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Artigo A CRUZ DE CRISTO

JOHN STOTT
john Robert Walmsley Stott, foi um pastor e teólogo anglicano britânico, conhecido como
um dos grandes nomes mundiais evangélicos. Foi um dos principais autores do pacto de
Lausana, em 1974.
Nascimento: 27 de abril de 1921, Londres, Reino Unido
Falecimento: 27 de julho de 2011.

 “viver sob a cruz” … mostrando que a cruz a tudo transforma.


Ela dá um relacionamento novo de adoração a Deus, uma
compreensão nova e equilibrada de nós mesmos, um incentivo
novo para nossa missão, um novo amor para com nossos
inimigos e uma nova coragem para encarar as perplexidades
do sofrimento. p. 7, 8
CS Lewis, compara a teologia a um mapa: você não chegará a lugar nenhum se ficar
apenas estudando o mapa sem ir ao mar, por outro lado, não é prudente lançar-se ao mar
sem um bom mapa. Penso que teologia deve ser encarada como uma ferramenta, não
como um fim. Há 3 aspectos importantes da teologia nas nossas vidas:

1) Conhecimento. A nossa fé torna-se mais profunda a medida que conhecemos a


Deus, tanto intelectualmente (conhecer sobre Deus) quanto no relacionamento
(conhecer a Deus). Paulo em Cl 1.9,10 e 2Pe 3.18 incentiva os cristãos a crescerem em
conhecimento. O estudo da teologia não deve substituir o relacionamento com Deus,
pelo contrário, torna esse relacionamento mais forte a medida que compreendemos
melhor as verdades do Evangelho.
2) Edificação. Uma boa teologia ajuda a igreja a alcançar capacitação, unidade,
maturidade e crescimento (Ef 4.11-16). A doutrina por si só não é causa de divisões e
contendas, como muitas pessoas dizem (ou não deveria ser). A Bíblia é clara quando diz
que devemos estar unidos em um só espírito (Ef 4.1-6). Da mesma forma, somos
orientados a permanecer firmes na doutrina (2Tm 3.14-17),  combater os falsos ensinos
(1Jo 4.1, 2Jo 9) e, ao mesmo tempo, evitar discussões sem importância (2Tm 2.14-16).
Não devemos colocar questões doutrinárias acima do amor pelos irmãos, mas também
não podemos abrir mão da verdade bíblica por uma suposta “unidade”.

3) Apologética e Evangelismo. Apologética é a defesa da fé, apresentando suas razões


e lidando com as barreiras impostas a ela. É como uma preparação para o evangelismo,
buscando identificar o melhor ponto de contato entre o Evangelho e a pessoa. Um
exemplo de apologética é o discurso de Paulo em Atenas (At 17.16-34). Ao ver um altar
com a descrição “ao deus desconhecido”, Paulo usou isso como ponto de contato com
os atenienses, defendendo então a verdade do Evangelho e refutando os ensinamentos
deles, citando até seus próprios autores (v.28).

Podemos associar essas três áreas da nossa vida da seguinte forma:

Conhecimento – meu relacionamento com Deus Edificação – meu relacionamento


com a Igreja Apologética e Evangelismo – meu relacionamento com os que não são
cristãos.

PARTE 1

Como todas as religiões e ideologias, o cristianismo tem seu símbolo. Inicialmente o


peixe era o ícone maior do cristianismo, por ser um acrônimo – Ichthus (Jesus Cristo
Filho de Deus Salvador) quando a perseguição religiosa impedia o uso de um sinal mais
evidente. Mais tarde foi adotada a cruz, que teve maior aceitação depois da oficialização
do cristianismo no império romano com Constantino. Especialmente o elemento que
traz remete à vergonha, tortura, um método bárbaro adotado por gregos e romanos e
abominado pelos judeus, reservado para criminosos, assassinos e escravos, raramente a
cidadãos romanos. A cruz, portanto era escândalo para as pessoas daquele tempo (1Co
1.18,23).
A perspectiva de Jesus sobre a cruz, porém era bastante peculiar. Ele desde o início
sabia de sua missão, revelando várias vezes aos discípulos que ele devia morrer e
ressuscitar, preparando-os para o que haveria de acontecer. Ele sabia que iria
morrer por três motivos: A hostilidade dos líderes judaicos (Mc 3.6, Lc 4.16-30), a
profecia das Escrituras (Mc. 14.21, Lc 24, Is 53) e a sua própria escolha de dar sua vida
livremente (Mc 10.45, Lc 12.50, João 10.17-18).
Os apóstolos também tinham a cruz como centro de seu ensino. Apesar de não
sistematizarem uma doutrina completa, consideram que Cristo morreu segundo as
Escrituras (1Co 15.3-4), e a retratam como “madeiro”, referência a Deuteronômio
21.22-23, enfatizando que Cristo se tornou maldito em nosso lugar (Gl 3.13, 1Pe 2.24).
Paulo chama o Evangelho de “mensagem da cruz” e “Cristo crucificado” (1Co 21.2),
Pedro ressalta a expiação substitutiva – Cristo morreu em nosso lugar (1Pe 3.18), João
fala da propiciação por nossos pecados (1Jo 2.2), Hebreus mostra Jesus como Sacerdote
da Nova Aliança e o Apocalipse o retrata como o cordeiro que foi morto mas voltou à
vida.
Após entender a centralidade da cruz, vêm a mente a pergunta: Por que Jesus
morreu? Podemos indicar vários responsáveis pela crufcificação. Pilatos e os oficiais
romanos a  decretaram e executaram. Pilatos tentou fugir da responsabilidade três vezes,
pois reconhecia a inocência de Jesus, mas temia desagradar aos líderes judeus. Levou-o
para ser julgado pelo rei (Lc 23.5-12), quis aplicar uma pena mais branda, apenas
castigando-o (Lc 23.16,22) e por fim deixou Jesus à escolha da multidão, lavando suas
mãos para não ser considerado culpado (Mt 17.24).
Temos também os líderes e o povo judeu, que entregaram Jesus a Pilatos, sendo também
culpados (At 3.12-15). Se sentiam ameaçados pela autoridade afirmada por Jesus,
considerada blasfêmia, com suas atitudes em relação à lei e suas denúncias aos fariseus
e seu sistema religioso legalista. Voltando mais um pouco, temos Judas Iscariotes, que
traiu seu mestre entregando-o aos sacerdotes. Ao contrário do que muitos pensam, ele
não foi uma vítima da predestinação, mas teve sua própria escolha (Jo 13.25-30) e foi
movido pela sua ganância, já demonstrada antes em João 12.1-6.
Apesar de todas essas causas, não foram apenas as escolhas humanas de Pilatos, dos
Judeus e de Judas que levaram à crucificação, mas Jesus se entregou deliberadamente
por amor a nós, como estava escrito e como ele mesmo previu. (Jo 11. 17,18) Ele
morreu pela mão dos homens, mas também pelo plano de Deus (At 2.23).
Olhando mais abaixo da superfície, podemos analisar três situações no final da vida de
Jesus que nos ensinam verdades importantes. Na última ceia, Jesus demonstra a
centralidade da sua morte, que deveria ser rememorada, o propósito da sua morte (o pão
e o cálice da nova aliança, que é descrita em Jr 31.31-34) e a necessidade de
participarmos na sua morte (Jo 6.53-55). Ele na verdade estava dando instruções para
substituir a páscoa, onde os judeus relembravam sua libertação do Egito, quando
mataram cordeiros e espalharam seu sangue nas suas portas para que a morte não
atingisse suas casas. Agora, porém, Cristo se tornaria o cordeiro sacrificado por nós.
No Getsêmani Jesus orou 3 vezes suplicando ao Pai que afastasse dele o cálice
(metáfora comum usada pelos profetas do Antigo Testamento representando a ira de
Deus), mas que fosse feita vontade dEle. O que ele temia, na verdade, não era o castigo
físico, a humilhação ou o abandono dos seus companheiros, mas a ira divina que seria
derramada sobre ele. No último momento na cruz, Jesus clamou “meu Deus, por que me
abandonaste?” citando o Salmo 22.1. Não foi uma expressão de descrença, ou apenas o
sentimento de estar só, ou um grito de vitória com intenção de citar o Salmo todo, como
especulam alguns teólogos. Foi um genuíno grito de abandono, pois Cristo naquele
momento estava realmente separado do Pai, sofrendo o castigo que nós merecemos.
Todas essas reflexões sobre os acontecimentos em torno da morte de Cristo afirmam sua
centralidade na fé cristã, ressaltando três aspectos importantes: A gravidade do nosso
pecado, de modo que a cruz foi necessária como modo de satisfazer a Justiça de Deus; a
grandiosidade do amor de Deus, que, podendo condenar o homem, entregou-se a si
mesmo para pagar a dívida humana; e o dom gratuito que é a salvação em Cristo. Não
há nada que possamos fazer por nós mesmos para pagar nossa dívida eterna com
Deus.

PARTE 2

 a importância e centralidade da cruz na fé cristã, as causas da crucificação, inclusive a


disposição de Jesus em dar sua vida por nós e, por fim, analisamos os acontecimentos
finais da vida de Jesus, de onde extraímos lições importantes. Mas uma questão ainda
incomoda muitos estudiosos do cristianismo: Por que era necessário que Cristo
morresse para que fôssemos perdoados? Deus não poderia nos perdoar da mesma forma
que perdoamos uns aos outros, sem a necessidade de um pagamento? Essa dúvida na
verdade é consequência de uma compreensão incompleta sobre o nosso pecado e a
santidade de Deus.
O pecado, apresentado na Bíblia como fracasso, maldade, transgressão, não é apenas
uma simples imperfeição moral, mas é uma grave afronta que tem como essência a
rebeldia contra Deus. Ele nos criou à sua imagem e escreveu sua lei em nossos corações
(Rm 2.15), porém nós escolhemos transgredir a lei (1Jo 3.4). Por trás de todo pecado
há o desejo de independência, o desafio e desprezo à lei de Deus. Não podemos
transferir essa responsabilidade para as circunstâncias que nos cercam, a corrupção do
homem, a criação que recebemos, o ambiente em que vivemos e nossa própria
ignorância. Somos seres pessoais, com liberdade de escolha (embora limitada) e,
portanto, temos a responsabilidade (limitada, porém não excluída) moral e legal sobre
nossas ações.

As pessoas não vão a Deus porque não querem ou não podem? A Bíblia ensina as duas
coisas, somos culpados perante Deus por escolhermos rejeitá-lo (Jo 3.19). O início da
carta de Paulo aos Romanos fala exatamente sobre isso, somos indesculpáveis pois
Deus se revela através da criação, de modo que todos temos conhecimento suficiente
mas ainda assim escolhemos o mal. Dizer que alguém não é responsável por suas ações
é diminuí-lo como ser humano. E se tentarmos contrapor nossas obras boas e ruins,
jamais alcançaremos justiça por nós mesmos diante de Deus.

O conceito de um Deus irado contra a humanidade parece contraditório ao lado do Deus


amoroso que pregamos. O fato é que a ira de Deus está presente tanto no Antigo quanto
no Novo Testamento, não sendo apenas a consequência natural e impessoal do pecado
humano, mas o posicionamento de Deus diante dessa realidade. Também não é como a
ira humana, desenfreada e egoísta. Deus se ira porque é santo, não pode simplesmente
ignorar o pecado. O pecado nos separa de Deus, não por impossibilidade da parte
dEle, mas por seu caráter santo e justo.

Podemos concluir, então, que é necessário um tipo de “satisfação”. Mas satisfação a


que tipo de exigência? Alguns ensinam que a morte de Cristo foi o preço pago ao Diabo
pelo nosso resgate, sendo ele enganado e derrotado com a ressurreição. Essa
compreensão é imprudente, pois coloca Satanás em posição elevada ao ponto de Deus
ter a obrigação de prestar contas a ele por nós. Também há o conceito de satisfação da
Lei, em que Cristo cumpriu perfeitamente a Lei em sua vida, vivendo de forma perfeita,
e em sua morte, cumprindo a pena que nós merecíamos. Aqui precisamos tomar cuidado
em lembrar que Deus não está abaixo da Lei, de modo que tenha sido obrigado a
cumpri-la. O motivo e necessidade de cumprir a Lei não é que Deus estivesse
aprisionado a ela, mas porque Ele mesmo é o seu criador.

Anselmo de Cantuária, téologo medieval, defendeu que a obra de Cristo na cruz foi
necessária para satisfazer a justiça e a honra de Deus, não apenas a lei. Somente o
próprio Deus poderia satisfazer isso, mas somente um homem teria o dever de fazê-lo,
daí a necessidade de reconhecermos a dupla natureza de Jesus como Deus-homem.
Outros argumentam que a expiação serviu para cumprir a ordem moral do mundo criado
por Deus, porém não é visto como ofendido pelo pecado, o que contraria a noção de
pecado como desonra a Deus. O fato é que todos esses conceitos têm traços da verdade,
porém são incompletos, pois sugerem que Deus está subordinado a algo fora e acima
dEle. A conclusão mais coerente é que Deus satisfaz a si mesmo, pois ele não pode
contradizer a si mesmo ou mentir (2Tm 2.13, Tt 1.2, Hb 6.18), Ele é verdadeiro em si
mesmo e age segundo o seu Nome (Ez 20.44, Jr 14.21).
A única solução que preserva a Justiça e o Amor de Deus é a substituição em Cristo,
pois dessa forma o homem não é condenado e o pecado não é ignorado. A carta aos
Hebreus mostra a morte de Jesus como cumprimento definitivo dos sacrifícios que o
povo de Israel fazia no Antigo Testamento. Esses sacrifícios eram parte da lei
cerimonial e representavam duas idéias: Deus como criador, cabendo ao povo dedicar a
Ele parte de seu trabalho, afirmando sua gratidão e dependência dEle, e Deus como juiz,
com a noção de que eram separados de Deus pelo pecado, sendo necessário o sacrifício
como expiação (Lv 17.11). Jesus também é apresentado como o cumprimento da Páscoa
(1Co 5.7,8). No episódio do Êxodo, Deus se mostrou ao mesmo tempo como juiz, ao
trazer a morte aos primogênitos egípcios, e como Redentor, oferecendo a redenção do
povo através do sacrifício de um cordeiro. A partir daí ele confirmou sua aliança com
Israel, através da apropriação de cada um através do sangue.

Se Jesus foi o nosso substituto, isso significa que ele tomou o nosso lugar e nossa pena
foi transferida a ele. Alguns estudiosos ensinam que ele sofreu apenas a consequência
natural do nosso pecado, mas a Bíblia deixa claro que ele sofreu o juízo que
merecíamos, ele levou sobre si os nossos pecados (Gl 3.14, 2Co 5.21).  Porém, por
muitos anos a Igreja passou por discussões a respeito da natureza de Jesus. Se
afirmarmos que ele era apenas homem, assumimos que ele interviu no plano de Deus e
o convenceu a nos perdoar, ou que Deus castigou um inocente em nosso lugar, contra a
sua vontade. Se dissermos que era apenas Deus, isso negaria a encarnação em Cristo,
separaria a pessoa do Pai e do Filho e implicaria no fato de que Deus tivesse morrido, o
que de fato não seria possível. Somente alguém que fosse totalmente Deus e
totalmente homem poderia satisfazer totalmente a exigência do Amor e Justiça de
Deus, e a Bíblia deixa claro que Jesus Cristo era as duas coisas (2Co 5.17-19, Cl 1.19-
20, 2.9). Ao compreendermos a necessidade e a importância da Cruz, temos uma visão
mais clara sobre quem é Deus e quem nós somos, através de Jesus Cristo.

ruz de Cristo”

– Parte 3

Tendo um entendimento correto a respeito do pecado humano e da santidade de Deus,


podemos compreender o significado e o motivo da morte de Jesus na cruz. Agora
passamos para a sua realização, que consiste na salvação do homem, na revelação de
Deus e na conquista do mal. Começando pela salvação, a Bíblia fala da morte de Cristo
como Propiciação por nossos pecados (Rm 3.24-25, 1Jo 2.1-2, 4.10), como sacrifício
que desvia a ira de Deus, antes direcionada a nós. Não é como o conceito pagão de
apaziguar a ira de deuses – a ira de Deus é santa, motivada pelo pecado humano, sendo
que Ele mesmo fez a propiciação, oferecendo a si mesmo.Outro conceito importante é o
de Redenção, também considerado como resgate, que significa comprar algo de volta
(Mc 10.45, 1Tm2.5-6, Gl 4.4-5, 1Co 13.13). Era uma prática comum entre os judeus,
em que o dono recuperava suas propriedades, tendo como exemplo o procedimento para
libertar um escravo – era pago um preço pela sua vida  para que ele fosse liberto. A
diferença no Novo Testamento é que a dívida a ser paga não é apenas material, mas
moral, e o preço pago foi o sangue de Jesus Cristo. O fato de ele ter pago a nossa dívida
mostra seu senhorio e posse sobre nós.
Depois vem a Justificação, em que Deus, como juiz, nos declara inocentes, tirando a
nossa culpa (Lc 18.14, Tt 3.5-7, Is 53.11). A justificação transforma de imediato nossa
posição diante de Deus (Ele nos vê como justos e não mais como culpados) e
transforma gradativamente nosso caráter (Rm 6.1-3). Mas como poderia um Deus justo
declarar inocente um culpado (Ex 23.7, Pv 17.15)? Na verdade, pela Graça de Deus nós
somos considerados justos legalmente, mas não moralmente, pois todos somos
pecadores. A justificação é por meio da fé, mas o que justifica é o objeto da fé, e não o
indivíduo, não temos mérito algum sobre isso (Ef 2.8,9). O último ponto é
a Reconciliação, que significa restaurar um relacionamento quebrado. Por meio de
Cristo temos paz com Deus (Rm5) e acesso a Ele (Ef 2.18, 3.12, Hb 10.19-22). Além
disso, Deus nos reconciliou uns com os outros (Ef 2.14-18) e cumpriu seu plano de
conciliar em Cristo toda a criação (Cl 1.15-20, Ef 1.10,22). O texto de 1Coríntios 5.18-
21 mostra algumas verdades centrais da redenção: Deus é o autor, Cristo é o agente e
nós somos seus embaixadores, com a missão de anunciar o Evangelho.
Passamos então para a Revelação de Deus. Jesus constantemente se referia a sua morte
como glorificação do Pai e do Filho. Tanto a encarnação como o sofrimento de Jesus
são apresentados como demonstração do seu amor (Jo1.12, Rm 5.8). Primeiro, Deus
revela sua Justiça ao executá-la em Jesus. O questionamento “por que os ímpios
prosperam e justos sofrem?” presente em Jó, Salmos, Eclesiastes encontra resposta no
fato que Deus preparou um dia para julgar a todos e aguarda pacientemente para que
nenhum se perca. No aspecto da cruz, ele tolerou os pecados até chegar o tempo de
manifestar sua Justiça – seu juízo e nossa justificação e salvação – em Cristo (Rm 3.21-
26). Deus também revelou seu Amor, demonstrado historicamente no Filho (Rm 5.8) e
pessoalmente no Espírito Santo que age em nossas vidas (5.5). O fato de Deus permitir
que passemos por sofrimento pode parecer uma objeção ao seu amor, mas a cruz nos
mostra o amor definitivo , que pertence a Deus (1Jo 3.16, 4.10). As outras evidências
devem ser observadas sob a luz dessa verdade.
Existe uma teoria chamada Influência Moral, defendida por Pedro Abelardo, teólogo
contemporâneo de Anselmo. Ele afirma que o poder da cruz está no amor que desperta
em nós para responder ao chamado de Deus. O problema é que ele reduz a justificação a
uma influência positiva do exemplo moral de Jesus em nós, desconsiderando a
gravidade do pecado e a necessidade de castigo. Para ele a única condição para o perdão
é o arrependimento, baseado em parábolas como a do Filho Pródigo, ignorando o fato
de que essas parábolas não tem como objetivo estabelecer uma doutrina completa da
salvação, mas sim deixar um ensinamento sobre o arrependimento e o amor do Pai, que
é demonstrado historicamente na cruz, mesmo ela não sendo citada.
Gustav Aulen, teólogo sueco, propõe outra perspectiva: a cruz como vitória de Cristo
sobre a morte, o pecado e o Diabo. Apesar de ele considerar a satisfação ensinada por
Anselmo incompatível com a vitória sobre o mal, devemos buscar harmonizar essas três
visões: A Justiça enfatizada por Anselmo, o Amor enfatizado por Abelardo e, por fim,
a Conquista do Mal. Essa conquista foi predita no Édem (Gn 3.15) e ao longo do
Antigo testemanto, iniciou-se no ministério de Jesus em tudo o que ele fez, realizou-se
na cruz (Hb 2.14-15, Cl 2.13-15), foi confirmada na Ressurreição, se extende no
evangelismo e será consumada na segunda vinda de Cristo. Foi a cruz que trouxe a
vitória, mas a ressurreição foi a confirmação definitiva, sem a qual nossa pregação seria
inútil (1Co 15.13-14).
Ao tomarmos parte na vitória de Cristo, somos libertos da condenação da Lei – mas não
da obediência a ela (Rm 8.1, Gl 3.23-25), do domínio da carne, da influência do mundo
(1Jo 5.4) e do poder da Morte (Hb 2.14, 1Co 15.55-57). Porém, apesar de Jesus ter
derrotado o Diabo, ele ainda não foi eliminado, mas continua buscando nos tragar.
Cristo venceu e reina com o Pai sobre o mundo, mas ainda não consumou seu reino.
Vivemos em uma tensão entre o “já” e o “ainda não”, e devemos tomar cuidado para
não cair em um dos extremos, o triunfalismo do “já” ou o derrotismo do “ainda não”.
Equilíbrio é fundamental para vivermos de forma coerente com essas duas realidades. A
carta do Apocalipse nos traz a esperança de que um dia tudo isso será terminado e
desfrutaremos plenamente da vitória e paz na presença de Deus.

PARTE 4

Além de compreender a centralidade da cruz, seu significado e sua realização, é


necessário que essa realidade seja expressa em atitudes.  Podemos observar que, na
cruz, Deus não apenas salva pessoas isoladamente, mas faz delas um povo (Tt 2.14),
que passa a ter um relacionamento com Deus marcado pela ousadia – liberdade para nos
achegarmos a Ele (Ef 3.12, Hb 4.16), pelo amor (1Jo 4.7-10) e alegria (1Co 5.7-8).
Somos uma comunidade de celebração, tendo como exemplo a celebração da Ceia, onde
nos reunimos para lembrar e agradecer pela morte e ressureição de Jesus, da qual
participamos e a proclamamos.

Ao contrário da cerimônia no catolicismo medieval, que era vista como sacrifício


propiciatório e complementar ao de Cristo, os reformadores defendiam que o sacrifício
foi terminado na cruz e foi definitivo, sendo a ceia um sacrifício de gratidão e adoração
a Deus (Hb 7.27, 9.26, 10.11-12). Outros propuseram que a ceia seria uma prolongação
do sacrifício de Jesus realizada pela Igreja como corpo de Cristo, unindo nosso
sacrifício ao dele. A Bíblia não traz essa ideia de união, mas apresenta Cristo como
exemplo para nós (Ef 5.2). Nossos sacrifícios são oferecidos através de Cristo e para
Cristo (1Pe 5.2, 2Co 5.14-15), mas não em Cristo.

 A cruz também nos faz ter uma melhor auto-compreensão, sem levar aos extremos da
baixa autoestima ou do amor próprio, mas direciona nosso amor ao próximo, de modo
que tenhamos um conceito equilibrado de nós mesmos (Rm 12.3). Ao mesmo tempo
que reconhecemos que somos pecadores, somos também amados por Deus, e esse amor
deve ser demonstrado ao próximo. Na cruz, Jesus se tornou nosso substituto, se
colocando em nosso lugar, e representante, ao nos incluir em sua ação em nosso
favor. Ele pagou nossa dívida e nós partilhamos dos benefícios da sua morte, assim
morremos com Cristo para o pecado – a graça traz salvação pela fé, mas não torna
desnecessária a obediência (Rm 6).
Entendendo isso, podemos seguir o ensino de Jesus em Mc 8.42. A ilustração é de
alguém carregando sua cruz pesada e andando em direção à morte, significa a renúncia
de si mesmo, seguindo não o próprio caminho, mas o de Deus (Gl 5.24). Em suas cartas,
Paulo mostra três tipos de morte e ressureição: 1)A morte para o pecado e a vida para
Deus, que é algo inerente à conversão – aspecto legal. 2)A morte para o eu, que deve ser
praticada diariamente – aspecto moral. 3)A morte de Cristo e sua vida revelada em nós,
a medida que sofremos por ele – aspecto físico (2Co 4.9-10, 1Co 15.30-31, Rm 8.36,
2Co 4.16). Por outro lado, vemos no ensino, atitudes e na missão de Jesus a afirmação
do valor ser humano, resultado da Criação (temos a imagem de Deus), Queda (somos
maus e culpados perante Ele) e Redenção (somos justificados e feitos filhos de Deus).
Cristo restaura a imagem de Deus em nós e vence a nossa natureza pecaminosa.
Jesus nos chama a um amor auto sacrificial, que leva ao sacrifício, serviço e sofrimento,
em contraste com o padrão natural do homem, que busca ambição, poder e conforto (Mc
10.35-45). Esse amor é traduzido em atitudes nas três esferas de serviço: o lar, a igreja e
o mundo. Em relação ao evangelismo, a encarnação de Cristo é o exemplo de
superação das barreiras culturais, sociais e relacionais que podemos enfrentar,
pois Ele deixou sua glória e veio viver entre nós. Seu sacrifício é o exemplo de que
devemos estar dispostos a dar a própria vida em favor de outros. Ao mesmo tempo
devemos exercer a Ação Social a curto prazo e a Justiça Social a longo prazo, para
impactar de forma positiva o mundo, expressando ao mesmo tempo o Amor e a Justiça
de Deus.
Além do amor, temos que buscar a paz com os outros, enquanto for possível (1Pe 3.11),
pois a paz demonstra o caráter de Deus em nós (Mt 5.9). Também devemos buscar a paz
com os inimigos, o que certamente será custoso, pois requer humildade e compreensão
(Cl 1.20). Porém a verdadeira paz inclui também a disciplina e repreensão quando
necessário, com o objetivo de restaurar (Mt 18.15-17, Gl 6.1-2, 1Tm 1.20, 1Co 5.5). Da
mesma forma, Deus nos disciplina como filhos (Hb 12.5-8, Ef 3.14-15). A atitude cristã
para com o mal não deve ser de mera tolerância, mas em Romanos 12 e 13 vemos que
devemos odiar o mal, discernindo-o moralmente (12.9); não revidar ou vingar-se, mas
ter paz com todos (12.17-19); vencer o mal com o bem (12.14,20-21); e saber que o mal
precisa ser punido por Deus, também por intermédio do estado (13.4).
Lutero e Calvino, embora de formas diferentes, defendiam a diferença clara entre
as funções da Igreja e do Estado. Porém não há no seu ensino a separação da vida
pública e particular do indivíduo, mas o cristão na verdade se relaciona com as
duas instituições. O estado exerce a autoridade e o dever dado por Deus (Rm 13.1-6),
com o propósito de promover o bem e restringir o mal (1Pe 2.14) por meio da coerção –
não a violência, mas o uso da força debaixo de controle e princípios. Nós, cidadãos,
temos o dever de respeitar a autoridades, cumprindo as leis (1Pe 2.13) e orando por eles
(1Tm 2.1-2). Porém há limites quando a autoridade do estado é usada de forma errada,
promovendo o mal. Nesse caso, cabe a nós questionar, protestar e, se preciso,
desobedecer para não abrir mão da verdade, como fez Daniel.
A cruz também é nosso exemplo de como encarar o problema do sofrimento, tema de
grande discussão em toda a história da Igreja. O sofrimento pode ter várias causas, que
incluem a ação de Satanás (Jó 1 e 2, , 2Co 12.7), o pecado humano (nem sempre, como
demonstrado no livro de Jó), a sensibilidade natural que temos à dor (um sinal de aviso
importante para a nossa sobrevivência) e o ambiente em que vivemos, sujeitos a
desastres e catástrofes naturais. Algumas correntes filosóficas interpretaram o
sofrimento como sendo sem sentido e propósito, como os estóicos, que afirmavam a
submissão do homem às leis da natureza, e os epicureus, que buscava no prazer próprio
um escape do mundo imprevisível.
 Jesus, porém, apresenta o sofrimento como forma de glorificar a Deus e
manifestar suas obras. mostrando seis realidades fundamentais: Perseverança
Paciente: o exemplo de perseverar e não revidar (Hb 12.1-3, 1Pe 2.18-23). Santidade
Madura: O sofrimento leva ao aperfeiçoamento (Hb 2.10, 5.8-9, 7.28). Serviço
Sofredor: o serviço e o sofrimento andam juntos, tanto para Cristo como para a Igreja
(At 13.47, Jo 12.23-33. Esperança da Glória: o sofrimento é inevitável para o cristão,
mas a glória futura será maior do que toda dor (Rm 8.18, Hb 12.2). O fundamento da
Fé: é racional confiar em Deus, pois ele é soberano, e demonstrou seu amor de forma
definitiva na cruz. A Dor de Deus: mesmo considerando o antropomorfismo
(comparação com sentimentos humanos) presente no Antigo Testamento ao retratar as
emoções de Deus, não podemos nega-las, mas sim diferenciar o sentimento de Deus,
movido por interesse infinito, do sofrimento humano, imperfeito e instável.
Após a compreensão da realidade da cruz, vemos que ela é o fundamento da nossa
justificação, pelo qual Deus nos salvou do nosso estado natural de pecado, (Gl 1.4,
3.13), o meio da nossa santificação, que nos faz crucificar a carne e caminhar com
Cristo (Gl 2.20, 5.24, 6.14), o assunto do nosso testemunho, que deve demonstrar o
amor de Deus ao mundo (Gl 3.1, 5.11, 6.12), e o objeto da nossa glória, que não deve
estar focada em nós mesmos, mas na esperança que temos em sua salvação. (Gl 6.14). A
cruz deve ser o centro de nossas vidas, tendo o Evangelho como a lente através da
qual enxergamos o mundo e a nós mesmos. Que o Senhor esteja renovando a cada dia
em nós o seu Amor e sua Justiça demonstrados na cruz, e sejam demonstrados também
por cada um de nós, para que Deus seja glorificado e o mundo seja impactado.

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