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Cartas Pastorais (1Tm, 2Tm, Tt)

INTRODUÇÃO
Constituem o ponto final da reflexão paulina. Apresentam uma Igreja mais organizada, mais
sedentária, ameaçada pelas heresias e que enfrenta os desafios do dia-a-dia. Diferente do que ocorre
nas grandes epístolas do Apóstolo, nelas não se frisa a tensão escatológica que caracteriza a vida dos
fiéis nem os dons carismáticos que enriquecem as comunidades. Contêm muitas orientações para a boa
condução das comunidades. Os ministérios são bem esboçados, com indicações exatas sobre os
requisitos necessários para os candidatos.

OS DESTINATÁRIOS
Nota-se logo uma diferença em relação às outras cartas de Paulo: as três epístolas são
endereçadas a Timóteo e a Tito, responsáveis particulares pelas Igrejas, não às próprias comunidades.
Quem são esses dois personagens da primeira cristandade? Alguns dados bíblicos os
caracterizam.
- Timóteo é originário de Listra, na Licaônia, e filho de pai pagão e de mãe judia convertida ao
cristianismo. A mãe, Eunice, e sua avó Lóide (2Tm 1,5) educam-no desde a primeira infância na fé
cristã (2Tm 3,15). Paulo o encontra cm sua primeira viagem missionária (At 14-20) e associa-o a si
definitivamente cm sua segunda passagem por Listra (At 16,1-3). Circuncida-o por causa dos judeus
que há naqueles lugares (At 16,1-3). Relativamente novo, provavelmente de caráter tímido e reservado
e de saúde delicada (lTm 4,12; 5,23; 2Tm 1,8; 2,22). Timóteo está ao lado de Paulo como remetente de
várias cartas: a primeira e a segunda aos Tessalonicenses, a segunda aos Coríntios, a carta aos
Filipenses, aos Colossenses e a Filemon. Na epístola aos Romanos, é qualificado como “colaborador”
do Apóstolo e envia junto com ele suas saudações à comunidade (16,21). Na missão em Tessalônica e
em Corinto, desempenha um papel importante.
- Tito é conhecido só pelas cartas paulinas. Os Atos não falam dele. Gentio de nascimento,
abraça a fé sem a obrigação da circuncisão (Gl 2,1-5). Desempenha um papel importante na missão em
Corinto (2Cor 7,6-16). Deve-se a ele o fato de o tenso relacionamento entre a comunidade e o
Apóstolo ter melhorado decididamente. Encarregado da coleta para os cristãos de Jerusalém (2Cor
8,6), mostra-se digno de confiança (2Cor 12,17). Segundo Tt 1,5, Paulo o teria enviado para organizar
a Igreja de Creta.

AS CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS
O estilo das cartas é lento, difuso e monótono. A reflexão é tranquila, serena, às vezes um pouco
pesada e moralista. Os autores nos informam que nelas se encontram 305 termos que não aparecem nas
outras epístolas paulinas e 175 vocábulos desconhecidos no Novo Testamento. Especificam também
que 335 termos próprios das cartas pastorais se encontram em autores do segundo século. Além disso,
notam que nas cartas estão ausentes várias expressões características de Paulo, como os termos
“evangelizar”, “dar graças”, “gloriar-se”, “corpo”, “carne”, “liberdade”, “sabedoria”, “circuncisão”. A
língua é mais próxima do grego literário do que do grego bíblico da koiné. Na exposição, falta uma
ordem rigorosa e é evidente certa fragmentação.
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E interessante notar a repetição de motivos e refrões que nunca aparecem nas outras cartas
paulinas:
- “Fiel é esta palavra” (1Tm 1,15; 3,1; 4,9; 2Tm 2,11; Tt 3,8).
- “Tu, porém, homem de Deus” (1Tm 6,11; 2Tm 3,10.14; 4,5; Tt 2,1).
- “Eis o que deves ensinar” (1Tm 4,11; 6,2; Tt 2,15).
Ricas em normas de disciplina de teor jurídico (1Tm 2,9-12; 3,2-7,8-13; 5,3-16.17-25; 6,1-2;
2Tm 2,14-26; Tt 1,6-9; 2,2-10), as cartas contêm também elementos litúrgicos da Igreja primitiva que
se integram bem aos ensinamentos oferecidos (1Tm 1,17; 2,4b; 3,16; 6,15-16; 2Tm 2,8,11-13). Nelas
estão presentes também provérbios e ditos de sabedoria popular (1Tm 4,8; 5,24; 6,7), orientações
concretas para um bom trabalho apostólico (1Tm 4,6-8.13-16; 2Tm 2,22-26; 3.10-17), sínteses
catequéticas da fé cristã (Tt 2,11-14; 3,4-7). São, portanto, documentos preciosos, que oferecem um
verdadeiro manual para o bom exercício do ministério.

ESQUEMA DAS CARTAS

A PRIMEIRA CARTA A TlMÓTEO


Endereço (1,1-2)
A situação eclesial (1,3-20)
- Os falsos doutores (1,3-11)
- O apostolado de Paulo (1,12-17)
- A tarefa de Timóteo (1,18-20)
A vida eclesial (2,1-15)
- Oração litúrgica universal (2,1-7)
- Comportamento dos homens e das mulheres na assembleia (2,8-15)
Os ministérios da Igreja (3,1-16)
- Epíscopos e diáconos (3,1-13)
- Paulo quer se encontrar com Timóteo (3,14-16)
A responsabilidade de Timóteo (4,1 - 6,19)
- A situação da Igreja, ameaçada por “doutrinas demoníacas” (4,1-11)
- Valor da vida interior (4,12-16)
- Importância da atividade pastoral. As viúvas (5,1-16), o ministério dos presbíteros (5,17-25), os
escravos (6,1-2).
- Exortação a Timóteo (6,3-16)
- Cura pastoral dos cristãos ricos (6,17-19)
Admoestação final e saudação (6,20-21)

A CARTA A TITO
Endereço (1,1-4)
A organização das Igrejas (1,5-9)
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Tarefa de Tito em Creta.


Luta contra os falsos doutores (1,10-16): Os adversários estão pervertendo famílias inteiras e
com o objetivo de lucro, ensinam o erro (1,12).
As tarefas pastorais (2,1-10): Tito deve lidar com várias categorias: pessoas velhas, mulheres
idosas, jovens, servos.
O fundamento das exortações de Paulo (2,11-15): O plano salvífico de Deus e a ação salvadora
de Jesus Cristo.
Os deveres dos fiéis (3,1-7): Submissão aos magistrados e às autoridades, trabalho honesto, sem
difamar ou brigar, mostrando delicadeza para com todos.
Conselhos especiais (3,8-11): Evitar controvérsias e debates fúteis. Afastar-se dos hereges.
Recomendações práticas e saudações (3,12-15).

A SEGUNDA CARTA A TIMÓTEO


Endereço e agradecimento (1,1-5)
Conselhos espirituais a Timóteo (1,6-14): Reavivar o dom de Deus, tirar o medo do apostolado,
participar do sofrimento de Cristo, tomar por modelo a doutrina da tradição, guardar o depósito da fé.
A situação de Paulo (1,15-18): O Apóstolo faz a experiência da quase completa solidão.
Agradece a Deus pelos poucos que ficaram perto dele e o confortaram.
Exortações a Timóteo (2,1 - 4,6)
- Fortaleza no sofrimento (2,1-13)
- Sólidas virtudes na luta contra os falsos doutores (2,14-26)
- Os perigos dos últimos tempos (3,1-17)
- Apelo para um desempenho sério do trabalho apostólico (4,1-5)
- A proximidade do fim (4,6-8)
Últimas recomendações, notícias, saudações (4,9-22)

MUDANÇA DE ENFOQUE TEOLÓGICO


Em relação às grandes cartas paulinas há notáveis diferenças. São as seguintes:
1. Apresenta-se um ideal de “vida calma e serena, com toda piedade e dignidade” (1Tm
2,2), atenta ao cotidiano, vivida na consciência de que a história continua e a vinda de
Cristo não é tão iminente (lTs 4,15; 1Cor 15,52).
2. Há um perigo difundido de heresias: insiste-se a respeito da “sã doutrina” da tradição
apostólica (1Tm 1,10; 4,6.16; 6,3; 2Tm 4,3, Tt 1,9; 2,1), expressão que nunca se encontra
nas outras cartas paulinas.
3. Destaca-se a importância da fidelidade ao “depósito”, isto é, ao conjunto de doutrinas e
tradições referentes à fé que devem ser conservadas e transmitidas aos sucessores (1Tm
6,20; 2Tm 1,12.14). Esse pormenor indica que já se passou certo tempo desde o início do
cristianismo. Já se pode olhar para trás e ver o caminho percorrido.
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4. A fé não é mais considerada a relação existencial entre o fiel e Cristo, que está na base da
existência cristã, selando a vida inteira. Significa a aceitação da doutrina cristã e a
fidelidade ao pensamento da Igreja (1Tm 1,19; 4,6; 6,11.21). Nas cartas, em lugar da
palavra “fé”, encontra-se o termo “piedade”, estranho ao vocabulário paulino, que resume
toda a atitude religiosa do cristão, centrada no evento de Cristo (1Tm 2,2; 3,16; 4,7.8;
6,3.5.6.11; 2Tm 3,5; Tt 1,1; 2Tm 5,4: 2Tm 3,12). Indica a comunhão com Deus, que se
revela em Jesus Cristo, o cumprimento de sua vontade, a vida santa, a prática das virtudes
cristãs.
5. Não se destaca também que o amor é a virtude por excelência que caracteriza a existência
cristã (1Cor 12,31). Limita-se a realçar que constitui uma virtude entre as outras (1Tm
1,5; 6,11). Salientam-se, assim, mais as boas obras feitas com amor (1Tm 2,10; 5,10.25)
do que a vida no Espírito. Faz-se menção, porém, ao Espírito (1Tm 4,1; 2Tm 1,14; Tt
3,5) como aquele que ajuda a Igreja em sua tarefa profética, na fidelidade ao “depósito”,
depois de tê-la renovada por meio do batismo.
6. Fala-se do mistério pascal com menor realce, mencionando-o só nos fragmentos
litúrgicos de 1Tm 2,5; 3,16 e em 2Tm 2,8; Tt 2,14.
7. Pode-se acrescentar que o termo “Salvador” qualifica tanto o Pai (1Tm 1,1; Tt 2,10; 3,4;
2Tm 1,9) como o Filho (2Tm 1,10; Tt 2,13; 3,6).
8. Também o termo “Senhor” é aplicado quer ao Pai quer ao Filho (2Tm 1,18), O Cristo é,
pois, explicitamente colocado no mesmo nível de Deus Pai e qualificado como “Deus e
Salvador” (Tt 2,13; cf. 2,10). Nas cartas de segura autoria paulina, só em Rm 9,5 o termo
“Deus” é referido ao Cristo.
9. A vinda do Cristo escatológico é chamada de “aparição” (1Tm 6,14; 2Tm 1,10; 4,1.8) e
não mais de “parusia” (Mt 24,27; 2Ts 2,8) ou de “dia do Senhor” (1Ts 5,2; 2Ts 2,2).
10. Se na carta, com uma afirmação semelhante à de Rm 7,7.12.14.16, realça-se que a Lei é
“boa, conquanto seja usada segundo as regras” (1Tm 1,8), não se frisa, porém, como na
epístola aos Romanos, que seu papel é também o de manifestar o pecado do homem.

A ECLESIOLOGIA E A ORGANIZAÇÃO DA IGREJA

A REALIDADE DA IGREJA
Para indicar a realidade da Igreja, que nas cartas pastorais é sempre considerada como entidade
local (cf. também 1Tm 5,16; Tt 1,5), usam-se várias metáforas que não se encontram nas outras
epístolas paulinas. São as seguintes;
“Casa de Deus” (1Tm 3,5.15). A Igreja é apresentada como o âmbito em que Deus mora com
seu povo, como a habitação dos fiéis, reunidos ao redor de Deus Pai. Frisa-se que há nela uma
pluralidade de funções: “Numa grande casa não há somente vasos de ouro e de prata; há também vasos
de madeira e de barro: alguns para o uso nobre, outros para o uso vulgar” (2Tm 2,20). Se a metáfora
do edifício já é conhecida por meio das outras cartas paulinas, nas cartas pastorais não representa,
porém, a Igreja como uma realidade em crescimento e em contínua construção, como em 1Cor 3,9-15;
Cl 2,19; Ef 2,21-22. Mas como uma entidade parada, imóvel e estática.
“Coluna e sustentáculo da verdade” (1Tm 3,15). A Igreja é o baluarte contra as heresias que
procuram abrir brechas entre os cristãos. Se comparadas às primeiras cartas de Paulo, percebe-se que a
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situação mudou e que as comunidades vivem numa atitude de autodefesa e de certo fechamento para
com o mundo que as cerca. A Igreja continua sendo a comunidade à qual todos são convidados, mas
não é mais o espaço das experiências novas, impulsionadas pelo Espírito, que abre caminhos
inesperados. É o lugar onde se conserva a sã doutrina. Esse modo de se expressar encontra sua
explicação nas situações concretas da vida da Igreja no final do primeiro século.
Também a expressão “o sólido fundamento colocado por Deus” (2Tm 2,19) pode referir-se à
Igreja, qualificando-a como o edifício estável e inabalável construído por Deus e alicerçado nele. Essa
metáfora também indica que, nas cartas pastorais, não há mais uma compreensão dinâmica da Igreja.

OS MINISTÉRIOS
Além do próprio Apóstolo e de Timóteo e Tito, que gozam de uma autoridade especial, faz-se
menção, nas epístolas, a outros responsáveis pela comunidade: o “epíscopo” (1Tm 3,1-7; Tt 1,7-9), os
“presbíteros” (1Tm 5,17-25; Tt 1,5-6) e os “diáconos” (1Tm 3,8-13). É bom esclarecer em que
consistem essas tarefas.
- Próprio das comunidades de cultura helenística, o termo “epíscopo”, já encontrado em Fl 1,1,
qualifica aquele que tem o papel de supervisor. Trata-se do primeiro responsável pela vida dos cristãos.
Frisando sua importância, Paulo lembra que o epíscopo deve cuidar da Igreja de Deus vivo assim
como governa sua família (1Tm 3,5), “sendo ecônomo das coisas de Deus” (Tt 1,7).
- O termo “presbítero” aparece, ao contrário, no âmbito cultural judaico e indica o grupo dos
anciãos que têm uma função de liderança na comunidade. Trata-se de uma liderança colegial, segundo
o modelo sinagogal (At 11,30; 15,2; 21,18).
- O termo “diácono” indica uma tarefa de serviço qualificado, provavelmente em prol dos pobres
ou dos doentes. Não se refere ainda ao ministério diaconal em sentido próprio, que, na Igreja, vem à
luz só posteriormente.
Não é improvável que o texto de 1Tm 3,11 possa indicar também a presença de diaconisas na
comunidade. Com efeito, no contexto da perícope, referente aos diáconos, realça-se: “As mulheres
igualmente devem ser dignas, não maldizentes, sóbrias, fiéis em tudo”. Trata-se das esposas dos
diáconos ou de mulheres que exercem na Igreja a função diaconal? A segunda possibilidade parece
mais provável, levando-se em conta a existência de diaconisas na Igreja primitiva, uma das quais é
Febe, mencionada em Rm 16,1.
Em relação aos ministérios do epíscopo e dos presbíteros, é preciso destacar o seguinte:
- Como foi realçado, as duas funções pertencem a mundos culturais diferentes e representam
modelos diferentes de liderança. Com efeito, Paulo, nas cartas de sua segura autoria, nunca usa o termo
“presbítero”, característico das Igrejas lucanas, mas o termo “epíscopo”.
- E provável que nas epístolas pastorais, que mencionam os dois termos juntos, seja esboçado o
momento em que os dois ministérios, inicialmente diferentes, começam a se justapor e a se confundir.
Com efeito, nas cartas, as funções do epíscopo e dos presbíteros são as mesmas. Consistem, em
particular, em presidir a comunidade (1Tm 3,4; 5,17a), exercer o ministério da Palavra e instruir (1Tm
3,2; 5,17b; Tt 1,9; 2Tm 2,2), combater as heresias (2Tm 4,3). Isso se torna ainda mais claro em Tt
1,5.7, em que os termos “presbítero” e “epíscopo” são equivalentes, levando-se em conta que, no início
do v.7, a conjunção “no entanto”, “com efeito”, opera a ligação entre os versículos: “Eu te deixei em
Creta para cuidares da organização e ao mesmo tempo para que constituas presbíteros em cada cidade,
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cada qual devendo ser, como te prescrevi, homem irrepreensível |...|. No entanto, é preciso que, sendo
ecônomo das coisas de Deus, o epíscopo seja irrepreensível”.
- A mesma equivalência se encontra em At 20,17.28, em que Paulo dirige suas palavras de
despedida aos “presbíteros” de Éfeso (v.17), que ao longo do discurso chama de “epíscopos” (v.28).
Embora as funções sejam equivalentes, é interessante notar que, nas cartas pastorais, fala-se do
“epíscopo” só no singular e dos “presbíteros” só no plural. Isso poderia talvez indicar a função de
liderança própria do supervisor em relação aos presbíteros. Essa particularidade da linguagem pode ser
o sinal de que, na Igreja, está em ato um processo de hierarquização.
E provável também que na época das cartas pastorais já houvesse um colégio presbiteral, embora
dele se faça clara menção só nas epístolas de Inácio de Antioquia. Em 1Tm 4,14 fala-se em
“presbitério” fazendo-se referência ao organismo dos presbíteros, que tem funções particulares e pelo
qual Timóteo recebeu a imposição das mãos. Rebaixar a afirmação do texto à luz de outra lição grega,
traduzindo o termo como “presbiterato” e realçando, assim, que Timóteo recebeu a imposição das
mãos “em vista do presbiterato” não é uma solução que convence. Nas cartas, Timóteo nunca é
chamado de presbítero.
Falando do rito da imposição das mãos a respeito de Timóteo (lTm 4,14; 2Tm 1,6) e, em geral,
dos presbíteros (lTm 5,22), as epístolas pastorais destacam o gesto pelo qual, desde o início da Igreja,
transmite-se a alguns de seus membros um poder para a construção da comunidade, pedindo a Deus
que os estabeleça no serviço para o qual foram escolhidos. O gesto continua até hoje.
As cartas pastorais manifestam também o interesse para o tema da sucessão, no ministério: “O
que de mim ouviste na presença de muitas testemunhas, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos
para ensiná-lo aos outros” (2Tm 2,2). Não se trata, porém, de sucessão apostólica, mas de renovação
de ministérios locais. Com efeito, não se fala da morte próxima de Timóteo e da necessidade de sua
substituição.
Como foi destacado, nas cartas insiste-se muito sobre as qualidades que devem ler os candidatos
às tarefas ministeriais. Dão-se, em consequência, orientações claras para a escolha do epíscopo (lTm
3,2-7), dos presbíteros (lTm 5,17-20; Tt 1,6-8) c dos diáconos (lTm 3,8-13): “É preciso que o epíscopo
seja irrepreensível, esposo de uma única mulher, sóbrio, cheio de bom senso, simples no vestir,
hospitaleiro, competente no ensino, nem dado ao vinho nem briguento, mas indulgente, pacífico,
desinteresseiro”. Há também sugestões pormenorizadas em relação ao comportamento das mulheres:
“Que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia; nem tranças nem objetos de
ouro, pérolas ou vestuário suntuoso; mas que se ornem, ao contrário, com boas obras, como convém a
mulheres que se professam piedosas” (lTm 2,9-15). Tudo isso realça a importância da disciplina na
vida da comunidade eclesial.
Destaca-se também o papel das viúvas, que constituem um grupo particular na Igreja, com tarefa
e consagração especiais: “Uma mulher só será inscrita no grupo das viúvas com não menos de sessenta
anos se tiver sido esposa de um só marido, se tiver em seu favor o testemunho de suas boas obras,
criado filhos, sido hospitaleira, lavado os pés dos santos, socorrido os atribulados, aplicada a toda boa
obra” (1Tm 5,3-16).
O tema da organização eclesiástica falta na segunda carta a Timóteo, que destaca de modo
particular tanto a situação de solidão de Paulo, prestes a ser oferecido em libação a Deus (2Tm 4,6),
quanto o perigo dos falsos doutores que ameaça toda a Igreja.
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Em síntese: A comunidade nas cartas pastorais era:


1. zelosa pela sã doutrina e pela verdade
2. guarda o “depósito”
3. leva uma vida conforme a piedade
4. combate os falsos doutores
5. é engajada no ensino
6. é organizada
7. nela desenvolvem sua tarefa o epíscopo, os presbíteros, os diáconos e as diaconisas

OS ADVERSÁRIOS
Eles aparecem nas duas cartas endereçadas a Timóteo. Poucas vezes fala-se deles na carta a Tito.
Alguns elementos os caracterizam:
1. Surgem da própria comunidade cristã e atuam em seu meio. Com efeito, em Tt 3,10, o
falso doutor é qualificado de “homem herético”. O termo grego airetikón indica aquele
que divide a comunidade, não aceitando a verdade proclamada pela Igreja. As ameaças
vêm, pois, dos próprios fiéis que se pervertem.
2. Os desvios são, porém, apresentados de modo genérico, segundo os esquemas utilizados
pelos filósofos antigos contra os sofistas. “Virá um tempo em que alguns não suportarão
a sã doutrina; ao contrário, segundo seus próprios desejos, como se sentissem comichão
nos ouvidos, se rodearão de mestres” (2Tm 4,3). Não se aponta ainda para um
movimento particular, com feições bem determinadas.
3. O ensinamento desses doutores consiste em “fábulas e genealogias sem fim” que
favorecem as discussões, sem ajudar no crescimento da fé (1Tm 1,4). Pregam em
particular que a ressurreição já aconteceu (2Tm 2,18), proíbem o casamento, exigindo
abstinências alimentícias (1Tm 4,3) e desviando os homens com atitude de mestres (2Tm
4,3-4), embora sejam “insubmissos, palavrosos e enganadores” e, na realidade, não
tenham o direito de ensinar (Tt 1,10-11). Paulo os condena, qualificando suas palavras de
“doutrinas demoníacas” (1Tm 4,1), de “mandamentos dos homens desviados da verdade”
(Tt 1,14).
4. Eles provavelmente são judeus-cristãos que pretendem “passar por doutores da Lei”
(1Tm 1,7), promovendo fúteis “debates sobre a Lei” (Tt 3,9; cf. Tt 3,9; 1Tm 1,4) e
levantando questões referentes a “mitos judaicos” (1Tm 1,4; Tt 1,14). Procurando uma
“falsa gnose” (1Tm 6,20), talvez sejam simpatizantes por alguns motivos da doutrina
gnóstica, que começa a se difundir no oriente médio. Não se pode, porém, qualifica-los
de verdadeiros gnósticos.

A AUTENTICIDADE DAS CARTAS


A autenticidade das cartas pastorais é destacada já pelo Cânon Muratori (180 d.C.) e por Santo
Ireneu (200 d.C.), que as colocam no “corpo paulino”.
Nelas sobressaem-se vários traços paulinos:
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- O plano de Deus é qualificado de “mistério”, embora fale-se do “mistério da piedade” (1Tm


3,16) e não em “mistério” de forma absoluta.
- Frisa-se a gratuidade da redenção oferecida por Deus em Jesus Cristo (1Tm 3,16; Tt 2,11-14;
3,6-7).
- Usa-se o termo “justificação” em Tt 3,7.
- Destaca-se que a salvação acontece pela graça (Tt 3,7), por meio da fé (1Tm 1,16; 2Tm 3,15),
por meio do sacramento do batismo (Tt 3,5), e que as obras humanas não conseguem justificar
ninguém (Tt 3,5; 2Tm 3,15).
- As orientações morais referentes aos escravos (lTm 6,1-2) e ao comportamento para com as
autoridades humanas (lTm 2,1; Tt 3,1) se encontram também em outras cartas paulinas.
- A convicção de que os sofrimentos do Apóstolo concorrem para o bem espiritual dos fiéis
(2Tm 2,10) é um tema paulino.
- A atitude de suavidade no trato com os pecadores, realçada em 2Tm 2,25. “É com suavidade
que deve educar os opositores, na expectativa de que Deus lhes dará não só a conversão para o
conhecimento da verdade, mas também o retorno à sensatez”, se encontra também em G1 6,1.
A luz desses detalhes, aceita-se a autoria paulina das epístolas pastorais e pensa-se na evolução
da teologia do Apóstolo e de seu vocabulário. A esse propósito, valoriza-se, como sinal de
antenticidade. as notícias pessoais de Paulo (2Tm 4,6-17; Tt 1,5; 3,12-14) e os pedidos particulares que
o Apóstolo faz a Timóteo: “Traze-me, quando vieres, o manto que eu deixei em Trôade, na casa de
Carpo, e também os livros, especialmente os pergaminhos” (2Tm 4,13). Levando-se em conta que
Paulo é velho e escreveu num calabouço, rodeado por muitos prisioneiros, num ambiente sujo e
obscuro, os partidários da autenticidade paulina das cartas reconhecem que houve a presença de um
secretário, que, embora não mencionado nas cartas, pode ter influenciado na sua redação.
Hoje em dia prevalece a tese da não-autenticidade das cartas. Elas representam, pois, uma
reinterpretação da tradição apostólica feita por um discípulo após a morte de Paulo. As motivações são
as seguintes:
- Os dados históricos são fictícios, convencionais e não passam de mera roupagem literária.
- O enfoque teológico é diferente. Faltam as grandes perspectivas paulinas, o vigor da exposição
do Apóstolo é menor, seu pensamento se toma mais moralista, lento e monótono.
- O estilo e o vocabulário mudam. Alguns exegetas frisam que, num total de 902 termos das
cartas pastorais, 305 não se encontram alhures em Paulo e 175 não aparecem no Novo Testamento.
- O interesse marcado pelas anotações pessoais do Apóstolo (2Tm 4,9-13.20) deve ser
interpretado como um meio literário fictício utilizado para convencer de que as composições são
autênticas.
- É preciso acrescentar que, se o autor das cartas pastorais fosse o Apóstolo, haveria um
discutível acréscimo de dados biográficos e cronológicos para reconstruir os últimos anos da vida de
Paulo. Com efeito, depois do primeiro cativeiro em Roma, ele teria ido à Espanha (Rm 15,24.28). Daí
teria voltado para Creta (Tt 1,5), onde teria encarregado Tito de cuidar da Igreja como seu primeiro
responsável. Depois teria ido ao Epiro, ficando na cidade de Nicópolis (Tt 3,12). Então ter-se-ia
mudado para Éfeso (lTm 1,3). Passando por Trôade (2Tm 4,13), teria voltado à Macedônia (lTm 1.3)
e, por fim, ido para Roma, onde teria sido preso uma segunda vez (2Tm 1,17).
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A reconstrução hipotética em si não é absurda. É, porém, difícil acreditar que uma pessoa idosa
como Paulo possa ter feito tantas viagens do ocidente para o oriente e do oriente para o ocidente,
levando em conta, em particular, as condições do transporte daquela época.
Além disso, dever-se-ia explicar por que Paulo, após o primeiro cativeiro em Roma (60-63 d.C.),
foi preso uma segunda vez, embora Clemente Romano, o Cânon Muratoriano e Eusébio falem do
segundo cativeiro do Apóstolo. Sua morte deveria ter acontecido, então, no ano 67 d.C. e não em 64
d.C., segundo uma opinião comum.
Há, também, a tese da autenticidade parcial das epístolas pastorais, isto é, de fragmentos
autênticos no corpo inautêntico das cartas. Essa posição de compromisso não parece aceitável, porque
tira a unidade das cartas e sua coerência. A mesma crítica pode ser feita em relação à hipótese da
existência de um secretário que amplia iniciais esboços de Paulo, adaptando-os às necessidades de seu
tempo. Melhor é pensar que um discípulo de Paulo tenha refletido sobre a nova situação da Igreja
depois da morte de seu mestre, procurando indicar que orientações o Apóstolo daria, em continuidade
a seu ensinamento básico, se ainda estivesse vivo.

A DATA DAS CARTAS


A opinião comum acredita que a primeira carta a Timóteo e a carta a Tito foram escritas pelo
próprio Paulo na Macedônia, em 64-65 d.C., e que a segunda carta a Timóteo, que, por seu conteúdo, é
posterior às duas primeiras, veio à luz em Roma no ano de 67 d.C., pouco antes da morte do Apóstolo.
Atualmente prefere-se dizer que as cartas pastorais são da escola paulina e foram escritas em
Roma no final do primeiro século. Com efeito, há uma evidente afinidade entre elas e a primeira carta
de Clemente Romano. Não se pode atrasar demais sua redação, porque nelas os falsos doutores
aparecem ainda atuantes no interior das comunidades. Depois das primeiras décadas do segundo
século, ao contrário, se torna clara a distinção entre a Igreja e as seitas.

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