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GRAMSCI E OS INTELECTUAIS

 
Laudicéa de Souza Pinto *
I - Introdução
Nos dias que correm, ainda encontramos intelectuais que se consideram os
portadores predestinados da missão revolucionária sagrada e os profetas
carregadores da “lei histórica”.
Engels definira a ideologia como uma maneira de pensar especial, uma
“falsa consciência” em que os motivos determinantes (de ordem econômica)
permanecem inconscientes. A leitura mecânica desta idéia faz um burguês pensar
como um burguês, um nobre como um nobre, e assim por diante. Ainda, se
trabalhando com a categoria “inconsciente” se teria teorias racistas (onde o
“inconsciente” não é tão inconsciente assim), o ariano pensando como deve pensar
o ariano, e o judeu e o negro como “podem” pensar o judeu e o negro.
O intelectual, entretanto, se considera imune a tais contingências. O
intelectual gozaria de uma consciência verdadeira e não se sentiria
inconscientemente manobrado por seus interesses econômicos. Foi preciso que
Lênin, analisando a questão ideológica e da consciência e formulando a noção de
“ideologia proletária”, desse vigor à discussão sobre esses pontos.
A verdade burguesa, legitimada pelos intelectuais, se opõe a verdade
“operária”. Os intelectuais, que assim agem (conscientemente ou não)
desenvolvem uma filosofia que serve para encobrir as misérias da época e
fundamentalmente a separação angustiante entre seus poderes e o limite real da
sua “realização”. Dissimulam cinicamente a dominação burguesa em seus pontos
essenciais. Cumprem a missão odiosa de fazer aceitar uma ordem e fornecendo-lhe
justificativas. Trabalham para afirmar e propagar as verdades parciais engendradas
pela burguesia e úteis ao seu “poder” (Nizan, 1978: 32).
 
II - O que quer dizer “intelectual”?
A palavra intelectual, no sentido que a empregamos hoje, teria sido
introduzida por Clemencean durante o caso Dreyfus. Em seu arrazoado contra os
cleros, Julien Benda acusa principalmente a injustiça dos que, por motivo de
fanatismo patriótico, condenaram o oficial judeu. Da Rússia Czarista utilizou o
termo intelligentsia para designar o conjunto de intelectuais que matutavam e
discutiam ardorosamente os prós e contras da revolução esperada. O termo, apesar
da distância dos tempos, continua sendo usado para designar “os que pensam”, os
que utilizam uma linguagem de código indecifrável, um “não compromisso real”
indefinido, etc.
Nós, entretanto, preferimos a noção que nos fica da leitura de Gramsci,
onde intelectual não quer dizer uma formação acadêmica específica, mas uma de
ação social, um certo tipo de agente capaz de fazer a ligação entre superestrutura e
infra-estrutura, independente de sua escolaridade específica, mas relacionada
diretamente com o “lugar” que ocupa nas relações materiais/sociais de uma
determinada produção social.
Na sua introdução, ao Materialismo histórico e à filosofia de Benedetto
Croce, Gramsci desmistifica que o intelectual, por motivos quaisquer que sejam,
seja o único capaz de “saber”.
“É preciso destruir o julgamento de que a filosofia é algo sumamente difícil
por ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de
cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É
preciso, portanto, demonstrar que todos os homens são filóso“fos”, e definir
os limites e as características desta “filosofia espontânea” própria de todos,
isto é, a filosofia que nela está contida” (Gramsci, 1981: 15).
Assim, todos os homens são filósofos, porque pensar é próprio do homem
como tal, a não ser uma personalidade patológica. O que separa um grupo do outro
(intelectual e o não intelectual) não é a forma de conhecimento em si mesmo, mas
um tipo de logicidade do pensamento, a coerência sistemática, a possibilidade de
usar a própria história do pensamento, o seu sentido e também o seu
desenvolvimento nas ações e tentativas de explicações do mundo.
Para Gramsci, a estrutura e a superestrutura formam um “bloco histórico”,
isto é, um conjunto complexo e contraditório, onde a superestrutura é o reflexo do
conjunto das relações sociais de produção. Porém, é preciso observar que a relação
entre superestrutura e infra-estrutura não se dá abstratamente, ela acontece de
maneira concreta, histórica e essa ligação teria de ser feita organicamente,
necessariamente, e ao intelectual caberia mais essa função (além da que lhe cabe
na classe social), a de realizar a vinculação dentro do bloco histórico.
 
III - Autonomia do intelectual
Um dos problemas importantes levantados por Gramsci é o da autonomia
do intelectual. O intelectual seria considerado até por partidos comunistas como
uma espécie de “força autônoma”, independente da “camada social em que
gravita”.
Mesmo quando lança idéias que são aproveitadas pelo proletariado, este o
mantêm “organicamente” afastado, seus chefes seriam tirados do grupo operário
ou camponês. A origem intelectual, ou o privilégio intelectual criaria uma certa
desconfiança ente as bases operárias.
Gramsci teria mostrado que a autonomia do intelectual, diante das classes
dominantes é impossível, e se tornaria mais difícil à medida que o intelectual
criasse “nome”.
Assim sendo, o intelectual é colocado como o “representante da hegemonia
do grupo dominante”, que faria a ligação entre a superestrutura e a infra-estrutura.
Esta relação entre a superestrutura e a infra-estrutura, cria para o
intelectual a possibilidade revolucionária de se relacionar organicamente com a
classe em ascensão (o proletariado revolucionário), rompendo com a sua posição
tradicional, podendo essa relação orgânica se efetuar com mais clareza em
momentos de crise e questionamento de superestrutura.
Se antes era impossível a autonomia do intelectual tradicional diante da
“hegemonia” também “tradicional”, agora, quando pensado o intelectual em sua
relação orgânica com a classe proletária, essa autonomia cai de vez por terra, é
uma nova orientação prática que se impõe historicamente aos intelectuais, através
de uma ação organicamente orientada para a hegemonia do proletariado.
Desta forma, se fundam de vez a relação nova e revolucionária, que liga os
intelectuais aos proletários dentro do “bloco histórico”.
Segundo Gramsci “todo grupo social, ao mesmo tempo em que se constitui
sobre a base original da função essencial que ele assume no campo da produção
econômica, cria organicamente uma ou mais camadas intelectuais que lhe
asseguram homogeneidade e consciência de sua própria função, não somente no
setor econômico, mas também nos setores social e político...” essas camadas
intelectuais não surgem de forma abstrata, democrática, liberal etc., mas sim de
relações concretas dentro do processo histórico de produção social. E será, na sua
forma de se articular com a classe revolucionária (ou não), que poderá cumprir a
sua “função de agentes da hegemonia”. O “valor intrínseco” da atividade
intelectual, se é que existe, só tem razão de ser quando cumprida esta função, logo
o intelectual pode estar se tornando o agente “orgânico” da reação, e, nesse caso,
será necessário que os intelectuais orgânicos do proletariado sejam capazes de
assimilá-lo, de conquistá-lo ideologicamente, ou que as “alianças se tornem
possíveis”, mas que acima de tudo, a luta seja pela hegemonia do proletariado.
“No momento da crise do ‘bloco velho’, burguesia e proletariado disputam a
aliança dos intelectuais tradicionais, cuja adesão torna-se possíveis e ocorre
‘espontaneamente’ nos momentos em que um grupo social determinado
aparece como historicamente progressista, isto é, quando ele promove os
interesses da sociedade como um todo, não somente satisfazendo suas
exigências fundamentais, mas também ampliando progressivamente seus
próprios quadros, através da conquista constante de novas esferas de
atividades econômico-produtivas”.(Gramsci – citado por Macciocchi, 1982:
195).
 
Faz-se necessário a unidade (inseparável) entre ação e idéia, e que se
torne permanente a reflexão sobre o comportamento político de forma paralela, e
isto torna imprescindível a relação entre teoria e prática, que é o único caminho de
se articular o proletariado e o intelectual dentro da classe.
 
IV - O lugar do intelectual hoje
“O intelectual de hoje, se tem uma razão de ser, é na medida em que ele
confirma e propaga diferenças; o que acontece – de forma trágica – é que a
diferença é vista como uma dissidência que passa também pela pesquisa de formas
e linguagens novas”. (Julia Kristeva, 1977: 2).
A esquerda vive sempre com a concepção do intelectual engajado de
Sartre ou do intelectual orgânico de Gramsci, mas a urgência hoje, passa por uma
reformulação desta moral do engajamento, desta “vontade de servir” (ou dever).
Talvez hoje seja indispensável reavaliar a relação indivíduo/sociedade e
conseqüentemente a relação intelectual – grupo social.
Para se entender melhor o papel dos intelectuais hoje, seria preciso definir
novos tipos de relações que unem o indivíduo aos grupos.
Só a prática incorporada ao cotidiano do intelectual, sendo de esquerda ou
não, poderá levantar novas possibilidades teóricas/práticas de sociedades bem
sucedidas. Mesmo que o capitalismo seja (e o é) um desastre para o homem, o
socialismo poderá deixar de ser o mito de uma sociedade ideal, e se trocará o culto
teórico deste mito, por ações que levem à sociedade possível, independente das
modificações e inovações teóricas que se tenham que fazer e assimilar. É preciso
que o Marxismo seja então uma linha de conduta, e não simplesmente uma “fé” a
ser seguida.
Pode até ser que “não exista uma solução total, política” (Julia Kristeva,
1977: 2/3), capaz de resolver os problemas de todos os seres humanos, mas é
preciso, apesar disso, que não se fique apenas em discursos singulares que tentam
ir além das crises “individuais” e formulá-las para todos, “para que um conjunto
social se mantenha atento, à escuta daquilo que o corrói, que o ameaça”.
O importante é que os intelectuais (principalmente os marxistas) “de cada
país levem em conta com plena consciência tanto as tarefas fundamentais, de
princípio, da luta contra o oportunismo e o doutrinarismo ´de esquerda`, como as
particularidades concretas que esta luta adquire e deve adquirir inevitavelmente
em cada país, de acordo com os aspectos originais de sua economia, sua política,
sua cultura, sua composição racional...” (Lênin, 1978: 15).
Mas como se organizaria o intelectual preocupado com o seu papel de
agente fundamental numa formação social dada?
Gramsci diz que a luta pela hegemonia não termina simplesmente com a
tomada do poder, e a preparação operacional para a revolução, a natureza e a
organização deste tipo de “exército” (o Partido) que levará à conquista é uma
preocupação. O ponto fundamental do problema reside não na organização formal –
Gramsci aqui é um leninista – mas na natureza da relação entre o Partido e a classe
trabalhadora. Aqui, para nós é importante vermos como o intelectual se situa nesta
relação (Partido/classe trabalhadora). O Partido deve não apenas guiar, ensinar e
“representar” a classe, mas também fundamentar-se em sua atividade mobilizada
como classe, “em cuja a base está a organização da fábrica, sobre a qual Gramsci
deu tanta ênfase durante sua época em Turim” (Hobsbawn, 1977: 63).
Os intelectuais num país como o Brasil, por exemplo, talvez vivam se
perguntando sobre o seu papel e o seu lugar. A história está “acontecendo”, e não
espera pelos retardatários, como se ser sujeitos dela, quando ainda não podemos
definir para que servem pelos sítios daqui o intelectual. No momento a classe
trabalhadora está mostrando que nestes últimos anos de silêncio, desenvolveu os
mecanismos capazes de criar seus intelectuais orgânicos, que estão em estreita
relação com a política de hegemonia dos trabalhadores. E os intelectuais que se
originam de outras classes?
Como se sabe, a maioria deles entre nós são de classe média. O que nos
indagamos é se estão eles se relacionando de forma orgânica com a classe
dominante, e neste caso, legitimam o sistema e defendem “o bloco histórico” para
os poderosos, ou estão organicamente se relacionando com a classe trabalhadora?
Esta relação intelectual/classe, não é uma abstração, é algo tão concreto
como um dia após o outro. E, talvez, seja esta relação o lugar que deva o
intelectual não abrir mão, independente de sua origem de classe, e sabendo que
esta trará problemas e vícios que terão que ser resolvidos. Este lugar não é um
lugar teórico, é um lugar concreto, palpável, capaz de condicionar os instrumentos
e desenvolvimento da teoria. Não basta ser um bom teórico, se faz necessário, para
se ocupar este lugar, que se tenha uma “praxis” coerente com a luta de se fazer da
classe trabalhadora, a classe hegemônica.
E, mais uma vez, é preciso não esquecer que ação e idéia são uma unidade
inseparável. Não basta o discurso teórico brilhante, é preciso, antes de tudo, a ação
coerente com o discurso da “classe trabalhadora” através de seus intelectuais
orgânicos, independente de suas origens sociais, se possível.
 
Bibliografia:
 
ADLER. Gramsci. “Lênin no Ocidente”. In. Encontros com a Civilização Brasileira, nº
5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro.
Civilização Brasileira; 1979.
........................ Materialismo histórico e a filosofia de Benedetto Croce. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira; 1981.
HOBSBAWN, Eric. “O grande Gramsci, das lutas à prisão”. In. Cadernos de Opinião,
n. 1; 1977.
KRISTEVA, Julia.  Cadernos de Opinião, n. 1; 1977.
LÊNIN, Vladimir Ilitch. Que Fazer? Hucitec: São Paulo; 1975.
............................. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. São Paulo: Ed.
Símbolo; 1978.
Macciochi. A favor de Gramsci. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra; 1982.
NIZAN, Paul. Les Chienes de Garde. Paris, Maspero, 1978.
 
Resumo: O propósito do artigo é o de tendo por referencial as propostas de
Gramsci, refletir sobre o papel do intelectual no mundo contemporâneo.
 
Palavras-chave: intelectual orgânico, autonomia intelectual e bloco histórico.   
 
* A autora é professora do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de janeiro.

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