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1.3 Destaques
– Fé e obras. Quis-se ver neste texto uma polêmica entre Tiago e Paulo em
torno da questão das “obras”. Tg 2,14-26 ensina que a fé sem as obras é morta.
“Como é morto o corpo sem o espírito, assim também a fé, sem as obras, é morta”
(2,26). Nesta comparação, Tiago associa as obras ao espírito, mas a fé, sem as obras,
ao cadáver. Isso é contrário à antropologia grega (que opõe o espírito/a alma ao que
é material), mas corresponde perfeitamente à mentalidade bíblica, para o qual o
espírito serve para animar o corpo: as obras revelam o dinamismo conferido pelo
espírito divino à pessoa ou à comunidade, como na visão de Ezequiel 37. Porém, sem
o dinamismo das obras inspiradas e dinamizadas por Deus (o “fruto/produto do
Espírito”, Gl 5,22), a fé que a comunidade confessa torna-se um cadáver. Ora, em
aparente oposição a Tiago, lemos em Paulo que ninguém é justificado pelas obras,
mas sim pela fé (Rm 3,20.28; Gl 2,16 etc.). Paulo, porém, não fala, nesses textos, das
obras inspiradas por Deus, mas do esforço autossuficiente por observar as
obrigações da lei de Moisés (em sua interpretação estreita), principalmente a
circuncisão (não mencionada em Tg), como expressão do humano gloriar-se
(káukhesis). De fato, os mesmos judaizantes que, vindos do ambiente de Tiago (Gl
2,12), convenceram Pedro a não ter comunhão de mesa com os gentios, instigavam
os gálatas pagãos a assumirem o prestigioso status dos judeus, mediante a
circuncisão e a observância dos rituais judaicos. Para Paulo, isso são obras da
“carne”, isto é, da autossuficiência humana, não do espírito da liberdade. Tais obras
não tornam ninguém justo diante de Deus. Mas quem pela fé se entrega a Jesus,
morto por amor na cruz, e assume as consequências práticas disso, é declarado justo
por Deus e seguirá a “lei do Espírito da vida, em Cristo” (Rm 8,2); e produzirá,
segundo a lei única do amor, o fruto que vem do Espírito (Gl 5, 14.22-23). Também
Paulo ensina que é justificado quem põe a lei em prática (Rm 2,13) e que “a fé atua
pelo amor” (Gl 5,6).
No fundo, esses textos de Paulo ensinam a mesma coisa que Tg 2,26. Não é
preciso supor um contato entre Paulo e o autor da carta de Tiago. Escrevem em
contextos diferentes. Temos aqui um exemplo interessante de “hermenêutica
plural”, porém, não contraditória. Ambos, à maneira dos rabinos, buscam um
sentido (derash, midrash) a partir de um importante texto da Torá, Gênesis 15,6:
“Abraão creu no Senhor e isso lhe foi creditado como justiça”. Paulo interpreta que
Abraão foi justificado pela fé, sem as obras da Lei (Rm 4,3.9.22; Gl 3,6). Tiago diz que
Abraão foi justificado porque pôs a fé à obra, a ponto de querer oferecer seu filho, se
tal fosse a vontade de Deus (como acreditava a arcaica religião cananeia). A
interpretação de Paulo não exclui a de Tiago, ambas se completam. Paulo nega a
força salvífica das prescrições cultuais da Lei mosaica, principalmente a circuncisão
(almejada pelos gálatas pagãos para se equipararem aos judeus), enquanto Tiago
realça a prática ética que comprova a obediência à palavra de Deus, a verdadeira
religiosidade (Tg 1,27), como já fora dito pelos sábios do Antigo Testamento (Sr 35,1-
2[1-4]).
– A “lei régia” (2,8), que consiste na primazia do amor fraterno, é também a “lei
da liberdade” (2,12). Essas expressões refletem a expectativa do Reino de Deus e da
libertação de Israel, já reinterpretadas em sentido cristão, dando a entender que
esse Reino já está em função.
– A paciência, constância ou firmeza permanente (1,2-18; 5,7-11). Em imagens
sugestivas, tomadas da vida dos santos e dos profetas, da natureza e da vida
agrícola, a carta ensina a constância na espera da nova vinda do Senhor. De fato, já
havia passado muito tempo desde a ressurreição de Jesus, e a espera de sua volta
começava a pesar. Tiago ensina a estar sempre pronto para o juízo de Deus.
– A sabedoria como dom de Deus está presente na carta inteira. Em 3,15.17, a
“sabedoria do alto” é contraposta à perigosa e, muitas vezes, venenosa oratória
humana. A carta reage contra a tendência, existente na “sinagoga cristã”, de todos
quererem ser mestres. Desde o início ensina a necessidade de pedir a sabedoria
(1,5), expondo em seguida seu valor (3,13-18; cf. 1,17). Trata-se da sabedoria prática,
ensinada também no Antigo Testamento (Jó, Pr, Ecl, Sr, Sb), mas agora posta sob a
luz de Cristo.
– A riqueza, que torna presunçoso e, muitas vezes, é fruto de injustiça (4,13–
5,6). Por trás dessas admoestações e censuras percebemos a estrutura sociológica
da(s) comunidade(s) às quais a carta é dirigida, comunidades da diáspora, onde se
misturam, dentro da população de origem judaica, comerciantes que viajam de
cidade em cidade, proprietários que devem ser instados a pagar o devido salário, e
pobres (os que “não tiveram sorte”).
– Ao falar do cuidado dos enfermos, o texto realça a importância da oração
eclesial, da mútua confissão dos pecados e da correção fraterna (5,13-20). Aqui
aparece o valor terapêutico da oração e da confissão, o abrir-se diante de Deus na
presença de irmãos e irmãs, para receber a segurança do perdão e a paz da alma, e
até a saúde do corpo (v.15). Estão aí as raízes do Sacramento dos Enfermos da Igreja
Católica.
2 Primeira Carta de Pedro
2.1 Origem e destinatários
A 1ª Carta de Pedro é dirigida a um ambiente geográfico bem circunscrito: a
região norte da Ásia Menor, hoje Turquia (1,1: Ponto, Galácia, Capadócia, Província
Ásia e Bitínia, regiões povoadas com os “bárbaros” locais, com os gregos da classe
dominante e com os “colonos” do Império Romano; além de outros povos – judeus,
sírios…). A carta se respalda na autoridade de Pedro, “apóstolo de Jesus Cristo” (1,1)
e chefe da igreja de Roma, talvez já martirizado. Na última parte, transparece a
relação problemática com as autoridades civis; de modo significativo, o autor assina
a carta como se estivesse em Babilônia (5,13), codinome de Roma (cf. Ap 17–18) e
símbolo do desterro do povo de Deus (o exílio babilônico).
A figura do novo povo de Deus no desterro permeia o texto inteiro. Não é
apenas uma lembrança do Antigo Testamento ou uma referência à verdadeira pátria
no céu (como em Hb 11,14-16). Os cristãos, em boa parte oriundos do judaísmo,
parecem ser considerados cidadãos de segunda categoria, estrangeiros residentes (e
nem sequer como os outros judeus, dos quais eles vão se distanciando). Há também
fiéis que vêm do paganismo (cf. a alusão em 4,3), porém conhecedores da memória e
dos símbolos de Israel. A esse auditório, a carta apresenta a comunidade cristã como
um lar para os que não têm casa na sociedade (ELLIOTT, 1985). Eles constituem a
verdadeira casa e povo de Deus, desde que vivam a dignidade do batismo e se
sustentem mutuamente pelo amor fraterno, firmes na fé e na esperança.
Para “responder a quem pergunta pela razão de sua esperança” (1Pd 3,15), os
fiéis devem mostrar ao mundo a diferença cristã, que consiste em esperar a salvação
no nome de Cristo (com tudo o que esse nome implica). Não baseiam sua esperança
no poder do Império ou no bem-estar que a vida no mundo mediterrâneo lhes
poderia oferecer. Dar as razões da esperança em Cristo não consiste em apologética
verbal ou teórica, mas na mansidão e na recusa da violência, atitude que os torna
semelhantes a Cristo, o Servo Sofredor, o justo que sofre pelos injustos, pois é
melhor sofrer praticando o bem do que fazendo o que é mau (3,16-18). A verdadeira
apologética não provém dos argumentos teológicos, mas do exemplo da vida.
2.2 Conteúdo
O núcleo da carta é essencialmente cristocêntrico: o testemunho cristão pela
configuração da vida com o Cristo Servo. A carta evoca inicialmente a dignidade
cristã, recebida no Batismo (pedras vivas, com Cristo como pedra angular: 1,13–
2,10), para depois aplicar isso às diversas situações da vida (2,11–4,12). Enfim,
seguem-se considerações diversas para a vida em meio ao conflito com a sociedade
(4,13–5,11).
2.3 Destaques
– Estrangeiros no mundo. A carta aplica aos leitores os termos que lembram, ao
mesmo tempo, os israelitas do Antigo Testamento enquanto migrantes ou
estrangeiros (no Egito e na Babilônia) e os “estrangeiros residentes” (com deveres,
mas sem direitos) nas cidades do Império Romano. Esta parece ter sido a realidade
sociológica desses cristãos e também sua experiência como fiéis em face de um
mundo estranho ao projeto de Jesus.
– A comunidade eclesial é povo de Deus e casa de Deus, feita com pedras vivas
edificadas sobre a pedra angular que é Cristo (2,1-10). Para que essas pedras sejam
realmente vivas e a casa realmente casa (família), é preciso praticar a fraternidade
no dia a dia.
– Essa existência de “estrangeiros residentes” no mundo caracteriza-se pela
dignidade e a amabilidade na sociedade e na família. As “tábuas domésticas”, em
2,13–3,7, ensinam a moral pública e familiar. Aconselha-se a lealdade para com as
autoridades humanas (se forem legítimas), mas sem divinização. Respeito para
todos, com inclusão do Imperador, mas para os irmãos, amor, e para Deus, temor
(2,17). Ao Imperador se deve honra como a todos os demais, não adoração. As
mulheres são, como de costume, convidadas a subordinar-se à autoridade do
marido, mas os maridos têm também deveres de respeito e carinho para com as
mulheres (3,1-7). Virtudes semelhantes devem reinar na comunidade dos fiéis,
concebida como uma família (3,8-12). Isso parece “burguês”, mas o espírito e as
motivações apontam mais para uma “estratégia evangelizadora”: dar um exemplo
aos gentios (3,12), conquistar o marido para a fé (3,1-2), dar as razões de nossa
esperança a quem pergunta (3,15); enfim, imitar Cristo, pois nisso consiste a
novidade cristã (2,21-25; 3,18).
– A perspectiva do fim (4,7) dá força para suportar essa vida “estranha”.
Também hoje devemos marcar a diferença cristã, pois não podemos concordar com
tudo o que se impõe no mundo. Para isso, é bom sabermos que nossa realização não
depende de nosso sucesso neste mundo.
3 Segunda Carta de Pedro
3.1 Origem e destinatários
Este escrito (2Pd) se apresenta como “a segunda carta que vos escrevo” (3,1). É
o testamento pastoral de Pedro (o que 2Tm é para Paulo). Com a intenção de
corroborar a fé na vinda de Cristo, cita o testemunho ocular de Pedro. Os
destinatários não são definidos. Preocupado com a reta doutrina e a interpretação
das Escrituras, inclusive das cartas de Paulo, o texto mostra que, naquele momento,
não só o Antigo Testamento, mas também as mais antigas partes do Novo já eram
consideradas Escritura Sagrada. Muitos consideram a carta bem posterior à Primeira
Carta de Pedro; pode ser situada por volta do ano 100 dC. Seria, pois, o último escrito
da Bíblia cristã.
3.2 Conteúdo
1,1-2 Saudação
1,3-21 A verdade a nós transmitida
2,1-22 Os falsos mestres
3,1-16 Desânimo e vigilância: Deus não tarda
3,17-18 Exortação final
1-2 Saudação
3-4 Objetivo: combater os “intrusos”
5-16 Os três castigos clássicos do Antigo Testamento (v. 5-7) devem ser
aplicados a eles (v. 8-16)
17-23 Exortação à comunidade
24-25 Um “bendito” para terminar
7.3 Destaques
– A doutrina dos intrusos mencionados no v. 4 não nos é conhecida com
exatidão. Eles dividiam e desmoralizavam a comunidade, além de se entregarem à
imoralidade. A própria palavra “heresia” significa divisão. Não são tanto as ideias
que causam heresia, mas o comportamento prático que divide a comunidade.
– O uso de escritos apócrifos na argumentação da carta. Estes escritos, muito
populares no 1º século, tratam de assuntos bíblicos, sem pertencerem à Sagrada
Escritura lida na sinagoga. Jd 6 e 12-16 aludem ao livro de Henoc, Jd 6-7 aos
Testamentos dos Doze Patriarcas e Jd 9 à assunção de Moisés. Jd trata assim a
religiosidade extrabíblica divulgada entre os judeu-helenistas com naturalidade e
respeito, sem por isso canonizá-la.
– O autor compartilha a imaginação geral daquele tempo acerca da
proximidade do Fim, e vê nos conflitos surgidos nas comunidades o sinal dos últimos
tempos (v. 17-23). Apesar da severidade e dos termos violentos, transparece uma
atitude pastoral prudente: quem é fraco deve ser tratado com compaixão, mas quem
é orgulhoso, nem sequer se toque na roupa! (v. 22-23).
Conclusão
As “Cartas Católicas” oferecem uma amostra da “unidade na diversidade” no
âmbito das primeiras igrejas cristãs e são também hoje um exemplo da verdadeira
catolicidade, unidade sem uniformização. Seu âmbito abrange igrejas desde
Jerusalém e a Síria (Tiago) até Roma (1-2Pedro), passando pelo mundo da Ásia
Menor (as cartas joaninas). Neste sentido, vêm completar a percepção que se colhe
das cartas de Paulo e dos Atos dos Apóstolos. Para completar o panorama, cabe
acrescentar a Carta aos Hebreus como amostra do aprofundamento da fé cristã no
ambiente judeu-alexandrino culto.
A verdadeira catolicidade não é uniformidade, mas diversidade teológica e
eclesiológica em torno do único Salvador Jesus Cristo e de seu único mandamento
do amor a Deus encarnado no amor fraterno.
Johan Konings, SJ, FAJE, Brasil – original português.
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VOUGA, François. A Carta de Tiago. São Paulo: Loyola, 1996.
[1] Este texto contém alguns trechos, com modificações, das introduções
publicadas pelo mesmo autor na Bíblia Sagrada – Tradução Oficial, da CNBB
(Brasília: Ed. CNBB, 2018).