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GUNNEWEG, Antonius H. Hermenêutica do Antigo Testamento.

Editora
Sinodal, São Paulo: 2003.

1) Como compreender os Escritos Vetero-testamentários?


a. O Antigo Testamento, em todos os sentidos, é um legado de uma época pré-
cristã. Justamente nisso consiste o problema hermenêutico: o próprio legado
de uma época pré-cristã seria, por isso, pré-cristão, e consequentemente não
cristão? Pode o reconhecimento como parte do cânone cristão cristianizar
textos não-cristãos a posteriori e, por assim dizer batizá-los? Mais ainda; a
coletânea judaico-israelita de textos é denominada AT na esfera cristã. Que,
porém, significa o predicado “antigo”? Acaso se quer, com isso, designar
apenas a dimensão temporal do mais antigo, anterior, precedente em sua
relação com o novo como posterior, ou “antigo” designaria, nesse caso, uma
qualidade inferior, ou, inclusive antiquado? (p.7)
b. Esses textos constituíam o legado dos pais israelitas e judaicos cujos herdeiros
legítimos os primeiros cristãos se consideravam. Afinal, eles próprios eram
judeus por nascimento e, de alguma forma, adeptos da religião expressa e
proclamada nos escritos dos pais(p.12)
c. Essa problemática, surgida já relativamente cedo, só podia acentuar-se com a
Reforma, e mais ainda, com o advento da ciência histórico-crítica e sua
aplicação conseqüente à literatura bíblica. Ao se postular que a Escritura seja
fonte de revelação e base da Igreja da Reforma, e não a tradição e o
magistério da Igreja, teve de se atribuir importância teológica primária à
interpretação correta da Escritura; e, ao se retornar ao sentido literal, como o
queriam os reformadores, um AT entendido literalmente e não mais no
sentido alegórico figurativo tinha de revelar novamente sua autonomia, oculta
por longos séculos, mais também sua estranheza. (p. 7)
d. A primeira e mais volumosa parte da Bíblia, outrora a única Escritura Sagrada
da Igreja antiga, seria também agora a verdadeira escritura e o NT, apenas sua
interpretação correta a partir do nascimento, morte e ressurreição de Cristo.
(p.8)
e. Nesse caso, o AT é entendido como um livro de uma história que caminha de
promessa em promessa e em cujo fim se encontro o cumprimento em Cristo,
que por sua vez, também tem novamente caráter de promessa: o êxodo da
escravidão permaneceu inconcluso, a terra prometida ainda não foi alcançada!
(p. 8)
f. Outra possibilidade de enquadrar o AT de modo cristão e fazer juz à sua
qualidade de antigo em sua polaridade com o novo consiste em entendê-lo
como estágio preliminar do novo, não apenas em termos de tempo, e sim,
especialmente em termos de assunto e conteúdo. Isso poderia ser feito
considerando-se a profecia ou a promessa do AT cumprida no NT, ou então
considerando-se como vindo à plena luz do NT, e cumprindo de modo
“antitípico”, o que em eventos, pessoas ou instituições do AT se prenuncia e
tem o seu início de modo típico, prefigurativamente, como sombra
prenunciadora. (p. 8)
g. Essa forma de ver o problema, que concatena ambos os testamentos,
esforçando-se, não obstante, por considerar o Antigo antigo e o Novo novo, se
denomina enfoque tipológico. No entanto, não se corre o risco de total
arbitrariedade quando, a posteriori, os cristãos interpretam tipologicamente
eventos, pessoas e instituições do Antigo Israel que de modo algum quiseram
ser meras sombras prenunciadoras e tipos que apontam para além de si
mesmos? Acaso a exegese não está se transformando aqui em “eisegese”?
(p.9)
h. Dessa objeção escapa quem tenta compreender o AT e também o Novo como,
primeiramente, fixação literária de expressões de vida e atitudes existenciais
que se encontram numa antítese polar. Trata-se da polaridade entre, de uma
lado, a lei que conduz à morte e, de outro lado, o evangelho que traz salvação
e vida. (p.9)
i. À comunidade cultual da lei em Jerusalém e na diáspora, que não renuncia à
ligação com o povo judeu e se isola de outros povos, se contrapõe a
comunidade cristã, que se entende como o verdadeiro povo escatológico de
Deus. (p.9)
j. Nessa visão, o AT está liquidado pelo Novo. Liquidado, porém, não significa
necessariamente que deva ser abolido. Pelo contrário, o AT continua tendo
validade permanente como falsa possibilidade própria do ser humano, e
também ainda do cristão, como livro que mostra ao cristão, como num
espelho, seu fracasso – fracasso cuja constante superação é possibilitada pela
graça do Evangelho. Desse modo o AT é entendido, no sentido estritamente
teológico, como antigo, ou seja, como documento do velho homem que
precisa ser diariamente convencido pelo Evangelho e por ele corrigido. (p.9)
2) A atitude de Jesus
a. Inicialmente podemos afirmar que Jesus reconheceu a autoridade da lei
vétero-testamentária. Quem lhe pergunta pelo supremo mandamento é
remetido ao AT e suas exigências: “O mandamento mais importante é este:
Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás, pois, o Senhor
teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma e de todo o teu
entendimento, e de toda a tua força. O segundo é: Amarás a teu próximo
como a ti mesmo” (Mc 12:29-31). Essa resposta de Jesus cita Dt 6:4-6 e Lv
19:18. (p.13)
b. Apesar de Jesus ter reconhecido a autoridade do AT ele interpreta o AT de tal
modo que demonstra que a vontade de Deus não existe sem a Escritura, mas o
que interessa não é a Escritura e sim a vontade de Deus, fazendo assim um
distinção entre o espírito e a letra. (p.15)
c. Um conhecido exemplo dessa interpretação da Escritura é a interpretação que
Jesus dá ao direito do divórcio, previsto na lei: se a lei (Dt 24:1) permite o
divórcio e se está escrito igualmente (Gn 1:27): “Deus os criou homem e
mulher; por isso deixará o homem pai e mãe, e os dois serão uma só carne”,
Jesus concluiu da comparação dos dois enunciados da Escritura: “O que Deus
uniu não separe o ser humano”. Em outras palavras: a verdadeira vontade de
Deus é que não haja divórcio; o divórcio é apenas uma medida de emergência
“por causa da dureza do coração” do ser humano, que não corresponde à
verdadeira intenção de Deus (Mc 10:2-9). (p.15)
d. É compreensível que aqui, já com Jesus, se abra a possibilidade de uma
conflito fundamental com o legado vétero-testamentário. Enquanto para os
escribas judaicos a interpretação do conteúdo é menos importante do que a
autoridade formal do que está escrito, agora vale praticamente o contrário. Se
o que importa é perceber e fazer a vontade de Deus em termos de seu
conteúdo, e se a vontade de Deus visa o ser humano como um todo, sua
obediência e entrega, pode-se não somente relativizar certas disposições da lei
escrita como dadas apenas por causa da dureza do coração, mas também
podem ser rejeitadas completamente como opostas à vontade de Deus.
e. O dito de Jesus de que nada que entra no ser humano de fora pode torná-lo
impuro, mas o que sai do ser humano é o que o torna impuro (Mc 7.14ss),
altera fundamentalmente as leis da pureza e tudo que a elas se associa no
ritual judaico. (p.16)
f. A autoridade do AT reconhecida por Jesus não o impede de recorrer a essa
coletânea de textos apenas seletivamente de modo positivo. O uso cristão do
AT de modo seletivo já começa com ele. (p.16)
g. Seleção também significa rejeição, inclusive justaposição antitética do antigo e
do novo. Isso se expressa sobretudo nas chamadas antíteses do Sermão do
Monte (Mt 5:21ss). O simples fato de, segundo Mateus, Jesus proclamar essas
palavras do alto do monte significa uma antítese à lei mosaica, que foi
promulgada do monte Sinai. (p.16)
h. Em Jesus já se prenuncia a contraposição do antigo e novo. Em face do novo,
que irrompe com Jesus, o legado recebido adquire o caráter de antigo no
sentido do passado, no sentido do passageiro, provisório e também superado.
Entretanto, nem tudo que foi dito aos antigos já é antigo nesse sentido. A forte
ênfase na condição de Deus como Criador e Senhor por parte de Jesus é,
inclusive sem citações expressas dos textos herdados, legado judaico-israelita.
O cuidado paterno de Deus para com as flores, os animais, e mais ainda, para
com os seres humanos (Mt 6:25-34) é interpretação de conceitos vétero-
testamentários. Novo nessa interpretação é, naturalmente, que o cuidado
presente e a proximidade atual do Deus que cuida bondosamente dos seres
humanos sejam anunciados a uma geração para a qual, como era o caso no
judaísmo, Deus parecia ter emigrado para um lugar distante e como que se
retirado da história para um céu no além. Essa nova interpretação, portanto,
atualiza o antigo e recupera sua validade e verdade. (p.16)
i. Na pregação de Jesus já se prenuncia também que, a partir do NT, o Antigo
agora de fato entra em vigor em sua verdade que se havia perdido. (p.17)
j. Acima de tudo, é preciso considerar que, nesse caso, o legado
veterotestamentario não é nem afirmado unilateralmente nem rejeitado, e
tampouco recebe interpretação totalmente nova. Não se aplica uma chave
hermenêutica uniforme, e o fato de ela não existir não é carência, mas
corresponde objetivamente à multiplicidade do bem que é herdado.
3) O Antigo Testamento nas comunidades pós-pascais
a. A princípio, as coisas também não foram diferentes na comunidade pós-
pascal. Também para ele o AT é um legado natural. Assim como se ateve ao
templo e ao culto do templo, ao tributo para o templo e à jurisdição da
sinagoga, o cristianismo judaico se ateve à lei dos pais (cf. At 6.46; Mt 5.23s.;
17:24-27; Mc 13.9; Mt 10.17). Ele se entende como o verdadeiro Israel; e, visto
de fora, com efeito ele pode, do ponto de vista da história das religiões, ser
considerado como uma seita escatológica do judaísmo. Distingue-se da
corrente principal do judaísmo pela consciência de ser o Israel escatológico e
pela fé no significado salvífico de Jesus Cristo crucificado e ressurreto, e depois
também separa-se formalmente. (p.17)
b. Na medida em que o cristianismo judaico da comunidade primitiva na
Palestina não se separou do judaísmo, essa fidelidade à procedência religiosa e
étnica não significava que ele próprio se atinha à lei- portanto, ao AT como
legado – mas também que os não-judeus que queriam associar-se à
comunidade cristã judaica eram obrigados a sujeitarem-se à lei, e para
expressar essa vontade tinham de circuncidar-se. Aí somente podia tornar-se
cristão quem também estivesse disposto a tornar-se judeu. Se o AT valia como
lei para os gentios que se tornaram cristãos, tanto mais para aqueles que eram
judeus por nascença... ...Embora as palavras de Jesus contra o legalismo e o
pensamento meritório dos fariseus, e também contra o ritualismo cultual,
tivessem ficado na memória e sido transmitidas, certamente houve um
retrocesso em direção ao pensamento legalista. Aqui, então, se atribuiu a
Jesus o dito de que ele não teria vindo para revogar a lei, mas para cumpri-la;
e que até o fim dos tempos não passaria nem sequer um i ou um til da lei (Mt
5.17s). A percepção do Cristianismo como um novo legalismo, novo mas nem
sempre melhor, com base num AT considerado irrestritamente válido e
entendido como lei, já está presente na comunidade primitiva e no NT. (p.19)

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