit. Ea
enim lex id praestitit quod lex in Sinai lata praestat non potuit.
Vitia namque ex animis euulsit; uirtutum omnium seminaria
conseuit; errors turbulentos eripuit; ueritatis disciplinam
tradidit; tenebras expulit; lucem induxit; dissidents animi
partes inter se conciliauit; et sic demum factum est ut, cum
nihil esset animorum specie ad adspectum deformius, post
[270] acceptam legem, nihil fieri posset elegantius. Animus
enim, diuina luce collustratus et in diuinam pulchritudinem
semper intentus, ad illius similitudinem in dies magis accedit.
Veniet autem Deus noster et non silebit, sed multis signis
praesentiam numinis Sui declarabit; multas nationes, uitiorum
morbis oppressas, quae sanari nolent, euertet; inflammtionem
multis gentibus inferet maximasque bellorum tempestates
excitabit. Neque populum quidem Suo parcet, eo quod specie
quadam religionis inflatus, studium sanctissimae religionis
abiicet. Itaque superne caelum obtestabitur et terra etiam
testimonium denuntiabit ut cum populo Suo disceptet.
– Conuenite, inquiet, et accedite ad Me, omnes qui
laboratis, et sanctitatis studio uos teneri perspiciam; et
mecum foedus de sacrificiis rite procurandis percussum
esse contenditis.
His quidem uerbis in iudicium uocabit omnes qui se
religione adstrictos esse profitentur, ut sensum legis explicet,
et illos, qui se iustos arbitrantur, erroris et amentiae conuincat.
Caeli iustitiam illius annuntiabunt; sancti homines, in
quorum animis Deus sedem sibi constituit, iudicium illius
comprobabunt. Deus enim iudicium seuere constituit ut
eos qui fuerint in scelere contumaces prorsus exscindat. O
iudicium sanctissimum et ualde pertimescendum!
Audi, inquit, o popule, quem mihi singulari quadam ratione
legis foedere deuinxi: et te alloquar. O Israel, aures mihi
praebe, ut tecum litem contester. Deus quidem, Dominus
OPERA OMNIA TOMO IV 353

mais gloriosamente descrever este juízo divino e este admirável terramoto,


introduz o próprio Filho de Deus, que promulgou a lei, discorrendo acerca
do sentido da própria lei. Diz:
O supremo Deus, general e Senhor das hostes celestiais, com palavras
e frases pronunciou um mui importante discurso diante de todos os
povos; com altíssimos brados convocou a terra. O espantoso som das
palavras com incrível rapidez chegou desde o levante até o poente. Um
esplendor de suprema beleza, perfeito e cabal, resplandeceu vindo de
Sião e o Senhor iluminou todos os povos com a luz claríssima da lei
divina. É que esta lei dá o que não pôde dar a lei oferecida no Sinai.
De facto, desarreigou os defeitos das almas; lançou as sementes de
todas as virtudes; arrancou erros turbulentos; ensinou a doutrina da
verdade; expulsou as trevas; introduziu a luz; harmonizou entre si as
partes da alma que estavam em conflito; e deste modo sucedeu que,
sendo certo que nada existia de mais desagradável para a vista do que
a aparência das almas, depois [270] que a lei foi aceita, seria impossível
criar-se coisa mais formosa que elas. É que a alma, iluminada pela luz
divina e com a atenção sempre fixa na divina beleza, de para dia mais
se assemelha com esta. Por outro lado, o nosso Deus virá e não se
calará, mas dará a conhecer a presença da Sua divindade através de
muitos sinais; destruirá muitos povos, assoberbados pela enfermidades
dos vícios, que não queiram ser curadas; ateará o fogo em muitas
nações e atiçará enormes tempestades de guerras. E nem sequer há de
poupar o Seu povo, porque ensoberbecido com uma certa aparência
de religiosidade, desprezará o culto da mais santa religião. E por isso
há de desde o alto invocar o testemunho do céu e pedirá também o
da terra para disputar com o Seu povo. Dirá:
– Acudi e aproximai-vos de Mim, todos vós que vos esforçais, e que
Eu veja que estais dominados pelo amor da santidade; e vós que vos
empenhais em que se celebre comigo um pacto sobre a correta celebração
dos sacrifícios.
Com estas palavras chamará a juízo todos os que confessam que
se submeteram à religião, a fim de expor-lhes o sentido da lei, e
para provar o erro e loucura daqueles que se cuidam justos. Os céus
anunciarão a justiça d' Ele; os homens santos, em cujas almas Deus
estabeleceu para Si uma morada, hão de aprovar o Seu juízo. É que
Deus estabelece um rigoroso juízo a fim de totalmente exterminar
aqueles que tiverem sido contumazes no pecado. Oh juízo santíssimo
e sobremaneira temível!
Ouve, diz Ele, ó povo que a mim liguei de modo singular através
do pacto da lei: contigo falarei. Ó Israel, abre os teus ouvidos para eu
dar começo ao litígio contigo. Sou decerto o Deus, o Senhor de todos,
354 D. JERÓNIMO OSÓRIO

omnium, et Deus tuus praecipue sum, quamdiu in fide


permanseris. Iam ex hoc nomine, quo declaratur infinitae
maiestatis amplitudo et immensae sapientiae magnitudo et
probitatis summa perfectio, potest intellegi facillime quibus
sacris sit scelus expiandum et meae bonitatis offensio lenienda
et gratia meae benignitatis acquirenda. Non condemnabo te
crimine neglectae religionis in sacrificiis rite faciendis, cum
holocausta mihi a te frequenter offerri perspiciam. Sed non
sunt haec munera quibus placandum numen meum est; nec ista
sunt sacra quae me possint a seueritate iuris ad misericordiam
inflectere. Non accipiam de domo tua iuuencum neque de
caulis tuis hircos, cum pecoribus tuis non indigeam. Cuncta
enim animantia quae uagantur in siluis mea sunt; bestiae
innumerabiles in mille montibus errant, quae omnia ad ius
meum pertinent, cum penes me sit rerum omnium dominatus.
Omnes uolucres quae nidos in montibus altissimis altissimis
fingunt et construunt mihi notae sunt et omnia quae agrorum
ubertate et copia profunduntur atque nutriuntur potestate mea
continentur. Num taurorum carnes comedam? Aut sanguinem
hircorum ebibam? Duplici igitur ratione sunt ineptissimi qui
suspicantur me sacrificiis huiusmodi uehementer oblectari, uel
quia credunt me egentem nimis esse, cum sim rerum omnium
Dominus, uel quia mihi eas uictimas immolare nituntur, e
quibus nullus in me fructus redundat.
Fuit quidem tempus, cum fuit commodum istis sacris
operam dari ut pietas et religio in animis aliqua ex parte
uersaretur, ut homines, quibusdam signis admoniti, attentius
de bonitate diuina cogitarent et per terrena sacrificia [271]
paulatim ad caelestium cognitionem peruenirent. Nunc
iam omnia commutanda sunt; umbrae, interuentu lucis,
euanescent; imago ueritati concedet; humana diuinis locum
relinquent: Deus enim non mole corporis, sed infinita
mentis uirtute constat. Sacra igitur longe diverso ritu
procuranda sunt, est enim Deus non terrenis suffimentis,
sed pura et casta mente colendus. Si uis igitur a Deo
gratiam inire, Illi sacrificium laudis immola; et te uoti
compotem diuina benignitate perspexeris, persolue Domino
uota tua. Vt enim nihil est ingrati animi crimine scelestius,
ita nullum Deo sacrificium offerri poterit grata uoluntate
magnificentius. Praeterea, qui diuinorum beneficiorum
assidue memoriam recolit, amore Illius incenditur et ita
maioribus in dies muneribus augetur. Contra uero, qui
OPERA OMNIA TOMO IV 355

e principalmente o teu Deus, enquanto permaneceres na minha fé. Já a


partir deste título, com o qual se dá a conhecer a vastidão da infinita
majestade e a grandeza da imensa sabedoria e a perfeição da bondade
suprema, pode mui facilmente compreender-se mediante que sacrifícios
deve ser expiado o crime e apaziguada a ofensa feita à minha bondade
e adquirida a graça da minha benignidade. Não te condenarei pelo crime
de negligência no estrito cumprimento das regras da celebração dos
sacrifícios, uma vez que me dou conta de que frequentemente me ofereces
holocaustos. Mas não são dádivas estas capazes de aplacarem a minha
divindade; nem esses são sacrifícios que me possam desviar do rigor da
lei para a compaixão. Não receberei vitelos provindos de tua casa nem
bodes dos teus currais, uma vez que o teu gado não me faz falta. É que
todos os animais que vagam pelos bosques me pertencem; inumeráveis
alimárias erram por milhares de montanhas, e todas elas são, por justo
direito, propriedade minha, uma vez que detenho em minhas mãos o
poder sobre todas as coisas. Conheço todas as aves que nos mais altos
montes dispõem e constroem os seus ninhos e dependem do meu poder
todas as coisas que a fertilidade e abundância dos campos produzem e
dão de si. Acaso comerei a carne dos toiros? Ou beberei o sangue dos
bodes? São portanto a dois títulos totalmente ineptos os que supõem
que Eu fico fortemente seduzido com este tipo de sacrifícios, ou porque
julgam que Eu estou assaz necessitado, sendo certo que sou o Senhor de
todas as coisas, ou porque se empenham em imolar-me uma espécie de
vítimas, das quais para mim não resulta qualquer vantagem.
É certo que houve tempo em que foi vantajoso realizarem esses sacrifícios
a fim de que a piedade e a religiosidade em alguma medida se instalassem
nas almas, por forma a que os homens, aconselhados por alguns indícios,
pensassem mais atentamente na bondade de Deus e através de sacrifícios
terrenos [271] chegassem aos poucos ao conhecimentos dos celestiais.
Agora já é mister tudo mudar; as sombras, pela intervenção da luz, hão
de desvanecer-se; a imagem cederá o lugar à verdade; as coisas humanas
retirar-se-ão diante das divinas: é que Deus não consiste numa massa de
corpo, mas na infinita virtude de um entendimento. Por conseguinte, os
sacrifícios devem ser celebrados com um ritual totalmente diferente, pois
Deus não deve ser cultuado com fumigações terrenas, mas com um espírito
puro e casto. Por conseguinte, se queres adotar a graça de Deus, imola-Lhe
um sacrifício de louvor; e quando fizeres uma promessa e vires que por
divina bondade obtiveste o seu cumprimento, cumpre ao Senhor o voto que
fizeste. É que, assim como nada existe de mais sacrílego do que o pecado
da ingratidão, do mesmo modo será impossível oferecer-se a Deus sacrifício
algum mais esplêndido do que uma vontade agradecida. Além disso, quem
incessantemente se recorda dos benefícios divinos, abrasa-se no Seu amor
356 D. JERÓNIMO OSÓRIO

beneficiorum diuinorum prorsus immemor est, partam


gratiam effundit et effusam uix cum summa difficultate
recuperat.
Tum illud etiam est tibi diligenter animaduertendum fidei
munus et officium in duas partes esse tributum. Vnum est,
pro beneficiis acceptis gratias semper agere; alterum, illa,
quibus egent hominibus, firmissima fide postulare. Nihil
enim poterit esse tantum quod ardens et incitata fides
non a diuina clementia consequatur. Cum igitur aerumnis
oppressus fueris, clama ad me et eruam te, et nomen meum
pro tua uirili parte insigni cumulabis. Vt enim qui mihi
diffidit nomini meo opinione sua labem dedecoris adspergit
(aut enim aut non posse in precibus et uotis occurrere
suspicatur), ita, qui firma fide meam opem flagitat, mihi
gloriam tribuit.
Et his quidem uerbis Dominus eos erudit qui pietati quidem
operam nauant, sed in quibus rebus pietas ipsa sita sit non
sapienter animaduertunt. At eorum impietatem, qui scelus
integumento fictae sanctitatis occulunt et, cum sint impurissimi,
uirtutem ementiuntur et se legis doctores existimari uolunt,
cum ipsam legem sacrilego conatu perfringant, huiusmodi
uerbis insectatur:
Quid tibi uenit in mentem statuta mea ad libidinem tuam
interpretari et ore tuo sacrilego foederis mei sanctitatem
polluere? Adeone iuuat exsecranda scelera tam insigni
impudentia cumulare ut sanctus haberi uelis, cum sis in
sanctitatis totius Auctorem scelestissimus? Tu disciplinam
odio semper habuisti; tu uerba mea contempsisti et abiecisti.
Si uidebas furem, ad illius te societatem ualde libenter
atque festinanter adiungebas; cum adulteris foedis, ad
sceleris fructum aliqua ratione participandum, feriebas;
os tuum in omne malum petulantissime proiecisti; lingua
tua fraudes machinata est; sedens, in fratrem maledicta
coniiciebas et filio matris tuae notam dedecoris inurebas.
Non repentino animi motu concitabare ut tantum facinus
susciperes, sed cogitatum et meditatum scelus ad tuorum
perniciem conferebas, ita ut nullum apud te pondus communio
sanguinis atque propinquitatis haberet. Haec quidem fecisti et
tacui, neque simul atque scelus designasti tibi debitas poenas
imposui, ut spatium resipiscendi atque ad officium reuertendi
concederem. Tu uero mea [272] clementia, ad maiorem
facinoris impudentiam, furenter abusus es et, quasi tibi esset
OPERA OMNIA TOMO IV 357

e assim é de dia para dia acrescentado com maiores mercês. Pelo contrário,
porém, quem totalmente se esquece dos benefícios de Deus, desperdiça a
graça obtida e mui dificilmente a recupera depois de desperdiçada.
É então mister que também prestes muita atenção ao facto de que a
dádiva e dever da fé são concedidos com duas finalidades. Uma, é agradecer
sempre pelos benefícios recebidos; a outra, pedir com firmíssima confiança
aquelas coisas de que os homens têm falta. De facto, nada poderá existir de
tão grande que uma fé ardente e viva não obtenha da divina misericórdia.
Por conseguinte, quando fores assoberbado pelas provações, chama por
Mim e Eu te libertarei, e glorificarás extraordinariamente o meu nome
em conformidade com as tuas forças. Na verdade, assim como quem não
tem confiança em Mim, com a sua opinião lança sobre o meu nome a
vilta do desdouro (pois pensa ou que Eu não quero ou não posso acudir
aos seus rogos e pedidos), da mesma maneira quem com firme fé pede
a minha ajuda está a glorificar-me.
E com estas palavras certamente que o Senhor ensina aqueles que dão
sem dúvidas provas de piedade, mas não se apercebem atiladamente quais
as coisas em que a própria piedade se cifra. Mas a impiedade daqueles que
ocultam o pecado com um manto de falsa santidade e, sendo as criaturas
mais impuras, fingem a virtude e querem ser tidos na conta de doutores
da lei, quando a verdade é que quebrantam com atentados sacrílegos a
própria lei, a estes ataca-os com palavras deste teor:
Como te acudiu ao espírito interpretar a teu talante as minhas
determinações e com a tua sacrílega boca manchar a santidade do meu
pacto? Porventura apraz-te juntar abomináveis crimes com tão monstruosa
impudência que queres ser tido na conta de santo, quando te mostras
perversíssimo contra o Autor de toda a santidade? Tu sempre odiaste
os meus ensinamentos; desprezaste e enjeitaste as minhas palavras. Se
vias um ladrão, rapidamente e de muito bom grado a ele te ajuntavas;
celebravas aliança com os adúlteros, para de alguma maneira compartilhar
do fruto do crime; com o máximo impudor usaste a tua boca para causar
toda a espécie de males; a tua língua urdiu embustes; estando assentado,
proferias baldões contra o teu irmão e infamavas com a nota do desdouro
o filho da tua mãe. Não era um repentino arrebatamento que te impelia
a cometeres tamanho pecado, mas encaminhavas à perdição dos teus
um crime meditado e pensado, de tal maneira que para ti não tinham
qualquer importância a identidade de sangue e os laços de família. Fizeste
estas coisas e Eu calei-me, e não te castiguei com as devidas penas logo
que cometeste o crime, para te conceder tempo para o arrependimento
e para regressares ao cumprimento do dever. Mas tu, [272] para que o
crime se torne mais impudente, como um louco furioso abusas da minha
compaixão e, como se te tivesse sido concedida impunidade para as
358 D. JERÓNIMO OSÓRIO

flagitiorum impunitas attributa, peccata peccatis accumulabas.


Existimasti, homo profligatissime, me tibi esse factis et omni
uita simillimum et ideo te perpetuo impunitum fore? Longe te
fefellit opinio. Quo enim magis poena differtur, eo grauior ad
rectum iudicium irae cumulus accedit et uindictae seueritas
acrius incitatur. Arguam quidem te et iudicium exercebo et
omnes tuas fraudes oculis tuis obiiciam, ut intellegas quam
iuste sint tibi supplicia constituta.
Intellegite haec, qui Dei immemores estis, et cauete ne
similiter in clades sempiternas incidatis. Nam, si uos indignatio
mea corripuerit, nemo erit qui uos possit eruere. Haec
orationis summa sit, ut intellegatis non admissum flagitium
legis antiquae sacris expiandum, sed fide, e qua nascitur
uitae conuersio, Dei numen esse placandum, neque uelle me
sanguine quadrupedum coli, sed laudis uictimis honorari,
neque esse mihi curae de legis caerimoniis sollemni ritu
sanciendis, sed de iustitiae muneribus cum puritate summa
perfungendis. Et quia hoc ab humana imbecillitate praestari
minime potest, is qui uolet suum scelus agnoscere et ad me
supplex accedere, gratia mea quod natura sua non poterat
assequetur. Ego namque illi uiam rectam monstrabo qua
ad salutem Dei, summi Patris, benignitate constitutam sine
errore illo perueniat.

Miserere mei, Deus,


secundum magnam misericordiam Tuam.
Psal. 50. Apud Heb. 51

Hominum sanctorum lapsus atque ruina est imbecillitatis


humanae solatium, sollicitudinis alleuamentum, spei robur atque
firmamentum, gloriae diuinae lumen clarissimum in oculis hominum
constitutum. Cum enim eos, qui ex altissimo gradu conciderunt,
erectos et in antiquam dignitatem restitutos animaduertimus, Dei
bonitatem admiramur, Illius immensam benignitatem laudibus
summis celebramus atque plane percipimus eos, qui funditus
pereunt, sua culpa, et non Dei inclementia in miseriam sempiternam
incidisse, clementia enim diuina omnibus prompta atque parata
est qui scelus agnoscunt et ueniam petunt et, a lutulentis sordibus
emersi, in iustitiae uiam ingrediuntur. Numquam enim aditus
ad diuinae benignitatis immensitatem iis quos ualde paenitet
OPERA OMNIA TOMO IV 359

infâmias, acumulavas pecados sobre pecados. Pensaste, ó mais depravado


dos homens, que eu era totalmente semelhante a ti em ações e teor de
vida e que por isso haverias de ficar impune para sempre? O teu parecer
enganou-te e muito. Com efeito, quanto mais o castigo se adia, tanto fica
mais pesado o montante da ira para o reto juízo e mais violentamente o
rigor se sente impelido à vingança. Acusar-te-ei e julgar-te-ei e colocarei
à frente dos teus olhos todos os teus enganos, para que compreendas
como és justamente punido.
Entendei isto, vós que estais deslembrados de Deus; tomai sentido
para do mesmo modo não cairdes na desgraça sempiterna. Com efeito,
se a minha indignação vos arrebatar, não haverá ninguém que vos possa
livrar. Entendei, e seja isto o resumo das minhas palavras, entendei que
a infâmia cometida não se pode expiar com os sacrifícios da lei antiga,
mas que a vontade divina deve ser aplacada pela fé, da qual nasce a
mudança de vida, e que eu não quero ser venerado com o sangue dos
quadrúpedes, mas sim honrado com vítimas de louvor, e que não me
preocupo com cerimónias da lei a serem realizadas com solenes rituais,
mas com os deveres da justiça cumpridos com a mais elevada pureza. E
porque a humana fraqueza não pode levar isto a cabo, o homem que quiser
reconhecer o seu crime e aproximar-se de mim em atitude suplicante,
alcançará mediante a minha graça aquilo de que a sua natureza não era
capaz. Eu, na verdade, mostrar-lhe-ei a estrada direta pela qual chegará
sem erro à salvação, estabelecida pela bondade de Deus, Pai supremo.

SALMO 50
(51 entre os Hebreus)
Tem piedade de mim, ó Senhor,
segundo a tua grande misericórdia.

A queda e r uína dos varões santos é uma consolação par a a


fraqueza humana, um alívio para os cuidados, um alento e esteio
para a esperança, uma claríssima luz da glória divina posta diante
dos olhos dos homens, pois, quando vemos erguidos e restituídos
à sua antiga dignidade aqueles que tombaram da mais alta posição,
admiramos a bondade de Deus, celebramos com os maiores louvores
a sua imensa benignidade e percebemos claramente que, quantos se
arruínam por completo, caíram na miséria sempiterna por sua própria
culpa, e não devido à inclemência de Deus, porquanto a clemência
divina foi oferecida e posta à disposição de todos que reconhecem o
crime e pedem perdão e, saindo das sujas torpezas, entram na via da
justiça. É que nunca se embargou a entrada na imensidade da divina
360 D. JERÓNIMO OSÓRIO

impuritatis et qui ad studium pietatis inflammatis animis reuertuntur


interclusus fuit. Huius autem immensae probitatis argumentum
Dauidis casus firmissimum fuisse constat.
Cum enim ab infima condicione in regiam dignitatem
adscitus fuisset, tantis donis atque muneribus a Deo
cumulatus exstitit ut omnes eiusdem memoriae principes
longissimo interuallo uinceret et antiquoribus etiam, qui
gloria rerum gestarum floruerant, antecelleret, fuit enim
opibus et imperio florentissimus, [273] diuinis uirtutibus
ornatissimus, uictoriarum amplitudine clarissimus, et tamen,
libidine caecus, nomen suum adulterio commaculauit et tanti
sceleris medicinam ab alio scelere multo grauiore poposcit.
Nam uirum, quem tam insigni iniuria deformauit, cum multis
aliis innocentibus crudeliter interemit, ne turpitudo sui
dedecoris emineret.
Fuit igitur adulter et homicida, pietatis simulator et omnibus
simul se libidinis, immanitatis, extremae iniustitiae criminibus
alligauit. Et, quod multo grauius erat, cum ad uindicanda
facinora in sede regia locatus esset, pessimo facinoris
exemplo poterat subditos ad omne scelus designandum
impellere, nisi tantum dolorem ex peccato suo percepisset
et cum tam praeclara oratione, cum admiranda conuersione,
ueniam fuisset assecutus. In hanc igitur sententiam Deum
affatus est:
Misericordia Tua, Domine, satis illustris et ampla est; ea
namque alit et continet uniuersa, sed tunc multo clarius
eminet cum rebus miseris atque perditis adhibetur. Peccato
uero nihil est miserius, animum enim lacerat et conficit et,
quod est maiorum omnium maximum, illum a Te, bonorum
omnium fonte, diuellit. Quid igitur erit existimandum cum
peccatum fuerit, sceleris grauitate maximum et exemplo
maxime perniciosum, ab eo commissum quem oportebat
aliorum peccata coercere? Is autem ego sum qui tantum et
tam scelestum facinus suscepi quantum oratione consequi
non possum. Quid ergo faciam? Spem sanitatis abiiciam? –
Nullo modo! Misericordia enim Tua nullis terminis definitur,
cum immensa sit et omnibus proposita qui illam suppliciter
efflagitauerint. Ad Te ipsum igitur, cuius maiestatem
grauissime laesi, confugio, ut, secundum amplitudinem
misericordiae Tuae, mihi ueniam tribuas. Maxima namque
miseria maximam misericordiam requirit et, quia uno facto
multiplex scelus admisi, et misericordia Tua nullo numero
OPERA OMNIA TOMO IV 361

bondade aos que deveras se arrependem da impureza e aos que com


almas inflamadas tornam ao zelo da piedade.

Ora, é sabido que a queda de David foi prova indubitável desta imensa
misericórdia. Com efeito, tendo sido chamado de uma condição ínfima para
uma dignidade régia, foi cumulado por Deus com tão grande quantidade
de dádivas e graças que se avantajava com enorme diferença a todos
os príncipes da mesma época e até ultrapassava os mais antigos que
alcançaram nomeada pela glória dos feitos realizados, pois foi muitíssimo
próspero em riquezas e senhorio, [273] ornadíssimo de virtudes divinas,
ilustríssimo pela grandiosidade das vitórias e, não obstante, cego pela
luxúria, manchou o seu nome com o adultério e buscou remédio para tão
grande crime em outro crime muito mais grave. Com efeito, para que não
se revelasse a vileza da sua infâmia, matou, juntamente com muitos outros
inocentes, aquele a quem manchou com uma ofensa tão monstruosa.
Portanto, foi adúltero e homicida, simulador da piedade e, do mesmo
passo, atou-se com todos os crimes da sensualidade, da desumanidade e
da mais extrema injustiça. E, coisa que era muito mais grave, como quer
que tivesse sido colocado no trono para punir os crimes, com o péssimo
exemplo do crime poderia incitar os súbditos a maquinarem toda a sorte
de malfeitorias, caso não tivesse recebido uma tão grande dor pelo seu
pecado e não houvesse alcançado perdão mediante tão notáveis palavras
e uma conversão digna de admiração. Ora, foi do modo seguinte que se
dirigiu a Deus:
A tua misericórdia, Senhor, é assaz evidente e ampla; de facto,
ela sustenta e encerra tudo quanto existe, mas revela-se muito mais
manifesta quando se emprega em coisas miseráveis e perdidas. Ora,
nada há de mais miserável que o pecado, pois despedaça e arruína
a alma e, o que é o pior de todos os males, afasta-a de Ti, que és a
fonte de todos os bens. Por isso, que deverá pensar-se quando um
pecado – pela sua gravidade, o pior dos pecados, e pelo seu exemplo,
o mais pernicioso – for perpetrado por aquela pessoa que tinha a
obrigação de corrigir os pecados dos demais? Ora, sou precisamente
eu quem cometeu um crime de tal forma desmedido e ímpio que me
é impossível descrevê-lo com palavras. Ora, que me cumpre fazer?
Porei de parte a esperança de salvação? – De modo algum! É que a Tua
misericórdia não tem limites, pois é imensa e se oferece a todos os que,
em atitude suplicante, instarem por ela. Portanto, a Ti recorro, a Ti,
cuja majestade ofendi do modo mais grave, para que, em consonância
com a grandiosidade da Tua misericórdia, me concedas o perdão. É
que a maior miséria carece da maior misericórdia e, visto como com
uma única ação cometi um pecado múltiplo, e sendo verdade que a
362 D. JERÓNIMO OSÓRIO

continetur, Te suppliciter oro et obsecro ut omnia crimina


mea deleas.
Multa sunt in lege piacula, multae et frequentes lustrationes
et lauacra ad speciem gubernationis instituta. Sed sordes animi
non corporeis aquis eluuntur; non est non est tanta uis in lege
ut inustas menti maculas abstergat: intellego plane ualetudinis
afflictae medicinam non esse a legis sacerdotio, sed a sacerdotio
sempiterno requirendam. Te igitur, quem non solum ut uerum
Deum ueneror, sed iam ut sacerdotem sanctissimum admiror,
oro ut in me, penitus abluendo et expurgando, sacerdotis
officio perfungaris et me a sordibus iniquitatis educas omniaque
peccata mea prorsus diluenda suscipias.
Quibus meritis tantos spiritus assumo ut a Te id petere
audeam, cum sim supplicio sempiterno dignissimus? Nullis
profecto, sed misericordia Tua solum nixus id summo studio
et contentione postulare minime desistam. Ea namque
parata est omnibus qui de scelere suo facillime confitentur
et clementiam diuinam fidenter implorant. Quod uero ad
hunc statum attinet scelera mea, quanta sint, clare cerno et
peccatum meum, hostem acerrimum ex aduerso constitutum,
perspicio, quod me pungit et lacerat et stimulis urget, ut
respirare non sinat. Multa quidem animum [274] meum in
mei criminis recordatione sollicitant, cogito enim per me
fuisse matrimonii fidem uiolatam, homini fideli dedecus
inustum, meis ciuibus, quorum salutem tueri praesidio meo
debuissem, uitam per summum scelus ereptam, sed nihil
aeque me conturbat atque bonitas Tua nimis grauiter offensa.
Tanti enim ponderis est infinitae maiestatis offensio ut omnes
iniuriae quae in homines conferuntur, si sine bonitatis Tuae
contemptione inferri potuissent, cum hoc pietatis crimine
collatae pro nihilo ducendae fuissent. Hoc igitur in omni
peccato maxime dolendum est, quod sit maiestas Tua
indignissime uiolata: hoc igitur me grauiter afflictat, quod
contra Te solum et contra Tuae maiestatis amplitudinem in
me grauissimum scelus admiserim.
Tuam enim legem transgressus sum, Tuam benignitatem
sceleratissime contempsi, Tuo sanctissimo nomini conuicium
feci, ita ut quasi Te solum grauissime laeserim assidue
lamenter. Verum, quo grauius facinus meum fuit, eo clarius
Tuae misericordiae decus innotescet et cum ampliore gloria
litem obtinebis contra eos qui cum proiecta audacia Te nimiae
seueritatis atque adeo crudelitatis insimulant, quotiens iudicio
OPERA OMNIA TOMO IV 363

Tua misericórdia não é circunscrita por nenhuns limites, peço-te e


rogo-te humildemente que apagues todos os meus delitos.
A lei estabeleceu muitos sacrifícios expiatórios, múltiplas e repetidas
lustrações e lavagens, instituídas à imagem da sociedade civil. As nódoas da
alma, porém, não se lavam com águas materiais; a lei não tem um poder tão
grande que apague as manchas gravadas no entendimento: sei perfeitamente
que o remédio para a saúde arruinada não deve ser pedido ao sacerdócio da
lei, mas sim ao sacerdócio sempiterno. Por isso, a Ti, a quem não só venero
como a verdadeiro Deus, mas também admiro como o mais santo sacerdote,
a Ti rogo que, lavando-me e purificando-me por completo, desempenhes
o ofício de sacerdote e que me arranques da sujidade da injustiça e que
tomes a Teu cargo apagar inteiramente todos os meus pecados.
Com que merecimentos me arrogo uma tamanha ousadia que me
atreva a pedir-te tal coisa, eu que sou o mais digno do suplício eterno?
Certamente que com nenhuns, mas, apoiado somente na Tua misericórdia,
não desistirei de tal pedir com o máximo empenho e insistência. É que
ela foi oferecida a todos os que de bom grado confessam o seu crime e
imploram com fé a clemência divina. Mas, no que concerne a este estado,
vejo com toda a clareza a totalidade dos meus crimes e distingo bem o
meu pecado, postado defronte de mim como um crudelíssimo inimigo,
que me mortifica e atormenta e oprime com dores, de forma a não deixar-
me respirar. Certamente que muitas coisas movem a minha alma [274]
à lembrança do meu crime, pois lembro-me de que por minha culpa a
fidelidade conjugal foi violada, infligida a infâmia a um homem leal e
arrancada a vida a concidadãos meus, cuja prosperidade eu tinha o dever
de salvaguardar com a minha proteção, mas não há coisa que mais me
perturbe do que a Tua bondade tão descomedidamente ultrajada. É que é
de tamanha gravidade a ofensa à infinita majestade que todas as injúrias
que se ajuntam contra os homens, se tivessem podido ser inferidas sem
desprezo pela Tua bondade, postas em cotejo com esta ofensa da piedade
deveriam ser reputadas como coisa nenhuma. Portanto, em qualquer
pecado, o que acima de tudo nos deve doer é termos violado de modo
muitíssimo indigno a Tua majestade: por conseguinte, o que gravemente
me aflige é ter-me tornado culpado do maior dos crimes, só contra Ti e
contra a grandeza da Tua majestade.
É que transgredi a Tua lei, desprezei de forma muitíssimo ímpia a Tua
benignidade, insultei o Teu santíssimo nome, de tal modo que sem cessar
choro por, a bem dizer, só a Ti haver gravissimamente ultrajado. Mas,
quanto foi mais grave a minha ação criminosa, tanto brilhará com maior
esplendor a glória da Tua misericórdia e com maior lustre alcançarás vitória
sobre os que, com impudente audácia, Te acusam de excessiva severidade
e até de crueldade, todas as vezes que, por Teu juízo, abates os homens
364 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Tuo nocentes homines, quibus antea benigne consulebas,


euertis: clementia enim seueritatem omni calumnia liberat.
Cum igitur perspectum fuerit Te mihi, homini tantis sceleribus
inquinato et infecto, misericordiam tribuisse, exploratum
omnibus erit eos qui a Te deserti sunt propria contumacia
concicisse. Nam certe, si suum scelus agnouissent et, ad
Te conuersi, ueniam humiliter atque demisse postulassent,
eam consecuti facillime fuissent, nihil enim clementiae Tuae
magis contrarium quam animi duri et intractabilis insolentia.
Cum igitur mihi ueniam dederis et tam insigni benignitatis
exemplo demonstraueris, nihil esse Tibi magis proprium
quam oppressos malis miserari gloriam Tuam illustrabis
et audaciam eorum qui Tibi notam crudelitatis affingunt
apertissime conuinces.
Praeterea, imbecillitas animi minuere uidetur aliqua ex parte
sceleris commissi grauitatem, implicata enim est in natura
libido, legi diuinae contraria, quae urget et instat et inclinat ad
peccandum, cui non facile repugnatur. Hanc labem nascendo
contraxi et, cum me mater mea concepit, parentes mei hanc
in me uoluntatem ad peccandum propensam transmiserunt,
ita ut minime mirandum sit, cum peccati hereditatem adierim,
me esse peccatis infectum. Quamquam non excuso peccatum,
quod non naturae uiribus, sed gratiae Tuae magnitudine
reprimere potuissem.
Etenim ueritas seruile iugum a ceruice depellit et peccati
tyrannidem delet et eorum qui lumine ueritatis illustrati
sunt libertatem mire constituit. Hanc igitur ueritatem, hanc
caelestem disciplinam, quae Tibi maxime cordi semper
est, ut per eam homines a magnitudine sempiternae
calamitatis eripias, mihi tradidisti et in praecordiis meis
arcana sapientiae Tuae ab humana cognitione remotissima
impressisti, ad notitiamque illius summae benignitatis, qua
es salutem gentibus uniuersis allaturus, instruxisti. Magnum
igitur beneficia Tua, tam ampla praesertim et tantum
praecipui amoris argumentum continentia, ad commissi
sceleris atrocitatem pondus [275] attulerunt. Cum tamen
probitas Tua partibus infinitis improbitatem meam superet,
fac ut beneficia Tua tuearis neque permittas ut immensa
benignitas humano scelere praepedita sit quominus me,
quem tantis opibus atque praesidiis ornatum esse uoluisti,
iacentem et afflictum erigas, et tam pestifero morbo
grauatum in sanitatem restituas.
OPERA OMNIA TOMO IV 365

culpados, de quem anteriormente Te ocupavas com benignidade: é que


a clemência iliba a severidade de toda a acusação caluniosa. Por isso,
quando se vir claramente que Tu me ofereceste misericórdia – a mim,
homem manchado e sujo com tamanhos crimes –, tornar-se-á evidente
para todos que aqueles que por Ti foram abandonados caíram por culpa
da sua própria contumácia. Com efeito, não há dúvida que, se tivessem
reconhecido o seu crime e, voltados para Ti, humilde e submissamente
tivessem pedido perdão, com a maior facilidade o teriam alcançado, pois
nada existe de mais oposto à Tua clemência do que a arrogância de um
ânimo duro e intratável. Portanto, ao concederes-me o perdão e ao dares
a conhecer, mediante um tão extraordinário exemplo de benignidade, que
nada é mais próprio de Ti do que apiedar-Te dos que são oprimidos pelos
males, tornarás evidente a Tua glória e refutarás claramente a audácia de
quantos Te assacam a nota de crueldade.
Demais disto, a fragilidade da alma parece diminuir de alguma
maneira a gravidade do crime cometido, porquanto faz par te da
natureza o desejo carnal, contrário à lei divina, o qual impele e insta
e inclina a pecar, não sendo fácil resistir-lhe. Ao nascer, contraí esta
mancha e, quando a minha mãe me concebeu, os meus progenitores
transmitiram-me uma vontade propensa a pecar, de tal sorte que
não deve espantar se, uma vez que recebi a herança do pecado, fui
infectado pelos pecados. Ainda que eu não desculpe o pecado, que
teria podido deter, não com as forças da natureza, mas através da Tua
grandíssima graça.
A verdade afasta da cerviz o jugo da servidão e destrói a tirania do
pecado e, de modo admirável, estabelece a liberdade dos que foram
iluminados pelo lume da verdade. Ora, esta verdade e esta doutrina
celestial, que é sobremaneira sempre do Teu agrado, para através dela
arrancares os homens da imensa calamidade sempiterna, Tu me as
deste, e gravaste nas minhas entranhas os segredos da Tua sabedoria,
muitíssimo apartados do conhecimento humano, e aparelhaste-me para
o conhecimento daquela suma benignidade, pela qual hás de trazer
a salvação a todos os povos. Portanto os Teus benefícios, sobretudo
sendo tão consideráveis e contendo tamanha prova de um especial
amor, acrescentaram grandemente a gravidade da monstruosidade
do crime praticado. [275] Como, porém, a Tua probidade supera
infinitamente a minha perversidade, faze de modo a salvaguardares os
Teus benefícios e a não permitires que, por mor do crime humano, a
imensa benignidade se ache com embaraços para que me levantes, a
mim que jazia prostrado e abatido e que quiseste que fosse ornamentado
com tantas riquezas e recursos, e restituas a saúde a quem, como eu,
se encontrava oprimido por uma doença tão pestífera.
366 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Maxima tamen me spes tenet fore ut clementia Tua in


sanitatem restituar, et ut hac fide fortius et uehementius
erigar sacerdotii Tui religio atque sanctitas efficit, neque
enim tam me terret diuinitas Tua quam humanitas futura
consolatur. Lepra quidem malum est deformitate horridum,
odore taetrum, contagione pericolosum et, cum grauius in
statum corporis incumbit, insanabile. Non igitur sine causa
lex omnes leprosos ab hominum multitudine segregauit,
ne tam horribilis contagio ciues uniuersos inficeret. Quod,
si aliquis sanitatem recuperaret, statuisti, Domine, ut
iudicium receptae sanitatis ad sacerdotes pertineret. Qui
quidem, si uident malum esse depulsum, passerem oblatum
iugulant, sanguinem aquis admiscent, hyssopum aquis
illis sanguine tinctis madefaciunt, hominem, quem sanum
iudicant adspergunt nec eum post illum diem ab aliorum
coetu segregari permittunt.
Ah, quanto est lepra mea ea, quam lex discessu et
secretione damnat, infestior! Illa enim corpus taetris
maculis inficit; haec, totum animum foede contaminat;
illa, odore hoomines alienat; haec, caelites procul arcet;
illam homines fugiunt; huic est ira Tui numinis uehementer
infesta; illa postremo uitam non eripit; haec animum uita
repente spoliat.
Quo igitur me conferam? Ad legis sacerdotes? Non profecto!
Illie enim corporis lepram minime currant, tantum abest ut
animo ulceribus grauissimis atque maxime purulentis infecto
salutarem medicinam adhibeant. Ad Te igitur tantum, o
summus Sacerdos, qui Te medium inter Patrem et humanum
genus interponis accedam, ut hyssopo, hoc est, uerbo Tuo,
in lauacro pretiosi sanguinis et aquae salutaris immerso me
adspergas, ut continuo munder et niuis candorem, sanctitatis
Tuae meritis atque uirtute, recipiam.
Quotiens a Te peccato meo disiungor, sic sum repente
morbis omnibus impeditus ut nullis uitae muneribus fungi
queam. Sensus enim opprimuntur; uires debilitantur; cor
molestissimis curis implicatur; nullaque pars animi mei
immunis ab aegritudine pestilente relinquitur. At, si me
totum sacrorum tuorum sanctitate lustraueris, omnia quae
lapsa et strata fuerant instaurabuntur. Aures meae, quae erant
obstrusae penitus et audire non poterant, uerba Tua gaudii
atque laetitiae plena percipient; ossa confracta reficientur et
uires amissas recuperabunt. Auerte faciem Tuam a peccatis
OPERA OMNIA TOMO IV 367

Todavia tenho a imensa esperança de que, graças à Tua clemência,


a saúde me há de ser restituída, e a religiosidade e santidade do Teu
sacerdócio conseguem que, através desta fé, eu seja levantado mais
enérgica e completamente, pois a Tua divindade não me atemoriza tanto
quanto me esforça a tua bondade futura. Não há dúvida que a lepra é um
mal repugnante pela deformidade, hediondo pelo mau cheiro, perigoso
pelo contágio e incurável quando se abate com certa gravidade sobre o
corpo. Portanto, não foi sem motivo que a lei segregou todos os leprosos
da convivência dos homens, a fim de que um contágio tão terrível não
infeccionasse todos os cidadãos. Por isso, Senhor, estabeleceste que,
caso alguém recuperasse a saúde, coubesse aos sacerdotes julgar sobre a
saúde recuperada. Os quais, com efeito, se vêem que o mal foi afastado,
degolam um pardal em sacrifício, misturam o sangue com água, embebem
o hissopo naquelas águas tintas com sangue, aspergem o homem que
declaram achar-se são e não permitem que este, a partir de então, seja
segregado da convivência com os outros.
Ah, como a minha lepra é mais danosa que essa, que a lei condena
com o afastamento e o exílio! É que esta infeta o corpo com manchas
repugnantes; aquela, contamina horrorosamente a totalidade da alma;
esta, devido ao mau cheiro, aparta os homens; aquela, repele para longe
os habitantes do Céu; desta fogem os homens; contra aquela encarniça-
se vivamente a ira do Teu poder; esta, por derradeiro, não ocasiona a
morte; aquela em um ápice priva a alma de vida.
Por conseguinte, para onde me hei de voltar? Para os sacerdotes da
lei? Certamente que não! Pois se estes nem sequer curam a lepra do
corpo, quão longe estarão de remediar uma alma infectada com lesões
gravíssimas e purulentas em sumo grau. Por isso recorrerei unicamente
a Ti, ó sumo Sacerdote, que Te interpões como medianeiro entre o Pai
e o género humano, para que me aspirjas com o hissope, isto é, com a
Tua palavra, embebida no lavatório do precioso sangue e da água salutar,
para logo de seguida ser alimpado e, graças aos merecimentos e virtude
da Tua santidade, receber a brancura da neve.
Todas as vezes que, por culpa do pecado, me separo de Ti, logo de
tal modo me vejo embaraçado por todas as moléstias que não posso
desempenhar nenhuma das obrigações da vida. É que os sentidos acham-
se oprimidos, as forças debilitam-se, o coração é enleado por cuidados
muitíssimo molestos e não há parte da minha alma que fique isenta da
doença pestilencial. Porém, se me purificares inteiramente com a santidade
dos Teus sacrifícios, restaurar-se-á tudo o que caiu e se abateu. Os meus
ouvidos, que se tinham tapado completamente e não podiam ouvir,
entenderão as Tuas palavras, cheias de prazer e alegria; recompor-se-ão
os ossos quebrados e recuperarão as forças perdidas. Desvia a Tua face
368 D. JERÓNIMO OSÓRIO

meis, ne iram Tuam in me concitent; iniquitates meas dele,


ne Te ad uindictam prouocent; totum me muda et inuerte,
ut nihil ex homine uetusto, qui terreni parentis imaginem
gerit, in animo meo uideatur, sed excellentis formae nouitas
in mente mea, ad effigiem Tuae iustitiae atque sanctitatis,
manibus Tuis instauretur et nouum iustitiae spiritum in meis
uisceribus [276] insculpe, ut omnes deinde meae cogitationes
et actiones et studia ad Tui nominis gloriam dirigantur.
Ad haec autem tam diuina munera caro et sanguis non
adspirat; in diuinis opibus acquirendis humana ratio frustra
contendit; in uerae uirtutis studio hominis industria sine
fructu consumitur. Haec omnia sancti Spiritus opera sunt.
Si igitur ope illius orbati fuerimus, omnium flagitiorum in
nobis stirpes continuo pullulabunt. Ne igitur nos a facie
Tua propellas neque Spiritum sanctum Tuum nobis eripias,
ut animi labes aspernemur et in iustitiae atque pietatis
studium alacriter incumbamus. Quamdiu Spiritus Tuus in
animo meo insidebat gaudio triumphabam; laetitia efferebar;
mens mea in perpetua iucunditate uersabatur. Postquam
uero Spiritus Tuus, peccatis meis offensus, abscessit, curae
et sollicitudines in statum meum inuaserunt; ingens continuo
tristia animum meum depressit; maeror assiduus sordesque
lugubres quibus angoribus afflictarer indicabant. Hanc igitur
laetitiam quam per meum facinus amissi, Tu mihi, benignitate
Tua nimis admiranda, restitue, et spiritu, non seruitutis, sed
adoptionis mentem meam confirma, ut non timore discrucier,
sed magnitudine amoris inflammer, et Te, Dominum meum,
maximis uocibus ‘Patrem’ appellem.
Hunc statum uiri principis assecutus, recipio fore ut
homines nocentes ad disciplinam iustitiae et aequitatis
erudiam et multi, qui uiam iustitiae deseruerant, meis
monitis et exemplis ad Te conuertantur. Caede quidem me
foede contaminauit et innocentis hominis sanguine cruentaui
et tanti facinoris maculae in animum meum adhaeserunt
ut nullis humanis piaculis deleri umquam possint. Tu, qui
solus potes, eas omnes absterge, Domine, qui solus meus
Deus es et auctor salutis meae, ut tum demum, cum summa
laetitia et iucunditate, iustitiae Tuae laudes oratione mea
celebrandas suscipiam. Duplici namque ratione in me
sanando iustitiae Tuae sanctitatem mirabiliter illustrabis,
nam et tum maxime uim Tuae iustitiae demonstras cum
ex nocentibus et flagitiosis iustos atque sanctos efficis,
OPERA OMNIA TOMO IV 369

dos meus pecados, para que não incitem contra mim a Tua ira; apaga as
minhas iniquidades, para que não Te provoquem à vingança; muda-me e
altera-me por inteiro, para que na minha alma não se veja coisa alguma
do homem velho, que em si leva a imagem dos pais terrenos, mas que
por Tuas mãos se estabeleça no meu espírito a novidade da forma mais
perfeita, à imagem da Tua justiça e santidade, e grava nas minhas entranhas
um espírito novo de justiça, [276] para que em seguida todos os meus
pensamentos e atos e cuidados se encaminhem à glória do Teu nome.
Ora, a carne e o sangue não aspiram a estes tão divinos dons; é em
vão que a razão humana se esforça por adquirir estas riquezas divinas;
é debalde que a atividade humana se consome no estudo da verdadeira
virtude. Todos estes bens são obra do Espírito Santo. Portanto, se
tivermos sido privados da ajuda deste, imediatamente brotarão em
nós os rebentos de todas as infâmias. Por isso, não nos expulses da
Tua presença nem nos arrebates o Teu Espírito santo, para que nos
desviemos da queda da alma e animosamente nos apliquemos ao zelo
da justiça e da piedade. Era senhoreado pela alegria sempre que o Teu
espírito ocupava a minha alma; rejubilava de contentamento; a minha
mente vivia em perpétua felicidade. Porém, quando o Teu espírito se
distanciou, ofendido pelo meu pecado, os cuidados e as inquietações
apossaram-se do meu estado de ânimo; uma tristeza imensa de imediato
me oprimiu a alma; um pesar constante e um luto lúgubre davam mostras
das aflições com que era atormentado. Por isso, esta alegria que perdi
por culpa do meu pecado, devolve-ma, pela Tua tão extraordinária
benignidade, e fortifica o meu entendimento com um espírito, não de
servidão, mas de adoção, de tal sorte que eu não seja atormentado
pelo temor, mas me sinta inflamado pela grandeza do amor, e a Ti,
meu Senhor, chame Pai com brados altíssimos.
Ora, tendo obtido este estado de príncipe, prometo que hei de
ensinar aos homens culpados a doutrina da justiça e da equidade e
que muitos, que abandonaram a via da justiça, a Ti se converterão
graças aos meus conselhos e exemplos. É verdade que me desonrei
horrorosamente com um assassínio e me manchei com o sangue de
um homem inocente e que se pegaram à minha alma as nódoas de
um crime tão grande que jamais podem ser apagadas por nenhumas
expiações humanas. Tu, que és o único que o podes fazer, limpa todas
estas nódoas, Tu, Senhor, que és o meu único Deus e autor da minha
salvação, para que só então tome a meu cargo celebrar, com suma
deleitação e alegria e mediante as minhas palavras, os louvores da Tua
justiça. É que, ao curares-me, farás brilhar extraordinariamente por
dois modos a santidade da Tua justiça, pois não só mostras a força
da Tua justiça quando transformas os culpados e infames em justos
370 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et, cum in me tanta beneficia congesseris, ostendes quam


iusto iudicio eos, qui corrigi et emendari et ueniam petere
noluerunt, persecutus sis.
Quamdiu sceleris conscientia conturbor, impeditam
linguam gero, mutus et elinguis sum, tacet enim animus,
languescit industria, spiritus obtunditur, non est ardor ullus,
non spiritus, non vigilantia. Praeterea, quo tandem modo
fieri potest ut sermone impuro et contaminato, summae et
infinitae puritatis laudes sine audaciae crimine referantur?
Si uero Tu, Domine, me crimine omni liberaueris, tum
demum lingua mea, uinculis expedita, copiose et ornate
laudes Tuas enuntiabit.
Sed dicet aliquis: “Quomodo est diuinae aequittai
consentaneum ut, sine ullis piaculis, in maximo crimine
animaduersio atque supplicium alicui condonetur?”
Non sine piaculis Tu, Domine, peccatis ignoscis, sed
illa piacula respuis quae non sunt maiestati Tuae decora
et illis placaris quae sunt cum benignitate Tua ualde
congruentia. Legis sacrificium aspernaris, non igitur
sacrificio [277] legis innitar; holocaustum similiter Tibi
gratum non est. Quod igitur sacrificum offeram? Illud
profecto quod acceptissimum fore confido. Sacrificium
Domino gratum est spiritus dolore fractus, cor enim
stratum et acerbitate fletus abiectum. Hanc igitur hostiam
Tibi pro meis peccatis immolo; animum Tibi, maerore
perculsum et infractum, suppliciter offero; his sacris,
quae dolorem, quo sum uehementer afflictus, indicant,
operatus, ueniam me impetraturum confido.
Quando erit illud tempus quo sacrorum institutio
commtabitur et, pro terrestri Hierosolyma, ciuitas caelestis
atque diuina fundabitur, et mons Sion templo sempiterno
consecrabitur, et muri Hierosolymae caelestis exstruentur?
Tunc demum, antiquis sacrificiis ablatis, iustitiae sacrificia
gratiam Tuam consequentur; numen Tuum, amoris et
perfectissimae caritatis incendio, ualde propitium fiet; tum
in altare non sanguis quadrupedum, sed labiorum uituli,
hoc est, piae sanctorum hominum preces inferentur.
OPERA OMNIA TOMO IV 371

e santos, mas também, ao acumulares sobre mim tantos benefícios,


mostras com quão justo juízo perseguiste aqueles que não quiseram
ser corrigidos e emendados e suplicar perdão.
Durante o tempo em que me inquieta a consciência do crime, tenho
a língua enleada, estou mudo e privado de língua, pois o ânimo cala-se,
a atividade esmorece, o espírito embota-se, não há qualquer entusiasmo,
nem coragem, nem vigilância. Além disso, como é possível que, sem
incorrer em crime de ingratidão, se exponham então com uma linguagem
impura e manchada os louvores da suprema e infinita pureza? Mas se
Tu, Senhor, me libertares de toda a espécie de crimes, só então a minha
língua, desembaraçada de ataduras, divulgará eloquente e elegantemente
os teus louvores.
Mas dirá alguém: “Como é que é conforme com a equidade divina
que, sem quaisquer sacrifícios expiatórios, sejam perdoados a punição e
o suplício a alguém culpado do maior dos crimes?”
Senhor, não é sem sacrifícios expiatórios que Tu perdoas os pecados, mas
repeles aqueles sacrifícios de expiação que não quadram perfeitamente à
Tua majestade e és aplacado por aqueles que estão em grande conformidade
com a Tua benignidade. Desprezas o sacrifício da lei, portanto não me
apoiarei no sacrifício da lei; [277] da mesma forma, o holocausto não é
do Teu agrado. Por isso, que sacrifício Te hei de oferecer? Seguramente
aquele que confio que Te há de ser o mais aceito. É sacrifício do agrado
de Deus um espírito abatido pelo arrependimento, pois, Senhor, nunca
na vida desprezarás um coração prostrado e derribado pelo amargor do
pranto. Por isso imolo-Te pelos meus pecados essa vítima expiatória;
em atitude suplicante ofereço-Te um espírito abalado e abatido por um
grande pesar; fazendo estes sacrifícios, que mostram a dor com que fui
vivamente atormentado, confio que hei de conseguir o perdão.
Quando virá aquele tempo em que se modificará o sistema das
cerimónias do culto e em que se há de fundar a cidade celestial e divina,
em lugar da Jerusalém terrena, e em que o monte Sião se há de consagrar
com um templo sempiterno, e em que se erguerão os muros da Jerusalém
celestial? Só então, retirados os antigos sacrifícios, os sacrifícios da justiça
obterão a Tua graça; apenas então, mediante o fogo do amor e da mais
perfeita caridade, a Tua potestade se volverá sobremodo propícia; somente
então serão oferecidos no altar, não o sangue dos quadrúpedes, mas o
vitelo dos lábios, isto é, as preces piedosas dos homens sábios.
372 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Quid gloriaris in malitia?


Psal. 51. Apud Heb. 52

Extremum malorum omnium est de scelere gloriari. Eos


enim qui uel cupiditate uel odio uel inuidia uel spe uel
metu aliquod facinus aggrediuntur, cum primus motus ille
residet qui ad facinus patrandum instigabat, plerumque
sceleris suscepti ualde paenitet et, quantum possunt, facinus
occultant. Qui uero gloriandum statuunt quod est turpitudine
taeterrimum et immanitate truculentissimum, se iam totius
humanitatis expertes esse demonstrant. Cum igitur Doeg
Idumaeus nomen Achimelechi, sacerdotis summi, ad Saulem
detulisset, quod Dauidem hospitio recepisset, quod illius gratia
Deum consuluisset, eo tempore quo Dauid Saulem, ne ab
illo occideretur, fugiebat, deinde Saulis iussu Achimelechum
cum multis aliis sacerdotibus interemisset, illud tam immane
facinus quasi rem admodum praeclaram gessisset passim
praedicaret: Dauid in eius impietatem atque dirum scelus
inuehitur. Ait igitur:
Quid gloriaris in scelere, o uir, qui opibus et gratia potens?
Tantum tibi arrogas et assumis ut nullum casum extimescas et
meis rebus tantum diffidis ut arbitreris esse iam mihi omnem
spem salutis et melioris condicionibus abiiciendam? Quasi
clementia Dei, qua sola nitor atque confido, prorsus interierit.
Atqui misericordia Domini stabilis atque sempiterna est, quo
fit ut qui in praesidio Illius omnes salutis et uitae rationes
collocatas habent, numquam possint Illius ope destitui. Tu uero
fraudes lingua Tua machinaris et, quasi nouacula nimis acuta,
maledictis innocentes proscindis et, per summam calumniam
et fraudem, immeritis plagas imponis. Improbitatem bonitati
praetulisti; mendacium et uanitatem libenter amplexus,
orationem ueritatis atque iustitiae repulisti. O dirissimum scelus,
[278] aeterno supplicio uindicandum! Verbis atque factis ad
euersionem inferendam paratus semper exstitisti; lingua tua
fraudes capitales in tuorum ciuium perniciem contulisti. Verum
Deus te radicitus euellet ne ex scelestissimi trunci fibris fraudis
et improbitatis stolones ullis umquam temporibus enascantur;
tollet te funditus; expellet te de tabernaculo Suo et radicem
tuam de terra uiuentium conuellet, ut, bonis omnibus euersus,
extorris et egens uageris atque demum sceleris et amentiae
debitas poenas exsoluas.
OPERA OMNIA TOMO IV 373

SALMO 51
(52 entre os Hebreus)
Porque te glorias na malícia?

O pior de todos os males é ufanar-se do crime. Com efeito, aqueles que


cometem algum ato movidos pela cobiça, ou ódio, ou inveja, ou esperança,
ou medo, logo que se aquieta aquela emoção que os instigava a levar a
cabo esse cometimento, as mais das vezes sentem grande arrependimento
pelo crime perpetrado e, tanto quanto lhes é possível, ocultam esse ato.
Mas os que pensam que devem gloriar-se daquilo que pela sua torpeza
é totalmente detestável e pela sua crueldade absolutamente desumano,
demonstram que já se encontram privados de todo o sentimento de
humanidade. Por conseguinte, havendo o idumeu Doeg denunciado a
Saul o nome de Aquimelec, sumo sacerdote, por este ter recebido como
hóspede David e por ter consultado Deus por causa deste, naquele tempo
em que David fugia de Saul para este o não matar, e tendo em seguida,
por mandado de Saul, morto Aquimelec juntamente com muitos outros
sacerdotes, por toda a parte apregoava aquele tão monstruoso cometimento
como se tivesse praticado uma ação sobremodo insigne: David arremete
contra a sua impiedade e o seu horrível crime. Diz então:
Porque te ufanas do teu crime, ó varão que és poderoso pelas riquezas e
régio favor? Tanto presumes e te arrogas que não te arreceias de nenhuma
reviravolta da sorte e tanto perdeste a confiança na minha estrela que cuidas
que eu devo pôr de parte toda a esperança de salvação e de melhorar
de condição? Como se tivesse completamente perecido a misericórdia de
Deus, que é a única em que me apoio e confio. Mas a misericórdia do
Senhor é firme e eterna, razão pela qual os que colocam na Sua proteção
todos os fundamentos para a salvação e vida nunca podem ser privados
da Sua ajuda. Mas tu com a tu língua teces embustes e com teus baldões,
como navalha bem afiada, retalhas o bom nome dos inocentes e, mediante
calúnias monstruosas e enganos, lhes assestas imerecidos golpes. Preferiste
a desonestidade à bondade; abraçando de bom grado a mentira e a vaidade,
rechaçaste a linguagem da verdade e da justiça. Oh crime mui horroroso,
[278] que merece ser punido com tormentos eternos! Estiveste sempre
aparelhado para com palavras e feitos inferir a destruição; com a tua língua
fraguaste enganos mortais para perdição dos teus concidadãos. Mas Deus
há de extirpar-te de raiz para impedir que jamais em tempo algum brotem
das fibras de um tronco muitíssimo ruim os rebentos da falsidade e da
perversidade; suprimir-te-á por completo; expulsar-te-á do Seu tabernáculo
e desarreigar-te-á da terra dos seres vivos, de maneira a que, despojado de
todos os bens, banido e indigente, vagues errante e pagues enfim as penas
devidas pelo teu crime e vesânia.
374 D. JERÓNIMO OSÓRIO

O admirabilem iudicis sanctissimi seueritatem! Quam


iusto iudicio scelestissimos homines qui nomine astutissimae
improbitatis insolescunt peruertis! Videbunt iusti et Domini
iudicia uerebuntur et perditissimi hominis amentiam
irridebunt atque dicent: Ecce uir insipiens, qui numquam
spem salutis in diuino praesidio collocandam existimauit,
sed in diuitiis tantum suis et in fraudibus et in malitiosa
calliditate omnia praesidia uitae constituit. Quam subito
superbia corruit; confidentia inanis obmutuit; opes euersae
sunt! Dedecora tantum furoris et amentiae permanent, ut
hostem diuini et humani iuris scelerum poenae assidue
persequantur. Hunc quidem exitum habebunt hominis
malitiosi sibique praefidentis opes, iniuriis, ut ipse quidem
rebatur, egregie stabilitae. At ego, qui non opibus malitiose
comparatis, non humana potentia, non principum gratia nixus
umquam fui, sed omnia mea praesidia in Domini tantum
clementia collocaui, statumque meum hac fide et pietate
stabiliui, quamuis omnes hostes undique in me furenter
inuehantur, numquam de statu deiiciar, sed, tamquam olea
uirens, frondibus late diffusis, amoena et fructu perutilis
atque iucunda, in domo Dei cum dignitate uersabor,
omnem siquidem meae salutis atque dignitatis spem in Dei
misericordia fixi et locaui, et cunctas opes meas hac fide
firmaui, a qua numquam deficiam.
Non ero umquam immemor et ingratus; numquam beneficia
Tua ex mente excident et elabentur; gratias Tibi semper agam
et misericordiam Tuam perpetuo celebrabo omnesque spes
meae in nomine Tuo repositae semper erunt. Quod quidem
nomen in oculis sanctorum Tuorum est iucundissimum uitae
subsidium, amplissimum hereditatis patrimonium, totius
laboris alleuamentum, honoris et dignitatis ormanemtum, ita
ut nihil sit sanctis hominibus praeterea requirendum.

Dixit insipiens in corde suo: ‘Non est Deus’.


Psal. 52. Apud Heb. 53

Constans et firmum iudicium uitam omnem gubernat, inde


adeo fit ut, pro iudicii ratione, quamlibet in uita sequitur,
uitam instituat. Qui enim summum bonum in uoluptate point,
uoluptatem omnibus corporis et animi uiribus amplexatur;
OPERA OMNIA TOMO IV 375

Oh admirável severidade do mais santo dos juízes! Com quão justo


juízo aniquilas os perversíssimos homens que se ensoberbecem com
a reputação de muitíssimo astutos na improbidade! Os justos verão e
respeitarão os juízos do Senhor e rir-se-ão do desatino do perversíssimo
homem e hão de dizer: Eis aí o varão ignorante, que cuidou que nunca
deveria depositar na ajuda divina a esperança da salvação, mas fundou
todos os meios de defesa e segurança da vida unicamente nas suas riquezas,
nos embustes e na ambiciosa arteirice. Quão prestes desaba a soberba;
a infundada confiança emudece e as riquezas se desvanecem! Subsistem
apenas as infâmias do desvario e da vesânia, para que os castigos dos
crimes incessantemente persigam o inimigo das leis divinas e humanas.
Certamente terão este fim as riquezas do homem malicioso e presunçoso,
riquezas solidamente firmadas (consoante ele mesmo cuidava) na injustiça.
Mas eu, que nunca me apoiei em riquezas adquiridas de modo indevido,
nem no poderio humano, nem nas boas graças dos grandes senhores,
mas coloquei todo o meu amparo unicamente na compaixão de Deus, e
firmei a minha posição nesta confiança e piedade, ainda que todos os
inimigos com sanha desvairada contra mim arremetam de todos os lados,
nunca serei derribado da minha posição, mas, à semelhança de uma
viçosa oliveira, com as ramagens vastamente se estendendo, aprazível à
vista e de grande proveito pelo seu fruto, hei de tomar com dignidade
assento na morada do Senhor, visto que fixei e depositei na misericórdia
de Deus toda a esperança da minha salvação e dignidade, e assentei as
minhas riquezas nesta fé, da qual nunca me desligarei.
Jamais serei deslembrado e ingrato; jamais os Teus benefícios se
apartarão e escaparão do meu espírito; sempre Te darei graças e
incessantemente celebrarei a Tua misericórdia e todas as minhas esperanças
sempre estarão depositadas no Teu nome. Nome este que decerto nos
olhos dos Teus santos é um mui alegre socorro, um opulentíssimo
património de herança, refrigério para todas as canseiras, ornamento de
honra e dignidade, de tal maneira que além disto os homens santos não
precisam de pedir mais nada.

SALMO 52
(53 entre os Hebreus)
Disse o néscio no seu coração: ‘Não há Deus’.

Uma opinião firme e constante é o que dirige a vida de todos, donde se


segue que, em conformidade com as determinações dessa opinião, cada um
estabelece um teor de vida que é o que segue na sua vida. Com efeito, quem
coloca o bem supremo no prazer, abraça com todas as energias o prazer do
376 D. JERÓNIMO OSÓRIO

qui dignitatem ardenter expetit, uitam dignitatis gratia in


discrimen iniicit; [279] qui nimis sitienter pecuniam appetit,
ad pecuniam amplificationem omnes actions et cogitations
conferendas existimat, et, ne reliqua omnia studia persequamur
(esset enim infinitum), hoc certe constat curas et sollicitudines,
quibus quilibet angitur, in quam potissimum sententiam
quisque discedat indicare. Ex quo sequitur ut, quamuis multi
se Dei metu contineri dicant et pietatem artificiose simulent,
si sceleribus immanibus se contaminauerint, si in omni genere
libidinis et impuritatis et immanitatis, cum proiecta audacia,
uagati fuerint, eos liqueat (ut Paulus ait) factis negare quod
oratione profitentur. Non est enim credibile ut, qui Deum putat
esse omnia prouidentem et animaduertentem, ut omnibus,
pro cuiusque merito, praemium uel poenam constituat, tanta
impudentia diuina iura uiolet et in omni genere flagitiorum
et scelerum uolutetur. Non loquor de communibus erratis,
quibus imbecillitas humana, quae uix in uia adeo lubrica et
periculosa potest uestigium ponere quin prolabatur, subiecta
est. De his criminibus loquimur quae sunt turpitudine nefanda,
immanitate taeterrima et, quod est omnium miserrimum,
contumacia ad extremum nimis obfirmata. Hanc esse Dauidis
sententiam, ut eos, qui hac mente sunt, arbitretur esse totius
religionis expertes, hoc carmen facile declarat. Ait enim:
Haec secum animo reputat insipiens et hanc sententiam
tenet, ut Deum non esse statuat. Hac igitur impiorum
hominum sententia constituta Deique timore sublato,
nullum tantum malum potest animo fingi quod ab eis
non facile suscipiatur. Animos namque suos omni scelere
contaminauerunt; exsecranda facinora furenter ediderunt;
omnes actiones et studia in iniquitate consumpserunt;
non est denique inter illos qui aliquid boni moliatur et
opus uerae uirtutis efficiat. Dominus e caelo despicit, ut
diligenter animaduertat ecquis sit in hominibus qui sapiat,
qui intellegat omnem sapientiae disciplinam Dei cognitione
contineri, omnem tuendae uitae et dignitatis rationem in
Dei benignitate consistere; qui Deum quaerat, ut Illius
ope et praesidio muniatur. Omnes isti a uia deflexerant;
omnes foede contabuerant; non fuit inter illos qui boni
quidquam designaret; ne unis quidem repertus est qui
aliquod bonum opus efficeret.
Num tandem aliquando sapient? inquit Dominus. Num
aliquando tandem intellegent uitae beatae atque florentis
OPERA OMNIA TOMO IV 377

corpo e da alma; o que ardentemente almeja as dignidades, põe a vida em


risco por amor delas; [279] o que avidamente ambiciona o dinheiro, considera
que deve consagrar todos os seus atos e pensamentos ao aumento dos seus
tesoiros, e, para não nos referirmos a todos os demais objetos de desvelo (pois
seria um nunca acabar), é algo de consabido e manifesto que os cuidados
e inquietações, com os quais cada um é atribulado, dão a conhecer qual o
modo de ver que preferentemente uma pessoa perfilha. Daqui se segue que,
embora muitos afirmem que o medo de Deus os refreia e de modo astucioso
se simulem piedosos, se se mancharem com monstruosos crimes, se, com
impudente atrevimento, se entregarem a toda a sorte de paixões desenfreadas,
impurezas e desumanidades, é evidente (como diz S. Paulo) que negam com
as obras o que confessam com as palavras. De facto, não é de crer que, quem
pensa que Deus de tudo se apercebe e a tudo provê, de tal maneira que
para todos estabelece, de acordo com o merecimento de cada um, ou um
prémio ou um castigo, transgrida com tamanha impudência as leis divinas
e se espoje em toda a sorte de infâmias e crimes. Não me refiro a faltas
correntes, às quais a debilidade humana, que num caminho tão perigoso e
resvaladiço dificilmente pode dar uma passada sem escorregar, está sujeita.
Referimo-nos àqueles crimes que têm seus firmes fundamentos na nefanda
torpeza, na crudelíssima desumanidade e, o que é a mais lastimável de todas
as coisas, na obstinação. Este salmo claramente mostra que a opinião de
David é que se encontram desprovidos de qualquer sentimento religioso os
que professam esse parecer. Com efeito, diz:
O ignorante pensa isto no seu íntimo e defende esta opinião,
assentando que Deus não existe. Por conseguinte, uma vez estabelecida
esta opinião dos homens ímpios e suprimido o temor de Deus, não há
ruindade tão grande que a alma imagine que eles logo sem detença
não ponham por obra. Com efeito, mancharam as suas almas com
toda a espécie de crimes; perpetraram atos desvairados; consagraram
à iniquidade todas as suas ações e desvelos; finalmente, não existe
entre eles quem empreenda algo de bom e realize obras de verdadeira
virtude. O Senhor desde o céu observa, a fim de diligentemente verificar
se há alguém entre os homens que saiba, que entenda que todos os
ensinamentos da sabedoria se encerram no conhecimento de Deus e
que todo o método para velar pela vida e pela dignidade assenta na
bondade de Deus; alguém que procure Deus, para se fortalecer com
a Sua ajuda e socorro. Todos esses se desviaram do caminho; todos
de modo vergonhoso definharam; não houve entre eles quem ideasse
nada de bom; não se encontrou sequer um só que levasse a cabo
alguma coisa boa.
Porventura hão de acabar algum dia por saber?, pergunta o Senhor.
Acaso aqueles que praticam a tirania, aqueles que com insaciável cobiça
378 D. JERÓNIMO OSÓRIO

officium ii qui tyrannidem exercent, qui populum meum


perinde atque si cibus esset indomita cupiditate deuorant,
iustitiae muneribus, et non iniuriis, contineri? Non uident, non
sentiunt, nullo modo mente percipient sine Dei praesentis ope
nullum fore in rebus humanis firmum uitae subsidium. Itaque
Deum non inuocant ne cut gratiam Illius acquirant elaborant.
Itaque, cum sibi opes facillissimas comparauerint uitamque
uanitatis et inanitatis auxilio stabiliendam susceperint,
agitantur et fluctuant et nulla in certa sede consistent. Cum
autem primum aliqua inanis species rei metuendae eorum
oculis obuersatur, animis trepidant et ingenti pauore [280]
concutiuntur. Quamuis enim iudicia contempserint, tamen,
post conflatum scelus, illorum formidine perterriti, saepe
de omni statu detorquentur et ante supplicium, quod illis
est subeundum, quod sibi sit euenturum animis anticipato
dolore praesagiunt.
Tu uero qui iustitiam omnibus uitae emolumentis anteponis
et Dei solius praesidio niteris, nullo modo hominum perditorum
furorem et insaniam pertimescas, quamuis te obsessum teneant
et omnibus machinis oppugnent. Deus enim eorum uires
perfringet omnesque illorum opes dissipabit. Recte igitur
eos uituperas eorumque mores et officia detestaris, quos
Deus contemnit et despicit omnibusque modis insectatur.
Perfectae enim pietatis officium est illos parui pendere quos
Deus auersatur et illos magnificere quos Deus gratia et fauore
complectitur.
O diem illum laetissimum atque iucundissimum, quem
uidere et cuius luce frui ardentissime cupio, cum Deus ipse
ueniet et Israeli salutem afferet, populumque Suum, non
Aegyptiorum, non Assyriorum, non Chaldaeorum dominatu
oppressum, sed tyrannide infestissimi daemonis afflictum et
flagitiorum intolerando pondere depressum, in sempiternam
libertatem uindicabit! O beatos oculos, qui Dei Filium mira
et stupenda facinora in suorum salute constituenda feliciter
edentem intuebuntur! O beatas aures, quae uerba illius diuina
percipient cuius uirtute inimicorum praesidia concident, ut
boni, e dominis superbissimis liberati, muneribus amplissimis
egregie cumulentur! Tum demum Iacob gaudium summum ex
tanto bono percipiet et illius posteritas, magis fidei exemplo et
imitatione quam seminis et generis ratione ab illo propagata,
miris modis exsultabit. Tunc enim multo calrius apparebit
quibus in rebus sit uitae beatae ratio collocanda.
OPERA OMNIA TOMO IV 379

devoram o meu povo como se fosse comida, acabarão algum dia por
entender que o dever da vida bem-aventurada e próspera se cifra nas
obrigações da justiça, e não nas injustiças? Não vêem, não sentem, de
modo algum compreendem que sem a ajuda efetiva de Deus nos negócios
humanos não haverá qualquer sólida ajuda para a vida. E por isso não
invocam Deus nem se esforçam por alcançar a Sua graça. E por isso, uma
vez que obtiveram riquezas com a máxima facilidade e empreenderam
consolidar a existência com o auxílio da vaidade e da futilidade, agitam-
se e flutuam e não permanecem em nenhum lugar certo. Ora, logo
que se lhes coloca diante dos seus olhos alguma vã aparência de coisa
assustadora, tremem de medo e estremecem tomados de pavor imenso.
[280] É que, embora tenham desprezado os juízos, todavia, depois de
perpetrado o crime, atemorizados com a perspectiva de serem julgados,
frequentemente perdem todo o equilíbrio emocional e, antes do castigo
em que devem incorrer, pressagiam no espírito com dor antecipada aquilo
por que hão de passar.
Mas tu, que antepões a justiça a todos os proveitos da vida e te
apoias exclusivamente na ajuda de Deus, de modo algum te arreceies
da sandice e desvario dos homens perversos, ainda que te mantenham
assediado e te ataquem com toda a sorte de maquinações. É que Deus
quebrantará as suas forças e dissipar-lhes-á todas as riquezas. Por
conseguinte, com razão os vituperas e abominas os costumes e ações
daqueles aos quais Deus despreza e por todas as vias persegue. Na
verdade, é dever da perfeita piedade fazer pouco caso daqueles que
Deus hostiliza e ter em grande estima aqueles que Deus abraça com
a Sua graça e favor.
Oh aquele dia mui ledo e jucundíssimo, que vivamente almejo ver e
de cuja luz anseio gozar, em que Deus virá e trará a salvação a Israel, e
concederá a eterna liberdade ao Seu povo, oprimido não pelo jugo dos
egípcios, nem dos assírios, nem dos caldeus, mas atribulado pela tirania
do grão inimigo demónio e esmagado pelo intolerável peso das infâmias!
Oh olhos bem-aventurados que hão de contemplar o Filho de Deus,
com felicidade levando a cabo façanhas admiráveis e espantosas, para
estabelecer a salvação dos seus! Oh bem-aventurados ouvidos, que hão
de acolher as palavras divinas daquele graças a cuja fortaleza e virtude
hão de cair os redutos dos adversários, por forma a que os bons, livres
de senhores muitíssimo soberbos, sejam singularmente cumulados com
os mais opulentos galardões! Só então Jacó sentira com tão grande bem a
alegria suprema e há de exultar de modo extraordinário a sua descendência,
que é dele prole mais pelo exemplo e imitação da fé do que em virtude
do sangue e raça. É que então ver-se-á muito mais claramente quais as
coisas em que deve colocar-se a essência da vida bem-aventurada.
380 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Deus, in nomine Tuo saluum me fac.


Psal. 53. Apud Heb. 54

Omnia sunt illis a quibus regis animus est alienus infesta.


Typhaei fuerant Dauidis opera atque uirtute ab hostibus
liberati, et tamen, cum Dauid, Saulem fugiens, apud eos
latitaret, ut regi gratificarentur, illum cuius beneficio uita
atque libertate fruebantur, Sauli prodiderunt, nuntiantes apud
se in occulto latere. Fuit igitur coactus inde demigrare et
festinanter aufugere antequam, proditorum opera, in Saulis
manus perueniret. Nihil igitur erat illi tutum; nihil insidiis
uacuum; nihil cura et sollicitudine liberum. Restabat illud
unicum miseriarum omnium perfugium, quo firmatus omnes
insidias contemnebat. Cum igitur ope diuina scelestissimorum
hominum fraudes effugisset, in hanc sententiam Deo supplices
preces adhibuit:
Domine, non uirtute mea fretus, sed gratia Tua nexus, a
Te peto ut, propter nominis Tui gloriam, meam salutem ab
hostium immanitate tuearis, et potentia Tua causam meam
ab illorum, qui rerum potiuntur, [281] calumnia defendas.
Tu enim innocentiae meae testis es, et tamen, propter hostis
potentiam, ius meum oppressum est et hostis calumnia uictrix
exsultat, eo quod nomini meo falsum crimen proditionis
affinxerit. Audi, Domine, preces meas et orationem oris mei
attentissima auditione considera. Homines ab omni studio
pietatis et humanitatis alieni in me furenter insurgunt et, cum
multum potentia et opibus excellant, sanguinem et uitam
meam petunt; et a tanto scelere nullo modo Tui sanctissimi
numinis metu deterrentur. Nec enim cogitant a Te omnium
facta perspici et officiorum momenta perpendi, ut innocentiam
protegas et scelus debita ultione persequaris.
O immanem audaciam eorum qui a tanto facinore nulla
diuini iudicii formidine reuocantur! Verum frustra in tanto
scelere laborabunt, ecce enim deus est adiutor meus et
animam meam patrocinio et ope Sua tuendam suscepit.
Itaque malum, quod in me impie et nefarie machinantur,
Tuo iudicio, Domine, in hostes meos recidet et, ut fidei Tuae
satisfacias, qua Te mihi uindicem salutis et iniuriarum ultorem
fore promisisti, eos qui contra legem Tuam mihi pestem
comparant prorsus exscinde. Cum uero Tuae gratiae atque
benignitatis amplitudine, spiritum libertatis et adoptionis
OPERA OMNIA TOMO IV 381

SALMO 53
(54 entre os Hebreus)
Salva-me, ó Deus, em Teu nome.

Tudo é hostil para aqueles que não gozam das boas graças do rei. Os
Tifeus tinham sido libertados dos inimigos por obra e virtude de David, e
mesmo assim, quando David, ao fugir de Saul, se refugiou entre eles, para se
tornarem agradáveis ao rei, atraiçoaram aquele por benefício do qual gozavam
de vida e liberdade, revelando a Saul que ele se encontrava escondido entre
eles. Por consequência, viu-se obrigado a fugir dali e a dar-se pressa para
evitar cair, por obra dos denunciantes, nas mãos de Saul. Portanto, para ele
nada era seguro; em nenhuma parte estava livre de emboscadas; nada ou
ninguém o libertava de cuidados e inquietações. Restava-lhe aquele que é o
único refúgio de todas as desgraças, animado com o qual votava a desprezo
todos os ardis e armadilhas. Por consequência, tendo conseguido escapar,
graças à ajuda divina, dos enganos dos perversíssimos homens, dirigiu a
Deus humildes rogativas no teor seguinte:
Senhor, poiado não na minha virtude, mas amparado na Tua graça,
eu Te peço que, por amor da glória do Teu nome, protejas a minha
segurança da crueldade dos meus adversários, e que com a Tua potência
defendas a minha causa da calúnia daqueles que dominam. [281] É que
Tu és testemunha da minha inocência, e mesmo assim, devido ao poder
do inimigo, os meus direitos são acalcanhados e o adversário exulta
vencedor, graças à calúnia, ao assacar-me falsamente o crime de traição.
Escuta, Senhor, os meus rogos e com ouvido muito atento atende às
palavras da minha boca. Homens alheios de todo o zelo da piedade e
da humanidade levantam-se desvairadamente contra mim e, como se
avantajam sobremodo em poder e riquezas, reclamam o meu sangue e
a minha vida; e o medo à Tua santíssima divindade de modo algum os
desvia de um tão grande crime. É que nem pensam que Tu vês tudo que
se faz e ponderas e avalias o cumprimento dos deveres, por forma a
protegeres a inocência e punires o crime com o merecido castigo.
Oh audácia monstruosa a daqueles que nenhum temor do juízo divino
desvia de tão grandes atentados! Mas é debalde que se empenharão
em tão grande crime, pois eis que Deus vem em minha ajuda e toma
à Sua conta velar pela minha alma com Sua proteção e auxílio. E por
isso o mal, que ímpia e sacrilegamente contra mim maquinam, graças
ao Teu juízo, Senhor, recairá sobre os meus adversários e, a fim de
cumprires a Tua palavra, com a qual me prometeste que haverias de
ser o protetor da minha salvação e o vingador das injustiças que sofri,
aniquila completamente aqueles que, contrariando a Tua lei, preparam a
minha perdição. E, uma vez que alcancei, mediante a Tua imensa graça
382 D. JERÓNIMO OSÓRIO

consecutus sim, non ancipiti metu districtus, sed amore Tuae


maiestatis inflammatus sacrificia uoluntaria perpetuae laudis
offeram nomini Tuo, cuius uirtute salutem et dignitatem et
incolumitatem retineo. Per illud ex omnibus aerumnis et
angoribus ereptus sum; illius ui hostes meos depressos et
stratos adspexi.

Exaudi, Deus, orationem meam.


Psal. 54. Apud Heb. 55

Quae materia fuerit huius querimoniae, quae hoc carmine


continetur, incertum est. Hoc plane constat insignem
sollicitudinis et angoris acerbitatem fuisse. Erat enim Dauid ab
amicis nefarie proditus ab illis quos non mediocribus beneficiis
affecerat oppugnatus, ad caedem postremo quaesitus, omnibus
denique malis circumuentus, siue hoc tempore Saulis, siue
Absalonis acciderit. Quam anxius autem et quam sollicitus
fuerit ipse declarat, inquiens:
Auribus percipe, Domine, orationem meam et ne repudies
postulatum meum. Attente ius meum considera et preces
meas exaudi, quas uides a me tam acri contentione fundi.
Consideratione calamitatis abiicior atque lamentor et non
mediocri animi motu conturbor. Inimicus minas iacit atque
terrores denuntiat; homo impius et in scelere obstinatus exitium
comparat: qui ad illum sunt adiuncti, per summi sceleris
iniuriam et iniquitatem, dirissimum bellum moliuntur ut me
totis uiribus oppugnent. Cor meum intra me nimio pauore
concutitur et mortis formidines in meam perniciem nimis acriter
atque uehementer incumbunt. In me timor et tremor inuadunt
et formidines ingentes me circumuallant, ita ut acerbissimis
curis [282] confectus occumbam. Non iam de resistendo laboro,
non ut manu mea tantum scelus ulciscar animo meditor, sed,
ut fuga me a tantis malis proripiam, alas, non accipitris ad
perniciem inferendam, sed columbae ad periculum declinandum
mihi dari percupio. Sic enim perpeti uolatu hinc semigrarem
et in longinquas terras aufugerem et in uasta tandem atque
deserta solitudine consisterem, ne tantam uim malorum oculis
usurparem. O rem perditam maximaque maeroris acerbitate
deplorandam! Celeritatem certe, quantum fieri poterit, incitabo
ut malorum omnium tempestatem atque procella et turbines
OPERA OMNIA TOMO IV 383

e bondade, o espírito de liberdade e adoção, oferecerei, não embargado


por dúplice temor, mas abrasado no amor da Tua majestade, sacrifícios
voluntários de perpétuo louvor ao Teu nome, por cuja virtude possuo
a salvação, a dignidade e a inteireza. Mediante ele fui arrancado de
todas as provações e angústias, e graças à Sua força vi os meus inimigos
prostrados no chão e humilhados.

SALMO 54
(55 entre os Hebreus)
Ouve, ó Deus, a minha oração.

Não se sabe ao certo qual foi o motivo do lamento que se contém


neste salmo. O que não suscita dúvidas é que existiu uma angústia e
uma inquietação excepcionalmente violentas. Com efeito, David tinha
sido sacrilegamente atraiçoado pelos amigos, hostilizado, perseguido
com propósitos homicidas e, finalmente, assediado por toda a espécie de
males por aqueles a quem fizera não pequenos benefícios, quer isto tenha
sucedido no tempo de Saul, quer no de Absalão. Ora, quão grande era a
sua angústia e tribulação ele mesmo o dá a conhecer, quando diz:
Presta ouvidos, Senhor, à minha oração e não rejeites a minha
súplica. Considera atentamente a minha justiça e ouve as minhas
preces, que vês que eu faço com tão vivo acento. A contemplação do
meu desastre prostrou-me e queixo-me e sou abalado por uma enorme
emoção. O inimigo lança ameaças e procura aterrorizar-me; o homem
ímpio e obstinado no crime aparelha a minha perda: os que o rodeiam,
através da injustiça e da iniquidade do maior dos crimes, maquinam
uma crudelíssima guerra para se oporem a mim com todas as forças.
O meu coração com o grande susto agita-se violentamente dentro do
meu peito e o terror empenha-se com sobejo ímpeto e vigor na minha
perdição. O temor e o tremor tomam conta de mim e assoberba-me um
imenso terror, de tal forma que sucumbo acabrunhado por angústias
pungentíssimas. [282] Já não me esforço por resistir, já não me preocupo
em vingar com as minhas mãos um crime tão grande, mas, para escapar
a tamanhos males, desejo ardentemente que me sejam dadas asas,
não de ave de rapina para inferir a destruição, mas de pomba para
me furtar ao perigo. É que deste modo ir-me-ia daqui embora voando
ininterruptamente e escapar-me-ia para longínquas terras e, ao cabo,
instalar-me-ia num ermo despovoado e deserto, onde os meus olhos
não presenciassem tamanha força de males. Oh situação desesperada
e que merece ser lastimada com o mais lancinante pesar! Dar-me-ei
toda a pressa que estiver em meu poder para fugir à tempestade e
384 D. JERÓNIMO OSÓRIO

immanes effugiam. Magnum quidem malum in populorum


discordia constitutum est. Ea namque rem publicam dissipat
et nationes uniuersas partium contentione dilacerat, sed multo
grauius malum est in scelerum consensione positum. Itaque,
cum ciuitates, propter scelerum magnitudinem, discordia plectis,
debitum supplicium hominibus profligatis atque perditis irrogas;
interim non mediocres partes clementiae suscipis, cum grauioris
sceleris materiam detrahis. Te igitur, Domine, quantum possum,
oro ut improbitatem conficias ut hominum (quemadmodum in
Babelis euersione fecisti) linguas diuidas, ne facinus scelerata
consensione ad summum perueniat. Vidi namque in ciuitate ius
oppressum, uim erectam, tyrannidem constitutam et homines
litibus nullum exitum habentibus implicatos. Haec quidem mala
dies atque noctes urbem circumsident et per muros impune
gradiuntur et in illius medio iniquitas et iniuriae conflandae
sollicitudo dominatur. Improbitas curiam et forum occupauit
et a platea in quam homines negotii gerendi causa conueniunt
nec usura neque dolus abscedit.
Quid autem de scelere quo sum oppressus edisseram? Si
enim inimicus apertus mihi tam grauem iniuriam intulisset,
aequiore animo pertulissem; si qui mihi inimicitiam indixisset
in meam perniciem uim comparauisset, illius conatum
tempore repressissem. Sed insidias hominis latenter inimici,
qui amicitiam simulat, nemo facile praecauebit. At tu, homo,
consiliorum meorum socius, ad cuius me ductum libenter
applicabam, cuius consuetudine et familiaritate fruebar,
cum quo arcana mea cum iucunditate conferebam, cum quo
in domo Dei coniunctissime uixi, in me, quod minime erat
sperandum, taeterrimus exstitisti. Quod igitur tantum scelus
esse potuit ut sit aliqua ex parte cum hac tam insigni perfidia
conferendum? Fidem enim et officium prodidisti; amicitiae
sanctitatem impie polluisti; dolos et insidias ad innocentis
euersionem summo studio comparauisti; multaque simul
scelera uno facto designasti, nec ab illo te metus Dei ullo modo
reuocauit. Non erit (ut fortasse suspicaris) tantum atque tam
atrox facinus impunitum. Apparebit enim uindicta et debita
supplicia tibi et sociis tuis cum seueritate constituet.
Repentina mors, o Domine, ab illis meritas poenas exigat
et, quemadmodum illi, qui in sanctos Tuos impudenter et
contumaciter inuecti sunt, horrendo terrae desidentis hiatu
consumpti repente [283] sunt, ita isti qui in eodem scelere
uersantur a terra subito deuorentur et uiui in inferam
OPERA OMNIA TOMO IV 385

à procela e às medonhas tormentas. Certamente que a discórdia das


populações constitui um grande mal, pois destrói o Estado e dilacera
a totalidade do povo com o conflito entre as fações, mas é muito mais
grave o mal que resulta da unanimidade nas ações criminosas. E assim,
quando, por causa da grandeza dos crimes, castigas as cidades com a
discórdia, estás a infligir o merecido suplício aos homens perversos e
depravados; ao mesmo tempo, mostras-te não pouco misericordioso,
ao fazeres desaparecer a matéria para uma ação criminosa mais grave.
Por isso, Senhor, rogo-te o mais possível que extermines a maldade
dividindo as línguas dos homens (tal como fizeste na destruição de
Babel), para evitar que a ação criminosa se consume graças ao comum
assentimento. Com efeito, vi na cidade o direito oprimido, a força
triunfante, a tirania instalada e os homens envolvidos em contendas
que não tinham fim. Estes males cercam a cidade dia e noite e avançam
impunemente pelos seus muros e no meio dela imperam a iniquidade
e a preocupação de maquinar a injustiça. A maldade ocupou a corte
e a assembleia e a usura e o embuste não estão ausentes das praças
onde os homens se reúnem para tratarem dos negócios.
Ora, que hei de dizer acerca do crime de que sou vítima? É que se
fosse um inimigo declarado a infligir-me uma tão grande injustiça, tê-lo-ia
suportado com maior resignação; se quem se declarou meu inimigo tivesse
utilizado a violência para me perder, com o tempo teria detido o seu ataque.
Mas não será fácil alguém precaver as tramas de um homem secretamente
inimigo, que se finge de amigo. Tu, porém, ó homem meu confidente, a cuja
direção de livre vontade me entregava, de cuja intimidade e familiaridade
gozava, com quem de bom grado comunicava os meus segredos, com quem
vivi intimamente ligado na casa de Deus: procedeste em relação a mim de
uma forma muitíssimo hedionda e completamente inesperada. Portanto, que
crime tão grande se pôde cometer que de alguma maneira seja comparável
com esta extraordinária deslealdade? É que traíste a confiança e o dever;
manchaste de forma ímpia a santidade da amizade; com o máximo desvelo
tramaste ciladas e enganos para arruinares um inocente; e do mesmo passo
num único golpe projetaste inúmeros atentados criminosos, sem o temor
de Deus ter qualquer poder para te desviar destes atos. Um tamanho e tão
atroz atentado não ficará impune, como se calhar imaginas. Na verdade,
a vingança há de surgir e a ti e aos teus associados há de aparelhar-vos
com rigor os merecidos suplícios.
Senhor, que paguem com uma morte repentina as devidas penas e que,
da mesma maneira que aqueles que atacaram impudente e obstinadamente
os Teus santos foram de repente devorados por um horrendo abismo criado
pela terra que se abateu, [283] do mesmo modo esses que cometem o
mesmo crime sejam de súbito engolidos pela terra e precipitados vivos
386 D. JERÓNIMO OSÓRIO

regionem detrudantur. Non enim sanabilis est eorum morbus.


Nam eorum sedes et domicilia sunt omni genere scelerum
contaminata et infecta, animosque gerunt pestilente tabe
corruptos et lutulentissimis flagitiis inquinatos, et illi quidem,
qui in scelere perseuerant, leti pessimo genere peribunt.
At ego, quem illi malis omnibus opprimere conati sunt,
solus et inops et proditus et in omnes simul calamitates
impulsus, eripiar, fidem enim non deseram et ad Dominum
clamabo, qui mihi salutem conferet. Nec enim Illum orare
et obsecrare cum magna animi contentione desistam. Cum
Sol in occasum praecipitauerit et cum mane rursus exortus
fuerit et cum meridie clarior lux illius exstiterit: omni denique
tempore siue spes attenuari uideatur, siue signis laetioribus
erigatur, idem semper ero. Nam de Illius benignitate perpetuo
cogitabo et spiritum meum languentem excitabo et uim mihi
ipse acriter inferam ut oratio qua opem Illius imploraturus
sum sit ardens et incitata, et ita fore confido ut Ipse uocem
meam exaudiat. Animam meam multis gratiae Illius opibus
locupletatam extra belli periculum collocabit, quamuis sint
nimis multi ii qui contra me bellum perpetuo gerunt. Audiet,
inquam, et aduersarios meos de omni statu deiiciet Dominus,
cuius solium est sempiternum.
O summam et in omni saeculorum aeternitate praedicandam,
sanctissimi Iudicis aequitatem, cum illos euerterit et afflixerit
omnibusque poenis insectatus fuerit. Nemo iure poterit
de nimia seueritate sanctissimi numinis conqueri, cum
intellexerit quam duri et pertinaces in scelere suscepto
perstiterint. Immutari enim et conuerti nullo pacto uoluerunt
nec ullo Dei metu a facinore destiterunt. Sceleris princeps
et auctor manum in necessarios suos, quibus erat adstrictus,
scelestissime comparauit et amicitiae sanctissimum foedus
audacissime perfregit. Qui autem illi nomina dederunt,
orationem suam butyro molliorem fraudulenter efficiunt,
cum interim animo bellum nefarium meditentur. Verba
quidem blandiora sunt oleo, facta uero sunt ancipites
gladiis quibus homines, nihil hostile suspicantes, uno ictu
conficiant. Magna quidem sunt pericula bonis ab hominibus
sceleratis intenta. Verum qui iustitiam et pietatem coluerint
et in Domino spem collocatam semper habuerint, omnia
pericula propulsabunt.
Te igitur, quicumque pietatis studio teneris, admoneo
ut neminem eorum qui tibi perniciem inferre conantur
OPERA OMNIA TOMO IV 387

nas profundezas. É que a doença deles é incurável. De facto, as suas


moradas e lares estão infestadas e contaminadas com toda a espécie de
atos criminosos, os espíritos que os animam foram corrompidos por uma
enfermidade pestilenta e contraíram uma moléstia vil, e eles mesmos,
que continuam a perseverar no crime, hão de perecer com o mais terrível
género de morte. Eu, porém, a quem eles se esforçaram por oprimir com
toda a sorte de males, sozinho e desamparado e atraiçoado e ao mesmo
tempo atirado para todas as adversidades, eu hei de salvar-me, porquanto
não me desligarei da fé e chamarei pelo Senhor, que me oferecerá a
salvação. E tão-pouco deixarei de orar e de Lhe rogar com grande fervor
de espírito. Quando o Sol desaparecer no ocaso, quando pela manhã
voltar a nascer, quando ao meio-dia a sua luz se mostrar mais brilhante:
numa palavra, em todas as ocasiões, quer a esperança pareça diminuir,
quer se avigore com sinais mais favoráveis, eu serei sempre o mesmo.
Com efeito, pensarei incessantemente na Sua bondade e incitarei o meu
espírito abatido e vivamente me obrigarei a que seja ardente e apaixonada
a oração com que hei de implorar o Seu auxílio e, deste modo, tenho
confiança em que Ele há de escutar a minha voz. Há de colocar a minha
alma, transbordante das riquezas da Sua graça, fora dos perigos da guerra,
por muitos que sejam aqueles que fazem incessantemente guerra contra
mim. Repito: escutará e derribará os meus adversários de todas as suas
posições, Ele que é o Senhor cujo sólio é sempiterno.
Oh suprema e eternamente louvável equidade do santíssimo Juiz,
quando os destruir e os atribular e os castigar com toda a espécie
de penas! Ninguém poderá com justiça queixar-se do excessivo rigor
da santíssima divindade quando se der conta da dureza de alma e
obstinação com que persistiram nos crimes de que se tornavam culpados.
De facto, não quiseram de forma alguma mudar nem converter-se, tão-
pouco nenhum temor de Deus os fez desistirem das ações criminosas.
O iniciador e autor do crime levantou sacrilegamente a mão contra os
que lhe eram chegados, a quem estava ligado, e quebrou impudentemente
o santíssimo pacto da amizade. Por outro lado, os que se alistaram sob
as suas bandeiras, de modo falso pronunciam discursos mais macios do
que manteiga, ao mesmo tempo que no seu íntimo urdem uma guerra
sacrílega. As palavras é certo que são mais suaves do que o azeite, mas
os atos são espadas de dois gumes com as quais, de um só golpe, matam
os homens que não suspeitavam de nenhuma hostilidade. São grandes as
ciladas que os homens perversos preparam contra os bons. Mas os que
cultivarem a justiça e a piedade e tiverem a esperança sempre colocada
no Senhor, hão de rechaçar todos os perigos.
Por isso, a ti, sejas quem fores que estás possuído pelo zelo da piedade,
aconselho-te a que não sintas receio de nenhum dos que se esforçam por
388 D. JERÓNIMO OSÓRIO

extimescas. Committe Deo omnes curas et cogitationes tuas


et Ipse te enutriet neque umquam permittet ut iustus opera
perditorum hominum de statu conuellatur.
Tu, Domine, impios et sceleratos in puteum exitii sempiterni
detrudes et uiri homicidae et fraudulenti ne dimidiato
quidem dierum suorum numero perfruentur. Tempore enim
quo sibi longiorem uitam polliciti fuerint et, inanissimis
cogitationibus inflati, multa secum animo designauerint et
opera et longinquum tempus, uanissima cogitatione mentis,
exstruxerint: [284] excisi, funditus interibunt et, e terris
radicitus euulsi, ad aeterna supplicia trudentur. Ego uero,
summe Domine, spem in omni rerum uarietate in Te singulari
uitae meae praesidio firmissimam collocabo.

Miserere mei, Deus, quoniam conculcauit me homo.


Psal. 55. Apud Heb. 56

Dauid, suorum manus et insidias fugiens, in hostium manus


incidit; homines alienos, quos multis plagis contuderat atque
debilitarat, in se clementiores expertus est quam suos, quibus
salutem contulerat. Cum tamen in Palaestinorum potestate
esset, in hanc sententiam more suo Dei misericordiam
suppliciter implorauit:
Cernis, Domine, quanto odio et immanitate me uexet et
insectetur et afflictet homo ille quem toties ab imminenti clade,
ope Tua, liberaui? Totos dies bellum comparat aduersum me nec
aliquid de tanta crudelitate remittit. Tu igitur, qui solus es mihi
salurare uitae praesidium, misericordia Tua me tuendum suscipe.
Hostes enim mei, ut me perdant et affligant, summis uiribus
enituntur et perpetuo contra me bellum dirum et exitiosum, o Rex
excelse, moliuntur. Sed, quo plura mihi ad formidinem proposita
fuerint, eo firmius bonitati Tuæ confidam. Verbo Domini, quo
mihi spem salutis ostendit, gloriabor; in Illo, cuius neque
potentia frangi neque fides labefieri potest, spem collocatam
habeo, et idcirco nihil, quod caro in meum exitium machinetur,
extimescam. Perpetuo uerba mea calumniantur; et, quod pura
mente loquor, in pessimam partem rapiunt omnesque eorum
cogitationes et studia in meam perniciem conferuntur. Insidias
intendunt; se fraudulenter occultant; gressus meos obseruant,
OPERA OMNIA TOMO IV 389

destruir-te. Põe nas mãos de Deus todos os teus cuidados e pensamentos


e Ele te alimentará e jamais permitirá que o justo seja despojado da sua
condição por obra de homens perversos.
Tu, Senhor, lançarás os ímpios e sacrílegos no poço da perdição eterna
e os homens homicidas e embusteiros não gozarão sequer de metade dos
seus dias. É que, no momento em que esperarem uma vida mais longa
e, ensoberbecidos com pensamentos totalmente falsos, gizarem muitas
coisas e, sem qualquer fundamento, conjecturarem obras e um tempo
longínquo: [284] nesse momento, depois de destruídos, hão de perecer
por completo e, arrancados de raiz da terra, serão empurrados para os
suplícios eternos. Mas eu, supremo Senhor, nas mais variadas situações
hei de pôr em Ti a mais firme esperança, em Ti que és extraordinário
sustentáculo da minha vida.

SALMO 55
(56 entre os Hebreus)
Tem misericórdia de mim, ó Deus,
porque o homemme pisou com os pés.

David, fugindo das mãos e ciladas dos seus, cai nas mãos dos inimigos;
teve a experiência de que homens estrangeiros, aos quais agredira e
enfraquecera com muitos golpes, com ele se mostraram mais compassivos
do que os seus concidadãos, aos quais oferecera a prosperidade. Todavia,
encontrando-se em poder dos palestinos, ao seu modo pediu humildemente
a Deus misericórdia deste modo:
Enxergas, Senhor, com quão grande sanha e desumanidade me avexa
e maltrata e ultraja aquele homem a quem, com a Tua ajuda, tantas vezes
libertei da desgraça que o ameaçava? Todos os dias aparelha guerra contra
mim e não faz pausa alguma em tanta crueldade. Tu, por conseguinte, que
és o único salutar socorro da minha vida, toma a Teu cargo defender-me.
É que os meus inimigos empenham-se com imensas forças em perder-me e
atribular-me e incessantemente movem contra mim uma guerra terrível e fatal,
ó Rei excelso. Mas, quanto mais ameaças me fizerem para atemorizar-me,
tanto mais firmemente confiarei na Tua bondade. Gloriar-me-ei na palavra do
Senhor, na qual me mostra esperança de salvação; tenho depositada a minha
esperança n'Aquele cuja potência não pode quebrantar-se e cuja fidelidade
não pode sofrer abalos, e por isso nada temerei que a carne maquina para
a minha perdição. As minhas palavras são sem cessar caluniadas; aquilo
que digo com espírito puro interpretam-no da pior maneira, e todos os
pensamentos e desvelos deles estão consagrados à minha ruína. Preparam
armadilhas contra mim; escondem-se à falsa fé; espiam as minhas passadas,
390 D. JERÓNIMO OSÓRIO

ut, quacumque ratione possint, uitam mihi (ut concupierunt)


eripiant. Malitia et iniquitate confidunt et a fraude et iniuria sibi
salutem requirendam statuunt. At Tu, Domine, cum sis improbis
semper infensus, populos uniuersos, qui peruersa mente sunt,
ira Tua de statu detorques atque funditus euertis.
Tu igitur crebras expulsiones, quibus saepe uagari compellor,
numeratas habes; lacrimas meas sine fructu profundi minime
permittis; omnia, quae contra ius et fas ab inimicis meis
perpetior, in libro Tuo, ad sempiternam memoriam, consignata
sunt. Inimici mei, cladibus afflicti, se in fugam dabunt,
cum inuocauero Te. Certus enim sum fore ut Deus meus
patrocinium meae uitae suscipiat. Non meis uiribus innitar;
non ullis meis meritis insolescam; non ingenio aut artibus
ullis extollar, sed uerbo tantum Domini et fide, quam in Dei
benignitate firme locatam semper habeo, gloriabor. Haec me
fides fulcit; haec mihi metum demit; haec me curis omnibus
leuat; haec denique hostium uictorem efficiet. Cum enim
firmissimo Dei praesidio nitar, quid homines contra uitam
et statum meum moliantur [285] non laboro. Omnes enim
conatus hominum contra Diuinum praesidium comparati erunt
inanes et irriti. A Te solum auxilium postulaui; Tibi soli, Deo
meo, uota nuncupaui, quae cum celebri gratiarum actione
persoluam. Tu enim animam meam ab interitu redemisti; Tu
pedes meos, ne periculose laberentur, perfulcisti, ut possim
in maiestatis Tuae conspectu laetus incedere et splendore
lucis, qua sancti homines, qui soli uera uita fruuntur illustrati
sunt, illuminari.

Miserere mei, Deus, miserere mei.


Psal. 56. Apud Heb. 57

Perstat in eadem querimonia Dauid, cum nihil apud Saulem


nec innocentia, neque meritis, neque fide proficeret. Tantus
enim furor, ex inuidia natus, regem miserum exagitabat
ut, quamuis cerneret se non semel occidi potuisse ab eo,
cui caedem inferebat, nihilominus in scelesto facinore
perseueraret. Dauid igitur, quemadmodum Saul nihil ex
instituto scelere remittebat, ita ab orationis studio minime
discedebat et contra humanum furorem diuinum praesidium
comparabat. Sic igitur Deum affatur:
OPERA OMNIA TOMO IV 391

a fim de, pelo modo que lhes for possível, me suprimirem a vida, como
vivamente desejaram. Confiam na malícia e na perversidade e têm para si
que devem buscar a sua prosperidade no engano e na injustiça. Mas Tu,
Senhor, uma vez que sempre Te mostras inimigo dos ímprobos, com a Tua ira
derrubas e destróis por completo todos os povos que têm ruins intentos.
Por conseguinte, Tu tens contadas as frequentes expulsões que amiúde
me obrigam a andar errante; não permites que as minhas lágrimas sejam
derramadas sem fruto; no Teu livro se consigna, para memória perpétua,
tudo o que, contra a justiça e o direito, eu suporto da parte dos meus
adversários. Os meus inimigos, atribulados pelas derrotas, hão de entregar-
se à fuga, quando eu Te invocar. É que estou certo de que o meu Deus há
de tomar à Sua conta a defesa da minha vida. Não me apoiarei nas minhas
forças; não hei de ensoberbecer-me com quaisquer merecimentos meus;
não me ufanarei da inteligência ou de quaisquer talentos, mas gloriar-
me-ei apenas da palavra e fé do Senhor, que sempre tenho firmemente
depositada na bondade de Deus. Esta fé me ampara; ela me arranca o
medo; ela me alivia de todos os cuidados; ela, finalmente, me tornará
vencedor dos adversários. É que, uma vez que me apoio na firmíssima
proteção de Deus, não me preocupo com o que os homens empreendem
contra a minha vida e posição. [285] É que serão vãos e baldados todos
os intentos dos homens realizados contra a proteção divina. Só a Ti pedi
auxílio; só a Ti, meu Deus, fiz promessas solenes, que cumprirei com
repetidas ações de graças. É que Tu salvaste da morte a minha alma; Tu
seguraste os meus pés para que não tropeçassem com perigo, por forma
a que eu possa alegremente avançar até à presença da Tua majestade e
ser iluminado pelo esplendor da luz, com a qual resplandecem os santos
homens, que são os únicos que gozam da verdadeira vida.

SALMO 56
(57 entre os Hebreus)
Tem piedade de mim, ó Deus, tem piedade de mim.

David persiste no mesmo queixume, uma vez que com Saul de nada
lhe serviram nem a inocência, nem os merecimentos nem a lealdade.
Na verdade, tão grande sanha, nascida da inveja, atormentava o mofino
rei que, embora se desse conta de que tinha podido ser morto mais de
uma vez por aquele a quem procurava matar, mesmo assim perseverava
no criminoso intento. Por conseguinte, da mesma maneira que Saul não
diminuía em um ápice no propósito criminoso, assim David não renunciava
ao zelo da oração e alcançava a ajuda de Deus contra o desvario humano.
Portanto, fala assim com Deus:
392 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Domine, uides quantis opibus oppugnor ab eo quem ipse


tam saepe cum summo uitae periculo conseruaui. Cum uero in
tantis difficultatibus omnium praesidio destitutus sim (omnes
enim nefas habent eum, quem rex odio persequitur, aliqua ex
parte subleuare) reliquum est ut in arcem illam munitissimam,
quae misericordia Tua continetur, summa fide confugiam.
Miserere igitur mei, Domine, miserere mei, quando non aliis
opibus atque praesidiis innititur anima mea et, sicut aues,
cum inuolatum milui, aut accipitris, aut aquilae, pertimescunt,
sub matrum alis occuluntur, ita et confido fore ut praesidio
Tui nominis occulter usque eo dum tyrannis importuna
pertranseat. Ad Deum altissimum clamabo; ad Dominum, qui
me beneficentiae Suae donis egregie cumulauit, supplices
preces adhibebo. Mittet de caelo praesidium quo salutem
meam tuebitur; et hostem qui, ut meam uitam et sanguinem
petat meamque gloriam omnibus modis obscuret, contendit,
insigni dedecore ignominiaque perturbabit.
O immensam Dei benignitatem, quae numquam eos, qui
in Te semper intuentur, ope salutari destituis! Misit Deus in
auxilium meum misericordiam Suam, cum fide Sua coniunctam.
Misericordiam quidem appello quia, cum nemini obligatus
sit, omnibus tamen, cui opem Illius implorant, admodum
clementer opitulatur; fidem uero nomino illam promissi
constantiam qua iis, quos sibi foedere deuinxit, praesidium
(ut pollicitus ante fuerat) celeriter importat. Itaque, cum me
e tantis aerumnis eduxerit, et misericordiae simul et datae
fidei egregie satisfacit.
Anima mea inter leones, furore et immanitate flagrantes,
praesidio tuo cincta iacebit. Quid leones appello? Immo belluae
truculentae, leonibus [286] multo ferociores, appellandae sunt.
Nihil est enim, in omni genere ferarum, hominibus impiis et
sceleratis infestius. Dentes enim eorum sunt hastarum cuspides
et sagittae, linguae eorum est gladius acutus. Sermonibus
enim suis mortiferum uulnus infligunt, et corpora simul et
animas saepe transuerberant, et strages bonorum frequenter
edunt, nihilque est in terris quod tantam pestem, quanta a
linguae calumnia atque maledicentia bonis impendet, auertat.
Sed, quo plura pericula sunt bonis intenta, eo clarius gloria
Tua, cum eis in rebus omnibus desperatis opem attuleris,
illustrabitur. Quocirca a Te contendere non desistam ut Tui
nominis amplitudini atque maiestati prospicias, quod quidem
perficies si iis, qui in Te solo habent omnia uitaepraesidia
OPERA OMNIA TOMO IV 393

Senhor, vês com quanta violência sou atacado por aquele a quem
eu mesmo tão amiúde salvei com o máximo risco da minha vida.
E, sendo certo que, no meio de tão grandes dificuldades, fiquei privado
do socorro de todos (pois todos têm por ilícito de alguma forma aliviar
aquele a quem o rei odeia), resta que com a fé mais profunda me refugie
naquele seguríssimo baluarte em que se encerra a Tua misericórdia.
Por isso, tem piedade de mim, Senhor, visto que a minha alma não tem
amparo noutras forças e defesas e, assim como os pintos se escondem
sob as asas das mães quando se atemorizam com o voo do milhafre,
do açor ou da águia, da mesma maneira também confio em que hei
de esconder-me sob a proteção do Teu nome até que se acabe a cruel
tirania. Clamarei ao altíssimo Deus; humildes rogativas dirigirei ao
Senhor que singularmente me cumulou com as mercês da Sua bondade.
Enviará do céu socorro para com ele defender a minha segurança; e
com notório desdouro e ignomínia há de inquietar o adversário que se
empenha em atacar a minha vida e derramar meu sangue e por todos
os modos obscurecer a minha glória.
Oh imensa bondade de Deus, que nunca privas de salutar ajuda
aqueles que sempre têm os olhos postos em Ti! Deus enviou em meu
auxílio a Sua misericórdia, unida à Sua fidelidade. Dou-lhe o nome de
misericórdia porque, não tendo obrigações para com ninguém, mesmo
assim com muita compaixão acode aos que Lhe imploram ajuda; designo
como fidelidade aquela firmeza em cumprir o prometido (consoante
antes prometera) com que mui prestes leva socorro aos que a Si uniu
mediante um pacto. E por isso, ao retirar-me de tão grandes provações,
não só satisfaz à misericórdia, mas também, do mesmo passo, cumpre a
palavra que deu.
A minha alma, cercada pela Tua proteção, há de jazer entre leões
abrasados em raiva e crueldade. Porque lhes chamo leões? Antes devem
ser chamados ferozes bestas-feras, muito mais sanguinárias que os leões.
[286] Entre todas as espécies de feras não existe nada de mais agressivo
do que os homens perversos e ímpios. É que os dentes deles são pontas
de dardos e frechas, afiadas espadas as suas línguas. Na verdade, com as
suas palavras infligem uma ferida mortal, e trespassam amiúde do mesmo
passo as almas e os corpos, e frequentemente causam a destruição dos
bons, e não existe na terra coisa alguma que afaste uma peste tão grande
como é aquela com que a calúnia e maledicência da língua ameaçam
os bons. Mas, quantos mais perigos assoberbam os bons, tanto mais
claramente a Tua glória há de resplandecer, quando em todas as situações
desesperadas lhes ofereceres a Tua ajuda. Razão pela qual não cessarei
de pedir-Te com insistência que atendas à grandeza e majestade de Teu
nome, o que decerto farás se nas aflições e tribulações acudires àqueles
394 D. JERÓNIMO OSÓRIO

constituta, subsidio, in rebus asperis et afflictis, occurreris.


Fac igitur ut nominis Tui laudes supra caelum efferantur et
gloria Tua in terra omnium praedicatione celebretur.
Ex me autem poterit exemplum sumi quo iuris Tui aequitas
in omnium sermone uersetur. Rete intenderunt inimici pedibus
meis; hostis inflexit (quoad potuit) animam meam ut in rete
decideret: nam me blandis uerbis alliciebat ut sibi uitam
meam crederem; foueam ante me in magnam altitudinem
depresserat, ut in eam detruderer. At ipsi in illius medium
praecipites acti sunt. O uim diuini iuris admirandam, qua fit
ut malum, quod impii in bonorum perniciem moliuntur, ipsi
potissimum subeant et laqueis, quos aliis struxerant, impediti
et alligati teneantur! Sed, quid nam est hoc, quo tam subito me
immutari et exoriri sentio? Video enim animum meum uirtute
spiritus uehementius afflari mentemque meam uiribus diuinis
incitari, ut Christum, Regem sempiternum, cogitem, calumniis
uexatum, longe grauius, quam ego sim, impiorum dentibus
uulneratum, et supplicio denique atrocissimo mactatum, e
faucibus deinde mortis et ex inferorum tenebris excitatum,
ut, hostis sempiterni tyrannide deleta mortisque immanitate
superata, clarissimum triumphum agat et omnibus qui in
illum respiciunt aditum ad gloriam sempiternam aperiat.
Quo quidem solatio quid poterit esse uel ad leuandam
magnitudinem angoris et sollicitudinis efficacius uel ad
confirmandam spem salutis et gloriae uehementius? Ego
recusem inire cum Domino meo laboris atque doloris
societatem ? Ego dubitem de sempiternae felicitatis statu, cum
illum uideam esse sanguine sanctissimo Domini fundatum
et illius praeclarissima uictoria constitutum? Deleo ex animo
curas omnes, uires mentis excito ut me comparem ad tam
diuinum beneficium attentissime considerandum. Paratum est
cor meum, Domine, ad audiendum caelestem disciplinam qua
me spiritu Tuo illustrandum suscepisti; paratum etiam est ad
tam excellens atque diuinum beneficium, et carminibus et
omni genere cantus et harmoniae iucundissimae, concinendum.
Exsurge a mortuis, o summi Patris gloria, cuius nomine et
beneficio meum decus et gloria continetur. O nablium, o
cithara, o instrumenta musica, uos quantum possum exhortor
ut mihi praesto sitis. Nulli [287] sensus, nulli cantus, nulla
symphonia poterit cupiditati tanti muneris celebrandi qua
sum mirabiliter inflammatus aliquo modo satisfacere. Sed
longum est, et amor dilationem non patitur, et spes afflictum
OPERA OMNIA TOMO IV 395

que exclusivamente em Ti têm estabelecidas todas as defesas da vida. Por


conseguinte, faze que os louvores do Teu nome se elevem acima do céu
e que a Tua glória seja celebrada na terra pelos pregões de todos.
Ora, de mim poderá tirar-se um exemplo que leve a equidade da Tua
justiça a andar na boca de toda a gente. Os inimigos armaram-me laços
para os pés; o adversário dobrou até onde pôde a minha alma para que ela
caísse no laço: é que me aliciava com sedutoras palavras a fim de que eu
lhe confiasse a minha vida; escavara diante de mim uma cova de grande
profundidade, para me empurrar para dentro dela. Mas eles mesmos se
arrojaram para o meio dela. Oh força espantosa da lei divina, graças à qual
acontece que o mal que os ímpios preparam para perdição dos bons, são eles
mesmos quem sobretudo o sofrem e caem presos e enleados nos laços que
tinham armado para outros! Mas, que coisa é esta com a qual me sinto tão
subitamente transformar e renascer? É que vejo que a minha alma se sente
mais vivamente inspirada pela virtude do espírito e o meu entendimento está
a ser incitado por divinas forças, para que eu pense que Cristo, Rei eterno,
ultrajado por calúnias, foi muito mais gravemente agredido pelos dentes dos
ímpios do que eu sou, e ao cabo foi morto por um atrocíssimo suplício, em
seguida ressuscitou das fauces da morte e das trevas dos infernos, a fim de,
suprimida a tirania do sempiterno inimigo e vencida a monstruosidade da
morte, celebrar um brilhantíssimo triunfo e abrir um acesso para a eterna
glória a todos os que nele têm postos os olhos.
Ora, que outro refrigério, senão este, poderá existir ou mais eficaz
para alívio da grande angústia e inquietação ou mais veemente para
fortalecer a esperança de salvação e de glória? Que eu me recuse a
concluir uma aliança de trabalhos e dores com o meu Senhor? Que eu
sinta dúvidas acerca do estado de bem-aventurança eterna, quando vejo
que ele foi comprado pelo sangue santíssimo do Senhor e assentou na
Sua ilustríssima vitória? Expunjo da alma todos os cuidados, dou alento
a todas as energias do espírito para alcançar entregar-me à atentíssima
ponderação de tão divino benefício. O meu coração está aparelhado,
Senhor, para escutar os ensinamentos celestiais com que decidiste, através
do Teu espírito, iluminar-me; está também aparelhado para celebrar pela
música um benefício tão excelente e divino, mediante cânticos e toda
a sorte de sonoridades e mui gratas harmonias musicais. Ressuscita de
entre os mortos, ó glória do Pai supremo, em cujo nome e benefício se
encerram o meu lustre e glória. Ó náblio, ó cítara, ó instrumentos musicais,
a vós exorto o mais que posso a que estejais ao meu dispor. Nenhuns
[287] sentidos, nenhuns cânticos, nenhumas musicais harmonias poderão
de modo algum satisfazer ao desejo de celebrar uma tão grande mercê,
como aquele que maravilhosamente me abrasa. Mas o tempo alonga-se,
e o amor não tolera dilações, e a esperança consola a alma atribulada, e
396 D. JERÓNIMO OSÓRIO

animum consolatur, et spei fructus, in longinquum tempus


reseruatus, eundem animum rursus afflictat.
Auroram igitur iucundissimam tantae lucis praenuntiam
crebris monitis et precibus excitabo ut exoriatur. Cum uero hoc
immortale beneficium non sit Iudaeis tantum afferendum, sed
cum gentium omnium uniuersitate communicandum, hunc tam
laetum nuntium, o Domine, populis externis afferam, nomen
Tuum apud gentium multitudinem laudibus perpetuis, quae
ad illarum intelligentiam perueniant, extollam. Misericordia
enim Tua caeli fastigia penetrat et fides Tua aetheriam
regionem facile tranat, ita ut nostrae salutis Auctorem ad
dexteram Tuam collocet nobisque omnibus, qui ductum et
imperium illius sequimur, uiam ad caelestes sedes obtinendas
egregie muniat. Vehere super caelestem regionem, o Domine;
o generis humani liberator, euehere, et in terras uniuersas
Tui nominis et gloriae splendorem diffunde.

Si uere utique iustitiam loquimini.


Psal. 57. Apud Heb. 58

Cum reges aliquid sceleris meditantur, mirum est


quam multi sese ad illorum cupiditatem et immanitatem
accommodent; quanto studio illos, quibus principes infensos
animaduertunt, insectentur; quam alacres sint iniuriae
et crudelitatis administri. Silent tunc leges; humanitatis
nulla cura est; metus Dei obmutescit; omnia denique in
illorum perniciem, quibus reges irati sunt, summa alacritate
comparantur. Hoc est autem quod hoc in loco Dauid maximo
probro et crimini dandum censet omnibus quos reges in
consilium adhibent, qui, si principes officii admonere
uoluissent, a multis flagitiis eos auertere potuissent. Nunc
uero, cum iustitiae et ueritatis immemores, adulandi et
assentandi cupidissimi sint, nullum tantum scelus in se reges
admittere statuent, cuius ipsi non se auctores et adiutores
atque ministros praebeant. In hoc igitur hominum genus
pestilentissimum Dauid inuehitur et eorum scelera, qui iura
omnia ad cupiditatem et libidinem transferunt, grauissima
oratione uituperat. Ait enim:
Num, o uiri muneris splendore nobilissimi, ex hominum
multitudine delecti ut reges consilio iuuetis et rem publicam
OPERA OMNIA TOMO IV 397

o fruto da esperança, posto de parte por dilatadíssimo tempo, de novo


atribula a mesma alma.
Por conseguinte, com incessantes admoestações e rogos, acordarei,
para que nasça, a jucundíssima aurora que prenuncia uma tamanha luz.
E, uma vez que este imortal benefício não deve ser oferecido apenas
aos judeus, mas repartido por todos os povos em geral, oferecerei,
Senhor, aos povos estrangeiros esta tão alegre novidade, exalçarei
com loas perpétuas o Teu nome entre a multidão dos povos, para
que cheguem a entendê-las. É que a Tua misericórdia penetra nas
alturas dos céus e a Tua fé facilmente atravessas as etéreas regiões,
de tal maneira que coloca à Tua destra o Autor da nossa salvação e
para todos nós, que seguimos a sua direção e lhe obedecemos, nos
prepara maravilhosamente o caminho para alcançarmos as celestiais
moradas. Eleva-Te sobre a região celestial, Senhor; levanta-te sobre ela,
ó libertador do género humano, e esparze por toda a terra o esplendor
do Teu nome e glória.

SALMO 57
(58 entre os Hebreus)
Se verdadeiramente falais justiça.

Quando os reis maquinam algo de pecaminoso, é espantoso o grande


número de pessoas que se prestam aos seus desejos e crueldades; o
grande desvelo com que perseguem aqueles de que se apercebem que os
príncipes hostilizam; o grande entusiasmo com que os ajudam na injustiça
e crueldade. Então as leis emudecem; não existe qualquer preocupação com
sentimentos de humanidade; o temor a Deus não dá sinal de vida; enfim,
com extrema celeridade tudo se apronta para a destruição daqueles que
incorreram na ira dos reis. Ora, é isto o que neste salmo David considera
que deve ser muitíssimo censurado e verberado como crime em todos os
que aconselham os reis, que, se tivessem querido aconselhar os príncipes
ao cumprimento dos seus deveres, teriam podido desviá-los de muitas
infâmias. Mas uma vez que, deslembrados da justiça e da verdade, sentem
um vivíssimo desejo de adular e lisonjear, hão de assentar que os reis não
hão de tornar-se culpados de qualquer grande crime do qual eles não se
ofereçam como autores, coadjuvantes e instrumentos. Por consequência,
David arremete contra este pestilencial género de homens e com linguagem
muito violenta vitupera os crimes dos que acomodam todas as leis à cobiça
e aos desregrados apetites. Com efeito, diz o seguinte:
Acaso, ó varões, os mais nobres pelo luzimento das funções, escolhidos
de entre a multidão dos homens a fim de com vosso conselho ajudardes
398 D. JERÓNIMO OSÓRIO

iuris aequabilitate deuinctam teneatis, officio uestro fungimini?


Num iuris sanctitatem cupiditati et ambitioni praeponitis?
Num ueritatem omnibus emolumentis, mendacio et adulatione
quaesitis, anteferendam existimatis? Num in iudicando nihil
omnino potentium gratiae aut offensioni conceditis, sed omnia
ad exactissimum iustitiae [288] pondus et examen dirigitis?
Non prorsus! Immo, cordis intimo recessu scelus machinamini;
in terra, iniuriam et uim manibus intentatis; et non quid ius
postulet, sed quod uobis emolumentum ex facto proueniat,
impura mente perpenditis. O rem perditam et miseram! Quibus
hominibus rem publicam commissam uidemus? Impietate caeci,
insitam libidinem sectantur; a Deo abalienati sunt; mentis
errorem turbulentissimum a primo conceptu et a matris utero
contraxerunt; mendacium perpetuo loquuntur.
Sed inquiet fortasse aliquis: “Non singulare aliquod, sed
commune, uitium profers: omnes enim nascimur ea labe
pestiferae contagionis infecti ut ad flagitium et mendacium,
naturae deprauatae uitio, propensi simus.”
Verum. Sed religio et fides eorum qui sanari cupiunt, et
naturae morbos curat et inflicta uulnera sanat. Qui autem
aspernantur atque repudiant Deique iudicia non timent,
non modo a naturae morbis emergere nequeunt, uerum et
innatas libidines summa contentione augent et cumulant.
Venenum quod ore compressum tenent ut, quos uelent
perdere, oratione contaminata atque pestilenti conficiant,
est serpentis mortifero ueneno simillimum. Et, perinde atque
aspides aures obstruunt ne sapientis incantatoris carminibus
a naturae feritate et truculentia ad mansuetudinem inflecti
possint, ita et isti aures ueritati sponte sua claudunt; legis
disciplinam audire nolunt; diuinum imperium recusant;
monitoribus infestissimi sunt; nullo denique modo uolunt de
ratione officii atque uirtutis edoceri. O Domine sanctissime,
maledicentiam hominum perditorum debita ultione comprime;
dentes eorum in ore perfringe; molares leonum (neque enim
minus calumniae sceleris et impietatis, quam leonum morsus,
metuendae sunt) euelle, ne maledicta longius, ad multorum
pestem atque perniciem, serpant. Vires eorum diffluant ut
aquae quae sponte atque natura sua, nemine impellente,
dilabuntur. Cum eiaculari uolent, tam languidi fiant ictus
ut eorum sagittae perfractae uideantur. Vt limax incessus
tarditate colliquescit, sic et illi conatu minime progrediantur,
sed in dies eorum actiones et studia languescant. Vt abortione
OPERA OMNIA TOMO IV 399

os reis e manterdes o Estado em boa ordem sob o império das leis, acaso
cumpris o vosso dever? Acaso antepondes a santidade do direito à cobiça
e à ambição? Acaso considerais que deve preferir-se a verdade a todos
os proveitos, procurados com a mentira e a adulação? Acaso ao julgar
não vos deixais mover pela influência e temor dos poderosos, mas em
tudo procedeis de acordo com o estrito e exato acatamento da justiça?
[288] Certamente que não! E até, nos mais profundos recessos do coração
maquinais o crime; na terra, intentais com as vossas mãos a violência e
a injustiça; e com espírito impuro ponderais, não aquilo que o direito
reclama, mas o lucro que vos advém do que fizerdes. Oh procedimento
perverso e miserável! A que homens vemos que está entregue o Estado!
Cegos pela impiedade, vão empós das suas congénitas paixões; afastaram-
se de Deus; desde a sua concepção e desde o ventre materno têm a mente
perturbada por violento desvario; incessantemente falam mentira.
“Mas”, dirá porventura alguém, “estás a referir-te a um defeito que
não é excecional, mas sim comum, pois todos nascemos corrompidos
pelo pestilencial contágio dessa balda que, devido ao defeito da corrupta
natureza, nos torna propensos à infâmia e à mentira.”
É verdade. Mas a religião e a fé dos que vivamente desejam curar-se,
não só cura as enfermidades da natureza, mas também sara as feridas que
foram infligidas. Ora, os que desprezam e rechaçam e não temem os juízos
de Deus, não somente não podem recuperar das enfermidades da natureza,
como aumentam e acrescentam com a máxima eficácia as desregradas paixões
com que nasceram. A peçonha que têm guardada na boca, para atacarem
com palavras pestilenciais e venenosas aqueles aos quais pretendem destruir,
é totalmente semelhante à peçonha mortífera da serpente. E, assim como
as áspides tapam os ouvidos para impedirem que os cânticos do sábio
encantador as possam fazer mudar da sua natural agressividade e violência
para um estado de mansidão, da mesma maneira também esses por sua livre
e espontânea vontade fecham os ouvidos à verdade; não querem escutar os
ensinamentos da lei; recusam o senhorio de Deus; são muitíssimo hostis a
quem os aconselha; finalmente, de forma alguma querem que os ensinem
acerca das regras do dever e da virtude. Ó santíssimo Senhor, com a devida
vingança atalha à maledicência dos homens perversos; quebra-lhes na
boca os seus dentes; arranca-lhes os queixais de leões (é que as calúnias
do crime e da impiedade não são menos temíveis do que as mordidas dos
leões), para que os insultos não se espalhem mais, para perdição de muitos.
Que as forças deles se derramem como águas que espontaneamente e por
sua própria natureza, sem que ninguém as empurre, se dissipam. Quando
quiserem atirar, os golpes tornem-se tão fracos que as suas setas pareçam
quebradas. Como a lesma se desfaz com a lentidão do seu movimento,
assim também eles não vão avante em seus intentos, mas os seus empenhos
400 D. JERÓNIMO OSÓRIO

mulieris fetus, antequam Solem uideat, exstinguitur, sic et


isti, priusquam conata perficiant, euertantur. Vt homines
edaces atque famelici non exspectant dum carnes elixae
perfecte sint, sed, antequam lebetes subiecti rhamni flammae
uim totam percipiant, semicrudas deuorant et absumunt, sic
ira diuina eos improuiso turbine atque procella disperdet
atque dissipabit.
At iustus laetabitur et exsultabit, cum uindictam adspiciet,
manusque suas impiorum sanguine lauabit. Iustitiae namque
munus est operibus diuinis oblectari et gloriam Domini
ardenter expetere. Cum igitur Deus in eos qui misericordiam
ingrate reiiciunt et ad extremum in scelere perseuerant
seueritatis Suae exempla constituit, necesse est ut iidem, qui
Dei misericordiam assidua praedicatione celebrant, seueritatem
laeti similiter adspiciant, qua uident illa Dei nomen debitis
laudibus illustrari. Tunc enim homines, [289] Dei metu
perterriti, se colligunt et a flagitiis abstinendum esse statuunt.
Dicit enim quilibet: “Non est certe hominis iusti condicio (ut
uulgus suspicatur) miserabiliter afflicta. Non est illius causa
deserta, est enim fructus boni operis et praemium iustitiae
constitutum. Est enim Deus, qui omnia uidet et res humanas
iuste atque sapienter examinat, ut iustos tueatur et impios
atque sceleratos debitis poenis excruciet.”

Eripe me de inimicis meis, Deus meus.


Psal. 58. Apud Heb. 59

Odium Saulis erat implacabile. Nec enim Dauidis bonitas


id mitigabat, neque Dei metus hominem, in magnitudine
acerbitatis obstinatum, a tam immani scelere deterrebat. Cum
igitur intellexisset Dauidem domi esse, domum obseruari
iussit, ne Dauid exitium uitare ullo modo posset. Ab uxore
tamen, per fenestram demissus, euasit. Cum tamen omnia
(ut aequum erat) ad diuinam clementiam retulisset, in hanc
sententiam ad Deum orationem habuit:
Libera me, Domine mi, ab inimicis meis; suscipe meae
salutis atque uitae patrocinium contra eos qui in me totis
uiribus inuehuntur. Nec enim iure me, sed odio persequuntur.
Nullum facinus designaui; nullum in me scelus admisi; immo
omnia officia mea in illos egregie constiterunt. Inuidia
OPERA OMNIA TOMO IV 401

e ações de dia para dia se reduzam a nada. Como, ao abortar, o feto da


mulher se extingue antes de ver o sol, assim também esses sejam aniquilados
antes de levarem a termo seus desígnios. Assim como os homens glutões e
esfaimados não esperam que as carnes fiquem perfeitamente cozidas, mas,
antes que as caçarolas recebam todo o calor do fogo de espinheiro que por
baixo as lambe, tragam-nas e devoram-nas meio cruas, assim a ira de Deus
com inesperado turbilhão e procela há de aniquilá-los e dizimá-los.
O justo, porém, há de alegrar-se e exultar, quando vir a vingança, e
lavará as suas mãos com o sangue dos ímpios. É que a função da justiça
é recrear-se com as obras divinas e vivamente desejar a glória do Senhor.
Por conseguinte, quando Deus estabelece exemplares castigos contra
aqueles que ingratamente rejeitam a misericórdia e perseveram no crime
até ao fim, é forçoso que os mesmos que exaltam com incessante pregão
a misericórdia de Deus, olhem igualmente alegres a Sua severidade,
mediante a qual reconhecem que por ela o nome de Deus é iluminado
com os devidos louvores. É que então os homens, [289] assustados com o
medo de Deus, encolhem-se e decidem que devem abster-se das infâmias.
Com efeito, quem quer que seja diz: “A condição do homem justo não é
mofinamente atribulada (consoante cuidava o comum das gentes). A sua
causa não foi abandonada, pois foi estabelecido um fruto para as boas
obras e um prémio para a justiça. Existe de facto um Deus que tudo vê
e avalia as coisas humanas com justiça e saber, por forma a velar pelos
justos e castigar os ímpios e os sacrílegos com as merecidas penas.”

SALMO 58
(59 entre os Hebreus)
Livra-me, meu Deus, de meus inimigos.

O ódio de Saul era implacável, pois nem a bondade de David o


amansava, nem o medo de Deus desviava de tão monstruoso crime o
homem obstinado em tão grande sanha. Por conseguinte, tendo tomado
conhecimento de que David estava em casa, mandou que a vigiassem, por
forma a que David de modo algum pudesse esquivar a morte. Todavia
escapuliu-se descendo, com a ajuda da esposa, por uma janela. Todavia,
tendo (como era justo) tudo atribuído à misericórdia de Deus, falou-Lhe
com palavras do seguinte teor:
Livra-me, Senhor, dos meus inimigos; encarrega-Te da defesa da
minha salvação e vida contra aqueles que com todas as forças me
atacam. É que eles me perseguem não com justiça, mas sim por ódio.
Não maquinei nenhum atentado; não incorri em qualquer crime; e até
de modo singular lhes prestei todos os meus bons serviços. Portanto,
402 D. JERÓNIMO OSÓRIO

igitur et immanitate flagrantes in tam insigne crudelitatis


crimen impelluntur. Libera igitur me ab illis qui iniuriam et
iniquitatem scelestissime conflant, et ab hominibus profligatis
et multum in sanguine et caede uersatis erue me. Homines
qui multum opibus et gratia possunt, animae meae insidias
intendunt, nullo meo scelere, nullo peccato prouocati,
quemadmodum Tu testis es, o Domine. Cum illos numquam
laeserim, numquam aliquid animo designauerim quo merito
possent a me alienatos animos habere, in me tamen incurrunt;
de mea pernicie consultant; omnibusque modis se comparant
ut mihi exitium machinentur. Exsurge, igitur, ut mihi opem
afferas et in tam grauem iniuriam animaduertas. Non alias opes
habeo; non copiis cinctus sum; nemo me, uel gratia, uel fide
subleuandum suscipit. Omnia mihi, praeter Te, sunt acriter
infesta. Tu igitur, o summe agminis caelestis imperator, quem
solum Israel sanctissimum Deum habet, cuius solius praesidio
uitam muniendam putat, expergiscere, ut, iudicio constituto,
tantum scelus in gentibus his uindicandum suscipias, neque
illis qui, non per imbecillitatem et inscitiam labuntur, sed
per summam iniquitatem et malitiam, scelestissimum facinus
aggrediuntur, ignoscas.
Vt cogitatum et meditatum scelus exsequantur, elaborant;
ad uesperum reuertuntur; tenebras noctis obseruant; ut canes
oblatrant et uestigia cum fremitu persequuntur, ut mihi fugam
intercludant; ciuitatem sedulo [290] circumcursant; ex insiti
sceleris feritate uerba funduntur; clamculum inter se loquuntur;
labiis suis gladios in meum interitum uibrant; neque putant
ullo modo sermones suos exaudiri, cum nimis tenebris et
sceleris consensioni confidant. At Tu, qui omnia specularis
et inspicis et occultos impiorum hominum sermones auribus
usurpas (nullum enim secretum Te latet), eorum conatus
irridebis in omnesque gentes iram Tuam effundes. Irridebis
quidem eos cum perficies ut, quo uehementius pietatem
oppugnauerint, eo clarior pietatis splendor oriatur, et ipsi,
recusantes et inuiti, iustitiae gloriae seruiant. Irae uero Tuae
uim in apertum proferes cum gentes uniuersas quae Christo
fuerint aduersatae deleueris; et huius quidem iudicii nunc in
me exemplum statues, cum perfeceris ut omnes inimicorum
conatus ad nihilum recidant et eos, qui sine causa mihi
perniciem moliuntur, excideris. Per me quidem hosti repugnare
non potero. Illius igitur potentiam atque regias opes Tibi
debilitandas, ne mihi noceant, reseruo; non meritis meis, sed
OPERA OMNIA TOMO IV 403

são a inveja e a desumanidade quem, abrasando-os, os impelem para um


crime de tão desmedida crueldade. Portanto, liberta-me daqueles que
do modo mais sacrílego fraguam a injustiça e a iniquidade, e arranca-
me de entre homens perdidos e assaz afeitos à sangueira e à matança.
Homens, muito poderosos pela riqueza e influência, armam ciladas à
minha alma, sem que os provocasse qualquer crime ou falta por mim
cometidos, consoante Tu és testemunha, Senhor. Sendo certo que nunca
lhes fiz mal, nunca maquinei coisa alguma por causa da qual pudessem
com razão romper comigo, mesmo assim arremetem contra mim;
deliberam sobre a minha destruição; e por todos os vias se aparelham
para urdirem a minha morte. Levanta-Te, portanto, para me prestares
ajuda e observares uma tão grande injustiça. Não tenho outras ajudas;
não estou rodeado por tropas minhas; ninguém se dispõe a aliviar-me,
quer com a sua influência, quer com a sua lealdade. Com a exceção de
Ti, tudo me é violentamente hostil. Portanto, Tu, ó supremo general das
hostes celestiais, que és o único a quem Israel tem como o santíssimo
Deus, com cujo exclusivo socorro considera que deve defender a sua vida,
desperta, a fim de, uma vez estabelecido o juízo, Te dispores a vingar
nestes povos um crime tão grave, e não perdoes àqueles que caem, não
por fraqueza e ignorância, mas por iniquidade e malícia insuperáveis
perpetram um perversíssimo atentado.
Aplicam-se a pôr por obra o crime que maquinaram e meditaram;
regressam à tarde; espiam as trevas da noite; ladram como cães e
com estrépito seguem as pegadas, para me impedirem a fuga; correm
afincadamente ao redor da cidade; [290] soltam palavras acordes com
a ferocidade do seu instinto criminoso; falam às ocultas entre si; em
seus lábios brandem espadas para matar-me; e não pensam que de
algum modo as suas palavras são escutadas, uma vez que confiam nas
espessas trevas e na liga do crime. Mas Tu, que tudo esquadrinhas e
observas e escutas as ocultas conversas dos homens ímpios (pois não
há segredo que se Te oculte), rir-Te-ás dos intentos deles e derramarás a
Tua ira sobre todos os gentios. Certamente que zombarás deles quando
fizeres que, quanto mais violentamente atacarem a piedade, tanto mais
claro nasça o esplendor da piedade, e eles mesmos, contrariados e
de mau grado, se ponham ao serviço da glória da justiça. E mostrarás
ilimitadamente a força da Tua ira quando destruíres todos os povos que
hostilizarem Cristo; e apresentar-me-ás agora como exemplo deste juízo,
quando fizeres que todos os intentos dos adversários redundem em nada
e aniquilares aqueles que sem motivo se esforçam por perder-me. É
certo que por mim não conseguirei rechaçar o inimigo, portanto deixo
a Teu cargo o enfraquecer o seu poder e suas régias riquezas, para que
não me façam mal; apoiado, não nos meus merecimentos, mas na Tua
404 D. JERÓNIMO OSÓRIO

benignitate Tua fretus, quandoquidem semper me ex omnibus


aerumnis eduxisti et ad honores summos euexisti.
Domine, misericordia Tua, cum hostes mihi exitium
parauerint, ne cogitata perficiant, anteuertat, et, quod illis
exopto, facias ut aliquando perspiciam. Non interitum eorum
uidere cupio, sed uitam diuturnam, cum tremore et angore,
coniunctam, ut similitudo quaedam futurae calamitatis, quae
gentem impiam affliget, in rebus meis cerni facillime posset.
Cum enim gentem sceleratam et impiam, quae Christum
Tuum perditissimis conatibus oppugnabit, ulcisci statues,
non eam internecione delebis, ne memoria tam sceleris quam
dirae ultionis exstinguatur, sed diutissime illius miseram
uitam propagabis, ut populus Tuus eam uideat uagam et
exsulem, semper trementem et horrentem, nulla incerta sede
consistentem, omnium conuiciis et ruinis expositam, usque
eo dum scelus suum agnoscat et ad uerissimae religionis
studium conuertatur. Sic ego nunc fore confido ut non
moriantur hostes mei, ne memoria tanti facinoris excidata
mente populi mei, ut omnes intellegant quam dirae pœnae
eos exagitent qui tanto odio eum, quem Tu tanta benignitate
complecteris, insequuntur. Exturba, nomine Tuo, gentem in
tam nefando scelere contumacem, et disiice illam, o summe
custos atque defensor salutis nostrae.
Crimine impudentissimi sermonis alligentur; confessione
sceleris, cuius eos minime pudet, capiantur omnes qui ueritati
nefarium bellum indicunt; et nimis superbe et insolenter
sanctitatem arrogant; cum in sanctitatis auctorem maledicta
coniiciant; et eundem, quem uereri, quem colere, quem
amare debuissent, exsecrantur; et mendacia, ut gloriam
illius obscurent, ore sacrilego proferre non dubitant. Confice
illos; confice indignatione Tua; nullo in loco consistant, ut,
tantis pœnis uexati et cruciati, tandem resipiscant [291]
et intellegant Te, quem illi tanto odio persequuntur, esse
Deum uerum, et non Iacobi tantum Dominum, sed etiam in
gentibus, usque ad ultimos terrae fines, latissime dominari,
ut omnibus, tam Iudaei quam exteris gentibus, qui ad Tuum
nomen adiungi uoluerint, salutem afferas.
O infinitam clementiam, quae nullum genus hominum,
modo fidem sancte colat, a communione diuini status atque
sempiternae felicitatis excludit! Et tamen sunt homines
sanctorum patrum sanguine propagati qui immensitatem
diuinae benignitatis exagitent et maledictis omnibus auctorem
OPERA OMNIA TOMO IV 405

bondade, visto que sempre me fizeste sair de todas as provações e me


exaltaste às mais elevadas honrarias.
Senhor, quando os inimigos me aparelharem a morte, que a Tua
misericórdia tome a dianteira para os não deixar levarem a cabo seus
propósitos, e que faças que algum dia eu veja o que lhes desejo. Não
quero ver a morte deles, mas uma vida prolongada, associada ao temor e
à angústia, a fim de que mui facilmente possa enxergar-se nos sucessos
da minha vida uma espécie de semelhança da futura desgraça que há de
atribular o povo ímpio. É que, quando determinares vingar-Te da raça
perversa e ímpia que com sacrílegos atentados se opôs ao Teu Cristo,
não a destruirás com um tipo de destruição que extinga tanto a memória
do crime quanto a da terrível vingança, mas prolongarás por muitíssimo
tempo a sua existência, para que o Teu povo a veja banida e errante,
sempre atemorizada e assustada, sem assentar morada em lugar certo,
exposta aos insultos de todos e à desventura, até que reconheça o seu
crime e se converta ao culto da mais verdadeira religião. Eu, do mesmo
modo, agora confio em que os meus inimigos não hão de morrer, para
que não desapareça do espírito do meu povo a lembrança de um tão
grande crime, para que todos compreendam como são terríveis os castigos
que atribulam os que sentem tão grande ódio por quem Tu abraças com
tamanha benignidade. Destrói, com o Teu nome, um povo contumaz em
tão abominável crime, e derruba-o, ó supremo guardião e defensor da
nossa salvação.
Que fiquem presos pelo crime das suas impudentíssimas palavras; que
pela confissão do delito, do qual não sentem pejo, sejam aprisionados
todos os que movem sacrílega guerra à verdade; e com sobeja soberba
e insolência se arrogam a santidade; sendo certo que lançam baldões
e insultos contra o autor da santidade; e amaldiçoam o mesmo a quem
deveriam ter reverenciado, adorado e amado; e não hesitam em, com
boca sacrílega, proferir mentiras, a fim de obscurecerem a sua glória.
Extermina-os; com a Tua indignação extermina-os; que não permaneçam
em lugar algum, a fim de que, atormentados e avexados por tão grandes
castigos, acabem por arrepender-se [291] e entendam que Tu, por quem
eles sentem tão grande ódio, és o Deus verdadeiro, e governas não apenas
como Senhor de Jacó, mas também, na máxima extensão, sobre os gentios,
até aos últimos confins da terra, por forma a levares a salvação, tanto aos
judeus como às raças estrangeiras que quiserem juntar-se ao Teu nome.
Oh infinita misericórdia, que não exclui nenhuma raça de homens
da comunhão de uma condição divina, desde que santamente cultue a
fé! E todavia existem homens da linhagem dos santos patriarcas capazes
de atacarem a imensa bondade divina e ultrajarem com toda a espécie
de baldões o autor da geral salvação e vivamente desejarem a extinção
406 D. JERÓNIMO OSÓRIO

communis salutis insectentur illiusque nomen extinctum


cupiant? Ad uesperum scelus iterant; tenebras persequuntur;
ut canes oblatrant et ciuitatem sine ullo fructu circumcursant.
Varie discurrunt et huc et illuc temere uagantur, ut animos
cibo reficiant; Litteras Sanctas consulent; magistris impurissimis
operam dabunt; numquam tamen uerissimi cibi suauitatem
gustare poterunt, et ita demum eueniet ut, fame confecti, in
contumelias erumpant. At ego potentiam Tuam carmine perpetuo
atque cantu iucundissimo celebrabo, et bene mane ad laudes
misericordiae Tuae egregie concinendas exsurgam, quia Tu
me, aerumnis depressum atque demersum, extulisti, et totius
sollicitudinis et angoris singulare perfugium mihi in rebus
aduersis exstitisti. O robur animi mei, Tibi psalam, quia Tu
Deus meus es et liberator meus et omne meae uitae praesidium
atque firmamentum est in Tua misericordia constitutum.

Deus, repulisti nos.


Psal. 59. Apud Heb. 60

Maximis uno tempore bellis Dauid oppugnatus fuerat,


quibus tum uideretur difficillimum repugnare, necesse
erat uniuersum regnum magnis motibus agitari et multis
difficultatibus implicari, maxime uero, cum in principio
hostes magnam uastitatem Hebraeorum rebus intulissent et,
successibus elati, de totius regionis euersione cogitassent.
Cum igitur gens esset nimis afflicta et propemodum spem
salutis abiecisset, Deus, rebus in summum discrimen adductis,
opem attulit et uictoriam insignem Dauidi concessit. Nam et
Mesopotamiae exercitum magna belli contentione superauit
et Syriae regem similiter proelio maximo deuicit, et Idumaeo
sita repressit, ut non mediocrem strage mederet. Rebus igitur
prospere gestis, more suo, uir sanctus Deo gratias agit, qui
populum afflixerat, et afflictum erexerat et uulnera, quae
intulerat, remedio ualde salutari sanauerat. Hoc tamen in
loco illum cura ualde grauis afflixit. Prospexit enim, mente
diuinitus illustrata, plagam qua Iudaei erant, propter scelus
immanissimum, funditus euertendi et in diuersas orbis
terrarum regiones, cum insigni dedecore et ignominia,
dispellendi. Hunc tamen casum et ruinam, spe salutis, per
Christum rursus instaurandae, mirifice [292] consolatur.
OPERA OMNIA TOMO IV 407

do seu nome? Repetem à tarde o seu crime; seguem as trevas; ladram


como cães e andam em redor da cidade sem qualquer fruto. Correm para
variadas partes e erram ao acaso de um lugar para o outro, para com
comida ganharem coragem; consultarão as Sagradas Escrituras; seguirão
os ensinamentos de impuríssimos mestres; todavia, nunca poderão provar
o gosto suave do mais verdadeiro alimento, e assim há de acabar por
acontecer que, oprimidos pela fome, irromperão em insultos. Eu, porém,
celebrarei o Teu poder com cânticos incessantes e alegríssimas toadas,
e bem cedo na manhã levantar-me-ei para de modo singular entoar os
louvores da Tua misericórdia, porque Tu me levantaste, encontrando-
me prostrado e assoberbado pela provação, e na adversidade foste para
mim um singular refúgio para toda a inquietação e angústia. Ó vigor da
minha alma, cantar-te-ei meu salmo, porque Tu és o meu Deus e meu
libertador e todo o amparo e firmeza da minha vida se fundam na Tua
misericórdia.

SALMO 59
(60 entre os Hebreus)
Ó Deus, desamparaste-nos.

Num único período de tempo David fora atacado por violentíssimas


guerras e tendo-lhe parecido que mui dificultosamente as repeliria, era
forçoso que todo o reino fosse agitado com grandes convulsões e perturbado
por inúmeras contrariedades, mas muito especialmente porque no princípio
os inimigos tinham causado uma grande destruição no Estado hebraico e,
ensoberbecidos com os sucessos, tinham pensado na destruição de toda a
região. Por conseguinte, encontrando-se o povo assaz atribulado e quase
tendo posto de lado a esperança de salvação, Deus, encontrando-se a situação
num ponto desesperado, ofereceu ajuda e concedeu a David uma insigne
vitória. Com efeito, com grande esforço de guerra venceu o exército da
Mesopotâmia e, do mesmo modo, venceu em combate de grande magnitude o
rei da Síria, e igualmente rechaçou os Idumeus, infligindo-lhes não pequenos
estragos. Portanto, praticados com próspero resultado tais feitos, de acordo
om o seu costume, o santo varão dá graças a Deus, que atribulara o povo
e, depois de atribulado, o alentara e com um remédio assaz salutar sarara
as feridas que inferira. Todavia neste salmo grave inquietação o preocupa.
Com efeito, com o espírito inspirado por Deus anteviu o golpe com que os
judeus, por causa do desumaníssimo crime, deveriam ser totalmente abatidos
e, com extraordinária ignomínia e desdouro, dispersos por diversas regiões
do mundo. Todavia, de modo maravilhoso consola desta calamidade e ruína
com a esperança de salvação, que de novo deveria ser restaurada através
408 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Multas sibi interim uictorias pollicetur. Animus tamen illius


multo magis eratin Christi uictorias, quam in suas, intentus.
Est tamen intellegendum quo genere orationis prophetae
soliti sint Christi uictoriaae explicare. Nomine enim earum
gentium, quae Iudaeis erant olim nimis acriter infestae,
hostes Christi sempiternos intellegunt. Inquit igitur:
Domine, Tu nos expulisti et eiecisti et diris calamitatibus
afflixisti, et quam iratus nobis esses plagis atrocissimis
ostendisti. Quid ergo? Num ira Tua in nos sine fine desaeuiet?
Non certe, si scelus admissum detestati fuerimus: quod
quidem tandem faciemus. Faciem igitur Tuam, quae a nobis
erat auersa, ad nos iterum conuerte. Quamdiu nos respexeris,
omnia nobis laeta et felicia contingent, si uero oculos
a nobis deieceris, in res diras, exitiosas et in extremum
dedecus incurremus. Tu terram istam motibus horrendis
conquassasti; Tu soliditatem illius ita conuellisti ut, multis
in locis uehementissime perfracta, dehisceret. Quis tantum
damnum resarciet? Quis tam insignem iacturam reficiet? Nemo
est in terris qui possit statum perditae et afflictae gentis in
pristinum splendorem restituere. Ille solus, qui tantam uim
malorum in nos, propter dirissimum scelus, inuexit, potest
quod est ereptum reddere. Misericordia tantum diuina
compensat quod seueritate diuini iuris ablatum. Tu igitur,
Domine, qui terram tantis plagis contudisti, eam sana et,
quae sunt oppressa ruinis, magnitudine benignitatis instaura.
Durissima calamitatis exempla populo Tuo demonstrasti. Vidit
enim innumerabilia suorum funera; uidit ciues, partim ferro
concisos, partim fame confectos; uidit ciuitatem, et antiquitate
nobilitatis et studio religionis florentissimam, exscindi; uidit
templum sanctissimum, quod omnium mortalium animos sui
admiratione commouebat, inflammari.
Haec omnia dirissima fupplicia fuerunt Hebraeorum
nationi constituta, nisi aliud multo grauius miseris hominibus
accessisset, quod omnem spem salutis incideret. Poculum
enim uini, mortifero ueneno grauissimi soporis infecti, illis
porrexisti, quo ebrii uacillarent et nutarent oppressisque
sensibus passim conciderent. Quae enim adspiciunt,
minime uident; quae audiunt, minime percipiunt; in
meridiana luce tenebris oppleti sunt; erroribus turbulentis
imbuti, ita gradiuntur ut omnem uiam salutis ignorent;
et, quo magis ut salui fiant omnibus modis enituntur, eo
furentius in pestem ante oculos positam ruant. Cum enim
OPERA OMNIA TOMO IV 409

de Cristo. [292] Entretanto promete a si mesmo muitas vitórias. Todavia o


seu espírito estava muito mais atento às vitórias de Cristo do que às suas.
Deve todavia ter-se presente a espécie de linguagem com que os profetas
costumavam expor as vitórias de Cristo. Com efeito, com esta designação
de gentios, que antigamente eram sobremodo e violentamente hostis aos
judeus, dão a entender os eternos inimigos de Cristo. Fala pois assim:
Senhor, Tu nos baniste e expulsaste e atribulaste com terríveis
calamidades, e mostraste com dolorosíssimos golpes o quão irado
estavas contra nós. Pois quê? Acaso a Tua ira se ensanhará sem termo
contra nós? Certamente que não, se detestarmos o crime perpetrado, tal
como ao cabo faremos. Por conseguinte, torna a voltar para nós a Tua
face, que de nós se encontrava desviada. Enquanto para nós olhares,
tudo nos há de correr a contento e felizmente, mas se apartares de nós
os Teus olhos, cairemos em situação terrível, na perdição e na mais
completa ignomínia. Tu abalaste essa terra com horrendos tremores;
Tu por tal forma subverteste a sua firmeza que, violentissimamente
quebrada, se abriu em fendas em muitos lugares. Quem há de reparar
um tão grande dano? Quem há de refazer uma tamanha perda? Não
existe na terra ninguém que possa restituir ao primitivo esplendor a
condição do perdido e atribulado povo. Só aquele que lançou contra
nós uma tão grande força de males, por causa do terribilíssimo crime,
pode restituir aquilo que foi arrebatado. Apenas a divina misericórdia
compensa o que foi arrancado pelo rigor da lei divina. Por conseguinte,
Tu, Senhor, que com tão grandes golpes destruíste a terra, cura-a e
restaura, com Tua imensa bondade, aquilo que agora se encontra em
ruínas. Aplicaste ao Teu povo exemplares castigos de terríveis desgraças.
Com efeito, viu mortes sem conto dos seus; viu os seus cidadãos em
parte abatidos pelas armas, em parte destruídos pela fome; viu ser
arruinada a cidade, a mais florente pela sua antiga nobreza e pelo
zelo da religião; viu ser incendiado o santíssimo templo, que enchia
de admiração o espírito de todos os mortais.
Todos estes terribilíssimos castigos foram estabelecidos para a
nação hebreia, se não se tivesse aditado outro muito mais grave que as
desventuras humanas, capaz de suprimir toda a esperança de salvação. É
que lhes apresentaste uma taça de vinho, misturado com a mortal peçonha
de um pesadíssimo sono, para que embriagados com ele ficassem trôpegos
e cambaleassem e, com os sentidos embargados, por todos os lados
andassem aos tombos. Com efeito, não enxergam aquilo em que põem
os olhos; não entendem aquilo que escutam; em plena luz do meio-dia
encontram-se mergulhados em trevas; imbuídos de erros turbulentos, de
tal maneira caminham que desconhecem qualquer caminho de salvação; e,
quanto mais por todas as vias se esforçam por ficarem salvos, tanto mais
410 D. JERÓNIMO OSÓRIO

caelestem disciplinam aspernati fuerint, iusto Dei iudicio


in funestissimas tenebras inciderunt. Sed non omnes
eodem genere procreati eandem cladem subierunt, illis
enim qui numen Tuum metuunt, signum sustulisti, quod
sequerentur, sub quo militarent, per quod, studio ueritatis
innixi, uictores euaderent.

O salutarem Euangelii disciplinam, quae superbiam et


insolentiam deprimis et humiles in altissimo gradu [293]
constituis et humanae mentis imbecillitatem diuina uirtute
corroboras. Hoc igitur signo imperatorisque summi ductu, eos,
qui Tibi cari sunt, ab omni calamitate liberabis, et dextera
Tua salutem Tuis conferes, et audies me faciesque tanti boni
participem. Sic autem fiet ut in communi rerum omnium
uastitate, reliquit per fidem salutem assequantur, eo quod
se ad ductum et imperium summi imperatoris applicabunt
et numquam ab Illius signo discedent. Quid est de uniuersa
posteritate dicendum? Num illius salus est omnino desperanda?
Minime, inquam. Dominus in templo sancto Suo, quod non est
hominum operis aedificatum, sed maiestatis ipsius sempiternae
manibus perfectum et absolutum, haec effatus est:
“Bellorum omnium uictor exsultabo, et possessiones
hostibus ereptas ad eorum fructum, qui sub meo signo
militauerint, transferam. Diuidam agrum qui pertinet ad
Sichem; uallem tabernaculorum, ut in eo constitui colonia
possit, dimetiar. Trans Iordanem signum inferam; Galaad,
adstrictus fidei testimonio, mihi seruiet; similiter et Manasse,
aliarum rerum omnium oblitus, sese ad meum nomen
ardenter adiunget; Ephraim, uiribus amplificatis, mei exercitus
principem inuicto robore constipabit. Penes Iudam legis
ferendae et imperii administrandi potestas et auctoritas
summa consistet, ex stirpe enim illius Rex sempiternus orietur.
Moab erit puritatis administer et, sancti patris exemplo,
hospitalitatem sectabitur. Idumeae insolentiam pedibus
conculcabo ut imperium accipiat. O Palaestina, quae tanto
studio bellum contra Iudaeam comparabas, sic immutaberis
et eo mentis ardore mihi ministrabis ut maximis uocibus,
quanto gaudio ex tam felici seruiendi condicione triumphes,
omnibus demonstratura sis.”
Et his quidem uerbis Dominus futurum ostendit ut uniuersa
Iudaeorum posteritas tandem resipiscat et simul cum gentibus
summum Deum cum summa fide et animo uehementer
OPERA OMNIA TOMO IV 411

desvairadamente se precipitam para a perdição colocada diante dos seus


olhos. Com efeito, uma vez que menosprezaram os ensinamentos celestiais,
foi por justo juízo de Deus que caíram nas mais funestas trevas. Mas não
padeceram a mesma triste sorte todos os que pertencem à mesma raça,
pois para aqueles que se arreceiam do Teu poder, puseste-lhes por diante
um pendão, para que o seguissem, sob o qual militassem e mediante o
qual se tornassem vencedores, apoiados no amor da verdade.
Oh salutares ensinamentos do Evangelho, que abateis a soberba e a
insolência e exalçais os humildes à mais alta posição [293] e revigorais
a fraqueza do entendimento humano com a divina fortaleza! Portanto,
com este pendão e sob a direção do general supremo, libertarás de toda
a desgraça aqueles que Te são caros, e com a Tua destra darás aos Teus
a salvação, e escutar-me-ás e far-me-ás participante de um tão grande
bem. Ora, assim acontecerá que no geral assolamento de todas as coisas,
os restantes alcançarão através da fé a salvação porque hão de colocar-
se sob o mando e direção do supremo general e nunca se apartarão do
Seu pendão. Que cumpre dizer-se acerca de toda a descendência? Acaso
deve desesperar-se totalmente da sua salvação? De forma alguma, digo e
insisto. O Senhor no Seu santo templo, que não foi construído por obra
dos homens, mas levado a cabo e terminado pelas mãos da própria eterna
majestade, falou o seguinte:
“Hei de exultar como vencedor de todas as guerras, e farei passar
os pertences arrancados aos inimigos para o proveito daqueles que
militarem sob os meus pendões. Dividirei o campo que se estende
até Siquém; medirei o vale dos tabernáculos, para que nele se possa
estabelecer uma colónia. Levarei as minhas bandeiras para além do
Jordão; Galaad, ligado pelo testemunho da fé, há de servir-me; do
mesmo modo também Manassés, esquecido de todas as outras coisas, há
de servir ardentemente sob o meu pendão; Efraim, com acrescentadas
forças, há de cingir de vigor invencível o príncipe do meu exército.
Na posse de Judá estará o poder e a suprema autoridade de dar leis
e governar, pois da sua linhagem nascerá o Rei eterno. Moab será
o servidor da pureza e, seguindo o exemplo do santo pai, amará a
hospitalidade. Com meus pés calcarei a insolência da Idumeia para
que aceite o meu senhorio. Ó Palestina, que com tão grande ardor
aparelhavas guerra contra a Judeia, de tal sorte hás de mudar e com
tal entusiasmo me servirás que com os mais elevados brados hás de
mostrar a todos a grande alegria com que te sentes triunfar devido a
uma tão venturosa condição servil.”
E certamente que o Senhor com estas palavras mostra que toda a
descendência dos judeus há de acabar por arrepender-se e, na companhia
dos gentios, adorar o supremo Deus com a mais profunda fé e alma
412 D. JERÓNIMO OSÓRIO

inflammato ueneretur. Haec igitur spes me in omni discrimine


sustentat et in omni calamitate consolatur. Interim tamen ad
officium meum pertinet populum mihi commissum armis tueri
illis qui contra Hierosolymam bellum acerrime comparant
summa contentione repugnare. Ex omnibus autem hostibus
qui contra Dei populum arma sumunt nulli sunt capitaliores
quam Idumaei, quos neque sanguinis communio (sunt enim
Isaaci, patris nostri, satu progeniti), neque uicinitatis ius,
quod eos ad beneuolentiam allicere debuisset, impedire potest
quominus de nobis acerbissime cogitent. Et nunc cum armis
potentissimorum hostium premeremur, ut nos ancipiti bello
districtos opprimerent, in fines nostros furenter inuaserunt.
O quam cupio, ne simile facinus in posterum designent, in
illorum urbem munitissimam uictricibus armis inuadere! Quam
uellem, continuata uictoria in Idumaeam progredi et illius
factum comprimere.
Sed quo praesidio et cuius ductu et auxilio hoc, quod iam
dudum animo molior, effectum cernam? Tuo certe, Domine,
qui nos, ut [294] peccatis nostris debitam poenam irrogares,
expulisti et exercitibus nostris praesentem opem minime
contulisti et idcirco fuimus ab hostibus aliquando superati.
Cum iam igitur poenas dederimus, nobis, non mediocribus
malis afflictatis, auxilium afferes. Non ab exteris regibus et
nationibus auxilium umquam postulabo, quorum fides fluxa
est et potestas imbecilla, et ea de causa salus, quam ostendunt,
inanis: Domini tantum igitur fide nixus uictoriam insignem
consequar et Ipse hostes nostros proculcabit.

Exaudi, Deus, deprecationem meam.


Psal. 60. Apud Heb. 61

Mirus homo fuit hic diuinus uir. Metus eum multis in locis urgebat
et spes numquam deficiebat. Pericula illi frequenter imminebant
et fides nullo tempore claudicabat, ita ut essent illi optanda
pericula, quibus fidem exerceret et saepius Dei misericordiam
imploraret. Quo enim acrius eum hostes insectabantur, eo
frequentius colloquio diuino fruebatur et praeterea numquam
animus illius a Christi studio et contemplatione discedebat. Sic
autem hoc in loco apud Deum agit:
OPERA OMNIA TOMO IV 413

vivamente abrasada. Por conseguinte, esta é a esperança que me anima


em todas as situações de perigo e me consola em todas as calamidades.
Entretanto, todavia, compete ao meu dever proteger com as armas o
povo que me foi confiado e rechaçar com o máximo esforço aqueles que
preparam violenta guerra contra Jerusalém. Ora, de todos os adversários
que pegam em armas contra o povo de Deus, nenhuns são mais implacáveis
do que os Idumeus, aos quais nem a comunhão de sangue (pois são da
linhagem de Isaac, progenitor da nossa raça), nem as leis de vizinhança,
que deveriam tê-los induzido à benevolência, são capazes de impedir
que tenham pensamentos muito agressivos contra nós. E agora, somos
atacados pelas armas de inimigos muitíssimo poderosos, que com fúria
desvairada invadiram as nossas fronteiras e, com o intento em nos derrotar,
nos mantêm ocupados com guerra em duas frentes. Oh como eu desejo,
para que de futuro não maquinem idêntico atentado, entrar com armas
vitoriosas na mui fortificada capital deles! Como gostaria de avançar pela
Idumeia com ininterrupta vitória e atalhar ao cometimento deles.
Mas, com qual socorro e com a direção e auxílio de quem hei de ver
levar-se a cabo isto que há muito tempo ocupa meu espírito? Certamente
com o Teu, Senhor, que, para nos [294] castigares com a pena merecida
pelos nossos pecados, nos baniste e não ofereceste ajuda eficaz aos nossos
exércitos e por isso fomos algumas vezes derrotados pelos adversários.
Por conseguinte, uma vez que já fomos castigados, hás de oferecer-
nos auxílio, a nós que estamos atribulados com males nada pequenos.
Jamais hei de pedir socorro a reis e nações estrangeiros, cuja lealdade
é frouxa e poder fraco e, por esse motivo, vã a salvação que prometem:
por consequência, só apoiado na fé do Senhor alcançarei insigne vitória
e Ele mesmo aos pés calcará os nossos inimigos.

SALMO 60
(61 entre os Hebreus)
Ouve, Deus meu, a minha deprecação.

Este santo varão foi um homem extraordinário. O receio acossava-o em


muitas situações e a esperança nunca o abandonava. Amiúde os perigos o
ameaçavam e em tempo algum a esperança lhe falhava, de tal maneira que
desejava os perigos para com eles provar a sua fé e mais frequentemente
implorar a misericórdia de Deus. É que quanto mais violentamente os inimigos
o perseguiam, tanto com mais frequência gozava da conversação divina e,
além disso, nunca a sua alma se apartava da contemplação e amor de Cristo.
Ora, neste salmo fala assim diante de Deus:
414 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Audi, Domine, clamorem meum et mentem in uim meae


orationis intende. Quocumque in loco sim, quamuis in
ultimas terras me ablegatum et a templo Tuo longinquo
spatio disiunctum uideam, quotiens animum curis oppressum
et conturbatum gessero, ad Te fidenter inclamabo. Semper
enim praesens es ut illis, qui in fide Tui sanctissimi nominis
acquiescunt, occurras. Vires deficiunt et consilium minime
consistit, cum pericula, quae circumsistunt, longe maiora sint
quam ut sustineri humana uirtute et industria possint. Tu igitur
me in eam munitionem duc, ad quam per me adspirare nequeo,
et in qua extra hostium mortifera tela confidam. Tu enim es
spes mea, quae semper innitar; Tu arx mea munitissima, in
quam me recipiam quotiens hostes in me impetum fecerint.
Habitabo in tabernaculo Tuo saeculis infinitis; sub alarum
Tuarum integumento atque patrocinio, quietus, animo
constanti permanebo. O tabernaculum immobile, fixum atque
sempiternum, in quo Deus non adumbrate, sed uere, semper
habitabit: quam firmam spem iis, qui ad Tuum nomen adiuncti
sunt et in atrio Tuo uersantur, immortalitatis ostendis? Cum
enim uerus Deus sis, uota mea clementissime suscepisti
et me et omnes qui nomen Tuum sancte atque religiose
metuunt, ut Dei filios et fratres Tuos atque coheredes, in
societatem sempiternae hereditatis adsciuisti. O summe Pater,
dies huius regis sanctissimi, quem populo Tuo praefecisti
ut caelo atque terrae iura describeret omniaque imperio
contineret, in perpetuum propagabis annique illius nullis
generationibus aut aetatibus erunt definiti. In conspectu Dei
sedem atque maiestatem amplissinam retinebit soliumque
illius erit misericordia et fide circumsaeptum, ut cum summa
benignitate consulat omnibus qui in illum semper intuentur
et [295] cum summa fide promissa conficiat. Sic igitur in
laudem nominis Tui perpetuo psallam; singulis diebus,
uotorum omnium reus, uota persoluam.

Nonne Deo subiecta erit anima mea?


Psal. 61. Apud Heb. 62

More suo, Dauid, periculis circumuentus, de hominum


improbitate conqueritur et, quamuis principio insidias
extimescat, fide tamen in Deo locata, timorem omittit et animo
OPERA OMNIA TOMO IV 415

Escuta, Senhor, o meu clamor e aplica a Tua atenção ao sentido da


minha oração. Seja qual for o lugar em que eu me encontre, ainda que
me veja afastado nos confins da terra e apartado do Teu templo por
dilatado espaço, sempre que tiver a alma oprimida e inquietada por
cuidados, cheio de confiança hei de chamar por Ti. É que estás sempre
disposto a acudir àqueles que descansam na fé do Teu santíssimo
nome. As forças falecem e a capacidade de deliberar está debilitada,
uma vez que os perigos, que nos assediam, estão muito acima do
que a fortaleza e o esforço humanos são capazes de suportar. Por
conseguinte, Tu conduz-me para este baluarte, ao qual não posso
aspirar por mim mesmo, para nele tomar posições fora do alcance dos
mortíferos dardos dos inimigos. É que Tu és a minha esperança, na
qual sempre me apoiarei; Tu és a minha seguríssima fortaleza, aonde
me acolherei sempre que os adversários me atacarem. Habitarei no
Teu tabernáculo por séculos sem fim; sob a proteção e guarda das
Tuas asas hei de permanecer tranquilo e com ânimo inquebrantável.
Ó tabernáculo imóvel, fixo e eterno, no qual Deus, não em bosquejo,
mas deveras sempre há de habitar: que firme esperança de eternidade
mostras àqueles que se uniram ao Teu nome e moram no Teu átrio? É
que, sendo certo que és o verdadeiro Deus, acolheste com a máxima
misericórdia os meus pedidos e, a mim e a todos os que santa e
religiosamente temem o Teu nome, associaste-nos à herança sempiterna
como filhos de Deus e Teus irmãos e coerdeiros. Ó Pai supremo, os
dias deste rei santíssimo, que puseste à testa do Teu povo para que
delimitasse os direitos do céu e da terra e tudo dominasse com seu
senhorio, hás de prolongá-los para sempre e os anos dele não serão
circunscritos por quaisquer gerações ou idades. Na presença de Deus
há de conservar sua morada e majestade imensas e o seu sólio estará
rodeado de misericórdia e fé, a fim de com a mais elevada bondade
cuidar de todos os que sempre têm fitos nele os olhos e [295] com
absoluta fidelidade cumprir as promessas. Por tanto, deste modo
incessantemente cantarei salmos em louvor do Teu nome e cada dia,
fiador das promessas de todos, cumprirei as promessas.

SALMO 61
(62 entre os Hebreus)
Porventura a minha alma não estará sujeita a Deus?

De acordo com o seu costume, David, estando cercado por perigos,


queixa-se da ruindade dos homens e, embora no princípio se arreceie
das ciladas, com a fé depositada em Deus põe de parte o temor e ganha
416 D. JERÓNIMO OSÓRIO

confirmatur, ita ut cuncta quae sibi ad timorem proponuntur,


animo alto et excelso, despiciat. Ait igitur:
Multa me certe sollicitant, multa clamare et uociferari
compellunt, uerum anima mea, cum diuinam misericordiam,
qua salutem fuit saepenumero consecuta, recordatur, quiescit
et silet et pace tranquilla perfruitur. Nam certe Deus est
mihi rupes editissima; est salutis meae custodia munitissima;
est denique dignitatis meae uindex acerrimus: numquam
igitur multum inimicorum meorum machinis commouebor.
Quousque tandem in hunc uirum, quem Deus tuendum
et ornandum suscepit, furenter irruitis, o homines mentis
expertes, et non intellegitis uos ipsos uobis necem moliri?
Vt enim paries, quamuis nimis altus esse uideatur, cum rimas
agit atque procumbit, leuissimo impulsu disiicitur, totaque
domus eadem ruina collabitur, et quemadmodum maceria,
qua horti saepiuntur, cum non sit caementis firme constructa,
cum primum incipit impelli, diruitur, ita et uos, quamuis alta
cogitetis et uestro praesidio rem publicam cingi statuatis,
cum tamen neque sitis diuino robore firmati neque caritatis
caemento deuincti, repente corruetis. Omnes enim uires quae
contra Dei consilium colliguntur nimis imbecillae sunt et Illius
rectissimo iudicio facillime conteruntur atque dissipantur.
Quid est autem quod tantopere homines instigat ad
uirum, a quo nullam iniuriam acceperunt, omnibus modis
opprimendum? Inuidia certe, qua nihil est in hominum uita
pestilentius. Ne igitur illi honores eximii deferantur laborantet
sollicitisunt omnesque machinas adhibent quibus illum non
opibus tantum euertant, sedetiam uita spolient. Ne igitur ad
honores regios euehatur, consilium ineunt ut illum praecipitem
eiiciant et, in eam rem, mendacia studiose concinnant; ore
interim blandiuntur, intima uero cogitation emaledictis
eundem configunt. O dirum impietatis exemplum! Tempus
enim illud prospicio quo gentis Hebraeae principes, inuidia
flagrantes, de Christi pernicie coniurabunt et blandis uerbis
insitum scelus occultabunt et secreto consilia contra illum,
plenissima sceleris et immanitatis, inibunt. Ad hoc igitur
exemplum me inuidia circumueniri plane uideo. Tu uero,
anima mea, ne metu trepides; ne te tristibus curis afflictes;
in Dei Tui benignitate conquiesce. In Illo namque habeo spes
omnes uitae constitutas. Ille namque est mihi roboris inuicti
praesidium, salutis immobile [296] firmamentum; dignitatis
decus et ornamentum. Cum nihil in me sit quod non sit ab Illo
OPERA OMNIA TOMO IV 417

coragem, de tal maneira que, com ânimo alevantado e sobranceiro, vota a


desprezo todas as causas de temor que tem diante de si. Diz portanto:
São certamente muitas as causas para a minha inquietação, que me
impelem a bradar e gritar, mas a minha alma, quando se lembra da divina
misericórdia, da qual amiúde obteve a salvação, tranquiliza-se e cala-se
e goza de uma serena paz. Na verdade, tenho deveras em Deus uma mui
elevada rocha; é o fortíssimo guardião da minha salvação; é, enfim, o
enérgico fiador da minha dignidade: por conseguinte, nunca serei abalado
pelas maquinações dos meus adversários. Até quando desvairadamente
vos arremessais contra este varão que Deus tomou a Seu cargo defender
e honrar, ó homens privados de juízo, e não compreendeis que estais a
provocar a vossa mesma morte violenta? É que, assim como a parede, ainda
que pareça muito alta, quando se fende e inclina, cai com um ligeiríssimo
impulso, desabando a casa inteira na mesma ruína, e da mesma maneira
que o muro, com que se cercam os pomares, como não se constrói com
solidez, unindo com cimento as pedras, desaba logo que começa a ser
abalado, assim também vós, embora penseis coisas profundas e determineis
que o estado seja cingido com a vossa proteção, todavia, uma vez que
não estais escorados na força divina nem ajuntados com o cimento do
amor recíproco, haveis de desabar de repente. É que todas as forças que
se ajuntam contra a deliberação de Deus são muitíssimo fracas e mui
facilmente reduzidas a pedaços e destruídas pelo Seu retíssimo juízo.
Ora, que é o que com tamanha violência instiga os homens a por todas
as vias atacarem um varão do qual nunca receberam qualquer injustiça?
Decerto que a inveja, que é o defeito mais nefasto que pode encontrar-
se na vida humana. Portanto, esforçam-se e empenham-se em não lhe
concederem subidas honrarias e põem por obra todas as maquinações que
lhes permitam não só esbulhá-lo das riquezas, mas até privá-lo da vida.
Portanto, para evitar que seja guindado às honrarias, deliberam derrubá-
lo e, com este intento, desveladamente inventam mentiras, do mesmo
passo que com a boca o lisonjeiam, mas no íntimo do seu pensamento
trespassam-no com injúrias. Ó terrível exemplo de impiedade! Com efeito,
olho para aquele tempo em que os dirigentes do povo hebreu, abrasados
em inveja, hão de conspirar contra Cristo e com brandas palavras ocultarão
o intento criminoso que abrigam e secretamente hão de tomar contra ele
deliberações ressumantes de crueldade e crime. Por conseguinte, vejo
que, à completa semelhança deste caso, sou cercado pelo ódio. Mas tu,
ó minha alma, não tremas de medo; não te aflijas com tristes cuidados;
tranquiliza-te na bondade do Teu Deus. É que n'Ele tenho depositadas
todas as esperanças da minha vida. É que n' Ele tenho um defensor de
invencível vigor; um firme sustentáculo de salvação; [296] o lustre e
ornamento da minha dignidade. Sendo certo que em mim nada existe
418 D. JERÓNIMO OSÓRIO

tributum et Illius ope et gratia defensum, nihilest quod possit


me de statu meo conuellere. In Deo est salus mea et dignitas
mea; in Deo est fortitudinis meae robur munitissimum, spei
meae constantia et stabilimentum.
O mortales, adeste animis et orationem meam summa
consideratione percipite. Fluxa et caduca contemnite; in
Deo tantum spem uestram reponite. In conspectu Illius ex
intimo corde preces uestras effundite. In Illo namque omnis
spes nostra est firmissima fide collocanda. O immensam
benignitatem, quae numquam humilium preces aspernata es!
At hominum multitudo uanitas est; at nobilitatis amplitudo
mendacium est. Si in unam librae lancem fuerint hominum
cogitationes impositae, in alteram autem uanitatis, ipsius
inanitas fiet ut uanitas ipsa praeponderet. Nolite igitur,
homines, in calumnia spem uitae reponere; nolite rapinis
inaniter inflari; si opes affluxerint, nolite in illis mentem
defigere, omnia namque labuntur et fluunt et momento
temporis euanescunt et grauissimi doloris materiam plerumque
relinquunt. In bona sempiterna respicite; opes immortales
exquirite; ludibria uitae contemnite; Dei uerbo, qui neque
fallere neque mutari umquam poterit, animi statum confirmate.
Semel enim loquitur Deus, non est enim inconstans, uarius et
commutabilis: quidquid enim promisit, efficiet. Duo haec ab
Illo percepi quae numquam ex animo meo elabentur. Vnum
est quod sit potestate infinita praeditus; alterum, quod sit ad
benigne faciendum paratissimus. Ergo, cum neque potestas
Illius infringi neque misericordia exhauriri possit, efficitur ut
Ille solus dare salutem possit omnibus qui uerbis et promissis
Illius innituntur et hac fide uitam instituunt. Ergo, ut qui se
Deo uigente fide commiserunt sunt sapientissimi, ita et qui,
praesidiis humanis elati uerum praesidium neglexerunt, sunt
inanissimi. Vtrisque autem Tu, Iudex sanctissime, pro meritis
operum, uel praemium aeternum uel perpetuum supplicium
constitues.

Deus, Deus meus, ad Te de luce uigilo.


Psal. 62. Apud Heb. 63

Vtrum magis miseranda an appetenda fuerit hominis sancti


condicio cum Saulem fugeret a multis fortasse dubitabitur.
OPERA OMNIA TOMO IV 419

que não tenha sido dado por Ele e defendido pela Sua graça e ajuda, não
há nada capaz de arrancar-me da minha firme posição. Em Deus está a
minha salvação e dignidade; em Deus encontra-se o seguríssimo vigor da
minha fortaleza, a firmeza e sustentáculo da minha esperança.
Ó mortais, prestai atenção e escutai com a máxima ponderação
as minhas palavras. Desprezai o que é perecível e caduco; depositai
unicamente em Deus a vossa esperança; derramai na Sua presença as
vossas preces, saídas do mais fundo do coração. É que cumpre que n'Ele
coloquemos com a mais firme confiança toda a esperança. Oh bondade
imensa, que nunca desprezaste as rogativas dos humildes! Mas a multidão
dos homens é vaidade; mas é mentira o prestígio da nobreza. Se em um
dos pratos da balança se puserem os pensamentos de todos os homens,
e no outro o nada da própria vaidade, sucederá que a própria vaidade há
de pesar mais. Portanto, ó homens, não ponhais na calúnia a esperança
da vida; não vos ensoberbeçais vãmente com as rapinas; se as riquezas
afluírem quantiosas, não fixeis nelas o vosso pensamento, pois tudo corre
e passa e se desvanece num ápice de tempo e deixa as mais das vezes
um motivo de grandíssima dor. Olhai com atenção para os bens eternos;
procurai conseguir as imortais riquezas; desprezai os enganos da vida;
esforçai a vossa alma com a palavra de Deus, o qual nem engana nem
poderá jamais mudar. É que Deus fala uma só vez, pois não é inconstante,
variável e tornadiço: de facto, o tudo o que prometeu, há de cumprir. D'Ele
escutei duas coisas que nunca hão de escapar-se da minha alma. Uma é
que se encontra provido de poder infinito; a outra, que está muitíssimo
disposto a fazer coisas boas. Logo, uma vez que é impossível que o Seu
poder se quebrante ou a Sua misericórdia se exaura, sucede que só
Ele pode dar a salvação a todos os que se apoiam nas Suas palavras e
promessas e regulam as suas vidas em conformidade com esta fé. Logo,
assim como são os mais sábios aqueles que se entregaram a Deus com
uma fé vivificante, da mesma maneira os que, ensoberbecidos com os
socorros humanos desprezaram a verdadeira ajuda, são totalmente fúteis.
Ora, para uns e para outros Tu, ó santíssimo Juiz, de acordo com os
merecimentos das obras, hás de destinar-lhes ou o prémio eterno ou o
perpétuo suplício.

SALMO 62
(63 entre os Hebreus)
Deus, ó meu Deus, em Ti estou vigilante desde o raiar da luz.

Talvez muitos hão de ficar em dúvida sobre se foi mais lastimável ou


mais desejável a condição do santo varão quando fugiu de Saul. Com efeito,
420 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Nam, si labores illius et sollicitudines animo recolamus,


uix quidquam poterit excogitari magis afflictum. Erat enim
falso testimonio circumuentus; proditionis insimulatus; in
acerbissimum exsilium pulsus; domo, liberis, familia carebat;
fame, siti, aestu, frigore, omnium rerum inopia laborabat;
capiti illius erat diebus prope singulis periculum crudelissimae
necis intentum, cuius uitandae gratia uastam et horridam
solitudinem incolere cogebatur. Haec certe erant satis odiosa
et aspera perpessuque difficilia. Contra uero, qui uiderit
spiritum quo agebatur, in operibus suis spirantem, intelleget
illum, eo ipso tempore quo tantis incommodis uexabatur,
in caelo, cum summa iucunditate, uersatum fuisse. [297] Ex
quo perspicuum est non miserabilem fuisse statum illius,
sed ualde florentem atque plane beatum, fides enim timores
expellebat, spes curis omnibus animum leuabat, uirtus in
dies augebatur: mens illius erat iucundissima familiaritate
diuinae mentis implicita. Quamuis autem in principio alicuius
acerbitatis angeretur, tamen in fine, uoluptate diuina perfusus,
exsultabat. Hunc autem uiri diuini spiritum cum in multis
aliis locis, tum in hoc carmine, quod in deserta et inculta
solitudine composuit, intueri licebit. In hanc enim sententiam
Deum alloquitur:
Summe Domine, Deus meus es tu. Neque enim effrenatam
cupiditatem, neque noxiam uoluptatem, neque popularem
celebritatem, neque deum aliquem commenticium ueneror. Te
solum, ut Dominum, metuo; ut Parentem, diligo; ut summum
bonorum omnium, exopto; et in Te denique solo omnia
praesidia uitae constituo. Hoc studio concitatus, non segniter
ad Te cum precibus adeo, sed primo diluculo ad maiestatem
Tuam oratione mea placandam accelero. Anima mea spiritus
Tui ardentissima siti flagrat; quemadmodum et corpus meum
in terra nimis arida et aquarum copia destituta siti maxima
cruciatur, et opem Tuam nimis anxie requirit. Verum hoc me
in hac uastitate consolatur quod mentem meam in templi Tui
sanctitate et in sacrorum religione defixam habeo, neque minus
in hac solitudine Tuae maiestatis amplitudinem contemplor
neque minus attente potentiae Tuae uires et misericordiae
decus et gloriam me intueri puto, quam si in eodem templo, in
uictimis immolandis, operam et studium omne consumerem.
Quamuis enim uita omnibus cara sit, multo tamen est
misericordia Tua melior atque iucundior ipsa uita. Haec
enim uita termino coercetur, misericordia Tua nullo termino
OPERA OMNIA TOMO IV 421

se repassamos pela memória os seus trabalhos e inquietações, dificilmente


poderá imaginar-se algo de mais aflitivo. É que era acabrunhado pelo falso
testemunho; falsamente o acusavam de traição; banido para um exílio
pungentíssimo; estava privado do lar, dos filhos e da família; padecia
fome, sede, calor e frio e a falta de todas as coisas; quase todos os dias
o perigo de uma crudelíssima morte impendia sobre a sua cabeça, para
evitar a qual se via constrangido a viver num ermo desolado e assustador.
Seguramente que tudo isto era assaz odioso, penoso e dificultoso de
suportar. Mas, pelo contrário, quem observar o espírito que o impelia e
nas suas obras o inspirava, compreenderá que ele, ao mesmo tempo que
era atribulado por tão grandes incomodidades, encontrava-se no céu, com
inexcedível alegria. [297] Daqui resulta claro que a sua condição não foi
desventurada, mas assaz próspera e totalmente venturosa, porquanto a fé
rechaçava os temores, a esperança aliviava a alma de todos os cuidados,
a virtude aumentava de dia para dia: o seu entendimento encontrava-
se unido com o entendimento de Deus através de uma agradabilíssima
familiaridade. Ora, ainda que no princípio fosse atormentado com algum
pungente sofrimento, todavia no fim alegrava-se, inundado por divina
deleitação. Ora, será possível ver-se este espírito do varão santo tanto
em muitas outras passagens, como igualmente neste salmo, que ele
compôs no deserto e sáfaro ermo. Com efeito, é no teor seguinte que
ele se dirige a Deus:
Ó Senhor supremo, Tu és o meu Deus. É que eu não adoro a
desenfreada cobiça, nem a pecaminosa deleitação, nem a fama popular,
nem alguma falsa divindade. Só a Ti, como Senhor, eu temo; como Pai,
eu amo; como súmula de todos os bens, eu desejo; e só em Ti, enfim,
estabeleço toda a defesa da minha vida. Impelido por este amor, não
é frouxamente que me dirijo a Ti com minhas preces, mas ao primeiro
raiar d’alva com pressa endereço a minha rogativa à Tua majestade para
aplacá-la. A minha alma está abrasada em ardentíssima sede do Teu
espírito, da mesma maneira que o meu corpo numa terra excessivamente
árida e privada de abundantes águas não só é atribulado por excruciante
sede, como também pede com sobeja ansiedade a Tua ajuda. Mas neste
ermo consola-me ter fixo o meu espírito na santidade do Teu templo e
na religião das coisas santas, e neste deserto não contemplo menos a
imensidão da Tua majestade, e penso que não vejo menos atentamente
as forças do Teu poder e o lustre e glória da Tua misericórdia do que se,
no mesmo templo, empregasse todo o meu desvelo e esforço a imolar
vítimas sacrificiais.
É que embora a vida a todos seja cara, todavia a Tua misericórdia
é melhor e mais agradável do que a própria vida. É que esta vida está
limitada por um fim, ao passo que a Tua misericórdia não tem termo
422 D. JERÓNIMO OSÓRIO

definitur. Et haec uita multis curis et laboribus afflictatur,


misericordia autem Tua omnes labores tolerabiles atque
iucundos efficit. Postremo, corporis uita interuentu mortis,
quae semper impendet, exstinguitur, at uita, quae misericordia
Tua continetur, nullis saeculis interibit. Ergo, cum sim ipse
misericordiae Tuae compos, labia mea Te perpetua laudatione
celebrabunt. Te per omnem uitam laudibus efferam et in
nomen Tuum manus meas intendam. Nam et beneficiorum
Tuorum memoriam perpetuo conseruabo et, cum me malis
circumuallatum uidero, non aliam spem flagitabo.
Vt autem corpus suauibus epulis satiatum pinguescit, sic et
anima mea, spiritus Tui dapibus expleta, adipe gratissima et
aruina iucundissima redundabit, tantoque gaudio cumulabitur
ut in laetissimas uoces et acclamationes erumpat, et omne
mei oris officium et munus in laudem nominis Tui dirigatur.
Male mihi sit, si non, etiam cum, ut corpus a labore reficiam,
in lecto decumbo, non Tui recordor, et in destinatis temporis
nocturni uigiliis memoriam Tuorum beneficiorum recolo, ut
de Te semper mediter nullumque tempus sine huius officii
perfunctione effluere sinam. Numquam enim mihi auxilio
Tuo defuisti et, quotiens periculum ab hostibus intendebatur,
sub praesidio alarum Tuarum incredibiliter exsultabam.
[298] Cum enim essem ope diuina circumsaeptus, perditos
hominum conatus pro nihilo reputabam et eorum minas
irridebam. Tecum anima mea conglutinata est et dextera
Tua me sustentauit, ne conciderem. Omnes igitur isti qui
moliuntur interitum animae meae in terrae profundam
uoraginem deprimentur; gladiorum acie concidentur; in
uulpium pabulum insepulti relinquentur. Consentaneum
namque erit ut, qui se ad uulpium exemplum et imitationem
conferebant, a uulpibus exedantur. Decretum enim sanctissimi
Tui numinis est ut, qui uexant calumniis innocentes et iustos
fraudibus insectantur, dispereant, et iusti praesidio Tuo defensi
glorientur. Quemadmodum ego, periculis omnibus ope Tua
perfunctus, exsultabo et nomini Tuo gratias agam.
Ille tamen Rex summus et excelsus, cuius ego imaginem
gero, praecipue laetabitur et exsultabit cum, morte deuicta,
inferorum repagulis conuulsis, animis piorum hominum e
tenebris emissis, in caelum uictor adscendet et triumphum
clarissimum ducet. Hostes uero illius ferrum et flamma
uorabit, et fames et inopia summa conficiet. Omnes qui per
nomen Regis aeterni iurabunt numenque Illius sanctissimum
OPERA OMNIA TOMO IV 423

algum que a circunscreva. E esta vida é atribulada por muitos cuidados e


trabalhos, ao passo que a Tua misericórdia torna toleráveis e agradáveis
todos os trabalhos. Finalmente, a vida do corpo extingue-se com a
intervenção da morte, que sempre ameaça, mas a vida, que se encerra
na Tua misericórdia, não perecerá em tempo algum. Logo, uma vez
que gozo da Tua misericórdia, os meus lábios hão de celebrar-Te com
perpétuo louvor. Ao longo de toda a vida exalçar-Te-ei com minhas loas e
levantarei minhas mãos para encarecer-Te. Na verdade, hei de conservar
incessantemente a lembrança dos Teus benefícios e, quando me vir cercado
de males, não hei de pedir outra esperança.
Ora, assim como engorda o corpo que se enche com delicados manjares,
da mesma maneira também a minha alma, repleta com as iguarias do Teu
espírito, há de transbordar com a mui agradável gordura e o deleitoso
pingue, e há de ficar cumulada de tamanha alegria que irromperá em
mui ledos brados e clamores, e encaminhará toda a atividade e funções
da minha boca para o exalçamento do Teu nome. Que eu seja castigado
se, até quando jazo no leito para refazer o corpo dos trabalhos, não me
lembro de Ti, e recordo os Teus benefícios nas vigílias do tempo noturno,
de modo que sempre medito em Ti e não deixo passar tempo algum
sem me desincumbir desta obrigação. É que nunca me faltaste com a
Tua ajuda e sempre que os inimigos aparelhavam situações de perigo,
espantosamente exultava de alegria sob a proteção das Tuas asas. [298]
Com efeito, encontrando-me rodeado pela ajuda de Deus, tinha na conta
de cousa nenhuma os atentados dos homens perversos e zombava das
suas ameaças. A minha alma encontra-se unida contigo e a Tua destra
me amparou para evitar que eu caísse. Por conseguinte, todos os que se
empenham na perdição da minha alma serão enterrados nos profundos
abismos da terra; morrerão sob o gume das espadas; permanecerão
insepultos para alimento das raposas. Com efeito, será razoável que aqueles
que tomavam como modelo e exemplo as raposas, sejam devorados por
raposas. Na verdade, é determinação do Teu santíssimo poder divino que
os que ultrajam com calúnias os inocentes e perseguem com enganos
os justos pereçam e que os justos se ufanem de serem protegidos pela
Tua ajuda. Da mesma maneira eu, livre de todos os perigos graças à Tua
ajuda, hei de exultar e darei graças ao Teu nome.
Todavia, aquele Rei supremo e excelso, de quem eu represento
a imagem, há de sobretudo alegrar-se e rejubilar quando, depois de
vencida a morte e arrancados os ferrolhos dos infernos e libertas das
trevas as almas dos homens piedosos, ascender ao céu como vencedor e
celebrar um nobilíssimo triunfo. E aos seus adversários hão de devorá-
los as chamas e o ferro e há de atribulá-los a mais completa pobreza.
Hão de prosperar com toda a espécie de merecimentos todos os que
424 D. JERÓNIMO OSÓRIO

uerebuntur, omni laude florebunt: os enim eorum qui


obscuritatem splendori maiestatis Illius afferre et gloriam
mendaciis impudentissimis inquinare et peruertere conati
fuerint, comprimetur, et, ueritatis tandem luce redargutum,
silebit.

Exaudi, Deus, orationem meam.


Psal. 63. Apud Heb. 64

Quo acrius uir diuinus hostium calumniis urgebatur, eo


instantius opem a Deo flagitabat, et sic eueniebat ut mens
illius diebus singulis in caelum altius euolaret. Vnde colligitur
quam felix sit bonorum status: quorum nempe uirtutibus
inimici repugnantes et inuiti subseruiunt. Ait igitur:
Audi, Domine, uocem meam ex intima meditatione
cordis emissam, et libera uitam meam a terrore quem
hostis mihi, cum insigni minarum acerbitate, denuntiat. In
occulto me colloca, ne mihi secreta maleficorum hominum
de mea pernicie consultatio nocere possit et ne tumultus
perditorum ciuium in exitium meum uiolenter erumpat.
Consilium initur; facinus comparatur; sceleris ministri
deliguntur; turba nefaria concitur ut in innocentis uitam
per summum scelus insurgat. Linguas, ut gladios, exacuunt;
uerba, sceleris plena, tamquam sagittas ueneno mortifero
tinctas emittunt, ut occulte uirum integrum inopinato
transfigant; laqueos latenter iniiciunt; et tantum malitiae
suae confidunt ut arbitrentur id, quod astutissime designant,
quod scelestissime moliuntur, quod crudelissime conantur
animaduerti non posse. Dum enim oculos hominum uitent,
de animaduersione diuina minime laborant. Comminiscuntur
fraudes; quod est consultum et deliberatum nimis diligenter
occulunt; in eoque operam et industriam consumunt ut,
etiam [299] quod in uiri mente latet et in profundo cordis
absconditur, explorate cognoscant, ut omni fraude bonis
consilia uitae praeripiant. Itaque, cum sint omni diritate
taeterrimi, impunitatem sibi ex insigni malitia et calliditate
pollicentur. At Deus illos sagittis Suis improuiso conficiet
et repentinis plagis excruciabit.
Eorum linguae illos ipsos, qui tam dirum facinus oratione
conflabant, ruinis oppriment, et exitio erunt eis qui pestem
OPERA OMNIA TOMO IV 425

seguirem o pendão do Rei eterno e adorarem o Seu santíssimo nome:


é que há de ser fechada a boca daqueles que se esforçarem por levar
a obscuridade ao esplendor da Sua majestade e, com impudentíssimas
mentiras, manchar e perverter a Sua glória, e há de ao cabo emudecer
refutada pela luz da verdade.

SALMO 63
(64 entre os Hebreus)
Ouve, ó Deus, a minha oração.

Quanto mais violentamente o santo varão era atacado pelas calúnias dos
inimigos, tanto mais instantemente pedia a Deus ajuda, e assim sucedia que
cada dia o seu entendimento voava mais alto para Deus. Daqui se conclui
quão venturosa é a condição dos bons: ou seja, daqueles cujos inimigos
hostilizam as virtudes e constrangidos lhes obedecem. Diz portanto:
Escuta, Senhor, a minha voz, que sai da mais profunda meditação do meu
coração, e livra a minha vida do terror que me incute o meu inimigo com
ameaças de extraordinária violência. Coloca-me em lugar secreto, para que
não possam fazer-me mal os ocultos conluios dos perversos homens para
perder-me nem irrompam os violentos tumultos dos malévolos cidadãos para
me matarem. Adota-se a deliberação; prepara-se o atentado; escolhem-se os
executores do crime; atiça-se a sacrílega turba para que através do maior dos
crimes atente contra a vida do inocente. As línguas afiam-se como espadas;
as palavras, transbordantes de crime, são lançadas como frechas embebidas
em mortal veneno, a fim de traspassarem inesperadamente e às ocultas o
varão impoluto; de sorrate armam-se laços; e têm tamanha confiança na sua
maldade que pensam que as pessoas não se dão conta daquilo que maquinam
com suma astúcia, do que põem por obra com espírito deveras criminoso,
do que se empenham em fazer com enorme crueldade. É que, contanto que
evitem os olhos dos homens, não se preocupam com a atenção de Deus.
Inventam embustes; com grande desvelo dissimulam o que foi decidido e
deliberado; e consagram todo seu afinco e zelo em conhecerem com toda
a segurança até aquilo [299] que se esconde no entendimento do varão e
se oculta no mais fundo do seu coração, a fim de mediante toda a sorte de
enganos arrancarem aos bons as deliberações para a vida. E por isso, ainda
que toda a espécie de crimes terríveis os torna hediondos, prometem-se a
si mesmos a impunidade graças à sua insigne malícia e arteirice. Mas Deus
há de aniquilá-los de súbito com as Suas setas e há de atormentá-los com
golpes repentinos.
As línguas deles hão de arruiná-los a eles mesmos, que com as palavras
fraguavam um atentado tão terrível, e causarão a morte dos que aparelhavam
426 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et exitium in innocentem hominem comparabant: quod, Dei


iudicium animaduersum, homines eximio terrore commouebit.
Videbunt enim omnes homines ad nihilum recidisse nocentium
conatus; eorum casum et ruinam, qui scelus machinabantur,
spectabunt; opus Domini, cum magnitudine aequitatis et
seueritatis editum, enuntiabunt; et, ex diuinis operibus,
quanto studio sit pietas atque iustitia colenda, et quanto
odio sit sceleris et iniquitatis audacia repellenda, sapienter
intellegent. Laetabitur iustus in Dei gloria; spem omnem
salutis in Illo tantum reponet; et omnes qui recto sunt animo,
gaudio triumphabunt.

Te decet hymnus, Deus, in Sion.


Psal. 64. Apud Heb. 65

Plerumque fit ut, qui sunt in rebus aduersis religiosi, in


secundis studium religionis abiiciant: quod Dauid minime
sibi faciendum iudicat. Vt enim, cum periculis obsidetur,
opem Domini fidenter implorat, ita, periculis liberatus, in
Dei laudibus enuntiandis occupatur et clementiam Illius
oratione ualde memori atque grata prosequitur. In hoc
autem carmine, praeter gratias quas agit, Christi disciplinam,
gentium conuersionem, salutem generis humani constitutam,
opes, quibus erat afficiendi et cumulandi Hierosolymae
caelestis ciues, explanat omnemque Euangelii fecunditatem
suculentissimis uerbis exaggerat. In hanc igitur sententiam,
quod conceptum mente tenebat, aperit:
Cum imminent pericula et hostes exitium ferro et flamma
minitantur, tumultuose discurritur et uoces, maximi timoris
indices, uulgo iaciuntur, et passim ab omnibus nimis
sollicite trepidatur. At, cum est a bellis otium et animus a
sollicitudine conquiescit, nullae uoces ciuium audiuntur
quae dent aliquod timoris indicium. Itaque, ut clamores
metus significationem dant, ita silentium continet constantiae
atque tranquillitatis argumentum. Haec cum ita sint, nos
cuius praesidio silebimus? Cuius fiducia in rebus etiam
ualde metuendis, animi quiete perfruemur? Tua, Domine,
qui numquam Tuorum postulata repudias.
Ope igitur Tua fulti, a motibus turbulentis immunes sumus
laudesque Tuas in Sione celebramus, atque uota, quae magna
OPERA OMNIA TOMO IV 427

a perdição e morte contra um homem inocente: algo que, ao observarem


o juízo de Deus, abalará os homens com um extraordinário sentimento de
terror. É que todos os homens hão de ver que as tentativas e esforços dos
culpados redundaram em nada; contemplarão a queda e ruína daqueles
que maquinavam o crime; divulgarão a obra do Senhor, levada a cabo com
grande equidade e severidade; e, partindo da consideração das obras divinas,
compreenderão sabiamente o grande desvelo com que deve cultivar-se a
piedade e a justiça, e o grande ódio com que deve rechaçar-se a audácia
do pecado e da iniquidade. O justo há de alegrar-se com a glória de Deus;
depositará unicamente n'Ele toda a esperança de salvação; e hão de triunfar
jubilosamente todos os que possuem uma alma reta.

SALMO 64
(65 entre os Hebreus)
A Ti, ó Deus, Te são devidos os hinos em Sião.

Ordinariamente acontece que aqueles que se mostram religiosos na


adversidade, na prosperidade põem de lado o desvelo pela religiosidade:
algo que David julga que não deve fazer. É que, da mesma maneira que,
quando é cercado pelos perigos, confiadamente implora a ajuda do
Senhor, assim, livre dos perigos, se entrega a proclamar os louvores de
Deus e expõe a Sua misericórdia com palavras sobremaneira agradecidas
e lembradas. Ora, neste salmo, além dos agradecimentos que faz, expõe
os ensinamentos de Cristo, a conversão dos gentios, a salvação oferecida a
todo o género humano, as riquezas com que deveria cumular e prover os
cidadãos da celestial Jerusalém e encarece com mui apropriadas palavras
toda a fertilidade do Evangelho. Por conseguinte, no teor seguinte dá a
conhecer o que tinha concebido no seu entendimento:
Quando os perigos estão iminentes e os adversários ameaçam com a
morte a ferro e fogo, corre-se desordenadamente e o vulgo solta gritos
que denotam um profundíssimo medo, e por todos os lados grassa a
inquietação e um generalizado pânico. Mas, quando as guerras cessam e
as almas se aquietam dos cuidados, não se escutam quaisquer vozes dos
cidadãos que deem algum indício de temor. E por isso, assim como os
clamores dão a entender o medo, da mesma maneira o silêncio contém uma
prova de tranquilidade e firmeza. Sendo esta a verdade, sob a proteção de
quem nos emudeceremos? Confiantes em quem, numa situação também
assaz temerosa, gozaremos de quietação de espírito? Em Ti, Senhor, que
nunca rechaças os pedidos dos Teus.
Por conseguinte, apoiados na Tua ajuda, somos imunes a turbulentas
agitações e celebramos em Sião os Teus louvores, e com grande fé
428 D. JERÓNIMO OSÓRIO

cum spe fuerant nuncupata, magna cum fide persoluimus.


Neque enim opes tuae, clementissime Domine, qui pias preces
semper audis, promptae atque paratae sunt illis tantum qui
sunt Israelis satu editi et patris sancti uestigiis insistunt,
sed omnibus gentibus atque [300] nationibus quae eandem
fidem et religionem fuerint imitatae et Tibi orationes suas
sacrandas statuerint. Ex omnibus enim terrarum finibus multi
mortales ad Te, cum hostiis atque muneribus, adibunt.
Iniquitates quidem me pondere intolerabili depresserunt,
itaque neque ego neque quisquam alius poterat peccati
tyrannidi et immanitati repugnare, uerum Tu, omne quod
fuerat sceleribus nostris uiolatum, sanctissimis sacris expiabis
et omnia crimina nostra delebis. O beatum illum quem elegeris;
quem Euangelii disciplinis instruxeris; quem Tibi amore
deuinxeris, habitabit enim in atriis Tuis; explebitur bonis
domus Tuae; et sempiterni templi Tui sanctitatem participabit,
ut in ciuium Tuorum coetu cum eximia iucunditate uersetur.
O summe Domine, salutis nostrae Parens et Auctor, quam
horribilia iustitiae exempla in oculis nostris edidisti? Hostem
enim generis humani e solio suo detrusisti et profligatum in
fugam compulisti; peccata nostra in profundum demersisti,
ut animos nostros iustitiae muneribus amplissimis exornares,
et hoc tam diuinum beneficium non Hebraeorum tantum
nationi detulisti, sed omnes gentes, absque ullo generis aut
condicionis discrimine, ad illius communionem adsciuisti, ut
ita ad ultimas terras et maris extremi longinquitatem gratia
Tua perueniret, ut nulla esset natio tam a terminis nostris
disiuncta quae non hoc caelestis iustitiae munere frueretur.
His autem tantis bonis stabilitatem dabit is qui, inuicto robore
succinctus, montes firmat, qui profecto ruerent et in medium
maris impetu deferrentur, nisi Dei benignitate et prouidentia
corroborati fuissent.
Idem Dominus maris horribilem fremitum coercet et
immanes fluctus compescit, et populorum tumultus et
insanias comprimit ut, quamuis uel principum imperium uel
popularis amentia in homines sanctos insurgere conetur,
tandem comprimatur et illorum dignitati seruiat quos totis
uiribus impugnabat. Rebus et signis nimis admirandis
commoti, qui terrarum fines incolunt ueri Dei numen
uerebuntur et sic demum orientis et occidentis Solis
plagas tam insigni laetitia cumulabis ut omnes, spiritu Tuo
concitati, in clamores summae iucunditatis erumpant. Tu
OPERA OMNIA TOMO IV 429

cumprimos as promessas que foram feitas com grande esperança. Com


efeito, as Tuas riquezas, ó mui compassivo Senhor que sempre escutas
as piedosas rogativas, estão sempre prontas e ao dispor não apenas
daqueles que nasceram na linhagem de Israel e seguem as pisadas do
santo patriarca, mas de todos os povos e [300] nações que seguirem a
mesma fé e religião e determinarem consagrar-Te as suas orações. É que
de todos os confins da terra hão de dirigir-se para Ti muitos mortais,
levando presentes e sacrifícios.
É certo que as iniquidades pesaram sobre mim com um volume
intolerável, e por isso nem eu nem qualquer outra pessoa poderia
rechaçar a tirania e monstruosidade do pecado, mas Tu hás de expiar
com santíssimos sacrifícios tudo o que fora violado pelos nossos pecados
e hás de apagar todos os nossos crimes. Ó bem-aventurado aquele
que escolheres; a quem doutrinares com as ensinanças do Evangelho;
que a Ti ligares por amor, porquanto habitará nos Teus átrios; será
colmado com os bens da Tua morada; e participará da santidade do
Teu templo eterno, de modo a viver com singular contentamento na
comunidade dos Teus cidadãos. Ó supremo Senhor, Pai e Autor da
nossa salvação, quão assustadores exemplos de justiça puseste diante
dos nossos olhos? É que precipitaste do seu trono o inimigo do género
humano e desbaratado o obrigaste à fuga; enterraste nas profundezas
os nossos pecados, por forma a ornamentares as nossas almas com as
magníficas dádivas da justiça, e um benefício tão divino como este não
o ofereceste exclusivamente à raça dos Hebreus, mas aceitaste que dele
participassem todos os povos, sem qualquer discriminação de raça ou
condição, para que assim a Tua graça chegasse às derradeiras terras e
aos confins dos últimos mares, para que não existisse nação tão apartada
das nossas fronteiras que não gozasse da mercê da justiça celestial. Ora,
dará solidez a estes bens aquele que, cingido de invencível vigor, firma
as montanhas, que certamente desabariam e seriam arrastadas para o
meio do mar pelo ímpeto deste se não tivessem sido fortalecidas pela
bondade e providência de Deus.
O mesmo Senhor contém os terríveis rugidos do mar e reprime suas
monstruosas vagas, e refreia os tumultos e desatinos dos povos, de tal
maneira que, ainda que o poder dos príncipes ou a vesânia popular se
empenhem em atacar os homens santos, ao cabo são retidos e ficam ao
serviço da dignidade daqueles aos quais atacavam com todas as forças.
Impressionados com coisas e sinais assaz espantosos, os que habitam
os confins da terra hão de reverenciar o poder do Deus verdadeiro e
de tal maneira hás de encher de tão extraordinária alegria as regiões
do oriente e do ocidente que todos, impelidos pelo Teu espírito, hão
de irromper em clamores do mais cabal contentamento. Tu olharás para
430 D. JERÓNIMO OSÓRIO

terram benigne respicies; Tu illi, largis imbribus superne


demissis, fecunditatem induces; Tu eam frugum copia e
ubertate locupletabis; atque perficies ut ex seminibus iustiae
laetissimi fructus oriantur. Aquae ductus Domini, per quos
riui in sata deducuntur, mirifice redundabunt; gratiae Tuae
frumentum illis, qui ad Tuum nomen adiuncti sunt, large
suppeditabis, quandoquidem non alia est in uita fertilitas
nisi ea quam benignitate Tua constituis. Telluris sulcos
irrigas; glebas duras frangis; asperam terrae superficiem
imbribus emollis; germen illius, benignitate Tua, pullulare
compellis; totum annum uertentem bonis Tuis cumulas;
superni currus Tui pinguedinem perpetuo terris instillant.
Habitacula desertae et incultae telluris aquis perennibus
stillabunt; uirescent colles et laetissimis graminibus
accingentur. Vestientur campi gregibus; obducentur ualles
[301] frumento. Animi igitur tam culti et nitidi, tantis
gratiae diuinae frugibus redundantes et tam diuinis opibus
affluentes, exsultabunt diuinasque laudes perpetuo cantu
et symphonia celebrabunt.

Iubilate Deo omnis terra, psalmum dicite nomini Eius.


Psal. 65. Apud Heb. 66

Hoc carmine celebratur libertas, non illa qua populus


Hebraeus fuit a Babylonis dominatu liberatus, sed qua genus
humanum fuit per Christum e potestate daemonis ereptum.
Aliter enim non erat cur tantopere ciuitas uniuersa eo tempore
laetaretur, cum non omnino seruitutis iugum depulisset, adhuc
enim Persis seruiebat et praeterea libertatis illius species non
fuit ualde diuturna, nam, sub Graecorum imperium subiuncta,
multis ab illis incommodis et cruciatibus afflicta fuit; postremo
non erat peccati importuna tyrannide liberata. Qui autem
peccatum facit, seruus est peccati. Adhuc igitur Iudaeorum
res publica in seruitute miserrima uersabatur, quamuis sibi
libertatis inani nomine blandiretur. Postremo, cur omnes
gentes ad laetitiae summae societatem et communionem
uocarentur, cum illa assimulata libertas ad gentium fructum
minime pertineret? At in hoc carmine cernimus uniuersas
terras ad gaudium participandum maximis uocibus excitari.
Vnde colligitur, hanc libertatem, quam Dauid hoc in loco
OPERA OMNIA TOMO IV 431

a terra com bondade; Tu, com copiosas chuvas do céu caídas, hás de
trazer-lhe a fecundidade; Tu hás de enchê-la com colheitas e searas
copiosas e fartas; e hás de fazer que das sementes da justiça nasçam mui
abundantes frutos de justiça. Os aquedutos do Senhor, através dos quais
os regatos são conduzidos para as sementeiras, hão de transbordar de
modo maravilhoso; largamente fornecerás o cereal da Tua graça àqueles
que se arrolaram nas Tuas hostes, visto que na vida não existe outra
fecundidade senão aquela que fazes depender da Tua bondade. Regas
os sulcos da terra; desfazes os duros torrões; amolentas com a água das
chuvas a dura superfície da terra; com a Tua bondade, obrigas que as
sementes se desentranhem em rebentos; ao longo do ano inteiro a enches
com os Teus bens; os Teus carros celestiais incessantemente destilam
gordura na terra. As moradas da terra erma e sáfara hão de ressumar
águas perenes; os oiteiros hão de cobrir-se de verdura e cingir-se com
abundantíssima relva. Os campos vestir-se-ão de rebanhos; os vales
cobrir-se-ão de cereal. [301] Por conseguinte, as almas, tão nutridas
e cultivadas, colmadas com tão grandes frutos da graça de Deus e
tão abundantes de riquezas divinas, hão de exultar e com incessantes
cânticos e harmonias celebrarão os louvores de Deus.

SALMO 65
(66 entre os Hebreus)
Celebrai a Deus todos os da terra, dizei salmo ao Seu nome.

Neste salmo celebra-se a liberdade, não aquela pela qual o povo


hebreu foi libertado do domínio da Babilónia, mas aquela pela qual
o género humano foi arrancado por Cristo do poder do demónio.
É que de outro modo não havia motivo por que a cidade inteira se
regozijasse tanto naquele tempo, uma vez que não tinha rechaçado
completamente o jugo da servidão, pois ainda estava sob o poder dos
persas e além disso a aparência daquela liberdade não durou muito
tempo, porquanto, subjugada pelo domínio dos gregos, foi atribulada
por muitas incomodidades e provações; por derradeiro, não tinha
sido libertada da cruel tirania do pecado. Ora, quem comete pecado
é servo do pecado. Por conseguinte, a nação dos judeus vivia ainda
em lastimável servidão, embora se lisonjeasse a si mesma com o vão
nome de liberdade. Finalmente, por que motivo seriam chamados
todos os povos à comunhão e participação da suma alegria, se aquela
fictícia liberdade não tinha por fim beneficiar os gentios? Mas neste
salmo vemos que a terra inteira é incitada com as mais alevantadas
vozes a partilhar da alegria. Daqui se colige que esta liberdade que
432 D. JERÓNIMO OSÓRIO

celebrat, eam esse quam Christus humano generi uniuerso,


sine ullo discrimine, contulit. Angustos igitur Iudaeorum
sensus contemnentes, Christi famulum fidelissimum et diuinae
mentis interpretem sapientissimum audiamus, omnibus
hominibus, populis, regnis, nationibus de communi salute
gratulantem et liberatoris nostri laudes harmonia iucundissima
concinentem. Ait enim:
O gentes uniuersae quae orbem terrarum colitis, animis
exsultate; dies festos agitate; maximis uocibus Dei laudes
canite. Canite, inquam, gloriam nominis Eius neque uobis
ipsis, sed Illius gratiae et benignitati gloriam et laudem
tribuite. In opera diuina aciem mentis intendite et admiramini
atque dicite Illi: Quam horribilis et metuenda est Tuae
uirtutis amplitudo! Vi namque roboris Tui factum est ut
capitales hostes nominis Tui, qui cum lege Tua continenter
bellum gerebant, fidem datam dominis, quibus libentissime
seruiebant, fallerent, et ad Te transirent, ut sub imperio Tuo
militarent omnemque uitam in cultu nominis Tui consumerent.
A libidine defecerunt; a uoluptate noxia profugerunt;
principum scelerata imperia contempserunt, ut Tibi soli
seruirent; Te solum metuerent; Te amore summo diligerent
et pro nominis Tui gloria nulla pericula recusarent. Non
Iudaei tantum, in studio legis enutriti et oraculis prophetarum
ad spem salutis erecti, sed gentes uniuersae, diuinae legis
ignarae, sceleribus infinitis affines, sacris exsecrandis
alligatae, ad Te subito conuersae, Tuum nomen adorabunt;
Te perpetuo [302] cantabunt; nomini Tuo, carminibus egregie
modulatis, laudes consecrabunt. O rem nimis admirandam!
Gentes flagitiis infames, dominatu cupiditatis oppressas,
falsa et infanda religione corruptas, morbis insanabilibus
impeditas, sic ad cupiditatem uerissimae religionis exarsisse
ut nullis neque minis neque cruciamentis potuerint a sui
liberatoris coniunctione diuelli! Sic immutatam fuisse in multis
generis humani naturam ut crucem uoluptatibus, contumelias
honoribus, mortem uitae praetulerint!
Venite omnes et uidete opera Domini et considerate quam
stupenda sunt Illius studia in hominum salute procuranda!
Mare dissecuit ita ut, partibus utrimque ui magna coercitis,
in profundo gurgite arida terrae facies appareret, per quam
Hebraei uiam inirent et Aegyptiorum manus effugerent qui,
cum Hebraeos per eandem uiam insequi uellent, fluctibus
rursus in suum locum reductis, obruti sunt. Similiter in
OPERA OMNIA TOMO IV 433

neste lugar David celebra é aquela que Cristo ofecereu a todo o género
humano sem qualquer distinção. Portanto, votando ao desprezo as
interpretações estreitas dos judeus, escutemos o fidelíssimo servidor
de Cristo e sapientíssimo intérprete dos desígnios divinos, felicitando
a todos os homens, povos, reinos e raças pela salvação geral e com
agradabilíssima melodia cantando os louvores do nosso libertador.
Com efeito, diz:
Ó vós, povos todos que habitais a terra, regozijai-vos; celebrai
um dia de festa; entoai loas a Deus com as mais alevantadas vozes.
Repito: cantai a glória do Seu nome e atribuí à Sua graça e bondade a
glória e o louvor, e não a vós mesmos. Aplicai à obra de Deus a vossa
penetração intelectual e admirai-a e dizei-Lhe: Quão terrível e temível
é a Tua grande virtude! Com efeito, com a força do Teu vigor sucedeu
que os inimigos capitais do Teu nome, que incessantemente travavam
guerra com a Tua lei, faltavam à palavra dada aos senhores, aos quais de
muito bom grado serviam, e passavam para Ti, a fim de militarem sob
as Tuas ordens e consumirem a existência inteira na adoração do Teu
nome. Apartaram-se da sensualidade; fugiram das nocivas deleitações;
desprezaram os criminosos mandados dos príncipes, a fim de Te
servirem exclusivamente a Ti; só de Ti sentirem receio; amarem-Te a
Ti com o maior dos amores e não se recusarem a nenhuns perigos a
bem da glória do Teu nome. Hão de adorar o Teu nome, não apenas
os judeus, criados no zelo da lei e estimulados pelos oráculos dos
profetas à esperança da salvação, mas todos os povos, desconhecedores
da lei divina, culpados de crimes infinitos e dedicados a abomináveis
cultos, subitamente a Ti convertidos, hão de adorar o Teu nome; hão
de cantar-Te sem cessar; [302] com cantos singularmente entoados,
hão consagrar loas ao Teu nome. Oh cousa sobremaneira espantosa!
Que povos infames pelas suas torpezas, senhoreados pela tirania da
cobiça, envilecidos por religiões falsas e abomináveis, enleados por
doenças incuráveis, de tal maneira se tenham abrasado no desejo da
mais verdadeira religião que nenhumas ameaças ou torturas os tenham
podido desviar da união com o seu libertador! Que de tal maneira se
tenha transformado em muitos a natureza humana que tenham preferido
a cruz aos prazeres, os insultos às honrarias e a morte à vida!
Vinde todos e vede as obras do Senhor e observai como são espantosos
os Seus desvelos para se ocupar com a salvação dos homens! Secou o mar
de tal maneira que, contendo as águas com grande força de uma parte
e da outra, no seu fundo se mostrava a superfície da terra seca, para
através dela os hebreus seguirem o seu caminho e escaparem das mãos
dos egípcios, os quais, ao quererem seguir pelo mesmo caminho, foram
engolidos pelas ondas, ao voltarem as águas ao seu primitivo lugar. Do
434 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Iordane uiam aperuit, qua fideles homines, sicco pede,


cum summa iucunditate traiicerent. Quibus quidem ostentis
declaratum fuit nihil fore quod pietatis et iustitiae cursum
impediret. Occurrat mare; exsurgat fluctus; opponantur
flumina; et omnia denique bellorum pericula capitibus
eorum, qui pietati operam nauant, immineant: nihil erit
tantis molibus obstructum quod non facile disturbent;
nihil tantis machinis interclusum quod non inuicta uirtute
perrumpant, usque eo dum, quo tendunt, cum gloria
summa perueniant. Ducem enim et imperatorem habent
mundi totius Dominatorem qui omnia summo imperio
et uirtute complectitur, cuius oculi gentibus adiecti sunt
ut eas a peste sempiterna seducat ornamentisque diuinis
afficiat. Qui uero imperium Domini recusauerint et religioni
sanctissimae aduersati fuerint, de statu suo concident et
funditus interibunt.
O iudicium Domini in omni memoria praedicandum,
quanta seueritate eos exscindit qui sunt sanctissimis iustitiae
disciplinis infesti! O populi qui hucusque fuistis hospites
et peregrini, nunc uero iura ciuitatis sempiternae retinetis:
Deum nostrum, qui uos tantis muneribus ornauit, celebrate,
atque perficite ut uox uestra, quae laudes Eius contineat,
ubique circumsonet. Animis enim nostris uitam dat et tam
firmo praesidio statum nostrum, fide nixum, corroborat ut
non facile labi possint pedes nostri, sed in uestigio firmi
permaneant. Hoc autem maxime in rebus nimis aduersis
perspicitur. Cum enim cuncta ex animi sententia contingunt,
exigua laus est fidem tueri. Illud demum est magni et excelsi
animi in summis malorum omnium tempestatibus atque
procellis constantiam retinere nec a recta mente, ullis hostium
conatibus, dimoueri. At Tu, Domine, nos, ut fidem nostram
exerceres, multis laboribus attriuisti et, perinde atque conflatura
purgatur argentum, nos compluribus incommodis afflixisti;
in perditorum hominum laqueos induxisti; lumbos nostros
grauissimis oneribus oppressisti; tyrannos immanes capitibus
nostris imposuisti; aquam profundam saepe traiecimus; per
omnes flammas currere coacti sumus; omnibus denique
acerbitatibus circumsessi fuimus; [303] atque tandem, gratia
Tua, ex omnibus his malis emersi, in animi requietem et
oblectamentum inducti sumus.
Ingrediar in domum Tuam, Domine, cum holocaustis, hoc est,
cum animo uehementissimi amoris ardoribus inflammato ut, uoti
OPERA OMNIA TOMO IV 435

mesmo modo abriu-lhes através do Jordão caminho, para que por ele os
homens fiéis pudessem com enorme contentamento atravessar a pé seco.
Ora, com estes prodígios demonstrou-se que não haverá nada que impeça
o caminho da piedade e da justiça. Que o mar se oponha; que as vagas
se levantem; que os rios se ponham por diante; e, por derradeiro, que
todos as contrariedades das guerras ameacem com perigos as cabeças
dos que estão ao serviço da piedade: não existirá nada impedido com tão
grandes obstáculos que eles facilmente não derrubem; nada protegido
com tão grandes armamentos e defensas que eles não levem de rojo com
invencível fortaleza, até chegarem, com a mais cabal glória, ao lugar para
onde se dirigem. É que têm como guia e general o Senhor do mundo
inteiro que tudo abarca com Seu poder e fortaleza supremos, que lançou
os olhos sobre os povos para desviá-los da eterna perdição e os ornar
com divinos atavios. Mas os que recusarem o senhorio de Deus e se
opuserem à santíssima religião, hão de cair das suas posições e hão de
totalmente perecer.
Oh juízo do Senhor, que merece ser exalçado em todos os tempos,
com quão grande rigor aniquila aqueles que são hostis aos santíssimos
ensinamentos da justiça! Ó povos que até aqui fostes hóspedes e
estrangeiros, mas agora já gozais do direito de cidadãos da cidade
sempiterna: celebrai o nosso Deus, que vos ornou com tão grandes
dádivas, e fazei que a vossa voz, que contém os Seus louvores, ressoe
por toda a par te. É que Ele dá vida às nossas almas e for talece
com tão firme ajuda a nossa posição, que se apoia na fé, que não é
fácil que os nossos pés possam resvalar, mas antes assentam firmes
no caminho. Ora, isto vê-se sobretudo nas grandes adversidades.
Com efeito, quando tudo acontece de acordo com os desejos da
alma, é escasso merecimento respeitar a fé. É próprio de uma alma
grande e superior conservar a firmeza nas maiores adversidades e
contratempos e não deixar que os ataques dos inimigos a apartem
da retidão de juízo. Mas Tu, Senhor, a fim de pores à prova a nossa
fé, atribulaste-nos com muitos trabalhos e, assim como a prata se
apura com o fogo, afligiste-nos com inúmeras provações; fizeste-
nos cair nas ciladas dos homens per versos; oprimiste as nossas
espáduas com pesadíssimos fardos; impuseste às nossas cabeças o
jugo de crudelíssimos tiranos; atravessámos muitas vezes profundas
águas; fomos obrigados a correr através de toda a espécie de fogos;
finalmente, fomos cercados por todas as calamidades [303] e, ao cabo,
pela Tua graça, libertos de todos estes males, fomos introduzidos na
quietação e prazer de espírito.
Entrarei na Tua casa, Senhor, com holocaustos, isto é, com a
alma abrasada nas chamas de um vivíssimo amor, a fim de cumprir
436 D. JERÓNIMO OSÓRIO

damnatus, munera promissa dissoluam fidemque meam cum


debita religione liberem. Cum enim essem in summas angustias
adductus, oratione mea uota sanctisime uoui uerbisque meis
animum meum religione constrinxi quam absque scelere
nefario et impuro neglegere non possum. Holocausta opimarum
hostiarum offeram Tibi; arietum sanguinem ad altare fundam;
renes atque iecur sacris flammis adolebo; boues cum hircis
immolabo. O summae maiestatis amplitudinem, quam parum a
nobis huiusmodi sacrificia requiris, sed ea tantum flagitas quae
sacris istis obscure designantur. Exigis amoris incendium; exigis
uitae puritatem; exigis oboedientiae sanctitatem; interitum
nequitiae concupiscis; non pecudum sanguine placaris, sed
Agni illius immaculati sanguine, pro generis humani salute
profuso, iram remittis. Omnes, qui Deum timetis, accedite, et
explicabo uobis quanta beneficia Is in animam meam contulerit.
Opem Illius oris mei summis clamoribus imploraui; et, cum
mihi opem, ut flagitaueram, intulisset, lingua, ut laudes illius
in caelum efferrem, enixus sum. Vobis hoc exemplum illius
summae benignitatis propositum esse uolui ne umquam
animis concidatis, sed in omnibus calamitosis temporibus, cum
summa fide, manus in caelum intendatis ut auxilium ab Illo
summo Domino, qui numquam humilium preces aspernatur,
consequamini.
Hoc tamen uos admonitos esse uolo, ut, si uultis exaudiri,
iniquitatem detestemini; iustitiam, quantum in uobis fuerit,
amplexemini; et iniurias omnes acerrimo odio persequamini.
Cum enim Deus odio summo persequatur iniquitatem, fieri
nullo modo poterit ut illis aliquid amoris et benignitatis
impertiat qui crimine iniquitatis alligati sunt. Etenim, quamdiu
ad Deum supplex accedo, hoc in primis excogito, ut omnem
iniquitatis labem a me longissime repellam, cum certum
habeam meam orationem minime Deo gratam fore quamdiu
aliquid iniquum et iniustum mente et cogitatione designauero.
At Dominus exaudiuit me atque uoci precationis meae aures
satis attentas praebuit. Nomen Domini in omni saeculorum
aeternitate laudibus summis ab omnibus efferatur, qui me
orationis fructu non destituit neque misericordiam a me
remouit, sed opibus Illius animam meam egregiecumulauit.
OPERA OMNIA TOMO IV 437

c o m o s p r e s e n t e s p r o m e t i d o s o s vo t o s f e i t o s e c o m o d e v i d o
escrúpulo desonerar a minha palavra. É que, encontrando-me nas
maiores dif iculdades, f iz santíssima promessa e com as minhas
palavr as comprometi a minha alma por um jur amento que não
posso desprezar sem sacrílego e impuro crime. Oferecer-Te-ei um
holocausto de ricas vítimas sacrificiais; derramarei sobre o altar o
sangue dos carneiros; queimarei nas sagradas chamas rins e fígado;
imolarei bois juntamente com bodes. Ó grandiosidade da suprema
majestade, de nós não reclamas esta sorte de sacrifícios, mas pedes-
nos somente aqueles que são obscuramente significados por esses
rituais. Exiges as chamas do amor; exiges a castidade de vida; exiges
a santa obediência; vivamente desejas a morte da perversão; não
Te aplacas com o sangue das reses, mas pões termo à Tua ira com
o sangue daquele Cordeiro imaculado, derramado pela salvação
do género humano. Aproximai-vos, todos os que temeis a Deus, e
expor-vos-ei os grandes benefícios que Ele concedeu à minha alma.
Com elevadíssimos brados implorei a Sua ajuda; e, uma vez que me
deu a ajuda tal como eu lha pedira, emprego a língua para levantar
aos céus os Seus louvores. Eu quis pôr diante dos vossos olhos este
exemplo daquela suprema bondade para que vós jamais fraquejeis,
mas em todas as situações dificultosas com a máxima fé ergais as
mãos para o céu a fim de obterdes auxílio d' Aquele supremo Senhor
que nunca despreza os rogos dos humildes.
Todavia, quero que estejais avisados do seguinte: se pretendeis ser
escutados, abominai a iniquidade; abraçai a justiça, o mais que vos for
possível; e com impiedosa sanha aborrecei a injustiça. É que, uma vez que
Deus sente o máximo ódio pela iniquidade, será totalmente impossível que
reparta algo de amor e bondade com aqueles que se tornaram culpados
do crime de iniquidade. Com efeito, ao aproximar-me de Deus em atitude
suplicante, antes de mais penso em repelir para muitíssimo longe de mim
toda a mancha de iniquidade, uma vez que tenho a certeza de que a
minha oração não será agradável a Deus enquanto no meu íntimo nutrir
algum pensamento iníquo e injusto. O Senhor, porém, escutou-me e
prestou grande atenção à voz da minha rogativa. Que o nome do Senhor
seja por todos exalçado com os mais altos louvores ao longo de toda a
eternidade dos tempos, Ele que não me privou do fruto da oração nem
desviou de mim a misericórdia, mas de modo extraordinário encheu a
minha alma com as Suas riquezas.
438 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Deus misereatur nostri et benedicat nobis, etc.


Psal. 66. Apud Heb. 67

Conuersionem gentium praedixit Dauid; improborum odia


et immanitates exposuit; dolores, qui erant illis hauriendi qui
Christianam disciplinam profitentur, explanauit; Euangelii
[304] uictoriam luculentissime persecutus est; et caelestis
doctrinae celeritatem, quae ultimos terrarum fines peruagata
est, minime praetermisit. Verum, cum Iudaeos maxima ex
parte tardiores esse uideret ad tantum beneficium gratis
animis accipiendum, sub uniuersi populi persona, Deum
obsecrat ut Iudaeos eodem splendore lucis diuinae collustret
quo gentes illustrauerat. Ait igitur:
Deus misereatur nostri et ne patiatur nos diutius somno
torpescere et mentis caecitate damnari. Promisit Ille quidem
patribus nostris ut ex illorum semine proueniret qui genus
humanum dira exsecratione deuinctum liberaret et omnibus
nationibus benediceret, hoc est, eas bonis summis atque
sempiternis expleret. Hoc igitur precamur ut nobis benedicat
neque patiatur filios sanctorum patrum fieri promissae
felicitatis expertes. Id autem fiet si mentis nostrae tenebras
dispulerit animisque nostris gratiae Suae lumen porrexerit,
ut mysteria quae in lege Diuina latent puris oculis intueri
et Patris gloriam contemplari possimus. O diuinae mentis
altitudo, quam mirabiles opes sapientiae et benignitatis antiqui
foederis integumentis occuluntur! Hoc tandem uelamine
detracto, uidebimus et admirabimur, et gentes ipsas quae
antea nos aemulatione pungebant, quodammodo prolapsas,
excitabimus; terram (ut in principio nostri generis principes
effecerunt) doctrina pietatis illustrabimus; omnibusque
gentibus uiam Tuam monstrabimus, ut omnes a Te salutem
consequantur. Laudabunt Te populi omnes. Nec erit tunc ulla
natio quae Tuum detrectet imperium.
Credentes autem populi et fide uitam moderantes,
inexplicabili gaudio et laetitia triumphabunt, quoniam iudicabis
populos aequitate mirabili et in terra Te ducem praebebis,
ut omnes in gloriam immortalem clementissime perducas. O
admirandum benignitatis immensae testimonium! Summus ipse
Deus, summique Patris imago, ut salutare iudicium exerceat,
in terris uersabitur; in humana specie latebit; animos humanos
impuritatis arguet; amentiae conuincet; peccata damnabit;
OPERA OMNIA TOMO IV 439

SALMO 66
(67 entre os Hebreus)
Deus tenha piedade de nós e nos abençoe, etc.

David profetizou a conversão dos gentios; expôs os ódios e


crueldades dos perversos; deu a conhecer as dores que deveriam
sofrer os que professam a religião cristã; com grandíssima perfeição
narrou a vitória do Evangelho; [304] e não deixou de lado a rapidez
com que a doutrina celestial se divulgou pelos últimos confins da
terra. Mas, ao ver que os judeus na sua maioria se mostraram mais
tardos em acolher com gratidão um tão grande benefício, assumindo
o papel de todo o povo, suplica a Deus que ilumine os judeus com o
mesmo esplendor de luz divina com que tinha iluminado os gentios.
Diz portanto:
Que Deus tenha piedade de nós e não tolere que nós fiquemos
entorpecidos pelo sono durante muito mais tempo e sejamos condenados
pela cegueira de entendimento. Certamente que Ele prometeu aos nossos
antepassados que da semente deles haveria de provir aquele que libertaria
o género humano atado por terrível maldição e abençoaria todos os povos,
isto é, enchê-los-ia dos mais elevados e eternos bens. Por conseguinte,
rogamos-Lhe que nos abençoe e que não permita que os descendentes
dos santos patriarcas fiquem privados da prometida bem-aventurança. Ora,
tal bênção alcançar-se-á se dispersar as trevas do nosso entendimento e
oferecer às nossas almas a luz da Sua graça, para que possamos fitar com
olhos puros os mistérios que se escondem na lei divina e contemplar a
glória do Pai. Oh profundidade do entendimento divino, quão admiráveis
riquezas de sabedoria e bondade se ocultam sob as coberturas do antigo
pacto! Retirado enfim esse cendal, veremos e admiraremos, e aos próprios
povos que anteriormente nos mortificavam por inveja, de uma certa
maneira prostrados, havemos de incitá-los; iluminaremos a terra (como
no começo fizeram os iniciadores da nossa raça) com os ensinamentos
da piedade; e mostraremos a todas as nações o Teu caminho, para que
todos obtenham de Ti a salvação. Todos os povos Te hão de louvar. E
não existirá então povo algum que rejeite o Teu domínio.
Por outro lado, os povos que crêem e cuja vida é governada pela
fé, hão de triunfar com inefável contentamento e alegria, porquanto
julgarás os povos com espantosa equidade e apresentar-Te-ás na terra
como guia para a todos mui compassivamente conduzires para a glória
imortal. Oh admirável testemunho de imensa bondade! O próprio supremo
Deus, imagem do Pai supremo, há de morar na terra a fim de exercer
o salutar juízo; esconder-se-á sob uma aparência humana; acusará de
impureza as almas dos homens; provar-lhes-á a sua loucura; condenará
440 D. JERÓNIMO OSÓRIO

iustitiam constituet; ut homines, a tenebris ad lucem traducti,


suam miseriam simul cum clementia diuina perspiciant; ut
pristinas sordes odio persequantur seque totos ad ductum
et imperium summi Imperatoris adiungant. Laudabunt Te
populi, Domine; laudabunt Te populi omnes. Nec erit ulla
natio quae Tuum detrectet imperium. Terra enim germinabit
diuinumque fructum proferet; et mortales oculi Dei filium
humana forma uestitum intuebuntur. Tunc numen immensum
atque sempiternum, unum et idem natura, personarum ratione
distinctum, omnibus gentibus innotescet. Benedicat nobis
Deus Pater, a quo cuncta bona proueniunt; benedicat et
Filius, per quem omnia fiunt; benedicat et Spiritus sanctus,
cuius gratia et benignitate omnia diuina munera continentur;
omnesque terrae fines Deum metuant et ament et in gratia
Illius acquiescant.

[305]

Exsurgat Deus et dissipentur inimici eius.


Psal. 67. Apud Heb. 68

Res priscis temporibus diuino praesidio gestae futuras


adumbrabant et idcirco prophetae, quotiens in memoriam
antiquitatis incurrunt futurumque beneficium, opera Christi
conferendum, portendunt, ad Christum repente tota mente
rapiuntur; illius clementiam atque uirtutem admirantur;
et consideratione tantae dignitatis, quantam per illum
consecuti sumus, exsultant. At, quid clarius opera nostrae
salutis expresserit quam illud Hebraeorum iter, quo ex
Aegypti finibus demigrarunt, ut ,numinis ductu, terram,
sibi a Deo promissam, peterent, haud facile reperitur.
Omnes enim qui caelum petunt, in uia sunt, et, a potestate
immanissimae tyrannidis egressi, eo contendunt quo
diuini Spiritus admonitu diriguntur. Multa tamen obstant,
quemadmodum et olim multa Hebraeos, exire ex Aegypto
cupientes, impediebant. Pharao tunc gentem ui summa
retinebat: hic Satanas exitum maximis conatibus intercludit;
uerum, quemadmodum olim omnia impedimenta Dei
praesentis ope sublata sunt, ita et nunc omnes hostium
conatus Christi auxilio franguntur. Tunc Aegypti imperium
fuit multis plagis afflictum; nunc uero pietatis inimici multis
OPERA OMNIA TOMO IV 441

os pecados; estabelecerá a justiça: a fim de que os homens, trazidos das


trevas para a luz, possam enxergar a sua miséria ao mesmo tempo que
a misericórdia de Deus; a fim de que passem a odiar a sua primitiva
sujidade e inteiramente se ponham sob a direção e mando do supremo
general e Senhor. Os povos hão de louvar-Te, Senhor; hão de louvar-Te
todos os povos. E não existirá povo algum que rejeite o Teu domínio. É
que a terra germinará e há de produzir o fruto divino; e os olhos mortais
hão de contemplar vestido sob forma humana o Filho de Deus. Então há
de tornar-se conhecida por todos os povos a divindade imensa e eterna,
uma só e a mesma quanto à natureza, mas diversa quanto às pessoas. Que
nos abençoe o Deus Pai, de quem provém tudo quanto é bom; que nos
abençoe também o Filho, por quem todas as coisas são feitas; abençoe-
nos igualmente o Espírito Santo, em cuja graça e bondade se encerram
todas as mercês divinas; e que todos os confins da terra temam e amem
a Deus e descansem na Sua graça.

[305]

SALMO 67
(68 entre os Hebreus)
Levante-se Deus e sejam dispersos os Seus inimigos.

As coisas realizadas nos tempos de antanho mediante ajuda divina


bosquejavam as que haveriam de acontecer e por isso os profetas, sempre
que se lançam à narração da antiguidade e vaticinam um futuro benefício que
há de ser oferecido por obra de Cristo, são de repente arrebatados com todo
o espírito até Cristo; olham com admiração para a misericórdia e virtude de
Cristo; e exultam ao ponderarem a grande dignidade que obtivemos através
dele. Mas dificilmente se encontra algo que mais brilhantemente expresse a
obra da nossa salvação do que aquela marcha dos hebreus, mediante a qual,
emigrando do Egito, tendo a divindade como guia, se dirigiam para a terra
que Deus lhes prometera. Com efeito, todos os que se dirigem para o céu,
estão num caminho e, tendo escapado do poder de uma crudelíssima tirania,
esforçam-se por ser encaminhados para onde os dirigem os conselhos do
Espírito de Deus. Existem todavia muitos impedimentos, tal como também
outrora muitas coisas empeçavam os hebreus, desejosos de saírem do
Egito. Então o faraó com a máxima violência retinha aquele povo: agora
é Satanás quem impede a partida com os mais violentos esforços; mas, da
mesma maneira que outrora todos os impedimentos foram superados com
a eficaz ajuda de Deus, também do mesmo modo agora todos os intentos
dos inimigos são destruídos mediante o auxílio de Cristo. Então o império
egípcio foi atribulado por muitas pragas; mas hoje os adversários da piedade
442 D. JERÓNIMO OSÓRIO

uulneribus sauciati. Tunc Pharao cum uniuerso exercitu in


profundo demersus est; nunc mundi princeps, cum peccatis
omnibus, taeterrimae mortis uoragine consumptus. Moses
tunc itineris dux erat; nunc Christi spiritus in uiam deducit.
Quid referam panem e caelo demissum? Aquam e saxo
durissimo ictu uirgae unius eductam? Legem in lapideas
tabulas Dei ipsius manibus incisam?
Num est obscurum per haec omnia Christi munera et
beneficia designata fuisse? Ille namque est uerus panis, e
caelo delapsus, ut mundum, impetu mortis abiectum, uera
atque sempiterna uita reficeret; gratia illius est aqua salutaris
quae sitim restinguit et animum de uia defessum mirifice
recreat; ille legem aeternam in cordibus humanis inscribit, ut
de illa noctes et dies cogitent nec ab illius studio ulla ratione
seiungamur. Sed, quid plura persequar, cum constet omnem
illam uiam mysteriis admirabilibus redundasse? Ergo Dauid,
cum de Christo clarissimam orationem institueret atque uideret
illius peregrinationem fuisse antiqua peregrinatione luculenter
assimullatam, ita praeterita futuris intexit et cum diuinis
humana coniungit ut doceat ex humanis rebus similitudines
assumere, quibus facilius diuinarum cognitionem capiamus.
Illud autem intellegendum est tanta cura et uigilantia Deum
eos quos in fidem recepit tueri ut nullatenus ab eorum
custodia discedat et, ea de causa, cum illi peregrinantur,
Deus ipse peregrinari dicitur; cum quiescunt, quiescere; cum
pugnant, proeliari; cum denique nihil sine ope Illius moliri
audeant, omnia quae cogitant, quae designant, quae moliuntur
et faciunt [306] ad Deum iure atque merito referuntur.
Hac autem de causa Deus dicitur peregrinari, castrametari,
antecedere, subsequi et alia multa quibus significatur actiones
Illius a Suorum salute non fuisse disiunctas. Huius autem
carminis sensus huc in summa refertur: ut uir diuinus
Deum oret ut omnia quae fuerunt olim figuris et imaginibus
praenuntiata, per Christum, rebus uerissimis et maxime
admirandis, perficiantur: nempe, ut hostes sempiternos
exterreat; ut suos hostium spoliis locupletet; lapsos reficiat;
et in sedibus tandem quietis, hoc est, in iustitiae fructu,
constituat. Ait igitur:
Cum Israel olim ab Aegyptiis intolerabili dominatu
premeretur et diutissime tributis immanibus et operis nullum
exitum habentibus et filiorum infantium nece uexaretur,
Deus dormire et in sceleribus impiorum hominum conniuere
OPERA OMNIA TOMO IV 443

são feridos com muitos golpes. Então o faraó foi engolido juntamente com
todo o exército pelos profundezas do mar; agora o príncipe do mundo
foi devorado, juntamente com todos os pecados, pela voragem de uma
horribilíssima morte. Então Moisés era o guia da marcha; agora o espírito
de Cristo é quem mostra o caminho. Que direi acerca do pão caído do
céu? Da água extraída de duríssima fraga com um golpe do bordão? Da lei
gravada em tábuas de pedra pelas mãos do próprio Deus?
Acaso padece dúvidas de que mediante estas coisas se figuraram todas
as mercês e benefícios de Cristo? Com efeito, ele é o verdadeiro pão caído
do céu para restaurar com a vida verdadeira e eterna o mundo, abatido
pela arremetida da morte; a sua graça é a água salutar que extingue a sede
e maravilhosamente refaz a alma fatigada com o caminho; ele grava a lei
eterna nos corações humanos, para que nela pensem dia e noite e nunca
por razão alguma deixemos de zelá-la. Mas, para que hei de falar mais,
quando é manifesto que toda aquela marcha está repleta de espantosos
mistérios? Portanto, David, tendo-se proposto um brilhante discurso acerca
de Cristo e vendo que a peregrinação dele foi admiravelmente similar à
antiga marcha, entreteceu de tal maneira os acontecimentos passados com
os futuros e uniu as coisas humanas com as divinas que ensina a tomar
das coisas humanas semelhanças mediante as quais possamos entender
mais facilmente as divinas. Por outro lado, cumpre que se entenda que
Deus defende com tamanho cuidado e desvelo aqueles que acolhe sob a
Sua proteção que de modo algum deixa de defendê-los e, por esse motivo,
quando eles viajam, diz-se que o próprio Deus viaja; quando descansam,
que Ele descansa; quando pelejam, que peleja; finalmente, uma vez que
não se atrevem a empreender seja o que for sem a Sua ajuda, tudo o que
pensam, projetam, empreendem e fazem [306] com toda a razão e justiça
é referido a Deus. Ora, por este motivo se diz que Deus viaja, assenta
arraiais, vai à frente, vai atrás e outras muitas expressões com as quais
se pretende significar que as Suas ações não se separam da salvação dos
Seus. Ora, o sentido deste salmo resume-se no seguinte: o santo varão
pede a Deus que tudo quanto outrora fora prenunciado mediante figuras
e imagens seja levado à prática por Cristo, mediante factos totalmente
verdadeiros e sobremaneira admiráveis: como é óbvio, para aterrar os
eternos inimigos; para enriquecer os seus com os despojos dos adversários;
para alentar os caídos, e estabelecê-los ao cabo em moradas tranquilas,
isto é, no fruto da justiça. Diz portanto:
Tendo sido outrora Israel oprimido pelos Egípcios com uma insuportável
tirania, e durante muitíssimo tempo vexado por tributos pesadíssimos e
por trabalhos que não tinham fim e pela matança dos seus filhos recém-
nascidos, parecia que Deus dormia e fechava os olhos para os crimes dos
homens ímpios, sendo certo que entretanto Ele não votava a descaso a
444 D. JERÓNIMO OSÓRIO

uidebatur, cum interim Ille res suorum minime neglegeret.


Itaque, cum fuit opportunum, exsurrexit, ut hostes plagis
multis affligeret et Israelem in libertatem uindicaret.
Hoc autem multo clarius fiet cum tempus ipsius ueritatis
expressae signis admirandis aduenerit. Exsurget enim Deus;
hostes Illius sempiterni dissipabuntur; et omnes qui Illum
odio habent, ne uultum irati subeant, se in fugam repente
dabunt. Quemadmodum fumus a uento dispellitur, dispelles
eos, Domine, et ut cera, prope ignem liquefacta, diffunditur,
sic impii, aduentu diuinae maiestatis, interibunt. Iusti uero
laetabuntur in aduentu Domini et exsultabunt et, animis
incredibiliter exhilaratis, in uoluptate summa uersabuntur.
Id enim quod ardenter optauerant, quod uehementer a
Deo contenderant, quod ab exordio generis humani omnes
sancti homines uidere concupierant, oculis suis adspicient.
Canite Domino; nomen Illius hymnis et canticis celebrate;
munite uiam Illi qui, ut olim, cum Israel Arabiae deserta
peragrabat, ipse praecedebat, sic nunc per uastam mundi
huius solitudinem uehitur. Nam, quamuis diuinitas Illius
in humana forma et specie delitescat, uerus Deus est
et hoc est Illius nomen in omni temporum aeternitate
praedicandum.
Non immerito igitur in Illius conspectu sancti homines
magnitudine laetitiae atque iucunditatis efferentur et in curanda
uia, fide et humilitate et ardenti pietatis studio, certatim
elaborabunt. Non tyrannum exspectamus qui opes tenuiorum
hominum suam praedam putet, cuius omne studium in augendis
et cumulandis opibus per summum scelus et iniuriam consumatur,
sed Regem iustitiae libertatis et clementiae laude praecellentem.
Est enim pupillorum pater, uiduarum patronus et uindex,
Dominus et omnium qui numen Illius fidenter implorant,
singulare et inuictum praesidium. Idcirco enim in humana natura
Sibi stabilem sedem atque domicilium collocauit, ut ex tam
sacrati templi religione et sanctitate facilius omnium fidelium
preces exaudiret. O Domine, quando, egressus ex Aegypto,
populum Tuum admirabili clementia antecedebas et per desertam
solitudinem iter faciebas, quam egregiam significationem
praesentis uirtutis Tuae illi multitudini dedisti! Quam admirandis
signis futura beneficia praemonstrauisti! [307] Terra enim, magnis
motibus tremefacta, fremitus horrendos edebat; caelum imbribus
atque procellis, cum fragore demissis, ruere uidebatur; omnis
natura in conspectu Tuo trepidabat; quin etiam mons ipse Sinai,
OPERA OMNIA TOMO IV 445

sorte dos Seus. E por isso, quando foi oportuno, levantou-se, para atribular
com muitas pragas os inimigos e libertar Israel. Ora, isto realizar-se-á
muito mais claramente quando chegar o tempo da verdade em si mesma,
representada por sinais espantosos. Com efeito, Deus levantar-se-á; os
Seus eternos inimigos hão de ser dispersos; e hão de repentinamente
entregar-se à fuga todos os que o odeiam, para não se exporem a Seu
cenho irado. Assim como o fumo é disperso pelo vento, hás de dispersá-
los, Senhor, e como a cera, liquefazendo-se perto do fogo, se espalha,
assim, com a vinda da divina majestade, hão de perecer os ímpios. E os
justos hão de alegrar-se na vinda do Senhor e hão de exultar e, com as
almas incrivelmente jubilosas, hão viver gozando da mais cabal deleitação.
É que os seus olhos hão contemplar aquilo que ardentemente tinham
desejado, aquilo que veementemente tinham pedido a Deus, aquilo que
todos os santos homens desde o começo do género humano vivamente
tinham desejado ver. Entoai cânticos ao Senhor; celebrai o Seu nome
com hinos e cantos; aparelhai o caminho para Aquele que, assim como
outrora, quando Israel peregrinava pelos desertos da Arábia, tomava em
pessoa a dianteira, do mesmo modo agora se desloca através do desolado
ermo deste mundo. Com efeito, ainda que a Sua divindade se oculte sob
forma e aparência humana, é o verdadeiro Deus e este é o Seu nome
que deve ser apregoado pela eternidade dos tempos.
Por conseguinte, não é sem motivo que na Sua presença os homens
santos hão de ficar arrebatados de alegria e contentamento e à porfia
hão de esforçar-se por preparar o caminho com fé, humildade e ardente
zelo da piedade. Não estamos à espera de um tirano que considere
presa sua as riquezas dos homens mais fracos e cuja única preocupação
se cifre em aumentar e acumular tesoiros mediante os maiores crimes e
injustiças, mas de um Rei que se avantaje pelos merecimentos da justiça,
da liberdade e da misericórdia. É, com efeito, o pai dos órfãos, o protetor
e patrono das viúvas, o Senhor e a ajuda singular e invencível de todos
que confiantemente imploram a Sua divindade. Com efeito, por isso
estabeleceu para Si na natureza humana uma morada e domicílio estável,
a fim de, a partir da santidade e religiosidade de um tão sagrado templo,
escutar mais facilmente as preces de todos os fiéis. Oh, Senhor, quando,
saindo do Egito, com espantosa misericórdia ias na dianteira do Teu povo e
jornadeavas através das solidões desertas, como foi extraordinária a mostra
que deste àquela multidão da Tua virtude pessoalmente presente! Com quão
admiráveis sinais revelaste antecipadamente os futuros benefícios! [307] É
que a terra, tremendo com grandes abalos, soltava assustadores mugidos;
o céu parecia ruir com as chuvas e tempestades, que estrondosamente
caíram; a natureza inteira tremia na Tua presença, e até o monte Sinai,
consagrado à veneração da lei divina, quase foi arrancado, na presença
446 D. JERÓNIMO OSÓRIO

legis diuinae religioni consecratus, frequenti tonitru, fulgure et


incendio, propemodum de sede conuulsus est in summi Domini
conspectu: in quo clare cernebatur Illum uerum Deum esse
quem Israel colit, et non illum quem nationes, a Dei placitis
alienae, mentis stupore et exsecranda caecitate ueneratur. Et
haec quidem omnia fuerunt ad timorem proposita, timor enim
coercet temeritatem, refrenat libidinem et est non mediocre
pietatis et iustitiae fundamentum.
Sed opus erat, ne multitudo deficeret, ut clementiae
munera sine mora populum sollicitudine leuarent, animus
enim afflictus necessarii subsidii dilationem non paritur.
Cum igitur populus esset omnium rerum paenuria confectus
et ultra modum debilitatus, liberalitatis et magnificentiae
pluuiam e caelo demisisti, Domine, qua hereditatem Tuam,
populum nempe Tuum, quem singulari prouidentia tuendum
suscepisti, ualde laborantem reficeres et uiribus egregie
confirmares. Nec enim illi caelestis panis defuit neque frutu
salutaris aquae destitutus est neque ullis denique commodis ad
uitam sine molestia degendam caruit, cum Tu illi omnia satis
abunde suppeditares, ut, omni cura solutus, munera infinitae
probitatis agnosceret et intellegeret non in humana industria,
sed in diuina beneficentia esse uitae praesidia collocanda.
Nec enim tantum uiris magnis, qui uirtutis altitudine Tibi
erant carissimi, consultum esse uoluisti, uerum et hominibus
imperitis, qui non erant tantum in uirtutis studio progressi ut
essent pro hominibus habendi, sed in iumentis numerandi, ut
bonorum usibus seruirent, bonitatis Tuae munera clementer
impertitus es, ut afflictam multitudinem Tuam opportuno
subsidio subleuares.
At haec omnia multo magnificentius, cum adueneris, Ipse
praestabis. Nam et panem caelestem, quo pascuntur angeli,
Tuis comedendum appones, ut uitam in perpetuum felicissime
propagare possint; et gratiae Tuae perennitate recreati, nullas
hostium minas extimescent, et, similiter atque illis temporibus
effecisti, materiam dabis mulieribus egregie psallentibus ut magni
exercitus uictoriam insigni suauitate iucundissimi concentus
enuntient. Reges quidem olim, qui in domum Tuam furenter
inuadebant, quamuis essent maximis exercitibus stipati, fusi
fugatique sunt, ipsiusque domus pulchritudo, hoc est, sanctorum
hominum coetus, quem uerissimae uirtutis cultus et religionis
sanctitas exornabat, qui erant ipsius templi custodiae praepositi,
insigni uictoria parta, inter se spolia diuidebant.
OPERA OMNIA TOMO IV 447

de Deus, do seu lugar pelos frequentes trovões, raios e fogos: nisto


claramente se enxergando que o verdadeiro Deus é Aquele que Israel
adora, e não aquele ao qual, com entendimento entorpecido e abominável
cegueira, veneram os povos alheios aos mandamentos divinos. E como é
evidente tudo isto foi posto diante dos olhos para causar temor, pois o
temor refreia o desatino, atalha à sensualidade e é não pequeno alicerce
da piedade e da justiça.
Mas, para que a multidão não O abandonasse, era mister que as dádivas da
misericórdia sem tardança aliviassem o povo da sua inquietação, porquanto a
alma atribulada não tolera demoras na ajuda de que precisa. Por conseguinte,
uma vez que o povo padecia da falta de todas as coisas e se encontrava
extraordinariamente debilitado, do céu da Tua liberalidade e magnificência,
Senhor, fizeste cair a chuva, para com ela reanimares e fortaleceres com
extraordinário vigor a Tua herança, isto é, o Teu povo, ao qual com singular
providência decidiste proteger, e que se encontrava sobremodo atribulado.
Com efeito, nem faltou o pão do céu nem foi privado dos benefícios da água
salutar nem, finalmente, passou sem nenhuma das comodidades necessárias
para passar a vida sem desconforto, uma vez que Tu o provias de tudo com
sobeja abundância, para que, livre de todos os cuidados, reconhecesse as
dádivas da infinita bondade e compreendesse que as defesas da vida devem
colocar-se, não na diligência humana, mas na bondade de Deus. Na verdade,
não só quiseste cuidar dos grandes varões que Te eram muitíssimo queridos
pela elevação da virtude, mas também com os homens ignorantes, que não
tinham avançado tanto no amor da virtude que devessem ser tidos na conta
de seres humanos, mas antes arrolados no número dos jumentos, para que
servissem para o proveito dos bons, compassivamente com eles repartiste as
dádivas da Tua bondade, a fim de aliviares a Tua atribulada multidão com
uma ajuda oportuna.
Tudo isto, porém, quando vieres, Tu mesmo hás de realizá-lo com muito
maior grandiosidade. Com efeito, não só servirás aos Teus o pão celestial
de que os anjos se alimentam, para que eles possam mui venturosamente
prolongar a vida para sempre; mas também, restaurados com a perpetuidade
da Tua graça, não se arrecearão de nenhumas ameaças dos inimigos, e, do
mesmo modo que fizeste naqueles tempos, darás assunto às mulheres que
formosamente cantam os salmos, para que anunciem a vitória do grande
exército com a extraordinária suavidade de uma alegríssima melodia. Os
reis que outrora com sanha desvairada invadiam o Teu templo, embora
estivessem acompanhados por fortíssimos exércitos, foram dizimados e postos
em fuga; e a formosura da própria casa, isto é, a assembleia dos homens
santos (exornada pelo atavio da mais verdadeira virtude e pela santidade da
religião), que tinham sido colocados à frente da guarda do próprio templo,
depois de alcançada insigne vitória, repartiam os despojos entre si.
448 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Haec autem multo clarius fient, cum Tu, Domine, per Te


terras lustraueris humanumque genus diuina luce compleueris.
Mulieres enim, et homines etiam non multum a muliebri
imbecillitate distantes, repente per spiritum Tuum uires
assument quibus harmonia iucundissima uictoriam exercitus
Tui, non numero, sed uirtute maximi, celebrent, qua orbem
terrarum, tyrannide [308] immanissimi atque potentissimi
hostis oppressum, maximis uiribus et omni uigilantia et
calliditate munitum, expugnabunt, et sub Tuum imperium
subiungent, ita ut nemo possit magnitudini tam excellentis
uirtutis obsistere. Inferorum principes, magnis exercitibus
circumsaepti, uictoriis insolenter elati, fundatissimo imperio
confidentes, se in fugam dabunt; dabunt quidem se in
effusam fugam praecipites et uictoriam imbelli multitudini,
cum summo dedecore et ignominia, concedent. Homines
enim, neque natalibus clari, neque opibus opulenti, neque
disciplinis eruditi, nec gratia potentes, imperium libidinis,
impietatis, immanitatis, principum potentia munitum, temporis
diuturnitate confirmatum, daemonis artificio et summa totius
Erebi ui corroboratum, euertent, et spolia magna capient,
quibus, cum egregia laude locupletati, triumphent.
At fructus huius tam clarae uictoriae quam illustris
futurus sit animis ipsi uobiscum reputate. Si iacueritis inter
ollas, atra uitiorum fuligine conspersi, ex taetra et obscura
seruitute libidinis et immanitatis erepti et in triumphum
ducti, ut deinceps angelorum Imperatori seruiatis, pennis
ad similitudinem columbi et argentei candoris obducti et
aureis alis erecti, mente et cogitatione in caelestes sedes
euolabitis. Nam omnia Christi gratia commutabuntur. Ignaui
inuictum robur assument; qui in sordibus uolutati fuerant,
ornamentis diuinis excolentur; qui humi repebant, alis
miro fulgore collucentibus, ad caelum adspirabunt. Cum
reges, iudicio diuino, propter scelus in caelestem rem
publicam conceptum, discordes exstiterint, Tu, Domine,
eos, inanissimis cogitationibus inflatos, densis niuibus
obrues ut, conglaciati frigoribus, euertantur. At mons, in
quo Dei ciuitas aedificata est, perinde atque mons Basan
fertilis et opimus est, et collibus undique munitus est,
ita ut neque fame ad deditionem compelli, neque uiribus
expugnaripossit: effert enim fruges; pabula profundit; pecora
multa nutrit; omnia, quibus indiget hominum uita, abunde
suppeditat; est praeterea tam multis uictus praesidiis et
OPERA OMNIA TOMO IV 449

Ora, isto muito mais claramente há de fazer-se quando Tu, Senhor,


percorreres pessoalmente a terra e colmares o género humano com a luz
divina. É que as mulheres, e também os homens que não estão muito
afastados da fraqueza feminina, através do Teu espírito hão de adquirir
de repente forças para com elas celebrarem com mui agradável melodia a
vitória do Teu exército, insuperável, não pelo número, mas pela virtude,
com a qual hão de acometer o mundo, [308] oprimido pela tirania do
crudelíssimo e potentíssimo inimigo e defendido com as máximas forças
e toda a sorte de astúcias e vigias, e hão de ficar subjugados pelo Teu
domínio, por tal forma que ninguém possa resistir à grandeza de uma
tão excelente virtude. Os príncipes dos infernos, rodeados de grandes
hostes, insolentemente ensoberbecidos com as vitórias, confiantes no seu
domínio assaz bem estabelecido, hão de entregar-se à fuga; certamente
que hão de fugir em precipitada debandada e, com enorme desdouro e
ignomínia, oferecerão a vitória à pacífica multidão. Com efeito, homens
nem de linhagem ilustre, nem opulentos em riquezas, nem sábios pela
ciência, nem poderosos pela influência, hão de destruir o senhorio da
sensualidade, da impiedade e da crueldade, protegido pelo poder dos
príncipes, fortalecido pela longa duração, reforçado pela astúcia do demónio
e a violência máxima do inteiro Érebo, e hão de obter grandes despojos,
para, com eles enriquecidos, celebrarem triunfo com egrégio louvor.
Mas imaginai no vosso íntimo como há de ser brilhante o fruto desta
tão nobre vitória. Se estiverdes deitados entre as panelas, borrifados com
a negra fuligem das faltas, arrancados da terrível e obscura escravidão da
sensualidade e da desumanidade e conduzidos em triunfo, a fim de em
seguida servirdes ao Senhor dos anjos, cobertos com penas de branco
prateado semelhantes às do pombo e ascendendo com áureas asas, voareis
com o entendimento e o pensamento para as celestiais moradas. Com
efeito, tudo se há de alterar inteiramente mediante a graça de Cristo. Os
frouxos hão de adquirir um vigor invencível; os que se espojavam na
sujidade, hão de ataviar-se com ornamentos divinos; os que rastejavam
no chão hão de aspirar ao céu com asas resplandecentes de espantoso
fulgor. Quando os reis por juízo divino, devido ao crime concebido contra
a república celestial, ficarem desavindos, Senhor, e se ensoberbecerem
com pensamentos totalmente vãos, hás de cobri-los com densas nuvens,
para que, congelados pelo frio, sejam destruídos. Mas o monte, no qual
foi edificada a cidade de Deus, é fértil e farto como o monte de Basã, e
por todos os lados defendido por colinas, de tal maneira que não pode
ser obrigado a entregar-se por causa da fome, nem expugnado pela força
das armas: é que produz frutos, desentranha-se em alimentos, dá pasto
a muitos rebanhos, fornece em abundância tudo de que a vida humana
necessita; além disso, encontra-se rodeado de tão numerosos recursos
450 D. JERÓNIMO OSÓRIO

tantis munitionibus circumuallatus ut nullis opibus queat


aliqua ex parte labare. Nihil enim potest Ecclesia Christi
uel abundantiusuel munitius excogitari.
Quid igitur uobis in mentem uenit, o montes editi, tantis
inuidiae stimulis incitari ut contra montem Domini copias
perpetuo comparetis? Vos appello, principes, qui estis
in summo et excelso gradu dignitatis et imperii locati:
quae amentia uexat, ut montem Domini perditis conatibus
oppugnetis? Num iniuriis lacessiti fuistis ? Non prorus. Mons
enim Domini non est pestilens, sed beneficus atque salutaris.
Num imperium, eo superato, amplificare contenditis? Summus
uos furor exagitat, si fieri posse existimatis ut is uiribus
humanis expugnetur. Hunc enim montem Deus amore summo
complectitur; hunc ornatum et amplificatum uidere cupit;
hunc postremo delegit, in quo Sibi sempiternam sedem et
domicilium construeret. Quid igitur uos Illius immensae
potentiae repugnabitis? Vos in Illum bellum odio pestifero
imbutum comparabitis? [309] Vobis ex tam infando scelere
uictoriam polliceri audebitis? Qua spe? Qua exercitus inuicti
fiducia? Bellici currus Domini sunt innumerabiles; multis
angelorum millibus circumsaeptus est.
Vt autem quondam in Sinai, cum legem dabat et in
tabernaculo foederis, cum praesentiam Suam declarabat, in
medio exercitu uersabatur, sic in Sione caelesti et cum legem
salutarem sanxerit, et cum spiritus sui gratiam diffuderit, ita
statum suae rei publicae moderabitur, ut numquam ab illa
discedat. O summe caelitum Imperator, in infimum terrae
baratrum te demisisti ut inferorum claustra conuelleres
et tenebris inclusos educeres et humani generis hostem
sempiternum exspoliares; et sic tandem, in caelum, omnium
bellorum uictor, manubiis onustus, adscendisti; eos qui captiui
detinebantur, belli iure captos, ut tuae gloriae seruirent, in
triumphum duxisti; et dona a Patre summo, quae hominibus
distribueres, consecutus es, ut, Spiritus sancti muneribus ornati
et cumulati, facinora in Ecclesiae totius utilitatem diuinae
uirtutis efficerent; tantaque ui orbem terrarum commouisti
ut multos, etiam ex illis qui in te Deum habitare cum insigni
contumacia negabant, fidem tibi dare et se ad nomen tuum
adiungere, spiritus impulsu, commoueres.
Summus Dominus diebus singulis omnium laude celebretur,
qui tam multis nos beneficiis onerat et, cum sit omnipotens
Deus neque ullo modo rebus humanis indigeat, se tamen
OPERA OMNIA TOMO IV 451

de subsistência e de tão grandes meios de defesa que por nenhuma


parte pode ameaçar ruína. É que é impossível imaginar-se nada de mais
abundante ou de mais provido do que a Igreja de Cristo.
Por conseguinte, por que vos lembrastes, ó elevados montes, de
sentirdes tão fortes impulsos de inveja que vos movem a incessantemente
aprestar tropas contra o monte do Senhor? A vós me dirijo, ó príncipes
que ocupais os mais elevados e excelsos degraus da dignidade e
da soberania: que vesânia vos senhoreia, para ousardes atacar com
perversos atentados o monte do Senhor? Acaso fostes vítimas de
injustiças? De forma alguma. É que o monte do Senhor não é pestilencial,
mas benéfico e salutar. Acaso, depois de ele vencido, pretendeis
aumentar o vosso poder? O maior dos desvarios vos senhoreia se
cuidais que é possível tomá-lo com forças humanas. Com efeito, Deus
abraça-o com o maior dos amores; deseja vê-lo ornado e aumentado;
finalmente, escolheu-o, para nele edificar a Sua morada e domicílio
eternos. Por consequência, porque resistis ao Seu imenso poder? Vós
preparareis contra Ele uma guerra transbordante de ódio pestilencial?
[309] Vós atrever-vos-eis a prometer-vos uma vitória como resultado
de tão sacrílega ação criminosa? Com que esperança? Confiantes em
que invicto exército? São sem conto os carros de guerra do Senhor;
rodeiam-no muitos milhares de anjos.
Ora, assim como outrora no Sinai, quando dava a lei e, morando no
tabernáculo da aliança no meio do exército, manifestava a Sua presença,
da mesma maneira na celestial Sião e quando promulgar a lei salutar e
espalhar a graça do Seu espírito, de tal maneira há de governar o estado
da Sua república que nunca dele se desvie. Ó supremo Senhor dos seres
celestiais, desceste ao mais baixo báratro da terra para arrancares os
ferrolhos dos infernos e trazeres os que estão presos nas trevas e pilhares
o eterno inimigo do género humano; e assim, vencedor de todas as
guerras, carregado com os despojos, ao cabo subiste aos céus; trouxeste,
para figurarem no teu triunfo, para servirem à tua glória, aqueles que
estavam retidos como cativos, tomados em conformidade com o direito
da guerra; e, para as repartires pelos homens, obtiveste do Pai supremo
dádivas, a fim de que os ornamentados e cumulados com as mercês do
Espírito Santo levassem a cabo grandes feitos para geral proveito da
Igreja; e abalaste com tamanho vigor a terra que mediante a inspiração
do espírito impeliste muitos, até de entre os que com enorme contumácia
negavam que Deus habitava em ti, a juntarem-se a ti e a militarem debaixo
das tuas bandeiras.
Que em cada dia seja celebrado pelo louvor de todos o Senhor supremo,
que nos onera com tão inúmeros benefícios, e, ainda que seja um Deus
omnipotente e de forma alguma necessite das coisas humanas, mesmo
452 D. JERÓNIMO OSÓRIO

nostrae salutis auctorem tam admirandis operibus, tam


multis in locis, indicauit. Quis tantae probitatis excellentiam
dignis laudibus efferre dicendo poterit? Deus noster, Deus
auctor et effector nostrae salutis est; Dei atque Domini nostri
uirtute mortis immanitas foras expellitur. Transfiget certe
Deus caput hostium Suorum et capillatum uerticem eorum
qui in scelere perseuerant. Satanae enim imperium delebit;
tyrannorum potentiam perfringet atque dissipabit; et omnia
dignitatis ornamenta, quibus spiritus ingentes assumebant,
illis eripiet; eosque dedecore omni cumulabit. Dixit fore ut
namquam Suos ope Sua destitueret.
“Vt”, inquit, “cum rex Bassan, nimis ferox et infestus,
populum meum armis aggressus est, rex ipse, cum uniuerso
exercitu, concisus et populus meus, ope mea, uictor, cum
insigni gloria, rediit, ita, quotiens ii qui in populo meo censi
fuerint et sub meo signo militauerint, ab hostibus nominis mei
fuerint oppugnati, caesis hostibus, cum hominum admiratione,
reuertentur. Et perinde atque Israelem ex profundo maris
gurgite, hostibus, qui eum insequebantur, obrutis et omnino
deletis, saluum et incolumen eduxi, ita e periculis omnibus,
eos qui in mea fide et patrocinio latent, cum hostium strage
maxima, liberabo. Sic autem hostes tuos conteram ut pedes
tui, uestigiis in hostium sanguine altius impressis, sanguineo
colore rubescant; et canes tui, eodem sanguine satiati et
infecti, discedant.”
Et his quidem uerbis Dominus populo Suo ex omnibus bellis
clarissimam uictoriam pollicetur. Quam admirabilia sunt opera
Tua, Domine! Quam illustris et ampla est misericordiaTua
erga illos qui Tibi confidunt numenque Tuum debita fide
et pietate prosequuntur! Viam in mediis [310] fluctibus
hominibus quos in fidem receperas aperuisti illisque Te ducem
itineris praebuisti. Viderunt ingressus tuos, o Domine; oculis
despexerunt ingressus Dei mei, dum in arca foederis, in qua
erat sanctitatis exemplum et diuini praesidii simulacrum, cum
sollemni pompa ueheretur. Cantores praecedebant; ii, qui
musica instrumenta pulsabant, sequebantur; in medio uirgines
tympanis ad numerum aptissime concinebant. Nullus denique
ordo erat qui laudes nominis Tui silentio supprimendas
existimaret: immo erat omnibus insitum nefarium scelus
esse non omnem uitam in gloria Tua celebranda consumere.
Quod tunc in similitudine futuri beneficii gestum est, multo
fiet illustrius et magnificentius cum Tu, ut humanis oculis
OPERA OMNIA TOMO IV 453

assim através de tão admiráveis obras e em tão numerosos lugares mostrou


ser o autor da nossa salvação. Quem poderá pela palavra exalçar com os
merecidos louvores a superioridade de tão grande bondade? O nosso Deus
é o Deus autor e causador da nossa salvação, e graças à virtude do nosso
Deus e Senhor é expulsa a cruel morte. Certamente que Deus trespassa
a cabeça dos Seus adversários e o crânio hirsuto dos que perseveram
no crime. De facto, há de destruir o senhorio de Satanás; quebrantar e
dispersar o poder dos tiranos; e arrebatar-lhes todos os ornamentos da
dignidade por causa dos quais se tornavam sobremaneira arrogantes; e
cobri-los-á com toda a espécie de desdouro. Disse que nunca haveria de
privar os Seus da Sua ajuda.
“Assim como”, disse Ele, “quando o rei de Basã, assaz feroz e hostil,
acometeu com armas o meu povo, o próprio rei, juntamente com todo o
exército, foi morto e o meu povo, com insigne glória regressou vencedor
graças à minha ajuda, da mesma maneira todas as vezes que os que fizerem
parte do meu povo e militarem sob o meu pendão forem atacados pelos
inimigos do meu nome, hão de, depois de aniquilar os inimigos, regressar
com admiração dos homens. E assim como eu conduzi Israel salvo e incólume
para fora do profundo abismo do mar, destruindo e aniquilando por completo
os inimigos que o perseguiam, da mesma maneira hei de libertar de todos
os perigos, com completa assolação dos adversários, os que se resguardam
sob a minha proteção e guarda. Ora, de tal maneira hei de esmagar os
teus inimigos que os teus pés fiquem vermelhos com a cor do sangue, ao
assentarem tuas pisadas mais fundamente no sangue deles, e os teus cães
se apartem, depois de saciados e tingidos com o mesmo sangue.”
E decerto que com estas palavras o Senhor promete ao Seu povo
claríssima vitória em todas as guerras. Quão admiráveis são as Tuas
obras, Senhor! Como é brilhante e imensa a Tua misericórdia para com
aqueles que em Ti confiam e adoram com a devida piedade e fé o Teu
poder divino! No meio das vagas [310] abriste o caminho para os homens
que tinhas acolhido sob a Tua proteção e mostraste-Te como guia da
sua jornada. Viram as Tuas entradas, Senhor; com os olhos observaram
as entradas do meu Deus, quando com solene pompa era transportado
para a arca da aliança, na qual se encontrava o exemplo da santidade e a
representação figurada da ajuda divina. À frente marchavam os cantores;
seguiam depois os que tangiam os instrumentos musicais; no meio as moças
tocavam pandeiros cadenciosamente. Enfim, não existia nenhuma classe
que considerasse que os louvores do Teu nome devessem ser remetidos
ao silêncio, e até tinha sido a todos inculcado que era um sacrilégio não
gastar a vida inteira na celebração do Teu nome. Aquilo que então se
bosquejou como representação do futuro benefício, realizar-se-á muito
mais brilhante e esplendidamente quando Tu, para poderes seres visto
454 D. JERÓNIMO OSÓRIO

uideri possis, humanam formam indues et populum tuum


antecedes, ut omne,s qui salutem assequi uolent, uestigia
tua persequantur. In te intuebuntur; tuis uestigiis insistent;
a uia, quam mostraueris, in alterutram partem minime
declinabunt. Te uiri artificio praecellentes summis laudibus
ornabunt; te mediocres et infimi laudabunt; te uirgines puris
et incorruptis mentibus iucundissime canent: non sexus, non
aetas, non nationis ullius condicio huius tam praeclari muneris
expers erit. Omnes enim nationes undique ad nomen tuum
praedicandum, animo uehementer inflammato, conuenient.
Vos igitur adhortor et moneo, qui ex Israelis fonte
profluxistis, ut in coetibus uestris Dominum Deum nostrum,
quem cernitis ab omnibus nationibus sanctissime coli, laudibus
honoretis, et hoc tam grato sacrificio uobis maiestatem illius
propitiam faciatis. Quod quidem in principio praeclarissime
fiet, cum ex Israelis stirpe deligendi sint ecclesiarum principes,
qui orbem terrarum moderentur, et ad notitiam numinis
sempiterni et Iudaeos et gentes externas erudiant. Ex tribu
enim Beniamin, si ad gentis numerum respicias, exigua atque
propemodum in uulgus ignota, summus princeps exsistet
qui mundum ad cognitionem doctrinae caelestis instituat;
similiter, ex tribu Iuda maximi principes orientur. Principes
etiam Zabulonis satu editi et principes, Nephtalini sanguine
procreati, multis praeibunt. O Israel, ne adscribas laudibus
et meritis tuis robur tuum. Beneficium Dei tui est: munus
illius est tibi clementissime donatum. Ille est qui te robore
suo fulcit, qui spiritu Suo confirmat; Illius uirtute, et non
uiribus tuis, uictorias insignes consequeris.
O Domine, confirma uirtute Tua inuicta opus quod in functione
nostrae salutis edidisti, ut numquam, quod stabiliendum
suscepisti, hostium conatibus dilabatur. Ex tempore templi Tui
sempiterni, quod in ciuitate caelesti Hierusalem, hoc est, in
Ecclesia Tua, dedicasti, religio, multo sanctius instaurata, orbem
terrarum commouebit, ita ut maximi reges et principes, Tibi
munera, uenerabundi atque supplices, offerant. Tu uero, pro
iure Tuo, munera quae non sunt diuinae maiestatis repudia;
legis sacra contemne, ut noui foederis sacrificia Tibi rite
fiant. Quadrupedes ad uictimas aspernare; odores ad antiqua
suffimenta nullam uim solidae et expressae religionis habere
doce; uitulorum multitudinem, [311] populorum curribus
subiunctam, ad hostias immolandas detestare; eos qui se cum
argenteis fragmentis abiiciunt, ut numen Tuum, ritu legis, ad
OPERA OMNIA TOMO IV 455

por olhos humanos, revestires forma humana e tomares a dianteira do


teu povo, para que possam seguir-te as pisadas os que quiserem alcançar
a salvação. Hão de pôr em ti os olhos; seguir-te os passos; e não hão de
desviar-se para um ou outro dos lados do caminho que mostrares. Com os
mais elevados encómios hão de encarecer-te os varões que se avantajam
em saber e arte; hão de louvar-te os medianos e os mais humildes; com
grandíssimo contentamento hão de cantar-te com castos e incorruptos
cânticos as donzelas: nenhum sexo, idade ou raça se isentarão desta tão
nobre obrigação. É que para exalçar o teu nome todos os povos hão de
acudir de toda a parte com as almas vivamente abrasadas.
Por conseguinte, exorto-vos e admoesto-vos, a vós que manastes da fonte
de Israel, a que nas vossas assembleias honreis com louvores o Senhor
nosso Deus, a quem vedes que todos os povos santissimamente adoram,
e que com este tão grato sacrifício torneis propícia a vós a sua majestade.
Algo que decerto se fará mui ilustremente no princípio, uma vez que da
linhagem de Israel devem ser escolhidos os dirigentes das igrejas, que
governarão a terra e levarão o conhecimento da eterna divindade não apenas
aos judeus, mas igualmente aos povos estrangeiros. Com efeito, da tribo
de Benjamim, pequena, se atendermos ao número dos seus membros, e
sobremodo desconhecida entre o vulgo, há de levantar-se o supremo prócer
que ao mundo ensinará o conhecimento da doutrina celestial; igualmente,
da tribo de Judá hão de provir os mais importantes próceres. Também
próceres saídos da linhagem de Zabulão e grandes homens, provindos
do sangue de Naftali, hão de preceder a muitos. Ó Israel, não atribuas a
merecimento e louvor teu o teu vigor. É um benefício do teu Deus: é uma
mercê d'Ele que te foi mui misericordiosamente concedida. É Ele quem te
ampara com o Seu vigor, quem te esforça com o Seu espírito; alcançarás
insignes vitórias graças à Sua virtude, e não às tuas forças.
Senhor, consolida com a Tua invencível virtude a obra que levaste a cabo
na realização da nossa salvação, para que com os atentados dos inimigos
nunca se desmorone aquilo que empreendeste tornar firme. Repentinamente,
a religião do Teu templo sempiterno, que dedicaste na celeste cidade de
Jerusalém, isto é, na Tua Igreja, muito mais santamente recomeçada, essa
religião há de, de improviso, abalar o mundo, de tal maneira que os mais
poderosos reis e príncipes, cheios de respeito e em atitude suplicante, hão
de oferecer-Te presentes. E Tu, de acordo com a Tua lei, rejeita os presentes
que não são próprios da divina majestade; despreza os sacrifícios da lei, para
que se Te ofereçam devidamente os sacrifícios da nova aliança. Rechaça os
quadrúpedes como vítimas sacrificiais; ensina que os cheiros das antigas
fumigações não têm nenhum valor de sólida e viva religião; abomina o
grande número de bezerros, [311] atrelados aos carros dos povos, para serem
imolados em sacrifício; mostra que se esforçam debalde os que se humilham
456 D. JERÓNIMO OSÓRIO

misericordiam inflectant, frustra laborare demonstra. Fac ut


intellegant Te non huiusmodi sacrificiis, sed misericordia, placari;
gentes immanes, qui bella comparant et, quantum possunt, in
hominum genus pestem atque perniciem machinantur, disperde.
Perfice ut intellegant omnes mortales nihil Tibi cordi futurum
quod non sit ex ardenti in Deum pietate et ex hominum caritate
profectum. Itaque, nouo sacerdotio, noua religione, nouo foedere
constituto, antiquis caerimoniis abrogatis et impedimentis
omnibus, quae gentes ab Israelis commercio et coniuntione
dirimebant, disiectis, ex omnibus gentibus repente confluet
ingens multitudo, quae summa pietate Deo gratos honores
instituat; Aegypti principes aduenient; Aethiopes accelerabunt
ut manus suas in Deum suppliciter intendant. Regna terrae,
hymnis et canticis nomen Domini celebrate; Dei misericordiam
canite, per quam fuistis e sempiternis tenebris erepta.
O beneficentiae diuinae largitatem, quae tam late diffusa
est ut ad ultimos terrae fines, intra breue temporis spatium,
admirabili cursu perueniret. Hymnos in gloriam Illius modulamini
qui, supra caelestis regionis fastigium inuectus, minime res
humanas neglegit. Cum enim earum magis oblitus uidebatur,
ecce tibi uox Illius intonuit, cuius uocis tanta uis exstitit ut
mundum inuerteret et immutaret et, a pernicie turbulentissimi
erroris abstractum, ad uerissimae religionis studium repente
traduceret. Hoc quidem fieri uirtute humana non poterat. Nec
enim tantas uires habet uel potestas hominum, uel gratia, uel
eloquentia ut possit flagitia penitus exstirpare; errores funditus
euellere; ad uitae contemptionem mortales adducere; animos
cupiditate uitae caelestis inflammare; et perficere, denique, ut
ea quae sunt oculis subiecta despiciant, et eorum desiderio,
quae uideri non possunt, mirabiliter incendantur. Hanc igitur
uim, qua mores omnium hominum, praua institutione corruptos,
falsis opinionibus infectos, et lege et consuetudine et temporis
antiquitate in magnitudine sceleris obfirmatos, euellitis, nullo
modo hominibus tribuatis, sed Illi summo Domino, qui Israelem,
hoc est, hominum fidelium coetum, beneficiis auget, cuius gloria
et fortitudo in caelo uehementer eminet et excellit. Terribilis
es, Domine, in tabernaculo sempiterno, hostes enim fundis et
fugas et facis ut, excruciati suppliciis, numen Tuum extimescant.
Clementissimus es in Israelem, quem praesidio tueris, muneribus
ornas et ad communionem diuini status inuitas. Ipse Dominus
est qui uirtute fulcit et uiribus confirmat populum Suum. Nomen
igitur Dei in omni aeternitate praedicetur.
OPERA OMNIA TOMO IV 457

com pedaços de prata, em conformidade com os rituais da lei, a fim de


Te tornarem compassivo. Faze que compreendam que não Te aplacas com
sacrifícios dessa espécie, mas com a misericórdia; aniquila os povos desumanos
que preparam a guerra e maquinam tudo o que podem para perdição e
destruição do género humano. Faze que todos os mortais entendam que só
há de ser do Teu agrado aquilo que proceder da ardente devoção a Deus e
da caridade para com os homens. E por isso, depois de estabelecido o novo
sacerdócio, a nova religião, a nova aliança, suprimidas as antigas cerimónias
e postos de parte todos os impedimentos que obstavam à união e trato dos
gentios com Israel, de repente vinda de todos os povos há de acorrer uma
imensa multidão, que com a máxima piedade há de estabelecer agradecidos
louvores a Deus; hão de vir os príncipes do Egito; os etíopes hão de dar-se
pressa em estender suplicantes as suas mãos para Deus. Ó reinos da terra,
celebrai com hinos e cânticos o nome do Senhor; cantai a misericórdia de
Deus, mediante a qual fostes arrancados das trevas sempiternas.
Oh largueza da bondade divina, que tão vastamente se derramou que
com espantosa carreira em breve prazo de tempo chegou aos últimos
confins da terra! Entoai hinos em glória d'Aquele que, transportado por
cima das celestiais regiões, não desprezou a humanidade. É que, quando
desta parecia mais esquecido, eis que para ti retumbou a Sua voz: foi tão
grande a força desta voz que alterou e mudou o mundo e, arrancando-o da
perdição de um turbulentíssimo erro, de repente o fez passar para o amor da
mais verdadeira religião. De certo que isto não poderia fazer-se por virtude
humana, porquanto nem o poder nem a influência nem a eloquência dos
homens possuem tão grande eficácia que sejam capazes de extirpar por
completo as infâmias; de arrancar de raiz os erros; de conduzir os homens
ao desprezo da vida; de inflamar as almas no desejo da vida celestial e,
por derradeiro, fazê-los olhar com desdém para o que se encontra diante
dos seus olhos, e abrasarem-se no admirável anelo daquilo que não podem
ver. Por conseguinte, esta força, com a qual desarreigais os costumes de
todos os homens, corrompidos por uma depravada educação, manchados
por falsas opiniões e consolidados na grandeza do crime pela lei, costume
e longa antiguidade, de forma alguma a atribuais aos homens, mas Àquele
supremo Senhor, que acrescenta com benefícios Israel, isto é, a assembleia
dos homens fiéis, cuja glória e fortaleza vivamente se avantaja e sobressai
nos céus. És terrível, Senhor, no eterno tabernáculo, pois desbaratas e
pões em fuga os inimigos e fazes que, atormentados pelos suplícios, se
arreceiem do Teu divino poder. És misericordiosíssimo com Israel, a quem
proteges com a Tua ajuda, ornamentas com as Tuas dádivas e convidas para
a comunhão na condição divina. É o próprio Senhor quem ampara com a
virtude e esforça com o vigor o Seu povo. Portanto, que o nome de Deus
seja apregoado por toda a eternidade.
458 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Saluum me fac, Deus.


Psal. 68. Apud Heb. 69

Hoc propositum fuit prophetis omnibus (quemadmodum


Petrus ait) ut antecedentes [312] Christi Optimi Maximi
cruciatus, et consequentes laudes atque triumphum
describerent. Dauid in primis hoc munus fuit luculentissime
persecutus. Quis enim Christi supplicia, querimonias et
gemitus uehementius et cum maiore doloris sensu et acerbitate
defleuit? Quis in illius exsurrectione et diuina uita et triumpho
clarissimo iucundius exsultauit? Itaque, ut apparet, haec erat
illi in rebus afflictis alleuatio; in secundis uitae sempiternae
commentatio; in omni denique loco illa iugis et assidua
Christi praemeditatio mentem illius iacentem erigebat,
erectam efferebat, elatam in superas sedes euehebat, ut in
caelo frequentissime uersaretur. Et, quamuis ea quae litteris
mandabat, aliqua ex parte subobscura similitudine ad se
pertinere perspiceret, cum tamen illius animus esset ad futuras
Christi actiones acriter atque uehementer intentus, ea dicit
quae nullo modo, nisi ad unum Christum, referenda sunt.
Quod quidem in hoc psalmo clare perspicitur. Quamuis enim
ille multis incommodis fuerit amictus et iniurias sibi illatas
iure lamentaretur, in Christum tamen respiciens, non suas
aerumnas, sed Christi supplicia deplorat. Sic igitur Christum
lamentantem inducit:
Accelera, Domine, ut salutem mihi, in tam insigni calamitate,
conferas et e mortis ipsius faucibus me clementer eripias. Nam
torrentis, imbribus uehementer amplificati, cursus in me fertur
tanto impetu ut uita mea in extremo discrimine constituta sit.
In profundo luto defixus sum, in quo firme uestigium stabilire
non possum; in aquam ualde profundam delatus sum et me
propemodum obrutum undis esse conspicio; opem uehementer
implorando defessus sum. Guttur meum clamoribus ex imo
pectore profusis exaruit; oculi mei, in auxilium quod petebant,
intenti defecerunt. Cum ergo non in hominibus, sed in Dei mei
clementia, spem collocatam habeam, inimici mei multitudine
superant capillos capitis mei; sine ullo merito meo, me odio
nimis acerbo persequuntur; hostes mei, mendacio et calumnia
nixi, contra me uiribus aucti sunt; quae non rapui, exsoluere
compellor, ita ut non pro peccatis meis, sed pro alienis,
acerbissimas poenas et supplicia intoleranda sustineam. Domine,
OPERA OMNIA TOMO IV 459

SALMO 68
(69 entre os Hebreus)
Salva-me, ó Deus.

Consoante diz S. Pedro, a todos os profetas foi dada a incumbência


de [312] consignarem primeiro os sofrimentos de Cristo Óptimo Máximo
e depois os seus louvores e triunfo [1 Ped 1. 10-11.]. Principalmente
David desempenhou esta tarefa de modo perfeitíssimo. Com efeito,
quem é que deplorou mais veementemente e com maior sentimento de
dor os suplícios, queixumes e gemidos de Cristo? Quem exultou com
maior alegria na sua ressurreição, vida divina e brilhantíssimo triunfo?
E assim, como é manifesto, este era o consolo que tinha nos momentos
de tribulação; nos que lhe corriam a contento, a meditação da vida
eterna; enfim, em qualquer situação, aquela contínua e incessante
previsão de Cristo, alentava o seu entendimento prostrado, erguia-o e
levava-o arrebatado até às regiões mais elevadas, de modo que vivia
muito frequentemente no Céu. E, ainda que se desse conta de que isto
que punha por escrito, sob uma vaga semelhança, em algumas partes
se refere a si, todavia, como o seu espírito estava viva e intensamente
concentrado nas futuras ações de Cristo, tudo quanto diz só pode referir-
se única e exclusivamente a Cristo, tal como de modo indubitável e claro
se verifica neste salmo. Com efeito, embora ele seja afligido por muitos
incómodos e com motivo se lamente de injustiças praticadas contra si,
todavia, olhando para Cristo, deplora, não as suas tribulações, mas os
suplícios de Cristo. Por isso, é do seguinte modo que nos apresenta
Cristo a lamentar-se:
Dá-te pressa, Senhor, em socorrer-me em tão grande desgraça e
misericordiosamente arranca-me das fauces da própria morte. É que as
águas da corrente, violentamente acrescidas com as chuvas, abatem-se
com tamanho ímpeto sobre mim que a minha vida corre um enorme
risco. Tenho os pés assentes sobre um fundo lamaçal, não sendo capaz
de nele me firmar; fui arrastado para águas assaz profundas e vejo que
estou quase a ser devorado pelas ondas; estou cansado de insistentemente
pedir ajuda. A minha garganta secou com os brados que me saíram do
mais fundo do peito; os meus olhos, procurando atentamente lobrigar o
auxílio que esperava, enfraqueceram. Por isso, como depositei a minha
esperança, não nos homens, mas na misericórdia do meu Deus, os meus
inimigos são em maior número do que os cabelos da minha cabeça; sem
que eu o mereça, perseguem-me com um ódio sobremaneira violento;
os meus contrários, apoiados na mentira e na calúnia, redobraram de
animosidade contra mim; sou obrigado a restituir aquilo que não roubei,
de tal maneira que padeço pungentes penas e suplícios, não pelas minhas
460 D. JERÓNIMO OSÓRIO

siquid insipienter et temere designaui, si in me flagitium


aliquod admisi, si criminibus supplicio dignis alligatus sum, Tu
id explorate cognitum habes; Te igitur innocentiae et puritatis
meae testem inuoco, ut decus meum, falso testimonio uanitatis
deformatum, testimonio Tuo uerissimo atque sanctissimo tuearis.
Perfice ne crucis ignominia eos ab ardenti studio pietatis
auertat qui in Te spem salutis positam habent, o Domine,
cui exercitus caelestes obtemperant et penes quem est rerum
omnium summa potestas, ita ut facillimum Tibi sit illis qui Tibi
toto pectore seruiunt, opitulari. Te oro ne permittas, o Israelis
inuictum praesidium, ut, qui Te unum quaerunt, dedecoris
infamia maculentur. Si enim ope Tua nudati fuerint, si in rebus
asperis derelicti, erunt mortalibus cunctis ludibrio quasi homines
mentis expertes qui, rebus aliis neglectis, a Te solo subsidium
fuerint sibi in aerumna polliciti: [313] quod quidem eueniet,
si Tu mihi non opportune subsidium attuleris.
Quis enim Te ardentius expetiuit? Sanctius coluit ? Diligentius
sectatus umquam fuit? Propter nominis Tui gloriam contumeliam
sustinui et facies mea summum dedecus et ignominiam
subiuit. Alienus factus sum cum fratribus meis et filii matris
meae, eadem stirpe progeniti et eisdem rei publicae sanctae
disciplinis instituti, contumelia mei cruciatus offensi, abalienati
sunt. Acerrimum enim studium domus Tuae me exedit et
conficit; contumeliae, quas perditi homines in maiestatem
Tuam intorquent, in me redundarunt. Indignissime namque
patior legem Tuam proculcari, religionem neglegi, iustitiam
opprimi, Ecclesiae sanctitatem uiolari, mores hominum
inquinatos atque peruersos adspicere et, quod est omnium
grauissimum, indignissima conuicia nomini Tuo fieri. Quasi
enim aut res humanas non cures, aut scelus ulcisci non possis,
aut muneribus a uindicta deducaris, ita Te uel neglegentiae,
uel imbecillitatis, uel iniquitatis insimulant, et, cum iudicia
Tua minime uereantur, in nomen Tuum maledictis omnibus
inuehuntur. Haec igitur scelerum offensio me uehementer
excruciat; hanc iustissimam indignationem pati nequeo;
haec me sollicitudo ad supplicium trudit et omnes denique
contumelias mihi subeundas esse puto ut illatas nomini Tuo
contumelias oblitterem, ut ita gloriae Tuae claritas elucescat.
Hac cura stimulatus, assiduo fletu atque ieiunio animam m
uehementer afflixi: quod fuit mihi ut maximum probrum
ab inimicis obiectum; cum lugubrem uestem induerem,
in iustissimi maeroris indicium, illi me dente maledico
OPERA OMNIA TOMO IV 461

faltas, mas pelas alheias. Senhor, se tramei alguma coisa de modo irrefletido
e insensato, se me tornei culpado de alguma infâmia, se incorri em faltas
merecedoras de suplício, Tu o sabes perfeitamente; por isso, invoco-Te
como testemunha da minha inocência e pureza, para que, com o Teu
testemunho verdadeiro e santíssimo, veles pela minha honra, ultrajada pelo
falso testemunho da vaidade. Faz que a ignomínia da cruz não aparte do
ardente zelo da piedade aqueles que põem em Ti a esperança da salvação,
ó Senhor, a quem obedecem os exércitos celestiais e que deténs o poder
supremo sobre todas as coisas, de tal forma que Te é muitíssimo fácil
socorrer aqueles que Te servem com todo o coração. Rogo-Te, ó guardião
invencível de Israel, que não permitas que os que acodem só a Ti sejam
infamados com a mancha do desdouro. É que se forem privados da Tua
ajuda e abandonados na adversidade, serão escarnecidos por todos os
mortais como homens desassisados que, desprezando tudo o mais, só de
Ti esperaram socorro na tribulação: [313] e é isto o que acontecerá, se
não me socorreres na devida altura.
Ora, quem Te procurou com maior amor? Quem Te adorou com maior
santidade? Quem é que alguma vez Te seguiu com maior diligência?
Por amor da glória do Teu nome fui insultado e o meu rosto expôs-se
ao maior opróbrio e ignomínia. Tornei-me um estranho para os meus
irmãos e os filhos da minha mãe, descendentes da mesma linhagem e
instruídos com os mesmos ensinamentos da santa república, afastaram-se
escandalizados com o vexame do meu suplício. Devora-me e me consome
o zelo da Tua casa; recaíram sobre mim os ultrajes que os homens
perversos lançam contra a Tua majestade. De facto, não tolero que a
Tua lei seja conculcada, que a religião seja desprezada, que a justiça
seja oprimida, que a santidade da Igreja seja violada, não suporto ver
manchados e pervertidos os costumes dos homens e, o que é o mais grave
de tudo, que se profiram indigníssimos insultos contra o Teu nome. É
que, como se não Te ocupasses com os assuntos humanos, ou como se
não pudesses punir o crime, ou como se as dádivas Te dissuadissem da
vingança, assim eles falsamente Te acusam de negligência ou de fraqueza
ou de injustiça, e, uma vez que não se arreceiam do Teu julgamento,
arremetem contra o Teu nome com toda a casta de insultos. Por isso,
vivamente me atormenta este agravo criminoso; não posso reprimir
esta justíssima indignação; este cuidado empurra-me para o suplício
e, finalmente, penso que devo suportar todos os ultrajes por forma a
apagar os ultrajes inferidos ao Teu nome, para que assim resplandeça o
brilho da Tua glória. Impelido por esta preocupação, atribulei vivamente
a minha alma com incessante pranto e jejum: algo que os meus inimigos
me lançaram em rosto como a maior das afrontas; ao vestir-me de luto
em sinal do justíssimo pesar, cevavam em mim a sua maledicência e,
462 D. JERÓNIMO OSÓRIO

corrodebant et nomen meum prouerbii uice ad exemplum


dementissimae temeritatis usurpabant. De me fabulantur
qui ad portam, in multitudinis conuentum, de more ueniunt,
et in conuiuiis, qui se uino intemperanter ingurgitant, me
carminibus et cantilenis petulantissimis irrident, et in omni
denique loco me maledictis acerbissime conscindunr. At ego,
in tantis angoribus, unum habeo totius maeroris et acerbitatis
alleuamentum, quod est in oratione, qua a Te opem enixe
contendere non desisto, constitutum.
Tempus enim ad benigne faciendum est ualde opportunum.
Scelus enim hostium iam ad summum peruenit, ita ut non sit
diutius tolerandum, cum facinoris et truculentiae magnitudo
uindictam flagitet et dolores quos pro alienis peccatis haurio,
tanti sint ut nullus ad eos cumulus possit accedere. Audi
igitur me, Domine, secundum Tuae clementiae et benignitatis
amplitudinem, cuius officium est maximo dolori maxima
uirtute succurrere et, secundum Tuae fidei constantiam,
quae Te admonere debebit ne promissum auxilium differas
et salutem confestim afferas illis qui sunt tibi foedere sacro
deuincti. Libera me, ne in lutum tantae foueae deprimar,
ne, undarum impetu contortus et solida palude demersus,
inteream; eripe me de inimicis meis, ne, aquarum uerticibus
absorptus, in profundum aluei gurgitem detrudar. Non me
differat aquae uehementissimae fluentis impetus; ne me
conficiat fluminis profunda uorago; neue imi gurgitis angustiae
exitum intercludant. Hoc, in summa, Te uehementer oro: ne
inimici mei, scelere et [314] amentia flagrantes, qui neruos
omnes ad mei nominis memoriam funditus euertendam
intendunt, conata perficiant. Te igitur, quantum possum, oro
et obsecro ut me audias; opem Tuam flagito; misericordiam
suppliciter imploro, quae tam salutaris et benefica est ut totius
calamitatis memoriam tollat, ita ut eos, qui miseriis erant
impliciti, florentes atque beatos efficiat. Tuum praesidiurn
flagito; opem Tuam uehementissime requiro et clementiam
Tuam supplex obtestor, ut, secundum beneficiorum Tuorum
multitudinem, qua miseros e taff1ictos consolaris, me respicias,
et a malis, quibus sum miserrirne circumuentus, educas. Non
auertas faciem Tuam ab hoc seruo Tuo, maxime enim me
premit angustia: quocirca a Te maiorem in modum peto ne
auxiilium differendum et procrastinandum existimes. Animae
meae Te praesentem siste; illam sine mora redime; ne hostes,
ut uictores, insultent, ad me liberandum accelera.
OPERA OMNIA TOMO IV 463

como se eu fosse um caso proverbial, serviam-se do meu nome como


paradigma do mais desvairado desatino. De mim falam os que, quando
há grandes ajuntamentos de povo, se costumam reunir às portas da
cidade, e nos banquetes, os que se embriagam escarnecem de mim com
cantilenas e poesias atrevidíssimas, e, em suma, por toda a parte sem
piedade me atassalham com insultos. Eu, porém, no meio de tamanhas
angústias tenho apenas um refrigério para todo o pesar e desgraça,
o qual se funda na oração com que não desisto de afincadamente Te
pedir ajuda.
Ora, a ocasião é sobremodo apropriada para agires com misericórdia.
É que o crime dos inimigos já atingiu o seu ápice, de tal maneira que se
tornou intolerável por mais tempo, uma vez que a grandeza do delito e
da violência reclamam castigo e são tão grandes as dores que sofro pelas
faltas alheias que é impossível acrescentar-se-lhes seja o que for. Por isso,
Senhor, escuta-me, em conformidade com a Tua imensa misericórdia e
bondade, cujo ofício é acudirem à máxima dor com a máxima eficácia e, em
conformidade com a firmeza da Tua fidelidade, que te deverá aconselhar
a que não adies o auxílio prometido e a que de imediato dês a salvação
àqueles que por uma sagrada aliança a Ti se uniram. Livra-me, para que um
pegão lamacento me não submirja nem eu morra arrastado pela violência
das ondas e engolido pela vasa; arranca-me das mãos dos meus inimigos,
para que, depois de ser arrastado pelos turbilhões das águas, eu não
seja atirado para o profundo remoinho do leito da corrente. Que não me
despedace o ímpeto da água correndo a grande velocidade; que não me
mate o fundo abismo do rio e que as passagens estreitas das profundas
gargantas não me obstruam a saída. Em suma, o que Te peço com toda
a instância é que os meus inimigos, avassalados por ímpetos criminosos
e [314] pela loucura e que empregam todas os esforços em destruir por
completo a memória do meu nome, não consigam levar a cabo os seus
intentos. Por conseguinte, suplico-Te e rogo-Te com todas as veras que
me escutes; peço a Tua ajuda; humildemente Te imploro misericórdia,
que é tão salutar e benéfica para remeter ao completo esquecimento a
desgraça, de tal maneira que dê a prosperidade e a felicidade àqueles
que estavam assoberbados pelos infortúnios. Peço o Teu auxílio; reclamo
de todo o coração a Tua ajuda e suplicantemente exoro a Tua clemência,
para que olhes para mim em conformidade com a multidão dos Teus
benefícios, com que consolas os desafortunados e aflitos, e me tires dos
males que infelizmente me assoberbam. Não desvies o Teu rosto deste teu
servo, pois sou muitíssimo oprimido pela angústia: por isso vivamente Te
peço que não creias que a ajuda deva ser diferida e protelada. Torna-Te
presente à minha alma; salva-a sem tardança; vem depressa libertar-me,
para que os inimigos não se regozijem como vencedores.
464 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Quibus conuiciis exagiter, quibus cotumeliis lacerer, quibus


ignominiae maculis inurar ab hostibus meis, Tu, Domine,
nosti: nam hostium perditissimi conatus, Te inspectante,
comparantur. Opprobrium afflictat cor meum; dolore
intolerando discrucior; spectaui an esset qui doloris mei
sensu moueretur, et neminem uidi, qui mihi solatium dare
conaretur, et neminem inueni; in cibum fel mihi porrexerunt,
et, cum sitirem, acetum mihi ad bibendum obtulerunt.
Sceleris igitur et immanitatis atrocitate, omnem sibi aditum
ad misericordiam praecluserunt, cum salutis auctorem tam
acerbo odio persecuti sint ut nullis illius suppliciis expleri et
satiari possent. Iuri igitur Diuino consentaneum est ut, qui
a se misericordiam repulere, iram diuinam subeant dirisque
suppliciis in perpetuum acerrime torqueantur. Primum quidem,
mensae eorum, e qua dapes exquisitas se sumpturos esse
confidunt, laqueus extentus sit, quo alligati teneantur ut se
expedire non possint. Mensa quidem est Scripturae Sanctae
disciplina, quam illi tantum percipiunt qui pura mente sunt
et splendore diuinae lucis illustrantur, reliqui uero, quos
impietas excaecauit, tantum abest ut ex illius studio fructum
percipiant, ut potius uenenum hauriant quo miseris modis
intabescant. Ad libidinem enim suam atque nefarium scelus
oracula diuina interpretari, et taetras tenebras clarissimis
rebus obducere, conantur. Taeterrimi igitur facinoris poenas
luent et laqueis irretiti tenebuntur, ut inde praecipites in
perpetuum cruciatum eiiciantur.
Obscurentur oculi eorum, ne uideant, et dorsum eorum
intolerandis oneribus deprimatur. Semper in tenebris et
mentis exsecranda caecitate uersentur, et ita sint sempiternae
seruitutis uinculis adstricti et immanibus tributis oppressi
ut numquam libere respirent. Effunde in illos iram Tuam
nec ullo pacto uim Tuae indignationis effugiant. Templo
et sacris aedificiis, quibus niti et confidere uidebantur,
extrema uastitas inferatur, et domus, quas incolebant,
quasi tabernacula diruantur, et uniuersa denique ciuitas
ab habitatoribus deferatur. Non sit ultra religio neque
sacerdotium nec res publica nec ullum denique legis priscae
uestigium neque splendoris antiqui monumentum. Illum
enim, Domine, quem Tu [315] percussisti, cuius eo tempore
condicio erat magis humanitate subleuanda quam doloris
additamento grauius affligenda, persecuti sunt, et mihi,
inflictis a Te uulneribus, petulantissimis uerbis insultarunt.
OPERA OMNIA TOMO IV 465

Tu, Senhor, estás ciente dos insultos com que sou perseguido pelos
meus inimigos, dos ultrajes com que eles me atormentam, das notas de
infâmia que sobre mim irrogam: na verdade, os perversos atentados dos
inimigos maquinam-se à Tua vista. O opróbrio atormenta o meu coração;
sou torturado por uma dor insuportável; procurei ver se havia alguém que
se comovesse com a minha dor, e não vi ninguém, alguém que tentasse
consolar-me, e não encontrei ninguém; como alimento, deram-me fel,
e, como eu estava com sede, ofereceram-me vinagre a beber. Portanto,
devido à ruindade do sentimento criminoso e da crueldade, tornaram-
se insensíveis à misericórdia, ao perseguirem o autor da salvação com
um ódio tão violento que não conseguem saciá-lo nem satisfazê-lo com
nenhuns suplícios a ele aplicados. Portanto, está em consonância com o
direito divino que os que afastaram de si a misericórdia experimentem
a ira divina e sejam severa e eternamente atormentados com terríveis
suplícios. Em primeiro lugar, que se arme uma cilada na sua mesa, de onde
estão confiantes de que hão de comer requintadas iguarias, e que nela
caiam de maneira a não puderem libertar-se. Ora, a mesa é a doutrina da
Santa Escritura, que só entendem aqueles que possuem uma inteligência
pura e que são iluminados pelo esplendor da luz divina, ao passo que
os restantes, a quem a impiedade cegou, estão tão longe de colherem o
fruto do estudo delas que antes aí bebem o veneno que os consome por
desgraçados modos. Com efeito, esforçam-se por interpretar os oráculos
divinos de acordo com o seu capricho e o seu sacrílego instinto criminoso
e por obscurecer coisas claríssimas com trevas abomináveis. Portanto,
receberão o castigo do mais abominável dos atentados e cairão nas malhas
das armadilhas, para daí serem precipitados no tormento eterno.
Que os seus olhos se obscureçam, para que não vejam, e as suas costas
se abatam sob cargas intoleráveis. Que vivam continuamente nas trevas
e numa execrável cegueira de entendimento, e de tal modo os atem os
grilhões da eterna servidão e os oprimam cruéis imposições que nunca
possam respirar livremente. Deixa cair sobre eles a Tua ira e que lhes
seja totalmente impossível escapar à violência da Tua indignação. Que a
mais completa devastação se abata sobre o templo e os edifícios santos
em que pareciam apoiar-se e ter confiança, e que as casas, que habitavam,
venham abaixo à semelhança de tendas, e que, por derradeiro, a cidade
inteira seja abandonada pelos seus habitantes. Que acabe a sua religião
e o seu sacerdócio e o seu Estado e, finalmente, que não fique nenhum
vestígio da primitiva lei nem nenhum sinal do antigo esplendor. É que,
Senhor, perseguiram aquele que Tu castigaste, [315] aquele cujo estado,
nesta altura, mais era merecedor de ser consolado com humanidade do que
mais intensamente atribulado com um acréscimo de dor, e com palavras
cheias de impudência insultaram-me pelas feridas que me infligiste.
466 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Scelus eorum (ut euenit iis qui in uiam redire nolunt et


ab ope Tua deserunt) scelerum accessione cumuletur et
iustitiae Tuae, quae numinis Tui gratia continetur, participes
numquam fiant. Deleantur e libro uiuentium et in iustorum
coetu minime censeantur. At me, inopia conflictatum et
doloribus oppressum, misericordia Tua, Domine, subleuabit
et in altissimo gradu constituet.
Cum igitur e tenebris emersus et a mortuis excitatus fuero,
nomen Domini carminibus et canticis laudabo et gratiarum
confessione illius decus et gloriam in caelum efferam. Quod
quidem munus illi oblatum erit longe gratissimum et multo
magis acceptum quam si bouem aut tenerrimum uitulum, cuius
cornua et ungues recenter eminerent, in sacrificium obtulissem.
Cum enim legis sacrificium aspernetur, gratiarum sacrificium
requirit et, quo beneficium amplius et magnificentius est, eo
laudis sacrificium est Illi iucundius. Cum ergo nullum umquam
beneficium amplius et maius exstiterit, consequens est ut mea
laus, in maximo omnium beneficio tributa, maxime omnibus
sanctitatibus antecellat. Humiles et afflicti in me intuentes
omni cura et sollicitudine leuabuntur et gaudio mirifice
triumphabunt. Animis exsultate, omnes qui Deum quaeritis,
animi namque uestri, gratiae Diuinae compotes, sempiterna
uita perfruentur. Audit enim pauperes Dominus et uictos Suos
a tenebris educet, ut in caelitum gloria et iucunditate uersertur.
Caelestis regio Domini laudem celebret; terra in gloriam
Illius laeta uoce circumsonet; maria omnia, cum animantibus
quae in aquis natant et in profundo uolutantur, exsultent.
Dominus enim salutem afferet Sioni caelesti et Iudaeae
ciuitates aedificabit et homines fideles in illis habitabunt
et ius sempiternae ciuitatis obtinebunt. Posteri eorum qui
Domino seruiunt in hereditariam illius possessionem uenient
et qui diligunt nomen Eius, quocumque genere illi sint et
quacumque ex regione sint adsciti, in ea sedes stabiles atque
sempiternas habebunt.

Deus, in adiutorium meum intende.


Psal. 69. Apud Heb. 70

Dauid, similiter atque in carmine praecedenti fecit, ita in


hoc sibi auxilium in uitae discrimine petit ut mentem a Christi
OPERA OMNIA TOMO IV 467

Que o crime deles (como acontece aos que não querem arrepender-se e
renunciam à tua ajuda) se acrescente com novos crimes e que nunca se
tornem participantes da Tua justiça, que assenta na graça do Teu poder
divino. Que sejam riscados do livro dos vivos e que os não façam constar
da lista dos justos. Mas a mim, atribulado pela pobreza e oprimido pelas
dores, a Tua misericórdia, Senhor, há de aliviar-me e colocar-me na
posição mais cimeira.
Por isso, quando surgir das trevas e ressuscitar de entre os mortos,
hei de louvar o nome do Senhor com cânticos e poemas e, confessando
as graças recebidas, elevarei até ao Céu a sua honra e glória. Certamente
que esta oferta lhe há de ser de longe mais agradável e muitíssimo
mais aceita do que se lhe oferecesse em sacrifício um boi ou um
tenro vitelo cujos chifres e unhas começassem a despontar. É que, se
rejeita o sacrifício da lei, é porque exige um sacrifício de graças, e,
quanto maior e mais esplêndido é o sacrifício, tanto mais agradável
Lhe é um sacrifício de louvor. Logo, uma vez que jamais existiu um
sacrifício maior e mais importante, segue-se necessariamente que o
meu louvor, dado ao maior de todos os benefícios, supera em muito
todas as demonstrações de religiosidade. Os humildes e atribulados,
pondo em mim os olhos, sentir-se-ão aliviados de todo o cuidado e
inquietação e maravilhosamente exultarão de alegria. Regozijai-vos,
todos os que procurais a Deus, porquanto as vossas almas, possuidoras
da graça divina, hão de desfrutar da vida eterna. É que o Senhor escuta
os pobres e arrancará das trevas os Seus cativos, para que vivam na
glória e alegria dos seres celestiais. Que a região celestial celebre
o louvor do Senhor; que a terra faça ressoar com voz festiva a Sua
glória; que se alegrem todos os mares juntamente com os animais que
nadam nas águas e se movem nas profundezas. É que o Senhor trará
a salvação à Sião celestial e edificará as cidades da Judeia e nelas
habitarão os homens fiéis e obterão o direito da cidadania eterna.
Os descendentes dos que servem o Senhor alcançá-la-ão por posse
hereditária e os que amam o nome d'Ele, seja qual for a sua raça e
independentemente da região de onde vierem, terão nela uma morada
estável e eterna.

SALMO 69
(70 entre os Hebreus)
Ó Deus, atende ao meu socorro.

David, à semelhança do que fez no salmo anterior, pede para si ajuda


em situação de perigo de vida de tal maneira que não aparta o seu
468 D. JERÓNIMO OSÓRIO

supplicio minime remoueat et diras non tam suis inimicis


quam illius hostibus imprecetur.
Domine, inquit, uim Tui numinis excita ut me ab inimicis
meis, qui me circumsessum tenent, eripias, et, ut uitam
meam salutari praesidio confirmes, celeritatem suscipe,
nec enim est dissimulandum facinus, sed cum festinatione
coercendum, ne, sceleris exemplo, multos mortales inficiat,
neque periculum, in quo uersor, neglegendum, ne prius hostes
uoti compotes fiant quam subsidium afferatur. Perturbati
atque confusi discedant et ignominia deformentur omnes qui
[316] animae meae interitum moliuntur; metu perterriti cum
insigni dedecore fugiant qui summo studio et contentione mihi
mala comparant. In poenam contumeliarum quas imponere
mihi conati sunt, dedecoris extremi contumelias patiantur
qui mihi in aerumnis insultant et, quotiens me afflictum
adspiciunt, inter se, cum effrenata uerborum petulantia, de
meo incomodo gratulantur. Laetitia efferanturin nominis
Tui gloriam et insigni gaudio cumulentur qui Te quaerunt
et, presidio Tuo defensi et muneribus Tuis exornati, gratias
agant Tibi qui non aliunde quam a Te salutem expetunt,
et Christum Tuum, in quo salus generis humani consistit,
incensis animis amplectuntur.
Vides me uehementer afflictum; uides ab omnibus rebus
inopem humanoque auxilio prorsus orbatum. Propera igitur;
celeritatem incita; auxilium Tuum festinanter affer, ut per
Te ipsum me liberes et in loco tutissimo constituas, ne ad
meam perniciem hostium scelus euadat. O Domine, Te mihi
auxilio minime defuturum confido, sed, cum neque humana
imbecillitas neque diuinae gloriae cupiditas dilationem pati
queat, Te uehementer etiam atque etiam oro et obsecro ne
praesidium Tuum res ulla remoretur.

In te, Domine, speraui;


non confundar in aeternum.
Psal. 70. Apud Heb. 71

Eandem materiam et eadem mente persequitur uir diuinus


quam in praecedenti psalmo tractauit, quare minime necesse
est lectorem de argumento illius admonere.
Domine, inquit, semper in clementia Tua spem firmam habui,
quae numquam me fallet, et idcirco ignominiam temeritatis, quae
OPERA OMNIA TOMO IV 469

espírito do suplício de Cristo e lança imprecações não tanto contra os


seus adversários, mas contra os inimigos de Cristo.
Senhor, diz ele, acorda a força do Teu poder para me arrancares dos
meus inimigos, que me mantêm cercado, e mostra-Te célere em fortalecer
a minha vida com salutar socorro, porquanto não cumpre negligenciar-
se a ação criminosa, mas deve atalhar-se a ela com presteza, para evitar
que muitos mortais se corrompam com o exemplo do crime, e tão-pouco
cumpre votar-se a descaso o perigo em que me encontro, para que os
adversários não se apoderem da oferenda antes de a ajuda ser dada. Que
se apartem perturbados e confusos e sejam desfigurados pelo opróbrio
todos os que [316] maquinam a morte da minha alma; transidos de medo
fujam com enorme desdouro os que com a máxima diligência e desvelo
me aprontam males. Que, como castigo dos insultos que se empenharam
em proferir contra mim, sofram os insultos do mais extremado desdouro
os que nas provações me ultrajam, e, sempre que me vêem atribulado,
usando de impudentes palavras desenfreadas, regozijam-se entre si com as
minhas dificuldades. Que para glória do Teu nome se exaltem de alegria
e se encham de desmedido contentamento os que Te procuram, e que,
defendidos com a Tua ajuda e ornamentados com os Teus presentes, Te
dêem graças os que procuram obter a salvação não de outra origem que
não sejas Tu, e com abrasadas almas abraçam o Teu Cristo, no qual se
funda a salvação do género humano.
Vês-me fortemente atribulado; vês-me pobre de todas as coisas e
totalmente privado de ajuda humana. Por isso, dá-Te pressa; sê célere;
oferece-me com presteza o Teu auxílio, de maneira a por Ti mesmo me
libertares e me colocares em lugar totalmente seguro, para que o crime
dos inimigos não redunde em perdição minha. Senhor, tenho confiança
em que não me hás de faltar com o Teu socorro, mas, uma vez que nem a
fragilidade humana nem o desejo da glória divina podem suportar dilação,
veementemente te suplico e rogo repetidas vezes que coisa alguma faça
retardar a Tua ajuda.

SALMO 70
(71 entre os Hebreus)
Em Ti, Senhor, tenho esperado, não seja eu jamais confundido.

O divino varão trata no mesmo sentido e o mesmo assunto de que


se ocupou no salmo precedente, pelo que não se faz mister advertir o
leitor acerca do seu tema. Diz:
Senhor, sempre depositei na Tua misericórdia firme esperança, que
nunca me falhará, e por isso não me arreceio da ignomínia do desatino, que
470 D. JERÓNIMO OSÓRIO

confidentiam inanem consequitur, minime reformido. Ignominia


enim notabuntur illi qui uanitate et mendacio nituntur, non
illi qui fiducia gratiae Tuae muniuntur. Iustitia Tua libera me,
cum uideas uitam meam calumniis et iniquitate circumueniri;
a perditorum hominum fraudibus et insidiis eripe me; aures
Tuas ad preces meas accommoda, ut me saluum et incolumem
contra inimicorum meorum conatu sufficias. Esto mihi rupes,
natura et praesidio munitissima, in quam me tuto recipiam. Nam
ideo salutis meae custodiam angelis Tuis commisisti, quia Te
mihi semper et arcem inexpugnabilem et castellum inuictissimo
praesidio cinctum praebuisti. Ex impii manu, quam contra
me scelestissime comparauit, erue me; contra opes hominis
inuictissimi et delatoris acerbissimi animum meum auxilio
Tuo protege, illiusque impetum a me procul expelle. Tu enim,
Domine, es spes mea et Deus meus, et iam inde a primis annis
uitae meae robur atque firmamentum. Quin etiam in utero
matris meae misericordia Tua sustentatus sum et inde numinis
Tui beneficio in lucem editus fui, quocirca laudes tuae in ore
meo uersabuntur et numquam de Tua erga me beneficentia
conticescam.
Vitae dissimilitudo et rarissimae uirtutis [317] exemplum
multis admirationem commouebat et tantum odium ex inuidia
concitabat ut me, tamquam monstrum atque prodigium,
insectarentur. Verum Tu, Domine (quemadmodum speraui),
me contra inimicos meos firmissimo praesidio muniuisti. Os
meum laudibus Tuis plenum sit et perpetuo gloriam Tuam
concelebret: quod fiet cum uidero multos, disciplinis meis
admonitos, libidines et flagitia repellere et in studium pietatis
ardenter incumbere eorumque operibus admirandis nominis
Tui sancttissimi decus amplificari. Hoc autem est iuuentutis
meae robur; hic florentis aetatis uigor; hoc gloriae militaris
ornamentum. At cum senuero, hoc est, cum progressu
temporis fides paulatim defecerit et ardor animorum refrixerit
et pietatis uires attenuatae fuerint, ne proiicias me, Domine,
neue Ecclesiam Tuam funditus euerti et interire permittas.
Nec enim solum quamdiu in mortali uita maneo consilium
ineunt inimici mei, qui perpetuo animo meo insidias intendunt
et in eo maxima contentione laborant, ut me crudeli morte
conficiant nomemque meum e terris exterminent, sed etiam
post mortem meam cogitationem hanc totis animi uiribus
amplectentur, ut memoria nominis mei radicitus euellant et
studium uerissimae pietatis exstinguant.
OPERA OMNIA TOMO IV 471

acompanha uma confiança vã. É que serão criticados como ignominiosos


aqueles que se apoiam na vaidade e na mentira, e não aqueles que se
defendem com a confiança na Tua graça. Com a Tua justiça liberta-me, ao
veres que a minha vida está rodeada de calúnias e iniquidade; arranca-
me dos enganos e ciladas dos homens perversos; ajusta os Teus ouvidos
aos meus rogos, para me salvares e conservares imune dos atentados
dos meus adversários. Sê para mim alta fraga, sobremodo protegida pela
natureza e recursos defensivos, para que a ela me acolha com segurança.
Com efeito, encarregaste os Teus anjos da custódia da minha segurança
porque para mim sempre Te ofereceste como um baluarte inexpugnável e
um castelo rodeado de invictíssima defesa. Arranca-me da mão do ímpio,
que se levantou contra mim com o maior dos crimes; com a Tua ajuda
defende a minha alma contra os recursos do homem invencível e meu
impiedoso acusador, e afasta para longe de mim as suas arremetidas. É
que Tu, ó Senhor, és a minha esperança e o meu Deus, e a minha força
e esteio já desde os primeiros anos da minha existência. E até no ventre
da minha mãe fui socorrido pela Tua misericórdia e depois fui dado à
luz por mercê do Teu poder divino, pelo que sempre na minha boca hão
de estar presentes os Teus louvores e nunca remeterei ao silêncio a Tua
bondade para comigo.
A dissemelhança de vida e o exemplo de uma virtude muitíssimo
rara [317] despertavam admiração a muitos e provocavam, por inveja,
tão grande ódio que me perseguiam como um monstro e aberração da
natureza. Mas Tu, ó Senhor (consoante eu esperei), armaste-me de uma
solidíssima proteção contra os meus adversários. Que a minha boca se
encha com os Teus louvores e incessantemente celebre a Tua glória:
algo que se fará quando eu vir rechaçarem as paixões e as infâmias
muitos aos quais aconselhei com os meus ensinamentos e ardentemente
se consagrarem ao zelo da piedade e com as suas admiráveis obras
aumentar-se o lustre do Teu santíssimo nome. Ora, este é o vigor da
minha mocidade; esta a força da minha idade florente; este o garbo da
glória militar. Mas, quando envelhecer, isto é, quando com o avançar
da idade aos poucos a fé esmorecer e o ardor do ânimo esfriar e o
entusiasmo da piedade se enfraquecer, não me abandones, ó Senhor,
nem permitas que a Tua Igreja pereça e seja totalmente arruinada. É que
não é só enquanto permaneço na vida mortal que os meus adversários
se reúnem para maquinar e incessantemente armam ciladas contra o
meu espírito e com o máximo esforço se empenham em causar-me cruel
morte e banirem da face da terra o meu nome, mas também empregam
todas as energias do ânimo em pensarem como, após a minha morte,
arrancarem de raiz a lembrança do meu nome e suprimirem o zelo da
mais verdadeira piedade.
472 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Dicunt enim: “Deus illum deseruit; hostibus illius fauet;


illius uires debilitat; hostibus uictoriam concedit; illius autem
opes exhaurit: quod est odii non mediocris argumentum.
Illum igitur acerrimo bello persequimini; illum capite
acerbissimoque dominatu comprimite, cum nemo sit iam qui
eum e manibus uestris extorqueat.” Itaque non me solum
falso sceleris accusant, uerum et de Tua fide male sentiunt,
cum fere suspicantur ut eum, quem Tu tantis muneribus et
ornametis excoluisti, ad tantos honores euexisti et Tecum
foedere amoris sempiterno coniunxisti, ope Tua nudes, et
sempiterni hostis immanitati peruertendum et spoliandum
permittas. Magnum est hoc malum; ingens discrimen;
facinus immane nec ullo modo tolerandum. Non igitur, o
summe Domine, a me Te procul amoueas, sed ad ferendum
auxilium appropera. Dedecore summo cumulentur, exitio
calamitoso consumantur hostes animae meae, qui pietati
aduersantur; qui religionem oppugnant; qui uirtuti interitum,
perditissimo conatu, moliuntur; contumelia et ignominia
deformentur qui mala in statum meum, hoc est, in caelestem
diciplinam, inuehere et importare conantur. Nec enim quod
cupiunt ullo modo perficient, immo quo uehementius
pietatem impugnauerint, eo magis efflorescet et multo
clarius splendore diuino collucebit. Illi uero perturbati et
turpitudinis sempiternae maculis inusti, meritas poenas
exsoluent. At ego numquam a spe, in Tua gratia et benignitate
posita, decidam, sed recentibus in dies beneficiis auctus, ad
antiquas laudes quotidie recentes adiiciam et gloriam Tuam
perenni praeconio celebrabo. Os meum annuntiabit iustitiae
Tuae donum, quod, in animos eorum qui Te fide incensa
colunt, congessisti, et salutem, quam illis, quos muneribus
diuinis ornasti, large atque munifice contulisti; numerum
beneficiorum Tuorum minime recensere, prae multitudine
eorum, possum.
[318] In potentiae diuinae considerationem ingrediar; et
roboris inuicti magnitudinem contemplabor; et iustitiam, qua
Satanae superbiam compressisti, flagitiis interitum attulisti,
animos tyrannide peccati oppressos in libertatem uindicasti
et iustitiae diuinis ornamentis affecisti commemorabo; nec id
hominum meritis antegressis, sed clementiae Tuae solum, o totius
decoris et honestatis effector, attribuam. Tu me, a pueritia mea
ad hanc aetatem, caelestibus disciplinis instruxisti. Itaque opera
Tua, nimis admiranda, silentio minime compressa continebo, sed
OPERA OMNIA TOMO IV 473

Com efeito, dizem: “Deus abandonou-o; favorece os inimigos dele;


debilita-lhe as forças; concede a vitória aos adversários dele; por outro
lado, tirou-lhe as riquezas: algo que é prova não somenos de ódio.
Por conseguinte, fazei-lhe impiedosa guerra; agarrai-o e retende-o
com dura firmeza, uma vez que já não existe ninguém que o arranque
das vossa mãos.” E assim não só me acusam falsamente de crime, mas
também têm opinião errada sobre a Tua lealdade, uma vez que quase
suspeitam que privas da Tua ajuda aquele a quem ornaste com tão
grandes dádivas e atavios, a quem elevaste a tão importantes honrarias
e com quem Te uniste mediante um pacto eterno de amor, e permites
que seja destruído e esbulhado pela crueldade do inimigo sempiterno.
Este é um grande mal; um perigo imenso; uma situação cruel e de modo
algum tolerável. Por conseguinte, ó supremo Senhor, não Te afastes
para longe de mim, mas apressa-Te em oferecer-me auxílio. Que se
cubram com o maior desdouro, que sejam consumidos por calamitosa
destruição os inimigos da minha alma, que hostilizam a piedade; que
se opõem à religião; que com perversíssimos esforços maquinam a
morte da virtude; sejam aviltados pelo ultraje e a ignomínia os que
se empenham em acarretar e trazer males contra a minha posição,
ou seja, contra os ensinamentos celestiais. É que tão-pouco de forma
alguma hão de levar a cabo o que vivamente desejam, e até quanto
mais violentamente se opuserem à piedade, tanto mais florirá e mais
claramente resplandecerá com divino lustre. Mas esses, perturbados
e aviltados pelas manchas de torpeza sempiterna, hão de receber os
merecidos castigos. Eu, porém, nunca hei de apartar-me da esperança
depositada na Tua graça e bondade, mas acrescentado de dia para dia
com os benefícios recentes, às antigas loas hei de de cotio acrescentar
as mais novas e celebrarei a Tua glória com incessante pregão.
A minha boca anunciará o presente da Tua justiça, que colocaste nas
almas daqueles que Te adoram com abrasada fé, e a salvação, que
larga e generosamente ofereceste àqueles que ataviaste com divinas
mercês; e, dado o grande número deles, não posso arrolar o número
dos Teus benefícios.
[318] Aplicar-me-ei à ponderação do poder divino; e contemplarei
a grandeza de Sua invencível força; e recordarei a justiça com que
esmagaste a soberba de Satanás, ocasionaste a morte das infâmias,
libertaste as almas oprimidas pela tirania do pecado e as ataviaste com
os divinos ornamentos da justiça; e não atribuirei isto a anteriores
merecimentos dos homens, mas unicamente à Tua misericórdia, ó
autor de toda a honra e primor. Tu, desde a minha meninice até
esta idade, me instruíste nos celestiais ensinamentos. E por isso não
manterei em silêncio as Tuas obras, sobremaneira espantosas, mas
474 D. JERÓNIMO OSÓRIO

cunctis hominibus, ut salutem consequantur, annuntiabo. Non


in Ecclesiae tantum primordio atque iuuentutis, quam meam
appellare merito possum, robore, sed usque ad illius senectam
et canitiem, idem spiritus meus in ea uigebit, ut posteritatem
ad notitiam brachii Tui, hoc est, immensae uirtutis, erudiat,
et omnes qui deinceps diuino fidei satu, usque ad extremum
generis humani finem, propagandi sunt, ad notitiam Tui nominis
et infinitae potestatis instituat. Iustitiam Tuam, Domine, quae
supremum fastigium penetrat, oratione referam; et magnitudinem
operum, quæ consilio mirabili designasti et immensa uirtute
perfecisti, laudibus sempiternis extollam.
Quis enim ad similitudinem Tuae sapientiae atque
probitatis accedet? Tu enim primum me multis angoribus
atque doloribus attriuisti; Tu me multis rebus asperrimis,
perpessuque difficillimis, afflixisti. Deinde, postquam opus
humanae salutis, per supplicia mea, suis numeris ablolutum
fuit, ad misericordiam conuersus, me in uitam reuocasti et
ab ima terrae profunditate in regionem superam reduxisti,
ut in diuina sede reponeres. Magnificentiam meam noui
splendoris accessione cumulasti et uitam meam solatiis
sempiternae iucunditatis circumsaepsisti. Non igitur illi
tantum qui opera mea sunt e tenebris educti, sed ego
etiam ex eorum salute uoluptatem ingentem percipiam;
et Tibi gratias semper agam; ad organa musica fidei Tuae
constantiam perpetuo concinam. Omnia namque quae fueras
patribus nostris olim pollicitus, quae foedere sacrosancto
pepigeras, quorum exspectatione prophetas ad conspectum
Tui numinis excitaueras, cumulate praestitisti, ut nemo
possit fidei Tuae opem requirere. O sanctissime Domine,
Israelis firmissimum in omni temporum uarietate praesidium,
Tibi canam citharaque mea laudes Tuas carmine perpetuo
resonabit. Exsultabunt labia mea cum gloriam Tuam cecinero,
et anima mea, quam e mortis truculentia redemisti, ingenti
laetitia et uoluptate cumulabitur. Lingua mea in iustitiae
Tuae continua meditatione uersabitur: nam ignominiosa
uerecundia conturbati et insigni dedecore contaminati sunt
omnes qui de meo interitu atque pernicie cogitabant.
OPERA OMNIA TOMO IV 475

hei de anunciá-las a todos os homens, para que obtenham a salvação.


Não só no princípio da Igreja e no vigor da mocidade que com
razão posso chamar minha, mas até à sua idade provecta e velhice,
nela há de viçar o mesmo espírito meu, para ensinar à posteridade
o conhecimento do Teu braço, ou seja, da Tua imensa virtude, e dê
a conhecer o Teu nome e o Teu poder infinito a todos os que em
seguida devem descender da divina linhagem da fé até ao termo final
do género humano. Falarei, ó Senhor, da Tua justiça, que penetra
nas supremas alturas; e com louvores sempiternos hei de exalçar a
grandeza das obras que com admirável deliberação pensaste e com
imensa virtude puseste por obra.
Na verdade, quem há de aproximar-se da semelhança com a Tua
sabedoria e probidade? É que Tu primeiramente maceraste-me com
muitas angústias e dores; atribulaste-me com inúmeras provações,
muitíssimo dificultosas de suportar-se. Em seguida, depois que se
consumou inteiramente a obra da salvação humana, mediante os meus
suplícios, voltando-Te para a misericórdia, tornaste a chamar-me para
a vida e reconduziste-me das profundezas da terra para as regiões
mais elevadas, a fim de me voltares a colocar na morada divina.
Acrescentaste novo esplendor à minha grandeza e rodeaste a minha
vida com o refrigério do sempiterno contentamento. Por conseguinte,
não apenas aqueles que por obra minha foram tirados das trevas, mas
eu também sentirei imenso prazer com a salvação deles; e sempre Te
darei graças; ao som de músicos instrumentos, hei de incessantemente
cantar a firmeza da Tua fé. Com efeito, tudo o que outrora prometeras
aos nossos pais, tudo o que estabeleceras por sacrossanto pacto e
em virtude de cuja expectativa incitaras os profetas a terem os olhos
postos na Tua divindade, cumpriste-o cabalmente, de maneira que
não há ninguém que possa sentir a falta da ajuda do Teu socorro. Ó
santíssimo Senhor, solidíssimo esteio de Israel em toda a variedade
de tempos, a Ti hei de cantar e a minha cítara há de entoar com
incessante melodia os Teus louvores. Os meus lábios hão de exultar
quando cantar a Tua glória, e a minha alma, que salvaste da violência
da morte, será cumulada de imensa alegria e prazer. A minha língua
entregar-se-á à incessante meditação da Tua justiça: é que se sentiram
perturbados por infame pejo e cobriram-se de imenso desdouro todos
os que tramavam a minha morte e perdição.
476 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Deus, iudicium Tuum Regi da.


Psal. 71. Apud Heb. 72

Qui dubitat an Dauidis mens et cogitatio in Christo


defixa sit, hunc psalmum attentissima consideratione legat,
et ita omnem dubitationem [319] relinquet, et diuinos
huius sanctissimi uiri sensus admirabitur. At psalmus
Salomonis inscribitur. Verum. Gessit enim Salomon, sapientiae
magnitudine, diuitiarum affluentia, pacis Christo nomen
illius accommodatur, quemadmodum et Dauidis nomen
apud prophetas impositum Christo saepe conspicimus.
Aliter enim, quo tandem modo se Iudaei, aut illi qui Iudaeos
sequuntur, expedient? Quando enim fuit Salomoni Dei
iudicium tributum, ita ut non secundum testes et conuenta
et cognitionem, sensibus usurpatam, sed secundum ueritatis
ipsius constantiam, mente perceptam, iudicaret? Quando tanta
felicitate imperium propagauit ut illud esset ultimis terris
definitum? Deinde, quae fuit illa iustitiae tempore Salomonis
ubertas et affluentia, quae populum expleret, ad ipsum uero
regem minime perueniret? Dei enim religionem, in qua summa
iustitiae consistit, per effrenatam libidinem impie atque nefarie
uiolauit. Quid illud de regni florentis aeternitate quo modo
in Salomonis regnum quadrat, exiguo sane temporis spatio
terminatum? Postremo, quod additum est, omnes nationes
per illum fore exsecratione liberandas, qua tandem ratione in
Salomonem conueniet? Num peccati uires elisit? Num Satanae
imperium deleuit? Num falsam religionem sustulit, ut ueram
in terris uniuersis institueret? Num Dei bonitatem, grauiter
offensam uniuerso generi humano, placauit, ut ita demum
iustitiae diuinam formam in mentibus humanis insculperet?
Non fuit ea uis Salomoni, non ea imperii maiestas, non ea
uirtutis amplitudo, non ea denique potestas attributa ut opera
diuina atque sempiterna moliretur. Ecce magis, inquit Rex
ille sempiternus, quam Salomon hic. Ad illum igitur animum
referamus; illius potentiam admiremur; illius clementiam
amemus; et laudes regni florentissimi, quod Dauid hoc
carmine fecit, oratione persequamur. Ait enim:
Domine, uides, quam fallax sit hominum iudicium. Exsulat
enim ueritas; hominum potentium gratia dominatur; munera
rectam mentem eripiunt; et, quamuis aliquis sit qui recte
iudicare uelit, munere suo perfungi non potest, cum illius
OPERA OMNIA TOMO IV 477

SALMO 71
(72 entre os Hebreus)
Ó Deus, dá o Teu juízo ao rei.

Quem duvida se o entendimento e pensamento de David estavam fixos


em Cristo, leia com ponderada atenção este salmo, e assim não lhe restará
qualquer dúvida [319] e admirará os divinos sentimentos deste santíssimo
varão. O salmo, porém, é endereçado a Salomão. É verdade. Com efeito,
pela grande sabedoria, abundância de riquezas e quietação da paz Salomão
figurou em morte-cor a imagem de Cristo, Rei eterno, e por esse motivo
ajusta-se a Cristo o nome dele, da mesma maneira que também vemos
muitas vezes nos profetas dado a Cristo o nome de David. É que, caso
contrário, como é que ao cabo os judeus, e os que os acompanham, hão de
desenredar-se? Com efeito, quando é que foi atribuído a Salomão o juízo de
Deus, de tal maneira que pudesse julgar, não de acordo com as testemunhas
e os tratados e o conhecimento adquirido pelos sentidos, mas de acordo
com a firmeza da verdade em si mesma, apreendida pelo entendimento?
Quando é que dilatou com tão grande ventura o seu domínio que este
tivesse como limites os confins da terra? Em seguida, que abundância e
fertilidade de justiça foi aquela no tempo de Salomão, que fartava o povo,
mas que não alcançou o próprio rei? Com efeito, devido à sua desenfreada
sensualidade, ímpia e sacrilegamente atentou contra a religião de Deus,
na qual assenta a mais elevada justiça. Como é que se ajusta ao reino de
Salomão, delimitado por exíguo prazo de tempo, aquilo que se diz sobre
a eternidade do reino florescente? Finalmente, como é que se adaptará
enfim a Salomão aquilo que se acrescenta, ao dizer que todas as nações
através dele hão de libertar-se da execração? Acaso quebrou as forças do
pecado? Acaso destruiu o senhorio de Satanás? Acaso suprimiu a falsa
religião, para estabelecer em toda a terra a verdadeira? Acaso aplacou a
bondade de Deus, gravemente ofendida contra todo o género humano, de
maneira a desse modo enfim gravar nos entendimentos humanos a forma
divina da justiça? A Salomão não foi concedida tamanha força, nem tal
majestade de soberania, nem tão grande virtude, nem, finalmente, tanto
poder que pudesse levar a cabo obras divinas e eternas. Eis este que é
mais do que Salomão, diz aquele Rei sempiterno. Portanto, tomemo-lo
como modelo da nossa alma; admiremos o seu poder; amemos a sua
misericórdia; e louvemos o florentíssimo reino, que é o que David fez
neste salmo. Com efeito, diz:
Senhor, vês como é falso o juízo dos homens. Com efeito, a verdade
foi banida; a influência dos homens poderosos senhoreia; as dádivas
impedem o reto entendimento; e, ainda que haja alguém que queira
julgar com retidão, não pode cumprir a sua obrigação, uma vez que o
478 D. JERÓNIMO OSÓRIO

iudicium e sensibus oriatur; sensibus autem omnes insidiae


perditorum hominum fraudibus intendantur. Nihil est in uita
purum; nihil simplex; nihil integrum; nihil non dolis infinitis
obnoxium. Quod ergo remedium tantis malis adhiberi poterit?
Vnum certe, cuius dilationem ferre non possumus. Veniat
tandem Rex ille summus, cuius spes animos nostros erigit et
eosdem, interposita tanti boni mora, uehementer affligit. Da
iudicium Tuum regi huic sanctissimo et iustitiae sanctitatem
cum regis filio (ex me enim, quem regem effecisti, temporibus
consilio Tuo definitis orietur) perfecte communica. Nemo
illum in iudicando decipiet, quia non sensus, qui saepissime
falluntur, in consilium adhibebit, sed secundum ueritatem,
quam diuina mente percipiet, sententiam feret. Ius dicet
populo Tuo, cum iustitiae integritate; et causam pauperibus
Tuis, iniquo iudicio oppressis, adiudicabit.
Montes ferent pacem populo et colles iustitiam [320]
producent. Immanitas enim et odium omnino compressum
silebit; hominum caritas excitabitur; pietas exstincta reuiuiscet;
laetissimae fruges iustitiae passim orientur, usque adeo ut
montes etiam horridi et inculti fructus uberrimos iustitiae
profundant. Iuris aequabilitate pauperes populi, contra
ius afflictos, subleuabit; pauperum filiis, omni praesidio
destitutis, salutem dabit, et calumniatorem seuero iudicio
peruertet. Omnes enim qui sibi nihil attribuunt, qui se coram
amplitudine Tuae maiestatis abiiciunt et in Te solo omnem
spem salutis positam habent calumniis eripiet; et calumniae
auctorem tenebrarumque principem, cuius officium est
hominibus sanctis falsum crimen intendere, praecipitem
exturbabit. Instaurata per illum religio nullis finibus arcebitur,
erit enim sempiterna. Qui enim nomen illi dederint, quamdiu
Sol caelum conuersione sua lustrauerit et quamdiu Luna
nocturnam caliginem splendore suo dispulerit, nomen Tuum
uerebuntur et sacra Tua casta et pura mente conficient. Vt
pluuia, in detonsum pratum demissa, tellurem ipsam, uiriditate
nudatam, laetissimo rursus gramine uestit, et perinde atque
imbres effusi aridam terrae faciem emolliunt et fecunditatem
aruis inducunt, ita illius gratia, in animos, flagitiorum solibus
exustos, diffusa, eos irrigabit, ex illisque laetissima iustitiae
pabula uberrimasque fruges uirtutis excellentis eliciet.
In diebus illius, hoc est, quamdiu ipsius Regis aeterni
splendor diuinus in mentibus humanis illuxerit, iustus quilibet
germinabit atque salutarem fructum in communem utilitatem
OPERA OMNIA TOMO IV 479

seu juízo nasce dos sentidos; ora, os enganos dos homens perversos
armam contra os sentidos toda a espécie de ciladas. Nada existe de
puro na vida; nada de singelo; nada de íntegro; nada que não esteja
sujeito a infinitos enganos. Então, que remédio poderá aplicar-se a tão
grandes males? Certamente que só um, cuja dilação não podemos tolerar.
Que venha enfim aquele Rei supremo, com cuja esperança se alentam
as nossas almas, fortemente atribuladas com a demora de tão grande
bem. Oferece o Teu juízo a este santíssimo rei e partilha totalmente
a santidade da justiça com o filho do rei (pois nascerá de mim, nos
tempos definidos pela Tua deliberação, aquele a quem fizeste rei). Ao
julgar, ninguém o enganará, porque não consultará os sentidos, que
mui amiúde enganam, mas pronunciará sentença em conformidade com
a verdade que com divino entendimento há de abarcar. Exporá a lei ao
Teu povo, juntamente com a pureza da justiça; e decidirá a favor dos
Teus pobres, oprimidos em juízo iníquo.
Os montes trarão paz para o povo e os oiteiros oferecerão a justiça.
[320] É que a crueldade e o ódio, completamente esmagados, hão de
emudecer; há de inflamar-se a caridade dos homens; há de reviver a
extinta piedade; por toda a parte hão de nascer os abundantes frutos da
justiça, ao ponto de até os sáfaros e incultos montes se desentranharem em
abundantíssima seara de justiça. Com a equidade da lei há de defender os
pobres do povo, atribulados com desprezo da lei; aos filhos dos pobres,
privados de todo o socorro, dará salvação e prosperidade, e destruirá em
rigoroso juízo o caluniador. Com efeito, há de livrar das calúnias todos os
que a si mesmos nada atribuem, que se humilham diante da Tua imensa
majestade e só em Ti depositam toda a esperança de salvação; e há de
derrubar o autor da calúnia e príncipe das trevas, cujo ofício é assacar
crimes inventados aos homens santos. A religião que ele instaurou não
será limitada por quaisquer fronteiras, pois será eterna. Com efeito, os
que militarem sob o seu pendão, enquanto o sol percorrer o céu com
o seu movimento e enquanto a lua com o seu resplendor dispersar a
cerração noturna, respeitarão o Teu nome e com espírito puro e casto
hão de oferecer-Te sacrifícios. Como a chuva, caindo no devastado
prado, veste de novo com mui viçosa grama a própria terra, despojada
de verdura, e como as águas das bátegas, derramando-se, amolecem a
face da terra e causam a fertilidade dos campos, da mesma maneira a
sua graça, espalhando-se pelas almas, mirradas pelos solos das infâmias,
há de regá-las e delas fará brotar mui abundantes pastos de justos e
fartíssimos frutos de excelente virtude.
Nos dias dele, isto é, enquanto o divino esplendor do Rei eterno brilhar
nos entendimentos humanos, qualquer justo dará rebentos e produzirá
frutos salutares para proveito geral. E uma vez que esta justiça, que
480 D. JERÓNIMO OSÓRIO

proferet. Cum uero haec iustitia, quam rex hic maximus terris
allaturus est, sempiterna futura sit, et cum pax opus iustitiae
sit, necessario consequetur ut pacis illius affluentia sit etiam
sempiterna. Vt igitur Luna deficiat, illius pax semper in omni
saeculorum aeternitate inuiolata permanebit. Animus enim
hominis iusti nullo seruili metu belli illius conturbabitur quo
Deus in hominum scelus inuehitur, cum scelus sit in hominis
iusti mente, Spiritus sancti gratia, deletum et iustus ipse sit
cum ipso rerum omnium Domino, amoris ardentissimi foedere
inuiolabili, copulatus. Imperium illius ad utriusque maris
oras latissime pertinebit et deinde, orientem solem uersus, a
magno flumine ad extremos terrae fines erit extensum. Gentes
etiam immanes et efferatae sese supplices in conspectu illius
abiicient et hostes, malis edomiti, coram illo strati procumbent,
ut puluerem lingere compellantur. Reges, qui Tarsum et terras
quae ad Septemtriones spectant in ditione tenent, et qui uersus
Occidentem solem insulis et ciuitatibus, quas populorum
fluctus circumcingunt, dominantur, et qui ad austrum Arabiam
et Aethiopiam imperio complectuntur, illi munera deserent, et
reliqui etiam reges, illis finitimi, imperata tributa persoluent.
Omnes denique reges numini illius supplicabunt et cunctae
nationes illi seruient et leges illius libenter accipient.
Iustitiae namque splendore et clemetiae magnitudine
cunctos ad se mortales alliciet. Eripiet enim pauperem
ab eo qui non iure, sed clamore et conuicio, disceptat, ut
sit in humanis iudiciis, et inopis deserti, ab omniumque
patrocinio derelicti, causam suscipiet. Homini tenui et
egenti misericordiam tribuet et animas [321] pauperum,
miserabiliter afflictas, salute constituta, reficiet. Ex usuris
et iniquorum hominum uiolentia uitam eorum redimet
et sanguinem eorum, pro sanctitate profusum, plurimi
faciet. Nam, et illos sempiterno praemio remunerabit, et
scelus eorum, qui tantum et tam immane facinus ausi sunt,
sempiternis cruciatibus ulciscetur. Ille quidem hostium
strages edet multosque mortales interneciuo bello delebit.
Qui uero superstes et misericordia illius conseruatus
exstiterit, uita fruetur eique tributum ex auro Arabiae,
nempe purissimo, quo flagrantissimae fidei munus et
officium designatur, exsoluet; illum pro salute sua perpetuo
deprecabitur; illiusque nomen laudibus singulis afficiet;
doctrinae fructus longe progredietur; et ex exiguo frumenti
numero, qui sementem fecerit, laetissimas fruges exarabit.
OPERA OMNIA TOMO IV 481

este máximo rei há de oferecer à terra, há de ser eterna, e uma vez que
a paz é obra da justiça, seguir-se-á como consequência forçosa que a
abundância daquela paz também há de ser eterna. Por conseguinte, ainda
que a lua se eclipse, a paz dele há de permanecer sempre inviolada por
toda a eternidade dos séculos. É que a alma do homem justo não se há
de perturbar com nenhum medo servil daquela guerra com a qual Deus
arremete contra o crime dos homens, uma vez que no entendimento
do homem justo o crime foi destruído pela graça do Espírito Santo e o
próprio justo se uniu com o próprio Senhor de todas as coisas por um
pacto inviolável de ardentíssimo amor. O domínio dele mui vastamente
há de estender-se até aos litorais de ambos os mares e depois, na direção
do levante, dilatar-se-á desde o grande rio até os últimos confins da
terra. Até os povos cruéis e asselvajados na presença dele hão rojar-se
humildes no chão e os inimigos, amansados pelos males, diante dele hão
prostrar-se, por forma a serem obrigados a lamber a poeira. Os reis, que
senhoreiam Társis e as terras que ficam para o setentrião e os que, para
os lados do poente, dominam as ilhas e cidades, que as ondas cingem,
e os que, para o austro, exercem a soberania na Arábia e na Etiópia,
todos eles hão de trazer presentes, e também os restantes reis, vizinhos,
daqueles, hão de pagar os exigidos tributos. Finalmente, todos os reis
hão de dirigir preces à sua divindade e todos os povos hão de servi-lo
e hão de aceitar de bom grado as suas leis.
Com efeito, com o esplendor da justiça e a grande misericórdia
há de atrair para si todos os mortais. É que arrancará o pobre das
mãos daquele que julga, não de acordo com a lei, mas com brados e
insultos, como se faz nos julgamentos humanos, e tomará a defesa do
pobre abandonado, a quem todos deixaram sem defesa. Há de mostrar
misericórdia para com o homem fraco e necessitado e, [321] restituindo-
lhes a saúde, há de alentar as almas dos pobres, miseravelmente
atribuladas. E libertará a existência deles das usuras e violência dos
homens iníquos e dará muito valor ao sangue que eles derramarem
em prol da santidade. Com efeito, não só os recompensará com um
prémio sempiterno, como também vingará com tormentos perpétuos o
crime daqueles que se atreveram a tão grande e tão desumano atentado.
Ele certamente causará a destruição dos inimigos e aniquilará muitos
humanos em mortais guerras. E quem ficar, por escapar e sobreviver
graças à Sua misericórdia, gozará da vida e pagar-lhe-á como tributo
ouro da Arábia, ou seja, o mais puro, pelo qual se designa o ofício e
função da abrasadíssima fé; incessantemente lhe dirigirá rogativas pela
sua salvação; e cobrirá o seu nome com singulares louvores; os frutos da
doutrina hão de avançar até longe; e de um escasso número de cereal,
que tiver sido semeado, há de colher abundantíssimas messes. É que
482 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Pugillus enim frumenti, non tantum in fundum fertilem


et opimum, sed in macrum et sterile solum, qualia sunt
montium cacumina, sparsus, tam admirabilem segetem ex
se profundet ut, uentis agitata, quasi Libani silua sonum
reddat, et e ciuitate, e qua non facile uerissimae pietatis
fructus efferuntur, sic uirtutes efflorescent et tanta ubertate
grandescent ut sint cum uiridi fertilissimae terrae feno
comparandae.
Erit nomen eius sempiternum et Sole, cuius ui generationes
animantium continentur, nomen illius multo uehementius
et efficacius subolem innumerabilem propagabit. Nec enim
quidquam cogitari potest gratia diuina fecundius. Per illum
igitur solum id erit perfectum et absolutum quod fuerat multis
ante saeculis nostri generis principi et auctori a summo Deo
promissum. Meritis enim illius erunt uniuersae nationes exsolutae
exsecratione illa qua terras omnes peccatum a primo parente
commissum deuinxerat. Omnes enim, siue Iudaei, siue Graeci,
quocumque illi genere procreati sint, qui se ad Christi nomen
per fidem uiuam adiunxerint, erunt continuo omni scelere soluti
et in societatem et communione sempiternae felicitatis adsciti.
Tantis igitur beneficiis obstricti, omnem uitam in laudibus illius
ardenti studio praedicandis consumendam existimabunt.
Dominus Deus Israelis immortali laude celebretur, qui solus
res admirandas sempiterna cogitatione designat et ad exitum
immensa probitate perducit. Nomen Filii Eius, qui est ipsius
Patris gloria et expressa infiniti splendoris imago, similiter
laudibus efferatur, cuius excellentibus meritis atque sanctitate
fuit salus generis humani constituta. Vniuersa terra gloria illius
compleatur, ut omnes mortales agnoscant Deum uerum et
unicum Illius Filium, quem Pater in terras misit ut omnes, et
Iudaeos et gentes a stirpe Hebraei generis alienas, quae diuina
beneficia minime repudiarent, a peste sempiterna redimeret.
Quod quidem certissime fiet, cum nihil obstare possit quominus
potestas atque probitas immensa, quod ab aeuo sempiterno
destinauit, tempore oportuno perficiat. Petitiones Dauidis, filii
Isai, hoc unico uoto concluduntur, hoc enim unum optat, hoc
ardenter expetit, hoc desiderio flagrat, hoc orat et obsecrat,
hoc cum effectum uiderit, nihil erit quod amplius requirat.
OPERA OMNIA TOMO IV 483

um punhado de cereal, lançado não apenas em leiva fértil e fecunda,


mas também em solo pobre e maninho, como é o caso das cumeeiras
dos montes, há de desentranhar-se em tão espantosa seara que, agitada
pelos ventos, produza um som semelhante ao dos bosques do Líbano,
e na cidade, na qual dificilmente se colhem frutos da mais verdadeira
piedade, as virtudes de tal maneira hão de florescer e medrar com
tanta abundância que se podem comparar com o verde feno da mais
fértil das terras.
O seu nome será sempiterno e, muito mais forte e eficaz que o
sol, em cuja força se encerra a geração dos seres vivos, dará origem
a uma imensa linhagem. É que é impossível imaginar-se algo de mais
fecundo do que a graça de Deus. Por conseguinte, unicamente através
dele será levado a cabo e concluído aquilo que muitos séculos antes
fora prometido pelo supremo Deus ao iniciador e autor da nossa raça.
Com efeito, pelos méritos dele ficarão todos os povos livres daquela
maldição que o pecado cometido pelo primeiro pai fizera cair sobre
toda a terra. É que todos, quer judeus, quer gregos, seja qual for a raça
em que nasceram, que por fé viva se juntarem ao nome de Cristo, de
imediato serão livres de todo o crime e admitidos à união e comunhão
da eterna bem-aventurança. Por conseguinte, ligados por tão grandes
benefícios, considerarão que deverão consagrar a vida inteira a com
ardente desvelo apregoar os seus louvores.
Que com imortal louvor se celebre o Senhor Deus de Israel, que
é o único que com eterno pensamento determina coisas espantosas e
com imensa bondade as realiza. Que igualmente se exalce o nome do
Seu Filho, que é a glória do próprio Pai e a imagem nítida do infinito
esplendor, mediante cujos excelentes méritos e santidade se estabeleceu
a salvação do género humano. Que toda a terra se encha com a sua
glória, para que todos os mortais conheçam o verdadeiro Deus e o
Seu único Filho, a quem o Pai enviou à terra para libertar da perdição
eterna a todos, tanto judeus como povos alheios à raça hebreia, que
não rejeitarem os benefícios divinos. Algo que sem qualquer dúvida
se há de realizar, uma vez que nada pode impedir que o poder e
probidade imensos levem a termo no momento oportuno aquilo que
desde a eternidade determinaram. Os pedidos de David, filho de Jessé,
concluem-se com este único voto, pois unicamente isto deseja, isto
ardentemente pede, neste anelo se abrasa, isto roga e suplica: quando
isto vir realizado, não haverá mais cousa alguma que peça.
484 D. JERÓNIMO OSÓRIO

[322]

Quam bonus Israel Deus iis,


qui recto sunt corde.
Psal. 72. Apud Heb. 73

Eaedem cogitationes hominum mentes, non tamen eadem


ratione, peruagantur. Sunt enim multae curae et sollicitudines
quae bonorum fidem oppugnant, non tamen superant, sed
uirtutem tantum exercent, ut eorum fides ex ipsa pugna
clariorem uictoriam consequatur: improbi uero minime cum
iisdem curis decertandum existimant, sed sponte sua, uicti,
succumbunt et quocumque illos ratio captiosa atque fallax
impellit, eo facillime deferuntur. Ex omnibus autem prauis
cogitationibus, quae communem uitam perturbant, nulla
capitalior est ea quae censet iustitiam esse noxiam iustis
ipsis qui uirtutis et pietatis officium omnibus emolumentis
anteponunt: quod quidem statuunt esse uel animi imbecilli
uel amentis argumentum. Imbecilli quidem quod non
audeant, iudiciorum metu, rem per summum nefas augere,
aut per uim et iniuriam ad honores adspirare; amentis uero,
quod non intellegant stultum nimis esse religione officii
alicuius impediri quo minus principem locum uel uiribus
uel dolis obtineat. Viri igitur praestantis esse iudicant, cum
primum iniuriae conflandae facultas offertur, eam confestim
arripere, qua possint ad opes immanes peruenire atque in
re publica dominari. Nec enim iniquitate opes exquirere,
sed impunitatem assequi non posse, in flagitio ponunt. Nec
illum uirum magnum esse putant qui manus a maleficio
continet, sed qui maleficia impune suscipit. Et hoc quo
argumento probant? Quod omnes ferme uiri, in rebus publicis
illustres et clari, qui in summa gloria uixerunt et qui post
mortem memoriam sui nominis immortalem reliquerunt,
fraudibus et iniuriis ad summum imperium peruenerint;
quod ii, qui summo studio iustitiam colunt, in summa inopia
uersentur, iniuriis infinitis obnoxii, contra uero illi qui, cum
primum possunt, per summum scelus opes amplificant,
potentia et gratia floreant et omnia quae uolunt facillime
consequantur. Quod, si religionem obiicias et iudicii diuini
metum denunties, irrident. Deum enim res humanas curare
non putant, et religionis metum, hominibus tantum imperitis
iniectum, eos tam imbecillos reddere ut se loco comouere
OPERA OMNIA TOMO IV 485

[322]

SALMO 72
(73 entre os Hebreus)
Quão bom é Deus para Israel! Para os que são retos de coração.

Os mesmos pensamentos penetram nos entendimentos dos homens,


todavia não do mesmo modo. Com efeito, existem muitas inquietações
e cuidados que assaltam a fé dos bons, conquanto não a derribem, mas
só põem a virtude à prova, para que a fé deles alcance uma vitória mais
brilhante no próprio combate: ao passo que os perversos consideram que
não deve lutar-se com as mesmas inquietações, mas de livre e espontânea
vontade sucumbem vencidos e são facilmente levados para onde quer
que a enganadora e falaz razão os impele. Ora, de todos os depravados
pensamentos que perturbam a vida corrente não existe nenhum mais funesto
do que aquele que imagina que a justiça é nociva para os próprios justos
que antepõem o dever da virtude e da piedade a todos os proveitos: algo
que supõem que é uma prova ou de fraqueza de ânimo ou de loucura. De
fraqueza de ânimo porque não se atrevem, por medo dos julgamentos, a
aumentarem o seu património cometendo os mais nefandos atentados, ou
a aspirar às honrarias usando da violência e da injustiça; e de loucura,
porque não entendem que é sobeja tontice ser impedido pelas imposições
de alguma ideia de dever a obter uma posição cimeira usando da força
ou do embuste. Por conseguinte, julgam que é próprio de um varão
superior, logo que se oferece a possibilidade de maquinar uma injustiça,
de imediato dela deitar mão, para através dela obterem imensas riquezas e
dominarem no Estado. É que não têm na conta de infâmia adquirir riquezas
através da iniquidade, mas sim o não conseguir alcançar a impunidade. E
não consideram como um varão grande aquele que se inibe de cometer
uma malfeitoria, mas sim o que as comete sem ser punido. E com que
argumentação provam isto? Dizendo que quase todos os homens ilustres
e conhecidos nas nações, e que viveram rodeados da maior glória e que
depois da morte deixaram a lembrança de um nome imortal, chegaram às
cumeadas do poder através de enganos e injustiças; e que, por outro lado,
os que com o máximo desvelo respeitam a justiça, vivem na mais completa
pobreza, expostos a infinitas injustiças, ao passo que aqueles que, logo que
podem, aumentam as suas posses através dos maiores crimes, florescem
em poder e influência e facilmente obtêm aquilo que querem. Pelo que,
se lhes objetas com a religião e lhes acenas com o medo do juízo divino,
riem-se. É que não acreditam que Deus se preocupe com os negócios
humanos, e pensam que o medo da religião, insinuado apenas aos homens
ignorantes, torna-os tão fracos que não se atrevem a mudar de lugar, sendo
486 D. JERÓNIMO OSÓRIO

non audeant, cum interim sapientes et animo magno praediti


nihil omnino commodis suis anteferendum existiment,
cum uideant eos qui religionem spernunt opibus summis
affluere, qui uero nimis religiosi sunt cum inopia summa
conflictari. Vnde colligunt iustitiam esse perniciosam ipsis
iustis, iniuriam uero illis, qui ea callide et sapienter utuntur,
maxime salutarem. Hanc igitur sententiam tam amentem, tam
sceleratam et impiam, multorum animis insitam, euellendam
suscipit hoc carmine uir diuinus, et ostendit nihil esse
posse iustitia, neque ad utilitatem melius, nec ad custodiam
uitae securius, neque ad nominis claritatem magnificentius.
Sic igitur inquit:
Profecto magnus est iustitiae fructus; utilitas ingens atque
sempiterna; decus excellens atque plane [323] diuinum.
Nam Deus omnipotens et clementia infinita praeditus,
Israeli qui uere hoc nomen usurpat et pura et integra mente
sanctissimum nomen ueneratur, benigne consulit; illum
beneficiis ornat; illius statum inuicto praesidio confirmat.
Quid igitur deesse poterit illi cui summa bonitas plurimum
suae benignitatis impertit? Atque fuit tempus cum ego
ancipiti cura distinebar et propemodum pedes mei in tam
lubrica cogitatione prolapsi conciderunt et gressus mei sic
sunt curis impulsi ut resistendi locum minime reperirent.
Aemulatione enim commotus indignabar cum animaduerterem
insipientes opibus affluere et impios in pace summa et in
tranquilla felicitate uersari. Nec enim sunt uariis morbis,
qui mortem accelerant, impediti. Nam firma et robusta
ualetudine sunt; sunt plerumque a laboribus, quibus reliqui
homines afflictantur, immunes; plagae, quibus alii caeduntur
et debilitantur, minime illos attingunt. Rebus igitur ad eorum
uoluntatem fluentibus inflati, superbiae uestitum induunt
et intolerando fastu et insolentia praecipites efferuntur;
scelus per uim et audaciam ita conflant ut iudicium minime
pertimescant. Prae nimia pinguedine oculi eorum prominent,
ut, obtutu nimis truci, populares despiciant.
Multa, quae secum inani quodam animi motu finxerant,
immani conatu transgrediuntur. Quidquid enim concupiscunt,
spe inanissima deuorant, et, cum nullo rerum successu
contenti esse possint, cum id, quod sperabant, assequuntur,
ulterius, insana cupiditate, properant, ut, recenti diuitiarum
accessione, eas, quas domi diligenter asseruabant, amplificent.
Sibi ingenium et acumen arrogant; proborum hominum
OPERA OMNIA TOMO IV 487

certo que entretanto os sábios e dotados de coragem consideram que nada


em absoluto se deve antepor aos seus próprios interesses, uma vez que
veem que aqueles que desprezam a religião possuem abundantemente as
maiores riquezas, ao passo que aqueles que são sobremodo religiosos são
atribulados com a mais completa pobreza. Daqui concluem que a justiça
é prejudicial aos próprios justos, ao passo que a injustiça é muitíssimo
salutar para os que astuciosa e sabiamente dela se servem. Por conseguinte,
neste salmo o santo varão empreende arrancar esta opinião tão vesânica,
tão criminosa e ímpia, arreigada nas almas de muitos, e mostra que nada
pode existir de melhor que a justiça é o que existe para o proveito, de
mais seguro para a guarda da vida, de mais esplendoroso para a glória do
nome. Diz portanto o seguinte:
É deveras grande o fruto da justiça; imenso e eterno o seu proveito;
excelente e realmente divino [323] o seu lustre. Com efeito, Deus omnipotente
e provido de infinita misericórdia, benevolamente cuida do Israel que com
verdade usa este nome e com espírito puro e casto venera o mais santo
dos nomes; ornamenta-o com benefícios; com invencível socorro fortalece a
sua condição. Por conseguinte, que poderá faltar àquele a quem a bondade
suprema comunicou muito da sua benignidade? E houve tempo em que eu
era impedido por dupla preocupação e quase os meus pés caíram resvalando
em pensamento tão escorregadio e os meus passos de tal modo foram
impelidos pelos cuidados que não encontravam lugar onde firmar-se e parar.
É que, movido pela emulação, indignava-me ao dar-me conta de que os
ignorantes abundavam em riquezas e os ímpios viviam na mais completa
paz e em tranquila ventura. Na verdade, tão-pouco são incomodados por
variadas enfermidades que lhes apressem a morte. Com efeito, gozam de
sólida e robusta saúde; ordinariamente estão livres dos trabalhos com que
os demais homens são atribulados; não os atingem os golpes com que os
outros são mortos e debilitados. Por conseguinte, ensoberbecidos com o facto
de as coisas lhes correrem a contento, envergam a roupagem do orgulho
e precipitam-se e deixam-se arrastar por intolerável altivez e sobranceria;
através de violência e audácia urdem as ações criminosas de tal forma que
não sentem receio do julgamento. Devido à excessiva gordura os seus olhos
ressaltam, de tal maneira que, com uma catadura ameaçadora, olham de
alto para os seus compatriotas.
Com desmedido empenho, vão mais além do muito que consigo mesmo
a sua vaidade tinha imaginado. É que tudo quanto desejam, devoram-
no com uma esperança totalmente vã, e, uma vez que não podem ficar
contentes com nenhum dos resultados das coisas, quando conseguem
aquilo que esperavam, precipitam-se, com tresloucada cobiça, mais longe,
a fim de, com o acréscimo recente das riquezas, aumentarem aquelas
que diligentemente acumulavam em casa. Arrogam-se inteligência e
488 D. JERÓNIMO OSÓRIO

simplicitatem irrident; in perniciem proximi mendacium


concinant; neque satis habent grauissimam molestiam
hominibus exhibere, nisi etiam in excelsum Deum conuicia
iactent. Ore enim sacrilego et contaminato maledicta in caelum
conferunt; et, contemptione numinis obdurati, linguam suam
in terra facillime uersant ut, quacumque ratione possint,
pestem in ciues suos nefarie machinentur. Idcirco populus
Domini, quem impii factis atque dictis incendunt, in hanc
eandem cogitationem uenit, cum multis aerumnis se afflictari
uideat, eoque reducitur ut dubitet interdum an Deus, quae
gerantur in terris, animaduertat.
Dicunt igitur homines quos impiorum felicitas angit:
“Numquid Deus adspicit haec? Num est apud Deum
excelsum rerum humanarum cognitio? En (inquit eorum
quilibet) homines isti, scelere inquinatissimi et in ciues
suos taeterrimi, bonis omnibus affluunt et mundi huius
tranquillissima pace potiuntur et immanes opes habent,
quibus scelestiora in dies facinora moliantur. Frustra igitur
animi puritatem summo studio conseruaui; sine fructu
ab omni maleficio manus meas continui; in eoque uitam
omnem consumpsi ut, nullo emolumento mihi proposito,
a iustitiae uia declinarem. At me, pro uirtutis praemio,
plagis quotidie caesum et afflictum sentio et quotiens Sol
exoritur, toties poenarum acerbitate coerceor. Dum haec
mecum agito [324] et tam perditorum hominum bona
quam proborum mala recenseo, parum abest quin opiner,
o sapientissime Domine, filiorum Tuorum nationem in
errore summo uersari, quod uirtutis officium diuitiarum
cupiditati praetulerit.”
Difficillimum est dicere quantum haec cogitatio in multis
studium pietatis exstinxerit et a iustitiae muneribus auocauerit.
Quin et ipse, curis anxius, ingentes labores excepi ut
huius diuinis consilii rationem inquirerem, in qua quidem
peruestiganda multis laboribus et difficultatibus implicabar.
Exitum enim non reperiebam, cum neque consilium summae
sapientiae, quae neque falli neque labi potest, reprehendere
fas esset, nec cur Deus tanta mala in terris, cum tanto ruinae
periculo, fieri permitteret, intellegere possem. Verum, cum me
collegissem ut in aditum templi, hoc est, in arcana diuinae
sapientiae, penetrarem, consequentia mente prospexi, et
uidi quam aerumnosi et infelices sint impii, quamuis opibus
summis et gloria populari circumfluant.
OPERA OMNIA TOMO IV 489

penetração intelectual; zombam da singeleza dos homens honestos;


forjam mentiras para perdição do próximo; e não lhes parece suficiente
ocasionar pesadíssimo incómodo aos homens, se não lançarem também
insultos contra o altíssimo Deus. É que com boca sacrílega e ensujentada
arremessam baldões contra o céu; e, endurecidos com o desprezo pela
divindade, mui facilmente revolvem a sua língua na terra a fim de, por
qualquer maneira que puderem, impiamente maquinarem a perdição
contra os seus concidadãos. Por isso o povo do Senhor, a quem os ímpios
irritam com seus ditos e feitos, cai neste mesmo pensamento, ao ver-se
atribulado por inúmeras provações, e a tal ponto é levado que por vezes
duvida se Deus se dá conta do que se faz na terra.
Por conseguinte, dizem os homens aos quais entristece a ventura dos
ímpios: “Acaso Deus vê estas coisas? Acaso possui Deus um conhecimento
superior dos negócios humanos? Eis (diz qualquer um deles) aí esses
homens, totalmente manchados de crimes e crudelíssimos contra os
seus concidadãos, vede como possuem em abundância toda a espécie
de bens e gozam da mais tranquila paz deste mundo e têm imensas
riquezas, para com elas fraguarem crimes cada vez piores. Foi portanto
em vão que com o máximo desvelo preservei a pureza da minha alma;
sem qualquer proveito desviei as minhas mãos de qualquer malfeitoria;
e consagrei toda a minha existência a não me desviar do caminho da
justiça a troco de nenhum lucro que se me pusesse por diante. Mas,
como prémio da virtude, todos os dias me sinto batido e atribulado
por golpes e todas as vezes que o sol nasce, vejo-me assoberbado por
pungentíssimas penas. Quando revolvo estes pensamentos comigo [324]
e passo em revista tanto os bens dos homens perversos, como os males
dos honestos, pouco falta para que pense, ó sapientíssimo Senhor, que
a raça dos Teus filhos labora no maior dos erros, ao preferir os deveres
da virtude à cobiça das riquezas.”
É muitíssimo difícil dizer o quanto esta reflexão extinguiu em muitos
o amor da piedade e os desviou das mercês da justiça. E até eu mesmo,
angustiado com os cuidados, suportei imensos trabalhos a fim de
esquadrinhar a razão desta deliberação divina, em cuja investigação é
certo que me senti enleado por muitas dificuldades e trabalhos. É que não
encontrava saída, uma vez que nem era lícito censurar a deliberação da
sabedoria suprema, que não pode enganar-se nem falhar, nem eu podia
compreender por que motivo Deus permitia que na terra se fizessem tão
grandes males, com tamanho perigo de ruína. Mas, tendo-me recolhido
a fim de entrar no templo, isto é, nos segredos da sabedoria divina,
discerni com o entendimento o encadeamento das coisas, e vi como são
atribulados e mofinos os ímpios, embora possuam em abundância as
maiores riquezas e o aplauso popular.
490 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Primum enim eos in periculoso et lubrico loco constituisti,


ut, anxii metu, trepident; ut ancipites casus exhorreant,
ut semper sint, cum insigni animi cruciatu, de suo statu
atque uita solliciti. Non enim sunt adeo amentes ut
non intellegant quam fluxa et inania sint illa praesidia
quibus se communiunt, et ita, quamuis multa sibi omni
studio parauerint, in nullis tamen animo tranquillo
conquiescunt. Semper igitur horrent et trepidant, et motibus
turbulentissimis agitantur. Deinde, cum magis opibus et
potentia praecellere uidentur, eos, quasi repentino turbine,
conuellis et horrenda uastitate consumis. Quam subita
clade funditus euersi sunt, confecti sunt, consumpti sunt,
et quantum terroris casu atque ruina sua multis mortalibus
attulerunt? Postremo, memoria eorum confestim effluet et
omnino delebitur. Vt enim uisum nocturnum cum is, cui in
somnis apparebat, expergiscitur, euanescit, sic in ciuitate
eorum imago, quae ficta specie dignitatis hominibus
illudebat, Tuo iudicio repente ex oculis abscedet omnisque
memoria illius, quem Tu despicies, interibit, itaque omnis
splendor impuri hominis obruetur; dignitas obscurabitur;
nomen in obliuionem ueniet; illa tantum dignitas erit
firma et stabilis atque sempiterna qua Tu omnes bonos
qui habuerint in Te uitae praesidia constituta, amplitudine
gratiae Tuae cumulabis.
Et tamen a principio, cum id non assequerer, animus meus
indignissime patiebatur hominum improborum florentem
condicionem renesque mei erant acerbitatis offensione,
quasi acutissima sagitta, transfixi; mentis expers eram;
diuinum sensum minime explicabam; instar iumenti in
conspectu Tuae maiestatis apparebam. Non quidem ut a fide
deficerem aut existimarem aliquid a Te sine summa ratione,
mente, consilio, designari, sed quod iudicii Tui rationem
nullo modo perciperem. Quamuis igitur assequi mente non
possem, Tecum tamen eram; a Te minime discedebam et in
Te fidem meam firmissime locabam, quia Tu dextera Tua
me clementissime apprehensum confirmabas. Consilio [325]
Tuo me in uiam diriges et tandem in gloriam perduces. Quis
igitur non impiorum exitum perhorrescet? Quis bonitatis
fructum non ardentissime concupiscet? Quis non uidet quanta
benignitate Dominus eos, qui rectum animum gerunt, omni
tempore protegat et quam diuina praemia illis constituat? Te
igitur unum uolo; Te uehementer expeto; Te ardenter amo; in
OPERA OMNIA TOMO IV 491

É que, em primeiro lugar, Tu os colocaste numa posição perigosa


e resvaladiça, de maneira que, ansiosos com o receio, vivem a tremer;
atemorizam-nos sobremaneira as incertezas da sorte, por forma que se
encontram sempre preocupados com a sua estabilidade e segurança de vida,
padecendo ao mesmo tempo uma enorme ansiedade. Com efeito, não são a tal
ponto loucos que não compreendam o quanto são vãos e perecíveis aqueles
amparos com que se defendem, e assim, ainda que com todo o desvelo para
si obtenham muitas dessas defesas, mesmo assim nenhumas lhes conferem
tranquilidade de ânimo. Por conseguinte, sempre vivem em temor e tremor,
agitados por violentíssimas emoções. Em segundo lugar, quando parecem mais
se avantajar em riquezas e poder, com uma espécie de repentino turbilhão
os destróis e com assustadora ruína os aniquilas. Com quão súbito desastre
foram totalmente abatidos, derrubados e reduzidos a nada, e quão grande foi
o terror que com a sua sorte e ruína ocasionaram a inúmeros mortais? Em
último lugar, a lembrança deles há de passar mui rapidamente e apagar-se-á
por inteiro. Na verdade, assim como uma visão noturna se desvanece logo
que se desperta a pessoa à qual aparecera em sonhos, assim nas comunidades
a imagem daqueles que, sob uma falsa aparência de dignidade, escarnecia
dos homens, por deliberação Tua de repente se há de sumir da vista dos
olhos e perecer a memória daquele que desprezares, e assim há de eclipsar-
se todo o resplendor do homem impuro; a sua dignidade obscurecer-se-á;
o seu nome cairá no esquecimento; só será sólida, estável e eterna aquela
dignidade com que Tu hás de cumular com a vastidão da Tua graça todos os
bons que tiverem estabelecido em Ti as defesas das suas vidas.
E todavia, no princípio, como não compreendia isto, suportava
com custo ver a situação próspera dos homens ruins e os meus rins
eram trespassados, como por frecha mui afiada, por pungentíssimo
descontentamento; sentia-me privado de entendimento; não me
explicava a intenção de Deus; aparecia como um jumento na presença
da Tua majestade. Não decerto a ponto de perder a fé ou cuidar
que Tu tinhas deliberado fosse o que fosse sem desígnio e intenção
sumamente perfeitos, mas porque de modo algum entendia o motivo
das Tuas decisões. Por tanto, embor a não pudesse compreender
com a inteligência, todavia estava contigo; de Ti não me apartava e
depositava em Ti minha inquebrantável confiança, porquanto Tu mui
misericordiosamente me fortificavas segurando-me com a Tua destra.
Com o Teu conselho [325] hás de traçar-me o caminho e guiar-me
até à glória. Portanto, quem não sentirá horror pelo fim dos ímpios?
Quem não desejará ardentissimamente o fruto da bondade? Quem não
vê a grande bondade com que o Senhor em todas as ocasiões protege
aqueles que possuem uma alma reta e como são grandes as divinas
recompensas que para eles estabelece? Por conseguinte, só a Ti eu
492 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Te unum omnia mea uota atque desideria conferuntur. Quid


enim mihi aliud est in caelo, quod intueri, consectari, quo
frui desiderem? Et quid est in terra quod ad Te adiunctus
non expetendum iudicem? Itaque nihil mihi erit in caelo
sine Tuo consortio iucundum, nihil in terra in coniunctione
Tuae benignitatis acerbum. Caro mea et cor meum absumitur;
cordis mei robur paullatim exstinguitur, at hereditas mea,
quae tota Dei bonitate continetur, qui sedes sempiternas in
caelo suis exstruxit, in perpetuum permanebit. Omnes qui
se a Te procul amouent, interibunt; omnes disperdes qui a
Te deficiunt fidemque suam proditione et incesto flagitio
scelerate contaminant. Ambiant alii honores; exquirant
uoluptates; curent ardenti cupiditate diuitias; bonum uero
meum, cuius desiderio flagro, est cum Deo meo amore
summo conglutinari omnemque spem in Domino meo
reponere, ut omnibus opera Tua, o sempiternae uitae atque
salutis meae Parens, annuntiem.

Vt quid Deus repulisti in finem.


Psal. 73. Apud Heb. 74

Admirabilis est hominum diuinorum dignitas et amplitudo:


nempe, quos Deus consiliorum Suorum participes faciat et
quae sunt euentura illis multo ante praenuntiet. Sic autem
fit ut de rebus futuris, quasi de transactis, edisserant et,
quemadmodum bonorum explicatione laetantur, ita malorum
praemeditatione lugent et de gentis suae strage et exitio
conqueruntur. Non quidem quod Dei seueritatem aliqua ratione
criminentur, sciunt enim nihil esse magis bonitatis immensae
quam miseris et afflictis subuenire. Cum uero homines in
scelere pertinaces minime uolunt de scelere suo confiteri, sed
peccata peccatorum accessione cumulant, et perfidiae immani
nomen religionis obtendunt, et in scelestissimo facinore
gloriantur, piorum uirtus afflicta uindictam flagitat et diuini
iuris integritas et constantia necessario debitum supplicium
sumit. Quorsum igitur adhibentur sanctorum hominum,
in communi rerum euersione et uastitate, querimoniae?
Vt humanitatis atque doloris sensus, qui eorum animos
afflictat, explicetur, non ut clementissimo Domino nimiae
seueritatis crimen inferatur. Cum igitur uir diuinus mente
OPERA OMNIA TOMO IV 493

quero; a Ti veementemente desejo; a Ti ardentemente amo; só para


Ti são dirigidos todos os meus votos e desejos. Com efeito, que outra
coisa tem para mim o céu que eu almeje contemplar, obter e gozar? E
que coisa existe na terra que unido a Ti eu não considere desejável?
Por isso, nada terá o céu para mim sem a Tua jubilosa companhia,
nada na terra me será penoso na companhia da Tua bondade. A minha
carne e o meu coração morrem; o vigor do meu coração aos poucos
se extingue, mas a minha herança, que toda se encerra na bondade
de Deus, que edificou no céu para os Seus moradas sempiternas, há
de permanecer para sempre. Hão de morrer todos os que se afastam
para longe de Ti; destruirás todos os que a Ti renunciam e com a
traição e ímpia infâmia sacrilegamente mancham a sua fé. Que outros
ambicionem honrarias; procurem prazeres; com inflamado desejo se
ocupem com as riquezas; que o meu bem, em cujo desejo me abraso,
é unir-me com o meu Deus através do mais íntimo amor e depositar
toda a esperança no meu Senhor, a fim de a todos anunciar as Tuas
obras, ó Pai da vida eterna e da minha salvação.

SALMO 73
(74 entre os Hebreus)
Por que razão, ó Deus, nos hás desamparado para sempre?

É espantosa a dignidade e superioridade dos homens de Deus: ou


seja, daqueles aos quais Deus faz partícipes das Suas deliberações e
muito antecipadamente comunica aquilo que há de vir a acontecer. Ora,
deste modo sucede que expõem pormenorizadamente as coisas futuras
como se fossem passadas e, da mesma maneira que se alegram com
a apresentação das boas, assim choram com a previsão das ruins e se
lastimam da ruína e desgraça do seu povo. Não com certeza porque
acusem com algum fundamento a severidade de Deus, pois sabem que
nada é mais próprio da Sua incomensurável bondade do que socorrer
os mofinos e atribulados. E quando os homens obstinados no crime não
querem reconhecer os seus crimes, mas vão ajuntando pecados a pecados,
e encobrem com o nome de religião a monstruosa deslealdade, e se ufanam
dos mais sacrílegos atentados, a virtude atribulada dos homens piedosos
pede vingança e a integridade e firmeza do direito divino forçosamente
exigem o devido castigo. Por conseguinte, qual a finalidade com que os
santos homens soltam queixumes nas situações de ruína e destruição?
A fim de dar vazão aos sentimentos de humanidade e dor que pungem
as suas almas, e não para irrogarem o delito de excessivo rigor ao mui
compassivo Senhor. Por conseguinte, tendo o santo varão por inspiração
494 D. JERÓNIMO OSÓRIO

diuina prospiceret exitium, uastitatem et inflammationem


quae erat Hierosolymis afferenda, patriae ruinam acerbe
luget et ruinae causam multo acerbius lamentatur. In hanc
igitur sententiam cladem patriae deplorat:
Saepe quidem, Domine, nos pro peccatis nostris afflixisti
et dominatu alienarum gentium [326] grauiter oppressisti;
uerum tamen opem tandem afferebas et, cum insigni nominis
Tui gloria, populum Tuum in libertatem, cum hostium interitu,
uindicabas. Nunc uero sic euersi sumus ut nulla nobis spes
salutis ostendatur. Quid igitur fiet? In perpetuum nos ope
Tua destitues? Sine fine maiestatis Tuae, acriter iratae, flamm
aet incendium oues, Tuae curae et uigilantiae commissas et
pascuis Tuis enutritas, populabitur? Sic antiquae misericordiae
tuaemonumenta exstingui atque deleripatieris? Tuere beneficia
Tua, Domine, et ne sic irae indulgeas ut non etiam nominis
Tui gloriae atque sanctitati prospicias. Recordare quanta in nos
olim munera et dignitatis ornamenta congesseris. Tu namque
populum hunc Tibi in peculium delegisti, quem singulari ope
defenderes; Tu illum e seruitute durissima redemisti; et in
eo quem, ut hereditatis ualde fructuosae patrimonium, antea
colebas, regni leges et iura sanxisti; Tu sacerdotium in illo, Tu
sacra et caerimonias instituisti; Tu denique templum, in quo
habitares, in hoc tam celebri Sionis monte, opere mirabili,
construxisti. In quem finem, quaeso? Vt illum euersum, excisum
et inflammatum et omnia Tuae clementiae atque sanctitatis
uestigia cineribus obruta uideremus?
Exsurge, Domine, et ingressus Tui celeritatem incita; tam
immane scelus ulciscere; interitu sempiterno hostem importunum,
qui non modo uiolauit atque profanum fecit templum Tuum,
sed etiam dirissmis flammis exussit, excrucia. In conuentibus
Tuis, qui ad celebritatem Tui sanctissimi nominis agebantur,
hostes Tui rugitus, tamquam leones, ediderunt; monumentis
Tuis excisis, signa sua, ut clarissimae uictoriae signa, posuerunt;
ille apud hostes ualde clarus et nobilis habetur qui, perinde
atque si densam siluam securibus exscinderet, populi Tui
magnam stragem edit et obuios immanissime trucidat. Et
nunc templi sculpturas, partim bipennis crebris ictibus, partim
malleis demoliuntur et comminuunt. In sanctitatis Tuae aditum
faces incensas coniecerunt; nominis Tui sedem et domicilium
foedissimis factis et immanissima caede polluerunt. Hoc secum
statutum atque deliberatum habent, ut omnia in nobis euertendis
crudelitatis exempla constituant. Omnes aedes sacras Domini
OPERA OMNIA TOMO IV 495

divina visto antecipadamente a destruição, assolamento e incêndio que


haveriam de ser causados a Jerusalém, pranteia acerbamente a ruína da
pátria e muito mais acerbamente lastima a causa dessa ruína. Portanto,
deplora no teor seguinte a calamidade da pátria:
É certo, Senhor, que amiúde nos atribulaste por causa dos nossos
pecados e severamente nos oprimiste com o domínio de povos estrangeiros;
[326] todavia, acabavas por dar-nos a Tua ajuda e, com insigne glória
do Teu nome, libertavas o Teu povo, com destruição dos adversários. E
agora de tal maneira fomos abatidos que não se nos antolha esperança
alguma de salvação. Portanto, que há de fazer-se? Para sempre nos hás
de privar da Tua ajuda? Sem termo hão de o fogo e incêndio da Tua
majestade, profundamente irada, destruir as ovelhas entregues ao Teu
cuidado e vigilância e alimentadas nos Teus pascigos? Assim deixas
que se extinga e apague a lembrança da Tua antiga misericórdia? Vela
pelos Teus benefícios, Senhor, e não permitas que a ira tanto Te domine
que deixes também de atender à Tua glória e santidade. Lembra-Te das
grandes mercês e ornamentos de dignidade com que antigamente nos
cobriste. É que Tu escolheste para Ti este povo como Tua propriedade
particular, a fim de protegê-lo com uma ajuda especial; Tu libertaste-o
de um duríssimo cativeiro; e nele, de quem outrora Te ocupavas como de
património de uma herança assaz rentável, estabeleceste as leis e direito
do reino; Tu nele instituíste o sacerdócio, os ritos e cerimónias sagrados;
Tu, finalmente, por obra admirável, construíste neste tão celebrado monte
de Sião o templo em que habitarias. Com que finalidade, pergunto eu?
Para o vermos destruído, derribado e incendiado e cobertos pelas cinzas
todos os vestígios da Tua misericórdia e santidade?
Levanta-Te, Senhor, e apressa o Teu regresso; vinga tão cruel crime; com
a morte eterna atormenta o duro inimigo, que não só violou e profanou
o Teu templo, mas igualmente o abrasou com terribilíssimas chamas. Nas
Tuas assembleias, que se realizavam para celebração do Teu santíssimo
nome, os Teus adversários lançaram rugidos, como leões; nos escombros
do Teu templo puseram os seus pendões, como demonstração de uma
nobilíssima vitória; entre os inimigos, é tido na conta de homem muito
nobre e ilustre aquele que, como se a golpes de machado derrubasse
um espesso bosque, fez grande devastação no Teu povo e sem dó nem
piedade mata todos os que lhe aparecem pela frente. E agora as esculturas
do templo são despedaçadas, umas a bastos golpes de alabarda, outras à
marretada. Arremessaram tochas a arder para a entrada do Teu santuário;
ensujentaram a morada e domicílio do Teu nome com ignóbeis feitos e
monstruosíssimo morticínio. Deliberaram e decidiram entre si usarem a
nossa destruição como exemplo de toda a espécie de crueldade. Fizeram
que, numa terra destruída por horrível assolação, as chamas devorassem
496 D. JERÓNIMO OSÓRIO

in terra, horribili uastitate perdita, in quas homines, Dei


celebrandi causa, conueniebant, flammis absumpserunt. Nullo
sensu humanitatis, nullo Dei metu a tanti facinoris atrocitate
aliqua ex parte reuocati sunt.
Signa quibus olim opem Tuam minime defuturam nuntiabas,
non uidimus; prophetam qui se contra irae Tuae impetum pro
nobis opponat et iram Tuam arcere conetur, non habemus;
nemo est inter nos qui finem huius tantae calamitatis uideat.
Quousque tandem, Domine, hostis furor inualescet? Quo fine
contumeliae et maledicta, quae in nomen Tuum impudentissime
iaciunt, coercebuntur? Si miserabilis casus, quo ruimus, Te
minime flectit, at gloria nominis tui, tantis hostium conuiciis
indignissime deformata, Te ad tantum facinus acerrime
uindicandum sollicitet. Cur manum Tuam a debitis suppliciis
[327] seuere repetendis auertis? Idne decet decus illud
antiquum, tanta hominum admiratione celebratum, ut dexteram
Tuam, e medio pectoris Tui exstractam, perpetuo contineas
ne in hostes desaeuiat? Non erat olim haec mens Tua, non
uoluntas, non studium: ut hostibus nostris ignosceres et nos
auxilio Tuo nudares. Deus summus et Rex meus es Tu, qui
me Tuis legibus et imperio artissime deuinctum tenes; Ille
idem ipse es qui tam multis in locis olim in oculis hominum
salutem Tuis mirabiliter attulisti. Tu uiribus inuictis mare
diuisisti; Tu capita draconum, qui populum Tuum uestigiis
insequebantur, contriuisti; Tu ceti illius immanissimi caput
qui, ut Tuos crudelissime deuoraret, accelerabat, perfregisti,
et fluctibus eiectum ferarum multitudini, quae solitudinem
desertam incolunt, comedendum tradidisti; Tu e rupe, ictu
uirgae discissa, fontem, atque adeo fluuium, eduxisti; et contra,
cum id populi necessitas efflagitabat, fluuios, ne transitum
impedirent, exsiccasti; Tua est dies; Tua est nox; Tu tenebras
lucis exortu discussisti; tu Solem, qui splendore suo mundum
compleret, effecisti, ne sit nobis lucis nouae claritas, quamuis
in tenebris uersemur, omnino desperanda; Tu omnes orbis
terrarum nationes terminis distinxisti, ut ad iuris moderationem
cunctos mortales erudires et admoneres nefas esse fines
assignatos, aliena diripiendi gratia, transilire; aestatem et
hiemem, Tu finxisti, ut, quod erat aestu consumptum, hiemis
humiditate resarcires, et, quod erat frigoris tristitia contractum,
uerni caloris aduentu laetificares.
Omnia igitur potestate infinita complecteris; admirabili
sapientia moderaris; rerum uicissitudines et uarietates ordine
OPERA OMNIA TOMO IV 497

todos os templos sagrados do Senhor, aonde os homens se reuniam


a fim de celebrarem Deus. Nenhum sentimento de humanidade nem
nenhum temor de Deus os fizeram retroceder um palmo que fosse da
monstruosidade de um tão grande atentado.
Não vimos os sinais com que outrora anunciavas que a Tua ajuda não
haveria de faltar; não temos profeta que faça rosto à arremetida da Tua
ira e se esforce por contê-la; entre nós não existe ninguém que veja o
fim desta tamanha calamidade. Até quando, ó Senhor, há de continuar
poderoso o desvario do inimigo? Com que fim há de atalhar-se aos
insultos e ultrajes que com a maior das impudências proferem contra o
Teu nome? Se não Te dobra a mofina desgraça, em que caímos, ao menos
que a glória do Teu nome, mui infamemente aviltada pelos baldões de
tão grandes adversários, Te incite a tomar terrível vingança de tamanho
atentado. Por que razão apartas a Tua mão de severamente repetir os
merecidos castigos? [327] Acaso fica bem àquele antiquíssimo lustre,
celebrado com tamanha admiração pelos homens, conter a Tua destra,
deixando de a retirar do meio do Teu peito, para se ensanhar contra os
inimigos? Não era esse antigamente o Teu parecer, nem a Tua vontade,
nem o Teu empenho: perdoares aos nossos inimigos e privar-nos a nós
do Teu auxílio. Tu és o supremo Deus e o meu Rei, que me manténs
estreitissimamente atado com as Tuas leis e senhorio; és Aquele mesmo
que em tão inúmeras ocasiões antigamente à vista dos homens de modo
maravilhoso ofereceste a salvação aos Teus. Tu com invencíveis forças
dividiste as águas do mar; Tu esmagaste as cabeças das serpentes que
perseguiam o Teu povo; Tu quebraste a cabeça daquela crudelíssima
baleia que se aprestava para devorar os Teus e, lançada pelas ondas,
entregaste-a, para que a comessem, à multidão das alimárias selvagens
que habitam as soidões do deserto; Tu fizeste manar da fraga, fendida
pelo golpe do bordão, uma fonte, ou antes, um rio; e, pelo contrário,
quando a necessidade do povo tal requeria, secaste os rios para que não
lhe embargassem a passagem; Teu é o dia; Tua é a noute; Tu, com o raiar
da luz, dissipaste as trevas; Tu fizeste o sol, que enche o mundo com o
seu resplendor, para que não desesperemos por completo da claridade de
uma nova luz, ainda que estejamos mergulhados nas trevas; Tu separaste
com fronteiras todos os povos da terra, para ensinares a todos os mortais
a autoridade da lei e mostrares que é defeso transpor os limites que foram
determinados, com o fito em arrebatar o alheio; Tu criaste o estio e o
inverno, a fim de refazeres com as humidades da invernia aquilo que o
estio consumira, e alegrares com a chegada do calor primaveral aquilo
que se engelhara e contraíra com a tristeza do frio.
Por conseguinte, tudo abarcas com poder infinito; tudo governas
com admirável sabedoria; estabeleces com a mais perfeita harmonia as
498 D. JERÓNIMO OSÓRIO

summo constituis, ita ut facile e tenebris lucem et ex aduersa


tempestate tranquillitatem elicias. Cum igitur possis et
tenebras, quibus sumus immersi, dispellere, et fluctus, quibus
exagitamur, refrenare, a Te obnixe contendimus ut nos luce
Tua collustres et immanes nationum fluctus qui in nos furenter
incursant misericordia Tua compescas, ne rerum omnium
naufragium faciamus. Haec recordare et animaduerte quam
temere et impudenter hostis immanis maiestati sempiternae
conuicium fecerit et populus amentissimus nomen Tuum
maledictis confixerit.
Sed inquies, tam scelestum et immane facinus Israelis
exstitisse ut sit illius nomen extremo exitio et uastitate
delendum. Recte! Sed, quid reliquiis facies, quae non fuerunt
societate eiusdem criminis alligatae? Etiamne has hostium
crudelitati cruciandas et dilacerandas relinques? Et, qui certis
finibus regiones uniuersas discriminas, non modum tandem
aliquando piorum hominum cruciamentis et tyrannorum
immanitati constitues? Ne tradas, Domine, truculentae belluae
uitam Ecclesiae tuae, quae turturis instar, ingemiscit, nec
hostes a se aliter quam mansuetudine atque fide in Te posita
repellit; et coetum pauperum Tuorum ne tam diu obliuiscaris;
neque studium illius summa cura et uigilantia tuendi prorsus
abiicias; in sanctissimum illud foedus respice quo genus
humanum Tibi fide inuiolabili deuinxisti. In omnibus enim
[328] fere regionibus acerrimum bellum contra nominis
Tui gloriam geritur; gladii exacuuntur; cruces defiguntur;
supplicia excogitantur; qui Te sectari student, ubique tenebris
includuntur et habitaculis, tyrannorum importuna uiolentia
ad terrorem sanctissimae religionis aedificatis, immanissime
coercentur. Ne afficiatur ignominia pauper, quod eueniet si Tu
illi opem minime in rebus aduersis attuleris; si illum, assiduo
conuicio uerberatum, in angoris extremitate despexeris.
Perficies tandem, Domine, ut pauper et mendicus, ope Tua
liberatus, nomen Tuum laudibus in caelum extollat.
Causa Tua agitur; nomen Tuum in discrimen incurrit; multi
mortales a Te deficient et de Tua potentia atque fide dubitabunt,
si non eos, qui pro nominis Tui gloria conuicia multa sustinent
et eximia cruciamenta patiuntur, opportuno auxilio subleuaueris.
Surge igitur, Domine, et causam Tuam suscipe; conuicium, Tibi
ab hoste importune quotidie factum, in memoriam redige, ut
debitum supplicium sceleri infando statuas. Ne ueniant apud
Te in obliuionem hostium petulantissimae uoces, quibus nomen
OPERA OMNIA TOMO IV 499

variações e transformações das coisas, de tal maneira que facilmente fazes


surdir a luz das trevas e a bonança da ameaçadora procela. Portanto,
uma vez que podes, não só dispersar as trevas, em que nos encontramos
mergulhados, mas também enfrear as ondas, com que somos agitados, de
Ti obstinadamente rogamos que nos ilumines com a Tua luz e com a Tua
misericórdia contenhas as cruéis vagas dos povos que desvairadamente
contra nós arremetem, para que não soframos total naufrágio. Lembra-
Te e tem presente o quão desatinada e impudentemente o cruel inimigo
injuriou a eterna majestade e o mais vesânico dos povos trespassou com
insultos o Teu nome.
Mas retrucar-se-á, dizendo que foi tão sacrílego e monstruoso o atentado
de Israel que o seu nome merece ser apagado com a mais completa
destruição e assolamento. É verdade! Mas, que farás com os restantes, que
não fizeram parte dos que se uniram para o mesmo crime? Porventura
deixarás que eles sejam atormentados e desfeitos pela crueldade dos
inimigos? E Tu, que separas todas as regiões mediante certos limites, não
hás de estabelecer um dia um termo para os sofrimentos dos homens e
para a crueldade dos tiranos? Não entregues, Senhor, à violenta besta-fera
a vida da Tua Igreja, que, à semelhança da rola, geme, e não afasta para
longe de si os adversários de outro modo que não seja com a mansidão e
a fé em Ti depositada; e não esqueças durante mais tempo a assembleia
dos Teus pobres; e não ponhas totalmente de parte o cuidado de com
o máximo desvelo e atenção por ela olhares; atende àquela santíssima
aliança com a qual por inviolável compromisso Te uniste com o género
humano. É que quase em todas [328] as regiões se move violentíssima
guerra contra a glória do Teu nome; afiam-se as espadas; erguem-se as
cruzes; maquinam-se os suplícios; os que se empenham em seguir-Te,
são por toda a parte encerrados nas trevas e crudelissimamente detidos
em espaços construídos pela desumana violência dos tiranos para terror
da santíssima religião. Que o pobre não seja oprimido pela ignomínia,
algo que acontecerá se Tu não o ajudares na adversidade; se, maltratado
com incessantes ultrajes, na mais extrema angústia o votares a desprezo.
Acabarás por fazer, Senhor, que o pobre e mendigo, libertado graças à
Tua ajuda, exaltem até aos céus o Teu nome.
Trata-se da Tua causa; o Teu nome corre perigo; muitos mortais hão
de deixar-Te e sentirão dúvidas sobre o Teu poder e proteção, se com
Teu oportuno auxílio não defenderes aqueles que em prol da glória do
Teu nome suportam muitos insultos e padecem inauditos sofrimentos.
Por isso, Senhor, levanta-Te e defende a Tua causa; traze à memória o
insulto que o cruel inimigo todos os dias contra Ti pronuncia, a fim de
estabeleceres o castigo proporcionado ao abominável crime. Que não
remetas ao esquecimento as insolentíssimas palavras dos adversários,
500 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Tuum maledictis omnibus insectantur, nec furorem suum aliqua


ex parte remittunt, immo tumultus, quos excitant, in dies magis
turbulentos efficiunt.

Confitebimur Tibi, Deus, confitebimur.


Psal. 74. Apud Heb. 75

Hoc quidem carmine non luctus, sed insignis laetitia


describitur. Deus enim inducitur, hominum piorum coetum
ad dies festos sollemni ritu peragendos inuitans. Minas enim
proponit; iudicium denuntiat; hostium interitum praedicit;
bonorum gloriam insignem fore demonstrat. Propheta igitur
Deo summas gratias agit de tantis beneficiis quanta in
uniuersum genus humanum contulit; Deus uero omnia
Suis fausta et laeta et felicia pollicetur. Sic autem propheta
sententiam suam instituit:
Te perpetuis laudibus efferemus, Domine; Te perpetuis
laudibus efferemus, et qui propius ad cognitionem Tui
nominis accesserint, ore pleniore, grandiore orationis ornatu
mirabilia numinis Tui opera recensebunt. Quid ad haec Deus
ipse respondet?
“Si multis”, inquit, “uisus sum diutius subsidium differre
quam meorum preces et uota flagitabant, imbecillitas humana
eos in errore uersari compellebat. At diuinum iudicium
non semper ad piorum hominum desiderium, sed semper
ad eorum salutem dirigitur. Erat autem illorum pietas
laboribus exercenda; erant in multis flagitiorum maculae;
poenis impositis abstergendae; erant improbi, iustorum
gratia, tolerandi, ut eorum gloriae seruirent. At, cum opus
meum, propter quod offensionem dissimulaui, perfectum et
absolutum fuerit, opportunum tempus erit ut rectum iudicium
cum debita seueritate constituam: terra labetur et diffluet;
illius cultores fusi similiter interibunt; illi [329] tamen qui
mea gratia nituntur, ut caelum ruat et terra in medium mare
deferatur, statum suum diuina constantia retinebunt. Ego
enim terrae, quam illi possessuri sunt, columnas stabiliui.”
O rem nimis admirandam! Caelum atque terra et omnia quae
caeli ambitu coercentur corruent; nihilque erit in terris tanta
soliditate firmatum quod non sit funditus euertendum: soli uero
iusti, cum sint uerbi diuini satu generati, in communi uastitate
OPERA OMNIA TOMO IV 501

com as quais avexam com toda a sorte de impropérios o Teu nome, não
pondo qualquer espécie de termo ao seu desvario, e até tornando-se de
dia para dia mais turbulentas as agitações que armam.

SALMO 74
(75 entre os Hebreus)
Nós Te glorificaremos, ó Deus, confessaremos.

Neste salmo fala-se não de tristeza, mas de uma alegria fora do comum.
Com efeito, apresenta-se-nos Deus convidando a comunidade dos homens
piedosos a celebrarem dias de festa com solene ritual. De facto, dá a conhecer
ameaças; anuncia o juízo; profetiza a morte dos inimigos; mostra que a
glória dos bons há de ser extraordinária. Por conseguinte, o profeta dá a
Deus os mais elevados agradecimentos por tão grandes benefícios como
foram todos os que ofereceu em geral ao género humano; ao passo que
Deus promete aos Seus toda a espécie de alegrias, felicidades e venturas.
Ora, é do modo seguinte que o profeta exprime o seu pensamento:
Exalçar-Te-emos com louvores perpétuos, Senhor; exalçar-Te-emos com
louvores perpétuos, e aqueles que mais perto chegarem no conhecimento
do Teu nome, hão de enumerar as maravilhosas obras da Tua divindade
com verbo mais abundante e mais grandioso atavio de palavras. Que
responde a isto o próprio Deus? Diz Ele:
“Se a muitos pareceu que protelei a minha ajuda durante mais tempo
do que pediam os rogos e preces dos meus, era a fraqueza humana que
os impelia a errarem. O juízo divino, porém, nem sempre é guiado de
acordo com o desejo dos homens piedosos, mas sempre em conformidade
com a salvação deles. Ora, a piedade deles deveria ser posta à prova
mediante tribulações; em muitos existiam manchas de infâmias; cumpria
lavá-las com os castigos que lhes foram impostos; era mister que, por
amor dos justos, suportassem os perversos, a fim de servirem à glória
daqueles. Mas, quando estiver concluída a minha obra, por causa da
qual não fiz caso do agravo, será chegado o ensejo oportuno para com
o devido rigor dar início ao julgamento: a terra ruirá e liquefar-se-á; os
que a cultivam, fundindo-se do mesmo modo, hão de perecer; aqueles
[329] todavia que se apoiam na minha graça, ainda que o céu desabe
e a terra seja arrastada para o meio do mar, hão de manter com divina
firmeza a sua posição. É que fui Eu quem fixou as colunas da terra que
há de ser possuída por eles.”
Oh coisa sobremaneira espantosa! Hão de cair o céu e a terra e tudo
o que o âmbito do céu rodeia; e na terra não haverá nada de tão grande
solidez e firmeza que não deva ser totalmente destruído, e, por entre o
502 D. JERÓNIMO OSÓRIO

et exitio erunt ab omni clade, Parentis optimi sempiterno


praesidio, liberati. Sed ad Dei ipsius orationem reuertamur:
“Num homines”, inquit, “iniusti lamentari iure poterunt,
quod fuerint a me repentinis cladibus oppressi? Nullo modo!
Nam illos et naturae operibus, et legis institutis et sanctorum
hominum disciplinis, et mei etiam Spiritus impulsu, frequenter
admonui ut in uiam iustitiae redirent: at illi monita mea
contempserunt. Amentibus dixi: amentiam detestamini; impiis
dixi: nolite insolenter extolli; ne regiam istam potentiam
inaniter efferatis; nec, opibus inanissimis inflati, uerba, quae
insitam contumaciam et inclusum scelus ostentent, ex ore
uestro excidere patiamini.
Non enim erit iudicium humanum, ut eludendum existimetis,
sed diuinum, quod neque muneribus corrumpi neque fraudibus
obscurari ullo modo potest. Neque enim ab ortu Solis, neque ab
occasu, neque ad aliqua solitudine, quae uel ad Septemtriones,
uel ad Austrum pertineat, patronum adhibere poteritis, qui
uos a seueritate iudicis eripiat, Deus enim iudex est. Nihil
igitur hominum gratiae largietur. Vnusquisque meritis suis
iudicium subibit. Hic quidem ab eo deprimetur ut in miseriae
sempiternae regionem detrudatur; alius uero euehetur ut in
caelo sanctorum gloria perfruatur. Irae namque diuinae calix
est in ipsius Dei manu positus; merum est uehementissimum;
uas uero plenissimum; ex eo singulis in potionem, quantumuis
inuitis et recusantibus, infundetur. Ex eo autem omnes impii,
qui in terris dominantur, ebibere compellentur, ita ut liquor,
etiam turbidus, e faecibus exprimatur, quem nimis dolenter
exhauriant. Poena enim diuino iudicio constituta neque
uitabitur nec imminuetur. Itaque impiorum regiam potentiam
et robur infringam, iustorum uero robur in sublime collocabo
ornamentisque diuinis afficiam.”
OPERA OMNIA TOMO IV 503

geral assolamento e devastação, só os justos, porque foram gerados pelo


Verbo divino, ficarão livres de todo o flagelo, graças à proteção do ótimo
Pai sempiterno. Mas regressemos às palavras do próprio Deus:
“Acaso poderão os homens injustos queixar-se com motivo por Eu
os ter esmagado com inesperados flagelos? De forma alguma! É que Eu
frequentemente os admoestei, quer através das obras da natureza, quer
pelas determinações da lei e ensinamentos dos homens santos, e até através
da inspiração do meu Espírito, a regressarem ao caminho da justiça: eles
porém desprezaram as minhas advertências. Disse Eu aos tresloucados:
abominai a loucura; disse aos ímpios: não vos ensoberbeçais; não vos
arrogueis em vão desse poder régio; nem, inflados com riquezas totalmente
ocas, deixeis que da vossa boca escapem palavras que denunciam a vossa
entranhada obstinação e o crime que dentro escondeis.
Não haverá um juízo humano, que vos permita cuidar que vos podeis
esquivar, mas sim um juízo divino, que é impossível corromper-se mediante
dádivas ou obscurecer-se com embustes. É que não podereis apresentar
defensor algum, quer ele venha do oriente, quer do poente, quer de algum
deserto que se encontre a sul ou a norte, que vos subtraia à severidade
do juiz, porquanto o juiz é Deus. Por conseguinte, não se fará qualquer
concessão ao favor humano. Cada um será julgado de acordo com o que
merece. Assim, este ver-se-á condenado a ser lançado nas paragens da
sempiterna mofina, ao passo que aquele outro será exaltado por forma a
gozar no céu da glória dos santos. Com efeito, o cálice da ira divina está
colocado na mão do próprio Deus; o vinho é fortíssimo; e o vaso está
cheio a transbordar; dele tomará cada um o que deve beber, por mais
contrariado e constrangido que se mostre. Ora, dele serão obrigados a
beber todos os ímpios que senhoreiam na terra, de tal maneira que o
líquido, mesmo turvo, que com grande pesar hão de tragar, seja o que foi
espremido das borras. É que não será esquivado nem diminuído o castigo
determinado pelo juízo de Deus. Por isso, quebrantarei o poder e vigor
dos reis, e colocarei nas alturas a firmeza dos justos e condecorá-los-ei
com divinos ornamentos.”
504 METAFÍSICA
INTRODUÇÃO 505

ÍNDICE GERAL

Nota prévia do tradutor 5


Texto e tradução 7
Prefácio 9
Paráfrase De Jerónimo Osório Aos Salmos 13
Salmo 1 13
Salmo 2 21
Salmo 3 35
Salmo 4 39
Salmo 5 49
Salmo 6 53
Salmo 7 59
Salmo 8 67
Salmo 9 71
Salmo 10 87
Salmo 11 91
Salmo 12 97
Salmo 13 101
Salmo 14 105
Salmo 15 105
Salmo 16 111
Salmo 17 117
Salmo 18 129
Salmo 19 139
Salmo 20 143
Salmo 21 149
Salmo 22 159
Salmo 24 163
Salmo 24 169
Salmo 25 177
Salmo 26 183
Salmo 27 189
Salmo 28 193
506 D. JERÓNIMO OSÓRIO

Salmo 29 199
Salmo 30 205
Salmo 31 215
Salmo 32 223
Salmo 33 231
Salmo 34 239
Salmo 35 245
Salmo 36 251
Salmo 37 265
Salmo 38 271
Salmo 39 279
Salmo 40 289
Salmo 41 293
Salmo 42 299
Salmo 43 303
Salmo 44 309
Salmo 45 321
Salmo 46 327
Salmo 47 333
Salmo 48 341
Salmo 49 351
Salmo 50 359
Salmo 51 373
Salmo 52 375
Salmo 53 381
Salmo 54 383
Salmo 55 389
Salmo 56 391
Salmo 57 397
Salmo 58 401
Salmo 59 407
Salmo 60 413
Salmo 61 415
Salmo 62 419
Salmo 63 425
Salmo 64 427
Salmo 65 431
Salmo 66 439
Salmo 67 441
Salmo 68 459
Salmo 69 467
Salmo 70 469
OPERA OMNIA TOMO IV 507

Salmo 71 477
Salmo 72 485
Salmo 73 493
Salmo 74 501

Í nd ice G er a l 505

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