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Tiago

O Novo Testamento contém sete cartas menores, que são chamadas de “católicas”, que
significa universal, porque, com exceção de 2 e 3 João, são dirigidas à igreja em geral.
As ideias principais dessas epístolas só precisam ser brevemente resumidas, pois
acrescentam pouco ao pensamento teológico principal do Novo Testamento.
A teologia do Novo Testamento não precisa se preocupar em primeiro lugar com as
questões referentes à introdução, como o autor, a data e a origem, porém essas questões
não podem ser de todo ignoradas. Encontramos respostas radicalmente diferentes
quanto à autoria e à data da Epístola de Tiago. Estudiosos de uma geração mais antiga,
especialmente na Grã Bretanha, muitas vezes viam Tiago como uma das mais antigas
epístolas do Novo Testamento e consideravam Tiago, o irmão de Jesus, o autor. Esses
estudiosos enfatizavam o judaísmo do livro, suas afinidades com o Antigo Testamento e
a literatura helenístico-judaica. O pêndulo da crítica dirigiu-se ao extremo oposto, de
modo que A. E. Barnett pode dizer que não há nada na carta que sugira a origem judaica
dos leitores. Ele data o livro em torno de 125-150 d.C. Isso parece ser um juízo mal
fundado, tendo em vista o fato de que uma das interpretações clássicas de Tiago é que
fora originalmente um escrito judaico, transformado em um escrito cristão pela simples
interpolação do nome “Cristo” em duas passagens (1:1; 2:1).
A obra é completamente judaica em seu tom. Moule assumiu uma posição judiciosa, ao
admitir que essa epístola, Tiago, pode ter sido escrita por um judeu cristão, a fim de
conciliar judeus não cristãos, o qual pode até mesmo ter pertencido às suas sinagogas.
Caso contrário, a alternativa é que o livro foi escrito quando a interpretação antinômica
da liberdade cristã já se estabelecera, quer pelas epístolas de Paulo, quer por outra fonte.
Estudiosos conservadores foram capazes de estabelecer bons critérios quanto à
tradicional autoria Jacobita. Há semelhanças notáveis entre Tiago e os ensinamentos de
Jesus. Shepherd pensa que suas alusões refletem um conhecimento do Evangelho de
Mateus, mas não há citações diretas, e é igualmente possível que Tiago tenha se baseado
em uma tradição antiga, em vez de ter se fundamentado no Evangelho escrito, e suas
alusões nunca são idênticas no uso da linguagem. O maior problema quanto à autoria
Jacobita é que não se faz referências claras a Jesus e à sua doutrina, o que se esperaria
de Tiago, se ele fosse de fato o autor da epístola. Contudo, é um princípio
psicologicamente correto que ele possa ter deliberadamente escolhido manter
subentendido que era o irmão de nosso Senhor. Sabemos, a partir de 1 Coríntios 15:7,
que Tiago tornou-se cristão como resultado de uma aparição especial do Jesus
ressurrecto, e tomou-se líder da igreja em Jerusalém (At 15:13; 21:12; Gl 1:19),
desempenhando o papel de líder da igreja em Jerusalém, fato único na era apostólica. A
referência à chuva temporã e serôdia (5:7) revela claramente uma origem palestina. A
tradição posterior confirma esse fato, e nos diz que Tiago foi martirizado por judeus
hostis em 62 d.C. Podemos concluir que a epístola foi escrita por Tiago, o irmão de
Jesus, de Jerusalém, a judeus cristãos que estavam sendo oprimidos por seus
compatriotas judeus.
A Ênfase na Praticidade
O propósito de Tiago é, de modo geral, prático. É impossível concluir, a partir do
conteúdo da epístola, que não estivesse interessado em teologia; um teólogo pode
escrever sermões práticos. Tiago está escrevendo para encorajar companheiros judeus
cristãos, que, em sua maior parte, vinham do nível mais baixo da sociedade e estavam
sendo oprimidos por compatriotas judeus ricos. Não há uma evidência clara de que
estivessem sofrendo perseguição por serem cristãos. Fica claro, no entanto, que Tiago
escreve como um cristão a companheiros cristãos. Jesus é referido como “o Senhor
Jesus Cristo” (1:1), e em outra passagem é chamado de “Senhor da glória” (2:1).
Embora essa seja a expressão cristológica mais notável na epístola, ela envolve
claramente a fé na glorificação, isto é, na ressurreição e ascensão de Jesus – e também
em sua divindade. Tiago vive na expectativa dos últimos dias – um tempo, conclui, em
que o acúmulo de tesouros terrenos não terá sentido. O retorno iminente (parousia) do
Senhor é ainda uma esperança viva (5:7-8); “Eis que o juiz está à porta” (5:9). Essa
esperança era muito antiga. E obviamente na parousia que a salvação será completa –
uma experiência descrita como o recebimento da “coroa da vida” (1:12), a salvação da
alma da morte (5:20), ou a herança do Reino de Deus (2:5). Essas referências deixam
claro que a escatologia desempenha um importante papel no pensamento de Tiago.
A Igreja
Tiago revela pouco sobre a natureza e a estrutura da igreja. E notável o fato dele usar o
termo judaico “sinagoga” para designar reuniões cristãs (2:2). Faz referência aos
anciãos da igreja (5:14), e os instrui nos deveres pastorais cristãos: visitar os doentes e
ungi-los com óleo. Isso deve ser acompanhado pela confissão dos pecados (5:16).
Provavelmente, ele esteja se referindo ao ministério dos anciãos que recuperam um
homem que se desviou da verdade para o erro, e que assim salvam uma alma da morte
(5:20). Nas igrejas com as quais Tiago estava familiarizado, os mestres desempenhavam
um papel importante, e ser um mestre era, aparentemente, uma posição considerada com
apreço e desejada – a ponto de Tiago aconselhar seus leitores a serem cuidadosos ao
buscarem essa posição (3:1). Seria provavelmente um exagero dizer que ensinar
representava uma ocupação formal; também não está claro o relacionamento entre os
anciãos e os mestres. O fato de Tiago continuar sua advertência sobre os mestres,
mencionando a condenação dos pecados do falar (3:2), sugere que ele estava cônscio
dos problemas práticos dos mestres que eram intemperantes e imprudentes no uso de
sua linguagem, e que estavam mais interessados na eloquência das palavras do que na
solidez de conduta.

A Tentação
Tiago está interessado na tentação, que, por sua vez, reflete uma parte de sua ideia sobre
a natureza da humanidade. Aparentemente, estava familiarizado com os cristãos que
evitavam responsabilidades pessoais por seus pecados, culpando a situação em que
Deus os havia colocado e, desse modo, culpavam a Deus abertamente. Tiago insiste que
Deus não pode ser tentado nem tenta ninguém a pecar. Cada pessoa é tentada quando é
atraída e engodada por seus próprios desejos (1:14). A tradução da ARC,
“concupiscência”, não é adequada, pois esse termo, geralmente, conota tentação a
pecados sexuais. Esse não é o pensamento de Tiago. A palavra usada para “desejo”
(epithymia) não é em si mesma uma palavra que contenha alguma conotação má; na
verdade, Paulo a usa a respeito do desejo de estar com Cristo (Fp 1:23). Não fica claro
se Tiago se refere a desejos por coisas más. Seria possível interpretar desejo, aqui, de
modo natural; desejo por coisas que, em si mesmas, não são más – algo análogo ao
entendimento da psicologia referente aos impulsos humanos. Não há nada de errado
com esses impulsos, até que o homem seja atraído e engodado por seus próprios
desejos. Suas realizações tornam-se um fim em si mesmas, de modo que anseia
satisfazer certos desejos mais do que a própria vontade de Deus. Isso pode ser ilustrado
pelo rico fazendeiro, cuja grande ambição de acumular tesouros terrenos levou-o a
colocar o seu amor por esses bens à frente de sua obrigação para com Deus (Lc
12:16ss.). Quando os desejos bons seduzem e tentam um homem a se desviar da
vontade de Deus, concebe-se o pecado, e a morte será o seu fim. Parece claro que, no
pensamento de Tiago, o desejo em si não é pecaminoso ou mau; porém torna-se
pecaminoso e mau quando o homem é “atraído e engodado” por ele.

A Vida Cristã
Tiago tem pouco a dizer a respeito da natureza da vida cristã, mas o que diz é
importante. Entramos na vida cristã quando somos gerados “pela palavra da verdade,
para que fôssemos como primícias das suas criaturas” (1:18). A palavra, como é comum
no Novo Testamento, é o evangelho proclamado. Quando é recebida – quando é
“enxertada” no coração (1:21), o homem encontra a salvação. A palavra “conceber”
(apekyêsen) significa “dar à luz”. Tiago já a havia usado, ao dizer que o pecado gera a
morte (1:15). Essa palavra é uma palavra médica comum, que designa o nascimento
físico. Esse é o modo de Tiago expressar aquilo que os outros escritores do Novo
Testamento querem dizer por expressões análogas, como receber o reino de Deus como
uma criança (Mc 10:15); nascer de novo (Jo 3:3); ser sepultado e ressuscitado com
Cristo (Rm 6:4ss.; Ef 2:1ss.); tornar-se uma nova criatura (2 Co 5:17); e ser regenerado
(Tt 3:5). Todas estas expressões, inclusive a de Tiago, indicam que é necessário haver
uma mudança interior por meio do Espírito Santo – por meio de Cristo – e pela palavra,
para que se tenha acesso à vida cristã. Aqueles que assim nascem de novo, e iniciam a
nova vida, tornam-se, em um sentido especial, o povo de Deus. Esses representam o fato
de que, na realidade, Deus, como o Criador, tem um direito justo sobre toda a raça
humana. Seu povo redimido representa as primícias de sua criação.
É interessante que, embora Tiago veja a fonte da tentação na natureza interior da
humanidade, reconhece a existência do Diabo, e conclui que ele também é uma fonte de
tentação; pois adverte seus leitores: “resisti ao Diabo, e ele fugirá de vós” (4:7). Esta
resistência pode fazer referência não apenas à tentação ao pecado, mas a todas as
astúcias, pelas quais Satanás tenta desviar os homens da verdade. A mesma palavra
“resistir” é usada em Efésios 6:13: “Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que
possais resistir no dia mau e, havendo feito tudo, ficar firmes”. Mas isto tem de incluir a
tentação para pecar. Tiago obviamente compartilha a opinião judaico-cristã a respeito da
existência de demônios, embora apenas se refira a estes de modo breve (2:19). Ele não
reflete, de modo algum, sobre o problema de como a tentação pode vir, tanto do homem
interior como do Diabo.
Em Tiago está claramente implícito que o cristão vive em uma tensão entre o “já” e o
“ainda não”. Pela vontade divina, nascemos de novo; e o cristão se torna uma das
pessoas redimidas de Deus (1:18), tendo a palavra de Deus enxertada no coração (1:21).
Apesar desse fato, o cristão está sujeito a vários tipos tentações como também à pressão
das provações (1:2), que podem fazer com que se desvie da fé (5:19); mas, mesmo
assim, ele espera a parousia de Cristo, quando herdará o Reino de Deus (2:5) e receberá
a vida eterna (1:12).
A ideia de Tiago, sobre a essência da vida cristã, reflete claramente as palavras de Jesus.
Ele se expressa no idioma judaico, mas coloca neste um conteúdo distintamente cristão.
E dever cristão cumprir a lei real (2:7-8). A Lei é real, porque seu autor é o Rei do
universo. A obediência à Lei real redunda em liberdade (1:25). No dia do juízo, Deus
julgará as obras dos homens segundo essa Lei da liberdade (2:12). Fica claro que Tiago
tem a Lei do Antigo Testamento em mente, por sua discussão sobre o peso dos vários
pecados (2:9-11). “Porque qualquer que guardar toda a lei e tropeçar em um só ponto
tornou-se culpado de todos” (2:10). O ponto que Tiago está ressaltando é mais
interessante em vista da opinião generalizada de que os pecados sexuais superam todos
os outros. O que parece mais importante para Tiago, é mostrar parcialidade, e isso para
os não cristãos. O contexto de toda a discussão que precede sua declaração sobre
pecados relativos, é o pecado de lisonjear um incrédulo rico que frequenta uma sinagoga
cristã (2:1ss.) e dedicar-lhe excessiva atenção, ao passo que um homem obviamente
pobre e mal vestido é deixado de lado. Contudo, o conteúdo essencial da Lei é resumido
em termos cristãos: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (2:8; veja Mt. 22:39). Se
uma pessoa realmente cumpre a Lei, mostrará amor igualmente ao pobre e ao rico.

A Relação com a Justificação pela Fé como Expressa por Paulo


Tiago apresenta uma questão teológica que é considerada uma contradição em relação à
doutrina paulina da justificação. Naturalmente, a admissão de uma contradição verbal é
inevitável. O âmago da doutrina paulina da justificação era a absolvição divina,
inteiramente pela graça, baseada na fé, sem as obras da Lei. Nenhum ser humano será
justificado diante de Deus mediante as obras da Lei (Rm 3:20). Tiago parece contradizer
Paulo. “Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé e não tiver as obras?
Porventura, a fé pode salvá-lo?... Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em
si mesma. Mas dirá alguém: Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem as
tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras” (2:14-18). Alguns
estudiosos argumentam que o autor conhecia as Epístolas aos Romanos e aos Gálatas, e
que as estava refutando deliberadamente. Há, contudo, uma solução mais sensata.
Embora as palavras sejam semelhantes, os conceitos são diferentes. É provável que
Tiago esteja refutando perversões da doutrina paulina, quer as epístolas paulinas fossem
conhecidas quer não fossem. De fato, Paulo e Tiago têm significados diferentes para as
palavras fé e obras. Quando se refere à fé, Paulo quer dizer a aceitação do evangelho e o
compromisso pessoal ao evangelho proclamado. Tiago quer dizer algo diferente: “Crês
que há um só Deus? Fazes bem; também os demônios o creem e estremecem” (2:19).
Tiago está usando o conceito da fé segundo a afirmação rabínica de ’emünâ, que
significa a afirmação do monoteísmo! A fé, para Paulo, é confiança pessoal, cordial;
para Tiago, é a opinião ortodoxa. Além do mais, quando se refere a obras, Paulo designa
os feitos judaicos de obediência formal à Lei, que fornecem ao homem uma base para a
ostentação em suas realizações pessoais. Para Tiago, obras são atos baseados no amor
cristão – atos que cumprem a “lei real” do amor ao próximo. Isto fica evidente em sua
ilustração de “obras”. Uma palavra complacente a irmãos cristãos que estejam passando
por necessidades extremas não é amor; tão somente uma provisão amorosa de suas
necessidades realmente expressa o amor (2:15ss.). Provavelmente, o resumo de Tiago
quanto à pura religião – visitar órfãos e viúvas em sua aflição e guardar-se da corrupção
do mundo (1:27) – consista em evitar um espírito de avareza e ganância, e em
contrapartida suprir substancialmente as necessidades materiais de viúvas e órfãos
desamparados. A igreja primitiva de Jerusalém já havia agido desse modo (At 2:45;
6:1). Em suma, Tiago e Paulo estão lidando com duas situações diferentes: Paulo, com a
autojustiça da piedade legal judaica, e Tiago com a ortodoxia morta.
Há em Tiago uma riqueza adicional a respeito da vida cristã prática.

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