Você está na página 1de 8

Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci - 57

Capítulo 5

Aristóteles e o fim do pensamento


enquanto forma de vida integral
É um erro dizer que um homem não pode tornar-se teólogo sem
Aristóteles. A verdade é que não pode tornar-se teólogo sem se livrar
de Aristóteles. Em resumo, comparado com o estudo da teologia, o
todo de Aristóteles é como a escuridão para a luz.
Martinho Lutero

M ostrei no capítulo anterior que durante séculos,


em grandes escolas e expoentes filosóficos
distintos, não existia a desconexão entre teoria e prática. Não
apenas nos movimentos de elite intelectual, como também nos
teólogos e bispos da Igreja de Cristo, a vida contemplativa e a
vida ativa eram partes da mesma existência. Guardadas as
devidas particularidades de cada um dos movimentos de
pensamento e de espiritualidade, de Sócrates até Gregório de
Nissa, as pessoas desconheciam a possibilidade de alguém
sustentar uma posição doutrinária sem viver em total conformidade
com ela. Isso significa dizer que, para esses indivíduos, sustentar
determinada doutrina ou filosofia só era possível se toda a vida
dessa pessoa estivesse em jogo. Ou seja, “não pode haver
verdade sem uma conversão ou sem uma transformação do sujeito.
Esta conversão, esta transformação pode fazer-se sob diferentes
58 - Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci

formas... um movimento que arranca o sujeito de seu status e de


sua condição atual”. 1 O testemunho da verdade como forma de
vida.
Como era de se esperar, contudo, na Antiguidade existiu
uma exceção a essa regra: o filósofo grego Aristóteles. É correto
afirmar que ele foi, sem dúvida, quem fugiu à regra da Antiguidade
dentre os filósofos e teólogos, pois, para ele, a questão do “cuidado
de si” tinha importância menor na atividade do pensamento.
Aristóteles é o fundador da filosofia tal como a conhecemos hoje
em dia: uma atividade meramente intelectiva e feita de forma
separada da vida prática daqueles que teorizam. A razão dessa
desconexão é que Aristóteles distinguia entre saberes, o saber
prático e saber teórico. Para ele, não existia conhecimento científico
dos assuntos e questões da vida prática, pois para que alguém
se torne um sábio desses assuntos, necessita-se de muito tempo
e de experiência. Era por isso que ele acreditava que um jovem
até poderia nascer como um gênio da matemática ou da geometria
(saberes teóricos), mas nunca um gênio em sabedoria prática. 2
Em outras palavras, era totalmente possível alguém se tornar um
teórico brilhante, sem ter nenhuma experiência ou sabedoria útil
para a sua vida prática. Contrário senso também é verdadeiro,
“cada uma das estratégias utilizadas para tornar a sabedoria prática
mais científica e mais sob controle... leva a um visível
empobrecimento do mundo da prática”. 3 O indivíduo de sabedoria
prática habita no mundo da vida e não procura elevar-se acima
dele através de teorias rebuscadas. Seu ambiente é a rua, o
mercado e o hospital, onde as questões práticas da vida borbulham
a todo instante. Nesses lugares, só existe valor em uma sabedoria
que consiga lidar com as situações contingenciais. Não há espaço
para especulações abstratas e muito teóricas, pois os seres
humanos se envolvem em situações muito específicas. A sabedoria
divina, o conhecimento sobre os princípios e causas gerais e
imutáveis tem pouquíssima serventia nesse ambiente. Ou seja,
Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci - 59

como o saber teórico e o saber


“O indivíduo de
prático são de ordens totalmente
sabedoria prática diferentes, a relação entre eles, para
habita no mundo da Aristóteles, é impraticável. Teóricos
divda e não procura e ativistas estão novamente em
elevar-se acima dele oposição.
através de teorias Essa desconexão entre
rebuscadas.” sabedoria prática e teórica não é o
único fator que fez de Aristóteles
uma exceção na Antiguidade. Além de separar esses dois tipos
de saber, o filósofo também valorizou mais a vida teórica em
relação à vida prática. Enquanto a sabedoria prática precisa dar
respostas às demandas contingentes e diariamente mutáveis dos
indivíduos, a sabedoria teórica lida com um conhecimento mais
divino e imutável que um ser humano pode lidar. Será por essa
razão que Aristóteles defenderá que a melhor parte do ser humano
era o seu intelecto. A vida de prazeres, as situações diárias e as
distrações da vida prática apenas nos afastam da felicidade e da
vida excelente. A vida contemplativa é a única atividade digna
de amor ou de escolha enquanto fim em si mesmo. Isso faz com
que o entendimento se torne, não apenas o centro da vida humana,
como também a principal característica da natureza humana.
Qualquer um que desejasse ser feliz precisava buscar tal felicidade
na atividade contemplativa. 4 A racionalidade, o intelecto e a vida
contemplativa são as portas para a existência humana mais feliz
e até mesmo divina. A salvação aristotélica, isto é, o meio de um
indivíduo imortalizar-se, era através de uma vida que fosse
dedicada à contemplação das verdades fundamentais. Por tudo
isso, é que o “momento Aristóteles” da história do pensamento
Ocidental marca o estabelecimento da desconexão entre teoria e
prática – que nunca mais deixou de determinar nosso modo de
nos relacionarmos com a verdade. Como resume Foucault:
“Aristóteles não é o ápice da Antiguidade, mas sua exceção”. 5
60 - Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci

Se Aristóteles foi a grande exceção filosófica no mundo


antigo, em relação ao “cuidado de si”, o Gnosticismo foi a exceção
religiosa. Essa corrente de religiosidade esotérica se desenvolveu
nos primeiros séculos da era cristã e, basicamente, acreditava
que somente tendo acesso a um conhecimento místico e
misterioso que o indivíduo poderia alcançar a salvação de sua
alma. Sendo assim, as comunidades gnósticas prometiam aos
seus membros a revelação de um conhecimento sobrenatural dos
segredos e mistérios do mundo superior. Junto a Aristóteles, o
Gnosticismo é a grande exceção no mundo antigo da perspectiva
integral do acesso à verdade dos indivíduos. Ao invés de
preocupar-se integralmente com a recepção e percepção da
verdade em todas as esferas da existência, tanto Aristóteles
quanto as comunidades gnósticas, acreditavam que apenas
através da utilização correta da razão as pessoas poderiam chegar
às dimensões mais divinas da existência e serem salvas deste
mundo das aparências.
Tanto o apóstolo Paulo como João e Pedro combateram
formas primitivas de gnosticismo que estavam entrando na Igreja
de Jesus. No caso do apóstolo João, está claro que sua luta
sempre foi com falsos profetas que se levantaram no interior da
igreja reivindicando uma iluminação especial do Espírito (1Jo 2.19-
20, 4.1). Justamente por acreditar que tinham uma iluminação
especial, esses falsos mestres “declaravam haver alcançado um
estado superior à moralidade cristã comum, no qual não tinham
mais pecado”. 6 Junto a essa compreensão errada de si, veio
uma espécie de: “orgulho espiritual e uma arrogância, que os
levaram a desprezar os cristãos comuns, que não declaravam
haver alcançado o mesmo patamar de iluminação espiritual dos
gnósticos”. 7 Sabendo disso, quando lemos que João enfatiza
que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14) ele está
se opondo deliberadamente a esses falsos ensinamentos
racionalistas e esotéricos dentro da igreja. A salvação pregada
Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci - 61

pelo evangelho nunca significou um “vôo da alma para libertar-se


do mundo e da história, como ensinavam os gnósticos, mas uma
comunhão viva com Deus no mundo e na história, que será
consumada em seu caráter final na ressurreição”. 8 Sendo assim,
historicamente a Igreja de Jesus não estava interessada em
“ganhar almas pra Jesus”, como se nosso corpo, nossa história e
nosso mundo não fossem importantes na redenção. Ao contrário
desta visão gnóstica, a narrativa bíblica da salvação é de um
Deus que encarnou em Jesus de Nazaré, habitando e amando
seres humanos (não apenas almas) para salvar o mundo e a
história. A salvação ortodoxa sempre foi integral – o grande
problema é que o império gnóstico sempre reaparece. 9
De maneira esquemática, portanto, é possível sustentar
que existiam na antiguidade duas formas dominantes de chegar
e se relacionar com a verdade. Por um lado, de Sócrates até
Gregório de Nissa dominou o que podemos chamar de
“espiritualidade” e, em Aristóteles e seus adeptos o que tínhamos
era “filosofia” tal como a exercemos ainda hoje. Enquanto a primeira
acreditava que a verdade e a salvação abarcavam uma
modificação de todo o indivíduo e do indivíduo todo, a segunda
ocupava-se apenas com a racionalidade e o correto pensamento
das pessoas. Já falei bastante sobre essa forma de pensamento
enquanto “espiritualidade”, basta resumir dizendo que:

a espiritualidade postula que o sujeito enquanto tal não tem


direito, não possui capacidade de ter acesso à verdade. Postula
que a verdade jamais é dada ao sujeito por um simples ato de
conhecimento... Postula a necessidade de que o sujeito se
modifique, se transforme, se desloque, torne-se, em certa
medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo, para ter
direito ao acesso à verdade. A verdade só é dada ao sujeito a
um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito. 10

Por séculos o cristianismo teve a mesma percepção em


relação à integralidade da sua ortodoxia. Compreendiam que a
62 - Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci

constituição de um indivíduo, em todas as esferas de sua vida,


acontece através dos efeitos das instituições, dos discursos e
das práticas que esses estão envolvidos. No caso cristão, a nova
vida dos discípulos de Jesus eram efeitos da comunhão na Igreja,
da transformação do evangelho e da prática da piedade e da
justiça. Através da conversão, disciplinas espirituais, serviço e
constante contato com o texto bíblico, os discípulos de Cristo
eram modificados para tornarem-se verdadeiras “testemunhas da
verdade”. A missão da Igreja, bem como sua ortodoxia, sempre
foram integrais. Não havia desconexão entre teoria e prática,
pensamento e ação, discurso e trabalho. Pouco a pouco, contudo,
outra forma de encarar o conhecimento e a verdade surgiu na
antiguidade e adentrou a Igreja. Trata-se da “filosofia”:

Chamemos de “filosofia”, se quisermos, esta forma de


pensamento que se interroga, não certamente sobre o que é
verdadeiro e sobre o que é falso, mas sobre o que faz com que
haja e possa haver verdadeiro e falso, sobre o que nos torna
possível ou não separar o verdadeiro do falso. Chamemos
“filosofia” a forma de pensamento que se interroga sobre o
que permite ao sujeito ter acesso à verdade, forma de
pensamento que tenta determinar as condições e os limites
do acesso do sujeito à verdade. Pois bem, se a isto chamarmos
“filosofia”, creio que poderíamos chamar de “espiritualidade”
o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as
purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do
olhar, as modificações de existência, etc., que constituem,
não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo
11
do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade.

Esse segundo modo de encarar a verdade, que foi


chamado aqui de “filosofia” determina, até hoje, nosso modo de
usar a razão e até mesmo de fazer teologia. Ainda que seu início
tenha sido no “momento Aristóteles”, o indivíduo moderno é
Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci - 63

extremamente influenciado por essa concepção de uso da razão.


Grupos cristãos inteiros e movimentos denominacionais
identificam-se e empenham-se em construir apenas uma
racionalidade que seja distintamente cristã. Desconsiderando
totalmente uma maneira holística de encarar sua espiritualidade,
aproximam-se muito da vida contemplativa que Aristóteles
descreveu. Contudo, não percebem que foi precisamente nesse
momento histórico que nasceu a desconexão entre teoria e prática
– com ênfase e maior valorização do trabalho intelectual, como
sendo a atividade divina e excelente. Não
é sem motivo que o pai da taxonomia moderna, Carl von Linné
definiu o ser humano enquanto “Homo sapiens” – do latim, “homem
de saber”. Isso significa sustentar que a diferença específica do
ser humano, em relação a todos os outros seres vivos, é sua
racionalidade. 12 Nada mais distante da cosmovisão bíblica de
um ser humano integral.

Notas
1. FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 20.
2. Segundo ele diferencia: “é óbvio que a sabedoria prática não é
entendimento [epistême] científico dedutivo. Pois se ocupa do imediato
e do particular; [...] e a sabedoria prática se ocupa do imediato e do
particular, dos quais não há entendimento científico” (ARISTÓTELES,
Ética a Nicômaco, 1142a23, p. 225).
3. NUSSBAUM, A fragilidade da bondade, p. 270.
4. Nas suas próprias palavras: “se a atividade consiste situações
análogas ao gnosticismo do segundo século, revestidos d sua peculiar
modalidade, de seu sistema especulativo e sua concepção do mundo”
(VIEIRA, O império Gnóstico Contra-ataca, p. 12). Tal hipótese, além
de ainda ser atual, está em consonância com minha tese de que existe
um polo na teologia brasileira que lança os cristãos em um
transcendentalismo alienante e de nenhuma relevância social. Como
bem coloca Dooyeweerd: “foi, portanto, a influência da filosofia grega
64 - Ortodoxia Integral | Pedro Lucas Dulci

que conduziu ao estágio fatal de se confundir a teologia teórica cristã


com o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro
autoconhecimento ( Deum et animam scire ). A gnose teológica,
permeada por ideias filosóficas gregas, foi elevada acima da simples
fé da congregação. Todo o conceito de teologia como regina
scientiarum é, assim, de origem grega” (DOOYEWEERD, No crepúsculo
do pensamento ocidental, p. 178).
10. FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 19.
11. FOUCAULT, A Hermenêutica do sujeito, p. 19.
12. Em suas considerações sobre o homem e o animal, Agamben
identifica um detalhe importantíssimo para nossa arqueologia do
pensamento: “na verdade, o gênio de Linné não consiste tanto na
determinação como que inscreve o homem entre os primatas, mas na
ironia com que não registra ao lado do nome genérico Homo – ao
contrário do que fez em outras espécies – nenhuma marca
identificadora específica a não ser o velho adágio filosófico: nosce te
ipsum [conhece a ti mesmo]. [...] definir o humano não através de uma
nota característica, mas através do conhecimento de si, significa que é
homem aquele que se reconhece como tal, que o homem é o animal
que deve reconhecer-se como humano para sê-lo. [...] Homo sapiens
não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente
definida: é antes uma máquina ou um artifício para produzir o
reconhecimento do humano. De acordo com o gesto de produzir o
reconhecimento do humano. [...] Homo é um animal constitutivamente
‘antropomorfo’ (isto é, semelhante ao homem’, segundo o termo que
Linné usa constantemente até a décima edição do Systema), que deve,
para ser humano, reconhecer-se num não-homem” (AGAMBEN, O
Aberto, p. 42-44). Em tudo isso, podemos ver a imagem de ser humano
que está pressuposta nas compreensões que ressaltam tão somente a
racionalidade humana enquanto fator determinante. Além de estarem
em radical discordância com as Escrituras, tal concepções (bem como
suas consequências) muitas vezes estão profundamente presentes
nos raciocínios teológicos de grupos cristãos e denominações
eclesiásticas inteiras.

Você também pode gostar